Prévia do material em texto
145 A apropriação ocidental da ioga se reconheceu mais fortemente na vertente mais física da prática, buscada hoje como forma de aumento da flexibilidade, da força, do alinhamento postural, tratamento de dores e problemas ortopédicos, combinados a melhorias nos níveis de estresse físico e mental. Esse direcionamento pode se opor aos textos tradicio- nais indianos, que propõem as posturas como forma de alcançar formas mais elevadas de concentração e transcendência da mente. A dimensão ética integrada à ioga foi deixada de lado e sua prática passou a estar associada mais fortemente aos benefícios físicos. No entanto, a dimen- são ética da busca pelo equilíbrio, respeito, não violência, integração com a natureza é uma herança que, se integrada à prática, pode contri- buir para novos caminhos sociais do mundo contemporâneo. Cabe aos praticantes e professores continuar integrando essas duas dimensões. Para diferenciar a ioga ancestral do modo como ela foi sendo apropria- da globalmente, foi criado o conceito de ioga postural moderna. O con- ceito compreende a inserção da prática em processos de mercantilização, apropriação do uso terapêutico ou medicalização, com a mistura de tra- dições orientais, ocidentais e da ciência moderna. Em sua origem indiana, ioga é um sistema filosófico que define um conjunto de valores éticos, práticas corporais e meditativas, atitudes e hábitos de vida. A apropria- ção dessa tradição milenar pelo ocidente faz da chamada ioga postural moderna um fenômeno globalizado e massificado. A ioga postural moderna preservou características mais marcantes da tradição da hatha ioga, que já trazia a ideia de que o desenvolvimento corporal constitui o caminho espiritual. Essa vertente surgiu, ainda na Ín- dia, com a entrada do movimento ginástico europeu nas escolas indianas no início do século XX, e depois com as influências do fisiculturismo e da associação entre a disciplina corporal e o desenvolvimento moral cultiva- dos no ocidente. Por isso a ioga postural moderna não pode ser entendida como mera importação da tradição indiana, mas como uma nova prática que surge da hibridização de referenciais da cultura oriental e ocidental. A ioga é definida por Léo Fernandes Pereira como: o conjunto de ferramentas que tem como finalidade preparar o sujeito para a assimilação do conhecimento sobre o si-mesmo. Essas ferramen- tas acabam por realizar uma transformação integral no indivíduo: nos seus comportamentos, ações e processos cognitivos; na sua relação com o próprio corpo, mente, órgãos dos sentidos e objetos sensoriais; na sua relação com os semelhantes e com o ambiente. PEREIRA, Léo Fernandes. Do yoga para a atenção psicossocial na atenção primária à saúde: um estudo hermenêutico sobre o Yoga Su-tra de Patañjali. 2018. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/198475/PGSC0212-D. pdf?sequence=-1&isAllowed=y. Acesso em: 2 ago. 2020. O autor compreende a ioga como uma ferramenta para empodera- mento psicológico, cultural e político do sujeito. E considera que a me- lhoria da saúde física, isoladamente, não foi objetivo da ioga tradicional, mas sim a busca do equilíbrio entre o sujeito e o mundo externo, o que envolve a adoção de um estilo de vida consciente de si e dos outros. Defende, ainda, que a retomada dos valores da “cultura yogue” poten- cializa a consciência e participação cidadã, na medida em que não é possível professar os valores da ioga sem criticar as desigualdades so- ciais, a violência estrutural, a falta de condições de moradia, de relações afetivas e de alimentação equilibrada, dentre outros aspectos que envol- vem a esfera coletiva. movimento ginástico europeu: surgido na Europa durante o século XIX, sistematizou movimentos como fórmulas de desenvolver atividades físicas fundamentadas em conhecimentos científicos, visando à saúde e ao disciplinamento do corpo. Iniciou-se a partir de instituições médicas e militares, cujas técnicas preconizavam sequências fixas, ordenadas, com determinações precisas sobre como se movimentar. Também é conhecido como ginástica calistênica. V4_LINGUAGENS_Faraco_g21Sa_Cap4_120a153_LA.indd 145V4_LINGUAGENS_Faraco_g21Sa_Cap4_120a153_LA.indd 145 16/09/2020 17:3916/09/2020 17:39 146 Nesse sentido, além do desenvolvimento da integração entre corpo, mente e emoção, a ioga possibilita ao sujeito se conectar com a busca de justiça social e bem-estar para todos. No entanto, a prática no Brasil ainda é considerada privilégio de pessoas com melhores condições socioeconô- micas, que conseguem pagar aulas de estúdios, escolas de ioga ou acade- mias. Em busca de democratizar o acesso aos benefícios da prática para todos, iniciativas de professores engajados têm levado a prática para grupos tradicionalmente excluídos. Um exemplo são as aulas gratuitas ofe- recidas pelo projeto Treino na Lage, da professora Sophia Bisilliat, em co- munidades da periferia de São Paulo. Outro caso é o projeto Yoga Margi- nal, de Tainá Antônio, que oferece aulas gratuitas na Baixada Fluminense. NÃO ESCREVA NESTE LIVRO. Projeto Treino na Lage. Disponível em: www. treinonalaje.com. Acesso em: 1º ago. 2020. Acesse o site oficial do projeto para conhecer melhor a iniciativa. Yoga e meditação na periferia de Olinda. Disponível em: https:// culturadapaz. com.br/yoga- meditacao- criancas-periferia/. Acesso em: 1º ago. 2020. Conheça ainda outro projeto, realizado com crianças em Pernambuco. FICA A DICA Aula do projeto Treino na Lage em Capão Redondo, bairro da Zona Sul da cidade de São Paulo (SP), 2019. Aula do projeto Yoga Marginal em Duque de Caxias (RJ), 2019. A democratização do acesso à ioga, dentre outras práticas de medi- cina tradicional, também tem sido preocupação de organismos interna- cionais e de políticas de saúde pública no Brasil. A ioga é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como prática de medicina tradicional desde 2002, ano de publicação da primei- ra versão do documento de estratégias de medicina tradicional (2002- -2005), que foi atualizado para o período 2014-2023. O documento visa incentivar os Estados-membros, como o Brasil, a incorporar nas políticas públicas de saúde estratégias de acesso e valorização da medicina tradi- cional, integrando-os às práticas e programas da medicina moderna. No Brasil, a ioga compõe a regulação da presença das Práticas Inte- grativas e Complementares (PIC) no Sistema Único de Saúde (SUS), de- finida na Portaria n. 971, de 3 de maio de 2006, do Ministério da Saúde. O documento define que os principais benefícios da prática de ioga são: Prática corporal e mental de origem oriental utilizada como técnica para controlar corpo e mente, associada à meditação. Apresenta técnicas específicas, como hatha-yoga, mantra-yoga, laya-yoga, que se referem a tradições especializadas, e trabalha os aspectos físico, mental, emocional, energético e espiritual do praticante com vistas à unificação do ser huma- no em si e por si mesmo. Entre os principais benefícios obtidos por meio da prática do yoga estão a redução do estresse, a regulação do sistema nervoso e respiratório, o equilíbrio do sono, o aumento da vitalidade psi- cofísica, o equilíbrio da produção hormonal, o fortalecimento do sistema imunológico, o aumento da capacidade de concentração e de criativida- de e a promoção da reeducação mental com consequente melhoria dos quadros de humor, o que reverbera na qualidade de vida dos praticantes. Práticas Integrativas e Complementares (PICS): quais são e para que servem. Ministério da Saúde. Disponível em: https://saude.gov.br/saude-de-a-z/praticas-integrativas-e- complementares. Acesso em: 2 ago. 2020. R e p ro d u ç ã o /Y o g a M a rg in a l E d u a rd o K n a p p /F o lh a p res s V4_LINGUAGENS_Faraco_g21Sa_Cap4_120a153_LA.indd 146V4_LINGUAGENS_Faraco_g21Sa_Cap4_120a153_LA.indd 146 16/09/2020 17:3916/09/2020 17:39