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Quando conquistaram o Império Asteca, os espanhóis logo enviaram um bispo católico com experiência de inquisidor, especialista no combate à feitiçaria. Ele mandou prender vários sacerdotes astecas sob a acusação de “barbárie”, conde- nando-os a morrer na fogueira. No Brasil indígena, o costume tupi mais condenado como bárbaro era a antro- pofagia. Os nativos a praticavam não como fonte de nutrição, mas com significado ritual. Ao comerem o inimigo feito prisioneiro, buscavam vingar o espírito de seus próprios antepassados mortos pelo povo inimigo. Os portugueses, por sua vez, consideraram tal costume bárbaro, embora incen- diassem aldeias de povos indígenas resistentes à ocupação. Em 1587, o agricultor e cronista português Gabriel Soares de Sousa (1540-1591), senhor de engenho es- cravista no Brasil, escreveu ao rei defendendo que todos os indígenas deveriam ser escravizados, fossem ou não hostis, porque eram bárbaros e canibais. A designação dos indígenas como bárbaros se conjugou com o projeto de sua escravização por parte dos colonizadores, em uma reedição dos valores greco- -romanos que misturavam preconceito cultural e ambição mercantil. A antropofagia tomou diferentes formas entre povos indígenas do território brasileiro. Entre alguns deles, comer o corpo dos parentes quando eles morrem é um ato ritual importante para apaziguar os espíritos. OBSERVE QUE . . . Preparo da carne humana em episódio canibal, de Theodore de Bry, século XVI (gravura em cobre). A gravura representa um ritual antropofágico no Brasil, de acordo com a visão do explorador alemão Hans Staden (1515-1576). QUESTÕES EM FOCO Relativismo cultural No início da década de 1550, realizou-se na cidade de Valladolid, na Espanha, um famoso debate sobre a legiti- midade da conquista da América pelos espanhóis e da escravização dos indígenas. Dois teólogos destacaram-se na ocasião. O espanhol Juan de Sepúlveda (1494-1573) sustentava que a escravização dos indígenas era legíti- ma, apoiando-se em Aristóteles, para quem havia homens naturalmente vocacionados à escravidão. Segundo ele, os nativos indígenas enquadravam-se nesse caso, pois eram seres irracionais. Duvidou até da humanidade dos indígenas, alegando que eles seriam desprovidos de alma. O também espanhol Bartolomeu de Las Casas (1484-1566), por outro lado, condenava veementemente a escravização dos povos indígenas, defendendo que eles tinham alma, sendo perfeitamente humanos e merecedores da catequese para sua salvação espiritual. ■ É possível entender que Las Casas defendia as culturas indígenas ao contestar a argumentação escra- vista e desumanizadora de Sepúlveda? Justifique sua resposta. Considere, para a resposta, a ideia de relativismo cultural, ou seja, uma perspectiva sobre sistemas culturais que seja livre de parâmetros preconcebidos e etnocêntricos. O etnocentrismo não foi exclusividade dos colonizadores europeus. Os povos coloniza- dos também interpretaram os europeus con- forme os próprios valores. Os astecas, por exemplo, viram a chegada dos espanhóis ao México como se fossem “deuses barbudos” que levariam ao fim do mundo, conforme anunciado em suas profecias. Chegaram a associar o líder dos conquistadores, Fernando Cortez (1485-1547), ao deus Quetzalcóatl, cujo retorno marcaria o fim dos tempos se- gundo a mitologia nativa. R e p ro d u ç ã o /B ib li o te c a M u n ic ip a l M á ri o d e A n d ra d e , S ã o P a u lo , S P. 73 V1_CIE_HUM_Vainfas_g21Sa_Cap3_066a087_LA.indd 73V1_CIE_HUM_Vainfas_g21Sa_Cap3_066a087_LA.indd 73 9/18/20 2:30 PM9/18/20 2:30 PM Dança ritual dos tupinambás, de Theodore de Bry, século XVI (gravura em cobre). Em outros casos, os europeus foram simplesmente rejeitados pela sua apa- rência e por seus costumes, como nas primeiras crônicas escritas pelos chine- ses quando os portugueses chegaram a Macau, no início do século XVI. O mesmo ocorreu entre os japoneses e os hindus, que consideravam os portugueses “sujos, fedorentos e animalescos”. Analisando cronistas de Macau, o historiador chinês Fok Kai Cheong afirmou que os portugueses foram identificados como demônios. Um deles sugeriu que eram canibais. Outro sublinhou suas formas grotescas, seu aspecto estranho e suas roupas bizarras: “têm nariz proeminente, tez clara, uma espécie de bico e olhos de gato. A barba é encaracolada e o cabelo arruivado. Todavia muitos deles são calvos e rapam a barba”. Kai Cheong acrescenta que “o fato de desconhecerem os ensinamentos tradicionais chineses levou a que os eruditos comparassem o seu comportamento com o dos animais irracionais”. ■ Qual é o conceito que exprime o etnocentrismo chinês e como ele se dá em relação aos portugueses? Quais são os tipos de estranhamento ressaltados pelos chineses? A N A L I S A N D O M E N S A G E N S CHEONG, Fok Kai. Estudos sobre a instalação dos portugueses em Macau. Lisboa: Gradiva, 1996. p. 12-13. PRECONCEITO RELIGIOSO CONTRA GENTILIDADES E INFIÉIS Os preconceitos ocidentais com relação a povos não ocidentais, com destaque para a desumanização, tiveram mais impacto no longo prazo do que os precon- ceitos que tais povos externaram em relação aos europeus. Isto pela simples razão de que os europeus conquistaram os demais territórios ou tentaram sujei- tá-los a seus interesses mercantis. A base da condenação dos nativos pelos europeus, sobretudo na América e na África, apoiou-se, como vimos, no conceito de barbárie. Mas tal conceito tam- bém abarcou um paradigma religioso, ou seja, a rejeição das crenças vistas como contrárias ao cristianismo por serem diferentes dele. Muitas vezes, a condena- ção da religião dos outros exprimia-se no conceito de gentilidade, equivalente a paganismo e/ou à qualidade de gentio, isto é, não batizado. Diversas crônicas ibéricas sobre povos ameríndios e africanos qualificam seus ritos como gentios. No caso do Brasil, vários cronistas (sobretudo os jesuítas) assim classificaram os bailes indígenas, as bebedeiras coletivas de cauim ou as pregações dos grandes pajés, que encarnavam an- cestrais e pregavam, em transe místico, migrações coletivas em busca da “terra sem mal”, uma espécie de paraíso terrestre dos Tupi, onde a alimentação era farta e inesgotável, as mulheres sempre ficariam jovens e as flechas caçariam sozinhas, sem que os homens fizes- sem esforço. O conceito de gentio provém do judaísmo, que considera os não judeus goym (originalmente, em hebraico, “nação” ou “povo”). OBSERVE QUE . . . cauim bebida feita à base da fermentação da mandioca que provoca forte embriaguez. Era muito consumida, especialmente pelos homens, para celebrar vitórias em guerras e outras ocasiões solenes. pajŽ nome dado ao curandeiro na cultura tupi, com destaque para os grandes pajés (pajé-açu), que encarnavam espíritos e faziam pregações. Reprodução/Coleção particular 74 V1_CIE_HUM_Vainfas_g21Sa_Cap3_066a087_LA.indd 74V1_CIE_HUM_Vainfas_g21Sa_Cap3_066a087_LA.indd 74 9/18/20 2:30 PM9/18/20 2:30 PM