Prévia do material em texto
CARLeS AUGUS + © VAILA + + I fflANUAL DE DÊrn®N©L©GIA Diante das fronteiras da loucura, existe uma zona intermediária, um claro-escuro onde a realidade parece preservada, mas a natureza das relações estabelecidas por lúcifer, a vivência fantasmática quer arrastar a lucidez. Por isso, lutar contra o brilhante da alva significa romper frieza, indiferença e isolamentos, agressividade, cólera e errância. O senhor das luzes, o Sol do meio-dia, apaga a radiação que não deve brilhar: "ego Dominus vocavi te in iustitia et adprehendimanum tuam et servaviet dedite in foedus populi in lucem gentium ut aperires oculos caecorum et educeres de conclusione vinctum de domo carceris sedentes in tenebrís ego Dominus hoc est nomen meum gloriam meam alteri non dabo et laudem meam sculptilibus” WWW. F® N +E E D1 + ® RI AL.Cffi01 .BR ISBN 978-85-63607-45-4 Satanás, DEmêNies e legiões um ÍT1ANUAL DE DEm®N©L©GIA CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I Satanás, DEmêNies e LEGIÕES um IT1ANUAL Df rn©N©k©GIA 2011 © Fonte Editorial Capa: epreparação: Edu\RDO Dl- Pl« )l-NÇA Formato 14x21 cm - 494 páginas Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Vailatti, Carlos Augusto Manual de Demonologia. Carlos Augusto Vailatti. São Paulo. 2011. Fonte Editorial. ISBN 978-85-63607-45-4 1 . Demônios2. Satanás 3. Exorcismo I Título CDD236 Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio eletrônico e mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos, sem permissão expressa da editora. (Lei n" 9.610 de 19.2.1998) Todos os direitos reservados à FONTE EDITORIAL I.TDA. Rua Barão de Itapctininga, 140 loja 4 0 11)42-000 São Paulo - SP Tel.: 11 3151-4252 www.fonteeditorial.com.br e-mail: contato@fontecditorial.com.br http://www.fonteeditorial.com.br mailto:contato@fontecditorial.com.br DEDICA + ® RIA >4 Deus, Aquele que com a batuta do Seu infinito poder, rege a sinfonia do Universo. À minha mãe, Antonia. Ao meu pai, Augusto (in memoriam). / minha sogra, Rachel (in memoriam), guerreira incansável das fileiras do exército de Cristo. À minha amada esposa, Noeli. E a todos aqueles que se interessam pelos estudos bíblicos e teológicos. sumARi® INTRODUÇÃO............................................................................................ 25 i. Determinação do Campo de Estudo.........................................................25 ii. Especificação dos Objetivos....................................................................26 iii. Pertinência e Oportunidade da Obra...................................................... 27 iv. Metodologia Empregada.........................................................................-30 CAPÍTULO I - CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE SATANÁS, DEMÔNIOS E EXORCISMOS.....................................................................35 1.1. Considerações Sobre Satanás......................................................... 37 1.1.1. Definição do Termo.............................................................................37 1.1.2. Satanás no Antigo Testamento.......................................................... 38 1.1.3. Satanás no Novo Testamento.............................................................44 1.1.4. Satanás e o Seu Nome Grego: Diabo...............................................45 1.1.5. Satanás e os Seus Outros Nomes......................................................47 1.1.6. Satanás e os Demônios.....................................................................51 1.2. Considerações Sobre os Demônios..............................................53 1.2.1. Fatores que Complicam a Compreensão Demonológica........... 53 1.2.2. Os Demônios no Antigo Testamento.................................................56 1.2.3. Identificando os Demônios.................................................................58 1.2.4. Os Demônios no Período do Grego Clássico.................................. 73 1.2.5. Os Demônios na LXX......................................................................... 79 1.2.6. Os Demônios no I Século d.C............................................................ 83 1.3. Considerações Sobre Exorcismos............................................... 96 1.3.1. Definindo o Termo.............................................................................. 96 1.3.2. Exorcismos noAT e nos Apócrifos.....................................................97 1.3.3. Exorcismos nos Manuscritos do Mar Morto.................................... 105 1.3.4. Exorcismos nos Pseudepígrafos.......................................................114 1.3.5. Exorcismos e Exorcistas na Tradição do Judaísmo.....................116 1.3.6. Exorcismos e Exorcistas no Contexto Pagão..................................129 1.3.7. Os Papiros Mágicos Gregos........................................................... 141 1.3.8. Jesus, o Exorcista-Mor.................................................................... 147 1.4. Conclusão.............................................................................-........157 SA + A N A S, D Em eN ieS E LÍG I© ES CAPÍTULO II-ANÁLISE EXEGÉTICA DE MC 5.1-20............................. 161 2.1. Análise Sincrônica.........................................................................163 C A R ES S A U G U S + © VA IJ .A + + 1 2.2. Análise Diacrônica............................................................................268 2.3. Conclusão..........................................................................................310 8 CAPÍTULO III-ANÁLISE HERMENÊUTICA DE MC 5.1-20................. 313 3.1. A Interpretação dos Pais da Igreja e de Outros Autores da Era Patrística...................................................................................................315 3.2. A Interpretação Antropológica de René Girard........................331 3.3. A Interpretação Parabólico-Alegórica de André Chouraqui...344 3.4. A Interpretação Contextualizada de Fiódor Dostoiévski....... 353 3.5. A Interpretação Sociopolítica de Myers e Carter...................... 356 3.6. A Interpretação Psicológica de Freud e Oesterreich.............. 368 3.7. A Interpretação da “Territorialidade Espiritual” de C. Peter Wagner...................................................................................... 374 3.8. A Interpretação do Simbolismo Mágico-Religioso de Mircea Eliade........................................................................................................ 383 3.9. Conclusão......................................................................................... 391 CAPÍTULO IV - ANÁLISE HISTÓRICA DE MC 5.1-20.......................... 393 4.1. Uma História de Gerasa....................................................................395 4.2. Uma História da Decápolis...............................................................401 4.3. Uma História das Legiões Romanas............................................ 416 4.4. Conclusão..........................................................................................453 CONCLUSÃO FINAL................................................................................457 BIBLIOGRAFIA.........................................................................................461 ABREVIATURAS SA +A N Á S, D ^m êN ieS E LEG IÕ ES AB The Anchor Bible. ALBRIGHT, W.F. & MANN, C.S. Matthew: a new 9 translation with introduction and commentary. Vol.26. New York, Doubleday, 1971. ______________ . FITZMEYER, Joseph A. The Gospel According to Luke l-IX. Vol .28. New York, Doubleday, 1981. ______________ . MARCUS, Joel. Mark 1-8:ANew Translation With Introduction And Commentary. Vol.27. New York, Doubleday, 1999. ABD The Anchor Bible Dictionary. FREEDMAN, David Noel. (ed.). Vol.II. New York, Doubleday, 1992. AGB Asimov’s Guide to the Bible. ASIMOV, Isaac. [The Old and New Testaments]. New York, Wings Books, 1981. AHCL The AnalyticalHebrew and Chaldee Lexicon. DAVIDSON, Benjamin. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1981. AP The Archaeology of Palestine. ALBRIGHT, W. F. Gloucester, Peter Smith Publisher Inc., 1971. APEB Apócrifos e Pseudo-Epígrafos da Bíblia. PROENÇA, Eduardo de. (org.). [Tradução de Claudio J. A. Rodrigues]. São Paulo, Fonte Editorial Ltda., 2005. AT Antigo Testamento BC Bible Commentary: Matthew - Acts. GRAY, James Comper & ADAMS, George M. Vol.4, Grand Rapids, Zondervan Publishing House, S.d. BCBO Biblioteca de Ciências Bíblicas y Orientates. KEEL, Othmar. La Iconografia del Antiguo Oriente y el Antiguo Testamento. [Traducción deAndrésPiquer], Madrid, Editorial Trotta, S.A., 2007. BD Biblical Demonology: a study of the spiritual forces behind the present world unrest. UNGER, Merrill F. Wheaton, Scripture Press Publications, Inc., 1973. BDB Breve Diccionariode la Biblia. HAAG, Herbert. Barcelona, Editorial Herder, 1992. C A R L© S A U G U S+ © VA IK A + + I BHS Bíblia Hebraica Stuttgartensia. ELLIGER, K. & RUDOLPH, W. (eds.). Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1997. IO BJ Bíblia de Jerusalém. BNT The Birth of the New Testament. MOULE, C. F. D. London, Adam & Charles Black, 1966. BP Biblioteca de Patn'st/ca.AQUILEYA, Cromaciode. Comentário al Evangelic de Mateo. [Traducción de José Granados y Javier Nieva], Madrid, Editorial Ciudad Nueva, 2002. ______________ . JERONIMO. [San Jeronimo]. Comentário al Evangelic de San Marcos. [Traducción de Joaquin Pascual Torró], Madrid, Editorial Ciudad Nueva, 1995. BS Bibliotheca Sacra. BSDe Bible Studies: contributions chiefly from papyri and inscriptions to the history of the language, the literature, and the religion of hellenistic judaism and primitive Christianity. DEISSMANN, G. Adolf. [Translated by Alexander Grieve]. Peabody, Hendrickson Publishers, 1988. BST Bible Study Textbook. JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. Missouri, College Press, 1965. CB Comentário Bíblico. BERGANT, Dianne & KARRIS, Robert J. (orgs.). Vol.3. [Tradução de Barbara Theoto Lambert]. São Paulo, Edições Loyola, 2001. CBAAT Comentário Biblico Atos: Antigo Testamento. WALTON, John, MATTHEWS, Victor & CHAVALAS, Mark. [Tradução de Noemi Valéria Altoé], Belo Horizonte, Editora Atos, 2003. CBANT Comentário Biblico Atos: Novo Testamento. KEENER, Craig S. [Tradução de José Gabriel Said]. Belo Horizonte, Editora Atos, 2005. CBHA Comentário Biblico Hispano-Americano. COOK, Guillermoy FOULKES, Ricardo. Marcos. Miami, Editorial Caribe con La Cooperation de La Fraternidad Teológica Latino-Americana, 1990. CCTRL The Cambridge Companion to Talmud and Rabbinic Literature. FONROBERT, Charlotte Elisheva & JAFFEE, Martin S. (eds.). Cambridge, Cambridge University Press, 2007. 11 CEEB Comentário Exegetico y Explicativo de la Bíblia. JAMIESON, R., FAUSSET, A. R. & BROWN, David. Tomo II. (El Nuevo Testamento). [Traductores: Jaime C. Quarles e Lemuel C. Quarles]. El Paso, Casa Bautista de Publicaciones, 1987. CEJ A Concise Encyclopedia of Judaism. SHERBOK, Dan Cohn. Oxford, Oneworid Publications, 1998. CHALOT A Concise Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament. HOLLADAY, William L. (ed.). Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Company / Leiden, E. J. Brill, 1988. CNT Comentário del Nuevo Testamento: Evangelios Sinopticos. BONNET, L.y SCHROEDER, A. Tomo I. El Paso, Casa Bautista de Publicaciones, 1982. DB A Dictionary of the Bible. HASTINGS, James. Vol .3. Peabody, Hendrickson Publishers, 1988. DBT Dicionário Bíblico-Teológico. BAUER, Johannes B. [Tradução de fl* Fredericus Antonius Stein], São Paulo, Edições Loyola, 2000. iti DCGENT Diccionario Conciso Griego-Espanol del Nuevo Testamento. O TAMEZ, Elsa y FOULKES, Irene W. de. Stuttgart, United Bible Societies, 1978. iti DDDB Dictionary of Deities and Demons in the Bible. TOORN, Karel Van Der, v* BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der. (eds.). Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing Company/Cambridge, Brill Academic Publishers, 1999. DENT Diccionario Exegético del Nuevo Testamento. BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). Vols. 1,2. [Traduction de Constantino Ruiz-Garrido], Salamanca, EdicionesSigueme, 2005. DGGNT Dicionário Gramatical do Grego do Novo Testamento. DEMOSS, Matthew S. [Tradução de Paulo Sartor Jr.]. São Paulo, Editora Vida, 2004. SA + A N Á S, D EniêN ISS C A R LO S A U G U S + e V A IL A + + I DGNT Dicionário do Grego do Novo Testamento. RUSCONI, Cario. [Tradução de Irineu J. Rabuske]. São Paulo, Paulus, 2003. 12 DGP Dicionário Grego-Português. MALHADAS, Dais!, DEZOTTI, Maria Celeste Consolin & NEVES, Maria Helena de Moura, (orgs.). Cotia, Ateliê Editorial, 2006. DGPPG Dicionário Grego-Português e Português-Grego. PEREIRA, Isidro. Porto, LivrariaApostoladoda Imprensa, 1976. DITAT Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. HARRIS, R. Laird (org.). [Tradução de Márcio Loureiro Redondo, LuizA.T. Sayão e Carlos Osvaldo C. Pinto]. São Paulo, Vida Nova, 1998. DITNT Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. Vols. 1,2. [Tradução de Gordon Chown]. São Paulo, Vida Nova, 2000. DJLT Dicionário Judaico de Lendas e Tradições. UNTERMAN, Alan. [Tradução de Paulo Geiger], Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1992. DR Diccionario de Religiones. PIKE, Edgar Royston. [Adaptación de Elsa Cecilia Frost], México, Fondo de Cultura Econômica, 2001. EA Los Evangelios Apócrifos: colección de textos griegos y latinos, version crítica, estúdios introductorios y comentários. OTERO, Aurelio de Santos. Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos de La Editorial Católica, S.A., 1988. EB The Expositor’s Bible. NICOLL, W. Robertson. Vol.4. Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1940. EBC The Expositor’s Bible Commentary. GAEBELEIN, Frank E. (ed.). [Matthew, Markand Luke], Vol. 8. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1984. EmJ The Emmaus Journal. GELNTA Greek-English Lexicon of the New Testament. THAYER, Joseph Henry. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1976. GHCLOT Geseniu’s Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old Testament. GESENIUS, H. W. F. Grand Rapids, Baker Book House, 1979. GJ Grace Journal. SA + A N Á S, D ^m êN ieS J.ÉG IÕ ES GMPT The Greek Magical Papyri in Translation, including de demotic spells. 13 BETZ, Hans Dieter, (ed.). Vol. One: Texts. Chicago & London, The University of Chicago Press, 1992. GNT The Greek New Testament. ALAND, Barbara, ALAND, Kurt, KARAVIDOPOULOS, Johannes, MARTINI, Carlo M. & METZGER, Bruce M. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 2005. GT The Greek Testament. ALFORD, Henry. Vol. I. [The Four Gospels], Chicago, Moody Press, 1968. HE História Eclesiástica. CESARÉIA, Eusébio de. [Tradução de Lucy lamakami eLuisAron de Macedo], Rio de Janeiro, Cpad, 1999. HH História dos Hebreus. JOSEFO, Flavio. Vol.3. [Tradução de Vicente Pedroso]. Rio de Janeiro, Cpad, 1992. HLCP História da Literatura Cristã Primitiva. VIELHAUER, Philipp. [Tradução de llson Kayser], Santo André, Editora Academia Cristã Ltda., 2005. IDB The Interpreter’s Dictionary of the Bible. An Illustrated Encyclopedia. BUTTRICK, George Arthur, (ed.). Vol.3. Nashville, Abingdon Press, 1981. IGEL An Intermediate Greek-English Lexicon. (Founded Upon the Seventh Edition of Liddell and Scott’s Greek-English Lexicon). LIDDELL, H. G. & SCOTT, R. Oxford, Oxford University Press, 1889. JETS Journal of the Evangelical Theological Society. JM JesustheMagician.SMITH, Morton. Northamptonshire,TheAquarian Press, 1985. LBC The Layman’s Bible Commentary. MILLER, Donald G. The Gospel Accordingto Luke. Vol. 18. Atlanta, John Knox Press, 1982. ______________ . MINEAR, Paul S. The Gospel According to Mark. Atlanta, John Knox Press, 1982. I ++VU VA e + snonv seTavo LXX Septuaginta. RAHLFS, Alfred. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1979. 14 MBA The Macmillan Bible Atlas. AHARONI, Yohanan & AVI-YONAH, Michael. New York, Macmillan PublishingCo., Inc. & London, Collier Macmillan Publishers, 1977. MSJ The Master’s Seminary Journal. NCB O Novo Comentário da Bíblia. DAVIDSON, F. (ed.). Vol.II. [Editado em Português por Russell P. Shedd]. São Paulo, Edições Vida Nova, 1990. NCBC The New Century Bible Commentary. ANDERSON, Hugh. The Gospel of Mark. Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publ. Co. & London, Marshall, Morgan & ScottPubl. Ltd., 1981. ______________ . ELLIS, E. Earle. The Gospel of Luke. Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publ. Co. / London, Marshall, Morgan & Scott Publ. Ltd., 1980. ______________ . HILL, David. The Gospel of Matthew. Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publ. Co. / London, Marshall, Morgan & Scott Publ. Ltd., 1984. ______________ . ROBERTSON, Archibald Thomas. The Gospel of Luke. Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Company/ London, Marshall, Morgan & Scott Publ. Ltd., 1980. NBD The New Bible Dictionary. DOUGLAS, J. D. (ed.). Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1979. NICNT The New International Commentary on the New Testament. LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. Grand Rapids /Cambridge, William B. Eerdmans Publishing Company, 1974. NIDNTT The New International Dictionary of New Testament Theology. BROWN, Colin, (ed.). Vol. 1. [A-F], [Translated by Lothar Coenen, Erich Beyreuther and Hans Bietenhard]. Grand Rapids, Zondervan, 1986. NSTCFA New Systematic Theology of the Christian Faith. REYMOND, Robert L. Nashville, Thomas Nelson Publishers, 1998. NT Novo Testamento 15 NTC New Testament Commentaries. EVANS, C. F. Saint Luke. London, SCM Press / Philadelphia, Trinity Press International, 1990. NTH New Testament History. BRUCE, F.F. New York, Doubleday & Company, Inc., 1980. NTI O Novo Testamento Interpretado: versículo por versículo. CHAMPLIN, Russell Norman. Vols.1,2. [Traduçãode João Marques Bentes]. São Paulo, Editora e Distribuidora Candela, 1995. NTITRC New Testament Interpretation Through Rhetorical Criticism. KENNEDY, George A. Chapel Hill, The University of North Carolina Press, 1984. NWDB The New Westminster Dictionary of the Bible. GEHMAN, Henry Snyder, (ed.). Philadelphia, The Westminster Press, 1970. OBA Oxford Bible Atlas. MAY, Herbert G. (ed.). Oxford, Oxford University Press, 1981. PC Proclamation Commentaries. ACHTEMEIER, Paul J. Mark. Philadelphia, Fortress Press, 1980. PDCG Pocket Dictionary Classical Greek. FEYERABEND, Karl. [Classical Greek- English]. Berlin, Langenscheidt KG, S.d. PHC The Preacher’s Homiletical Commentary. BURN, John Henry. Commentary on the Gospel According to St. Mark. Vol.22. Grand Rapids, Baker Book House, S.d. RGELNT A Reader’s Greek-English Lexicon of the New Testament KUBO, Sakae. Grand Rapids, Andrews University Press and Zondervan, 1975. SP Sacra Pagina. JOHNSON, Luke Timothy. The Gospel of Luke. Vol.3. Collegeville, The Liturgical Press, 1991. ________. HARRINGTON, Daniel J. (ed.). The Gospel of Matthew. Vol. 1. Collegeville, The Liturgical Press, 1991. SSNT Studia Semitica Novi Testamenti. MARCO, Mariano Herranz y PÉREZ, José Miguel Garcia. Milagros y Resurrection de Jesús Según S. Marcos. Madrid, Ediciones Encuentro, S. A., 2001. SA +A N A S. D £m ® N I© S £ LÇ G IÕ C S C A R K © S A U G U S + Ô VA U A + + I TB Terras da Bíblia. ROGERSON, John. [Tradução de Carlos Nougué]. Barcelona, Ediciones Folio, S.A., 2006. 16 TDNT Theological Dictionary of the New Testament. KITTEL, Gerhard, (ed.). [Translated and Edited by Geoffrey W. Bromiley]. Vol. 11. Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1964. TNT The Text of the New Testament: its transmission, corruption and restoration. METZGER, Bruce Manning. Oxford, Oxford University Press, 1981. TNTC The Tyndale New Testament Comentaries. COLE, R.A. The Gospel According to St. Mark: An Introduction And Commentary. Leicester, Inter-Varsity Press / Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Company, 1983. TrinJ Trinity Journal. VGNT Vocabulario Griego del Nuevo Testamento. GARRIDO, Constantino Ruiz, (trad.). Salamanca, Ediciones Sigueme, 2001. I/I/B The World of the Bible. WOUD, A. S. Van Der. (ed.). Void. Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Company, 1986. 1//BC Word Biblical Commentary. GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. Dallas, Word Books, Publisher, 1989. WPNT Word Pictures in the New Testament. ROBERTSON, Archibald Thomas. The Gospel According to Matthew and the Gospel According to Mark.\/o\. I. Nashville, Broadman Press, 1930. WSNT Word Studies in the New Testament. VINCENT, Marvin R. The Synoptic Gospels, Acts of the Apostles, Epistles of Peter, James and Jude. Vol.I. Virginia, Macdonald Publishing Company, 1888. WTJ Westminster Theological Journal. ZPBD The Zondervan Pictorial Bible Dictionary. TENNEY, Merril C. (ed.). Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1963. APRJ5SÊN + ACî € PRÊFÁCI® EDUARD® DÊ PRGÊNÇA € |©RGf PINHÊIR© DOS SAN + GS 18 C A R l.e s A U G U S + e V A II. A + + I CARl.es 19 Uma mini-história do diabo Eduardo de Proença Nenhuma pessoa teve sua existência mais questionada na modernidade que o diabo, nem Deus. No século XIX era motivo de piada, jornais estampavam charges sobre o diabo, ridicularizando-o e o colocando como a grande crendice dos ignorantes. Mais do que enfraquecer os poderes de Deus e sua influência no homem e no mundo, a modernidade lançou mão definitivamente na crença no diabo. Mas vem o século XX, a maldade do homem em duas guerras sangrentas e ainda o efeito do genocídio praticado por um líder chamado Adolf Hitler, fez as pessoas pensarem se seria possível tanta maldade junta vir única e exclusivamente da mente humana: é o renascimento do diabo. Filmes como Psicose de Alfred Hitchcock e o Exorcista de William Friedkin, além de outros de menos qualidade, do mesmo gênero, colocam o diabo em cena, ele é o grande protagonista da maldade no mundo. Idéias milenaristas e o pleno desenvolvimento do movimento fundamentalista iniciado no século XX faz com que a idéia do renascimento do diabo e suas derivações como o anticristo floresçam em um ritmo compatível com a fértil imaginação humana. A história do diabo, da personificação do mal, não nasceu pronta, mas foi construída marginalmente a própria idéia desenvolvida por Deus nas paginas da Sagrada Escritura. O Deus cristão, o Pai apresentado por Jesus Cristo não é o mesmo revelado nas páginas de Juizes ou Josué, o Deus iracundo, déspota, mas um Deus de amor, acalentador que reconcilia-se com seus filhos incondicionalmente, apenas motivados pelo amor. Tantos e tantos anos de desenvolvimento da narrativa bíblica para essa transição do deus irado para o Deus de amor, mas que não faz sucesso hoje no meio evangélico, que prefere ao primeiro em detrimento do segundo. Assim foi a história do diabo, que começa a aparecer no SA + A N Á S, D ^m êN ieS £ tf-G IÕ f-S 20 + + < >—í < > © + c/1 □ O < </> © < u texto bíblico na história de Jó, o acusador, Satanás, presente no tribunal de Deus para propor uma aposta sobre este servo do Senhor, aposta esta aceita. 0 desenvolvimento do personagem diabo ou Satanás na Bíblia hebraica está proporcionalmente ligado ao desenvolvimento da transcendência de Deus, ou seja, quanto menos Deus se torna imanente e se faz mais transcendente, mais o a personalidade do diabo toma corpo, quanto mais ele se afasta da terra em direção ao céu se torna apenas fonte do bem, mais a relação do diabo com os homens se torna direta. Deus já não é mais a fonte do mal, de sorte que versículos como “Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas.” (Isaias 45:7), já não faz mais sentido. Todo o mal está nas mãos do diabo, o adversário de Deus e dos homens. Nós como cristãos herdamos uma tradição de um judaísmo tardio, o pacote diabo-mal já vem pronto para nosso corpo dogmático. Exegeses regadas de pressupostos nos fazem enxergar inquestionavelmenteuma referencia a queda de Satanás ou Lúcifer em Ezequiel 28 no oráculo contra o Rei de Tiro, e nem perguntamos: e se for o Rei de Tiro mesmo e não Satanás? E nem nos damos conta que o nome Lúcifer nem aparecece na Bíblia, a não ser na Vulgata de São Jeronimo quando traduz a expressão “estrela d'alva” e nem é um nome próprio, mas ganha este prestigio quando na história do cristianismo batizamos o diabo com este nome. Neste livro o autor com grande profundidade pesquisa sobre a figura de Satanás na tradição bíblica, vetero e neotestamentária. Valendo-se do recurso de conhecer as línguas bíblicas, Carlos Vailatti passeia com maestia e disciplina pelas escrituras sagradas. Em um primeiro momento faz uma verdadeira “varredura” pela terminologia bíblica no que se refere ao mal, desde seres míticos e maléficos, até nas tadições extra-bíblicas Vailatti verdadeiramente se esmera. 21 Independentemente da posição teológica do leitor, certamente se renderá ao folego de pesquisador demonstrado pelo autor, e pela sua honestidade acadêmica e respeito as tradições cristãs ainda presentes na maioria das igrejas. Em uma segunda parte do livro faz uma investigação sobre a narrativa evangélica de Marcos sobre o jovem possesso, o Gadareno, que nele habitava legiões de demônios. Com cuidado, minúcia e com grande organização e didática convida a você a compreender esse emblemático texto de Marcos. Se o diabo existe ou não creio não ser o objetivo de Vailatti demonstrar. Porque como diria Santa Teresa de Ávila “se Satanás pudesse amar, deixaria de ser mau”. SA +A N Á S, D EIU Õ N ieS E LEG IÕ ES 0 brilhante arrebata os sentidos Jorge Pinheiro Em hebraico heilel ben-shachar, e em grego, na Septuaginta, heosphoros. Lúcifer é a estrela da alva, que brilha de manhã, que a gente nâo entende porque está all se o dia já vem nascendo. Não J brilha mais que o sol e, por isso, vai desaparecer quando a luz de + verdade, forte, alumiar. Mas se engana quem pensa que essa luz < meio vesga, que entra olhos a dentro, não veio para alucinar. É o — brilhante que está ao lado para confundir. É o diá, diacho, diale, dialho, dianho, adversário que ilumina a alma às avessas. “Et dices ei haec dicit Dominus Deus tu signaculum similitudinis ® plenus sapientia etperfectus decore in deliciis paradisi Dei fuisti omnis + lapis pretiosus operimentum tuum sardius topazius et iaspis chrysolitus et onyx et berillus sapphyrus et carbunculus et zmaragdus aurum opus ü decoris tui et foramina tua in die qua conditus es praeparata sunt". (1) 3 É o caluniador das vidas, o que revira o que devia estar de pé, que faz errar o alvo, que puxa o breque, catatonia, hipotonia, w» jogo interminável com as mãos diante dos olhos, treme-treme que ® lança os corpos ao chão. oí É o lúcifer das escrituras antigas, aquele que caiu e que 4 mesmo de dia parecia tão cintilante. É o que leva a luz torta, que u brilha piscando, a convidar para programas adormecidos na alma. Mas se ele leva a luz, porque se faz presente no lusco-fusco do antes do alvorecer? “Tu cherub extentus etprotegens et posui te in monte sancto Dei in medio lapidum ignitorum ambulasti perfectus in viis tuis a die conditionis tuae donee inventa est iniquitas in te in multitudine negotiationis tuae repleta sunt interiora tua iniquitate et peccasti et eieci te de monte Dei etperdidi te o cherub protegens de medio lapidum ignitorum". (2) E porque hipnotiza com luz mortiça, a língua tropeça, cheia de ruídos bizarros, de ranger os dentes, de ruído de matraca, e 23 deságua em grito agudo. 0 eu é substituído pelo tu, pelo ele, e o sim emudece. A língua não comunica, dilacera. E assim as vidas são cortadas da terra. E a imprecação cai sobre as cabeças. Como ele caiu, faz os humanos descerem, como foi cortado por terra, abate as nações! E como pensou subirei ao céu, acima das estrelas exaltarei meu trono e no monte da congregação me assentarei, aos lados do norte, assim constrói torres de Babel nos corações. E como disse marinharei sobre as alturas das nuvens e serei semelhante ao Altíssimo, convence os humanos a pugnar o mesmo conflito. Aí está o risco, os humanos são levados ao s/ieot, ao mais profundo abismo. E por cortar da terra, heilel ben-shachannvade os corpos com rituais para caminhar, deitar, levantar. É o delírio, quem sabe o que ó mentira, o que é verdade? O que é pesadelo, o que é realidade? A luz de lúcifer alucina. O sono desperta, a boca vomita, as fezes escapam, o equilíbrio balança e o mundo desaba. O que arrebata os sentidos está ao lado, chegou piscando. O brilhante, por saber que será será precipitado no sheol, a sepultura comum, quer companhia. Ele é o deus das coisas que fogem, o deus deste mundo. E está ao lado. "elevatum est cor tuum in decore tuo perdidisti sapientiam tuam in decore tuo in terram proieci te ante faciem regum dedi te ut cernerent te in multitudine iniquitatum tuarum et iniquitate negotiationis tuae polluisti sanctificationem tuam producam ergo ignem de medio tui qui comedat te etdabo te in cinerem super terram in conspectu omnium videntium te omnes qui viderint te in gentibus obstupescent super te nihili factus es et non eris in perpetuum". (3) Quando a extrema angústia aniquila e retalha, a incapacidade de tolerar fumega, a divagem e a onipotência fazem parte da ordem do dia, tome ciência, ele pousou a mão sobre o seu ombro e está a cochichar no seu ouvido idéias de delírio. É o princípio do fim, você vai fazer o caminho do sheol. SA +A N Á S, D Em Ô N IO S Ê LÊG IÕ ÉS 24 C A R LO S A U G U S + e V A IK A + + I Diante das fronteiras da loucura, existe uma zona intermediária, um claro-escuro onde a realidade parece preservada, mas a natureza das relações estabelecidas por lúcifer, a vivência fantasmática quer arrastar a lucidez. Por isso, lutar contra o brilhante da alva significa romper frieza, indiferença e isolamentos, agressividade, cólera e errância. O senhor das luzes, o Sol do meio-dia, apaga a radiação que não deve brilhar: “ego Dominus vocavi te in iustitia etadprehendi manum tuam et servavi et dedi te in foedus populi in lucem gentium ut aperires oculos caecorum eteduceres de conclusione vinctum de domo careens sedentes in tenebris ego Dominus hoc est nomen meum gloriam meam alteri non dabo et laudem meam sculptilibus” (4). Notas 1, 2, 3 — Os textos bíblicos citados de Ezequiel 28.12-17 estão em tradução da Vulgata de Jerônimo. 4-ldem,lsalas 42.6-8. SA+ANÁS. DÊITlêNieS E LEGIé INTRODUÇÃO i. Determinação do Campo de Estudo O presente livro buscará se concentrar no Evangelho de Marcos, Evangelho este que, ao longo da história, foi desprezado pelos estudiosos da Bíblia em geral. No uso eclesiástico, o Evangelho de Mateus acabou levando vantagem, pois além de fornecer mais informações para as leituras litúrgicas, era tradicionalmente usado como o texto base para o entendimento dos Evangelhos. Depois de Mateus, Lucas era o Evangelho preferido, porque parecia ser menos judaico e mais adaptado a uma mentalidade que havia sido influenciada pela cultura grega, como o fora aquela. Somente por volta de 1900 é que os estudiosos começaram a devotar maior atenção a esse Evangelho.1 2 DELORME, J. Leitura do Evangelho Segundo Marcos. [Tradução de Benôni Lemos], São Paulo, Paulus, 1972, p.7. 2 MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico. Vol.II, Livro III. [Tradução de Laura Rumchinsky], Rio de Janeiro, Imago, 1998, p.170. 3 Idem, Ibidem, p. 172. Todavia, essa concentração no Evangelho de Marcos ainda é abrangente demais. Sendo assim, a fim de delimitarmos ainda mais o nosso campo de estudo, nos deteremos numa faceta específica do ministério do chamado “Jesus Histórico”, isto é, falaremos sobre o “Jesus Exorcista”, aquele que expulsa os demônios. Nossa escolha se deve ao seguinte fato: “os evangelhos sinóticos apresentam sete episódios distintos de Jesus realizando um exorcismo. Ofato de haver sete ‘amostras’ individuais de um tipo específico de milagre, ou seja, o exorcismo, favorece o ponto de vista de que este constitui maioria no ministério de Jesus”. Portanto, creio que tal tema mereça uma atenção especial, uma vez que “os exorcismos se destacam entre os milagres de Jesus em geral”.3 25 CAR.LSS AUGUS+® VAILA + + I Entretanto, por entender que o tema “exorcismo” ainda seja muito amplo, delimitarei ainda mais o meu campo de estudo, concentrando essa pesquisa na análise de um relato de exorcismo específico, o qual já foi chamado de “o mais violento e maior de todos os exorcismos dos evangelhos”.4 Estou me referindo ao exorcismo do endemoninhado geraseno, encontrado em Mc 5.1-20. Nossos esforços se concentrarão principalmente na análise de tal texto bíblico. KELBER, Werner H. Mark's Story of Jesus. Philadelphia, Fortress Press, 1988, p.31. 5 Esse livro reproduz, em essência, a minha dissertação de mestrado apresentada ao Seminário Teológico Servo de Cristo, em São Paulo, intitulada Legião é o Meu Nome: Uma Análise Exegética, Hermenêutica e Histórica de Mc 5.1-20, sob a orientação do Prof. Dr. Estevan Frederico Kirschner, em 2009. ii. Especificação dos Objetivos a) Objetivo Fundamental Há muito tempo tenho acalentado o desejo de realizar um estudo minucioso sobre algum texto bíblico que tratasse da temática demonológica. Dediquei, então, dois anos a tal empreitada, a fim de que pudesse alcançar esse objetivo. Como resultado dessa pesquisa, surgiu então o tema: Satanás, Demônios e Legiões: um guia do mal5 Embora outros estudiosos já tenham se debruçado sobre esse relato de exorcismo antes de nós, contudo, imaginei que também pudesse dar a minha modesta contribuição ao estudo dessa perícope. Então, o resultado dessas pesquisas é o que está sendo apresentado nesse trabalho. b) Objetivo Específico 26 SA + ANÁS, DEmêNieS E LEGIé Quando comecei a escrever sobre o presente assunto, o meu objetivo específico foi buscar analisar a perícope sobre o endemoninhado geraseno encontrada em Mc 5.1-20 através de uma abordagem tríplice: exegética, hermenêutica e histórica. Aliás, tal proposta ficará evidenciada ao longo da leitura deste livro. Vários outros tipos de abordagem poderíam ser empregados no estudo desse texto, mas, a meu ver, a abordagem tripartida que oferecemos aqui será suficiente para nos ajudar a compreendê-lo de forma um tanto quanto satisfatória. Utilizar os recursos da exegese e da hermenêutica para a compreensão de qualquer texto bíblico é uma ação simplesmente indispensável, motivo pelo qual tais recursos são empregados aqui. Além disso, pelo fato do nosso relato possuir alguns elementos históricos muito importantes no seu corpo narrativo, julguei necessário abordá-lo também por meio do viés histórico. A justaposição dessas três análises, ao fim do nosso estudo, se mostrará extremamente eficaz e positiva, como teremos a oportunidade de verificar. iii. Pertinência e Oportunidade da Obra Nenhum outro personagem, ao longo dos tempos, tem sido objeto de tanta discussão, investigação e controvérsia como o diabo e, conseqüentemente, os demônios. E, por mais que tentemos ignorar, o fato é que todas as pessoas, quer estejam conscientes disso ou não, inevitavelmente são afetadas (de forma positiva ou negativa) pela postura que adotam em relação a estes seres, visto ser impossível assumir uma posição neutra e de indiferença quanto a tal assunto. Partindo dessa premissa, creio ser de fundamental importância questionar que tipo de postura nós estamos adotando com respeito a toda essa questão de mo no lógica e, conseqüentemente, quais são as implicações dessa postura adotada. Em primeiro lugar, existem aqueles que simplesmente não crêem na existência do diabo e dos demônios. Tais pessoas 27 CARL®S AUGUS + ffi VAILA + + I acreditam que estes seres sejam folclóricos, mitológicos, frutos da crendice popular ou, até mesmo, invenções dos cristãos. Aliás, a Revista Veja há alguns anos atrás mencionou os seguintes dados estatísticos, os quais não devem ter sofrido alterações significativas nos dias de hoje: “99% dos brasileiros crêem em Deus e somente 51 % acreditam que o diabo existe”.6 Acredito que estes 51% que crêem na existência do diabo, também creiam na existência de demônios, pois ambos estão intimamente relacionados. Os representantes deste último grupo, por agirem assim, tornam-se reféns extremamente vulneráveis aos ataques e artimanhas de tais seres malignos, justamente por assumirem uma postura que “baixa a guarda” diante das suas investidas. 6 Revista Veja. Editora Abril - Edição 1.731 - Ano 34-N°50- 19/12/2001, p. 125. Esse livro não tem o objetivo de abordar as várias nuanças demonológicas encontradas em nosso rico contexto brasileiro. Para tal enfoque, sugiro que sejam consultadas, por exemplo, as seguintes obras: SOUZA, Laura de Mello. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo, Companhia das Letras, 1986; RIBEIRO, Márcia Moisés. Exorcistas e Demônios: demonologia e exorcismos no mundo luso-brasileiro, século XVIII. Rio de Janeiro, Editora Campus, 2003; OLIVA, Alfredo dos Santos. A História do Diabo no Brasil. São Paulo, Fonte Editorial Ltda., 2007; MACEDO, Edir. Orixás, Caboclos & Guias: deuses ou demônios? Rio de Janeiro, Editora Gráfica Universal Ltda., 1998; OLIVA, Margarida. O Diabo no “Reino de Deus por que proliferam as seitas? São Paulo, Musa Editora, 1997; MOTT, Luiz. Escravidão, Homossexualidade e Demonologia. São Paulo, ícone Editora, 1988; ITIOKA, Neuza. Os Deuses da Umbanda. São Paulo, ABU Editora, 1988. Em segundo lugar, e em sentido totalmente oposto ao primeiro, há aqueles que atribuem ao diabo e aos demônios toda a culpa por tudo o que acontece de ruim no mundo. São pessoas que estão acostumadas a “demonizar” a causa de todos os infortúnios, tragédias e imoralidades que acontecem. Em vez de assumirem a sua parcela de culpa nos casos em que assim for exigido (pois são seres responsáveis por seus atos), acabam 28 SA + ANÁS, DEmêNIffiS E LEGIî lançando toda a culpa nas “costas” do diabo e de seu séquito, os demônios. Tal atitude extremada visa, muitas vezes, auto- inocentar o indivíduo, enquanto põe indevidamente o adversário e os seus cúmplices no banco dos réus. Em terceiro lugar, encontram-se aqueles que crêem que o diabo e os demônios existem, mas que subestimam o seu poder. Os partidários de tal pensamento vêem o diabo e os demônios como seres já fracassados, derrotados e vencidos. Dessa forma, não os encaram como ameaças reais, poderosas e atuais que os estão espreitando a todo o tempo, objetivando destruí-los. Nem é preciso comentar que tal postura é extremamente perigosa, porque não leva em conta o tamanho perigo que as forças das trevas representam. Em quarto lugar, nos deparamos com aqueles que crêem que o diabo e os demônios existem, mas que superestimam o seu poder. Os adeptos dessa ideologia, não diferentemente dos anteriores, também estão incorrendo num gravíssimo risco, o de supervalorizar o poderio das forças demoníacas. Estas pessoas, principalmente movidas pelo medo, acabam desenvolvendo uma espécie de “diabofobia”, ou “demoniofobia”, isto é, um verdadeiro pânico, simplesmente ao ouvirem o nome desses “ditos cujos”, pois acreditam equivocadamente que estes seres sejam imbatíveis e quase todo-poderosos. E, por fim, há aqueles que acreditam que o diabo e os demônios existem e que se armam adequadamente de todas as formas possíveis para poderem combatê-los e vencê-los. Estes últimos, de forma completamente oposta aos já mencionados antes, são aqueles cuja postura adotada parece ser a mais sensata e equilibrada do ponto de vista da fé cristã. Este quinto grupo sabiamente reconhece que existe um protagonista espiritual do mal, o qual, juntamente com outros espíritos malignos que o seguem, os demônios, buscam prejudicar tudo aquilo que temligação com Deus, bem como, visam principalmente separar o homem dAquele que o criou e que, portanto, detem todos os direitos sobre a sua vida. 29 CAR.LGS AUGUS+© VAILA + +I O fato de haver, pelo menos, cinco tipos diferentes de posturas que podem ser assumidas quanto à crença na existência ou não do diabo e dos demônios, já basta por si só para legitimar a escolha da temática demonológica de nosso estudo. Além disso, outro fator (e não menos importante) também merece aqui a nossa atenção. Uma vez que as opiniões sobre a existência do diabo e dos demônios em nossa Terra Brasilis estejam bem divididas, pois somente metade das pessoas (51%) crê na existência dessas entidades malignas, logo, penso que seja bem pertinente e oportuno abordar o tema da expulsão de demônios em nosso trabalho. Por fim, é curioso notar que, mesmo vivendo em uma época pós-moderna e pós-científica como a nossa, mesmo assim, há muitas pessoas que ainda continuam a acreditar em: amuletos, búzios, cartas, duendes, fadas, gnomos, patuás, talismãs, anjos e, sobretudo, demônios. É espantoso constatar que, mesmo depois de todo esse cientificismo por nós experimentado, ainda assim, continuamos a crer em tais coisas! Contudo, devo dizer que embora não creia na maioria dos elementos acima alistados, todavia, confesso que me incluo entre aqueles que ainda acreditam, por exemplo, na existência de anjos e demônios. E sei também que não estou sozinho nesta minha crença. De qualquer forma, independentemente da postura adotada pelo leitor com respeito a este assunto, estou certo de que tal tema ainda tem a sua relevância para os dias de hoje. Porém, sou tentado a pensar que esse trabalho será mais bem apreciado por aqueles que, como eu, ainda aceitam a “ideia” de que os demônios realmente existem. iv. Metodologia Empregada A fim de que possamos cumprir com os nossos objetivos, devemos empregar uma metodologia que esteja alinhada à nossa 30 SA+ANÁS, DEffiÔNieS Ê LEGIî proposta de trabalho. Como o presente livro está dividido em quatro partes principais, eis, portanto, um pequeno esboço sobre como pretendemos conduzir o nosso tema: No Capítulo I, Considerações Preliminares Sobre Satanás, Demônios e Exorcismos, buscaremos delinear os contornos de Satanás e dos demônios, bem como, o desenvolvimento dessas personagens ao longo da história bíblica e não-bíblica. Partiremos das páginas do AT, passando também pelo Grego Clássico e pela LXX e, por fim, iremos até alguns dos principais escritos do I Século d.C., tanto extra-bíblicos quanto bíblicos, sendo que, neste último caso, trataremos dos escritos neotestamentários. Aliás, por entendermos que tanto Satanás quanto os demônios possuem um vínculo muito estreito entre si, optamos, portanto, por considerar ambos em nossa pesquisa, dando, porém, maior ênfase nestes últimos. Além disso, consideraremos também, e à parte, os exorcismos, desde a sua menção no AT e nos Apócrifos, como também nos Manuscritos do Mar Morto, nos Pseudepígráfos, na Tradição Judaica, no Contexto Pagão e nos Papiros Mágicos Gregos, culminando com o Exorcista-Mor, Jesus. Tais prolegômenos fornecerão a base sobre a qual se assentarão os “tijolos” e a “argamassa” de toda a nossa obra. No Capítulo II, Análise Exegética de Mc 5.1-20, faremos a exegese de nosso texto a partir das tradicionais abordagens sincrônica e diacrônica, sendo esta última priorizada pelo assim chamado método histórico-crítico. Nesse capítulo, pedindo licença para tomar emprestado um termo da anatomia, tentaremos “dissecar” o nosso texto, todavia, respeitando a sacralidade de seu “corpo”. A análise minuciosa que faremos desse “organismo” nos possibilitará entendê-lo em suas várias nuanças. Portanto, os instrumentos “cirúrgicos” que utilizaremos 31 CAR.L®S AUGUS+® VAILA + + I nessa divina “autópsia”7 serão, do ponto de vista sincrônico: a Tradução, a Segmentação e a Estruturação do Texto, seguidos das Análises Lingüística, Lexicográfica, Morfológica, Estilística e de Conteúdo. Já do ponto de vista diacrônico, usaremos os “bisturis” das Críticas Textual, do Gênero Literário, da Fonte e da Redação. O uso de todas essas preciosas ferramentas nos permitirá compreender melhor o significado do texto a ser estudado. 7 Aqui, o termo “autópsia” não é utilizado no sentido médico e de forma depreciativa, referindo-se ao “exame médico de um cadáver”. Ao contrário, o termo é usado em seu sentido etimológico, sendo que twróç significa “mesmo, ele mesmo, próprio” e õi|ílç, “visão”. Portanto, autópsia se refere nesse contexto ao “exame de si mesmo”. Em outras palavras, nossa exegese buscará deixar (tanto quanto possível) o próprio texto explicar a si mesmo. Já no Capítulo III, Análise Hermenêutica de Mc 5.1-20, oferecerei oito diferentes e interessantes interpretações sobre a perícope em questão, adicionando também minhas observações pessoais sobre as mesmas. Começando por alguns dos Pais da Igreja e por Outros Autores da Era Patrística, darei prosseguimento a essa jornada passando por autores como René Girard, André Chouraqui, Dostoiévski, Myers e Carter, Freud e Oesterreich, C. Peter Wagner e, por fim, Mircea Eliade. Acredito que toda essa miscelânea hermenêutica complementará a análise exegética feita anteriormente dando, inclusive, maior “tempero” à nossa iguaria enquanto a estivermos degustando. Finalmente, no Capítulo IV, Análise Histórica de Mc 5.1- 20, me dcterei principalmente no estudo de três elementos históricos centrais do texto, os quais, conforme vejo, formam o “eixo histórico” em torno do qual todo o nosso relato se desenvolve. Esses três elementos históricos principais são: a Cidade de Gerasa, a Região da Decápolis e a Legião Romana. No que concerne a este último elemento em particular, creio que o leitor se verá surpreendido pela linha de raciocínio que 32 SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî adotamos em nosso trabalho, ao relacionar a Legião Romana à Legião Demoníaca citada textualmente em Mc 5.9,15. Bem, acredito que a essa altura dos acontecimentos, a “legião” de leitores que nos acompanha esteja, com perdão pelo trocadilho, com uma “legião” de perguntas e de expectativas “dentro de si” a respeito do nosso trabalho. Ora, não se preocupe quanto a isso porque, ao final de nossa pesquisa, tal “legião” será “expulsa” para bem longe. Pelo menos, é isso o que eu espero que aconteça a partir das páginas seguintes. 33 CARLffiS AUGUS+® VAILA + + f í* CAPÍTUK© I C © N SI D C RAC © C S PRCLimiNARÉS S©BRC SATANÁS, DcmêNies e cx©Rcism©s CARL®S AUGUS + ffl VAILA + + I 36 SA + ANÁS, D£ffl©Nl®S Ê LÊG1î CAPÍTULO I - CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE SATANÁS, DEMÔNIOS E EXORCISMOS Embora os termos “Satanás” e “Diabo” não apareçam no texto de Mc 5.1-20 e em seus paralelos, todavia, como veremos mais adiante, o termo “Legião” pode subentender a existência de uma organização hierárquica. E, no caso de uma “legião demoníaca”, por exemplo, os demônios compõem a base dessa “pirâmide”, em cujo topo se encontra Satanás, ou o Diabo.8 De qualquer forma, não podemos tratar de um assunto de natureza demonológica, como é o nosso, sem incluir este ser maligno em nossas considerações preliminares, motivo pelo qual as inserimos aqui. 1.1. Considerações Sobre Satanás 1.1.1. Definição do Termo O vocábulo “Satanás” vem do hebraico (sãtãn), termo este que tem sido relacionado etimologicamente a uma variedade de significados, alguns dos quais pouco convincentes e tidos como supostos verbos em hebraico e em línguas cognatas. Estas propostas incluem verbos que significam, por exemplo, “perder- se”, “revoltar-se”, “cair fora”, “ser injusto”, “incendiar” e “seduzir”.9 Entretanto, ao que tudo indica, o termo sãtãn pode g Como “no tempo de Jesus os fariseus e o povo comum daquele tempo estavam firmemente convencidos de que havia toda uma hierarquia de espíritos bons e maus, e que Satã presidia os últimos” é, por conseguinte, natural inter-relacionarSatanás aos demônios. (Cf. SANFORD, John A. Mal, o Lado Sombrio da Realidade. [Tradução de Sílvio José Pilon e João Silvério Trevisan], São Paulo, Paulus, 1988, pp.48,49). o TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der. (eds.). Dictionary of Deities and Demons in the Bible. Grand Rapids, Wm. B. 37 CARLOS AUGUS + ffi VAILA + +I ser mais corretamente definido como “adversário, oponente”,* 10 ou ainda como “contrário, contender, competidor, antagonista, rival, inimigo”.11 12 Eerdmans Publishing Company I Cambridge, Brill Academic Publishers, 1999, p.726. (Na continuação desta obra, os autores explicam detalhadamente o porquê da incongruência de tais significados supostamente derivados do termo sãtãn. Cf. Op.Cit., p.726). 10 DAVIDSON, Benjamin. The Analytical Hebrew and Chaldee Lexicon. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1981, p.710. Cf. também: GESENIUS, H. W. F. Geseniu’s Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old Testament. [Translated by Samuel Prideaux Tregelles]. Grand Rapids, Baker Book House, 1979, p.788. 11 SCHÔKJEL, Luis Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. [Tradução de Ivo Storniolo e José Bortolini], São Paulo, Paulus, 1997, p. 641. 12 LANDES, George M. A Student’s Vocabulary of Biblical Hebrew. New York, Charles Scribner’s Sons, 1961, p.29. 13 Segundo Galambush, a Bíblia Hebraica desconhece a existência de um oponente cósmico de Deus. Apenas no Novo Testamento é que os traços de tal adversário cósmico serão bem definidos. (Cf. GALAMBUSH, Julie. The Reluctant Parting: how the new testament’s Jewish writers created a Christian book. New York, HarperCollins Publishers, 2006, p.262). 1.1.2. Satanás no Antigo Testamento O termo hebraico sãtãn aparece ao todo vinte e sete vezes no Antigo Testamento e, pelo que podemos perceber, ainda não há nesta parte das Escrituras uma figura única definida que claramente personifique o Mal.13 Isto só é notado mais adiante, em um desenvolvimento posterior e, principalmente, nos escritos neotestamentários, através da figura do Diabo. Em outras palavras, podemos dizer que pouco a pouco, de maneira sutil, mas ao mesmo tempo real e progressiva, Satanás deixa a sua “timidez” de lado, coloca os seus “chifres”, “garras” e “tridente” à mostra e vai se revelando na Bíblia. Talvez, tal afirmação até espante o leitor, mas é a mais pura verdade. A Bíblia Hebraica se inicia, ao contrário do que muitos pensam, 38 SA + ANÁS, DEíTl©NI©S Ê LEGIî dentro de um contexto no qual Satanás está invisivelmente envolvido - atuando apenas nos bastidores - mas não é assim que as Escrituras se encerram. No decorrer de toda a Bíblia, Satanás vai, lentamente, se mostrando aos seres humanos. Possessões demoníacas, exorcismos e todos os outros sinais indicativos da presença deste ser Maligno vão se tomando cada vez mais freqüentes, até se manifestarem por completo.14 14 Elaine Pageis, em seu excelente livro que trata, conforme definido por ela mesma, da história social de Satanás, faz o seguinte comentário: “Relendo descrições bíblicas e extrabíblicas sobre anjos, constatei, em primeiro lugar, o que muitos estudiosos haviam sugerido: que embora eles apareçam com freqüência na Bíblia Hebraica, Satanás, ao lado de outros anjos decaídos, ou seres demoníacos, era virtualmente ignorado. Mas, entre certos grupos judaicos do século I, incluindo com destaque os essênios (que se consideravam aliados dos anjos) e os seguidores de Jesus, a figura chamada de Satã, Belzebu ou Belial começou a adquirir também uma importância fundamental”. (PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás: um estudo sobre o poder que as forças irracionais exercem na sociedade moderna. [Tradução de Ruy Jungmann]. Rio de Janeiro, Ediouro, 1996, p. 15). 15 REIS, Aníbal Pereira. O Diabo. São Paulo, Edições Caminho de Damasco, 1976, p.94. E esse fenômeno do aparecimento gradual de Satanás tem o seu apogeu justamente no período neotestamentário, época esta que coincide com a encarnação de Cristo. Em todo o Novo Testamento, e mais particularmente nos Evangelhos, Satanás se manifesta com maior freqüência e regularidade, principalmente por meio de seus seguidores, os demônios, por meio dos quais chega até a causar a impressão de que é onipresente.15 Ora, após esta breve introdução sobre o desaparecimento veterotestamentário de Satanás como figura que personifica o Mal, é importante vermos os usos que o Antigo Testamento faz do vocábulo sãtãn, a fim de que obtenhamos uma compreensão maior sobre este assunto: 39 CAR.L®S AUGUS+® VAILA + + I a. Em Nm 22.22,32 encontramos as primeiras ocorrências do termo hebraico sãtãn na Bíblia, sendo que lemos, por exemplo, no verso 22, que “o anjo do Senhor pôs-se-lhe no caminho [de Balaão] por adversário'' (ARA). Nós podemos notar que o ser celestial que age aqui como um sãtãn tem muito pouco em comum com as conceituações posteriores de Satanás. Ele é o mensageiro de Yahweh, não seu arquiinimigo, e ele atua de acordo com a vontade de Yahweh antes do que se opondo a ela.16 17 16 TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der. (eds.). DDDB, p.727. 17 TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der. (eds.). DDDB, p.729. b. Em 1 Cr 21.1 lemos que Satanás se levantou contra Israel e incitou a Davi a levantar o censo [...]” (ARA). Neste texto vemos que o nome sãtãn, assim como no texto anterior, aparece sem o artigo definido. A maioria dos eruditos, nesse caso, entende sãtãn como o nome próprio “Satanás”, embora alguns mantenham que o nome se refere a um adversário humano e outros ainda argumentem que ele diz respeito a um inominável adversário ou acusador celestial. Porém, no texto paralelo de 2 Sm 24.1, o autor bíblico declara que “tornou a ira do íTÍIT’ Senhor a acender-se contra os israelitas, e ele t : incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, levanta o censo de Israel e de Judá”. (ARA). É importante estabelecer aqui porque o cronista, em 1 Cr 21.1, trocou seu texto fonte, pois sua motivação tem implicações sobre como nós compreendemos sãtãn 40 SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî nesta passagem. Se o cronista tentou realmente distanciar Yahweh do comportamento malévolo e inteligente deste sãtãn por atribuir semelhante comportamento a um outro ser divino, então nós podemos ver nesta passagem o começo de uma dicotomia moral na esfera celestial. Se Yahweh não é o grande responsável pelo comportamento malévolo com respeito ao gênero humano, e um outro ser divino capaz de agir eficazmente, independente de Yahweh, existe, então pode ser bastante apropriado traduzir sãtãn pelo nome próprio Satanás. c. Em Jó 1.6-9 (duas vezes no verso 7), 12 (duas vezes) e em 2.1-4 (duas vezes no verso 2), 6, 7, o vocábulo sãtãn aparece sempre acompanhado pelo artigo definido, ou seja, Em outras palavras, nos vinte e quatro versículos existentes entre Jó 1.6 a 2.7, a expressão hasãtãn aparece quatorze vezes. Já a LXX emprega nestes mesmos versos o equivalente grego ôiápoÀoç para se referir a Satanás.18 19 Muitos estudiosos traduzem hasãtãn como “o Acusador”, que eles entendem ser um título que descreve um papel ou ofício. Contudo, deve ser notado que nenhum ofício análogo tem sido convincentemente identificado no sistema legal do antigo Israel, nem representa a divina assembléia das culturas da 18 Idem, Ibidem, p.730. Joyce Baldwin comenta que “o relato paralelo de 1 Crônicas 21 mostra como o pensamento teológico se desenvolveu ao longo dos anos, atribuindo a ‘Satanás’ ou a ‘um adversário’ o que anteriormente era atribuído ao Senhor". (Cf. BALDWIN, Joyce G. I e II Samuel: introdução e comentário. [Tradução de Márcio Loureiro Redondo]. São Paulo, Vida Nova, 1996, p.331). 19 Cf. RAHLFS, Alfred. Septuaginta. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1979. 41 CARL©S AUGUS + ® VAILA + +I circunvizinhança que incluem uma divindade que tem a tarefa de ser um acusador. Alguns estudiosos têm argumentado que existiam acusadores- informantes noantigo período Persa, e que o sãtãn de Jó 1 e 2 está baseado nestes informantes. A evidência para isto, todavia, não é conclusiva devido à incerteza da existência de provas legais correspondentes.20 Neste ponto, devemos notar que como o termo hebraico sãtãn é antecedido pelo artigo definido “o” no contexto de Jó 1 e 2, então, neste contexto o vocábulo parece mais descrever uma função do que representar um nome próprio. Embora o indivíduo que se apresenta como adversário de Jó possa ser o mesmo que, mais adiante, é chamado de Satanás, não podemos concluir tal coisa nesta passagem, pois parece que o termo sãtãn só passa a desempenhar nitidamente o papel de nome próprio a partir do período intertestamentário, mais precisamente no II século a.C.21 20 TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der. (eds.). DDDB, p.728. Isaac Asimov observa que “a influência Persa é demonstrada na cena de Deus como o chefe de uma numerosa corte de espíritos assistentes. A diferença da perspectiva Persa repousa no fato de que Satanás não é chefe co-igual de um grupo de espíritos malignos, mas é simplesmente um espírito único, tão sujeito a Deus quanto o são os outros. Satan tem, aparentemente, o importante e proveitoso papel de testar os seres humanos para ver se sua fé em Deus é fiel, ou meramente superficial. Neste papel, ele atua apenas com a permissão de Deus e somente tão distante quanto Deus permite”. (Cf. ASIMOV, Isaac. Asimov's Guide to the Bible. [The Old and New Testaments]. New York, Wings Books, 1981, p.478.). Sobre a ideia de que a figura de Satanás se desenvolve sob a influência do dualismo iraniano, veja: ELIADE, Mircea. Historia de las Creencias y las Ideas Religiosas. Vol.II. [Traducción de Jesús Valiente Maila]. Barcelona, Ediciones Paidós Ibérica, S.A., 1988, pp.317,318. 21 WALTON, John, MATTHEWS, Victor & CHAV ALAS, Mark. CBAAT, p.511. 42 SA+ANÁS, DEffiÔNieS E LEGIé d. Em Zc 3.1,2 (duas vezes no verso 2) nos deparamos novamente com a expressão a qual aparece três vezes nestes dois versos igualmente acompanhada pelo artigo definido. Aqui, assim também como em Jó, a LXX traz o termo õiápoÀoç como equivalente de sãtãn. Em Zc 3.1, porém, nós encontramos a curiosa frase: “Deus me mostrou o sumo sacerdote Josué, o qual estava diante do Anjo do Senhor, e Satanás estava à mão direita dele, para se lhe opor’'’ (ARA). Nela nós percebemos o substantivo masculino w acompanhado do artigo definido H e vemos ainda o termo o qual é prefixado pela preposição h e seguido do verbo que aparece no infinitivo do QaL Este uso duplo da raiz stn que aparece em Zc 3.1 é enfático e deixa transparecer o caráter oposicionista da personagem do texto. Ao que tudo indica, Zc 3 refere-se a um ser divino diferente daquele que aparece em Nm 22 e, também, é incerto se o sãtãn de Jó 1 e 2 é o mesmo ser celestial de Zc 3. Além disso, 1 Cr 21.1 parece igualmente não se identificar de forma clara com nenhum dos três textos anteriores. e. Por fim, em textos como, por exemplo, 1 Sm 29.4; SI 38.21 (TM), que corresponde ao SI 38.20 em nossas versões; SI 71.13 e SI 109.4,6, 20,29 o termo sãtãn aparece de forma bem variada para se referir a ** 70 DAVIDSON, Benjamin. AHCL, p.455. 23 TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der. (eds.). DDDB, p.729. 43 CARL©S AUGUS + 9 VAILA + + I homens. Assim, mencionamos todas as ocorrências do termo sãtãn nas Escrituras veterotestamentárias, bem como, seus significados correspondentes. 1.1.3. Satanás no Novo Testamento Já no Novo Testamento, o termo hebraico sãtãn aparece trinta e seis vezes ao todo24 através da sua forma helenizada, isto é, o substantivo masculino Laravâç. O vocábulo grego aparece nos seguintes textos: Mt 4.10; 12.26 (duas vezes no verso 26); Mc 1.13; 3.23 (duas vezes no verso 23), 26; 4.15; Lc 10.18; 24 K.UBO, Sakae. A Reader's Greek-English Lexicon of the New Testament. Grand Rapids, Andrews University Press and Zondervan, 1975, p.28. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R. An Intermediate Greek-English Lexicon. (Founded Upon the Seventh Edition of Liddell and Scott’s Greek-English Lexicon). Oxford, Oxford University Press, 1889, p.724. 11.18; 13.16; 22.3, 31; Jo 13.27; At 5.3; 26.18; Rm 16.20; 1 Co 5.5; 7.5; 2 Co 2.10; 11.14; 12.7; 1 Ts 2.18; 2 Ts 2.9; 1 Tm 1.20; 5.15; Ap 2.9,13 (duas vezes no verso 13), 24; 3.9; 12.9; 20.2,7. Em Mt 16.23 e Mc 8.33 Pedro é chamado de Satanás por Jesus, porque ele estava tentando o Mestre a abandonar a Sua missão como Salvador. Das trinta e seis menções feitas a “Satanás” no Novo Testamento, 45% delas são encontradas nos Evangelhos. Estas estatísticas contidas nas Escrituras podem conferir aos Evangelhos, com justiça, o título de “manual de diabologia”. Na grande maioria dessas referências, o vocábulo Zccrarâç já não se refere mais a seres um tanto quanto incertos como o seu equivalente veterotestamentário sãtãn. Agora, a palavra que ainda mantém os significados de “adversário” e “inimigo”, revela sua relação direta e inequívoca com o seu outro nome, Diabo.25 Ou seja, no Novo Testamento, Satanás é a óbvia personificação do Mal. Nesta parte das Escrituras, ele é o arquiinimigo de Deus e daqueles que foram criados à Sua imagem e semelhança, os homens. 44 SA+ANÁS, DEíTl©Nl©S E LEGIî Como já havíamos dito anteriormente, ao longo de toda a Bíblia Satanás vai aos poucos se mostrando aos seres humanos. E, no Novo Testamento mais precisamente, ele não se comporta mais de maneira “tímida” e “velada”, como o fazia no período veterotestamentário. Antes, ele caminha a passos largos, como que fazendo questão de “se mostrar” e de “se fazer percebido” cm várias ocasiões do cotidiano das pessoas. No Novo Testamento, os demônios, as possessões demoníacas, os exorcismos e as doenças atribuídas aos espíritos malignos, são cada vez mais freqüentes e notórios - diferentemente do que ocorria no período do Antigo Testamento - tomando-se, assim, urna espécie de “cartão de visitas” do Maligno. Nos livros neotestamentários Satanás se revela de maneira escancarada. Ele sai dos bastidores e de trás das cortinas da história bíblica e sobe ao palco naturalmente, de forma desvelada, para que os espectadores da platéia o observem. Isto também é notado através do seu outro nome, “Diabo”, sobre o qual falaremos a seguir. 1.1.4. Satanás e o Seu Nome Grego: Diabo Além de Haravâç, outro termo que também é empregado para se referir ao Maligno, é o termo grego õiápoÀoç. Para entendermos um pouco mais sobre esse vocábulo devemos nos dirigir ao período do Grego Clássico, o qual compreende a época que vai de 900 a.C. até cerca de 330 a.C., época das conquistas de Alexandre, o Grande. Neste período, o dialeto ático se destacou, tornando-se a fonte principal do grego do Novo Testamento. E, além disso, temos que nos dirigir também ao período do Grego Koiné (isto é, “comum”) que vai de 330 a.C. até aproximadamente 330 d.C. Durante esse período, a língua grega se tomou universal, sendo livremente empregada 45 CAR.L©S AUGUS+© VAILA + + I 26 • • ' •em todo mundo civilizado e, principalmente, no mundo bíblico neotestamentário. Entre o período do Grego Clássico e o do Grego Koiné, o vocábulo òiápoÀoç aparece na literatura secular, significando, por exemplo, “predisposto à difamação”, “caluniador” e “acusar falsamente” em Aristófanes (200 a.C.), Andócides (405 a.C.) e Plutarco (120 d.C.). E aparece também com o significado de “falso acusador” e “caluniador” em Xenofonte (401 a.C.) e em Aristóteles (384-322 a.C.).26 27 26 REGA, Lourenço Stelio. Noções do Grego Biblico. São Paulo, Vida Nova, 1995, p.l. 27 THAYER, Joseph Henry. GELNT, p. 135. 28 Bíblia de Jerusalém, p. 1206. 29 KUBO, Sakae. RGELNT, p.L Já na LXX, podemos encontrar esse termo em textos como Est 7.4; 8.1; nos textos já citados de Jó, capítulos 1 e 2; 1 Cr 21.1; Zc 3.1,2; no SI 108.6 (LXX), SI 109.6 nas nossas versões, e também no livro apócrifo de Sabedoria (Sb 2.24), ondelemos que “foi por inveja do diabo (ôiápoÀoç) que a morte entrou no mundo [...]”.28 29 Por fim, o termo grego ôiápoÀoç ocorre no Novo Testamento trinta e oito vezes. Ele é mencionado em quatorze dos vinte e sete livros neotestamentários, distribuído da seguinte forma, a) Nos evangelhos: quinze vezes - Mt 4.1,5,8,11; 13.39; 25.41; Lc 4.2,3,5,6,13; 8.12; Jo 6.70; 8.44; 13.2; b) No livro de Atos: duas vezes - At 10.38; 13.10; c) Nas epístolas: dezesseis vezes - Ef 4.27; 6.11; 1 Tm 3.6,7,11 (ôia(3óÀouç - “caluniadoras” - em 1 Tm 3.11); 2 Tm 2.26; 3.3 (ôrépoÂ.oi - “caluniadores”); Tt 2.3 (õiapóÀovç - “caluniadores”); Hb 2.14; Tg 4.7; 1 Pd 5.8; 1 Jo 3.8 (três vezes), 10; Jd 9; d) No Apocalipse: cinco vezes - Ap 2.10; 12.9,12; 20.2,10. Esses números são muito interessantes, pois nos mostram que das trinta e oito menções feitas ao Diabo no Novo Testamento, cerca de 40% delas são encontradas somente nos 46 SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî Evangelhos. De fato, nos Evangelhos estão concentradas as maiores ocorrências da atividade diabólica/demoníaca de toda a Bíblia. No Novo Testamento, o termo grego ôtápoÀoç parece conservar o mesmo significado básico do período do Grego Clássico, significando “caluniador”, “difamador”.30 31 * Ao que tudo indica, o termo é derivado de diabállõ, que quer dizer: GARRIDO, Constantino Ruiz. (trad.). Vocabulário Griego del Nuevo Testamento. Salamanca, Ediciones Sigueme, 2001, p.43. 31 THAYER, Joseph Henry. GEL NT, p. 135. 3" TAMEZ, Elsa y FOULKES, Irene W. de. Diccionario Conciso Griego- Espanol del Nuevo Testamento. Stuttgart, United Bible Societies, 1978, pp.31, 32, 42. ’ SAYÉS, José Antônio. El Demonio, Realidad o Mito? Madrid, San Pablo, 1997, p.31. ■7 1 “arremessar sobre” ou “através de”, “impelir sobre”. O termo é composto pela preposição grega dia, “através de, por (meio de)” c é também formado pelo verbo grego bállõ, “lançar, atirar, derrubar”. A seguir, veremos outros nomes que são atribuídos a Satanás. 1.1.5. Satanás e os Seus Outros Nomes Além dos já citados (sãtãn), Saxavaç (Satanás) e õiápoÀoç (diábolos), o arquiinimigo de Deus e dos homens possui também outros nomes pelos quais é conhecido nas Escrituras, alguns dos quais mencionaremos abaixo: a) □IDT (bã’al zebüb) ou BeeACepouA. (Beelzeboid). Este nome possui significado bem disputado nos meios acadêmicos, mas, de forma geral, esse termo que é de origem fenícia, lido em hebraico, significa “senhor dos estrumes” ou “príncipe das moscas”.33 No AT, o nome bã'al 47 CAR.LSS AUGUS+© VAILA + +I zebüb aparece, por exemplo, em 2 Rs 1. 2,3,6,16 para se referir a uma divindade da cidade fdistéia de Ecrom. Já no NT, o vocábulo Beelzeboid aparece em Mt 10.25; 12.24,27; Mc 3.22; Lc 11. 15,18,19. Neste contexto neotestamentário, Beelzeboid é visto como um dos nomes do próprio Satanás, embora haja quem entenda que o nome também possa se referir a algum “príncipe dos demônios” a ele subordinado.34 Cf. THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.100. Cf. ainda: GESENIUS, H. W. F. GHCLOT, p.131. 35 Este verso aparece no contexto de 2 Co 6.14-7.1, passagem que, segundo Jean Pouilly, “diversos exegetas consideram como texto essênio inserido no corpus das epístolas por um judeu-cristão: o nome Beliar, conhecido em Qumrã - designação do Príncipe das Trevas - aparece somente aqui na literatura paulina”. (Cf. POUILLY, Jean. Qumrã. [Tradução de Benôni Lemos]. São Paulo, Edições Paulinas, 1992, p. 134). 36 TENNEY, Merril C. The Zondervan Pictorial Bible Dictionary. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1963, p.104. b) (beliya’ al) ou BeXtáX/BcXiáp Qbelial/beliar). O nome beliya'al é um epíteto de escárnio e desprezo que aparece freqüentemente por toda a parte no AT, uma ou outra vez dessa forma, ou em sua variação associada “Filhos de Belial” (Dt 13.13; Jz 19.22; 20.13; 1 Sm 2.12; 10.27; 30.22; 1 Rs 21.13 etc). O termo significava “irresponsável”, “sem lei”. A palavra também veio a ser usada como um sinônimo para “companheiro inútil” ou “imbecil”, um “inútil”. Já no NT, o apóstolo Paulo emprega o termo BrÀtáp uma vez (2 Co 6.15),35 onde Belial aparece como contrário a Cristo, aproximando-se, deste modo, do status diabólico do Anticristo. Neste uso posterior, ele é freqüentemente empregado pelos escritores da Apocalíptica Judaica tanto para se referir a Satanás como ao Anticristo.36 48 SA + ANÁS, DEíTlêNieS E LEGIé c) novripóç (ponerós). Essa expressão grega significa “malvado, mau, perverso, maligno, pecaminoso”. Porém, há alguns casos em que a palavra, ao ser precedida pelo artigo, “o Maligno”, faz alusão a Satanás. Isso pode ser visto, por exemplo, em Mt 6.13; 13.19,38; Jo 17.15; Ef 6.16; 2 Ts 3.3 etc. liste nome, sem dúvida alguma, ressalta o caráter perverso e corrupto de Satanás. d) ó ápxcov toô KÓopoo toútou (ho árchõn toü kósmou loútou). O título “o príncipe deste mundo” aparece em Jo 12.31 c 16.11. Em Jo 14.30 esse título aparece sem o pronome demonstrativo. Tal nomenclatura faz referência a Satanás como o governante maligno deste mundo, o qual exerce a sua função com ares de “chefe de estado”, juntamente com o seu “corpo governante”, os demônios. e) áp/oma Tf|ç è^oootaç roí) áépoç (árchonta tês eksousías toü aéros). Esse título, “príncipe das potestades do ar” (Ef 2.2), também referente a Satanás, é curioso, pois nos mostra que em Efésios “os lugares celestiais” têm espaço não somente para Cristo e os crentes, mas também para os poderes hostis. Isto pode ser explicado sobre a base de uma compreensão do cosmos que vê os céus como 0 lugar da habitação de todo espírito que há no mundo. Tal ponto de vista é encontrado no AT em Jó 1.6ss e cm Dn 10.13,21; e no pensamento apocalíptico em passagens tais como 2 Macabeus 5.2; E em 1 Enoque LXI.10; XC.21,24. Enquanto o título anterior descreve Satanás como governante sobre a terra, este título o mostra como governante de um reino aéreo e, portanto, invisível, imperceptível aos olhos humanos. *38 f) i|+úoTr)<; (pseústês). Em Jo 8.44 vemos que Satanás é chamado não somente de pseústês, “mentiroso”, mas também de TAMEZ, Elsa y FOULKES, Irene W. de. DCGENT, p. 146. KITCHEN, Martin. Ephesians. [New Testament Readings]. London, Routledge, 1994, p.58. 49 CAR.L®S AUGUS+® VA1LA + + I ó TTccrrip aÜToü (Ao patêr autoü), isto é, “o pai dela (da mentira)”. Tal título é absolutamente contrário àquele que é auto-atribuído por Jesus em Jo 14.6. Neste verso, Jesus diz: ’Eytó el|n...T] áÀfjOeia (Egõ eimi...hê alêtheia), “eu sou a verdade”. Tal título cristológico, alêtheia, se contrapõe em extremo ao adjetivo satânico pseústès. g) tÒu ôpÚKoma, ó õcfuç ó áp%aToç (tòn drákonta, ho ófis ho archalos). Estes dois títulos, “o dragão, a antiga serpente”, referências óbvias ao Maligno, são encontrados em Ap 20.2 ao lado de dois outros nomes já citados, Diabo e Satanás. O nome “antiga serpente” é uma alusão clara a Gn 3.1-5ss, onde lemos sobre a tentação de Adão e Eva e a sua respectiva queda. É digno de nota que em Gn 3.13, quando Eva diz: “a serpente me enganou” (ARC), após ter sucumbido à tentação, a palavra “enganou” é derivada do verbo hebraico NÜ3 (nãshã’), “trapacear, enganar”. Tal verbo subentende a existência de um ser dotado de inteligência por trás da serpente, capaz de iludir e de enganar. Portanto, tal verbo não se refere ao mero ofídio do episódio da tentação, mas o transcende, apontando para aquele que o está manipulando como uma marionete nos bastidores, ou seja, Satanás. Além disso, deve ser observado também que a palavra (’êbâ) “inimizade” em Gn 3.15, onde aparece novamente ligada à serpente, pode ser traduzida como “intenção hostil”, sendo usada novamente em Nm 35.21 onde é aplicada a 39 40 39 Neste momento, me vem à memória uma declaração bem humorada feita certa vez pelo pastor Atila Brandão de Oliveira em uma de suas pregações: “Deram tanta comida ao diabo que, no Antigo Testamento, ele é chamado de serpente, mas no Novo Testamento, ele cresceu tanto quejá é chamado de grande dragão”. Este adjetivo “grande” é tirado de Ap 12. 3,9. Além disso, é digno de nota o fato de o dragão ser visto como um ser mitológico sengundo as antigas concepções orientais. 40 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p.248. 50 SA + ANÁS, D£ffi©NI®S E LEGIî homens.41 Mais uma vez, seria insensato entender que tal vocábulo fosse aplicado para descrever a “intenção hostil” entre um animal e um ser humano. Tal termo alude ao ódio entre indivíduos, e não entre animal/homem. Neste caso, tal intenção hostil só pode proceder do Maligno.42 Idem, Ibidem, p. 12. 42 Robert Alter faz os seguintes comentários sobre o termo inimizade encontrado em Gn 3.15: “embora a serpente não seja de jeito nenhum ‘satânica’, como nas lendas das tradições judaico-cristãs posteriores, a maldição registra um horror primitivo da humanidade diante deste ser rastejante, de olhar viscoso, e representante venenoso do reino animal. Este é o primeiro momento em que um rompimento entre o homem e o reino animal é registrado. Por trás dele pode-se encontrar, na longa distância da mediação cultural, os mitos cananitas de uma serpente marinha primordial”. (Cf. ALTER, Robert. Genesis: translation and commentary. New York, W. W. Norton & Company, Inc., 1996, p. 13.). 1.1.6. Satanás e os Demônios Conforme já foi adiantado no início deste capítulo, apesar de os termos “Satanás” e “Diabo” não aparecerem no texto de Mc 5.1-20 e em seus paralelos, porém, o termo “Legião” pode subentender a existência de uma organização hierárquica. E, em se tratando de uma “legião demoníaca”, os demônios são aqueles que formam a base dessa “pirâmide”, em cujo topo se encontra Satanás, ou o Diabo. Por este motivo é que resolvemos inserir esse tópico no qual falaremos sobre o vínculo existente entre Satanás e os demônios. Ora, ao ler as páginas do Antigo Testamento, ficamos simplesmente surpresos por ver que não há uma única referência feita à relação existente entre a personificação do mal conhecida como Satanás (o Diabo) e os demônios. Porém, na medida em que avançamos em nossa pesquisa, tal relação começa a adquirir contornos mais claros. 51 CAR.LSS AUGUS+© VAILA + + I Ao consultarmos a literatura pseudepigráfica (V-I século a.C.), por exemplo, nos deparamos com alguns textos que descrevem a existência de um vínculo entre Satanás e os demônios. No livro da Ascensão de Isaías II, 2, lemos: “E Manassés não serviu ao Deus de seu pai e dedicou-se ao culto de Satanás, de seus anjos e de seus poderes”.43 Já I Enoque VI, 1-4 nos fala sobre uma hierarquia espiritual de anjos caídos (demônios), na qual encontramos Semjaza (o demônio superior) e mais dezoito demônios subalternos.44 No Testamento de Levi XVIII, 4, encontramos escrito: “Ele [o sacerdote-messias] acorrentará Belial, e dará aos seus filhos o poder de enfrentar os espíritos maus”.45 No Testamento de Dã VI, 1, nos deparamos com o seguinte conselho: “Assim, meus filhos, temei o Senhor! E guardai-vos de Satã e dos seus espíritos!”.46 Finalmente, um dos textos que expressam o conceito de hierarquia, bem como, o vínculo existente entre Satanás e os demônios de maneira formidável, se encontra no livro dos Segredos de Enoque XXIX, 2-4: PR.OENÇA, Eduardo de. (org.). Apócrifos e Pseitdo-Epígrafos da Bíblia. [Tradução de Claudio J. A. Rodrigues], São Paulo, Fonte Editorial Ltda., 2005, p. 132. 44 Idem, Ibidem, p.261. 45 Idem, Ibidem, p.349. 46 Idem, Ibidem, 47 Idem, Ibidem, p. 116. (...) Satanail foi, com seus anjos, precipitado das alturas. E um dos anjos, tendo saído de sua hierarquia c se desviado para uma hierarquia debaixo da sua, concebeu um pensamento impossível: colocar o seu trono acima das nuvens que se encontram sobre a terra, para que seu poder se igualasse ao meu. Prccipitci-o do alto com seus anjos, e ele pôs-sc a voar por cima do abismo continuamcntc.47 52 SA+ANÁS, DEfflÔNieS E LEGIé No Novo Testamento encontramos também algumas referências ao vínculo existente entre Satanás e os demônios. As seguintes expressões exemplificam tal fato: “Belzebú (...), príncipe dos demônios” (Mc 3.22ss); “o diabo e seus anjos” (Mt 25.41); “(...) o Diabo, (...) Satanás (...), e os seus anjos” (Ap 12.9). Além disso, o Diabo (Satanás) também aparece vinculado a certas ordens hierárquicas espirituais do mal no texto clássico de Ef 6.11,12. Bem, creio que estes poucos exemplos extraídos respectivamente das literaturas pseudepigráfica e neotestamentária já são suficientes o bastante para nos mostrar que, a partir do período intertestamentário, Satanás e os demônios passam a ser associados. Além do mais, este primeiro começa a ser visto como chefe (líder hierárquico) dos últimos. Tal constatação é deveras importante para o nosso trabalho, como veremos mais adiante. Assim, nós concluímos esta seção que buscou levantar algumas considerações referentes a Satanás. A seguir, consideraremos alguns aspectos que dizem respeito aos demônios. 1.2. Considerações Sobre os Demônios 1.2.1. Fatores que Complicam a Compreensão Demonológica É um tanto quanto complicado falar sobre a identidade, a natureza e o papel dos demônios, sobretudo no Antigo Testamento, devido a, pelo menos, três fatores: a) terminologia; b) desenvolvimentos históricos; e c) questões teóricas.48 A maneira como estes fatores forem compreendidos, irá afetar a nossa concepção demonológica veterotestamentária como um todo. Portanto, vejamos estes itens um pouco mais de perto. Sigo aqui o The Anchor Bible Dictionary. (Cf. FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD. Vol.IL [D-G]. New York, Doubleday, 1992, pp.138,139). 53 CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I a) Terminologia O uso do termo “demônio” principalmente no Antigo Testamento é problemático por duas razões principais: primeira, parece que não há um único termo no hebraico bíblico que possa ser consistentemente e inquestionavelmente traduzido como “demônio”. A ausência de tal ferramenta lingüística constitui-se, portanto, nosso primeiro obstáculo. Segunda, muitos termos usados como referência aos demônios são hapax legomena (termos que ocorrem uma única vez em um texto) ou aparecem somente em uns poucos exemplos. Ou seja, essa escassez de dados não nos permite muitas vezes a comparação e a correlação com outros textos bíblicos, o que muito dificulta a nossa compreensão demonológica. b) Desenvolvimentos Históricos O próprio Antigo Testamento carece de uma simples ou coerente apresentação dos demônios. Muitos estudiosos concordam que opiniões sobre os demônios no Antigo Israel se tornam cada vez mais complexas e negativas, contudo, eles diferem entre si sobre como isto aconteceu. Várias possibilidades têm sido sugeridas: 1) A crença geral em demônios como espíritos malignos independentes foi sempre parte da teologia israelita (particularmente no nível popular) a qual foi simplesmente desenvolvida em períodos posteriores. 2) A crença geral em demônios como espíritos ambivalentes ou aspectos de Deus era parte original da teologia de Israel que em tempos posteriores veio a separar os seres espirituais em “bons” espíritos (anjos) e “maus” espíritos (demônios) 49 3) A crença Esta é também a opinião de Nelson Kilpp em um de seus artigos intitulado: Os Poderes Demoníacos no Antigo Testamento. Neste interessante artigo, ao falar sobre aquilo que ele chama de “os traços demoníacos de 54 SA + ANÁS, DÊIT1©NI©S E LEGIî geral em demônios como figuras malignas independentes foi um desenvolvimento tardio que surgiu quando se tomou teologicamente inaceitável apresentar os acontecimentos ruins do cotidiano como aspectos de Deus. 4) A crença geral em demônios refletida nos textos poéticos (deber, qeteb)5<} gradualmente diminuiu, enquanto a crença em outros tipos de demônios aumentou (as várias formas da figura de Satanás e as multidões de demônios e anjos malignos representados no período intertestamentário). c) Questões Teóricas Algumas questões tomam difícil a compreensão demonológicarelacionada ao Antigo Testamento. Dentre elas destacamos as seguintes: 1) Muitos dos estudos sobre os demônios no AT usam materiais comparativos, particularmente aqueles de outras culturas do Antigo Oriente Próximo. Evidências lingüísticas e arqueológicas têm provido ajuda no Deus”, Kilpp analisa três textos: Gn 32.23-33 (Jacó luta com Deus nas proximidades do rio Jaboc), Ex 4.24-26 (Javé ataca Moisés e tenta matá-lo) e Ex 12.21-23 (Parte do relato sobre a origem da Páscoa) e os conclui com algumas observações espantosas. Ele identifica: a) o ser (Deus) que lutou com Jacó (Gn 32) com um espírito fluvial; b) aquele (Deus) que tentou matar Moisés no caminho (Ex 4) com um demônio do deserto e c) o misterioso ser (Deus) identificado como “exterminador” dos primogênitos (Ex 12) como um demônio destruidor. (Cf. GARMUS, Ludovico, (ed.). Diabo, Demônio e Poderes Satânicos. [Série Estudos Bíblicos]. Petrópolis, Editora Vozes, 2002, pp.25-27.). De acordo com G. Fohrer, “fenômenos misteriosos, medonhos e horrificantes foram incorporados à descrição do próprio Deus ou associados a um ser celestial ou espírito enviado por lahweh. Conseqüentemente, lahweh assumiu feições ‘demoníacas’ (...) - ou, mais exatamente, veio a aparecer numa luz irracional e numinosa - e o limite entre seres celestiais e demônios ficou obscurecido. Por isso, os demônios são raramente mencionados [no AT]”. (Cf. FOHRER, Georg. História da Religião de Israel. [Tradução de Josué Xavier], São Paulo, Ed. Academia Cristã Ltda / Paulus, 2006, p.228). 50 O vocábulo deber significa “pestilência, praga mortal, peste”; e qeteb quer dizer “destruição”. 55 CARLOS AUGUS + © VAILA + + I esclarecimento de alguns aspectos do conhecimento veterotestamentário sobre os demônios. Contudo, estas evidências também levantam questões sobre o grau de comparação legítima possível entre culturas separadas pela língua, tempo, geografia e teologia. 2) Muito da linguagem sobre os demônios no AT e no Antigo Oriente Próximo aparece em materiais poéticos com referência a fenômenos naturais. Este contexto levanta a questão de como referências poéticas a fenômenos naturais podem ser interpretados - como referências literais aos fenômenos físicos, como simbolizações ou personificações poéticas, ou como referências aos reais demônios ou divindades. 3) A tradução em geral do intercâmbio dos termos com “demônios” é problemática. Isso ocorre porque as traduções em geral são influenciadas por muitos fatores: evidência filológica c tendência, teologia e decisões antecipadas com respeito a conhecimentos do termo “demônio” e as próprias formas de interpretar cada texto particular. 4) Identificações e conhecimentos dos demônios no AT são fortemente influenciados pelo contexto mais amplo dentro do qual os demônios são analisados: contextos passados têm incluído magia e bruxaria, religião “popular”, rituais oficiais apotropaicos, simbolismo poético e psicologia da religião. Todavia, a despeito de todos estes “obstáculos” que aparecem à nossa frente, ainda assim, nos atrevemos a tentar compreender um pouco mais sobre este complexo mundo demonológico encontrado principalmente no AT. Aliás, já que introduzimos a problemática da complexa hermenêutica demonológica referente ao AT, mergulhemos agora um pouco mais fundo nesta questão. 1.2.2. Os Demônios no Antigo Testamento Todo estudioso da Bíblia já deve ter notado a enorme escassez de referências aos demônios nas páginas do Antigo 56 SA + ANÁS, DErtlÔNieS E LEGIî Testamento51 52 e, conseqüentemente, deve ter observado também (ou não, devido à sua falta) maior escassez ainda quanto aos relatos de exorcismos. Sem querer ser irônico, me parece que tanto os demônios como também os próprios exorcismos foram, ambos, “exorcizados” das páginas do AT e banidos para bem longe. Aliás, esse fato me parece ser bastante óbvio, pois, não havendo demônios, como conseqüência lógica, não há também exorcismos a serem feitos. Ou seja, a inexistência da primeira cláusula já exclui automaticamente a segunda. Tal constatação me dá a impressão de que se Jesus vivesse no período do Antigo Testamento, o seu ministério taumatúrgico e, mais especificamente, sua atividade exorcística, se veriam em sérios apuros, pois ele não encontraria demônios para exorcizar, ou então, encontraria muito poucos deles. Entretanto, quando saltamos para as páginas do Novo Testamento e, mais precisamente, para os Evangelhos, percebemos que estes textos estão simplesmente impregnados de narrativas referentes aos demônios. No AT os demônios estão “escondidos”. Ali eles raramente “dão as caras”. Já no NT, sobretudo nos Evangelhos, temos que tomar muito cuidado, pois a cada capítulo, se não prestarmos a atenção, podemos “esbarrar” em muitos deles. 51 Segundo a Tradição Cabalística Judaica, os espíritos malignos tiveram a sua origem durante o Shahat, formando assim uma legião de demônios. (Cf. YOJAI, Simeón Bar. (Rabbi). El Zohar: el libro dei esplendor. [Traducción de Caries Giol]. Barcelona, Ediciones Obelisco, 2004, pp.97,98). 52 Esta expressão alemã quer dizer: “contexto de vida de Jesus”. (Cf. DEMOSS, Matthew S. Dicionário Gramatical do Grego do Novo Testamento. [Tradução de Paulo Sartor Jr.]. São Paulo, Editora Vida, 2004, p.160). Como no próximo capítulo nos concentraremos na análise exegética de Mc 5.1-20, então, como preâmbulo necessário para efetuar tal análise dentro do Sitz im Leben Jesu,51 devemos antes situar a referida perícope dentro de seu contexto mais amplo. Isto quer dizer, em outras palavras, que devemos buscar entender as narrativas sobre demônios, 57 CARLOS AUGUS + ® VAILA + +I encontradas nos Evangelhos, a partir da sua fonte primária localizada no AT. Tal fonte nos fornecerá o pano de fundo que será a base para a nossa compreensão demonológica do NT, condição sine qua non para o nosso estudo. Seguindo esse roteiro, veremos a seguir as informações que o AT nos fornece sobre os demônios e, em seguida, com base nesses dados, veremos se o AT nos fornece também armas de defesa ou de proteção contra tais seres demoníacos. Em particular, nos interessará saber se os exorcismos faziam parte de tais mecanismos de defesa contra a presença ameaçadora dos demônios. 1.2.3. Identificando os Demônios53 53 Para obter mais informações sobre os demônios, tanto no AT quanto no NT, consulte: HAAG, Herbert. Breve Diccionario de la Bihlia. Barcelona, Editorial Herder, 1992, pp. 161-164. Veja ainda: BOURRAT, Marie Michèle y SÒUPA, Anne. Pero, Existe el Diablo? [Traducción de José Salgado]. Bilbao, Ediciones Mensajero, S.A., 1997. Já foi dito anteriormente que não há um só termo no hebraico bíblico que possa ser inquestionavelmente traduzido por “demônio”. Contudo, isto não quer dizer que não existam outros termos hebraicos que possam ser utilizados como referências (ainda que indiretas) a ele. Baseado nisso, inventariamos logo abaixo uma relação de tais seres demoníacos encontrados nas páginas do AT, no intuito de aprofundarmos a nossa compreensão sobre este assunto: a) Duas Categorias Gerais de Demônios • Dntá (shêdim) Dt 32.17; SI 106.37. Segundo Unger, o significado etimológico deste termo não está muito bem estabelecido, mas ele acredita que o vocábulo seja derivado da raiz shudh “governar, ser 58 SA + ANÁS, DEmêNieS E LEGIî senhor”, como o árabe sala.54 Já Bauer entende que este nome deve ter alguma relação com o acádico shedu, “anjo protetor”.55 Porém, ao que tudo indica, a palavra shêd (singular de shèdim) tem ligação com o vocábulo babilônico shêdu, “demônio (bom ou mal)”.56 Talvez, este significado ambivalente do termo possa ser explicado como sendo resultado de uma teologia original mesopotâmica, a qual via os demônios como espíritos ambivalentes, dotados de traços positivos e negativos, os quais seriam um mero reflexo do comportamento bom ou mau dos seres humanos. UNGER, Merril F. Biblical Demonology: a study of the spiritual forcesbehind the present world unrest. Wheaton, Scripture Press Publications, Inc., 1973, p.59. Unger também escreveu outro livro sobre demonologia, o qual trata deste assunto nos dias atuais. (Cf. UNGER, Merrill F. Demons in the World Today. Wheaton, Tyndale House Publishers, Inc., 1988). 55 BAUER, Johannes B. Dicionário Biblico-Teológico. [Tradução de Fredericus Antonius Stein]. São Paulo, Edições Loyola, 2000, p.92. 56 HARRIS, R. Laird (org.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. [Tradução de Márcio Loureiro Redondo, Luiz A.T. Sayão e Carlos Osvaldo C. Pinto], São Paulo, Vida Nova, 1998, p. 1527. 57 A BHS observa em nota marginal que o hebraico hase’irim é provavelmente a forma mais correta a ser utilizada no lugar de hase'arim, a forma como a expressão aparece em 2 Rs 23.8. (Cf. ELLIGER, K. & RUDOLPH, W. (eds.). Bíblia Hebraica Stuttgartensia. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1997, p.667.). • DTltôl (se'irim) Lv 17.7; Dt 32.2; 2 Rs 23.8;57 2 Cr 11.15; Is 13.21; Is 34.14. Esse termo que, como o anterior, também aparece aqui em sua forma plural, se'irim, é derivado do hebraico sã'ir, “bode”. O vocábulo parece significar “demônio (cabeludo)”, 59 CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I SR(em forma de bode). De acordo com Unger, estes seres eram vistos inquestionavelmente como objetos de culto. Ele ainda argumenta que o fato da LXX traduzir se’irim por ôaip.óvia em Is 13.21 e 34.14 prova que os Judeus de Alexandria consideravam tais seres como demônios mesmo.* 59 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p.353. Cf. também: MCDANIEL, Ferris L. A Reader's Hebrew-English Lexicon of the Old Testament. Dallas, edited by author, 1975, p.14; LANDES, George M. SVBH, ?927' UNGER, Merril F. BD, p.60. Não é nosso propósito discutir nessa obra sobre a legitimidade ou não do uso do termo grego daimonia, por exemplo, como a tradução mais apropriada do hebraico se'irim. Contudo, creio ser proveitoso e oportuno citar aqui algumas observações encontradas no Dictionary of Deities and Demons in the Bible a esse respeito: “Durante o período intertestamentário e durante a ascensão da literatura judaica em grego, os termos daimon e daimonion começaram a assumir entre os judeus a conotação negativa de ‘demônio em aliança com o Diabo’. A inspiração para esta substituição no significado foi o encontro durante e após o Exílio com o dualismo zoroastriano. Esta cosmologia postulava dois campos espirituais guerreando, controlados por seus líderes, o deus zoroastriano e o diabo, e comandados por arcanjos e arquidemônios e suas graduações de espíritos inferiores. Eles brigavam a respeito da lealdade dos humanos, lealdade expressada nos comportamentos justos ou injustos e finalmente na vida eterna ou na destruição ardente. Os deuses antigos das nações e suas divindades serviçais, os espíritos inferiores da natureza e do cosmos, foram ‘demonizados’, rebaixados à classe de espíritos maus, tentando humanos a pecar e seduzindo-os da verdadeira fé pelas falsas doutrinas de outras religiões. Eventual mente, porém, houve um fim, uma vitória de Deus, um salvador que conduz os poderes opostos à destruição, um Julgamento Final e uma Nova Era. Círculos dentro do judaísmo usaram esta estrutura para reavaliar antigos mitos e produziram após o Exílio as tensões dualísticas do judaísmo, visíveis na literatura pós-exílica e intertestamentária e também no Cristianismo”. (Cf. TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der. (eds.). DDDB, p.238). 60 SA + ANÁS, DEmêNieS E LEGIé b) Fenômenos Naturais com Traços Demoníacos • "IXH (deber) SI 91.6; Os 13.14; Hab 3.5. O termo hebraico deber significa “praga, pestilência”. Este substantivo masculino refere-se a qualquer tipo de peste que resulte em morte e, com exceção de uns cinco casos, todos os usos deste vocábulo aludem à peste enviada por Deus como forma de castigo. Contudo, ao que tudo indica, nas referências acima citadas (com a possível exceção de Hab 3.5) a pestilência também é demonizada devido às suas graves conseqüências na vida dos seres humanos em geral. 60 61 • (qeteb) Dt 32.24; SI 91.6; Is 28.2; Os 13.14. O vocábulo qeteb significa basicamente “destruição”. Esse termo aparece, por exemplo, no curioso contexto do SI 91. Devido às referências a 62 63 LANDES, George M. SVBH, p.26. 61 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.399. Quanto a essa questão da pestilência ser enviada por Deus, Nelson Kilpp diz muito acertadamente que “no Antigo Testamento, o Deus de Israel exige ser adorado como Deus único. Esta exclusividade do Deus bíblico é responsável pela falta de um dualismo radical entre o bem e o mal e também pela inexistência de uma demonologia no Antigo Testamento. Sendo Javé único, ele se apresenta como um Deus ambivalente: ele causa o bem, mas também está na origem do mal”. (Cf. GARMUS, Ludovico, (ed.). Diabo, Demônio e Poderes Satânicos, p.25). 62 FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD. Vol.II. [D-G], p. 139. 63 Roy Stewart comenta: “a afirmação de que o Salmo 91, especialmente os versos 5-7, faz referência específica aos demônios é provavelmente correta; a afirmação de que Moisés compôs o Salmo enquanto subia ao Monte Sinai, para protegê-lo de seus atormentadores demoníacos, certamente é incorreta”. 61 CARL®S AUGUS + ® VAILA + +1 pestilências e doenças que estão presentes nesse texto, muitos comentaristas tratam todo o salmo como se fosse uma polêmica contra o uso de fórmulas mágicas usadas para repelir demônios. De fato, o Talmude sugere que o Salmo seja utilizado no caso de ataques demoníacos. E dentro deste contexto, o “tns (pahad layla), “terror noturno” (v.5), pode se referir ao demônio da noite, lilit, enquanto que a fü (hêts yci'up yômãm), “seta que voa de dia” (v.5) pode descrever os ardis dos demônios perversos.64 A ? ^2X3 "13*7 (deber bã’ôpel yahalôke), “peste que se propaga nas trevas” (v.6) pode ter afinidade com o demônio Nantar, enquanto que a □ ''“1712 (Cf. STEWART, Roy A. Rabbinic Theology: an introductory study. Edinburgh and London, Oliver and Boyd Ltd., 1961, p. 61). 64 Segundo Keel, “a ‘flecha voadora pelo dia’ pode aludir a uma das flechas transmissoras da enfermidade (cf. SI 38.3) de Reshef, deus da guerra e da peste. Aqui, o ‘senhor das flechas’ (...) fica reduzido à condição de demônio”. (Cf. KEEL, Othmar. La Iconografia dei Antiguo Oriente y el Antiguo Testamento. [Biblioteca de Ciências Bíblicas y Orientales], [Traducción de Andrés Piquer], Madrid, Editorial Trotta, S.A.,2007, p.81). 65 PFEIFFER, Charles F. & HARRISON, Everett F. The Wycliffe Bible Commentary. Chicago, Moody Press, 1987, p.529. 66 É curioso observar que semelhante uso do Salmo 91 também pode ser encontrado em larga escala em nossa religiosidade brasileira. Nela, o costume (qeteb yãshüd tsãhàrãyim), “destruição que ataca ao meio-dia” (v.6) pode se referir a um demônio de um só olho, também mencionado na tradição rabínica. Mesmo que estas idéias estivessem ausentes dos pensamentos do autor, elas faziam parte integrante do salmo em seu uso real entre os judeus.65 Em outras palavras, o Salmo 91 é uma espécie de Manual de exorcismo da tradição rabínica judaica.66 62 SA+ANÁS, DEfflffiNlffiS E LEGIé =■^7. (reshep) Dt 32.24; Jó 5.7; SI 76.4; SI 78.48; Hab 3.5. O vocábulo reshep significa “pestilência”.67 Mas, além disso, também pode ser traduzido como “chama, relâmpago, faísca”.68 É interessante observar como os pagãos, devido às suas crenças animistas, povoaram a realidade de espíritos. Por exemplo, o hebraico reshep, “pestilência”, parece ter relação com o ugarítico rshp, o “deus da pestilência”.69 Desta forma, o fenômeno da natureza foi demonizado neste último caso. Já em Jó 5.7 foi sugerido que o termo reshep que ali aparece, não se refere a faíscas literais, mas a Reshep, o deus da febre e das epidemias.70 Por fim, em uma inscrição bilíngüe da cidade de Idalião em Chipre, um príncipe chamado Ba‘alram erigiu uma imagem, cuja dedicatória emgrego era xcu ’ Akóà.Xcdvi tco’ ApvKXoi (tõ Apóllõni tõ Amykloí) e em fenício era supersticioso de manter a Bíblia aberta no Salmo 91, funciona como uma espécie de “amuleto”, “patuá” ou “talismã”. Nesse contexto da nossa religiosidade sincrética, o Salmo 91 aparece exposto em muitas casas, hospitais, lojas e outros ramos do comércio como um instrumento de proteção contra o “olho gordo”, a “inveja” e outras coisas ruins que possam prejudicar as pessoas, incluindo os espíritos malignos. 67 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p.347. 68 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.1460. 69 Idem, /ózó/cw, pp.788,789. 70 Idem, Ibidem, p.1460. (Resheph de Amyklae). A inscrição dizia: “Este é um molde de ouro que Milkyaton, rei de Kitião e Idalião, filho de Ba‘alram, deu ao seu deus, Resheph de Mikal, em Idalião, no mês de Bul, no segundo ano de seu reinado sobre Kitião e Idalião, 63 CAR.L®S AUGUS + ffi VAILA + + I porque ele ouviu a sua voz: ele pôde abençoar (a ele)!”.71 DRIVER, S.R. A Critical and Exegetical Commentaiy on Deuteronomy. Edinburgh, T. & T. Clark Ltd., 1986, p.368. 72 LANDES, George M. SVBH, p.28. 73 O Testamento de Salomão 18.1,2 fala sobre demônios “com cabeças em forma de cachorros, ... [outros] em forma de humanos ou de touros ou de dragões com rostos de pássaros ou feras ou esfinge”. (Cf. Testamento de Salomão. Apud: TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der. (eds.). DDDB, p.237.). Segundo o Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, “demônios podem assumir forma animal, e o folclore judaico menciona fantásticas criaturas animais, tais como Behemot e Leviatã, cuja carne será comida no grande banquete dos dias messiânicos”. (Cf. UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições. [Tradução de Paulo Geiger]. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, p.26). É digno de nota que Ap 9.7ss fala sobre os gafanhotos (demoníacos) que saíram do abismo, os quais pareciam cavalos aparelhados para a guerra, tendo rostos • ins (pahad layla) SI 91.5. Já foi dito que esta expressão que significa “terror noturno” pode ser uma referência ao demônio da noite, lilit. Porém, deve-se acrescentar ainda que os povos antigos de uma forma geral acabaram temendo a noite devido a fatos ruins que aconteciam durante o período noturno, tais como mortes e roubos, por exemplo (Ex 12.30; SI 121.6; 1 Ts 5.2,5; 2 Pd 3.10a etc), e, por fim, acabaram por demonizá-la. • “TJ3 (bãrãd) SI 78.48; Is 28.2. O vocábulo bãrãd significa “saraiva”. Certamente, o caráter destrutivo de tal fenômeno da natureza, visto principalmente no prejuízo causado às lavouras e ao gado, foi responsável por tê-lo transformado num aspecto demoníaco. 72 c) Animais com Feições Demoníacas 73 64 SA+ANÁS, D€ÍT1®NI®S £ LEGIî fàlüqahf Pr 30.15. Aqui o termo 'ãlüqah faz referência à “sanguessuga” ou “sanguessuga de cavalo”. Tal verme era muitas vezes associado a vampiros demoníacos. Todavia, esse texto provavelmente está se referindo a algum tipo de parasita que se alimenta de sangue, sem uma relação clara com seres demoníacos.74 parecidos com rostos humanos, cabelos semelhantes ao de mulheres, dentes como os de leões e caudas semelhantes às dos escorpiões (Cf. Ap 9.1-11). Já Ap 16.13 (ARC) fala sobre “três espíritos imundos, semelhantes a rãs”. Pelo que podemos perceber, tais seres demoníacos eram muitas vezes vistos como seres compostos (híbridos), constituídos dos aspectos assustadores dos animais, incluindo, às vezes, rostos ou corpos humanos. Isto nos faz lembrar dos seres mitológicos, tais como o Minotauro (monstro que era em parte humano e em parte touro) ou os Centauros (que tinham a cabeça e o torso de homem, mas que da cintura para baixo eram cavalos). Todavia, não podemos afirmar com certeza se tais elementos da mitologia grega influenciaram a narrativa bíblica do Apocalipse ou não. 74 OROPEZA, B. J. 99 Perguntas Sobre Anjos, Demônios e Batalha Espiritual. [Tradução de Josué Ribeiro], São Paulo, Mundo Cristão, 2000, p. 192. 75 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p.355. 76 SHERBOK, Dan Cohn. A Concise Encyclopedia of Judaism. Oxford, Oneworld Publications, 1998, p. 174. 77 FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD. Vol.II. [D-G], p. 139. • □’’EHfó (serãpim) Nm 21.6,8; Is 14.29; Is 30.6. O vocábulo serãpim significa “serpente abrasadora” ou “serpente alada”.75 De acordo com a A Concise Encyclopedia of Judaism, éerãp era uma criatura sobrenatural descrita como um homem alado ou uma figura semelhante a uma serpente.76 O The Anchor Bible Dictionary inclui estes seres na categoria de animais demoníacos.77 Já em Is 6.12 os serãpim são 65 CARLOS AUGUS + © VA1LA + + 1 membros de uma corte celestial (de anjos) e ficam ao redor do trono divino. • (tsiyyim) SI 72.9; 74.14; Is 13.21; 23.13; 34.14; Jr 50.39. O termo 2 (tsi), forma singular de tsiyyim, parece também significar “demônio” (habitante de um lugar deserto). Bauer afirma que tais seres apresentam íntimas relações com o deserto 787980 78 HOLLADAY, William L. (ed.). Op.Cit., p.305. 79 BAUER, Johannes B. DBT, p.92. 80 FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD, p. 139. 81 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p. 138. 79e seus habitantes. • □'ink (’õhim) Is 13.21. Embora esse termo que significa “criaturas uivantes” também seja incluído OM em uma categoria de animais demoníacos, contudo, é mais provável que a expressão se refira a animais tais como a hiena, e não a demônios em si. • HÍIT nÍ23 (benõt ya'anah) Is 13.21. O termo significa “avestruzes”, mas é mais provável que a referência seja a uma espécie de coruja.81 • □’’"K (’iyyiní) Is 13.22. A palavra ’iyyim,“hienas”, é mais um exemplo de animal (carnívoro) que, provavelmente devido à sua característica como animal de rapina e devido aos seus assustadores uivos, acabou sendo demonizado. • □’’Sfl (tannirrí) Is 13.22; 34.13. Os tannim, “chacais”, são os cachorros selvagens das regiões 66 SA + ANÁS, DEffl®Nl®S E LEGIî quentes do mundo antigo. Eles tinham o hábito de caçar de forma secreta, em pequenos bandos, à noite. Dentre os seus hábitos alimentares, destaca-se o fato de serem comedores de carniça.82 Conhecendo tais características, não é muito difícil imaginar porque tal animal também foi demonizado. 82 TENNEY, Merril C. (ed.). ZPBD, p.43. 83 MCDANIEL, Ferris L. RHELOT, p.42. 84 DAVIDSON, Benjamin. AHCL, p.418. 85 UNTERMAN, Alan. DJLT, p. 152. 86 FREEDMAN, David Noel (ed.). Qp.C/í., p.535. • k* (liwyatan) Jó 3.8; Jó 41.1; Is 27.1. Talvez, entre os animais demoníacos, este e os dois seguintes, sejam aqueles sobre os quais haja maior consenso quanto ao fato de serem associados a demônios. Entretanto, de forma mais particular, o termo liwyãtãn, “leviatã”, significa “serpente”,83 ou pode ser traduzido ainda como “monstro-marinho”, “grande serpente” ou “crocodilo”.84 Seja como for, o fato é que de acordo com as lendas e tradições judaicas o Leviatã simboliza Samael, o príncipe do mal, o qual será destruído nos tempos futuros.85 Caza’zel) Lv 16.8,10,26. De uma forma geral, os estudiosos afirmam que o nome ‘âzã’zêl pode significar “abismo profundo, destruição, remoção completa” ou ainda “deus irado”.86 Todavia, além destes significados, 'ãzã/zêl pode ser traduzido também como “bode emissário” e ainda, conforme entenderam algumas versões antigas (dentre as quais, a LXX e a Vulgata), o “bode que se vai”, considerando tal termo como derivado de duas 67 CARL®S AUGUS + ® VA1LA + +I palavras hebraicas: fêz, “bode”, e 'ãzal, “virar-se”.87 Este vocábulo pode fazer referência a um espírito maligno ou ao próprio diabo.88 A literatura judaica descreve ‘ãzã/zêl como o chefe dos demônios, que habita na terra, o qual foi banido para o deserto, e também o vê como o líder dos anjos caídos que encabeçaram a rebelião dos anjos de Gênesis 6 (1 En IX.4; Apocalipse de Abraão 14.5-7).89 87 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.1099. 1,8 Idem, Ibidem. 89 Para estas referências, veja: PROENÇA, Eduardo de. (org.). Apócrifos e Pseudo-Epigrafosda Bíblia. [Tradução de Claudio J. A. Rodrigues]. São Paulo, Fonte Editorial Ltda., 2005. É bem propício citarmos aqui a opinião da tradição judaica quanto ao significado do termo ‘ãzõ’zê/: “Destino do bode expiatório que carregava os pecados de Israel para o deserto no Yom Kippur (Lv 16). Dois bodes idênticos eram selecionados para o ritual. Um era escolhido, por sorteio, como oferenda a Deus, e o outro era enviado para Azazel, no deserto, para ser lançado de um penhasco. O sumo sacerdote recitava para o povo uma confissão de pecados sobre a cabeça do bode expiatório, e uma linha escarlate era enrolada, parte em volta de seus chifres, parte em volta de uma rocha no topo do penhasco. Quando o bode caía, a linha tomava-se branca, indicando que os pecados do povo haviam sido perdoados [...]. Embora a palavra Azazel possa se referir a um lugar, ou ao bode, também foi explicada como sendo o nome de um demônio. Os pecados de Israel estariam, pois, sendo devolvidos à sua fonte de impureza. Os cabalistas viam no bode um suborno às forças do mal, para que Satã não acusasse Israel e, ao contrário, falasse em sua defesa [...].”. (UNTERMAN, Alan. DJLT, p.38). Será que o episódio dos porcos que caem de um despenhadeiro ao mar (Cf. Mt 8.30-32; Mc 5.11-13; Lc 8.32,33) não pode ter sofrido alguma influência (por mais remota que seja) desta narrativa sobre o bode Azazel, o qual era lançado de um penhasco e que era considerado a origem de todo o pecado de acordo com a literatura judaica? Bem, esta é uma questão a ser pensada. (lilit) Is 34.14. Incluí Lilite na categoria de animais demoníacos porque, na literatura judaica, ela 68 SA + ANÁS, DEm®NI©S Ê LÊGIé é descrita como um pássaro.90 Aliás, para ser mais exato, lilit é um demônio feminino (ou uma “demônia”, se preferir) relacionado à vida sexual, que pode fazer referência também ao “pesadelo” ou à “coruja da floresta”.91 92 Já na literatura ugarítica, lilit recebe sacrifícios e é invocada em um hino, no qual ela é chamada de “a noiva de véu” e de “nossa senhora”. Segundo o folclore judaico, Lilite foi a primeira mulher de Adão e a rainha demônia da noite. Trata-se de uma personagem sedutora que possui cabelos compridos e que voa como uma coruja noturna visando atacar aqueles que dormem sozinhos, no intuito de ter fdhos demônios dos homens por meio de suas poluções noturnas, para roubar crianças e para fazer mal a bebês recém- nascidos. Se não conseguir consumir crianças humanas, ela come até mesmo sua própria prole demoníaca.93 Porém, é possível que esta que era vista 90 FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD. Vol.It. [D-G],p.l39. 91 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p. 176. 92 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.788. 93 UNTERMAN, Alan. DJLT, p. 153. Unterman ainda fornece quatro formas de proteger as crianças contra os ataques de Lilite: 1) pregar amuletos com as palavras “Adão e Eva excluindo Lilite” nas paredes da casa em que uma mulher se prepara para o nascimento de seu ftlho; 2) Colocar na porta do quarto das crianças os nomes dos três anjos (Sanvi, Sansanvi e Samangelaf) escritos sobre ela; 3) Cercar o quarto das crianças com um círculo de carvões ardentes; e 4) Bater de leve três vezes no nariz da criança pronunciando uma fórmula de proteção contra ela. (UNTERMAN, Alan. DJLT, p.154). É curioso mencionar aqui que, tal como acontece aos porcos de Mc 5.13 que veremos adiante, Lilite também é lançada ao mar (porém, pelo Senhor), local este que acaba se tornando a sua casa, conforme uma antiga lenda judaica. (Cf. GORION, M. J. Bin. As Lendas do Povo Judeu. [Tradução de Marianne Amsdorff, J. Guinsburg e Evelina Holander], São Paulo, Editora Perspectiva S.A., 1980, p.53). Para saber mais sobre Lilite, veja: HURWITZ, Siegmund. Lilith: a primeira Eva. [Tradução de Daniel Costa], São Paulo, Fonte 69 CARL®S AUGUS + ® VA1LA + + I como um demônio noturno fosse apenas um animal noturno, tal como um morcego ou uma coruja. d) Seres Associados ao Mundo Subterrâneo • FIIB (mãwet) Jó 18.13; 28.22; 38.17; Is 28.15, 18; Jr 9.20 (9.21 em Português); Os 13.14; Hab 2.5. O vocábulo mãwet pode significar “morte, moribundo, Morte (personificada), o reino dos mortos”. A própria característica trágica deste terrível acontecimento da nossa existência (a morte), pode ter sido a responsável por enquadrá-la em uma categoria demoníaca. 94 • (debar beliya'al) SI 41.9 (41.8 em Português). Este vocábulo que é traduzido como “peste maligna” (ARA) pode ser situado também dentro da classe de Fenômenos Naturais com Traços Demoníacos (Veja item b, acima). • HiH^a (melek ballãhôt) Jó 18.14. Tal expressão significa “rei dos terrores”. Ela aparece na fala de Bildade, um dos companheiros de Jó. A expressão ocorre num contexto em que Bildade descreve o fim dos homens perversos, dizendo que o paradeiro final de tais homens será cair nas mãos do rei dos terrores (cf. Jó 18.14, 21). Ao que tudo indica Editorial, 2006; MEYERS, Carol, CRAVEN, Toni & KRAEMER, Ross S. (eds.). Women in Scripture: a dictionary of named and unnamed women in the Hebrew Bible, the Apocryphal / Deuterocanonical books, and the New Testament. Grand Rapids / Cambridge, William B. Eerdmans Publishing Company, 2000, p.531. 94 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.820. 70 SA + ANÁS, DEfflÔNieS E LEGIî este ser enigmático pode ser uma referência à morte (personificada aqui) ou a algum tipo de demônio que atormentará o homem perverso em sua vida pós- túmulo como castigo pelo tipo de vida que ele teve aqui na terra.95 75 Pfeiffer e Harrison entendem que o “rei dos terrores” seja uma referência à própria morte. (Cf. PFEIFFER, Charles F. & HARRISON, Everett F. WBC, p.475.). 96 FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD. Vol.II. [D-G], p. 139. 97 BAUER, Johannes B. DBT, p.93. 78 As sete pragas mencionadas em Dt 28.22 também são consideradas como sete espíritos malignos. (Cf. FREEDMAN, David Noel (ed.). Op. Cit., p. 139). Driver explica que as primeiras quatro pragas serviam para afetar os seres humanos e as três últimas para prejudicar as colheitas. (Cf. DRIVER, S.R. A Criticai and Exegetical Commentary on Deuteronomy, p.3O8). Os “mensageiros de males” citados no SI 78.49 também são identificados como demônios. (Cf. MAYHUE, Richard L. False Prophets and the Deceiving Spirit. MSJ. Vol.4, n°2. Sun Valley, Master’s Seminary Press, 1993, p. 143). • (r^pa’im) Jó 26.5; SI 88.11; Pr 2.18; 9.18; Is 14.9; 26.14,19. Nem todos os intérpretes situam os r^pa’im, as “sombras da morte”, na categoria de seres malignos ou demônios assombrosos. Contudo, Bauer explica que devido à rejeição, no AT, do culto aos antepassados, tais “espíritos dos mortos” (como ele entende os T^pa’im) acabaram sendo demonizados. 96 97 e) Termos Adicionais98 • (hets) SI 91.5; Jó 6.4. Esta “seta” ou “flecha” provavelmente faz alusão a objetos pontiagudos que eram lançados entre rivais durante algum combate ou 71 CARL©S AUGUS+® VAILA + +I batalha, os quais acabaram adquirindo um aspecto demoníaco devido aos males que causavam nas pessoas atingidas. Ou talvez, tal palavra possa se referir a algum ataque demoníaco desferido contra alguém. • (’èlilirrí) Lv 26.1; Is 19.3. O termo ’èlilim significa “deuses” (ídolos), “zero” (algo sem valor), “vãos”. Esse termo aparece na Bíblia para descrever objetos inúteis de adoração, tais como deuses e ídolos, por exemplo. Tal vocábulo, na LXX, nos mostrará claramente que houve um processo de demonização dos deuses pagãos. 99 • □’’ÉX (’ittiní) Is 19.3. Esse vocábulo, que está relacionado a algum tipo de ocultismo, é um hapax legomenon, ocorrendo somente em Is 19.3 no plural. O termo significa “encantadores, mágicos, adivinhadores”. A ligação dos ’ittim com questões demonológicas já é, por si só, evidente. 100 • nÍDk Çôbôt) Is 8.19. A palavra ’ôbôt quer dizer “espíritos dos mortos”. A ARC traduz o termo por “espíritos familiares”. Os “espíritos familiares” e adivinhos eram muito consultados naquela época, quandoas pessoas experimentavam momentos de declínio espiritual em sua fé em Yahweh. Assim como os espiritualistas hoje, eles pretendiam manter comunicação com os mortos. Tais ’ôbôt acabaram 101 102 99 LANDES, George M. SVBH, p.39. 100 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.56. 101 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p.6. 102 PFEIFFER, Charles F. & HARRISON, Everett F. WBC, p.619. 72 SA+ANÁS, DÊrtlêNieS £ LEGIî também por adquirir características demoníacas no AT. • ■’piH" (yidde'õni) 1 Sm 28.9; Is 19.3. Essa expressão quer dizer “espírito familiar, mágico, agoureiro, adivinho”.103 Todavia, tais significados possuem uma conotação ambígua. Não está muito claro se yidde'õni está descrevendo um espírito familiar ou um ser humano, no caso, um adivinho. 103 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.597. Assim, nós concluímos este item que buscou identificar, senão todos, pelo menos a maior parte dos seres e figuras demoníacas ou que foram demonizadas no Antigo Testamento. A seguir, trataremos da figura do demônio dentro de suas concepções no período do Grego Clássico e na LXX, para que a partir de então possamos tratar de seu significado no período neotestamentário, uma vez que tais fontes literárias influenciaram de forma decisiva o significado e a compreensão do termo “demônio” no NT. 1.2.4. Os Demônios no Período do Grego Clássico Antes de qualquer coisa, devemos lembrar que o período do Grego Clássico compreende a época que vai de 900 a.C. até cerca de 330 a.C. Neste período, havia vários termos que estavam associados com aquela figura que, mais tarde, seria conhecida como “demônio”, tal como concebemos o termo nos dias de hoje. Nesta época, uma característica animista sublinhou o conceito grego de õaípwv (daimõn). Tal traço persistiu entre os gregos. No período histórico especialmente, ele foi obviamente combatido pelos mais instruídos e principalmente pelos círculos filosóficos dos quais nós tiramos quase todo o nosso conhecimento de todos os níveis do pensamento grego. 73 CARL©S AUGUS + ® VAILA + + I Porém, mesmo estes círculos têm sido orientados por idéias populares e, assim, dão testemunho da opinião comum de que houve um desenvolvimento gradual no significado e na compreensão deste termo grego.104 104 KITTEL, Gerhard, (ed.). Theological Dictionary of the New Testament. [Translated and Edited by Geoffrey W. Bromiley]. Vol.II. [A-H]. Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1999, p. 1. 105 Cf. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R„ Sargovám, in: IGEL, p. 171. De início, podemos dizer que o termo ôaíp.wu é usado tanto para se referir a divindades maiores quanto para divindades menores, além de ser usado também em um sentido filosófico. Por fim, opiniões animistas sublinham igualmente o uso posterior do termo, o que exige de nós atenção redobrada quanto a este assunto. Vejamos, a seguir, um breve histórico dos principais termos referentes ao “demônio” no Grego Clássico: a) O verbo Saipovám (daimonáõ), “estar sob o poder de um ôaípwv (daímõny\ também é visto na expressão Ôaipovâv KdKÔtç (daimonân kakôisf “sofrer devido a uma divina visitação” e em Ésquilo (525-456 a.C.) o termo significa “estar mergulhado em desgraça enviada do céu”. No sentido absoluto de “estar possuído, estar louco”, o verbo pode ser encontrado nos escritos de Euripides (480-406 a.C.) e de Xenofonte (401 a.C.).105 b) Já o termo Saipóviov (daimónion), que significa “divindade” (Lat. numen) ou “divina operação”, aparece em Heródoto (484-408 a.C.) e no já citado Euripides. No sentido de “uma fatalidade” ocorre em Demóstenes (385-322 a.C.). E como “um ser divino inferior”, “um demônio”, é encontrado em Xenofonte e em Platão (427-347 a.C.). No NT tal vocábulo irá 74 SA + ANÁS, DEm®NI©S E LEGIé adquirir o significado de “demônio”, um “espírito maligno”.106 106 Cf. Idem., Saipóviov, in: IGEL, p. 171. 107 Em sua Teogonia, o poeta grego Hesíodo também emprega os termos ôaipóui (daimóni), “espírito” e Saípova 8iov (daímona díon), “nume divino”. (Cf. HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. [Estudo e Tradução de Jaa Torrano]. São Paulo, Editora Iluminuras Ltda., 1995, pp. 142,160.). 108 Cf. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R.., ôaipóvtoç, in: IGEL, pp. 171,172. c) Quanto à palavra Socipóvioç (daimónios), cujo significado básico é “pertencer a um ôaípcov (íZazmõn)”, constatamos que a mesma é encontrada no vocativo Satpóvie (daimónie), Saipovíp (daimoníê), principalmente na forma de repreensão ou censura, significando, por exemplo: “seu infeliz!”, “seu maldito!”, “senhora!”; e, de forma mais rara, como forma de admiração: “nobre senhor!”, “homem excelente!”, em Hesíodo (85 0 a.C.?). O termo também ocorre exprimindo compaixão: Saipóvte àvôpcôv (daimónie andrõn), “pobre infeliz!”, em Heródoto. Em Aristófanes (444-380 a.C.) e também em Platão aparece de uma forma irônica: cS Satpcoví’ òcvSpov, (5 Saipcovi,’ co Socipóvi’ àvTpcórtcov (õ daimõni andron, õ daimõni, õ daimóni antrõpõri), “meu bom camarada! bom senhor!”. Além disso, em Heródoto e no Grego Âtico, a palavra também aparece referindo-se a “algo que procede da divindade, enviado do céu, divino, miraculoso”. Xenofonte fala sobre eí pf] ti ôatpóvtov ei (ei mê ti daimónion ei), se isto não é “uma intervenção divina”. Tucídides (423 a.C.) fala sobre xá Satpóvia (tá daimónia), as “visitações do céu”. Já Platão emprega o termo para se referir a pessoas, “divino, 107 108 75 CAR-LffiS AUGUS + ® VA1LA + +I excelente”. E Aristófanes emprega o vocábulo para significar “força divina”, “maravilhosamente”.109 Cf. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R„ Satpóvtoç, in: /GEL, p. 172. Para obter um quadro geral do significado do termo Satgóvtoç no Grego Clássico, veja: FEYERABEND, Karl. Pocket Dictionary Classical Greek. [Classical Greek-English], Berlin, Langenscheidt KG, S.d., p.86. 110 Quanto ao significado etimológico de Sa'tpcnv, o ponto de vista mais comum é que seja derivado de daiomai, “dividir, repartir”. Ele pode estar conectado com a ideia do deus dos mortos como aquele que divide os cadáveres [talvez se referindo ao seu estado de decomposição]. (Cf. BROWN, Colin, (ed.). NIDNTT. Vol.l. [A-F], [Translated by Lothar Coenen, Erich Beyreuther and Hans Bietenhard]. Grand Rapids, Zondervan, 1986, p.450). Já Foerster afirma que a etimologia da palavra é incerta. Segundo ele, a raiz AAI [Soúopat] é fundamental, embora o sentido seja incerto. Contudo, Foerster, citando W. Porzig, diz que talvez este esteja correto em sugerir para o termo daimõn a ideia de “desfazer” ou “rasgar em pedaços”, e por essa razão, ele concebe o Saípcnv como “aquele que consome o corpo”. A conclusão de Foerster é que tal conceito pode certamente ser sustentado com uma base animista. (Cf. FOERSTER, W. Satpoiv, in KITTEL, Gerhard, (ed.). TDNT. Vol.II. [A- H], p.2). d) Um dos significados do vocábulo ôaipcov (daímõn) é “divindade”. Com este sentido ele aparece, por exemplo, em Homero (Séc. IX ou VIII a.C.), upòç Saipova (pròs daímona), “contra a vontade da divindade” e em Heródoto (Séc. V a.C.), tt]v |iEyíoTT|v Saipova f|yevrai (tên megísten daímona hègentai), “[ísis] que eles consideram a maior divindade tutelar”. O termo também aparece para se referir a um “intermediário entre deuses e homens”, “demônio” e “gênio”. Ele também aparece assim, por exemplo, em Platão (Séc. IV a.C.), toíç 3è pépeaiv éKáoTOtç 0eòv f| Saípovoc f] kocí two. ppcua ánoSoTéov (toís dè méresin hekástois theòn ê daímona ê kaí tina hêrõa apodotéon), “é preciso 110 76 SA+ANÁS, D£fflffiNI®S £ LEGIî atribuir a cada parte um deus ou um gênio ou um herói”.111 Um terceiro significado que é dado ao termo é “alma de um morto tomada nume tutelar”. Assim aparece em Ésquilo (Séc. V a.C.), tòv §è Saípova Aapetov àYKaÀeioSe (tòn dè daímona Dareion ankaleísthé), “invocai Dario, nosso nume tutelar”. Em quarto lugar, o termo também chegou a significar “gênio benéfico ou maléfico”, “protetor (de um homem)”. Com tal sentido nós encontramos o termoem Aristófanes (Séc. V a.C.), [tqSéKOTE ttioip ’ àya9oí> Saípovoç (mêdépote píoim agathoú daimonos), “que jamais eu beba em honra de teu protetor”. Em quinto lugar, o vocábulo também significava “lote de cada um”, “sorte”, “destino”. Mais uma vez citamos Aristófanes, Kocud Saípova Koà owTvxiav (katà daímona kai syntychían), “conforme o destino ou o acaso”. Finalmente, o Além disso, em Eutífron, Platão narra o diálogo entre Eutífron e Sócrates, sendo que num determinado momento, Eutífron fala para o grande filósofo sobre: “esse daímõn (Soctpcov) que tu dizes ouvir a todo o momento”. (Cf. 1’LORIDO, Janice, (ed.). Platão. São Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1999, p.36). Na sua Apologia de Sócrates, I, Platão relata as seguintes palavras de seu mestre: “[...] uma inspiração que me vem de um deus ou de um gênio [daimõri] [...] é uma voz que se produz e, quando se produz, sempre me desvia do que vou fazer, nunca me estimula. Ela é que me obstrui a atividade política”. (Cf. FLORIDO, Janice, (ed.). Sócrates. [Tradução de Enrico Corvisieri], Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. São Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1999, p.59). Já Xenofonte, em seus Ditos <• Feitos Memoráveis de Sócrates, Livro I, diz que “corria a voz, ateada pelo próprio Sócrates, de que o inspirava um demônio [daimõn]”, e ainda: “Sócrates falava o que sentia, dizendo-se inspirado por um demônio \daimõn\. E de acordo com as revelações desse demônio [daimõn] aconselhava aos amigos o fazer certas coisas, o abster-se de outras. Só tinham a ganhar os que ouviam”. (Cf. FLORIDO, Janice, (ed.). Sócrates. [Tradução de Mirtes Coscodai], Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. São Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1999, pp.79,80). 77 CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I termo aparece no NT, fazendo referência à “força sobrenatural do mal”, o “demônio”.112 Baseei todo o item no verbete Saípmv, in: MALHADAS, Daisi, DEZOTTI, Maria Celeste Consol in & NEVES, Maria Helena de Moura, (orgs.). DGP. Cotia, Ateliê Editorial, 2006, p. 194. 1 1 T Cf. THAYER, Joseph Henry. Satpovi^opat, in: GELNT, p. 123. 114 Cf. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R., SaipovíÇopai, in: IGEL, p. 171. Para obter uma interpretação tríplice sobre o significado da possessão demoníaca no Antigo Israel, consulte: WILSON, Robert R. Profecia e Sociedade no Antigo Israel. [Tradução de João Rezende Costa]. São Paulo, Targumim / Paulus, 2006, pp.53-64. Já para uma ampla discussão sobre a possibilidade de a possessão demoníaca ocorrer também em cristãos, veja: DICKASON, C. Fred. Demom Possession & the Christian. Wheaton, Crossway Books, 1993, pp.73-213 e também o artigo que escrevi a respeito, em: VAILATTI, Carlos Augusto. Cristãos Genuínos Podem Ser Possuídos por Demônios? São Paulo, Publicação do autor, 2010. Disponível na internet no seguinte endereço eletrônico: http://www.artigocientifico.tebas.kinghost.net/artigos/?mnu=l&smnu=5&arti go=3320. e) Por fim, passemos os nossos olhos brevemente sobre o vocábulo SaipovrÇopai {daimonízomai),“estar sob o poder de um demônio”. Ele ocorre com tal significado em Filemon, o cômico (330 a.C.); e referindo-se a alguém que é “insano” ou “demente”, aparece em Plutarco (45-125 d.C.). Embora esta concepção de daimonízomai em Plutarco esteja situada em uma época bem posterior à do Período do Grego Clássico (ele foi contemporâneo dos apóstolos Paulo e João, por exemplo), contudo, é importante citá-la aqui, pois se trata da opinião de um não- cristão sobre o vocábulo. Esta opinião é interessante, uma vez que na época do NT, daimonízomai já significava “estar possuído por um demônio ou espírito maligno”. 113 114 78 http://www.artigocientifico.tebas.kinghost.net/artigos/?mnu=l&smnu=5&arti SA + ANÁS, DEmèNieS £ LEGIé Bem, terminados estes breves, mas indispensáveis apontamentos, a respeito dos termos ligados direta ou mdiretamente à figura do “demônio” no período do Grego ('lássico, vejamos agora a figura dos demônios na LXX. 1.2.5. Os Demônios na LXX115 Baseio-me em: RAHLFS, Alfred. Septuaginta. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1979. 116 GRAYBILL, John B., Septuagint, in: TENNEY, Merril C. (ed.). ZPBD, p.771. Uma vez que a LXX foi escrita aproximadamente entre o 111 e o II Séculos a.C., logo, me parece ser bastante óbvio mencioná-la depois do período do Grego Clássico, o qual a antecede cronologicamente. Sabemos da tamanha influência que a LXX exerceu sobre os escritores do NT, pois, quando o NT cita o AT, como ele freqüentemente o faz, a forma da citação muitas vezes segue a LXX.116 Ao analisarmos essa tradução grega do AT, incluindo os livros apócrifos, nós poderemos encontrar mais de uma dezena de referências feitas aos demônios. Então, vejamos tais ocorrências seguindo a ordem seqüencial em que aparecem nos livros na Bíblia. Em Dt 32.17, a LXX traduz o hebraico □’’’W (shêdim) pelo grego ÔccLgovíoiç (daimoníois), dizendo: “Sacrifícios ofereceram aos demônios, não a Deus [...]”. (ARA). No livro apócrifo de Tobias, nós podemos encontrar referências ao termo “demônio”, pelo menos em duas ocasiões. Em Tb 3.8 lemos sobre: Ao|ioôauç to irovripòv’ ôatpóvtov (Asmodaus tòponêròn daimónion), isto é, “[...] Asmodeu, o pior dos demônios”. (BJ)', e Tb 6.8 fala a respeito de um ôaLpóinov tj TTVfôpa irouripóv (daimónion êpneüma ponêrón), ou seja, “[...] um demônio ou [...] um espírito mau [...]”. (BJ). Este último 79 CARL©S AUGUS+® VAILA + +I texto de Tobias nos será muito útil mais adiante, quando fizermos nossas considerações acerca dos exorcismos, pois ele está situado dentro do contexto de uma narrativa sobre uma prática exorcística. No SI 90.6 (LXX), [SI 91.6 em nossas versões], a expressão ôctipovíou peoripppivoô (daimoníou mesêmbrinoú), “do demônio do meio-dia”, traduz o hebraico “1W^ □ÇOjp (qeteb yãshüd tsãhârãyim), “destruição que ataca ao meio-dia”. Embora já tenhamos citado esse verso anteriormente em seu contexto original hebraico e já tenhamos dito, inclusive, que tal “destruição que ataca ao meio-dia” possa se referir a um demônio de um só olho, o que chama a nossa atenção aqui é o fato da Septuaginta provavelmente estar demonizando um fenômeno natural, isto é, a LXX demoniza as altas temperaturas existentes nas regiões desérticas, em função do mal-estar que estas deveríam causar até mesmo em seus habitantes mais acostumados com esse tipo de clima.117 A meu ver, a expressão encontrada na LXX, “do demônio do meio-dia”, pode ser uma referência demonizadora feita ao clima quente. Sabe-se que há na Palestina uma corrente de ar seca e quente que procede do deserto da Arábia (leste), chamada siroco, que é tão quente e seca que, quando prevalece, queima toda a plantação. Além disso, no Vale do Jordão, ao mesmo tempo em que os termômetros marcam no inverno em média 25°, no verão eles podem marcar 45° à sombra. (Cf. RONIS, Osvaldo. Geografia Bíblica: contribuição para o estudo de geografia histórica das terras bíblicas. Rio de Janeiro, Juerp, 1999, p.61). No SI 95.5 (LXX), [SI 96.5 em nossas versões], encontramos escrito: õrt irávreç oí 9eoi rcòv èQvwu ôat|j.óma ò ôè KÚpioç touç oúpavouç cttoÍt|O6v (hoti pántes hoi theoi tõn ethnõn daimónia, ho dè kyrios toüs ouranoüs epoíèseri), “porque todos os deuses dos povos [são] demônios, mas o Senhor fez os céus”. Aqui, a LXX traduz o termo hebraico (’élilim), “ídolos”, “vãos”, por õaipóuia {daimónia), “demônios”! Em outras palavras, os judeus de Alexandria, ao traduzirem este 80 SA+ANÁS, DEffl®NI®S E LEGIî trecho do Salmo para o grego, acabaram demonizando de uma Ibrma geral todas as divindades pagãs, isto é, toda forma de 118politeísmo! No SI 105.37 (LXX), [SI 106.37 em nossas versões em português], o salmista declara: Kai. eOunav rouç uloòç aúrtôv' mu ràç QuyaTépaç aÓTWV tolç ôaipovíoiç (kai éthysan toüs huioüs autõn kai tàs thygatéras autõn tois daimoníois), “e sacrificaram os seus filhos e as suas filhas aos demônios”. Aqui a LXX traduz novamenteo vocábulo hebraico D* 1*W (shêdim) pelo grego õaipoiúoiç (daimoníois). 118 Acredito serem oportunas aqui as palavras de Keel: “o homem do Antigo Oriente Próximo, assim como o homem de qualquer época, tinha seus próprios inimigos totalmente particulares [Ou seja, os inimigos e as suas crenças eram demonizados]”. (Cf. KEEL, Othmar. La Iconografia dei Antiguo Oriente y el Antiguo Testamento. \BCBO\. [Traducción de Andrés Piquer], Madrid, Editorial Trotta, S.A.,2007, p.75). 1 19 A BJ segue o hebraico e traduz: “os bodes ali dançarão”. Já a ARC e a ARA seguem o significado mais mitologizado do vocábulo seirim, trazendo: “e os sátiros pularão ali”. 1"° Relembro aqui as palavras de Unger: “A tradução de seirim em ambas as passagens [i.e., Is 13.21 e 34.14] por daimónia é conclusiva de que os judeus de Alexandria consideraram-nos serem demônios”. (Cf. UNGER, Merril F. Biblical Demonology, p.60). Em Is 13.21, a LXX traduz o termo hebraico DTiltS (se'irim) pelo grego ôaipóvia (daimónia), dizendo: Kai oaipónia (km òp/fiooiuai. (kai daimónia ekeí orchêsontai), “e os demônios ali dançarão”.119 Em Is 34.14, a LXX traduz mais uma vez o termo hebraico (sã’ir), “bode” (forma singular de se’irim, “bodes”) como ôatpóvLa (daimónia), “demônios”, na forma plural.120 No livro do profeta Isaías nós ainda encontramos mais duas referências aos demônios. A primeira delas, em Is 65.3, é particularmente enigmática, pois o verso diz: “povo que de 81 CAR.L®S AUGUS+® VA1LA + +I contínuo me irrita abertamente, sacrificando em jardins e queimando incenso sobre altares de tijolos” (X7L4). É interessante notar que tanto a ARA quanto a ARC concluem o verso com a palavra “tijolos” (o que também faz a BJ, mas utilizando a palavra “lajes” em vez de “tijolos”). Todavia, a LXX estranhamente dá continuidade ao verso, acrescentando ainda depois da palavra “tijolos”, a frase: tolç ôaqj.ovíoi,ç a ovk eoTLv (tois daimoníois, hà ouk éstin), ou seja, “aos demônios, que não são [existem]”! É curioso observar este acréscimo feito, o qual simplesmente desmoraliza e rebaixa a figura dos demônios, uma vez que eles “não são [existem]”. Já em Is 65.11, a LXX utiliza a palavra ôaíjiovt (daímoni), “demônio”, como tradução do vocábulo hebraico *13 (gad), “sorte”. Ao que tudo indica, Gade aqui deve ser uma divindade da sorte, cujo significado equivale ao da deusa grega Tique. O ritual descrito no verso onze é o lectisterium, ou seja, um rito segundo o qual a comida era espalhada diante da imagem da divindade.121 HAMILTON, Victor P„ gad, in: HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.246. A BJ traz uma nota referente a este verso, segundo a qual Gad é apontado como o “deus arameu da fortuna”. Por fim, queremos fazer duas últimas menções aos demônios na LXX. Elas aparecem no livro apócrifo de Baruque. Em Br 4.7, o autor faz os seguintes comentários referentes a Israel: “pois havíeis exasperado a quem vos fez [Deus] sacrificando a Saipovíoiç kcíl ou Qrcô (Jafrncwioís kai ou theõ) “demônios e não a Deus” (BJ). E em Br 4.35, o autor fala sobre a redenção de Jerusalém e a respeito do castigo que sobreviría sobre os povos e cidades que a oprimiram. Sobre estes últimos o texto diz: “pois um fogo lhe advirá da parte do Eterno por longos dias, e ela será habitada virò ôaqiovícov tòv trÀfíova Xpóvov (hypò daimoníõn tòn pleíõna chrónon) “por demônios durante muito tempo” (BJ). 82 SA + ANÁS, DEfTl©NI®S E LEGIé Assim, concluímos a nossa abordagem feita sobre os demônios na LXX, e, em vista do que dissemos acima, cinco observações são importantes. Primeira, a LXX sempre traduz o vocábulo shêdim por daimoníois (cf. Dt 32.17; SI 105.37 | LXX]). Segunda, a LXX é a única a fazer uma referência a um daimónion dentro de um contexto que descreve um ritual de exorcismo nos apócrifos (cf. Tb 6.8). Terceira, a LXX parece demonizar o sol quente da Palestina (cf. SI 90.6 [LXX]; compare com o SI 121.6a: “De dia não te molestará o sol [...]”, o qual é seguido pelo v.7a, que diz: “O Senhor te guardará de todo D"J (rãr) mar [+Í7M]). Quarta, a LXX demoniza claramente todos os deuses pagãos (cf. SI 95.5 [LXX]; Is 65.11). E a quinta e mais surpreendente de todas as observações, a LXX acrescenta uma referência aos demônios, onde o texto hebraico simplesmente não diz nada a esse respeito (Is 65.3)! Em suma, a LXX, por meio de sua leitura e conseqüente tradução tendenciosamente demonológicas, contribuiu signifícativamente para a criação de uma base sólida intertestamentária para a fértil crença demonológica que surgirá no período do NT. A seguir, falaremos sobre a crença em demônios no I século d.C. 1.2.6. Os Demônios no I Século d.C. O I século d.C. é especialmente relevante para a nossa pesquisa a respeito dos demônios, pois é dentro desse período que os acontecimentos narrados em Mc 5.1-20 se descortinam. Ou melhor ainda, é dentro desse período também que toda a atividade exorcística de Jesus, como relatada principalmente nos sinóticos, se desenvolve. Portanto, é absolutamente indispensável que tracemos aqui o perfil da crença demonológica desta época, a fim de que obtenhamos êxito em nossa compreensão posterior da citada passagem marcana. 83 CARL©S AUGUS + ® VAILA + +I E para que alcancemos o nosso objetivo, nos valeremos de algumas citações demonológicas encontradas em duas personagens da história antiga em particular: Filo, de Alexandria e Flávio Josefo. Em seguida, veremos tais menções no próprio Novo Testamento. a) Filo, o Judeu (c. 20 a.C. - 42 d.C.)122 122 Filo foi um “filósofo judeu que misturou o pensamento veterotestamentário com o estoicismo e o platonismo gregos. Muito da primitiva pregação da Bíblia foi influenciada por sua obra”. (Cf. ERICKSON, Millard J. Conciso Dicionário de Teologia Cristã. [Tradução de Darci Dusilek e Arsenio Firmino de Novaes Netto], Rio de Janeiro, Juerp, 1995, p.69). 123 PIKE, Edgar Royston. Diccionario de Religiones. [Adaptación de Elsa Cecilia Frost], México, Fondo de Cultura Econômica, 2001, p. 190. 124 KITTEL, Gerhard, (ed.). TDNT. Vol.II. [A- H], p.9. Filo cria em um Deus que é Espírito puro e em uma multidão de forças divinas, demônios ou anjos, os quais cumprem as suas ordens.123 Todavia, esta conjunção indicativa de incerteza, “ou” (anjos ou demônios), é que particularmente nos interessa. A demonologia de Filo é caracterizada pelo fato de que ele considera todo o cosmos como tendo espíritos. Ele designa o ar como a residência dos Saípoveç (daímones), “demônios”. Para ele, anjos e demônios são seres do mesmo caráter, ainda que somente alguns, à distância do que é terrestre, sejam usados por Deus como mensageiros, enquanto que outros se tornam homens de diferentes classes. Assim, Filo descansa na tradição helenística, compartilhando sua terminologia como contrária à bíblica e igualando anjos e demônios.124 Filo emprega o vocábulo Socípcov {daimõn), “demônio”, em vários contextos. Mencionaremos aqui apenas alguns. Ele utiliza o termo, por exemplo, com o significado de “destino” e 84 SA + ANÁS, DEfflfBNlffiS £ LEGIî também usa a palavra para se referir a um “espírito protetor”, ou àyaOon Saípovoç (agathoú daímonos), “do bom demônio”. Além disso, o termo ainda era usado por ele para se referir a “divindades menores”, Saípovocç ÈvoAíovç (daimonas enalíous), “demônios dos mares”. Por fim, os manes de uma esposa assassinada também são chamados ôaípoveç (daímones), “demônios”.123 * 125 123 KITTEL, Gerhard, (ed.). TDNT. Vol.II. [A-H], p.9. De acordo com Antônio Geraldo da Cunha, os manes eram as “almas dos mortos, divindades infernais que os romanos invocavam sobre as sepulturas”. A palavra é uma substantivação da palavra latina manis, “bom, benévolo, favorável”. (Cf. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira S/A, 1982, p.495). 126 CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. [Tradução de João Marques Bentes].Vol. 2. [D-G]. São Paulo, Editora Hagnos, 2001, p.766. 127 Baseio-me aqui principalmente no artigo “Sottpcov in Josephus and Philo” de FOERSTER, W. in: KITTEL, Gerhard, (ed.). TDNT. Vol.II. [A-H], p.10. Em vista do que escrevemos nestas poucas linhas acima, nos parece, de fato, que Filo procurou combinar a erudição filosófica com a fé dos hebreus.126 No entanto, tal amálgama resultou numa espécie de ambivalência demonológica, na qual anjos e demônios são vistos como pares. Vejamos, porém, o que outra importante personagem do I século d.C., ou seja, Josefo, tem a nos dizer sobre o assunto. b) Flávio Josefo (c. 37-100 d.C.)127 85 CARLOS AUGUS + © VAILA + + I Flávio Josefo,128 assim como Filo, também se move no mundo dos costumes e das concepções helenísticas, mas com uma impressionante exceção. Para ele, o adjetivo Satpóvioç (daimónios) significa “terrível”. Ele fala, por exemplo, sobre um cmpcjiopà Soapóvtoç (symphorà daimónios), “terrível acidente” (terremoto), em Guerras Judaicas, I, 373. Somente em relação a Saul, Josefo fala de um Ôatpóvtov Kveôpa {daimónion pneúma), “espírito terrível”, em Antiguidades Judaicas VI, 214, aproximando-se assim do costume dos Rabis da Palestina. Tò Saipóviov (Tò daimónion) é usado geralmente para se referir ao “divino” em Contra Ápio, II, 263 e Guerras Judaicas, 1, 69. Aocípcov (Daimõn) pode ser usado para uma “desgraça individual” em Vida, 402, e para “destino” em Guerras Judaicas, I, 628. Aaípoveç (Daímones) são “espíritos dos mortos”, e certamente dos santos mortos, em Guerras judaicas, VI, 47 - um discurso de Tito a seus soldados. Eles são também os espíritos dos mortos que procuram vingança, em Antiguidades Judaicas, XIII, 317. A concepção romana dos manes é emprestada, assim como em Filo com sua referência aos SocíipovEç (daímones), de um só indivíduo, em Antiguidades Judaicas, XIII, 416. Aaípcov (Daimõn) é usado para o espírito protetor cm Antiguidades Judaicas, XVI, 210. Somente uma vez Josefo chama os demônios de Satpoveç (daímones), em Antiguidades Judaicas, VIII, 45; em outro lugar eles são chamados sempre Satpóvta (daimónia). Josefo menciona demônios no discurso da depressão de Saul, que ele atribui aos Socipóviot (daimónia'), Antiguidades Judaicas, VI, 166,168 e 211. Josefo também os menciona em relação ao poder mágico de Salomão, com o qual amarra os demônios que têm a sua 128 Flavio Josefo é o seu nome latino (Flavius Josephus). Seu verdadeiro nome (judaico) era Yoseph ben Mattityahu. (Cf. FITTIPALDI, Mário, (ed.). Seleções de Flávio Josefo. [Tradução de Vicente Pedroso]. São Paulo, Edameris, 1974, p.7). 86 SA + ANÁS, DEFT1©NI©S E LEGIé habitação nos homens e os expulsa, Antiguidades Judaicas, VIII, 45-48. Em todo caso, porém, Josefo é impressionantemente coerente em chamar os espíritos malignos ôatpóvta (daimónia), embora ele use ôatpcov (daímõn) no sentido helenístico. c) O Novo Testamento No NT o vocábulo Saípcov (daímõn) ocorre somente em Mt 8.31, e no plural, SaípovEç (daímones), “demônios”, no contexto da passagem sobre os endemoninhados gadarenos.129 Por outro lado, nós encontramos constantemente o termo Ôoapóviov (daimónion), o qual é relatado sessenta e três vezes ao todo na literatura neotestamentária.130 A grande maioria destas referências (53) se encontra nos Evangelhos: Mateus (11), Marcos (13), Lucas (23), João (6). As outras dez referências estão distribuídas entre Atos (1), 1 Coríntios (4), 1 Timóteo (1), Tiago (1) e Apocalipse (3).131 Esses dados são muito importantes, pois através deles ficamos sabendo que pouco mais de 84% das ocorrências do termo daimónion no NT estão concentradas apenas nos Evangelhos. Enquanto que nos Evangelhos parece haver uma verdadeira epidemia demonológica generalizada (através das várias possessões Aparentemente, os judeus evitaram usar o termo Saípcov porque ele estava associado muito proximamente com os “elementos religiosos positivos” dos pagãos. (Cf. SMITH, Charles R. The New Testament Doctrine of Demons. GJ. Vol. 10, n°2. Winona Lake. Grace Theological Seminary Press, 1969, p.26). 130 BIETENHARD, H„ Satpóvtov, in: BROWN, Colin, (ed.). NIDNTT. Vol.l.[A-F], p.452. 131 Cf. Satpóvtov, in: BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). Diccionario Exegético del Nuevo Testamento. Vol.l. [cc-k], [Traducción de Constantino Ruiz-Garrido]. Salamanca, Ediciones Slgueme, 2005, p.815. 87 CARL©S AUGUS+® VAILA + + I demoníacas, exorcismos e curas de doenças atribuídas a demônios), a qual se alastra por cada uma de suas páginas, no restante do NT, contudo, tal epidemia é “minimizada” e “controlada”. Isto quer dizer que, se quisermos compreender a demonologia neotestamentária de forma mais profunda, temos que nos deter no estudo dos Evangelhos, onde a proliferação demoníaca ocorre em larga escala. Além disso, é relevante mencionar que em todo o Novo Testamento se fala do demônio, sob os seus mais variados nomes, cerca de 511 vezes.132 Isto nos dá uma idéia da importância que o tema tem para o NT, contrastando claramente com o que ocorre no AT. Sendo assim, simplesmente dizer que o assunto “demônio” é algo periférico na fé cristã não é correto. Seria mais adequado dizer que não é o tema central, mas uma verdade, mesmo não sendo central, pode ser essencial.133 132 x t r f .SAYES, José Antônio. El Demonio, Realidad o Mito? Madrid, San Pablo, 1997, p.48. I 33 Idem, Ibidem, p. 168. 134 BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [oc-k], p.816. Além do termo Saiqóviov {daimónion), encontramos também algumas expressões sinônimas, dentre as quais destacamos uveuga {pneúma), “espírito” (especialmente, riveopa àKá0apxov [pneúma akátharton], “espírito impuro” e nvebpa Ttoi/qpóv [pneúma ponerón], “espírito maligno”) e ainda áyyeXoç (toô ôiocpóÀoü), ángelos {toü diahólou), “anjo (do diabo)” que ocorre com menor freqüência.134 * Diferentemente do que vimos até agora, aos poucos, vemos delineada uma nova figura do demônio no Novo Testamento, bem distinta daquela desenhada, por exemplo, durante o Período do Grego Clássico. No NT, o demônio já adquire um caráter essencialmente maligno. Aliás, como bem escreveu Van Der Loos: “Gradualmente o abismo entre 88 SA + ANÁS, DEm©Nl©S E LEGIî divindade e demônio foi-se alargando. O Judaísmo, o Cristianismo e o Islã só vêem no demônio uma força inimiga de Deus e do homem. Da mesma maneira que o anjo, como espírito bom, pertence ao reino da luz, ao Reino de Deus; o demônio '135 pertence ao reino da escuridão, ao reino de Satanás”. Não é nossa intenção fazer aqui um inventário detalhado de todas as passagens neotestamentárias que fazem alusão ao(s) demônio(s), contudo, iremos vê-las, como um todo, em blocos, como segue: 1) Nos Sinóticos e em Atos; 2) No Corpus Paulinum; 3) Nos Escritos Joaninos; e 4) Nas Epístolas Gerais (excluindo-se as três epístolas de João). 1) Nos Sinóticos e em Atos *137 LOOS, H. Van Der. 7%e Miracles of Jesus, in: Novum Testamentum, Suplementos, Tomo IX, Leiden, Brill, 1965, p. 341. Apud: QUEVEDO, Oscar G. Antes que os Demônios Voltem. São Paulo, Edições Loyola, 1997, pp. 266,267. Para obter outras informações sobre a atividade demoníaca no NT, veja: RUANO, Argimiro. La Carne de Jesús: el mistério de su encarnación. Burgos, Editorial Monte Carmelo, 2003, pp. 163-167. 137 Incluí Atos neste bloco pelo fato de sua autoria ser tradicionalmente atribuída a Lucas. Sendo assim, como Atos é visto como o segundo volume da obra “Lucas-Atos”, é natural inserí-lo neste conjunto. Tais itens são baseados parcialmente no verbete Satpóvtov, in: BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.j. DENT. Vol.l. [a- k], pp.817-822. 1 39 Como declarou Michael Brown com muita propriedade: “O ministério de cura de Jesus está intrinsecamente ligado ao ministério de libertação dos 89 A partir de uma leitura dos Evangelhos sinóticos, nós podemos fazer, dentre outras, as seguintes constatações demonológicas em seu caráter geral:138 1) Os inúmeros testemunhossobre o Satpóvtov (daimónion) se encontram, em grande parte, nos relatos acerca das curas miraculosas realizadas por Jesus (p.ex., Mc 1.23-28; 3. 23-27; 9.14-29; Lc 4. 40,41; Mt 9.32-34);139 2) O termo Satpóvtov (daimónion) é empregado no CARL®S AUGUS + ffi VAILA + +1 lugar de Tiveôqa (pneúma) algumas vezes e, mais freqüentemente, no lugar de nvevpa àKá0apxov (pneúma akáthartori) (cf. Mc 7.25,30; Lc 10. 17, 20); 3) É inquestionável o fato de que o Jesus histórico atuou como médico e exorcista itinerante. Assim como seus contemporâneos, ele atribuía a demônios a causa das enfermidades do corpo e da mente. Logo, a cura consiste na expulsão do(s) intruso(s) (cf. Mt 12.43-45; Mc 7.26; Lc 11.14); 4) Através dos métodos exorcísticos da medicina antiga, Jesus cura diversos tipos de enfermidades (Lc 7.21; Mc 9.14-29; Lc 13.10-17); 5) As expulsões de demônios e as curas de várias doenças são vistas como a mesma coisa para o homem daquela época (Mc 1.32-34); 6) Embora apresentem, em geral, uma certa resistência no início, os demônios têm que ceder diante do comando de expulsão ordenado por Jesus (Mc 1.24s; Mc 5.7); 7) As esperanças escatológicas do judaísmo antigo se cumprem na vitória de Jesus sobre os demônios (Mc 3.27; Lc 13.32; Mc 9.38-40); 8) Jesus reconhece a legitimidade dos exorcistas judeus e chega até mesmo a permitir que um estranho expulse demônios em seu nome (Mt 12.27; Lc 9.49s); 9) O cristianismo primitivo atribui seus exorcismos de efeito curativo à capacidade concedida por Jesus aos seus discípulos para expulsar demônios (Mt 10.1; Mc 13.14,15); 10) Os demônios são concebidos como seres pessoais (Mc 1.24,34; 3.11; 5.7); 11) Certos comportamentos anormais são atribuídos à ação direta dos demônios sobre o indivíduo possuído (Mc 1.26; Lc 8.29); 12) Nos Evangelhos sinóticos é comum encontrar a confissão de fé na vitória escatológica de Jesus sobre o universo demoníaco (Mt 25.41; 28.18 etc). Já o livro de Atos emprega uma única vez o vocábulo Satpóviov (daimónion), no episódio em que os atenienses que demônios, e as doenças estão freqüentemente associadas com o poder satânico nos Evangelhos”. (Cf. BROWN, Michael L. Israel 's Divine Healer. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1995, p.227). 90 SA+ANÁS, DEméNieS Ê LEGIî escutam a Paulo e o vêem como um kocijocyyeáeòç140 (katangeleüs) “pregador” de estranhos Saipovícov (daimoníõrí) “deuses” ou “divindades” (At 17.18). Nesta passagem, o termo aparece sem conotações negativas (cf., porém, 1 Co 10.20s), referindo-se a uma divindade pagã. Aliás, quando Paulo chama aos atenienses SeioiôaipovéaTspot (deisidaimonésteroí), ele está, na realidade, elogiando sua “religiosidade” (At 17.22; cf. At 25.19, SeioiSatpovia [deisidaimonía\, “religião”). | Essa expressão é um hapax legomenon, ocorrendo somente aqui em todo o Novo Testamento. 141 BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [oc-k], p.822. Estes itens acima catalogados, embora não reflitam todas as nuanças demonológicas encontradas nos sinóticos e em Atos, nos dão, contudo, a dimensão da importância da figura do demônio nestes livros. 2) No Corpus Paulinum O apóstolo Paulo emprega o termo Satpóvtov (daimónion) em apenas uma única passagem, mas o menciona quatro vezes (cf. 1 Co 10.20,21). Para Paulo não é apenas o gentil que oferece sacrifícios aos ôatpoviotç (daimoníois) (1 Co 10.20), ou seja, aos seus deuses (cf. Dt 32.17), mas também o cristão que participa dos banquetes cultuais pagãos, se entrega à esfera dos Satpovícov (daimoníõn), isto é, aos deuses dos gentios (1 Co 10.21).141 Segundo Bultmann, algumas expressões encontradas nos escritos paulinos, tais como, “principados, potestades, dominações, príncipes deste mundo, deus deste século etc” (Rm 8.38; Cl 1.16; 1 Co 2.6; 2 Co 4.4) são termos mitológicos derivados do gnosticismo. E ele ainda completa, dizendo que 91 CARL©S AUGUS + ffi VAILA + +I não há razão para duvidar que os cristãos primitivos reconheceram estas forças como seres demoníacos reais.142 BULTMANN, Rudolf. Primitive Christianity: in its contemporary setting. [Translated by R. H. Fuller], New York, Living Age Books, 1959, p.190. Segundo Richardson, “os pregadores cristãos encontraram no mundo grego a crença numa variedade de legómenoi theói, os assim chamados deuses, que Paulo [...] considerava daimónia (1 Co 8.5; 10.19-21). Mas além desses que eram adorados nos cultos pagãos, havia também espíritos elementares que personificavam forças da natureza, verdadeiros governadores do kósmos”. (Cf. RICHARDSON, Alan. Introdução à Teologia do Novo Testamento. [Tradução de Jaci Correia Maraschin], São Paulo, Aste, 1966, p.211,212). 143 É curioso notar que enquanto nos sinóticos os relatos sobre exorcismos superabundant em João não há referência a um único caso de exorcismo. Contudo, tal “silêncio exorcístico joanino” não quer dizer que João não 92 Contudo, Paulo segue dizendo que os demônios das crenças populares judaicas são os áyyEÀoi (ángeloí) contra concupiscência (cf. Gn 6.2) dos quais o apóstolo pede que as mulheres cubram sua cabeça como sinal de e^oooía (eksousíd), “poder” (1 Co 11.10). Um áyyEXoq (ángelos) de Satanás atormenta a Paulo com uma enfermidade (2 Co 12.7). O próprio Satanás destruirá a quem vive em incesto (1 Co 5.5; cf. 1 Tm 1.20). Ainda que os demônios continuem exercendo sua obra de sedução (Ef 2.2), eles devem continuar sendo combatidos pelos cristãos (Ef 6.12) e o temor aos demônios desaparece através da confiança no amor de Deus em Cristo Jesus (Rm 8.38s). Além disso, desde agora Deus tem despojado os demônios radicalmente de seu poder, por meio da morte, ressurreição e exaltação de Jesus e os tem submetido ao poder do Seu Filho (1 Co 15.24-28; F1 2.9s; Cl 2.10,15; cf. Ef 1.20-22; 4.8-10; Hb 2.8,14). O batismo nos faz participantes do senhorio de Jesus sobre os demônios (Cl 2.10-15; cf. Rm 6.3-11). Por fim, os cristãos se assentarão algum dia no divino tribunal para julgar aos “anjos”, ou seja, aos demônios (1 Co 6.3). 3) Nos Escritos Joaninos143 SA + ANÁS, DErtlêNieS E LEGIé No quarto Evangelho, Jesus é acusado freqüentemente pelos judeus de estar possuído por um ôaipóviov (daimónion) (cf. Jo 7.20; 8.48,52; 10.20). Em outras palavras, ele mesmo é “demonizado” pelos seus próprios conterrâneos, pelo fato de seu ensino e suas obras entrarem em choque frontal contra a ideologia judaica, representada, sobretudo, pelos fariseus e saduceus. Aliás, embora os relatos sobre exorcismos estejam estranhamente ausentes no evangelho de João, esse autor, porém, é o único dos evangelistas a descrever uma “possessão demoníaca” (ou melhor dizendo, “possessão satânica”), a qual é realizada pelo próprio Zaxavâç (Satanás) em um indivíduo, mais precisamente falando, em Judas (Jo 13.2, 26,27). O texto parece sugerir uma espécie de possessão que ocorre em dois estágios durante a última ceia: primeiro, o diabo lança [ftepÀ.r|KÓi:og (beblekotos), “tendo lançado”] no coração de Judas que traia a Jesus (v.2); e, segundo, após a aceitação de tal sugestão diabólica, Satanás então EÍo-qÀôev (eisêlthen), “entrou” nele (v.27).144 Além disso, é curioso notar o uso dos termos StápoXoç (v.2) e Soccavâç (v.27), os quais são utilizados de forma intercambiável para se referir ao mesmo ser que possui o corpo de Judas Iscariotes, isto é, o Maligno.145 levasse a sério tais casos de possessão demoníaca, os quais eram tão comuns em seu tempo. 144 C.H. Dodd sugere que João, utilizando a narrativa de Marcos, pode ter transferido o aspecto interior e espiritual da situação imediatamente anterior à traição de Judas (como descrita em Marcos), para o contexto dos discursos da Última Ceia. (Cf. DODD, C.H. A Interpretação do Quarto Evangelho. [Tradução de José Raimundo Vidigal], São Paulo, Teológica / Paulus, 2003, p.526). 145 Este caso sui generis no qual o próprio Satanás possui o corpo de um homem ocorre num momento crucial da história, há apenas algunsdias da crucificação de Jesus. É intrigante notar que Satanás, no papel de “chefe dos demônios”, não delega a possessão de Judas a algum demônio subalterno, o que pode dar a entender que ele não queria correr o menor risco de fracassar em seu plano de conduzir Jesus ao Calvário. A magnitude da situação exigia 93 CAR.LSS AUGUS + ffi VAILA + +I Na primeira epístola joanina, os cristãos são atacados por entidades demoníacas, cuja atuação consiste em ensinar uma falsa doutrina, sobretudo, cristológica (1 Jo 4.1-3).* * * * * * * * * * * 146 João ainda afirma que contra o espírito do erro (1 Jo 4.6) e do Anticristo (1 Jo 4.3) se encontra o Espírito da verdade (1 Jo 4.6). Entretanto, deve-se tomar muito cuidado com os nvevpaixx (pneúmata), “espíritos” (1 Jo 4.1). perícia na sua execução. Sendo assim, o próprio “patrão” executa o serviço, sem delegá-lo a nenhum “operário”. Falhas seriam inadmissíveis neste maligno plano de entregar Jesus para ser crucificado. Portanto, quem melhor poderia realizar tal intento, senão o próprio Satanás? Todavia, o Maligno pensou erroneamente que, ao entregar Jesus para ser crucificado (tarefa que seria realizada por intermédio de Judas), estaria frustrando o plano redentor de Deus para a humanidade. Ele mal sabia que, ao fazê-lo, estaria justamente contribuindo para o cumprimento do plano redentor de Deus. (Note ainda que, segundo o mesmo João, não é Judas e nem tampouco Satanás quem entrega Jesus para ser crucificado, mas é o próprio Jesus quem se auto- entrega, cf. Jo 10.17,18)! 146 BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [oc-k], p.823. 147 Novamente, baseio-me no verbete Ôatpóvtov, in: BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [a-k],p.823,824. 148 Idem, Ibidem, p.823. No que se refere ao Apocalipse,147 148 148 este denomina ôaqióvux (daimónia) aos deuses pagãos (Ap 9.20) e identifica a divindade-mor grega, Zeus, com Satanás (Ap 2.13). Das bocas da trindade demoníaca (Ap 16.13), isto é, do dragão (Satanás, cf. Ap 12), da besta e do falso profeta, saem três espíritos imundos metamorfoseados em rãs. Trata-se dos Kveúpaia Saipovicov (pneúmata daimoníõn), “espíritos de demônios” que seduzem os reis terrenos para que venham para a guerra escatológica (Ap 16.14). Depois da derrota da Babilônia (Roma), os Saqiovia e os espíritos imundos habitarão em lugares em ruínas (Ap 18.2). Neste último caso, vemos que crenças populares judaicas se associam com as esperanças de uma apocalíptica cristã anti- 148romana. 94 SA + ANÁS, DEfflffiNI®S E LEGIé Aliás, deve-se dizer que muitas passagens do Apocalipse são entendidas somente no âmbito da demonologia judaica. Prova disso é que a queda dos anjos e das estrelas (cf. Gn 6.1-4; I En VI. 1-4) trazem os demônios à terra (Ap 8.10; 9.1; 12.4,9). O dragão, que de acordo com Ap 12.9 se identifica com a serpente, o diabo e Satanás, é, juntamente com seu séquito angelical, o oponente de Miguel e de seus anjos (Ap 12.7-9). O lugar de castigo dos demônios presos é o ápwaoç (abyssos), “abismo” (Ap 9.1; 20.1). O príncipe dos demônios é Abadom/Apoliom (Ap 9.11). Além disso, entre as figuras demoníacas acham-se os cavaleiros apocalípticos (Ap 6.1-8), que possivelmente devem ser entendidos como seres que trazem guerra, revolução, fome e pestilência (Ap 9.1-11).149 Porém, tal como o diabo, os demônios serão destinados algum dia para o fogo eterno (Ap 19.20; 20.10-14). Nogueira fala sobre “os demônios-soldados de Apocalipse 9”. (Cf. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. Experiência Religiosa e Critica Social no Cristianismo Primitivo. São Paulo, Paulinas, 2003, pp.221-238). 4) Nas Epístolas Gerais Por fim, as chamadas epístolas gerais (excluindo-se as epístolas de João, cf. acima) também abordam o antigo tema mitológico judaico (cf. Gn 6.1-4) da queda e prisão dos anjos que outrora foram desobedientes (1 Pd 3.19; 2 Pd 2.4; Jd 6,9). Vemos nesses escritos que os Saipóvia (daimónia) crêem em Deus e tremem diante dele (Tg 2.19), bem como, notamos também que através da ressurreição e ascensão de Jesus, os poderes espirituais bons e malignos se encontram a ele subordinados (1 Pd 3.21 s; cf. Ef 1.20s). Assim, concluímos este apanhado geral sobre os demônios no I século A.D., tomando como base os relatos de Filo, Josefo e o próprio NT. A seguir, consideraremos os exorcismos, sem o que não poderemos compreender 95 CARLOS AUGUS + ® VAILA + +I adequadamente a figura de Jesus em seu papel de exorcista e, principalmente, não poderemos interpretar apropriadamente o mais famoso caso de exorcismo do NT, situado em Mc 5.1-20 e paralelos. 1.3. Considerações Sobre Exorcismos Nosso objetivo nesse item é analisar a prática exorcística em seus mais variados contextos a fim de que, como dissemos acima, possamos ter um retrato adequado da figura de Jesus dentro de seu papel taumatúrgico como exorcista e também para que possamos situar a perícope que trata da cura do endemoninhado geraseno (Mc 5.1-20 e paralelos) dentro de seu pano de fundo apropriado. Para isso, consideraremos como testemunhas desses vários relatos de exorcismos: o Antigo Testamento (incluindo os Apócrifos); os Manuscritos do Mar Morto (II Séc. a.C. ao Séc. I A.D.); a Tradição Judaica; o Contexto Pagão; os Papiros Mágicos Gregos (PMG) (II Séc. a.C. ao V Séc. A.D.); e, por fim, o próprio Jesus, como figura paradigmática exorcistica.150 Para obter informações sobre relatos de exorcismos em tempos mais recentes, como, por exemplo, entre os séculos XVI e XVIII, confira o item exorcism, em: MUCHEMBLED, Robert. A History of the Devil: from Middle Ages to the Present. [Translated by Jean Birrell], Cambridge, Polity Press, 2003, p.337. 151 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p. 134. 1.3.1. Definindo o Termo Ao que tudo indica, não há um termo específico no hebraico bíblico que possa ser usado com o significado de “exorcismo”. Contudo, existe o vocábulo (’ãshap) que além de significar “astrólogo, encantador e necromate”, por exemplo, significa também “exorcista”.151 Todas as ocorrências deste termo encontram-se em Daniel (1.20; 2.2 [em hebraico]; 96 SA+ANÁS, DEm©N!©S E LEGIî 2.10,27; 4.4; 5. 7,11,15 [em aramaico]) e, além do mais, é provável que o termo seja um empréstimo da Babilônia, associado ao termo assírio shiptu, “conjuração”.152 153 Contudo, existe outro termo que também aparece em Daniel (2.27; 4.4; 5.7,11), o vocábulo "IT2 (gãzer), o qual, além de significar “adivinho”, também adquiriu o significado posterior de “exorcista” no texto de Qumrã. Aliás, como a raiz da qual este termo é derivado significa “decretar”, um gãzer é, portanto, aquele que exorciza decretando a expulsão do demônio. ’ Já no grego, nos deparamos com o verbo E^opKÍÇco (eksorkízo), que no grego ático significava “enviar para fora da fronteira, banir”.154 No NT, o verbo eksorkízõ significa basicamente “esconjurar” e o substantivo è^opKtavriç (eksorkistês), refere-se ao “que expulsa os espíritos”, “exorcista” (cf. At 19.13).155 Idem, Ibidem. 153 VERMES, Geza. Jesús, el Judio. [Traducción de José Manuel Alvarez Florez y Ângela Pérez], Barcelona, Muchnik Editores, S.A., 1984, p.73. Veja também: GESENIUS, H. W. F. GHCLOT, pp. 166,167. 154 Cf. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R., e^opidÇco, in: IGEL, p.276. 155 RUSCONI, Carlo. DGNT, p.179. 156 Guignebert também vê um fragmento de uma fórmula de exorcismo no texto aramaico de Jr 10.11, o qual está situado no meio do texto hebraico. Esse autor traduz assim esse verso: “Eis aqui como lhes falarei: os deuses que 1.3.2. Exorcismos no AT e nos Apócrifos Já dissemos anteriormente que tanto os demônios como também os próprios exorcismos foram, ambos, “exorcizados” das páginas do AT e banidos para bem longe. Dissemos ainda que este fato é bastante óbvio, pois, não havendo demônios, conseqüentemente não haverá também exorcismos a serem efetuados. Portanto, os dois únicos relatos sobre exorcismos, um encontrado em 1 Samuel e o outro encontrado no livro apócrifo deTobias, nos são particularmente preciosos.156 Devido, então, 97 CARLGS AUGUS+® VAILA + + I a toda essa enorme “lacuna exorcística” - se é que podemos assim denominar essa estranha ausência de exorcismos no AT - parece-nos apropriado nos determos um pouco mais nestas poucas passagens bíblicas que tratam do assunto. a) Davi Exorciza o Espírito Maligno que Atormenta Saul No contexto de 1 Sm 16.14-23, mais precisamente no verso 23, lemos o seguinte: “E sucedia que, quando o espírito maligno, da parte de Deus, vinha sobre Saul, Davi tomava a harpa e a dedilhava; então, Saul sentia alívio e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele” (ARA). É interessante observar que 1 Sm 16.14 fala sobre o niTT’ FIKE (rüah-rã'â mê’êt yehwãh), “espírito maligno, da parte do Senhor”. Aqui, a preposição mê’êt significa “proveniente de, da parte de, de”.157 Tal significado nos traz novamente à memória o fato de que a religião monoteísta israelita foi a grande responsável por este conceito ambivalente de Deus. Ou seja, se há um único Deus, então tanto o bem quanto o mal (neste caso, o “espírito maligno”) só podem advir dele. O texto diz ainda que o espírito maligno vinha (’el), “sobre, para dentro de” Saul (v.23). A LXX traz aqui a preposição feni (epi) que conserva basicamente os mesmos significados. Tais preposições são indicativas de que Saul estava não têm feito o céu e a terra serão exterminados da terra e de debaixo do céu”. (Cf. GUIGNEBERT, Charles. El Mundo Judio Hacia Los Tiempos de Jesus. [Tradução de Vicente Clavel], México, Unión Tipográfica Editorial Hispano-Americana, 1959, p.99). 157 DAVIDSON, Benjamin. AHCL, p.54. 98 SA+ANÁS, DEmêNieS £ LEGIî possuído pelo espírito maligno.158 Contudo, após Davi dedilhar a harpa (provavelmente tocando e cantando algum salmo), a I ,XX diz que o espírito maligno à^íaimo àrc’ abron (aphistato ap’ autoü), isto é, “afastava-se dele”, ou ainda, “deixava de ocupá-lo”. Tal frase indica claramente a libertação demoníaca de Saul. 158 Segundo Klaus Berger, “no judaísmo da época do Novo Testamento, as pessoas buscam orientação na experiência de Davi, que expelira o demônio de Saul com um salmo; elas passam a interpretar todos os salmos de Davi neste mesmo sentido [i.e., entendendo os inimigos relatados em muitos salmos como poderes invisíveis]. Nos novos salmos e hinos compostos na época, os autores concebem os inimigos igualmente como poderes espirituais”. (Cf BERGER, Klaus. È Possível Acreditar em Milagres? [Tradução de Luis Henrique Dreher]. São Paulo, Paulinas, 2004, pp. 189,190). Porém, devemos nos lembrar de que em uma outra ocasião, Davi tentou “exorcizar” novamente o espírito maligno que atormentava a Saul, mas desta vez não obteve êxito (cf. 1 Sm 18.10,11). Tal fracasso particular de Davi encontra eco nas páginas do Novo Testamento, onde lemos sobre o fracasso coletivo dos discípulos de Jesus em sua tentativa de exorcizar um demônio (cf. Mt 17.14-21; Mc 9.14-29; Lc 9.37-43a). Por incrível que pareça, esta mesma escassez de narrativas sobre exorcismos no AT, também se repete nos livros apócrifos. Entre os apócrifos, o único relato de um exorcismo ocorre no livro de Tobias (escrito aproximadamente entre 225 e 175 a.C.), em Tb 6.2-9; 8.1-3. Portanto, devido à raridade de tais narrativas exorcísticas nas páginas dos apócrifos, e, devido também à importância destas para a formação, consolidação e perpetuação das crenças e práticas exorcísticas neotestamentárias, resolvi transcrever na íntegra tais passagens com o objetivo de analisá- las um pouco mais a fundo. 99 CARL®S AUGUS + ® VAILA + +I b) Tobias e a Sua Iniciação no Conhecimento Exorcístico 2Partiu, pois, Tobias em companhia do anjo, e o cão os seguia. Caminharam juntos e aconteceu que, numa noite, acamparam à margem do rio Tigre. 3Tobias desceu ao rio para lavar os pés, quando saltou da água um grande peixe, que queria devorar-lhe o pé. Ele gritou 4c o anjo lhe disse: “Agarra o peixe c segura-o firme!”. Tobias dominou o peixe c o arrastou para a terra. 5E o anjo acrescentou: “Abre o peixe, tira-lhe o fcl, o coração e o fígado c guarda-os; joga fora os intestinos, pois o fel, o coração e o fígado são remédios úteis."16O jovem abriu o peixe, tirou-lhe o fel, o coração c o fígado. Assou uma parte do peixe e comeu-a, c salgou o resto. Depois continuaram juntos a caminhada, até chegarem perto da Média. 7Então Tobias perguntou ao anjo: "Azarias, meu irmão, que remédio há no coração, no fígado e no fel do peixe? ” * Respondeu ele: "Se se queima o coração ou o fígado do peixe diante de um homem ou de uma mulher atormentados por um demônio ou por um espírito mau, a fumaça afugenta todo o mal e o faz desaparecer para sempre. 9Quanto ao fel, untando com ele os olhos de um homem que tem manchas brancas, e soprando sobre as manchas, ele fica curado.” (Tb 6.2-9, BJ - os itálicos são meus). 159 PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. Porto, Livraria Apostolado da Imprensa, 1976, p.77. 160 Cf. THAYER, Joseph Henry. ÇáppccKOV, in: GELNT, p.650. Uma leitura atenta deste relato nos revela algumas medidas apotropaicas (do grego anorpónaioç [apotrópaios], “que conjura os males”)159 usadas contra os demônios, as quais nos permitem fazer algumas observações. Primeira, “o fel, o coração e o fígado” do peixe, são vistos como “remédio”, isto é, 0áp|i.aKov (fármakon - LXX), “droga”, “encantamento”160 contra o demônio (v.7). É claro que essa “receita” combina 100 SA+ANÁS, DE1T1®NI®S £ LEGIî elementos de magia e medicina antigas, as quais retratam o uso da época.161 Segunda, essa receita apotropaica não é dada a fobias por um homem, mas pelo áyY£À,oç (ángelos), “anjo” Azarias (vv.4, 5, 7-9), sendo, portanto, possuidora de credibilidade. Terceira, o vocábulo “demônio” é tido como sinônimo de “espírito maligno”, conforme vemos na frase ôai|ioviov f] TivEÚpaToç novspov (daimoniou ê pneúmatos poneroü), “por um demônio ou um espírito maligno” (v.8). Quarta, a fumaça produzida pela queima do coração ou do fígado do peixe, (fieó^ETai (feúksetaif “afugenta” todo o mal e o faz desaparecer e’iç hòv aicova (eis tòn aiõna), “para sempre”. Isso demonstra a eficácia de tal procedimento exorcístico. Em último lugar, Azarias revela uma propriedade terapêutica existente no fel do peixe, o qual parece curar alguma doença oftalmológica (?) da pessoa (v.9).162 Não está claro no texto se essa doença também é causada pelo demônio ou se ela possui outra origem. De qualquer forma, o texto parece narrar, a meu ver, uma espécie de ritual de iniciação mágica ou exorcística, uma vez que Tobias é chamado de natSíov (paidíori) e rcaiSápiov (paidáriorí) - termos intercambiáveis que significam basicamente “menino, infante” - algumas vezes no texto (cf. vv. 2,3,5,7) em vez de ser chamado mais apropriadamente veocvíoiç 161 STORNIOLO, Ivo & BORTOLINI, José. Ccwm Ler o Livro de Tobias: a família gera vida. São Paulo, Paulus, 2006, p.41. Outra “receita” usada para manter os maus espíritos afastados era manter uma lamparina queimando (acesa). (Cf. HEATON, E. W. Everyday Life in Old Testament Times. New York, Charles Scribner’s Sons, 1956, p.73). Benson lembra ainda a importância das cruzes e crucifixos, após o advento do cristianismo, como amuletos usados para manter os espíritos malignos afastados. (Cf. BENSON, George Willard. The Cross: its history and symbolism. New York, Dover Publications, Inc., 2005, p. 115). 162 Como disseram Stomiolo e Bortolini: “O episódio do peixe é central neste livro, pois dele dependerá a solução das dificuldades [que irão aparecer durante a narrativa]”. (Cf. STORNIOLO, Ivo & BORTOLINI, José. Op.Cit., p.40). 101 CARLOS AUGUS + © VAILA + + I (neanías), “jovem”. É como se Tobias fosse iniciado no conhecimento mágico ou exorcístico desde pequeno pelo anjo. Ao analisarmos o texto seguinte, teremos uma surpresa quanto a este aspecto. c) Tobias, o Exorcista ’Quando acabaram dccomer c beber, decidiram ir dormir; conduziram, pois, o jovem [Tobias] ao aposento [de Sara], 2 Recordou-se Tobias dos conselhos de Rafael [outro nome dado ao anjo Azarias, cf. Tb 7.9] e, tirando o fígado e o coração do peixe de dentro do saco onde os guardara, colocou-os sobre as brasas do perfumador. 2 O cheiro do peixe expulsou o demônio, que fugiu pelos ares até o Egito. Rafael seguiu-o, prendeu-o e acorrentou-o imediatamente. (Tb 8.1-3, BJ - os itálicos e acréscimos entre colchetes são meus). Em Tb 6.2-9 o infante Tobias é, como sugerimos, apenas iniciado teoricamente no conhecimento exorcístico e mágico pelo anjo Azarias. Contudo, aqui em Tb 8.1-3, vemos Tobias colocar em prática o conhecimento teórico que havia aprendido anteriormente. A fim de que compreendamos melhor esta resumida perícope que trata de um caso prático de exorcismo, temos que situá-la primeiro dentro de seu contexto mais amplo. O contexto é o seguinte: o anjo Rafael dirige-se com Tobias até a região da Média. Chegando lá, Rafael lhe diz que pernoitariam na casa de Ragüel, parente de Tobias e pai da bela jovem Sara (Tb 6.10,11). O anjo declara a Tobias que este deveria desposar a jovem, valendo-se do costume do levirato (Tb 6.12; cf. Dt 25.5-10), uma vez que ela tivera sete maridos, mas, segundo contava-se, um Socipóviov {daimónion) “demônio” (Tb 6.14, LXX) havia matado a todos os sete na noite de núpcias, assim que tentaram entrar no aposento dela com o propósito de consumar o ato conjugal (Compare com: Mt 22.23- 33; Mc 12.18-27; Lc 20.27-40 - os saduceus e a ressurreição). 102 SA+ANÁS, DEIT1©NI©S £ LEGIé Isto ocorreu porque o demônio amava a jovem Sara e, por esse motivo, não permitia que ninguém se aproximasse dela (Tb 6.14,15). Dito de outra forma, o demônio cometeu alguns crimes passionais, matando os sete maridos de Sara, pois tinha ciúmes dela.163 Tobias temia ter o mesmo fim que os sete maridos tiveram (Tb 6.15) e, por isso, sentiu-se inseguro diante das palavras do anjo. Todavia, Rafael encoraja Tobias, orientando- lhe que, ao entrar no quarto nupcial, tome o fígado e o coração do peixe e os coloque sobre as brasas do perfumador (Tb 6.16,17; cf. Tb 6.2-9). Segundo o anjo, tal ritual faria com que o aroma exalado pelo fígado e coração fritos afugentasse o Soctpóviov (daimónion) “demônio” (Tb 6.17, LXX) assim que ele sentisse aquele odor (Tb 6.17,18). É a partir destes acontecimentos antecedentes relatados em Tb 6.10-18 que o exorcismo narrado em Tb 8.1-3 deve ser compreendido. Particularmente, entendo que o relato sinótico que trata da questão entre os saduceus e a ressurreição, seja um midrash de Tb 6. 14,15; 7.11. Contudo, embora o texto fonte (o livro de Tobias) insira a figura do demônio na narrativa, os saduceus, porém, o excluem de sua fala, uma vez que eles não acreditam em anjos e nem em espíritos, ou seja, “demônios” (cf. At 23.8). Por fim, os evangelistas conservaram este relato sinótico em seu texto tal como ele saiu dos lábios dos saduceus, isto é, sem mencionar o demônio. Temos aqui um curioso efeito inverso. Embora, como já vimos anteriormente, os judeus de Alexandria demonizassem os deuses das nações pagãs, os saduceus, porém, acompanhados pelos sinóticos, “desdemonizam” o relato de Tobias, excluindo o “demônio” da narrativa. Portanto, já que este esclarecimento contextual foi feito, podemos então chegar às seguintes conclusões a respeito do exorcismo narrado em Tb 8.1-3: Ia) Tobias aparece aqui como alguém que já é mais velho, pois ele é chamado de veocvíokov (neanískõn), “jovem” (Tb 8.1, LXX), termo este bem distinto daquele naiSíov (paidíon), “menino”, usado em Tb 6.2. Talvez, entre a viagem feita a Rages (Tb 6.13) e o episódio do exorcismo (Tb 8.1-3) tenham 103 CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I transcorrido vários anos, o que justificaria a mudança do termo paidíon para neanískõn. Esse termo é interessante, pois ele nos mostra que foi um jovem, e não um ancião, quem realizou o exorcismo. 2a) A prática apotropaica de Tobias dá resultado, pois ele ekcíAuctev (ekõlyseri) “expulsa” o Saipóviov (daimónion) “demônio”, o qual foge pelos ares até o Egito (Tb 8.3a).164 Uma variação da frase “pelos ares até o Egito” seria “para as regiões elevadas do Egito”. (Cf. nota da BJ, p.TiT). Esse demônio que foge para as regiões do Egito é identificado como sendo Asmodeu. (Cf. STORNIOLO, Ivo & BORTOLINI, José. Como Ler o Livro de Tobias: a família gera vida, p.43). 3a) Após o demônio ter sido expulso através da prática exorcística de Tobias, o anjo Rafael o segue e o prende (Tb 8.3b), prisão esta que é reflexo de um dos temas centrais da apocalíptica judaica, a qual trata da prisão dos anjos desobedientes (cf. 2 Pd 2.4; Jd 6). 4a) Finalmente, tenho por mim que a causa desta narrativa exorcística relatada no livro de Tobias pode ser encontrada na demonização de um fato comum ocorrido no cotidiano das pessoas. Deixe-me explicar melhor este ponto. Acredito que esse relato que fala sobre o “demônio assassino” que matou os sete maridos de Sara (cf. Tb 6.14-18), sem o qual não haveria, portanto, a perícope do exorcismo em Tb 8.1-3, possa ter se originado em algum conto popular que tratava do tema do “amante ciumento” ou do “marido traído”. Se estivermos certos em nossa interpretação, então isto quer dizer que esse tema acabou adquirindo uma conotação demoníaca, talvez, a fim de descrever até que ponto pode chegar um homem que é ciumento ou um marido que se sente ou é traído. Ou seja, uma pessoa nestas condições pode chegar ao ponto de cometer um crime 104 SA + ANÁS, DÊin®NI©S E LÊGIé passional. Assim, tal conto popular teria transformado o indivíduo ciumento ou traído desse conto numa espécie de demônio serial killer. 1.3.3. Exorcismos nos Manuscritos do Mar Morto A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto - escritos aproximadamente entre 200 a.C. e 70 A.D. - já foi definida pelo biblista e arqueólogo William F. Albright como o acontecimento bíblico-arqueológico mais importante dos tempos modernos.165 Sem dúvida alguma, Albright estava certo ao fazer tal afirmação. E, para o nosso estudo em particular, tais manuscritos adquirem uma relevância ainda maior, pois ao tratarem das crenças e práticas provenientes de uma seita judaica que foi contemporânea de Jesus (os chamados essênios), nos fornecem vários textos que tratam da demonologia e, mais particularmente, de relatos de exorcismos.166 Sendo assim, não podendo ignorar o conteúdo de tais manuscritos, vejamos alguns relatos de exorcismos narrados nos mesmos. Cf. ALLEGUE, Jaime Vázquez. (ed.). La “Regia De La Comimidad" de Qumrán. Salamanca, Ediciones Sígueme, 2006, p. 11. 166 Para César Vidal, os exorcismos realizados por Jesus não são propriamente exorcismos, pois, segundo ele, “o exorcismo requer um ritual minimamente elaborado. No caso de Jesus, nos é dito que os demônios saíam mediante uma simples repreensão. A diferença se manteve entre os seguidores de Jesus, como demonstra o episódio do exorcista judeu Ceva (Atos 19.11-20)”. (Cf. VIDAL, César. Jesus y Los Manuscritos dei Mar Muerto. Barcelona, Editorial Planeta S.A., 2006, p. 187). O autor se equivoca, porém, ao dizer que Ceva era um exorcista, pois ele era, na verdade, um “sumo sacerdote” (Cf. At 19.14). Além disso, em nenhum momento do contexto dessa passagem é dito que Ceva ou algum de seus sete filhos seguia a Jesus. J. Jeremias comenta que “a teologia dos essênios repousa essencialmente sobre a doutrina dos dois espiritos, o espírito de Deus e o espírito de Belial, isto é, do diabo”. (Cf. JEREMIAS, Joachim. A Mensagem Central do Novo Testamento. [Tradução de João Rezende Costa], São Paulo, Editora Academia Cristã Ltda., 2005, p. 125). 105 CAR.L9S AUGUS+® VAILA + + I a) Abraão, o Patriarca Exorcista Entre os manuscritos de Qumrã, encontramos o relato do Gênesis Apócrifo, no qual Abraão é descrito como alguém dotado de poderes terapêuticos e como um exorcista. A seguir,transcrevemos o trecho que descreve Abraão nestes dois papéis: “l6[...] Essa noite, lhe enviou Deus Altíssimo {ao rei do Egito} uni espírito castigador, para afligi-lo a ele e a todos os membros de sua casa; um espirito ^maligno que o afligia a ele e a todos os membros de sua casa. E não pôde aproximar-se dela {de Sara}, nem menos ainda ter relações sexuais com ela, apesar de estar com ela l8dois anos. Ao final de dois anos se agravaram c intensificaram os castigos c as pragas contra ele e contra todos os membros de sua casa. E mandou l9chamar todos [os sábios] do Egito, c todos os magos, junto com todos os curandeiros do Egito, para ver se podiam curá-lo daquela praga, [a ele] c aos membros 20de sua casa. Porém, todos os curandeiros e magos, e todos os sábios, não puderam levantar- se para curá-lo. Porque o espírito os atacou a todos 21 e fugiram. [...] Então, HRK.NWS veio a mim {Abraão} c me pediu que fosse e rezasse pelo 22rci, c impusesse minhas mãos sobre ele para que vivesse. Porque [me havia visto] cm um sonho. Porém, Ló lhe disse: Abraão, meu tio, não pode rezar pelo ' rei enquanto Sara, sua mulher, está com ele. Vai agora e diz ao rei que reenvie sua mulher ao seu próprio marido, c ele rezará por ele e viverá. 25[...] {HRKNWS disse ao rei do Egito} Que devolvam, pois, te rogo, Sara a Abraão, seu marido, 26e esta praga e o espírito de males purulentos deixarão de afligir- te. 28[...] agora reza por mim {o rei do Egito} epor minha casa, para que seja expulso de nós este espirito maligno. Eu {Abraão} rezei por [...] 29e impus minhas mãos sobre a sua cabeça. A praga foi removida dele; foi expulso [dele o espírito] 106 SA + ANÁS, DEIT1®NI©S £ LEGIî maligno e viveu”. (IQap.Gen. XX. 16-23, 25, 26, 28, 29 - os itálicos e os acréscimos entre {} são meus).167 Texto extraído de: MARTINEZ, Florentino García. Textos de Qumran. [Tradução de Valmor da Silva]. Petrópolis, Vozes, 1994, pp.276,277. 168 Jean Pouilly comenta: “Abraão faz um exorcismo, impondo as mãos e orando. Esse rito não é conhecido como tal pelo Antigo Testamento. Entretanto, a imposição das mãos é mencionada nele duas vezes (Nm 8.10 e 27.18-23), mas sempre no quadro de consagração de homens para função importante. No Evangelho, ao contrário, essa maneira de fazer exorcismo tem vários paralelos: Mc 5.23; 6.5; 7.32; 8.23-25; 16.18; Lc4.39-41; 13.13. Ouso essênio desse rito - mas seria próprio dos essênios? - pode ter influenciado o uso cristão, mas devemos ser muito prudentes nesse gênero de analogias, seja o que for que alguns pensem sobre tal rito”. (Cf. POUILLY, Jean. Qumrã, p.123). Como pode ser percebido, esse texto extraído do Gênesis Apócrifo é um midrash da narrativa bíblica de Gn 12.10-20, que, por sua vez, encontra eco também em Gn 20.1-18 e em Gn 26.1-12 (com Isaque). A passagem veterotestamentária de Gn 12 fala sobre grandes pragas que Deus enviou a faraó pelo fato deste ter tomado a mulher de Abrão, Sarai, como sua esposa. Todavia, o texto de IQap.Gen.XX chama-nos a atenção por descrever o conhecido patriarca como aquele que ora pelo rei do Egito impondo-lhe as mãos sobre a cabeça. Tal prática obtém como resultado a expulsão do espírito maligno de faraó e de sua casa (IQap.Gen. XX.28,29).168 É digno de nota que o rei do Egito é visto como um endemoninhado neste texto. Ou seja, mais uma vez, seguindo a mentalidade judaica, os “outros” (os idólatras) são demonizados. Perceba ainda outro detalhe interessante no texto apócrifo, a respeito do qual já nos referimos anteriormente. Deus é quem envia “um espírito castigador”, “um espírito maligno”, sobre faraó e os membros de sua casa (1 Qap.Gen. XX. 16,17). Aqui vemos novamente o tema da ambivalência divina de forma explícita. 107 CARLOS AUGUS+ffi VAILA + +I b) Daniel, o Sábio Exorcista A assim chamada “Oração de Nabônides (ou de ‘Nabonido’)”, que também é encontrada nos manuscritos de Qumrã, ao que tudo indica, parece descrever um relato de exorcismo realizado pelo sábio Daniel. Devido à importância que tal relato tem para o nosso estudo, iremos citá-lo abaixo. O texto, porém, encontra-se bem fragmentado, como pode ser percebido pelos colchetes espalhados pelo seu corpo: “'Palavra da oração que rezou Nabônides, rei do pa[ís de Babi]lônia, [grande] rei, [quando foi afligido] 2por uma inflamação maligna, por decreto do Dc[us Altís]simo, em Tema. [Eu, Nabônides,] fui afligido [por uma inflamação maligna] 3durante sete anos, e fui relegado longe [dos homens até que rezei ao Deus Altíssimo] 4<? meu pecado o perdoou um exorcista. Era um [homem] judeu d[os desterrados, o qual me disse:] 5Proclama por escrito para que se dê glória, exal[tação e honra] ao nome do dc[us Altíssimo. E eu escreví assim: Quando] 6fui afligido por uma inflamação ma[ligna e permanecí] em Tema [por decreto do Deus Altíssimo, eu] 7rezci durante sete anos [ante todos] os deuses de prata c de ouro, [de bronze c de ferro,] sde madeira, de pedra c de argila, porque [eu pensava] que eram deuses [,..]”(4QPr.Nab. - os itálicos são . 169 MARTÍNEZ, Florentino García. Textos de Qumran, p.334. 1 70 VERMES, Geza. Jesús, el Judio, pp.72,73. meus). De acordo com o erudito judeu, Geza Vermes, o exorcista citado neste fragmento da quarta caverna de Qumrã, ainda que não seja mencionado nominalmente no corpo do documento, é Daniel, quem, segundo ele, é uma figura investida postumamente do dom de curar.* 170 Aliás, o vocábulo “exorcista” que aparece neste texto apócrifo, ocorre outras quatro vezes em 108 SA+ANÁS, DEH1©NI©S E LEGIé Daniel (2.27; 4.4; 5.7,11), sendo usado normalmente para descrever mágicos, astrólogos ou adivinhos. Porém, como pondera Vermes, o termo "ITD (gãzer) que aparece neste texto de Qumrã, significa “exorcista”. Tal vocábulo é, ainda segundo Vermes, derivado de uma raiz hebraica que significa “decretar”, o que significa que um gãzer é, por conseguinte, alguém que exorciza, decretando a expulsão do demônio. Este mesmo verbo é empregado pelo galileu Hanina ben Dosa contra a rainha dos demônios (Agrath), a fim de expulsá-la.171 Tal relato nos chama a atenção ainda pelo fato de combinar três elementos: doença (vv.1-3), pecado e demônio (v.4). Curiosamente, esse tema tríplice também pode ser visto no relato sinótico que trata da cura de um paralítico (cf. Mt 9.1-8; Mc 2.1-12; Lc 5.17-26). Porém, embora esses textos não mencionem explicitamente nenhum “demônio” ou “exorcismo”, entretanto, eles estão inseridos dentro do contexto do I século d.C., período este cuja crença popular atribuía ao demônio a causa das enfermidades (cf. p.ex., Mc 9.17,25; Lc 13.11). Assim, a “Oração de Nabônides” lança alguma luz sobre a compreensão dos Evangelhos e sobre as crenças populares existentes na época do Segundo Templo. De forma geral, 4QPr.Nab. parece ser um midrash de Dn 4.28-37. 171 VERMES, Geza. Jesús, el Judio, Cf. também: SCHIAVO, Luigi. Dois Mil Demônios na Decápole. Exegese, história, conflitos e interpretações de Mc 5,1-20. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 1999, p. 152. 172 Estes Salmos de Exorcismo Apócrifos (HQPsApa) são formados por cinco coleções fragmentadas de Salmos, os quais pertencem ao chamado “Fragmento A”. (Cf. MARTÍNEZ, Florentino García. Textos de Qumran, pp.422-424). c) Salmos de Exorcismo Apócrifos172 109 CARLffiS AUGUS + ® VA1LA + +I Alguns salmos encontrados na décima primeira caverna de Qumrã também possuem um conteúdo fortemente voltado para o exorcismo. Porém, devido ao fato dos textos não se encontrarem em bom estado, possuímos apenas fragmentos dos mesmos. Abaixo, transcrevo as “Coleções I- IV” dos Salmos de Exorcismo Apócrifos, situadas dentro do “Fragmento A”, as quais são extraídas da obra Textos de Qumran, de Florentino García Martinez. Apenas omito a “Coleção V”, a qual é, com exceção de alguns pequenos detalhes, praticamente idêntica ao Salmo 91.0 estado precário destes manuscritospode ser notado pelas várias reconstruções do texto [entre colchetes] encontradas no corpo dos documentos. Mas, por entender que tais textos, ainda assim, podem lançar alguma luz sobre o conhecimento demonológico e exorcístico do I século d.C., resolvi mencioná- los aqui: Fragmento A.173 173 Todos os itálicos dos textos são meus. *[...] e quem o chora 2[...] o juramento 3[.„] por YHWH 4[...] o dragão 5[...] a ter[ra...] 6[...] conju[rando...} 7[...] a [...] 8[...] este [...] 9[...] aos demô[nios...} *°[...] e habita[rá...] Quanto a este primeiro parágrafo de HQPsApa vemos que, sem dúvida alguma, trata-se de um caso de exorcismo. Todavia, a fragmentação do manuscrito não nos permite fazer maiores considerações. Coleção I. \De Davi. Sobre as palavras de conjuro] em nome de [YHWH ...] 3[...] de Salomão, e invocará [o nome de YHWH} ‘’'[para que o livre de toda praga dos es]píritos, dos demônios, [Lilit,} "[bufos e chacais.} Estes são os demônios, e o prín[cipe 110 SA+ANÁS, DEIT1®NI®S £ LEGIî de hostili\dade 6[é Belial} que [domina} sobre o abismo [de tre}vas. Os fragmentos da Coleção I já nos possibilitam tecer alguns comentários. Esse texto nos permite ver Davi como um exorcista e talvez também Salomão (?). Neste Salmo, o nome inefável, o Tetragrama (YHWH), é invocado a fim de que aquele que o pronuncia possa se ver livre dos demônios e dos males causados por eles. E interessante notar aqui a relação entre os “espíritos” e os “demônios” com animais tais como os “bufos” e os “chacais”, que são demonizados. Por fim, Belial, figura bem conhecida nos textos de Qumrã,174 aparece em destaque como o “chefe demoníaco”. 174 Cf. ALLEGUE, Jaime Vázquez. (ed.). La “Regia De La Comunidad” de Qumrán, nota 281, p. 133. Coleção II. '[...E lhe dirás: Quem] 2és? [Fizeste tu os céus e] os abismos [e tudo o que contêm,] 3a terra e tu[do o que há sobre a] terra? Quem fe[z estes sinais] 4e estes prodífgios sobre a] terra? E ele, YHWH, [o que} 'fez tu[do isto por seu poder,} conjurando a todos os [anjos a vir em sua ajuda,} 6a toda semen[te santa] que está em sua presença, [e ele que julga] 7[os filhos do] céu, c [toda a] terra [por causa deles], porque enviaram sobre 8[toda a terra] o pecado, e sobre todo ho[mcm o mal. Porém] eles conhecem 9[suas ações maravilho]sas, que nenhum deles [pode fazer ante YHW]H. Sc não l0[trcmcm] ante YHWH, para [...e] destruir a alma, "[os julgará] YHWH e temerão este grande [castigo (?).] "[Perseguirá] um dentre vós [mil...] dos que servem a YHWH l3[...] grande, E [...] ... [...]. Essa Coleção, embora mostre YHWH “conjurando a todos os anjos a vir em sua ajuda”, não mostra, entretanto, demônios sendo exorcizados. Mas o teor do texto diz respeito ao juízo de YHWH que recairá sobre “aqueles que enviaram sobre 111 CARL©S AUGUS + ® VAILA + + I toda a terra o pecado, e sobre todo homem o mal”, isto é, os demônios. Logo, tal salmo devia ser empregado pela comunidade de Qumrã a fim de afugentar os demônios e, certamente também, exorcizá-los. Como já nos referimos antes, uma prática comum do judaísmo na época do Novo Testamento era a utilização de salmos com fins exorcísticos, baseando-se, sobretudo, no exorcismo que Davi havia feito em Saul (1 Sm 16.14-23). Coleção III. 1 [e] grande [...] conjurando [...] 2c o grande [...E enviará um anjo] poderoso e te ex[pulsará de] 3toda a terra. [...] céus [...] 4Golpeará YHWH um gol[pepoderoso que épara destruir- te \para sempre,] 5e no furor de sua cólera [enviará] contra ti um anjo poderoso [para executar] b[todas as suas orde]ns, (um) que [não terá piedade] contigo, que [...] 7[...] sobre todos estes, que te [arremessará] no grande abismo, 8[no Xeol] mais profundo. Lon[ge da morada da luz] habitarás, pois é escuro 9em extremo o grande [abismo. Não dominarás] mais sobre a terra l0[mas estarás trancado] para sempre. [Maldito serás tu] com as maldições do Abadão, 11 [c castigado pelo] furor da ira de Y[HWH. Tu dominarás sobre] as trevas por todos l2[os períodos d]as humilhações [...] teu presente l3[...] Essa terceira coleção novamente remete ao tema do juízo divino que será exercido sobre as forças do mal. Aqui, contudo, o texto faz menção a alguém (YHWH) que “enviará um anjo poderoso e te expulsará (a Belial ?)175 de toda a terra”. Além disso, (Belial) será arremessado “no grande abismo, no Xeol mais profundo” e, portanto, “não dominarás mais sobre a terra”. Tal referência nos traz à memória Ap 20.10, que relata o 175 É quase certo que a referência aqui seja a Belial, como pode ser visto nos fragmentos da Coleção IV. 112 SA+ANÁS, DEfflffiNlffiS E LEGIé lançamento do diabo no lago de fogo e enxofre. Além do mais, o texto menciona ainda Abadão (Abadom), referindo-se provavelmente ao anjo do abismo chamado em hebraico “Abadom” e em grego “Apoliom” (cf. Ap 9.11), isto é, outro nome dado ao diabo. Aqui não está muito claro se será um anjo ou o próprio Yahweh quem expulsará (Belial). Coleção IV. '[...] ... [...] 2que [...] os possuídos [...] 3os voluntários de tua vcr[dadc, quando Raffael os cura. [...] 4Z>e Davi. So[bre as palavras de conjjuro em nome de YHWH. [Invoca em to]do tempo 5 os céus. [Quando] vier sobre ti Beli[al, tu] lhe dirás: bQuem és tu, [maldito entre] o homem e entre a semente dos santos? Teu rosto é um rosto 7de vaidade, e teus chifres são chifres de mise[rável.] Tu cs trcva c não luz, s[ini]qüidadc c não justiça. [Contra ti,] o chefe do exército. YHWH te [trancará] 9[/?o Xe]ol mais profundo, [fechará] as duas portas de bronze, pe[las quais] não "’[atravessa] a luz. Não [tc alumiará a luz do] sol que [se levanta] "[sobre o] justo para [iluminar seu rosto.] Tu lhe dirás: Acaso [não há um anjo] l2[com o jus]to para ir [ao juízo quando] o maltrata Sa[tã? E o livrará] l3[o espírito da ver]dadc das trc[vas porque a jus]tiça está com ele [para sustcntá-lo no juízo.] I4[...] não [...] Este último texto, ao que parece, é o que melhor retrata uma prática exorcística, pois nele encontramos as seguintes palavras: “Quando vier sobre ti Belial, tu lhe dirás: Quem és tu, maldito entre o homem e entre a semente dos santos?”. A continuação do texto, “YHWH te trancará no Xeol mais profundo, fechará as duas portas de bronze [...]” deixa entrever que tais palavras eram espécies de “fórmulas mágicas” utilizadas pelos qumranitas para repelir os demônios e expulsá- los de sua comunidade. 113 CARLffiS AUGUS + ® VAILA + + I 1.3.4. Exorcismos nos Pseudepígrafos A literatura pseudepigráfica é importante por revelar as idéias judaicas em voga durante o chamado período intertestamentário (430 a.C. - 6/4 a.C.).176 Ao longo da literatura pseudepigráfica alguns textos que parecem aludir a casos de possessão demoníaca e exorcismos podem ser encontrados. Destaque especial é dado ao Testamento dos Doze Patriarcas. Em 1 Enoque VIII, 2, lemos que “Semjaza ensinava os esconjuros e as poções de feitiços, Armaros a dissipação dos esconjuros”.177 No Testamento de Levi XVIII, 4, Levi se dirige aos seus filhos antes de morrer e profetiza-lhes sobre a vinda de um novo sacerdote, sobre quem é dito que “Ele acorrentará Belial, e dará aos seus filhos o poder de enfrentar os espíritos maus”.178 No Testamento de Dã V,l, encontramos escrito que “o Senhor habitará em vós, e Belial fugirá” e em V,4 vemos que o Senhor, “Ele mesmo subjugará Belial; e tomará vingança eterna dos inimigos. Ele resgata de Belial os que estavam presos (as almas dos santos)”.179 No Testamento de Aser VI, 2, lemos que “se uma alma estiver em aflição, é porque é atormentada pelo espírito mau; a este outrora serviu nos prazeres e em obras depravadas”.180 181 Por fim, o Testamento de Benjamim III, 1, aconselha: “temei ao Senhor e amai o vosso próximo! Assim, se os espíritos de Belial vos pressionarem com toda espécie de mal, não poderão vencer-vos”. 81 176 TENNEY, Merril C. (ed.). ZPBD, p.697. 177 PROENÇA, Eduardo de. (org.). APEB, p.262. 178 Idem, Ibidem, p.349. 179PROENÇA, Eduardo de. (org.). APEB, pp.372,373. 180 Idem, Ibidem, p.389. 181 Idem, Ibidem, p.397. 114 SA + ANÁS, D£m®NI®S £ LEGIé Contudo, além disso, deve-se fazer menção a um dos meios mais eficazes usados para afastar demônios, o qual era recitado como fórmula mágica. No livro de Jubileus nós temos uma declaração de que Noé, ao receber instrução dos anjos sobre como subjugar os demônios, “escreveu abaixo todas as coisas em um livro como nós o instruímos, concernente a todo tipo de medicina. Desse modo, os espíritos malignos foram impedidos de causar dano aos filhos de Noé” (Jubileus X, 12,14).182 SURBURG, Raymond F. Introduction to the Intertestamental Period. St. Louis, Concordia Publishing House, 1975, p.64. 183 A opinião adotada neste livro é a de que os anjos caídos se tomaram demônios posteriormente. Para saber mais a respeito da origem dos demônios, consulte: OROPEZA, B. J. 99 Perguntas Sobre Anjos, Demônios e Batalha Espiritual, pp.58-61. Nesta excelente obra o autor fornece três teorias sobre a origem dos demônios. Para uma abordagem rabínica sobre a origem dos demônios, veja: STEWART, Roy A. Rabbinic Theology’: an introductory’ study. Edinburgh and London, Oliver and Boyd Ltd., 1961, pp.59-61. 1 X4 PROENÇA, Eduardo de. (org.). Op.Cit., p.261. 185 Idem, Ibidem, p.261. Além do mais, vários nomes de anjos caídos (ou demônios)183 são encontrados nos pseudepígrafos, como, por exemplo, a lista citada em I Enoque VI, 4, que traz: Semjaza (o demônio chefe) e os subchefes que cuidavam de grupos de dez demônios: Arakiba, Rameel, Kokabiel, Tamiel, Ramiel, Danei, Ezekeel, Narakijal, Azael, Armaros, Batarel, Ananel, Sakeil, Samsapeel, Satarel, Turel, Jomjael e Sariel.184 É interessante notar que outros demônios que acompanhavam esta horda demoníaca mantiveram relações com mulheres e eles também “ensinavam-lhes bruxarias, exorcismos e feitiços, e familiariza vam-nas com ervas e raízes”.185 (/ Enoque VII, 1; cf. Gn 6.1-4). Todavia, outros nomes demoníacos podem também ser vistos nos escritos pseudepígrafos, como Azazel, Belial, 115 CARL©S AUGUS + ® VAILA + +I Beelzebul, Mastema, Samael (chefes dos demônios) e outros. Essa extensa lista de nomes de demônios encontrada nos pseudepígrafos adquire grande relevância para o nosso trabalho, uma vez que nos remete para a declaração demoníaca singular plural encontrada em Mc 5.9: “Legião é o meu nome, porque somos muitos”. No próximo capítulo, quando estivermos tratando da análise exegética de Mc 5.1-20, verificaremos este verso de forma mais detalhada. 1.3.5. Exorcismos e Exorcistas na Tradição do Judaísmo Podemos definir Tradição Judaica como “o conjunto de ensinos e leis do Judaísmo transmitidos de uma geração para a outra. Esta tradição oral foi coletada e estabelecida ao longo da Mishná e do Talmude como escritos rabínicos posteriores”.186 186 SHERBOK, Dan Cohn. A Concise Encyclopedia of Judaism, p. 195. A “tradição oral”, assim chamada por ter disseminado ensinamentos do Judaísmo por meio da palavra falada e não através da palavra escrita, foi a protagonista no papel de celebrizar e eternizar figuras exorcísticas, tais como, o anjo Raphael, Davi, Salomão, Eleazar, Hanina ben Dosa e até mesmo uma planta, chamada Bara, à qual atribuía-se propriedades exorcísticas. Vejamos tais personagens e os seus exorcismos com maiores detalhes. a) Raphael, o Anjo Exorcista No livro apócrifo de I Enoque encontramos o anjo Raphael, que recebe uma ordem direta do Senhor para expulsar Azazel, o príncipe dos demônios, para o deserto, onde deveria ficar preso até o dia do juízo. Observe o que o texto diz sobre este anjo exorcista: 116 SA + ANÁS, DEHlffiNIffiS Ê LEGIî 3E a Raphael disse o Senhor: “Amarra Azazel de mãos e pés e lança-o nas trevas! Cava um buraco no deserto de Dudael e atira-o ao fundo! Deposita pedras ásperas e pontiagudas por baixo dele e cobre-o de escuridão! Deixa-o permanecer lá para sempre e veda-lhe o rosto, para que não veja a luz! 4“No dia do grande Juízo ele deverá ser arremessado ao tremedal de fogo! Purifica a terra, corrompida pelos Anjos, e anuncia-lhe a Salvação, para que terminem os seus sofrimentos e não se percam todos os filhos dos homens, em virtude das coisas secretas que os Guardiões revelaram e ensinaram aos seus filhos! Toda a terra está corrompida por causa das obras transmitidas por Azazel. A ele atribui todos os pccados!”(/ 187 Enoque X, 3,4 - os itálicos são meus). Esse texto nos mostra Azazel sendo como que “exorcizado” para o deserto, para longe do convívio das pessoas. Neste sentido, o anjo Raphael é visto como uma espécie de “exorcista”, que expulsa para fora do “corpo da sociedade” o maligno príncipe dos demônios. b) Davi, o Famoso Exorcista do Rei Embora já tenhamos falado sobre a fama de Davi como exorcista anteriormente (1 Sm 16.14-23), creio ser importante citá-lo novamente, mas, desta vez, conforme o testemunho dado por Flávio Josefo: Saul, ao contrário, foi tomado pelo espírito mau, que parecia querer csganá-lo a todo o instante. Os médicos não encontraram outro remédio para esse mal, senão mandar cantar para ele, ao som da harpa, hinos sagrados, por algum músico competente, quando o demônio o agitasse. Mandaram procurá- lo por toda parte; disseram-lhe que havia somente um que PROENÇA, Eduardo de. (org.). APEB, p.263. 117 CARLffiS AUGUS+ffi VAILA + +I poderia fazê-lo e era um dos filhos de Jessé, de nome Davi [...]. 188{Antiguidades Judaicas - VI, 235). O testemunho de Josefo (c. 37-100 A.D.) é importante para a compreensão do conhecimento demonológico que havia no judaísmo do I século. Josefo menciona demônios no relato da depressão de Saul, a qual ele atribui aos 8atp.óvia (daimónia))*9 É curioso observar neste ponto que o rei que havia sido escolhido pelo povo, isto é, Saul, é o endemoninhado, enquanto que o rei escolhido por Deus, Davi, é o exorcista. c) Salomão, o Exorcista par Excellence Salomão, principalmente nos escritos de Flávio Josefo, possui reputação não apenas de sábio, mas também de exorcista místico, que através da manipulação de vários remédios, prescreveu receitas altamente eficazes, capazes de expulsar os demônios de forma definitiva.* 189 190 Além disso, o que nos chama a atenção neste relato é o fato de Josefo enfatizar que tais “receitas exorcisticas”, cuja invenção fora atribuída a Salomão, ainda eram seguidas e colocadas em prática pelos judeus em sua época (I Século d.C.): JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. Vol. 1. [Tradução de Vicente Pedroso], Rio de Janeiro, CPAD, 1992, p. 135. 189 KITTEL, Gerhard, (ed.). TDNT. Vol.II. [A-H], p.10. 190 Segundo a Sabedoria de Salomão 7.20, Salomão tinha “poder dos espíritos” (rtVEupdreov píaç), isto é, “poder sobre os espíritos”. (Cf. ROGERS JR., Cleon L. The Promises to David in Early Judaism. BS. Vol. 150, n° 599. Dallas, Dallas Theological Seminary Press, 1993, p.299). Esse grande soberano compôs cinco mil livros de cânticos e de versos, três mil livros de parábolas, a começar do hissopo ate o cedro, passando por todos os animais, pássaros, peixes e todos os que caminham sobre a terra. Deus lhe havia dado perfeito conhecimento da natureza e de suas propriedades sobre o que ele escreveu um livro; empregou esse conhecimento 118 SA + ANÁS, DEffl©NI©S E LEGIé em compor, para utilidade dos homens, diversos remédios, dentre os quais alguns tinham mesmo a força de expulsar os demônios [de tal forma], que estes não se atreviam a voltar. Tal maneira de expulsá-los está ainda em uso entre os da nossa nação [...] (Antigüidades Judaicas - VIII, 324 - os acréscimos entre colchetes e os itálicos são meus).191 192 JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. Vol. 1., pp. 175,176. 192 BUDGE, E. A. Wallis. Amulets and Talismans. New York, University Books, 1968, pp.40,424. 193 Idem, Ibidem, p. 181. 194 Idem, Ibidem, p. 280. Veja ainda o excelente estudo de Perkins, segundo quem, a frase “maior do que Salomão” (Mt 12.42) é, sobretudo,uma referência ao controle que Jesus exerce sobre os demônios. Perkins entende que a natureza da sabedoria de Salomão descrita neste verso tem a ver com a reputação que este tinha como alguém que exercia controle efetivo sobre o reino demoníaco. Baseado principalmente no contexto da controvérsia de Belzebú que aparece no mesmo capítulo (Mt 12.22-32), Perkins argumenta que a “sabedoria” demonstrada por Jesus na expulsão de demônios era Embora tal relato esteja, sem dúvida alguma, repleto de fantasias no que concerne à pessoa de Salomão, todavia, trata-se de um importante testemunho sobre as práticas exorcísticas que podem ter estado em voga em alguns círculos judaicos mais místicos no período contemporâneo ao da época neotestamentária. Além desse relato citado por Josefo, Budge ainda fala sobre o desenho do pentagrama que havia no anel mágico de Salomão, o qual era considerado como um poderoso amuleto contra todo tipo de mal, incluindo, é claro, os demônios. O autor fala ainda sobre inscrições encontradas em outros amuletos, as quais continham “palavras de poder” usadas, segundo ele, por Salomão, tais como: “Lôfham!” e “Mahfelôn!”.193 Enfim, lendas sobre os poderes do rei Salomão como mágico são numerosas, e graças a vários textos da Bíblia, do Talmude, de Josefo e de Qumrã, tais lendas são bem conhecidas.194 119 CARLOS AUGUS + © VAILA + + I d) Eleazar, o Exorcista Judeu Ainda de acordo com Flávio Josefo, e, na continuação do relato sobre a fama de Salomão como exorcista, o autor diz ter sido testemunha ocular das práticas exorcísticas de um judeu, chamado Eleazar, o qual praticava exorcismos publicamente na presença do próprio imperador Vespasiano: Eu vi pessoalmcntc um dos nossos, chamado Eleazar, libertar os possesses de espíritos malignos, cm presença de Vespasiano, de seus filhos c demais guerreiros. A cura se realizou da seguinte maneira: Eleazar segurou, sob as narinas do possesso, um anel no qual introduzira uma daquelas raízes indicadas por Salomão. Fez com que o doente a cheirasse e, assim, retirou o espírito maligno pelas narinas. No mesmo instante, o possesso caiu prostrado e Eleazar, pronunciando o nome de Salomão c os provérbios por ele compostos, csconjurou o espírito maligno a não voltar mais para aquele homem. E para mostrar aos presentes que tinha rcalmcntc o poder de fazer tal coisa, Eleazar colocou uma bacia ou outro recipiente cheio d’água, não distante dali, e ordenou ao espírito maligno que, logo que saísse do homem possesso, entornasse a água c convencesse os espectadores de que havia abandonado o homem. Isto também aconteceu, rcalmcntc, e assim se manifestou a sabedoria e a ciência de Salomão. Achei que devia referir estes fatos para que conheçam todos como é poderoso o espírito do rei e como ele era agradável a Deus, e para que as superior à sabedoria empregada por Salomão em seus encantamentos “exorcísticos”, relatados na Tradição Judaica. Assim, Jesus é “maior do que Salomão” neste sentido. (Cf. PERKINS, Larry. “Great Than Solomom ” (Matt 12:42). TrinJ. Vol. 19, n°2. Weaverville, Trinity Journal, Inc., 1998, pp.207-217). 120 SA+ANÁS, DElTlfflNIffiS £ LEGIî virtudes excelsas desse rei não ficassem ocultas a ninguém 195 debaixo do sol. (Antiguidades Judaicas - VIII, 2,5). Esse relato de exorcismo é especialmente importante por nos fornecer diversas informações sobre uma prática exorcística realizada no I Século d.C. Gostaríamos de destacar aqui alguns pontos encontrados nesse relato: 1) Josefo, para legitimar o exorcismo feito por Eleazar, menciona várias testemunhas oculares que o presenciaram: a) o próprio Josefo; b) o imperador Vespasiano; c) os filhos do imperador; e d) os guerreiros (soldados) de Vespasiano; 2) O exorcismo é visto como uma prática terapêutica, pois Josefo dá o nome de “cura” à prática exorcística realizada por Eleazar; 3) A fama de Salomão é novamente percebida neste exorcismo, pois, é graças a “uma daquelas raízes indicadas por Salomão”, contidas no anel de Eleazar, que o endemoninhado é liberto; *196 1 QS JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas. Apud: WEISER, Afons. O Que é Milagre na Bíblia. [Tradução de D. Mateus Rocha], São Paulo, Paulinas, 1978, p.86. 196 'E curioso notar a esse respeito que o famoso apologista cristão, Justino Mártir (c. 100-165 d.C.), “acreditava que oração, jejum, imposição de mãos, queima de raízes, aspersão de água benta e o nome de Jesus deveríam ser empregados nos exorcismos (II Apologia, 6)”. (Cf. OROPEZA, B. J. 99 Perguntas Sobre Anjos, Demônios e Batalha Espiritual. [Tradução de Josué Ribeiro], São Paulo, Mundo Cristão, 2000, nota 20, p.210). A crença de Justino reflete um ponto de vista sincrético, misturando elementos oriundos do cristianismo e da crendice popular dos tempos antigos. 121 CARLffiS AUGUS+ffi VAÍLA + + I 4) Eleazar expulsa o demônio “pronunciando o nome de Salomão e os provérbios por ele compostos”. Embora Jesus tenha expulsado o diabo no episódio da tentação no deserto através de três citações do livro de Deuteronômio (cf. Mt 4.1-11; Lc 4.1-13; Compare, p.ex., Mt 4.4 com Dt 8.3; Mt 4.7 com Dt 6.16; Mt 4.10 com Dt 6.13; 10.20), é impossível sabermos exatamente quais textos do livro de Provérbios teriam sido utilizados por Eleazar durante seu exorcismo. Contudo, acredito que passagens tais como Pr 1.33; 3.26; 14.26,27; 15.29; 19.23; 20.8 e 23.11 poderíam certamente ter sido utilizadas por ele. 5) Eleazar, ao expulsar o demônio, ordena-o “a não voltar mais para aquele homem”. Tal ordem encontra eco nas palavras de Jesus, ao expulsar o demônio que atormentava um rapaz desde a sua infância: èyoò íttitccocjcl) ooi, amou Kai pr|K6Ti eloéÀOflç eLç cíòtÓv. (egõ epitássõ soi, ékselthe eks autoú kai mêkéti eisélthês eis autón), “eu te ordeno, sai dele e não entres mais nele” (Mc 9.25). 6) Eleazar também ordenou ao demônio que, assim que fosse expulso, desse um sinal de que isso havia acontecido. Ele ordenou ao demônio que, “logo que saísse do homem possesso, entornasse a água”, isto é, derrubasse a bacia ou o recipiente cheio d’água, a fim de que sua expulsão fosse confirmada. Segundo David 122 SA+ANÁS. DEmêNieS £ LEGIî Aune, naqueles tempos antigos acreditava-se que o demônio devia dar algum sinal físico que indicasse sua saída do corpo da pessoa, como, por exemplo, derrubar um copo d’água ou fazer a vítima espirrar. Ele ainda diz que drogas também eram usadas em alguns 197 exorcismos. 7) Por fim, é curiosa a referência sobre Eleazar ter retirado o espírito maligno “pelas narinas” e o fato de que o possesso “caiu prostrado” após a sua libertação. Embora não vejamos nos Evangelhos nenhum relato sobre algum demônio ter saído por orifícios tais como “boca”, “ouvidos” ou “narinas”, encontramos, contudo, menção à “prostração” dos demônios diante da autoridade de Jesus (cf. Mc 3.11; Lc 8.28). e) Hanina ben Dosa, o Exorcista Galileu *198 AUNE, David. “Exorcism”, ISBE, 2:242-45. Apud: OROPEZA, B. J. Op.Cit., p.210. 198 G. Vermes inclui Hanina em um grupo de dez Judeus Ascetas e Carismáticos daqueles tempos antigos, os quais se encontram dispostos nesta seqüência: 1) Honi; 2) Menahem, o Essênio; 3) Abba Hilquiá; 4) Hanã; 5) Simão, o Essênio; 6) Banno; 7) Hanina ben Dosa; 8) Jesus, filho de Ananias; 9) Eleazar; 10) Jacó, de Quefar Secaniá. (Jesus, que não é mencionado neste grupo, aparece na lista de Personalidades do Novo Testamento). (Cf. VERMES, Geza. Who's Who in the Age of Jesus. London, Penguin Books, 2005, pp.6,7). Hanina ben Dosa, segundo fontes rabínicas, viveu em Arab, uma cidade galiléia situada dentro do distrito de Séforis (pBer. 7c; bBer. 34b). Segundo parece, essa localidade ficava a 123 CAR.L®S AUGUS + ® VAILA + + I uns quinze quilômetros ao norte de Nazaré,199 cidade onde Jesus fora criado (Mt 2.23; Lc 4.16). Ao que tudo indica, Hanina viveu no I século d.C., sendo, portanto, contemporâneo de Jesus. Fontes talmúdicas o associam a trêsfiguras históricas deste período: Nehuniah, oficial do templo, Rabban Gamaliel e Yohanan ben Zakkai. Se, como parece ser provável, o Gamaliel aqui em questão fosse Gamaliel, o Velho, de quem o apóstolo Paulo afirmava ter sido discípulo (At 22.3), e não Gamaliel II, neto do anterior, então Hanina viveu no período precedente ao ano 70 d.C.200 * 199 VERMES, Geza. Jesús, el Judio, p. 78. 200 VERMES, Geza. Jesús, el Judio, p.78. A opinião de Vermes de que Hanina viveu antes do ano 70 d.C. é seguida por Crossan, que afirma que Hanina viveu antes da destruição do Segundo Templo no I século E.C. (Cf. CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico: a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo. [Tradução de André Cardoso]. Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1994, p. 183). Todavia, segundo a Mishná, Hanina ben Dosa atuou depois do ano 70 d.C., mais precisamente, entre 80-120 d.C. (Cf. DANBY, Herbert. The Mishnah. [Translated from the Hebrew with introduction and brief explanatory notes by Herbert Danby], Oxford, Oxford University Press, 1988, p. 799). David Flusser também parece situar Hanina numa data posterior ao ano 70 d.C., pois, de acordo com ele, Hanina viveu uma geração após Jesus. (Cf. FLUSSER, David. Jesus. [Tradução de Margarida Goldsztajn], São Paulo, Editora Perspectiva S.A., 2002, p.87). ">()1 DANBY, Herbert. The Mishnah, p.6. Seja como for, esse rabino é visto como um poderoso taumaturgo. Prova disso é que se dizia do rabino Hanina ben Dosa que ele costumava orar sobre o doente e dizer: “Este viverá”, ou “Este morrerá”. Diziam-lhe: “Como sabes disso?”. Ele respondia: “Se a minha oração é fluente em minha boca, eu sei que ela é aceita; e se ela não é, eu sei que ela é rejeitada” (Berakoth 5.5). Aliás, a Mishná declara que “quando o Rabino Hanina ben Dosa morreu cessaram os homens de boas ações” (Sotah 9.15). A expressão “homens de boas ações” pode 124 SA + ANÁS, DE1T1©NI©S E LEGIî ter o sentido de “homens de poder” ou “realizadores de milagres”.202 70? Idem, Ibidem, p.306, nota 1. 203 VERMES, Geza. Jesús, el Judio, p.220. Aqui, a fala de Hanina à demônia Agrath: “Se eu sou tão estimado no céu (...)” encontra eco no confronto de Elias com os capitães de Acazias, onde o profeta diz por duas vezes: “Se eu sou homem de Deus, desça fogo do céu (...)”. (Cf. 2 Rs 1.10, 12). Além disso, é digno de nota o pedido de Agrath feito para Hanina e a concessão deste a tal petição (cf. Mc 5.10-13 par.). E, já que estamos falando sobre milagres, um aspecto em particular da vida de Hanina deve ser destacado, o qual diz respeito ao seu papel de exorcista. Para tal, nos reportaremos novamente a Geza Vermes, quem nos fala sobre uma tradição preservada no Talmude Babilônico, segundo a qual Hanina se depara com Agrath, a rainha dos demônios. Essa rainha dos demônios que costumava atacar as pessoas todas as noites por meio de seu grande exército de espíritos malignos, passou a realizar seus ataques apenas duas vezes por semana, graças à intervenção de Hanina ben Dosa. Eis o relato: Uma vez [Agrath] se encontrou com o rabino Hanina ben Dosa e lhe disse: “Se Deus não mc houvesse recomendado desde o céu, ‘toma cuidado com Hanina c com a sua doutrina!’, eu teria te atacado”. E ele disse: “Sc eu sou tão estimado no ccu, ordeno que tu não voltes a passar nunca mais por um lugar habitado”. E ela lhe disse: Permita-me, por favor, fazê-lo por tempo limitado”. Ele então lhe concedeu as noites dos sábados e as noites de quarta-feira.203 Esse relato sobre Hanina ben Dosa possui em seu conjunto diversos elementos que parecem ecoar nas páginas dos Evangelhos. E, para o nosso estudo de Mc 5.1-20, em particular, ele adquire uma importância ainda maior, pois são nítidas as semelhanças entre este relato encontrado no Talmude Babilônico e o contexto de Mc 5.7-13: 125 CARLSS AUGUS + ffi VAILA + + I Jesus e Hanina ben Dosa, dois Galileus Exorcistas No Evangelho de Marcos 1. Jesus tem a sua identidade conhecida pelos demônios (Filho do Deus Altíssimo) (5.7); 2. Jesus ordena ao espírito imundo que saia do corpo do homem que ele estava possuindo (5.8); 3. Os demônios rogam a Jesus que lhes permita entrar numa manada de porcos (5.12); 4. Jesus concede o pedido dos demônios e permite-lhes entrar nos porcos, os quais se precipitam de um despenhadeiro ao mar (5.13). No Talmude Babilônico 1. Hanina ben Dosa tem a sua identidade conhecida por Agrath, a rainha dos demônios; 2. Hanina ordena a Agrath que nunca mais ande por um lugar habitado; 3. Agrath pede a Hanina que lhe permita andar por lugares habitados por tempo limitado; 4. Hanina concede o pedido de Agrath e permite-lhe andar por lugares habitados nas noites de sábado e de quarta-feira. Como podemos notar nessa breve comparação feita entre a prática exorcística de Jesus e a de Hanina ben Dosa, este último é uma figura essencial para a compreensão da hipótese 126 SA+ANÁS, DEffl©Nl©S E LEGIé que associa o judaísmo carismático com a Galiléia,204 e, além disso, é também uma figura indispensável para o entendimento do ministério taumatúrgico de Jesus, sobretudo, no que diz respeito ao seu papel de exorcista. 204 VERMES, Geza. Jesús, el Judio, p.77. f) Bara, a Planta Exorcista Talvez, o leitor possa se perguntar: “Por que uma planta é incluída numa lista que trata de exorcismos e exorcistas na tradição do judaísmo?”. Porque, como já tivemos a oportunidade de ver: primeiro, Salomão receitava remédios à base de raízes para expulsar demônios; segundo, um judeu chamado Eleazar utilizou tais receitas em um de seus exorcismos; terceiro, Flávio Josefo nos diz que tal maneira de expulsar os demônios (utilizando-se raízes receitadas por Salomão) ainda era praticada em sua época (I século d.C.); quarto, o apologista cristão, Justino Mártir, também incluía a queima de raízes em suas práticas exorcísticas; e, quinto, era comum usar drogas à base de ervas e plantas em alguns exorcismos do mundo antigo. Portanto, vejamos o relato de Josefo a respeito de uma planta chamada Bara, a qual possuía, segundo ele, a propriedade de exorcizar demônios. A meu ver, no relato de Josefo esta planta parece ser a “personificação” de um exorcista, figura esta que era comum no I século d.C. Por este motivo, resolvi incluí- la aqui: No vale que rodeia Macherom, do lado do norte, encontra-se, no lugar chamado Bara, uma planta que tem o mesmo nome e que se parece com uma chama e lança, à tarde, raios resplandecentes e retira-se, quando a gente a quer apanhar. O único meio de detê-la é atirar-lhe urina de mulher, ou aquele sangue supérfluo, que elas, de tempos em tempos, eliminam. Não se pode tocá-la, sem perigo de morrer, a menos que se tenha na mão a raiz da mesma planta; encontrou-se um outro 127 CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I meio de colhê-la sem perigo. Cava-se em redor, de modo que ela fique presa pela raiz à qual amarra-se um cão; este querendo seguir aquele que o amarrou, arranca a planta e morre imediatamente, como se resgatasse com sua vida a do seu dono. Depois disso, pode-se sem perigo manuseá-la; ela tem uma virtude, que faz [com que] não se tema expor-se a qualquer perigo, para apanhá-la, isto é, os demônios ou as almas dos maus, que entram no corpo dos homens vivos, e que os matariam se não se lhes impedisse, abandonam-nos imediatamente, quando deles se aproxima essa planta. (Guerras Judaicas, VII, 526 - os itálicos e os acréscimos entre colchetes são meus).205 Guerras Judaicas, Livro VII, XXIII, 526. JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. Vol. 3, p. 199. 206 HARRIS, R. Laird, (org.). DITAT, p.218. A origem etimológica do nome dessa planta (Bara) não é dada por Josefo, mas, tenho para mim, que ela possa ter ligação com a palavra hebraica n^Zl (bãrah), que, dentre outros significados, quer dizer “expulsar, colocar em fuga”.206 Se estivermos corretos em nossa interpretação, então o próprio significado do nome da planta já é, em si mesmo, uma alusão à sua propriedade exorcística. Josefoainda diz que a planta “tem uma virtude”, ou seja, “os demônios ou as almas dos maus, que entram no corpo dos homens vivos [...] abandonam-nos imediatamente, quando deles se aproxima essa planta”. Tal relato é interessante por três motivos: primeiro, porque nos mostra que no I século d.C. acreditava-se que os “demônios” e as “almas dos maus” fossem uma mesma coisa (ou melhor, acreditava-se que as almas das pessoas más que tivessem morrido, se transformavam em demônios); segundo, a crença de que tal planta tivesse a “virtude” de exorcizar demônios, parece refletir a crendice popular da época, repleta de elementos místicos e supersticiosos; 128 SA + ANÁS, D£m®NI©S E LEGIé e, terceiro, acreditava-se que essa planta fosse realmente eficaz nos rituais exorcísticos, pois os demônios abandonavam os corpos das pessoas “imediatamente”, assim que entrassem em contato com ela. 1.3.6. Exorcismos e Exorcistas no Contexto Pagão Saindo do contexto judaico e entrando agora no contexto pagão, duas personagens, em particular, se destacam na prática dos exorcismos: Apolônio de Tiana e um sírio anônimo da Palestina. Analisemos estas duas personagens de forma mais detalhada. a) Apolônio de Tiana Apolônio de Tiana (c. 4 a.C. - 90 d.C.) foi um filósofo grego neopitagórico e um conhecido taumaturgo que viveu no I século d.C.20 Apolônio era da cidade de Tiana, cidade da província romana da Capadócia, na Ásia Menor. Desde cedo, apegou-se à filosofia e ao estilo de vida dos neopitagóricos, uma combinação sui generis de ascese, fuga do mundo e magia. Ele percorreu várias regiões como pregador, taumaturgo e vidente profético. Sua fama chegou, inclusive, a sobrepujar a de muitas outras figuras que a ele se assemelhavam, tais como, 208 Epimênides, Peregrino Proteu e Alexandre de Abonuteicos. Apolônio se recusava a provar carne e vinho, andava descalço e tinha os cabelos compridos. Depois de cinco anos de silêncio e estudo, ele se dedicou a viajar e se diz que chegou até a Babilônia (onde conheceu os magos) e à índia (onde foi * * BARBAGLIO, Giuseppe. Jesús, Hebreo de Galilea: investigación histórica. [Traducción de Afonso Ortiz García]. Salamanca, Secretariado Trinitario, 2003, p.342. 208 WEISER, Afons. O Que é Milagre na Bíblia, p.87. 129 CARL®S AUGUS+® VAILA + + I discípulo de budistas e brahmanes). Chegou a Roma durante o reinado de Nero, de onde partiu depois para a Espanha e para a Etiópia. Segundo conta-se, ele morreu na cidade de Éfeso em uma idade muito avançada, embora outras fontes afirmem que ele simplesmente desapareceu.209 PIKE, Edgar Royston. Diccionario de Religiones. [Adaptación de Elsa Cecilia Frost]. México, Fondo de Cultura Econômica, 2001, p.33. Segundo A. Weiss, Apolônio morreu com a idade aproximada de cem anos. (Cf. WEISS, Adolfo. La Ley Universal de Las Sociedades. Buenos Aires, Editorial Kier, 1949, p.402). 210 PIKE, Edgar Royston. Op.Cit., p.33. 211 WEISER, Afons. Op.Cit., p.87. Apolônio parece ter sido uma espécie de reformador moral e religioso que tentou revitalizar o paganismo e que foi adorado durante séculos como uma pessoa divina (tal como ocorreu também com Pitágoras). Hegel, e com ele muitos outros historiadores da Filosofia, afirmam que as histórias milagrosas tanto sobre Pitágoras, como também sobre Apolônio de Tiana, foram tentativas de se criar uma personalidade pagã que pudesse opor-se à de Cristo.210 211 Todavia, como Apolônio era visto por alguns escritores da Antigüidade? Bem, seu primeiro biógrafo, Moirágenes, o via como um mago. Já Luciano de Samósata (II século d.C.) o vê como saltimbanco e enganador. O primeiro a escrever um trabalho mais amplo sobre Apolônio foi Filóstrato, escritor da corte do imperador Sétimo Severo, com a obra Vida de Apolônio de Tiana, em tomo de 200 d.C., a pedido de Júlia Domna, mulher do imperador. Essa obra é a biografia mais antiga que se conhece a respeito de um taumaturgo pagão. Filóstrato, ao contrário das opiniões anteriormente esboçadas, não via em Apolônio um mago ou um feiticeiro, mas o enxergava como um homem sábio que fora iluminado divinamente e um taumaturgo • 711que fora agraciado com poder divino. Vejamos um famoso relato de exorcismo que é atribuído a ele: 130 sa+anás. DemêNies e legiã® Certa feita, estando Apolônio a falar em Atenas sobre as vítimas da bebida, um jovem se pôs a troçar das coisas que ele dizia. Então Apolônio olhou para ele e lhe disse: "Não é você pessoalmente que procede, assim, arrogantemente. E o demônio que leva você a agir desse modo, sem você se dar conta”. E de fato, o jovem estava possesso de um demônio, sem o saber, pois ria à toa de coisas de que ninguém achava graça, e depois chorava sem nenhum motivo, além de ter o costume de andar falando ou cantando sozinho. Muitas pessoas pensavam que era a alegria impetuosa da juventude que o levava a tais explosões, mas, na realidade, era a boca do demônio que o fazia... Quando Apolônio o encarou, o espírito que estava nele começou a gritar de medo e de raiva, como um homem que estivesse sendo queimado ou torturado. E o espírito jurava que deixaria o jovem e não voltaria mais a se apoderar de pessoa alguma. Então Apolônio, cheio de raiva, o repreendeu severamente... e lhe ordenou que saísse do jovem e mostrasse, por algum sinal visível, que obedecera. “Eu vou derrubar aquela estátua que está ali ”, disse o demônio, e apontou para uma estátua que estava no átrio real, onde o episódio se passara. Assim que a estátua começou a se mexer e, a seguir, caiu, ouviu-se um barulho indescritível. O Jovem, porém, esfregava os olhos, como se acabasse de despertar de um sono. Olhou para os raios do sol c mostrou uma expressão humilde, enquanto a atenção de todos se voltava para ele. Depois corrigiu sua vida, recuperou-se e orientou sua vida, no futuro, pelo exemplo de Apolônio. (Vida de Apolônio de Tiana, IV, 20 - Os itálicos são meus).212 PHILOSTRATUS, Flavius. The Life of Apollonius of Tyana. CONYBEARE, F. C., in The Loeb Classical Library, London, 1960, 5a ed., 11. Apud: WEISER, Afons. O Que é Milagre na Bíblia, p.88. Esse relato sobre o exorcismo de Apolônio de Tiana, em especial, nos mostra que as narrativas helenísticas de exorcismos 131 CARLffiS AUGUS+® VAILA + + I pareciam seguir uma estrutura bem definida. Seguindo a opinião de Afons Weiser,213 a estrutura pode ser assim esquematizada: WEISER, Afons. Op.Cit., pp. 89,90. Estrutura de um Relato de Exorcismo Típico 1. Indicação da situação e descrição do estado do possesso; 2. Encontro do Exorcista com o possesso; 3. Tentativa de defesa por parte do demônio; 4. Ordem dada pelo exorcista ao demônio para que saia do possesso; 5. Saída do demônio acompanhada de demonstração; 6. Reação dos espectadores. Filóstrato e o Relato Sobre o Exorcismo de Apolônio 1. Apolônio realiza uma conferência em Atenas: um certo jovem zomba, ri, chora e fala sozinho; 2. Apolônio o encara e fala com ele; 3. O demônio pressente o exorcista, grita e promete sair; 4. Apolônio ordena que o demônio abandone o possesso e o mostre através de um sinal visível; 132 SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî 5. O demônio sai e derruba uma estátua, fazendo barulho; 6. Todos voltam sua atenção para o que fora curado. Embora Flavius Filostratus, ou simplesmente, Filóstrato, o autor da Vida de Apolônio de Tiana, tenha vivido entre 175- 245 d.C., e, portanto, a mais de um século de distância de seu biografado (Apolônio viveu de 4 a.C. a 90 d.C.), contudo, sua obra é de suma importância para o nosso trabalho, pois nos permite fazer um balanço entre as supostas práticas exorcísticas de Apolônio de Tiana e os exorcismos praticados por Jesus. Porém, algo mais deve ser dito sobre Apolônio, a fim de que possamos delinear melhor o seu perfil. Eunápio, o pupilo de Crisanto, um dos instrutores do imperador Juliano, escrevendo no fim do IV século d.C., disse que Apolônio era mais do que um filósofo. Ele foi, por assim dizer, Ti Gecov tekoci avQpcoKou pEcrov (Ti theõn te kai anthrõpou meson), isto é, “um meio termo entre os deuses e os homens”.214 * Filóstrato, na conclusão de sua obra (viii, 31), diz que viajou por várias partes do mundo e que por onde andava se deparava com as Xoyotç ôaipoviotç (logois daimoniois) “palavras inspiradas” de Apolônio. ’ Certa vez, Apolônio foi para Pérgamo, na Ásia Menor, e conheceu o templo de Esculápio. Conta-se que ele curou muitos pacientes naquele lugar.216 Todavia, devemos nos lembrar que os endemoninhados não tinham acesso aos templos de Asclépio (ou Esculápio).217 Portanto, se Apolônio realizou, de fato, milagres ali, devem ter sido curas, e não exorcismos. E ainda, em outro MEAD, G.R.S. Apolônio de Tiana. [Tradução de Raul Branco]. Brasília, Editora Teosófica, 2000, p.44. 2 1 5■ Idem, Ibidem, p.58. “16 Idem, Ibidem, p.82. ? I 7 WEISER, Afons. O Que é Milagre na Bíblia, p.87. 133 CARL®S AUGUS+ffi VAILA + +I episódio, quando tentaram atirá-lo a cães raivosos para que estes o estraçalhassem, Apolônio desapareceu de forma misteriosa.218 RIJCKENBORGH, J. Van. O Nuctemeron de Apolônio de Tiana. Jarinu, Editora Rosacruz, 2003, p.l 1. 219 Por exemplo, MEAD, G.R.S. Apolônio de Tiana, p.8. Aliás, também pode ser encontrado no prefácio desta obra uma tentativa de identificar o “Apoio” mencionado em algumas epístolas paulinas com “Apolônio de Tiana”. (Cf. Op.Cit., pp. 11-15). Assim, de posse de tais informações, podemos chegar às seguintes conclusões: Primeira, os relatos fantásticos sobre a vida de Apolônio de Tiana, senão todos, pelo menos grande parte deles, devem ser enxergados como meras lendas repletas de fantasias, os quais foram produzidos ou coletados (talvez também adaptados) por Filóstrato com o objetivo de angariar prestígio diante de Júlia Domna, esposa do imperador Sétimo Severo, a qual lhe havia encomendado a obra. Segunda, as histórias miraculosas a respeito de Apolônio de Tiana foram, certamente, tentativas de se criar uma personalidade taumatúrgica pagã que pudesse rivalizar-se à pessoa de Cristo. Terceira, as supostas semelhanças existentes entre as vidas e ministérios de Apolônio de Tiana e de Jesus, tão defendidas por alguns,219 devem ser vistas com muitas reservas e, sobretudo, sob um olhar crítico, pois tais semelhanças não se sustentam quando submetidas a uma análise bíblico-teológica. Quarta, Apolônio de Tiana deve ser visto mais como um filósofo místico-sincrético, a quem a crendice popular atribuiu uma coleção de feitos notáveis, do que propriamente um taumaturgo, no sentido mais pleno da palavra. Finalmente, por mais paradoxal que possa parecer, embora tais relatos apolonistas estejam repletos de mitos, fantasias e lendas, contudo, ainda assim são importantes, pois nos fornecem um material auxiliar que nos permite conhecer, por exemplo, como funcionava a estrutura das práticas exorcísticas no antigo mundo pagão. b) O Sírio Anônimo da Palestina 134 SA + ANÁS, DEmêNieS Ê LEGIé O escritor grego Luciano de Samósata (c. 120-180 d.C.), amante da sátira e oponente das crenças religiosas, nos relata em sua obra Philopseudes, que significa “amigo da mentira”, alguns casos de exorcismos. Num destes casos, ele coloca na boca de um certo íon - que defendia a legitimidade de tais histórias de exorcismo - os seguintes dizeres: De boa vontade [diz íon] te perguntaria qual é a sua opinião sobre os que libertam aos endemoninhados de seus medos conjurando abertamente aos espectros. E isto não impede que eu te diga: todos conhecem ao sírio da Palestina, mestre na matéria de libertar endemoninhados, e quem é que não sabe quantas pessoas caem por terra com os olhos arregalados e a boca cheia de espuma ao verem a lua; quantos lunáticos este homem [o sírio] não colocou, novamente, em pé, e mandou de volta para casa, depois de ter expulsado deles, em troca de dinheiro, os espíritos malignos? De fato, quando estes doentes jazem por terra diante dele e ele pergunta ao demônio de onde ele vem e como c que ele entrou naquele corpo, o doente não diz uma palavra. E o diabo quem responde, em grego ou em alguma língua bárbara, dizendo quem é, de onde veio e como foi que entrou naquela pessoa. Então, ele o expulsa à força de esconjuros e, quando isso já não adianta, à força de ameaças. Eu mesmo vi, certa vez, um desses diabos, que era todo preto e como que defumado, sair de uma pessoa {Philopseudes, 16 - os itálicos e os acréscimos entre colchetes 220são meus). Esse intrigante exorcismo relatado por Luciano de Samósata nos fornece vários elementos relevantes para a nossa * LUCIANO. [Luciano de Samósata]. Relatos Fantásticos. [Traducción y Notas de Carlos Garcia Gual, Jaime Curbera, Marisa Del Barrio y Jorge Bergua], Madrid, Alianza Editorial, S.A., 1998, p. 126. 135 CARLGS AUGUS + ® VAILA + + I 221análise de Mc 5.1-20. Essa narrativa helenística sobre um caso de exorcismo, ainda que seja inventada, possui muitas coisas em comum com o relato evangélico que ora estamos analisando. Algumas observações devem ser feitas aqui: 1) O exorcista protagonista do relato é chamado de “sírio da Palestina”. Ao que tudo indica, Luciano parece estar se referindo a um contemporâneo seu (“todos conhecem ao sírio da Palestina”), pelo que dificilmente a menção parece fazer alusão a Jesus. 221222 2) O tal “sírio da Palestina” é descrito como sendo uma figura popular, cujos exorcismos praticados são vistos como sua especialidade. Segundo íon, ele é “mestre na matéria de libertar endemoninhados”. 3) As possessões demoníacas, neste relato, são comprovadas por meio de três comportamentos anormais, a) As pessoas “caem por terra”; b) Além 221 'Segundo Morton Smith: “E possível que esta paródia tenha sido inspirada em alguma história do evangelho, como Mc 5.1-19. Mas, é igualmente possível e mais provável que ambos, Luciano e o evangelho, se basearam em um conhecimento comum da dramaturgia popular praticada pelos exorcistas”. (Cf. SMITH, Morton. Jesus the Magician. Northamptonshire, The Aquarian Press, 1985, p.57). 222 Esta é a opinião de Jaime Curbera, in: LUCIANO. [Luciano de Samósata]. Relatos Fantásticos, nota 16, p.126. Aliás, segundo Morton Smith, “em todo momento, o exorcista de Luciano não é representado como Jesus, mas como um contemporâneo do próprio Luciano. A única característica que sugere uma paródia de Jesus é a identificação do homem como ‘o Sírio da Palestina’”. (Cf. SMITH, Morton. JM, p.57). Todavia, tal referência pode sim dizer respeito a Jesus. Luciano, como satirista que era, pode muito bem ter trocado intencionalmente a nacionalidade de Jesus - chamando-o de “sírio”, em vez de “judeu” - justamente como forma de satirizar a figura de Cristo. 136 sa+anás, DemêNies e lêgiã® disso, ficam “com os olhos arregalados”; e c) Ficam 223com a “boca cheia de espuma”. 4) Um conceito animista também é visto no relato, pois se acredita que “ao verem a lua”, muitos (os chamados “lunáticos”) ficam endemoninhados.*224 5) Este “sírio da Palestina”, depois de exorcizar o demônio da pessoa, mandava “de volta para casa” o que fora endemoninhado. Jesus também age assim em Mc 5.19: “Vai para a tua casa, junto aos teus, e anuncia-lhes as coisas que o Senhor tem feito a ti, e como teve misericórdia de ti”. 6) Contudo, este exorcista que era “mestre na matéria de libertar endemoninhados” expulsava os demônios “em troca de dinheiro”. O fato de se cobrar dinheiro em troca da expulsão dos demônios, a princípio, nos choca. Mas devemos nos lembrar, por exemplo, que “judeus exorcistas ambulantes eram comuns no Duas dessas três anormalidades, o “cair por terra” e o “espumar”, também são vistas em Mc 9.20 e Lc 9.39,42. Porém, o terceiro comportamento, o “arregalar dos olhos”, também pode estar implícito nestes textos. Curiosamente, o texto paralelo ao de Mc 9.14-29, isto é, Mt 17.14-21, diz, particularmente no verso 15, que o endemoninhado era um “lunático”. Já a passagem paralela de Lc 9.37-43 nadadiz a esse respeito. 224 A palavra grega usada para se referir a um “lunático” é o vocábulo 0£Ár|ViáÇop.ai (selêniàzomai), que significa literalmente “estar atacado pela lua”, ou então, “ser epilético”. (Cf. THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.573). Segundo Daniel J. Harrington, “o lunático é normalmente tomado como uma referência aos epiléticos (de quem se pensava na Antigüidade que a doença estava relacionada às fases da lua). Mas o termo provavelmente incluía mais do que os epiléticos - todos aqueles que estavam sob a nociva influência da lua”. (Cf. HARRINGTON, Daniel J. (ed.). The Gospel of Matthew. Vol.l. [Sacra Pagina]. Collegeville, The Liturgical Press, 1991, p.73). 137 CARL©S AUGUS+® VAILA + + I mundo antigo”. Aliás, como disse Henri Daniel- Rops, “havia exorcistas profissionais entre os rabinos”, os quais, segundo ele, “iam de cidade em cidade cruzando as estradas da Terra Santa na prática de sua profissão”.225 226 225 PFEIFFER, Charles F. & HARRISON, Everett F. WBC, p.l 160. 226 ROPS, Henri Daniel. A Vida Diária nos Tempos de Jesus. [Tradução de Neyd Siqueira], São Paulo, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1991, p.201. 227 Ricardo Mariano, descrevendo um ritual exorcístico da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), comenta algo que nos faz lembrar este antigo relato de exorcismo pagão: “[...] uma mulher [...] fica possessa [...]. Logo o demônio é amarrado e a possessa é levada ao púlpito. O pastor pergunta, gritando, qual é o nome do demônio que a está possuindo. Vencida a resistência inicial, recebe a resposta, com a voz cavernosa de sempre: ‘Exu Capa-Preta’. Insolente, o Exu diz odiá-lo. O pastor, então, escarnece dele, dizendo estar tremendo de medo. Todos riem. O pastor indaga o que o Exu está fazendo na vida da possessa. Estou matando-a aos pouquinhos, responde ele. Segurando-a pelos cabelos, o pastor pergunta com qual doença ele a infligiu. Descobre que são várias as doenças que a acometem. [...] Do alto de sua experiência com o fenômeno, o pastor diagnostica que o problema é de natureza espiritual. [...] Após a expulsão do Exu Capa-Preta, o pastor diz que ela está curada em nome de Jesus [...]”. (Cf. MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo, Edições Loyola, 2005, p.132). 7) Outro aspecto curioso desta narrativa pagã de exorcismo é o fato de que o exorcista “pergunta ao demônio de onde ele vem e como é que ele entrou naquele corpo”. Esse tipo de talk show demoníaco nos soa bem familiar, uma vez que ainda pode ser encontrado com freqüência em algumas igrejas neopentecostais brasileiras em nossos dias.227 8) A tomada de posse da consciência do indivíduo por parte do demônio também pode ser vista neste relato. Assim que o exorcista pergunta ao demônio “de onde 138 SA + ANÁS, DÊfflÔNieS E LEGIé ele vem e como é que ele entrou naquele corpo”, somos informados de que “o doente não diz uma palavra”, pois “é o diabo quem responde”. Encontramos escrito, de forma análoga, em Mc 5.9: “E perguntava a ele: Qual é o teu nome? E ele responde: Legião é o meu nome, porque somos muitos”.228 Para Johnson e Dewelt, Jesus fez esta pergunta ao homem endemoninhado, mas foi o demônio quem a respondeu: “Qual è o teu nome? O Senhor fez esta pergunta ao homem aflito. Por qual motivo? Não há nada tão conveniente como uma calma e simples questão para trazer um louco a si. Não há forma mais natural de despertar em um homem que está fora de si a consciência de sua própria personalidade do que fazê-lo dizer seu próprio nome. O nome do homem torna-se a expressão de seu caráter e um resumo da história de sua vida. A primeira condição de alguma cura deste homem aflito era um retomo ao distinto sentimento de sua própria personalidade. E ele respondeu. O homem foi perguntado, mas o demônio respondeu, demonstrando seu total domínio sobre ele”. (Cf. JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST]. Missouri, College Press, 1965, p. 144). Konya observa corretamente que “o exemplo da conversação de Jesus com um demônio no episódio do endemoninhado geraseno (...) não pode ser usado como uma justificativa para se travar diálogo com demônios”. (Cf. KONYA, Alex. Demônios, uma perspectiva baseada na Bíblia. [Tradução de Daniel Faliosa]. São Paulo, Editora Batista Regular, 2002, p.76). 9) Esta narrativa pagã que descreve um exorcismo diz ainda que o diabo responde às perguntas feitas pelo exorcista “em grego ou em alguma língua bárbara”. O interessante desse trecho é o fato de o diabo ser identificado como aquele que fala a língua grega ou então alguma língua bárbara. Dito de outra forma, o demônio exorcizado pelo “sírio da Palestina” não fala o idioma sírio, mas se comunica por meio de idiomas alheios (pagãos). Talvez, a explicação para isso possa ser encontrada no fato de que o “nós” sempre se encontrará ao lado do bem, enquanto que o “eles” 139 CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I estará sempre em situação diametralmente oposta, isto é, ao lado do mal. Como disse Ivo Pedro Oro: “Os outros, que não estão no caminho da salvação e não aderem à verdade, são o inimigo”.229 E Elaine Pageis ainda complementa esse pensamento quando fala sobre “certas linhas de falha na tradição cristã que permitiram o endemoninhamento dos ‘outros’ durante toda a história cristã”.230 ORO, Ivo Pedro. O Outro é o Demônio: uma análise sociológica do fundamentalismo. São Paulo, Paulus, 1996, p. 127. 230 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás: um estudo sobre o poder que as forças irracionais exercem na sociedade moderna, p. 18. 10) Esse relato de exorcismo pagão diz ainda que o exorcista sírio da Palestina, às vezes, via os seus esforços exorcísticos frustrados, pois ele expulsava o demônio “à força de esconjuros”. Todavia, o texto prossegue dizendo que “quando isso já não adianta”, então o exorcista expulsa o demônio “à força de ameaças”. Talvez, tais ameaças possam encontrar também o seu paralelo, por exemplo, em Mc 3.11,12, quando os espíritos malignos se dirigem a Jesus identificando-o como “o Filho de Deus” e Jesus os ameaça para que não divulguem tal informação. Contudo, a diferença entre os exorcismos do sírio da Palestina e os exorcismos de Jesus reside no fato de que Jesus nunca se valeu da “força” para expelir os demônios. Ele sempre os expulsou com base na sua própria autoridade. 11) Finalmente, devemos dizer algo sobre as palavras de íon, quando declara ter visto “um desses diabos, que era todo preto e como que defumado”. Esta menção à cor de um desses diabos não deve ser entendida como 140 SA+ANÁS, DEmèNies E LEGIé uma declaração racista. Antes, devemos ver nela uma declaração simbólica, a qual associa o mal a esta cor que, por sua vez, faz referência às trevas. Já a alusão feita à “defumação” pode ser entendida como sendo uma referência feita à queima de algum tipo de substância (uma raiz?), a qual produzia um efeito exorcístico, tal como o faziam as raízes receitadas por Salomão, (cf. ainda: Tb 8.1-3). 1.3.7. Os Papiros Mágicos Gregos231 Baseio-me aqui principalmente em: BETZ, Hans Dieter, (ed.). The Greek Magical Papyri in Translation, including the demotic spells. Vol. One: Texts. Chicago & London, The University of Chicago Press, 1992. Para obter mais informações sobre os Papiros Mágicos Gregos, veja: CHEVITARESE, André Leonardo & CORNELL1, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo e Helenismo: ensaios acerca das interações culturais no Mediterrâneo Antigo. São Paulo, Annablume / Fapesp, 2007, pp.81-101. Esta obra reflete, de forma parcial, as dissertações de mestrado em Ciências da Religião defendidas por estes autores entre 1998 e 1999. Os Papiros Mágicos Gregos (a partir daqui PMG) ganharam este nome dos estudiosos, os quais o empregaram para se referir ao conjunto de papiros do Egito greco-romano que contêm em seu corpo uma variedade de encantos e fórmulas mágicas, hinos e rituais. Os textos sobreviventes vão principalmente do século II a.C.até o V século d.C. Os PMG são importantíssimos para o nosso estudo de Mc 5.1-20, merecendo um tópico à parte em nosso trabalho, pois eles nos permitem conhecer como funcionavam, sobretudo, as práticas religiosas do antigo mundo mediterrâneo helenístico. E, dentre elas, interessa-nos em particular as referências às fórmulas ou encantamentos utilizados com o fim de repelir demônios. Notemos alguns textos selecionados dos PMG que tratam destes assuntos, os quais transcrevemos abaixo: 141 CARLOS AUGUS + ffi VAILA + + I a) PMG IV. 86-87 232233 232 BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, p.38. 233 Ou “Para aqueles que estão possuídos por demônios”, 0 que parece ser a melhor leitura do papiro. O manuscrito traz Ttpòç 8ai|iovtaÇopévo(u)ç. (Cf. BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, p.38, nota 26). 234J BETZ, Bans Dieter, (ed.). GMPT, p.62. 235 Morton Smith traz aqui “Jesus Cristo”. (Cf. SMITB, Morton. Jesus the Magician, p.63). 236 L. Michael White comenta que a expressão “eu te ordeno / conjuro” que aparece ao longo dos PMG constitui-se tradução do vocábulo grego eksorkizo (ou simplesmente orkizo), do qual procede 0 termo moderno “exorcismo”. (Cf. WHITE, L. Michael. De Jesús al Cristianismo: el nuevo testamento y la fe cristiana: un proceso de cuatro generaciones. [Traducción de José Pérez Escobar], Navarra, Editorial Verbo Divino, 2004, pp.77,78). 7-20 Filactério contra os demônios: “HOMENOS OHK KO URIEL IAPHEL, liberta” (adicionar ao usual), “EHENPEROOU BARBARCHAOUCHE”. b) PMG IV. 1227-64 234235 Excelente ritual para lançar fora os demônios: Fórmula a scr pronunciada sobre sua cabeça: Colocar ramos de azeitona diante dele, / e ficar cm pé atrás dele e dizer: “Salve, Deus de Abraão; Salve, Deus de Isaque; Salve, Deus de Jacó; Jesus Crestos, “ o Espírito Santo, o Filho do Pai, que está no Sétimo céu, / quem está junto ao Sétimo. Venha lao Sabaoth; que o seu poder lance para fora dele, NN, até que você lance para longe este demônio impuro, Satã, que está nele. Eu conjuro236 você, demônio, / quem quer que você seja, por este deus, SABARBARBATHIOTH SABARBARBATHIOUTH SABARBARBA-THIONETH SABARBARBAPHAI. Saia, demônio, quem quer que você seja, e fique longe dele, NN, / agora, agora; imediatamente, imediatamente. Saia, demônio, porque eu amarro você com cadeias inquebráveis c inflexíveis, c cu entrego você para o caos escuro na perdição”. 142 SA+ANÁS, DEfflffiNIffiS Ê LfGl© Preparação: tome 7 ramos de azeitonas; para seis delas / amarre junto as duas últimas de cada um, mas para as restantes use-as como um chicote quando você pronunciar a conjuração. Após ter lançado para fora o demônio, pendure ao redor dele, NN, um fílactério, o que foi colocado sobre o paciente após a expulsão do demônio - um fílactério com estas coisas [escritas] sobre / uma folha de uma lata de metal: “BOR PHOR PHORBA PHOR PHORBA BES CHARIN BAUBO TE PHOR BORPHORBA PHORBARBOR BAPHORBA PHABRAIE PHORBA PHARBA PHORPHOR PHORBA / BOPHOR PHORBA PHORPHOR PHORBA BOBORBORBA PAMPHORBA PHORPHOR PHORBA, proteja-o, [contra] NN”. c) PMG IV. 3007-86237 37 BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, pp.96,97. Um amuleto testado por Pibechis (um mágico lendário do Egito) para aqueles que estão possuídos por demônios: Tome óleo de oliva verde com a erva mastigia e a polpa da fruta de uma lótus, e cozinhe-as com coloridas manjeronas / enquanto você diz, “IOEL OS SARTHIOMI EMORI THEOCHIPSOITH SITHEMEOCH SOTHE IOE M1M1PSOTHIOOPH PHERSOTHI AEEIOYO IOE EO CHARI PHTHA, sai de NN”. O fílactério: Sobre uma lata escreva / “IAEO ABRAOTH IOCH PHTHA MESENPSIN IAO PHEOCH IAEO CHARSOK”, c pcndurc-a no paciente. Ela é apavorante para todos os demônios, algo que eles temem. Após colocar [o paciente] diante [de você], faça o conjuro. Esta é a conjuração: “Eu conjuro você pelo deus dos Hebreus, / Jesus, IABA IAE ABRAOTH AIA THOTH ELE ELO AEO EOY IIIBAECH ABARMAS IABARAOU ABELBEL LONA ABRA MAR01A BRAKION, quem aparece no fogo, quem está no meio da terra, [na] neve, e [no] fogo, TANNETIS; deixe seu / anjo, o implacável, descer e 143 CARLffiS AUGUS + ® VAILA + + I deixe-o designar o demônio que voa por aí nesta forma, com a qual deus formou em seu santo paraíso, porque eu suplico ao santo deus, [chamando] sobre AMMON IPSENTANCHO (fórmula). Eu conjuro você, LABRIA IAKOUTH / ABLANATHANALBA AKRAMM (fórmula) AOTH IATHABATHRA CHACHTHABRATHA CHAMYN CHEL ABROOTH OUABRASILOTH HALLELOU IELOSAI IAEL. Eu conjuro você por aquele que apareceu a Osrael (forma variante de Israel) em uma coluna de fogo e em uma nuvem de dia (LXX, Ex 13.21,22), que salvou seu povo de Faraó e trouxe sobre Faraó as dez pragas por causa de sua desobediência (LXX, Ex 7.8-11.10). Eu conjuro você, todo espírito demoníaco, a falar, qualquer que seja a sua espécie, porque eu conjuro você pelo selo / que Salomão colocou na língua de Jeremias, e ele falou. Você também diz qualquer que seja a sua espécie, celestial ou aérea, quer seja terrestre ou subterrânea, ou mundana inferior ou Ebousaeus ou Cherseus ou Pharisaeus, diga / qualquer que seja a sua espécie, porque eu conjuro você por deus, portador de luz, invencível, que conhece o que está no coração de todo ser vivente, o que formou do pó a raça humana (LXX, Gn 2.7), o que, após trazê-los para fora da obscuridade, enche junto com as nuvens, rega a terra com chuva / c abençoa seus frutos, [aquele] a quem todos os poderes celestiais dos anjos c arcanjos louvam. Eu conjuro você pelo grande deus SABAOTH, através de quem o rio Jordão voltou para trás (LXX, Js 3.13,14; SI 113.3) c o Mar Vermelho, / que Israel atravessou, tomou-sc intransponível (LXX, Ex 14.27), porque eu conjuro você por aquele que introduziu cento e quarenta línguas e as Segundo Betz, Deissmann deriva estes nomes de demônios da LXX (Gn 15.20,21; Ex 3.8,17 etc). Os Xettociol se tomaram Xspcraioç (“demônio da terra”), os 0epeÇáioi se tornaram «Eaptoaioç (que, portanto, têm sido confundidos com os fariseus), e os lepovoaiot se tornaram ’ Epowdioç. (BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, nota 395, p.96). 239 Muitas fontes judaicas falam de setenta nações e setenta idiomas no mundo. Mas há autoridades que marcam cento e quarenta idiomas. (Cf. BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, nota 400, p.97). 144 SA + ANÁS, DEmêNies E LEGIé distribuiu pelo seu próprio comando. Eu conjuro você por aquele que queimou com fogo aos obstinados gigantes com um raio (Gn 6.4; 19.24-29), o qual o céu dos céus louva, quem as asas do querubim louvam. Eu conjuro você por aquele que colocou as montanhas ao redor do mar [ou] um muro de areia e ordenou ao mar que não transbordasse (LXX, Jó 38.10,11; Jr 5.22). O abismo obedeceu (LXX, Pr 8.26-29; Jó 38. 30,34); e você obedece, / todo espírito demoníaco, porque eu conjuro você por aquele que faz os quatro ventos se moverem (LXX, SI 134.7; também Gn 8.1; Nm 11.31; Jó 28.25 etc) junto dos santos aions, [os] tal como o céu, como o mar, como as nuvens, portador de luz, [o] invencível. Eu conjuro [você] por aquele na santa Jerusalém, diante de quem o / fogo inextinguível queima por todo tempo, com seu santo nome, IAEOBAPHRENEMOUN (fórmula), aquele diante dc quem a ardente Geena treme, chamas envolvem, irrompendo numa explosão distante e todas as montanhas ficam amedrontadas desde a sua fundação. / Eu conjuro você, todo espírito demoníaco, por aquele que supervisiona a terra e faz sua fundação tremer (LXX, SI 103.32), aquele que torna todas as coisas que não são naquelas que são.240 E eu adjuro você, àquele que recebe esta adjuração, / a não comer carne de porco, c todo espírito e demônio, quem quer que seja, estará sujeito a você. E enquanto estou conjurando, amaldiçoo uma vez, amaldiçoando o ar desde as extremidades dos pés até a face, c estará determinado. Mantenha-se puro, para este feitiço / é hebraico e está conservado no meio dos homens puros.241 240 Trata-se de uma referência à creatio ex nihilo. 241 'E muito curiosa a ligação que este PMG faz entre se abster de comer carnede porco (uma prática que indica pureza) e o conseqüente poder sobre os demônios. Tal como acontece em Mc 5.1-20, esse PMG também insere as figuras dos demônios, porcos, exorcismo e impureza num mesmo contexto. 242 BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, p.313. d) PMGCXIV. 1-14242 145 CARL®S AUGUS+® VAILA + +I [Proteja] - lhe, NN, ó Senhor, [de todas] as más obras [c de toda] visitação demoníaca [c] ... de Hécate e de .../ ataque e [de toda investida?] no sono ... [de] demônios mudos [e de toda] forma cpilctica [e de toda] epilepsia / c ... e .... Todos esses textos encontrados nos PMG são importantes, pois nos mostram muitas práticas e crenças referentes aos exorcismos, as quais envolvem, até mesmo, o próprio Jesus, como pôde ser visto no PMG IV, linha 3020, que diz: “Eu conjuro você pelo deus dos Hebreus, / Jesus [...]”.243 Em suma, podemos chegar às seguintes conclusões a respeito destes textos dos PMG que acabamos de citar: Primeira, os amuletos, talismãs, benzeduras e demais práticas apotropaicas eram utilizadas em larga escala nos PMG com o intuito de repelir os demônios que afligiam as pessoas. Segunda, o sincretismo e as práticas rituais supersticiosas encontradas nos PMG transformaram tais textos numa espécie de receituário ou manual exorcístico, os quais contêm ritos que lembram muito, inclusive, algumas práticas do nosso contexto neopentecostal brasileiro atual. E a terceira e, talvez, mais importante conclusão, pelo fato de lançar luz sobre o nosso tema, é que estas práticas exorcísticas relatadas nos PMG descrevem como as comunidades do antigo mundo mediterrâneo helenístico lidavam com a questão demonológica. Embora haja, sem dúvida alguma, diferenças entre os exorcismos encontrados nos Evangelhos e os mencionados nos PMG, contudo, existem também algumas semelhanças entre ambos, como, por exemplo: Para outros textos dos PMG nos quais o nome de Jesus aparece envolvido em rituais de exorcismo, consulte: SMITH, Morton. Jesus the Magician, p.63. 146 SA+ANÁS, DEfTlffiNIffiS E LEGIé 1) A ordem de comando para que o demônio saia (PMG IV. 1240-45; cf. Mc 1.26,27); 2) A “amarração” do demônio por parte do exorcista (PMG IV. 1245; cf. Mc 3.27); 3) O uso do nome de Jesus para expulsar o demônio (PMG IV. 3020; cf. Lc 9.49; At 19.13); 4) A alusão às Escrituras no combate contra o mal (PMG IV. 3030-75; cf. Mt 4. Iss; Lc 4. Iss). 1.3.8. Jesus, o Exorcista-Mor Depois de termos falado sobre inúmeros exorcistas, tanto no contexto judaico, como também no contexto pagão, devemos agora nos dirigir àquele que, a meu ver, constitui-se no paradigma da prática exorcística, o “exorcista-mor”, Jesus.244 a) Jesus e o Ambiente em que Viveu Para falarmos sobre a figura aretológica de Jesus, sobretudo em seu papel de exorcista, temos que retroagir até o I século d.C. a fim de que o situemos dentro do Sitz im Leben do Os dizeres de Charlesworth referentes a Jesus: “[ele] praticou curas (provavelmente também exorcismos)” demonstram claramente o ceticismo que esse autor tem quanto ao papel de Jesus como exorcista. (Cf. CHARLESWORTH, James H. Jesus Dentro do Judaísmo: novas revelações a partir de estimulantes descobertas arqueológicas. [Tradução de Henrique de Araujo Mesquita], Rio de Janeiro, Editora Imago, 1992, p. 182). Já D. Scardelai, segundo penso, declarou acertadamente que “de todas as expressões populares que conhecemos, Jesus estava mais próximo da corrente de líderes conhecida como carismático-hassídico que aflorava na Galiléia no século I. O tipo do profeta hassídico (piedoso) que atuava na Galiléia era dotado, segundo a concepção camponesa, de habilidade para praticar milagres, curas, cujos poderes tocavam o sagrado de modo peculiar”. (Cf. SCARDELAI, Donizete. Movimentos Messiânicos no Tempo de Jesus: Jesus e outros messias. São Paulo, Paulus, 1998, p.315). 147 CAR.L©S AUGUS+® VAILA + + I qual ele fez parte. Nesse aspecto, creio que Juan Arias possa nos fornecer um bom resumo sobre o período histórico que antecedeu a época neotestamentária, o qual, sem dúvida alguma, contribuiu para que fosse delineado o cenário no qual Jesus viveu e exerceu o seu ministério itinerante. Eis as palavras de Arias: (...) a Palestina esteve muito tempo sob influências estrangeiras, principalmente fenícias e egípcias. A persa, sobretudo, foi importante tanto para o desenvolvimento do monoteísmo como da demonologia. Também eram conhecidas na Palestina as práticas mágicas gregas. Nos trezentos anos que separam a conquista de Alexandre da aparição de Jesus, a Galilcia fora governada por gregos e romanos. Todas essas culturas aceitavam que o universo é povoado de criaturas sobrenaturais, como anjos, demônios, espíritos do além-túmulo etc.245 ARIAS, Juan. Jesus, Esse Grande Desconhecido. [Tradução de Rubia Prates Goldoni], Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, pp. 175,176. De acordo com Bultmann: “(...) a concepção do reino de Deus é mitológica (...), como o são assim mesmo as pressuposições em que se embasa a expectação do reino de Deus, a saber, a teoria de que o mundo, ainda que criado por Deus, é regido pelo diabo. Satanás e seu exército, os demônios, são a causa do mal, pecado e enfermidade. Toda a concepção do mundo que pressupõe tanto a pregação de Jesus como a do Novo Testamento, é, em linhas gerais, mitológica, por exemplo, (...) a concepção dos milagres, especialmente a ideia da intervenção de poderes sobrenaturais na vida interior da alma, a ideia de que os homens podem ser tentados e corrompidos pelo demônio e possuídos por maus espíritos. A esta concepção de mundo qualificamos de mitológica (...)”. (Cf. BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e Mitologia. [Tradução de Daniel Costa]. São Paulo, Novo Século, 2000, pp. 13,14). Paliares, ao fazer uma crítica a esse tipo de racionalismo bultmanniano, declara: “Nós nos recusamos a ver em Jesus um milagreiro; ao ‘encantamento’ celeste preferimos a seriedade e autenticidade do drama humano. Facilmente racionalizamos as narrações sobre os milagres de Jesus, com medo de perder a seriedade do evangelho, mas também com medo de ficar mal aos olhos dos que manipulam as idéias, e o que é pior, com medo de ser confundidos com os pobretões ignorantes”. 148 SA+ANÁS, DEm©N!©S Ê LEGIé Em outras palavras, Arias está dizendo que Jesus “herdou” esse tipo de cultura que valorizava em extremo o elemento sobrenatural. Todavia, não é somente esse autor que pensa assim. John A. Sanford, além de relacionar o ministério de cura de Jesus ao seu papel de exorcista,* 246 também entende que a crença demonológica de Jesus não era nada mais, nada menos, do que o reflexo da fé popular de sua época. Em suas palavras: (Cf. PALLARES, José Cárdenas. Um Pobre Chamado Jesus: releitura do evangelho de Marcos. São Paulo, Paulinas, 1988, p.38). 246 Segundo M. Forward, “está claro que Jesus de Nazaré foi lembrado como agente de cura e exorcista. Na verdade, seu nome hebraico, Yehoshua, significa ‘Deus é a salvação’ ou mesmo ‘Deus é a cura’”. (Cf. FORWARD, Martin. Jesus: uma pequena biografia. [Tradução de Merle Scoss]. São Paulo, Editora Cultrix, 1998, p.97). 247 SANFORD, John A. Mal, o Lado Sombrio da Realidade. [Tradução de Sílvio José Pilon e João Silvério Trevisan], São Paulo, Paulus, 1988, p.51. Gustaf Aulén comenta que “Ele (Jesus) rejeitou a visão popular animista dos demônios, e os considerou todos como sujeitos a Satã, de modo que cada exorcismo era um julgamento de poder contra o próprio Satã”. (Cf. AULÉN, Gustaf. Christus Victor: an historical study of the three main types of the atonement. [Translated by A. G. Hebert]. New York, Macmillan Publishing Co., Inc., 1969, p.76). Segundo Stewart: “Nos dias de Jesus as doenças eram normalmente atribuídas à agência demoníaca, não somente os casos de ‘possessão’ (...), mas todos os tipos de enfermidades. Quanto ao mundo dos espíritos, [o povo] estava seguro de estar cheio dessas malignas influências, emissárias do mal. Portanto, sempre que umacura era realizada, ela significava que um desses espíritos tinha sido expulso”. (Cf. STEWART, James S. The Life and Teaching of Jesus Christ. Nashville, Abingdon Press, 1979, p.93). Jesus freqüentemente encontrava Satã ou seu bando de demônios, principalmente no seu trabalho de cura, e evidentemente concordava com a idéia popular de que muitas, senão todas, das doenças do corpo e do espírito eram aflições do poder do mal.247 149 CARLffiS AUGUS + ffi VAILA + + I Já Freyne, de forma perspicaz, situa a prática exorcística de Jesus dentro de um contexto de crítica às normas vigentes estabelecidas, sobretudo, contra o governo romano: Os exorcismos de Jesus não eram (...) simples histórias de cura, ainda que cm muitos casos também fossem vistos dessa maneira, já que no mundo antigo a enfermidade ou as anormalidades físicas se atribuíam à presença invasora de espíritos malignos. Ao livrar do demônio aos afetados, Jesus os rcincorporava de novo ao mundo social do qual haviam sido excluídos, c ao fazê-lo colocava em discussão de juízo as normas pelas quais foram primeiro considerados desviados. Dito brevemente, os exorcismos de Jesus constituíam uma seria ameaça para as normas c valores preponderantes relacionados com o poder c o controle na Galiléia herodiana, e também para 248 os chefes supremos romanos que apoiavam essas normas. Ora, naqueles tempos antigos, época em que as pessoas não tinham acesso a um sistema de saúde pública eficaz, a religiosidade popular depositava toda a sua expectativa de cura, por exemplo, nos acontecimentos milagrosos. Aliás, tal esperança alicerçada no elemento miraculoso acabou se estendendo até o período da Idade Média, época esta dentro da qual Richard Gordon confere aos exorcismos um papel de destaque: Na Antioquia, em 1098, o tifo e a disenteria dizimaram os cruzados, homens e cavalos. O medo generalizado da infecção fez maravilhas para o índice de conversão ao cristianismo, espccialmcnte porque o único recurso da saúde publica era o exorcismo. 248 FREYNE, Sean. Jesús, un Galileo Judio: unalectura nueva dela historia de Jesús. [Traducción de José Pedro Tosaus], Estella, Editorial Verbo Divino, 2007, pp. 199,200. 249 GORDON, Richard. A Assustadora História da Medicina. [Tradução de Aulyde Soares Rodrigues], Rio de Janeiro, Ediouro, 1997, p.34. Para uma 150 SA+ANÁS, DEmêNieS Ê LEGIé Ora, se em meados da Idade Média o exorcismo ainda era visto como o único recurso terapêutico disponível às pessoas, qual não deveria ser, então, a sua importância no cenário do I século A.D.? Aliás, deve-se dizer que os homens que detinham o conhecimento das fórmulas exorcísticas obtinham reputação e prestígio naquela antiga sociedade. Sabemos que Asclépio, o deus grego da cura, por exemplo, era invocado por aqueles que precisavam de ajuda, os quais também o adoravam. Asclépio possuía um santuário sede em Epidauro (uma cidade da Grécia Antiga), o qual fora erigido no IV século a.C., sendo que próximo ao templo havia muitos dormitórios onde os doentes ficavam hospedados, a fim de descansarem e receberem a cura durante o seu sono. As pessoas que eram agraciadas com a cura, como forma de gratidão, doavam ao santuário moldes de ouro ou de prata, os quais representavam as partes de seus corpos que haviam sido curadas.* 251 Ou então, demonstravam-se gratos através das ofertas trazidas ao templo. Asclépio era adorado como deus da arte, da cura e como salvador, o qual prestava auxílio aos homens.252 abordagem que analisa em conjunto a demonologia e a medicina, consulte: RUSSELL, Bertrand. Religion y Ciência. [Traducción de Samuel Ramos], México, Fondo de Cultura Econômica, 2006, pp.59-76. GUIGNEBERT, Charles. El Mundo Judio Hacia Los Tiempos de Jesus. [Tradução de Vicente Clavel]. México, Unión Tipográfica Editorial Hispano- Americana, 1959, p.99. 251 Essa prática de reproduzir órgãos/partes do corpo humano (em gesso) que foram curados, como forma de demonstrar gratidão, também é encontrada em larga escala em nossa religiosidade brasileira. Ela pode ser vista durante a festa do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré e em várias regiões do Nordeste em homenagem ao Padre Cícero e também em homenagem à Nossa Senhora Aparecida. Percebe-se, então, que tais práticas atuais refletem crenças populares muito antigas. 252 LOHSE, Eduard. Contexto e Ambiente do Novo Testamento. [Tradução de Hans Jõrg Witter]. São Paulo, Edições Paulinas, 2000, p.216. Para saber 151 CARLOS AUGUS + © VAILA + + I Saindo do mundo grego e indo para o contexto romano, vemos, por exemplo, que até mesmo ao imperador romano Vespasiano (69-79 d.C.) são atribuídas curas miraculosas. Os historiadores romanos Tácito (c. 55-120 d.C.) e Suetônio (c. 75- 150 d.C.) narram dois milagres ocorridos em Alexandria, os quais foram realizados por Vespasiano. Segundo eles, Vespasiano curou um homem de sua cegueira e outro de sua paralisia.253 Embora tais relatos sejam fantasiosos e tenham surgido certamente com o propósito de fazer o marketing pessoal do imperador, contudo, eles são importantes testemunhos da miséria em que viviam os povos antigos e, além disso, estas narrativas lendárias também explicam por que o povo nutria grande simpatia por aqueles que faziam milagres. Eles eram praticamente sua única esperança. mais sobre Asclépio e as curas atribuídas a ele, consulte: WEISER, Afons. O Que é Milagre na Bíblia, pp.39-43. 253 WEISER, Afons. Op.Cíí., pp.53-56. 254 MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico. Vol.II, Livro III. [Tradução de Laura Rumchinsky]. Rio de Janeiro, Imago, 1998, p.170. No mundo judaico, de forma semelhante, os taumaturgos também eram bem quistos, uma vez que eram vistos como pessoas dotadas de poderes especiais que poderíam ajudar o povo diante de seu estado de extrema penúria. Os já citados, Eleazar e Hanina Ben Dosa, são bons exemplos disso. Assim, é dentro desse contexto pré-científico misticizado que devemos situar Jesus e os seus milagres, com atenção especial aos seus exorcismos. Aliás, como afirmou John P. Meier, “os evangelhos sinóticos apresentam sete episódios distintos de Jesus realizando um exorcismo. O fato de haver sete ‘amostras’ individuais de um tipo específico de milagre, ou seja, o exorcismo, favorece o ponto de vista de que este constitui maioria no ministério de Jesus”.254 Desta forma, os exorcismos são enquadrados na categoria de milagres, assumindo papel de destaque no ministério taumatúrgico de Jesus. 152 SA + ANÁS, DE1T1®NI®S Ê LEGIé b) A Reputação de Jesus Como Taumaturgo- Exorcista Várias fontes da antiguidade judaica e greco-romana mencionam que Jesus e seus discípulos eram conhecidos como magos-exorcistas.255 AUNE, David. “Demonology”, ISB, 1:923. EVANS, Craig. “Jesus in Non-Christian Sources”, DJG, pp.364-68. Apud: OROPEZA, B. J. 99 Perguntas Sobre Anjos, Demônios e Batalha Espiritual, p.53. 256 Segundo Adin Steinsaltz, o Talmude sofreu diversas perseguições e censuras por parte da igreja católica ao longo da Idade Média e, até mesmo após este período, a tal ponto que “onde o Talmud faz referências críticas a Jesus ou ao cristianismo em geral, o comentário era completamente suprimido, e o nome de Cristo era sistematicamente retirado, ainda quando a referência não fosse negativa”. (Cf. STEINSALTZ, Adin. O Talmude Essencial. [Tradução de Elias Davidovich], Rio de Janeiro, A. Koogan Editor, 1989, p. 116). Para obter um bom resumo do conteúdo do Talmude Babilônico, veja, por exemplo: AUERBACH, Leo. (ed.). The Babylonian Talmud in Selection. New York, Philosophical Library, Inc.,1944; VIDAL, César. El Talmud. Madrid, Alianza Editorial S.A., 2003. 257 FONROBERT, Charlotte Elisheva & JAFFEE, Martin S. (eds.). The Cambridge Companion to Talmud and Rabbinic Literature. Cambridge, Cambridge University Press, 2007, nota 46, p.267. Do ponto de vista de uma abordagem negativa sobre a pessoa e obras de Jesus,algumas tradições judaicas antigas, por exemplo, afirmavam que “Jesus de Nazaré [...] praticava magia, seduzia e desviava o povo de Israel” (b. Sanhedrin 43a. compare com 107b).256 Em outro momento, somos informados por meio do T. Hullin 2.20-23 e do B. Abodah Zarah 27b, que o Rabi Ismael se regozija de que seu sobrinho tenha morrido antes de poder aceitar ser curado em nome de Jesus por um certo Yaacov ish Kefar Sekhanya.257 Tais concepções judaicas negativas acerca de Jesus parecem refletir o antagonismo sofrido por ele pela elite religiosa dos tempos neotestamentários, composta, sobretudo, por saduceus e fariseus. 153 CARLffiS AUGUS + ® VAILA + + I Contudo, saindo dessa perspectiva extremamente negativa da pessoa e obras de Jesus e focalizando-o de um ângulo positivo, encontramos um testemunho muito interessante e, ao mesmo tempo, controverso, a respeito de Jesus em Flávio Josefo (c.37-100 d.C.) no chamado testimonium Flaviamim (testemunho de Flávio), o qual nós transcrevemos abaixo: Foi nessa época que surgiu Jesus, homem sábio, se é que se deve chamá-lo de um homem. Pois era um fazedor de milagres e mestre dos homens que recebem com alegria a verdade. Atraiu para si muitos judeus e muitos gregos. Era Cristo. E quando, sob a denúncia de nossos primeiros cidadãos, Pilatos o condenou à crucificação, aqueles que primeiro o tinham adorado não deixaram dc fazê-lo, pois ele apareceu para eles três dias depois, ressuscitado. Como os profetas divinos tinham anunciado junto a mil outras maravilhas a seu respeito. E o grupo que recebeu o seu nome - cristãos - ainda não desapareceu. (Antiguidades Judaicas, XVIII, 63-64 - os itálicos são meus).258 Embora tais dizeres atribuídos à pena de Josefo sejam extremamente importantes para se delinear a figura taumatúrgico-exorcista de Jesus, uma vez que tais dizeres descrevem Jesus como “um fazedor de milagres” e alguém de quem se descreve “mil outras maravilhas a seu respeito”, contudo, tal depoimento Flaviano está cercado de polêmicas e controvérsias. A opinião prevalecente hoje é a de que o testimonium Flaviamim tenha sofrido algumas interpelações, isto é, algumas observações escritas na margem de um manuscrito por algum leitor cristão piedoso do início do século LEBEL, Mireille Hadas. Flávio Josefo: o judeu de Roma. [Tradução de Paula Rosas]. Rio de Janeiro, Imago, 1992, p.258. Para outra tradução do testimonium Flavianum, consulte: JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. Vol. 2. [Tradução de Vicente Pedroso], Rio de Janeiro, CPAD, 1992, p. 156. 154 SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî 259IV, as quais foram posteriormente incorporadas ao texto. Ora, embora tal relato esteja cercado de objeções, todavia, é importante mencioná-lo em nosso trabalho. Além das tradições judaicas e de Flávio Josefo, Orígenes (c. 185-254 d.C.), um dos principais teólogos da igreja grega, em sua conhecida obra, Contra Celso, também faz alguns comentários interessantes sobre a prática exorcística de Jesus e dos cristãos: Celso declara [...]: os cristãos parecem exercer um poder pelas invocações dos nomes de certos demônios, aludindo, penso eu, aos exorcistas que expulsam demônios. [Orígenes:] Mas parece caluniar evidentemente o Evangelho. Não é por meio de invocações que eles parecem exercer um poder, mas pelo nome de Jesus associado à leitura pública das histórias de sua vida. Esta leitura realmente consegue muitas vezes expulsar os demônios dos homens, sobretudo quando os leitores lêem com uma disposição sadia de verdadeira fé. Mas o poder de Jesus é tão grande contra os demônios que às vezes, ainda que pronunciado por pessoas más, produz seu efeito. [...] Em seguida [Celso], acusa o próprio Salvador: Foi por magia que ele pôde operar os milagres que pareceu realizar [...]. [Orígenes continua:] c claro que os cristãos não utilizam nenhuma prática de encantamento, mas invocam o nome de Jesus juntamente com outras palavras nas quais eles têm fé, conforme a divina Escritura. (Contra Celso I, 6 - os itálicos e os acréscimos entre colchetes são meus).* 260 LEBEL, Mireille Hadas. Op.Cit., p.259. Para uma discussão mais detalhada sobre a polêmica em tomo do testimonium Flavianum, consulte a mesma autora, in: Op.Cit., pp. 258-262. 260 ORÍGENES. Contra Celso. [Introdução e Notas de Roque Frangiotti; Tradução de Orlando dos Reis], São Paulo, Paulus, 2004, pp.45,46. Nesse relato de Orígenes, Celso declara que “foi por magia que ele [Jesus] pôde operar os milagres que pareceu 155 CARLOSAUGUS+O VAILA++I realizar”. Tal declaração se assemelha àquela já citada, segundo a qual “Jesus de Nazaré [...] praticava magia, seduzia e desviava o povo de Israel” (b. Sanhedrin 43a.).261 Deve-se lembrar aqui que, segundo o Didaqué V, 1 (o livro de instrução religiosa dos primeiros cristãos, que data de fins do I século d.C.), o caminho da morte envolvia as “práticas mágicas”. (Cf. STORNIOLO, Ivo & BALANCIN, Euclides Martins. (Trads.). Didaqué. São Paulo, Paulus, 2007, p. 17). Para um estudo detalhado sobre a magia do ponto de vista sócio- antropológico, consulte: MAUSS, Marcei. Sociologia e Antropologia. [Tradução de Paulo Neves]. São Paulo, Cosac Naify, 2003, pp.47-181. 262 De acordo com E. P. Sanders, “o exorcismo é (...) o tipo de cura mais proeminente nos Evangelhos sinóticos”. (Cf. SANDERS, E.P. A Verdadeira História de Jesus. [Tradução de Teresa Martinho Toldy e Marian Toldy]. Cruz Quebrada, Editorial Notícias, 2004, p. 193). Além desse texto que demonstra claramente o poder de Jesus sobre os demônios, devemos dizer que até mesmo os não- cristãos reputavam Jesus como um poderoso exorcista, pois usavam seu nome nas práticas exorcísticas (cf. Testamento de Salomão 6.8; 22.20; Contra Celso II, 49; PMG IV, 1234; compare com Lc 9.49; At 19.13). Finalmente, os Evangelhos - principalmente os sinóticos - relatam de forma acentuada o papel de exorcista desempenhado por Jesus.262 Jesus expulsa um espírito imundo de um homem na sinagoga de Cafarnaum (Mc 1.21-28; Lc 4.31-37); Ele efetua muitas curas e exorcismos (Mc 1.32-34; Mt 4.23,24; Lc 4.40,41); Ele é acusado de expulsar os demônios por Belzebu (Mc 3.22-30; Mt 12.22-32; Lc 11.14-23); Ele liberta o endemoninhado geraseno da legião de demônios que o possuía (Mc 5.1-20; Mt 8.28-34; Lc 8.26-39); Ele exorciza o demônio que possuía a filha da mulher sirofenícia (Mc 7.24-30; Mt 15.21-28); Ele expulsa o demônio de um rapaz, o qual o possuía desde a sua infancia, causando-lhe a mudez e a surdez (Mc 9.14- 29; Mt 17.14-21; Lc 9.37-43); Ele cura uma mulher de um 156 sa+ànás, DemêNies e legiã® espírito de enfermidade num dia de sábado na sinagoga (Lc 13.10-17); Ele expulsa o demônio de um homem, o qual lhe causava a mudez (Mt 9.32-34); E, por fim, Jesus expulsa sete 263demônios de Maria Madalena (Mc 16.9). Assim, concluímos nossa resumida abordagem sobre Jesus, o exorcista-mor. Tal abordagem nos mostra de forma inequívoca que a prática exorcística de Jesus foi um aspecto central em seu ministério público. 1.4. Conclusão Tendo em vista tudo o que foi dito até aqui sobre Satanás, demônios e exorcismos, podemos fazer os seguintes apontamentos: Primeiro, Satanás só adquire o status de personificação do mal de maneira efetiva nas páginas do Novo Testamento, uma vez que nas Escrituras veterotestamentárias tal contorno ainda não está bem definido. Segundo, os demônios praticamente não aparecem nas páginas do AT hebraico, sendo que só começam a ser mais notados por meio da LXX, a qual, como vimos, tratou de demonizar os deuses e ídolos pagãos. Além disso, o vínculo existente entre Satanás e os demônios, bem como, a relação hierárquica entre ambos, somente passa a ser percebida a partir do período intertestamentário, quando então uma espécie de “configuração organizacional” entre Satanás e os demônios começa a ser elaborada. Além do mais, a demonologia bíblica * Embora o trecho de Mc 16.9-20 não faça parte do texto original de Marcos, não estandonos melhores manuscritos, todavia, é importante mencioná-lo aqui, uma vez que tal relato descreve sete demônios possuindo o corpo de uma só pessoa, o que nos faz pensar na “mega-possessão” realizada no geraseno pela legião demoníaca em Mc 5.1-20. 157 CARLffiS AUGUS+® VAILA + + I encontra o ápice de seu desenvolvimento somente no I século d.C., principalmente através das inúmeras menções demonológicas encontradas nos escritos do NT. Terceiro, os exorcismos, em conseqüência da escassez de referências feitas aos demônios, também não são vistos nas páginas do AT, com exceção do exorcismo feito por Davi em relação a Saul, o qual, mesmo assim, está cercado de controvérsias com relação ao seu real significado. Já nas literaturas apócrifa e pseudepigráfica, bem como, na tradição judaica e no contexto pagão, tais relatos exorcísticos encontram- se em maior número, demonstrando claramente que a prática exorcística passou por um processo evolutivo ao longo dos tempos, até adquirir seu “formato final” como encontrado no NT. Quarto, Jesus surge no cenário do I século dentro de um contexto no qual as enfermidades são atribuídas aos demônios, os quais, por sua vez, também proliferam por toda parte no mundo antigo. Tais fatores propiciam o ambiente adequado para que Jesus atue como taumaturgo e, mais precisamente, como exorcista. E em quinto e último lugar, a prática exorcística de Jesus, como relatada nos Evangelhos, encontra certos paralelos em Eleazar e em Hanina ben Dosa (na tradição judaica) e em Apolônio de Tiana (no contexto pagão). Porém, deve ser dito aqui que as diferenças entre Jesus e tais exorcistas são maiores do que as semelhanças entre ambos. Jesus, ao contrário destes, nunca usa algum tipo de amuleto, encantamento, raiz, feitiço, ou mágica para expulsar os demônios, antes, ele os expulsa com base na sua própria autoridade como Filho de Deus e sem que precise invocar o nome de qualquer outro “deus” ou “personagem” em seus exorcismos. Dessa forma, Jesus é visto como um exorcista sem paralelos na história.264 As suas práticas 264 A tese de PhD de Estevan Frederico Kirschner traz essa mesma conclusão diante da insistência de eruditos britânicos e alemães de que os exorcismos de 158 sa+anás, DemêNies £ legiã© exorcísticas possuem um caráter emblemático, pois ele é “o” Exorcista-Mor. Jesus e de outros personagens de seu tempo são, em última análise, a mesma coisa. (Cf. KIRSCHNER, Estevan Frederico. The Place of the Exorcism Motif Mark's Christology With Special Reference to Mark 3.22-30. Dissertação de Doutorado, London, London School of Theology, 1988, p.209). 159 CARL®S AUGUS + ffi VAILA + + I 160 CAPÍTUt© II ANÁLISE EXEGÉTICA DE fflC 5.1-20 CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I 162 SA+ANÁS, DE1TI®NI®S E LEGIî CAPÍTULO II - ANÁLISE EXEGÉTICA DE MC 5.1-20 2.1. Análise Sincrônica Nosso próximo passo será fazer a análise sincrônica (de cróv, “com” + xpóvoç, “tempo”) de Mc 5.1-20. Essa abordagem “analisa os textos da maneira como se apresentam para o intérprete, independentemente do processo pelo qual a sua tradição possa ter passado até alcançar o estágio de evolução final”.265 Tal análise será composta pelas seguintes etapas: Tradução, Segmentação e Estruturação do Texto e Análise Lingüística, Lexicográfica, Morfológica e Estilística.266 Por fim, trataremos da Análise de Conteúdo. A seguir, eis a minha tradução de Mc 5.1-20.267 A. O Texto Original de Mc 5.1-20 e a Sua Tradução 265 WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. São Leopoldo, Sinodal / São Paulo, Paulus, 1998, p.337. 266 Sigo aqui (com exceção feita à análise sintática do texto) a ordem encontrada em: SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo, Paulinas, 2000, pp. 83-172. 267 O texto utilizado para a tradução é o de ALAND, Barbara, ALAND, Kurt, KARAVIDOPOULOS, Johannes, MARTINI, Carlo M. & METZGER, Bruce M. The Greek New Testament. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 2005. 1. Kat r|A0ov eiç to trépav rfjç 0aÀáoor|ç elç xqv /wpctv tcòv TepaoriiAÔV'. 2. Kal é^eÀOÓPTOç airroê èk 1. E vieram para o outro lado do mar, para a região dos Gerasenos. 2. E saindo ele do barco, logo 163 CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I toü TrÀoíot) eüGòç üirr|VTr|O6V aÓTW ck tgjv pvqpeíwv àvGpwiroç èv irveópaTL áKaôápTtp, 3. OÇ TT]V koítoÍkt]Glv fí/fv ev tolç pvripaoiv, Kai oüõè áÀóoei oükctl oòôeiç èôóvaTO aÜTÒv ôíjoaL 4. ôià to aÜTÒv iroÀÀáKiç néõaLç Kai àÀóoeoLV Ô6Ôéo0aL Kai ôieoKáoQai Útt’ aÒTOü ràç áÀóocLç Kai tcíç iréôaç ovvTfTpL(|)9ai, Kai oüôeiç LO/uev aÜTÒv ôap.áoai/ 5. Kai ôià iravTÒç vdktoç Kai qpx-paç èv tolç pvqpaoLV Kai èv tolç õpeoiv r]V KpáCcov Kai KaTaKÓlTTQV éaOTÒV ÀÍ0OLÇ. 6. Kai iõcòv tÒv ’Iqooüv àirò paKpóOev éõpapev Kai •frpoocKÚvqoev aÜTtô 7. Kai Kpá^aç (jjGOvf) iicyáÀij Àéyei, Tí èpoi Kai ooí, Trpoü UL6 TOÜ 06OÜ TOÜ ÒlJííOTOU; ÓpKÍCw 06 TÒV 06ÓV, gf| p.6 Paoavíoflç. 8. eÀcycv yàp aÚTCÔ, ’T^eÀGe to nveüpa tò 0Ka0apTOV 6K TOÜ áv0pcÓlTOO. 9. Kai ÈTTTípcÓTa aÒTÓv, Tí óvopá oot; Kai Àeyei aÜTÓ, Acyicòv òvopá poi, õtl itoààol eopev. encontrou-se com ele dos sepulcros um homem com espírito imundo, 3. o qual tinha a morada nos sepulcros, e nem com corrente ninguém podia prendê-lo, 4. por isso, ele tinha sido preso muitas vezes com algemas e correntes, e tinham sido rompidas por ele as correntes, e as algemas tinham sido esmagadas, e ninguém podia subjugá-lo; 5. e continuamente, de noite e de dia, estava nos sepulcros e nos montes gritando e cortando a si mesmo com pedras. 6. E, vendo a Jesus de longe, correu e prostrou-se perante ele, 7. e gritando com forte voz, disse: “O que a mim e a ti, Jesus, filho do Deus Altíssimo? Conjuro a ti por Deus, não me atormentes”. 8. Pois dizia a ele: “Sai, espírito imundo, do homem”. 9. E perguntava a ele: “Qual é o teu nome?” E respondeu-lhe: “Legião é o meu nome, porque somos muitos”. 164 SA+ANÁS, DEmêNieS £ LEGIî 10. Kal napeKaÀci auxòv iroÀÀà iva |1T) aúxà àTrooxeÍÀr] ’éfr) Tf)ç xwpaç. 11. ’Hv ÔÈ CKfl Trpòç XCÔ Õp6L áyéÀq xoípoúv peyáÀq P00K0p.6VT|’ 12. Kai. irapeKaÀeoav auxòv Àéyovxcç, né|ii|íov fjpâç eiç xouç x°Lpobç, 'iva flç aúxouç f ioéÀôojpev. 13. Kal èiréxpei|í6V aúxoiç. Kal èÇcÀOóvxa xà irveúpaxa xà ÓKáôapxa ftoíjÀQov eiç xouç Xoípouç, Kal coppipcv T] áyéÀri Kaxà xou Kpripvoíj eiç xpv QáÀaoaav, wç ôloxÍàlol, Kal èirvíyovxo c-v xrj ôaÀáoor]. 14. Kal oí póoKOVTGÇ aúxouç ecfibyov Kal àirfiyyeiÀav etç TT|v itÓàlv Kal eiç xouç àypoúç- Kal rjÀOov lôeiv xí éoxLV xò yeyovòç 15. Kal ’épxovxai irpòç xòv ’Irpoúv Kal Qeupoboiv xòv ôaipovtCópfvov Ka0T|pevov Ipaxiopévov Kal oax|)povobvxa, xòv èoxpKÓxa xòv Àeyicôva, Kal ècfjopfiQqoav. 16. Kal ôtriyTÍoavxo aúxoiç oí lôóvxfç iTGÕç èyévexo xcô ôaipoviCopévcü Kal irepl xôv 10. E implorava-lhe muito para que não os mandasse para fora da região. 11. E estava ali, perto do monte, uma grande manada de porcos pastando; 12. E suplicaram-lhe, dizendo: “Envia-nos para os porcos, a fim de que neles entremos”. 13. E permitiu-lhes. E tendo saído, os espíritos imundos entraram nos porcos, e precipitou-se a manada do despenhadeiro para o mar, cerca de dois mil, e se afogaram no mar. 14. E os que tratavam deles fugiram e anunciaram na cidade e nos campos; e saíram para ver o que tinha acontecido 15. E chegam para Jesus e vêem o endemoninhado sentado, vestido, e em perfeito juízo, o que havia tido a legião, e temeram. 16. E os que tinham visto relataram a eles como aconteceu ao endemoninhado e a respeito dos porcos. 17. E começaram a suplicar- 165 CAR.L©S AUGUS + ® VAILA + + 1 XOÍptüV. 17. Kai qpÇavTO TrapaKaÀelv aí)TÒv aireAGeiv ànò twv ôpíwv aVTCÒV. 18. Kai èpPaívovTOç aikov eiç tò ttàolov irapeKaÀei aikòv ô ôaipovioGeiç 'iva per’ auToí) rj. 19. Kai ovk àc|)f|K6V aírróv, àÀÀà Àcyc-i aiiTCÔ, "Y-iraye eiç ròv oikÓv ooi) irpòç toÒç ooòç Kai airayytiXov aÒTOiç òoa ô KÓpióç ooi ireTTOÍriKev Kai ■qÀérioév oe. 20. Kai àníjÀGevKai rp^aTO Kripúooeiv èv TT| AfKairóÀei òoa èiroíqocv aÓTiò ó ’Irioouç, Kai irávTeç èGaúpaCov. lhe para sair dos territórios deles. 18. E entrando ele no barco, suplicava-lhe o que tinha estado endemoninhado para que com ele estivesse. 19. E não lhe permitiu, mas disse-lhe: “Vai para a tua casa, junto aos teus, e anuncia-lhes as coisas que o Senhor tem feito a ti e como teve misericórdia de ti”. 20. E partiu e começou a proclamar na Decápolis as coisas que Jesus fez para ele, e todos se admiravam. B. Segmentação e Estruturação do Texto Pelo fato de Mc 5.1-20 ser um texto narrativo, segmentaremos o texto, bem como, o estruturaremos tendo como base os seus sujeitos, ou seja, aqueles que aparecem e agem no texto. Tal leitura com ênfase nos sujeitos e em suas ações (dividida por blocos) irá nos ajudar a definir a estrutura básica para a nossa perícope. Para tanto, ofereço a seguir a minha proposta estrutural para a passagem em questão. B.l. O Cenário e as Características do Endemoninhado (5.1-5) la Kai rjÀGov eiç tò irèpav Tfjç GaÀáaoriç b eiç tt|v xúpav tóõv repaoqvwv. 166 sa+anás, DemêNies ê legiã© la b E vieram para o outro lado do mar, para a região dos Gerasenos. 2a Kal èÇcÀÔóvToç atirou ék toíj ttàoÍou b eúQuç úirriuTriaev aurcâ c-k twv puripeícov c àvOpco-rroç év irvfúpaTi aKaSaprcp, 2a E saindo ele do barco, b logo encontrou-se com ele dos sepulcros c um homem com espírito imundo, 3a bç KaToÍKT|OLP èv TOLÇ pVlípaOLV, b Kal oòôè áÀúoei oòkÉtl ouôelç èôúvaTO aúròv Spoai 3a o qual tinha a morada nos sepulcros, b e nem com corrente ninguém podia prendê-lo, 4a õià to avTÒv iroÀÃáKLç iréôaLç Kal áÀúoeoiv ôeôéoôai b Kal ÔLeairáoOai úir’ avroO ràç àÀóofiç c Kal ràç iréõaç auvrerpiijjGai, d Kal oúôelç lo/urv auxòv ôapáoaL- 4a por isso, ele tinha sido preso muitas vezes com algemas e correntes, b e tinham sido rompidas por ele as correntes, c e as algemas tinham sido esmagadas, d e ninguém podia subjugá-lo; 5a Kal ôià iravTÒç b vuktoç Kal rpépaç c êv tolç pvripaoiu Kal èv tolç ópeotv qv d KpáCtov e Kal KaraKoirTuu éavwv ÀíQoiç. 5a e continuamente, b de noite e de dia, c estava nos sepulcros e nos montes d gritando 167 CARL®S AUGUS+ffl VAILA + + I e e cortando a si mesmo com pedras. Aqui, neste primeiro bloco, os sujeitos principais da ação narrada são: Jesus, os seus discípulos (ainda que citados indiretamente) e o endemoninhado, sendo que a ênfase cai sobre este último através da descrição detalhada da lastimável condição em que se encontra, a qual é resultante de seu estado de homem possuído. No que se refere a Jesus e seus discípulos, são eles que atravessam o mar a fim de chegarem até a outra margem, conforme a iniciativa tomada pelo próprio Jesus na perícope anterior que trata da tempestade que é acalmada (cf. Mc 4.35-41). B.2. O Duelo Entre Jesus e os Demônios (5.6-10) 6a Kttl ÍÔÒ)V TOP ’Ir|Oo0v CXTTÒ |iaKpÓ06V b ’éôpapev c Kai irpooeKÚvr|oev aura) 6a E, vendo a Jesus de longe, b correu c e prostrou-se perante ele, 7a Kai Kpá^aç b cfxjoufl peyáÀp Àéyfi, c Tí èpoi Kai ooí, ’Irjoou d ulè toô 0eoú toô úi|norov; e ópKÍCa) oe TÒV 0eóv, f pf) pe paoavíorjç. 7a e gritando b com forte voz, disse: c “O que a mim e a ti, Jesus, d filho do Deus Altíssimo? e Conjuro a ti por Deus, f não me atormentes”. 168 SA+ANÁS, DEméNieS E LEGIî 8a b c d eXryev yàp avuqj, ”E^À9e to TrveOpa to àicáôapTOU tK toü àvQpcó-irou. 8a b c d Pois dizia a ele: “Sai, espírito impuro, do homem”. 9a b c d e Kal èirrípcÓTa aÒTOU, Ti bvopá oo t; Kal Àcyci aincô, Aeyubv òvopá pot, OTL TTOÀÀOÍ èopev. 9a b c d e E perguntava a ele: “Qual é o teu nome?” E respondeu-lhe: “Legião é o meu nome, porque somos muitos”. 10a b Kal TTapeKaAei aòrov noÀÀa' 'iva pq airuà àuooTeÍÀT] rijç xwpaç 10a b E implorava-lhe muito para que não os mandasse para fora da região. Este segundo bloco nos mostra de forma evidente que os sujeitos principais são Jesus e os demônios. Aqui é narrado o duelo existente entre ambos, o qual descreve de forma muito clara e inequívoca a supremacia do Filho do Deus Altíssimo sobre a Legião demoníaca. 169 CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I B.3. A Manada de Porcos e o Seu Trágico Fim (5.11-13) são Jesus, os demônios e os porcos, com especial destaque dado a estes últimos. Neste trecho, Jesus expulsa os demônios 11a b THv Ôè CK6L irpòç Tíô ÓpeL àyéÀT] /oípcov peyáÀri pooKopévr]- 11a b E estava ali, perto do monte, uma grande manada de porcos pastando; 12a b c Kai napfKáÀfoav aòròv Àéyovreç, riépi|jov T]pâç eiç touç %oípouç, 'iva c-iç aikoòç eioéÀOwpev. 12a b c E suplicaram-lhe, dizendo: “Envia-nos para os porcos, a fim de que neles entremos”. 13a b c d e f g 13a b c d e f g Kai 61T6Tpfl|jfV atlTOLÇ. Kai èÇeÀOóvta rà irveúpara rà àKaOapra eiofiÀQov eiç touç xoípouç, Kai óípprioev q àycÀq Kara roí) Kpqpvoí) eiç rqv QáÀaooav, óç ôioxíXioi, Kai èirvíyovro èv rf| OaÀáooT]. E permitiu-lhes. E tendo saído, os espíritos imundos entraram nos porcos, e precipitou-se a manada do despenhadeiro para o mar, cerca de dois mil, e se afogaram no mar. Neste terceiro bloco verifica-se que os sujeitos principais 170 SA+ANÁS, Dem®NI®S £ LEGIî do homem, os quais entram nos porcos. Estes, por sua vez, se precipitam de um despenhadeiro e morrem afogados. B.4. A Reação das Testemunhas Diante do Milagre (5.14-17) 14a b c d Kal 01 PÓOKOVTCÇ aÚTOUÇ Kal àirriYYciÀav elç Tqv itÓàlv Kal elç touç aYpoúç- Kal fjÀBov lôeiv rí ècniv to y^Vovoç 14a b c d E os que tratavam deles fugiram e anunciaram na cidade e nos campos; e saíram para ver o que tinha acontecido 15a b c d e f g 15a b c d e f g 16a b c Kal ’ép/oviai TTpòç tov Trpouv Kal OeaipoüoLV ròv ôaipoviCópePov Ka9f||J+vov Ipariopévov Kal OGJcjjpouoüuTa, tÒu èaxnKÓra tou Àey iwva, Kal è(|)opií6r|oav. E chegam para Jesus e vêem o endemoninhado sentado, vestido, e em perfeito juízo, o que havia tido a legião, e temeram. Kal ô ltiytÍcjcxvt0 aÓTolç ol iôóizceç TTGÒç ÈY^uero tó 0aipoui(o|ieva) Kal irepl túv /oípcov. 16a E relataram a eles 171 CARL©S AUGUS + ® VA1LA + + I b os que tinham visto c como aconteceu ao endemoninhado e a respeito dos porcos. 17a Kai ■qpÇavro irapaKaÀelv aú-rov b áircÀOciv àirò tgòv ópíwv aÚTÓjv. 17a E começaram a suplicar-lhe b para sair dos territórios deles. Neste quarto bloco, nota-se a presença dos seguintes sujeitos: os porqueiros, os moradores das cidades e dos campos e o ex-endemoninhado. Aqui se deve fazer referência especial às testemunhas do milagre ocorrido, as quais serão responsáveis por desencadear toda a sucessão de fatos que culminará com a expulsão de Jesus do território gentílico geraseno. B.5. O Comissionamento do Ex-Endemoninhado (5.18-20) 18a b c d Kai ègpaívovTOÇ aÚTOÜ elç to ttàoiov uapfKáÀei aÚTÒv Ó ÔaLgOVLOÔclç 'iva per’ aurou rj. 18a b c d E entrando ele no barco, suplicava-lhe o que tinha estado endemoninhado para que com ele estivesse. 19a b c d e f Kai ovk à^íjKfv aÒTOV, áAAà Àéyei avuõ, "Yirayc ctç tov oikov ood TTpOÇ TOUÇ OOVÇ Kai àTTáyYfiÀov aórolç óaa ô KÚpióç ooi -rreTTOÍqKev Kai qÀéqoév oe 172 SA+ANÁS, DEfllêNieS E LEGIé 19a b c d e f E não lhe permitiu, mas disse-lhe: “Vai para a tua casa, junto aos teus, e anuncia-lhes as coisas que o Senhor tem feito a ti e como teve misericórdia de ti”. 20a b c d Kai àirrjÀOev' Kai líp^aTO KTipuaoeiv èv -ufj AcKairóÀci õoa éiroír|oev aúná) ô ’Ir|oouç, Kai uávTeç éOaúpaCov. 20a b c d E partiu e começou a proclamar na Decápolis as coisas que Jesus fez para ele, e todos se admiravam. Por fim, neste quinto e último bloco podemos notar os seguintes sujeitos que aparecem em nosso texto segmentado e estruturado: Jesus, o ex-endemoninhado e os habitantes da Decápolis. A partir desta perspectiva textual que visa focalizar os sujeitos e as suas respectivas ações, podemos desenhar, portanto, o seguinte quadro esquemático: Bloco Mc 5.1-20 Os sujeitos e suas ações laE vieram para o outro lado do mar, b para a região dos Gerasenos. 2a E saindo ele do barco, b logo encontrou-se com ele dos sepulcros c um homem com espírito imundo, O Cenário e as Características do Endemoninhado (5.1-5) Jesus e seus discípulos se aproximam de Gerasa. Dos sepulcros sai um homem endemon inhado. 173 CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I 1 3a o qual tinha a morada nos sepulcros, b e nem com corrente ninguém podia prendê-lo, 4a por isso, ele tinha sido preso muitas vezes com algemas e correntes, b e tinham sido rompidas por ele as correntes, c e as algemas tinham sido esmagadas, d e ninguém podia subjugá-lo; 5a e continuamente, b de noite e de dia, c estava nos sepulcros e nos montes d gritando e e cortando a si mesmo com pedras. 2 6a E, vendo a Jesus de longe, b correu c e prostrou-se perante ele, 7a e gritando b com forte voz, disse: c “0 que a mim e a ti, Jesus, d filho do Deus Altíssimo? e Conjuro a ti por O Duelo entre Jesus e os Demônios (5.6-10) Os demônios reconhecem a autoridade de Jesus sobre eles. Jesus inicia o exorcismo. 174 SA + ANÁS, DÊrtlÔNieS £ LEGIî Deus, f não me atormentes”. 8a Pois dizia a ele: b “Sai, c espírito impuro, d do homem”. 9a E perguntava a ele: b “Qual é o teu nome?” c E respondeu-lhe: d “Legião é o meu nome, e porque somos muitos”. 10a E implorava-lhe muito b para que não os mandasse para fora da região. 3 11a E estava ali, perto do monte, b uma grande manada de porcos pastando; 12a E suplicaram-lhe, dizendo: b “Envia-nos para os porcos, c a fim de que neles entremos”. 13a E permitiu-lhes, b E tendo saído, c os espíritos imundos entraram nos porcos, d e precipitou-se a manada e do despenhadeiro A Manada de Porcos e o Seu Trágico Fim (5.11-13) Jesus exorciza os demônios. Os demônios entram nos porcos. Os porcos morrem afogados. 175 CAR.LSS AUGUS+© VAILA + +I para o mar, f cerca de dois mil, g e se afogaram no mar. 4 14a E os que tratavam deles b fugiram c e anunciaram na cidade e nos campos; d e saíram para ver o que tinha acontecido 15a E chegam para Jesus b e vêem o endemoninhado c sentado, d vestido, e e em perfeito juízo, f o que havia tido a legião, g e temeram. 16a E relataram a eles b os que tinham visto c como aconteceu ao endemoninhado e a respeito dos porcos. 17a E começaram a suplicar-lhe b para sair dos territórios deles. A Reação Das Testemunhas Diante do Milagre (5.14-17) Reação ao milagre: porqueiros e moradores testemunham o milagre. O que fora endemoninhado recobra sua saúde. 5 18a E entrando ele no barco, b suplicava-lhe c o que tinha estado endemoninhado d para que com ele O Comissionamento do Ex- Endemoninhado (5.18-20) 176 sa+anás. DemêNies e legiã® estivesse. 19a E não lhe permitiu, b mas disse-lhe: c “Vai para a tua casa, d junto aos teus, e e anuncia-lhes as coisas que o Senhor tem feito a ti f e como teve misericórdia de ti”. 20a E partiu b e começou a proclamar na Decápolis c as coisas que Jesus fez para ele, d e todos se admiravam. Jesus não permite que o ex-endemoninhado o siga. Este se torna um missionário. Os habitantes de Decápolis se admiram diante do milagre ocorrido. Resumindo, nossa proposta estrutural para a perícope de Mc 5.1-20 foi esquematizada conforme o seguinte quadro: 1. O Cenário e as Características do Endemoninhado (5.1-5); 2. O Duelo Entre Jesus e os Demônios (5.6-10); 3. A Manada de Porcos e o Seu Trágico Fim (5.11-13); 4. A Reação das Testemunhas Diante do Milagre (5.14- 17); 177 CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I 5. O Comissionamento do Ex-Endemoninhado (5.18- 20). Todavia, além do nosso ponto de vista pessoal, gostaríamos de fornecer também a opinião de alguns estudiosos sobre o assunto, os quais, como teremos a oportunidade de notar, não divergem entre si de forma tão significativa quanto a estrutura que adotam para Mc 5.1-20.268 Apresentamos aqui quatro exemplos. Todavia, uma estrutura mais reduzida é defendida por A. R. Carmona, que divide a perícope de Mc 5.1-20 homileticamente em apenas duas partes: 1) o que Jesus pode (fazer); e 2) o que não pode. (Cf. CARMONA, Antonio Rodríguez. Evangelio de Marcos. [Comentários a la Nueva Biblia de Jerusalén]. Bilbao, Desclée De Brouwer, 2006, pp.64-66). 269 JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST], Missouri, College Press, 1965, p.140,141. Percebe-se nos itens 1 e 3 a predileção dos autores pela localidade de Gadara. a) B. W. Johnson e Don Dewelt Para estes dois estudiosos, a estrutura de Mc 5.1-20 é bem enxuta, sendo dividida em três partes conforme segue: 1. O Endemoninhado Gadareno (5.1-8); 2. A Legião e os Porcos (5.9-13); 3. Cristo e os Gadarenos (5.14-20).269 b) Vincent Taylor Estruturalmente, Taylor encontra os rudimentos de um quarto ato no drama das cenas, retratando: 178 sa+anás, DemêNies e legiã® 1. Jesus e o Endemoninhado (5.1-10); 2. Os Porcos (5.11-13); 3. As Pessoas da Cidade (5.14-17); 4. O Homem Liberto (5.18-2O).270 TAYLOR, Vincent. The Gospel According to St. Mark. New York, Macmillan, 1966, p.277. 271 Citado por GUELICH, Robert A., in: Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC]. Dallas, Word Books, Publisher, 1989, p.274. c) Rudolf Pesch Pesch também divide a estrutura do texto em quatro partes, mas de forma distinta de Taylor, com exceção dos itens 3 e 4: 1. O Cenário e a Descrição da Doença (5.1-5); 2. Jesus e os Demônios (5.6-13); 3. As Testemunhas (5.14-17); 4. O Homem Curado (5.18-20).271 d) Robert A. Guelich Por fim, Guelich, diferentemente dos anteriores, estrutura a passagem de Mc 5.1-20 dividindo-a em cinco partes e, como pode ser percebido, minha estrutura é mais parecida com esta, com exceção dos itens 1 e 5 que possuem pequenas variações em seu enunciado: 1. O Cenário (5.1-5); 179 CARLOS AUGUS + O VAILA + +I 2. Jesus e os Demônios (5.6-10); 3. Os Porcos (5.11-13); 4. As Testemunhas (5.14-17); 5. A Reação do Homem Curado (5.18-20).272 77? Idem, Ibidem, p.274. 273 Sigo (exceto a morfologia): SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica, pp. 126,127. Assim, concluímos nossa análise estrutural do texto, percebendo que o mesmo pode possuir vários tipos de estruturas (cf. exemplos citados), as quais, porém, não apresentam características tão díspares entre si. A seguir, faremos a análise lingüística do texto. C. Análise Lingüística A análise lingüística de Mc 5.1-20 nos permitirá compreender, de forma mais apurada, o pensamento do autor. Isto se dá porque tal análise apontará para mais de uma direção simultaneamente, uma vez que nossa análise lingüística possui três facetas (as duas primeiras veremos em conjunto e a última à parte): - Análise Lexicográfica: estudo do vocabulário; - Análise Morfo lógica: estudo de cada palavra individualmente; - Análise estilística: estudo das figuras de linguagem.273 C.l. Análise Léxico-Morfológica: estudo do vocabulário e da palavra em si 180 SA + ANÁS, DEfTl®NI®S E LEGIî Estudar o vocabulário encontrado em Mc 5.1-20 é uma tarefa indispensável que nos ajudará a compreender melhor a teologia de Marcos, bem como, nos permitirá chegar a conclusões importantes em nosso estudo. Aqui, porém, quando um mesmo termo ocorrer mais de uma vez no texto, não repetiremos a sua análise. Assim, o leitor deverá consultar a primeira ocorrência do termo a fim de verificar o seu significado. Portanto, analisemos o vocabulário de nossa perícope obedecendo à ordem em que este aparece no texto. Marcos 5.1 Vocábulo Análise Léxico-Morfológica Kat Conjunção coordenativa. Seus significados básicos são: “e, também, ainda”. Esse vocábulo cuja ocorrência é muito comum nas páginas do Novo Testamento, onde aparece 9164 vezes,274 é encontrado 41 vezes ao todo em nosso texto. É curioso observarmos que “tanto o hebraico quanto o aramaico se distinguem pela seqüência de orações em coordenação, ou melhor: as inflexões sucessivas, postas lado a lado, são ligadas pela conjunção (yav), e. Esse tipo deconstrução se reflete, de modo acentuado, na estilística do Evangelho conforme Marcos, pela utilização da conjunção Koà, em correspondência exata 274 BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [oc-k], p.2122. 181 CARLffiSAUGUS+ffi VAUA++I 7/5 r Cf. artigo escrito por BENICIO, Paulo José, in: GOMES, Antonio Maspoli de Araújo, (org.). Teologia: Ciência e Profissão. São Paulo, Fonte Editorial Ltda., 2007, p. 191. 276 DEMOSS, Matthew S. Dicionário Gramatical do Grego do Novo Testamento. [Tradução de Paulo Sartor Jr.]. São Paulo, Editora Vida, 2004, p.130. 277 ROGERS JR., Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic and Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1998, p.75. ao (vav) hebraico, especialmente, em 77S função aditiva ou copulativa”. O uso excessivo dessa conjunção por parte de Marcos revela o seu estilo marcadamente paratático. A parataxe, por sua vez, é um elemento característico das línguas semitas.276 rjÀQov Verbo no indicativo aoristo ativo, na 3a pessoa do plural, “vieram”. É derivado do verbo èpxopai, “ir, vir”. GLÇ Preposição no acusativo, “para, em direção a”. Essa preposição aparece duas vezes no v. 1. TO Artigo definido, no acusativo, neutro, singular, “o”. uépav Advérbio de lugar usado como um substantivo, “outro lado”.277 Tf|Ç Artigo definido, genitivo, feminino, singular, “do”. Aparece logo em seguida, ainda no v. 1, em sua forma no acusativo, xpu. 9aÀáoor|ç Substantivo, genitivo, feminino, singular, “mar, lago”.278 Devemos considerar o uso do 182 SA+ANÁS, DÊmêNieS £ LEGIî Marcos 5.2 termo QaXácrariç como um semitismo, o qual é usado aqui para se referir ao lago de Genesaré (cf. Mc 4.39,41).279 Xcópav Substantivo, acusativo, feminino, singular, “região, país”. TWV Artigo definido, genitivo, masculino, plural, “dos”. lVpaar|iADV Adjetivo pronominal, genitivo, masculino, plural, “Gerasenos”. GARRIDO, Constantino Ruiz. (trad.). Vocabulário Griego del Nuevo Testamento. Salamanca, Ediciones Sigueme, 2001, p.81. SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo, Paulinas, 2000, p. 156. Vocábulo Análise Léxico-Morfológica èÇcÀQómoç Verbo, particípio, aoristo, na voz ativa, genitivo, masculino, singular. É derivado do verbo £^Ép%opat, “sair, vir para fora”. aòroô Substantivo pronominal, genitivo, masculino, na 3a pessoa do singular, “ele”. ÉK Preposição, no dativo, “de, a partir de, de dentro de”. TOÜ Artigo definido, no genitivo, neutro, singular, “do”. ITÀOÍOU Substantivo, genitivo, neutro, singular, “do 183 CARLOS AUGUS + ffi VAILA++I Marcos 5.3 barco”. evGuç Adjetivo pronominal, no nominativo, masculino, singular, o qual é usado como adjetivo adverbial, “imediatamente, logo”. É muito provável que o emprego excessivo desse adjetivo em Marcos, dê-se por influência da conjunção aramaica D' Ê , 280 no momento. í)Trr|v-cr]O6V Verbo, indicativo, aoristo, na voz ativa, 3a pessoa do singular, derivado de bTtavTáco, “encontrar”. p.VT]p.6 ÍG)V Substantivo, genitivo, neutro, plural, “dos sepulcros”. ãvOpcoiTOÇ Substantivo, nominativo, masculino, singular, “(um) homem”. èv Preposição, dativo, “em (com)”. TtveúpaTi Substantivo, dativo, neutro, singular, “espírito”. áKaQápTcp Adjetivo, dativo, neutro, singular, “imundo, impuro”. 2R0 'Cf. artigo escrito por BENICIO, Paulo José, in: GOMES, Antonio Maspoli de Araújo, (org.). Teologia: Ciência e Profissão. São Paulo, Fonte Editorial Ltda., 2007, p. 191. Vocábulo Análise Léxico-Morfológica 184 SA + ANÁS, DEíTl®NI©S Ê LEGIé KUBO, Sakae. RGELNT, p.32. OÇ Adjetivo pronominal relativo, nominativo, masculino, singular, “o qual”. TT]V Artigo definido, acusativo, feminino, singular, “a”. KaTOÍKT|OLV Substantivo, acusativo, feminino, singular, “habitação, moradia, morada”. Trata-se de um 281hapax legomenon. Verbo, indicativo, imperfeito, voz ativa, na 3a pessoa do singular, “tinha”. TOLÇ Artigo definido, dativo, neutro, plural, “os”. |ivr||J,aoLV Substantivo, dativo, neutro, plural, “sepulcros”. oòôè Adjetivo adverbial, “nem”. àÀÚoei Substantivo, dativo, feminino, singular, “corrente”. OLIKtTL Adjetivo adverbial, “já não”. oóôelç Adjetivo pronominal cardinal, nominativo, masculino, singular, “nenhum, ninguém”. èôúvaro Verbo, indicativo, imperfeito, na voz média ou passiva, na 3a pessoa do singular, “podia”. aÚTÒv Substantivo pronominal, acusativo, 185 CARLffiS AUGUS+® VAILA + +I masculino, na 3a pessoa do singular, “a ele”. ôfjoaL Verbo, infinitivo, aoristo, na voz ativa, “prender, amarrar”. É derivado do verbo 3éo>. Marcos 5.4 Vocábulo Análise Léxico-Morfológica ôià Preposição no acusativo, “porque, por, através”. Aqui a construção indica, não a razão, mas as circunstâncias mencionadas à guisa de explicação. TTOÀÀáKLÇ Adjetivo adverbial, “muitas vezes, freqüentemente”. iréôaiç Substantivo, dativo, feminino, plural, “grilhões, algemas para os pés”. àÀúoeoiv Substantivo, dativo, feminino, plural, “correntes”. ôfôéoQai Verbo no infinitivo, perfeito, na voz passiva, acusativo, “ter sido preso”. É derivado do verbo 5êo). ôieoiráoOaL Verbo no infinitivo, perfeito, na voz passiva, no acusativo, “terem sido rompidas, despedaçadas”. Útt’ Preposição no genitivo, “por”. ràç Artigo definido, no acusativo, feminino, plural, “as”. àXúocLç Substantivo, no acusativo, feminino, plural, “correntes”. iréôaç Substantivo, no acusativo, feminino, plural, “grilhões, algemas para os pés”. No início do verso o substantivo aparece no dativo. OU VT6T pi(|)0a L Verbo no infinitivo, perfeito, na voz passiva, no acusativo, “terem sido esmagadas”. Derivado de ouvTpípcu, “despedaçar, quebrar 186 SA+ANÁS, DEIT1®NI®S E LEGIî totalmente, esmagar”. íoxufv Verbo, indicativo, imperfeito, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “podia”. É derivado do verbo ’laxíco, “ser forte”. ôapáoat Verbo no infinitivo, aoristo, na voz ativa, “subjugar, amansar”. Marcos 5.5 Vocábulo Análise Léxico-Morfológica navTÒç Adjetivo pronominal, genitivo, masculino, singular, “continuamente”. VUKTÒÇ Substantivo no genitivo, feminino, singular, “de noite”. riliépaç Substantivo, genitivo, feminino, singular, “de dia”. ÕpfOLV Substantivo, dativo, neutro, plural, “montes”. rjv Verbo, indicativo, imperfeito, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “estava”. KpáCüJV Verbo no participio presente, na voz ativa, nominativo, masculino, singular, “clamando, gritando”. Este participio, bem como o seguinte, usado numa construção perifrástica enfatizam a ação repetida. KaraKÓiiTCDV’ Verbo no participio presente, na voz ativa, nominativo, masculino, singular, “cortar em pedaços”. A preposição no verbo composto é perfectiva. Sendo assim, seu corpo podia estar dilacerado e cicatrizado em todas as partes. É o segundo hapax legomenon de nossa perícope em estudo. êauTÒP Substantivo pronominal, acusativo, masculino, na 3a pessoa do singular, “a si mesmo”. ÀíQoiç Substantivo, dativo, masculino, plural, 187 CARLffiS AUGUS+® VAILA + + I Marcos 5.6 “pedras”. Marcos 5.7 Vocábulo Análise Léxico-Morfológica Lôgop Verbo no particípio aoristo, na voz ativa, nominativo, masculino, singular, “vendo (ele)”. TOP Artigo definido, no acusativo, masculino, singular, “a”. ’Ipoouv Substantivo no acusativo, masculino, singular, “Jesus”. Ct ITO Preposição no genitivo, “de”. |iaKpó9ep Adjetivo adverbial usado como adjetivo pronominal, genitivo, neutro, singular, “de longe”. ’éôpapep Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “correu”. TTpoaeKÚvpoev Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “prostrou-se, prostrou- se em adoração”. Vocábulo Análise Léxico-Morfológica KpáÇaç Verbo no particípio aoristo, na voz ativa, nominativo, masculino, singular, “gritando”. 4>copfi Substantivo no dativo, feminino, singular, “voz”. p.eyáÀr| Adjetivo no dativo, feminino, singular, “grande, forte”. Àéyei Verbo no indicativopresente, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “diz (disse)”. Tí Adjetivo pronominal interrogativo, nominativo, neutro, singular, “O que?”. époi Substantivo pronominal no dativo, na Ia 188 SA + ANÁS, D£IT1©NI®S £ LEGIé pessoa do singular, “a mim”. ooí Substantivo pronominal no dativo, na 2a pessoa do singular, “a ti”. ’Ipoou Substantivo no vocativo, masculino, singular, “Jesus”. < \ ulg Substantivo no vocativo, masculino, singular, “Filho”. ôgoü Substantivo no genitivo, masculino, singular, “de Deus”. vip LOTOU Adjetivo superlativo no genitivo, masculino, singular, “Altíssimo”. Trata-se de um semitismo derivado do hebraico *7 fô, “Deus Altíssimo” ou jí*1 “Altíssimo”. ôpKÍCo) Verbo no indicativo presente, na voz ativa, na Ia pessoa do singular, “conjuro, adjuro”. 06 Substantivo pronominal no acusativo, na 2a pessoa do singular, “a ti, te”. 06ÓV Substanivo no acusativo, masculino, singular, “(por) Deus”. PI Adjetivo adverbial, “não”. P Substantivo pronominal no acusativo, na Ia pessoa do singular, “a mim, me”. PaoavíoT]ç Verbo no subjuntivo aoristo, na voz ativa, na 2a pessoa do singular, usado como verbo no imperativo aoristo, na voz ativa, na 2a pessoa do singular, “atormentes, tortures”. Marcos 5.8 Vocábulo Análise Léxico-Morfológica 6À6Y6V Verbo no indicativo imperfeito, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “dizia, falava”. yàp Conjunção subordinativa, “pois”. ’'E^gàQg Verbo no imperativo aoristo, na voz ativa, na 189 CARLffiS AUGUS+ffi VAILA + +1 2a pessoa do singular, “sai!”. irvfüpa Substantivo no vocativo, neutro, singular, “espírito”. (XKaQaprov Adjetivo no vocativo, neutro, singular, “imundo, impuro”. àvQpcóirou Substantivo no genitivo, masculino, singular, “do homem”. Marcos 5.9 Vocábulo Análise Léxico-Morfológica èirrípcÓTa Verbo no indicativo imperfeito, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “perguntava”. óvopá Substantivo no nominativo, neutro, singular, “(o) nome”. Aeyiwv Substantivo no nominativo, feminino, singular, “Legião”. poi Substantivo pronominal no dativo, na Ia pessoa do singular, “meu, para mim”. OTl Conjunção subordinativa, “porque”. TTOÀÀOÍ Adjetivo pronominal no nominativo, masculino, plural, “muitos”. èoprv Verbo no indicativo presente, na voz ativa, na Ia pessoa do plural, “somos”. Marcos 5.10 Vocábulo Análise Léxico-Morfológica TrapfKáÀci Verbo no indicativo imperfeito, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “implorava, rogava”. TTOÀÀà Adjetivo pronominal no acusativo, neutro, plural, usado como adjetivo adverbial, “muito”. iva Conjunção coordenativa, “para que”. aurà Substantivo pronominal no acusativo, neutro, na 3a pessoa do plural, “a eles”. 190 SA + ANÁS, DEmêNieS E LEGIé ánooTeÍÀT] Verbo no subjuntivo aoristo, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “mandasse, enviasse”. Preposição no genitivo, “(para) fora de”. /cópaç Substantivo no genitivo, feminino, singular, “região”. Marcos 5.11 Vocábulo Análise Léxico-Morfológica ’Hv Verbo no indicativo imperfeito, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “estava”. Ô6 Conjunção coordenativa, “e”. 6Kei Adjetivo adverbial, “ali”. upòç Preposição no dativo, “perto de”. TCÔ Artigo definido no dativo, neutro, singular, “o”. õpei Substantivo no dativo, neutro, singular, “monte”. áyéÀri Substantivo no nominativo, feminino, singular, “manada”. Xoípwu Substantivo no genitivo, masculino, plural, “de porcos”. peyáÀri Adjetivo no nominativo, feminino, singular, “(uma) grande”. PooKop.évr| Verbo no participio presente, na voz passiva, nominativo, feminino, singular, “pastando”. Marcos 5.12 Vocábulo Análise Léxico-Morfológica irapeicáÀeoav Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na 3a pessoa do plural, “suplicaram, rogaram”. Àéyomfç Verbo no participio presente, na voz ativa, no nominativo, masculino, plural, “dizendo”. népirpov Verbo no imperativo aoristo, na voz ativa, na 2a pessoa do singular, “envia, manda”. 191 CARL®S AUGUS+® VA1LA + + I Marcos 5.13 niiâç Substantivo pronominal no acusativo, na Ia pessoa do plural, “a nós”. TOÍ)Ç Artigo definido no acusativo, masculino, plural, “os”. xoípouç Substantivo no acusativo, masculino, plural, “porcos”. (WTOÒç Substantivo pronominal no acusativo, masculino, na 3a pessoa do plural, “eles”. 6 LoéÀ0(jop.ev Verbo no subjuntivo aoristo, na voz ativa, na Ia pessoa do plural, “entremos”. Vocábulo Análise Léxico-Morfológica fiTérpeiliev Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “permitiu”. aÓTolç Substantivo pronominal no dativo, neutro, na 3a pessoa do plural, “a eles”. Verbo no particípio aoristo, na voz ativa, no nominativo, neutro, plural, “tendo saído”. rà Artigo definido no nominativo, neutro, plural, “os”. irveú|iara Substantivo no nominativo, neutro, plural, “espíritos”. áKÚQapra Adjetivo no nominativo, neutro, plural, “imundos, impuros”. c loíjÀQov Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na 3a pessoa do plural, “entraram”. (opppocv Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “precipitou-se”. n Artigo definido no nominativo, feminino, singular, “a”. Karà Preposição no genitivo, “para baixo”. Kpppuoú Substantivo no genitivo, masculino, singular, “despenhadeiro, precipício”. 192 SA+ANÁS, DEIT1©NI©S E LEGIé Marcos 5.14 TT]V Artigo definido no acusativo, feminino, singular, “o”. QáÀaooav Substantivo no acusativo, feminino, singular, “mar”. wç Adjetivo adverbial, “cerca de”. ÔIOXLÀLOL Adjetivo pronominal cardinal, no nominativo, masculino, plural, “dois mil”. Este é o terceiro e último hapax legomenon de nossa perícope. è-nvíyomo Verbo no indicativo imperfeito, na voz passiva, na 3a pessoa do plural, “se afogavam, se sufocavam”. rfj Artigo definido no dativo, feminino, singular, “o”. QaÀáaor] Substantivo no dativo, feminino, singular, “mar”. Vocábulo Análise Léxico-Morfológica Ol Artigo definido no nominativo masculino plural, usado como substantivo pronominal no nominativo masculino na 3a pessoa do plural e como adjetivo pronominal relativo no nominativo masculino, plural, “os”. PÓOKOVTEÇ Verbo no participio presente, na voz ativa, no nominativo, masculino, plural, “que tratavam, que alimentavam”. f^uyov Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na 3a pessoa do plural, “fugiram”. àuijYycLÀav Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na 3a pessoa do plural, “anunciaram, relataram, trouxeram notícias”. IlÓÀLV Substantivo no acusativo, feminino, singular, “cidade”. àypoúç Substantivo no acusativo masculino, plural, 193 CARLOS AUGUS + © VAILA + + I Marcos 5.15 “campos”. rjÀGov Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na 3a pessoa do plural, “vieram”. lôetv Verbo no infinitivo aoristo, na voz ativa, “para ver”. ècTiv Verbo no indicativo presente, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “é”. yeyovòç Verbo no particípio perfeito, na voz ativa, no nominativo, neutro, singular, “sucedido”. 0 perfeito enfatiza 0 estado ou condição contínua daquilo que acontecera. Vocábulo Análise Léxico-Morfológica ’épxovTat Verbo no indicativo presente, na voz média ou passiva, na 3a pessoa do plural, “chegam”. OecopoOoLV Verbo no indicativo presente, na voz ativa, na 3a pessoa do plural, “vêem”. SaipoviCópevov Verbo no particípio presente, na voz média ou passiva, no acusativo, masculino, singular, “endemoninhado”. Refere-se ao “homem que antes fora (ou que até agora tinha sido) um endemoninhado”. KaSfipevov Verbo no particípio presente, na voz média ou passiva, no acusativo, masculino, singular, “sentado”. IpaTLopéuov Verbo no particípio perfeito, na voz passiva, no acusativo, masculino, singular, “vestido”. 0 perfeito enfatiza sua presente condição ou estado. ooxjipovoôvTa Verbo no particípio presente, na voz ativa, no acusativo, masculino, singular, “em perfeito juízo, são”. 194 SA+ANÁS, DEffl®NI®S E LEGIî ÈCJPIKÓ™ Verbo no participio perfeito, na voz ativa, no acusativo, masculino, singular, “que tinha tido”. Esse termoexpressa um estado anterior, ou seja, “tendo tido, mas agora livre deles (dos demônios)”. Àeyiôva Substantivo no acusativo, masculino, singular, “legião”. è^oPiíOrjoav Verbo no indicativo aoristo, na voz passiva depoente, na 3a pessoa do plural, “temeram, tiveram medo”. Marcos 5.16 Vocábulo Análise Léxico-Morfológica õiTiYrpavTO Verbo no indicativo aoristo, na voz média depoente, na 3a pessoa do plural, “relataram”, transmitindo a idéia de “expor com pormenores”. LÔÓVTCÇ Verbo no participio aoristo, na voz ativa, no nominativo, masculino, plural, “que tinham visto”. 1TWÇ Adjetivo adverbial interrogativo, “como”. èyévcco Verbo no indicativo aoristo, na voz média depoente, na 3a pessoa do singular, “aconteceu”. ôaipoviCo|i€vcü Verbo no participio presente, na voz média ou passiva, no dativo, masculino, singular, “endemoninhado”. (cf. a análise sobre essa mesma palavra no verso 15, a qual aparece ali no acusativo). irepl Preposição no genitivo, “a respeito de”. Marcos 5.17 Vocábulo Análise Léxico-Morfológica qp^avro Verbo no indicativo aoristo, na voz média, na 195 CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I Marcos 5.18 3a pessoa do plural, “começaram”. 'frapaKaÀelv Verbo no infinitivo presente, na voz. ativa, “suplicar, rogar”. ànfÀôéip Verbo no infinitivo aoristo, na voz ativa, “para sair”. áirò Preposição no genitivo, “de”. ópíwv Substantivo no genitivo, neutro, plural, “territórios”. avTÔv Substantivo pronominal no genitivo, masculino, na 3a pessoa do plural, “deles”. Marcos 5.19 Vocábulo Análise Léxico-Morfológica èp.paívouTOÇ Verbo no particípio presente, na voz ativa, no genitivo, masculino, singular, “embarcando”. ttàolov Substantivo no acusativo, neutro, singular, “barco”. ô Artigo definido no nominativo, masculino, singular, usado como substantivo pronominal no nominativo, masculino, na 3a pessoa do singular e usado também como Adjetivo pronominal relativo, no nominativo, masculino, singular, “o”. ÔaLgOVLOOcLÇ Verbo no particípio aoristo, na voz passiva depoente, no nominativo, masculino, singular, “que tinha estado endemoninhado”. per’ Preposição no genitivo, “com”. ri Verbo no subjuntivo presente, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “estivesse”. Vocábulo Análise Léxico-Morfológica OUK Adjetivo adverbial, “não”. acpfiKcv Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na 196 SA+ANÁS, DErtlêNieS £ LEGIî Marcos 5.20 3a pessoa do singular, “permitiu”. àÀÀà Conjunção superordenativa, “mas”. "Ynaye Verbo imperativo no presente, na voz ativa, na 2a pessoa do singular, “Vai”. OLKÓV Substantivo no acusativo, masculino, singular, “casa”. oou Substantivo pronominal no genitivo, na 2a pessoa do singular, “tua”. oovç Adjetivo pronominal no acusativo, masculino, na 2a pessoa do plural, “teus”. àTráyyriÀov Verbo no imperativo aoristo, na voz ativa, na 2a pessoa do singular, “anuncia”. boa Adjetivo pronominal relativo no acusativo, neutro, plural, “as coisas”, usado como Adjetivo pronominal demonstrativo no acusativo, neutro, plural e ainda como adjetivo pronominal relativo no acusativo, neutro, plural. KÓpióç Substantivo no nominativo, masculino, singular, “Senhor”. Temos aqui um semitismo, derivado dos termos hebraicos: nirr ou^™.t : T iretroíqKev Verbo no indicativo perfeito, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “tem feito”. ■qÀérioép Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “teve misericórdia”. A mudança do imperfeito para o aoristo é deliberada. 0 homem recebera bênçãos que permanecem e que são um benefício específico na cura dele. Vocábulo Análise Léxico-Morfológica 197 CAR.L®S AUGUS + ® VAILA + + I àirfjÀGev Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “partiu”. qp^ato Verbo no indicativo aoristo, na voz média, na 3a pessoa do singular, “começou”. Kqpóooetv Verbo no infinitivo presente, na voz ativa, “proclamar, proclamar como arauto”. AeKaTróÀei Substantivo no dativo, feminino, singular, “Decápolis”. 6ir0ÍT|0€P Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na 3a pessoa do singular, “fez”. ’Iqooôç Substantivo no nominativo, masculino, singular, “Jesus”. Adjetivo pronominal no nominativo, masculino, plural, “todos”. èOaúpaCov Verbo no indicativo imperfeito, na voz ativa, na 3a pessoa do plural, “se admiravam, maravilhavam-se”. C.2. Análise Estilística: estudo das figuras de linguagem Podemos definir estilística como sendo “o estudo da linguagem humana em termos claros de tendência e características do orador e/ou autor”. “ Em nosso caso em particular, aplicaremos tal tipo de abordagem no intuito de descobrirmos quais são os principais traços que encontramos em nossa perícope de Mc 5.1-20, os quais apontam para o estilo marcano. Vejamos os exemplos abaixo: a) Polissíndeto 282 DEMOSS, Matthew S. DGGNT, p.74. 198 SA+ANÁS, DEIT1©NI©S Ê LEGIé Polissíndeto é o nome dado à “figura de construção que consiste em repetir uma conjunção ou uma preposição mais vezes do que a ordem gramatical exige”.283 284 Como já pudemos notar anteriormente no início de nossa análise léxico- morfológica, Marcos usa exageradamente a conjunção coordenativa Kai (e) na perícope que ora estamos estudando (41 vezes!). Esse uso desmedido serve para “costurar” o pensamento do autor e dar seqüência ao desenvolvimento do mesmo. Tal recurso permite que os elementos coordenados interpenetrem-se, 284 conferindo ao relato continuidade, vivacidade e fluidez. J LOVISOLO, Elena, ASSIS, Beatriz Helena de & POZZOLI, Thereza Cristina, (eds.). Dicionário da Língua Portuguesa Larousse Cultural. São Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1992, p.881. 284 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo, Paulinas, 2000, p. 157. 285 DEMOSS, Matthew S. Op.Cit., p.127. 286 Baxter faz um interessante comentário sobre o emprego desse advérbio em Marcos: “A palavra ocorre 42 vezes em Marcos; apenas sete em Mateus e uma em Lucas. Da mesma forma que os registros de Júlio César sobre a Guerra na Gália estão repletos da palavra ‘rapidamente’, a biografia de Jesus contada por Marcos repete eutheos”. (Cf. BAXTER, J. Sidlow. Examinai as Escrituras: período interbíblico e os evangelhos. Vol.V. [Tradução de Neyd Siqueira]. São Paulo, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1992, p.209). b) Otiose Otiose é o nome pelo qual são conhecidas “certas palavras e unidades gramaticais supérfluas; que não possuem efeito”.285 286 Em nosso texto encontramos um exemplo conhecido do uso deste elemento em Mc 5.2: “E saindo ele do barco, logo (...)”. Aqui, o uso do advérbio eèôuç (logo, imediatamente) não acrescenta nada ao significado do texto. Juan Mateos, comentando este verso, explica que “a construção com o genitivo absoluto torna supérfluo o uso do advérbio, além do 199 CARLOS AUGUS + ffi VAILA + + I mais, criticamente muito duvidoso”.287 Sendo assim, Marcos se utiliza do advérbio euthys apenas a fím de dar movimento à sua narrativa, por meio deste “imediatismo cronológico”. URBAN, Angel, MATEOS, Juan & ALEPUZ, Miguel. Estudios de Nuevo Testamento: questiones de gramatica y lexica. Madrid, Ediciones Cristiandad, 1977, p.117. 288 DEMOSS, Matthew S. Op.Cit.,p.ll. c) Epímone Epímone é como é chamado “em retórica, a repetição de um mesmo pensamento duas ou mais vezes, usando-se palavras similares ou sinônimas”.288 Na perícope que ora estamos estudando tal recurso estilístico pode ser notado várias vezes. Por exemplo, a ligação do homem com os sepulcros é mencionada três vezes: “(...) encontrou-se com ele dos sepulcros um homem (...)” (v.2), “o qual tinha a morada nos sepulcros (...)” (v.3) e “(...) estava nos sepulcros (...)” (v.5). Menciona-se duas vezes a força descomunal do endemoninhado: “(...) ninguém podia prendê-lo” (v.3) e “(...) ninguém podia subjugá-lo ” (v.4). Os objetos que foram usados inutilmente na tentativa de prendê-lo também são enfatizados no texto: “(...) e nem com corrente ninguém podia prendê-lo” (v.3) e “porisso, ele tinha sido preso muitas vezes com algemas e correntes, e tinham sido rompidas por ele as correntes, e as algemas tinham sido esmagadas (...)” (v.4). Os gritos emitidos pelo endemoninhado também são realçados por Marcos: “(...) estava nos sepulcros e nos montes gritando (...) ” (v.5) e “(...) gritando com forte voz (...)” (v.7). Estes exemplos são suficientes para percebermos o estilo repetitivo de Marcos que, por meio da repetição de certos pensamentos e idéias, tenciona realçar a dramaticidade do estado do homem endemoninhado. d) Hipérbole 200 SA+ANÁS, DEmêNieS £ LEGIî A hipérbole é a “figura de retórica que consiste na ênfase resultante de um exagero deliberado”.289 O objetivo principal de tal recurso é causar impressão no leitor.290 Em nosso caso, a descrição enfática da condição do endemoninhado (sua residência nos sepulcros, sua força descomunal, as tentativas frustradas de prendê-lo e o fato de estar possuído, não por um demônio, mas por uma “legião” demoníaca) tornam a narrativa marcana mais vivida e impressionante. Os leitores desse texto certamente exclamariam: “Puxa, como era lastimável o estado desse homem! Nestas condições, somente Jesus poderia tê-lo curado!”. 289 LOVISOLO, Elena, ASSIS, Beatriz Helena de & POZZOLI, Thereza Cristina, (eds.). Dicionário da Língua Portuguesa Larousse Cultural. São Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1992, p.588. 290 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo, Paulinas, 2000, p. 164. 291 LOVISOLO, Elena, ASSIS, Beatriz Helena de & POZZOLI, Thereza Cristina, (eds.). Op.Cit., p.876. 292 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etitnológico Nova fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1997, p.614. e) Pleonasmo Pleonasmo é a “repetição, em um enunciado, de palavras que têm o mesmo sentido”.291 292 Trata-se, na realidade, de uma “redundância de termos”. Em nossa perícope, tal elemento também é notado algumas vezes. O notamos, por exemplo, na frase: “e continuamente, de noite e de dia (...)” (v.5); na expressão: “e gritando com forte voz (...) ” (v.7) - o que é óbvio, pois ninguém grita em voz baixa; na resposta dada a Jesus pelo(s) demônio(s): “(...) Legião é o meu nome, porque somos muitos” (v.9) - o nome “legião” por si só já indica um grande contingente, sendo desnecessária a explicação “porque somos 201 CARL®S AUGUS + ® VA1LA + +I muitos”; na súplica dos demônios (a repetição pode ser melhor percebida em grego): IIé|ii|/ov f]p.õtç elç touç x°íp°uÇ. 'iva eiç autouç eLoéÀÔGjgfv. (v.12). Aqui, a preposição eiç aparece duas vezes ligada ao acusativo, sendo que o sentido do texto é ‘‘Envia-nos para (dentro) dos porcos, a fim de que neles (dentro) entremos”. Neste caso, portanto, a preposição + o acusativo têm o sentido fundamental de “dentro, em”.™ Logo, Marcos é redundante ao descrever o pedido dos demônios de que lhes seja permitido entrar nos porcos. A primeira parte da frase: ‘‘Envia-nos para (dentro) dos porcos” já seria suficiente para tal compreensão. Por fim, notamos a oração: ”(...) e precipitou-se a manada do despenhadeiro para o mar, cerca de dois mil, e se afogaram no mar” (v. 13), a qual é extremamente redundante, pois diz primeiramente que a manada de porcos caiu “no mar” e, em seguida, diz que se afogaram “no mar”. O final deste verso, cv ríj OaÀáooq (no mar), é totalmente desnecessário à compreensão do texto, porque se os porcos haviam se precipitado no mar e estavam se afogando, tal fato só poderia ocorrer “no mar”! Em suma, podemos dizer que tais sucessivos pleonasmos possuem uma finalidade meramente enfática, pois não acrescentam nada de novo ao texto, mas pretendem chamar a atenção do leitor.293 294 293 RUSCONI, Carlo. DGNT, p. 150. 294 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo, Paulinas, 2000, p. 158. 295 DEMOSS, Matthew S. DGGNT, p.104. f) Ironia Sob o ponto de vista literário, podemos definir ironia como “uma declaração humorística ou sarcástica, que tenciona expressar a oposição ao seu sentido literal”.295 * É curioso observarmos o confronto existente entre Jesus e o demônio, no 202 SA + ANÁS, D£fTl®NI®S Ê LEGIé qual há uma tentativa de esconjurar Jesus (v.7). Tal tentativa é absolutamente irônica, pois como se pode esconjurar “por Deus” o próprio Filho de Deus?296 Outra interessante ironia pode ser constatada no texto: “os espíritos impuros não querem sair, enquanto os habitantes pedem que ‘Jesus saia’”. Entretanto, creio que existem outros dois aspectos irônicos no texto, os quais vejo como principais em nossa perícope. O primeiro aspecto diz respeito à comparação entre a força dos gerasenos e a de Jesus. Enquanto que os primeiros não conseguem prender o endemoninhado com suas correntes e algemas (vv.3,4), o último o domina de forma poderosa, sem que necessite de nenhum recurso humano (vv.6-13ss). O segundo aspecto se refere ao nome do(s) demônio(s) que ocupa(m) o homem: “Legião”. Além de ser uma ironia desmedida, é também o cúmulo da audácia relacionar os demônios à legião romana! Marcos escreve sua narrativa com uma pena que fora embebida no tinteiro do sarcasmo, literariamente falando. No entanto, tais traços estilísticos acentuadamente irônicos têm o propósito de demonstrar a autoridade incomparável de Jesus sobre os demônios. * 298 /CIA r SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JÚNIOR, João Luiz Correia. Evangelho de Marcos. Vol. I: 1-8. Petrópolis, Vozes, 2002, p.223. Cf. também: GNILKA, Joachim. El Evangelio Según San Marcos. Vol. I. [Traducción de Victor A. Martinez de Lapera]. Salamanca, Ediciones Sígueme, 2005, p.238. SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JÚNIOR, João Luiz Correia. Op. Cit., p.225. Da mesma opinião é também: MAGGI, Alberto. Jesús y Belcebú: Satán y demonios en el Evangelio de Marcos. [Traducción de María del Carmen Blanco Moreno y Ramón Afonso Díez Aragón], Bilbao, Editorial Desclée de Brouwer, S.A., 2000, p.149. 298 Para uma abordagem mais detalhada sobre os traços de “ironia” dentro dos milagres narrados por Marcos, veja: ELLENBURG, Dale. A Review of Selected Narrative-Critical Conventions in Mark's Use of Miracle Material. JETS. Vol. 38, n° 2. San Diego, Bethel Theological Seminary West, 1995, pp. 171-180. 203 CARL®S AUGUS+® VAILA + + I g) Metáfora Dá-se o nome de metáfora a uma “figura de linguagem na qual um aspecto de uma coisa é mostrado por comparações implícitas com outra coisa ou simplesmente por identificá-la com algo a que está sendo comparada”.299 Em nosso caso, o aspecto particular da impureza é identificado com vários outros elementos, os quais contribuem para armar um cenário indelevelmente marcado pela impureza, a qual é vividamente retratada pelo autor. A esse respeito, julgo serem oportunas as considerações de Marcus J. Borg: 299 DEMOSS, Matthew S. DGGNT, p.l 15. 300 BORG, Marcus J. Jesus: Uncovering the Life, Teachings, and Relevance of a Religious Revolutionary. New York, HarperCollins Publishers, 2006, p.95. O aspecto central desta história cria uma narrativa metafórica vigorosa. Seus detalhes criam um retrato vivido de impureza. O homem possuído vive no outro lado do mar da Galiléia entre os gentios, que são impuros. Ele vive entre os sepulcros, que são impuros, imundos. Os porcos - animais impuros - pastam nas proximidades. Os demônios que o possuem são “Legião”, um termo que aponta para Roma (c conscqüentcmcnte gentia) possuidora da terra. A impureza era vista como algo contagioso. Mas, nesta história, Jesus não se torna impuro pelo contágio da impureza; ou melhor, o contrário acontece. Os espíritos impuros são exorcizados, os animais impuros são destruídos e a história termina com o homem vestido, em seu juízo perfeito c restaurado à comunidade.300 Esta riquíssima metáfora marcana acerca da impureza parece ter o objetivo de destacar o binômio pureza/impureza, realçando o valor desta primeira sobre a última. 204 SA+ANÁS, DE1T1©NI©S £LEGIé h) Tautologia Tautologia é o nome dado ao “vício ou figura retórica que consiste em repetir a mesma ideia utilizando termos diferentes”.301 Tal recurso estilístico é recorrente em nossa perícope. Ele pode ser visto, por exemplo, nas frases: “e continuamente, de noite e de dia f..J”(v.5), “E chegam para Jesus e vêem o endemoninhado (isto é, “o que fora endemoninhado”) (...) o que havia tido a legião ” (v. 15) e ainda: “(...) Vai para a tua casa, junto aos teus” (v. 19). Estas situações em que uma mesma ideia é repetida têm o propósito de enfatizar e realçar tais pensamentos diante do leitor, prendendo a sua atenção em assuntos que têm uma importância especial para o autor. LOVISOLO, Elena, ASSIS, Beatriz Helena de & POZZOLI, Thereza Cristina, (eds.). Dicionário da Língua Portuguesa Larousse Cultural. São Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1992, p.1074. DEMOSS, Matthew S. Op.Cit., p.106. ini BUTTRICK, George Arthur, (ed.). The Interpreter's Dictionary of the Bible. An Illustrated Encyclopedia. Vol.3. Nashville, Abingdon Press, 1981, p.110. i) Latinismo Entende-se por latinismo, “uma palavra, idioma ou construção gramatical derivada do latim”.302 Em nossa perícope, encontramos os termos Afyunv (substantivo no nominativo, v.9) e ÀeyiÓDua (substantivo que ocorre no acusativo, v.15). Tais vocábulos são derivados do latim legio e descreviam a principal unidade do exército romano.303 Logo mais adiante falaremos mais detalhadamente sobre este vocábulo, analisando as implicações históricas, sociais e políticas de tal termo, principalmente em relação com a perícope a que nos 205 CARL®S AUGUS + ffi VAILA + + I propusemos a analisar. Contudo, devemos mencionar ainda que vários outros nomes de origem latina, tanto da esfera administrativa, quanto da militar ou oficial, são utilizados por Marcos no decorrer de seu Evangelho. Eis alguns exemplos: Srivocpíctív (latim: denarius = denários, Mc 6.37; 14.5), KEVTupícov (latim: centurio = centurião, chefe de uma centúria, isto é, cem homens, Mc 15.39,44,45), KoSpdcvxriç (latim: quadrantum = (um) quadrante, moeda romana de pouquíssimo valor, Mc 12.42), ^ecrtxôv (O termo quer dizer: “de jarros”, Mc 7.4) e onEKOiAáTcop (latim: speculator = (um) executor, soldado romano encarregado da guarda dos prisioneiros, Mc 6.27). Além desses termos, o vocábulo ([jpaYEXÀóoj (latim: fragellum), “açoitar”, também é um nome de origem latina usado por Marcos (cf. Mc 15.15).304 Finalmente, além destes vocábulos, Benício também menciona as seguintes frases de procedência latina: 304 Cf. artigo escrito por BENÍCIO, Paulo José, in: GOMES, Antonio Maspoli de Araújo, (org.). Teologia: Ciência e Profissão. São Paulo, Fonte Editorial Ltda., 2007, p. 187. Cf. também a nota de rodapé em: CULLMAN, Oscar. A Formação do Novo Testamento. [Tradução de Bertoldo Weber], São Leopoldo, Sinodal, 2001, p.25. 305 Cf. BENÍCIO, Paulo José, in: Op.Cíú, p.188. fea%áxooç £%ei, in extremis esse, Está nas últimas (cf. Mc 5.23); paitíopaoiv ahxóv feÀccpov, verberibus eum acceperunt, Receberam-no a tapas (cf. Mc 14.65); xò ikocvòv ttoieív, satisfacere, Satisfazer (cf. Mc 15.15); xiôévxEÇ xà yóvocxa, genua ponere, Colocando os joelhos (cf. Mc 15.19).305 Segundo Benício, “os latinismos não somente evidenciam que o Segundo Evangelho foi redigido num ambiente romano 206 SA+ANÁS, DEmêNieS Ê LEGIé (talvez na Itália) - ou pelo menos que o seu autor estava familiarizado com o mundo latino - como também indicam 306 diversos pontos de contato entre as línguas grega e latina”. j) Semitismo Podemos dar o nome de semitismo a “qualquer característica das línguas semitas (especialmente o hebraico e o aramaico) que ressoam no estilo grego do NT e da Septuaginta. (...) Os semitismos podem ser explicados pela integração de culturas, incluindo-se o bilingüismo, bem como a influência que a Septuaginta teve durante o primeiro século. Semitismo é o termo descritivo mais geral para hebraísmos e aramaísmos, mais especifícamente”.* 307 Em nossa passagem, alguns vocábulos de origem semita podem ser observados, como, por exemplo: o já citado Kai (<?), o qual é derivado do hebraico 1 (vav); o termo KaxoÍKTioii' {morada, habitação, v.3) que é fartamente encontrado nas páginas do AT na sua forma hebraica HE/lQ;308 a também já mencionada expressão toô 0 c oü toô ôt|ríoTOu {do Deus Altíssimo, v.7), que reproduz o hebraico N e Idem, Ibidem, p. 188. O autor cita: BLASS, F., DEBRUNNER, A. & REHKOPF, F. Grammatik des Neutestamentlichen Griechisch. 17. Aufl. Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1990, pp.6-9. 307 DEMOSS, Matthew S. DGGNT, p. 155. 308 SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark. [Kregel Reprint Library Series], Grand Rapids, Kregel Publications, 1977, p.92. ainda o substantivo masculino KÚpióç {Senhor, v. 19), que é claramente derivado dos termos hebraicos: HiiT ou A t : t esse respeito, cito novamente Paulo Benício: Com a possível exceção de Lucas, é bem provável que todos os autores dos livros que integram o cânon 207 CARL®S AUGUS + ffi VAILA + + I neotestamentário fossem de procedência judaica; logo, pessoas que, embora falando e escrevendo o grego, possuiríam como língua de berço o aramaico, idioma que lhes marcaria o modo natural de expressão, influindo no seu vocabulário e nas suas categorias básicas do pensar, moldando-lhes também, em vasta medida, o estilo. Daí, pode-se afirmar, com propriedade, que o Novo Testamento é um livro cuja alma c hebraica, ao mesmo tempo em que o corpo é hclênico, ou melhor, um livro em que o corpo semita se exibe cm roupagem grega.309 Cf. artigo escrito por BENÍCIO, Paulo José, in: GOMES, Antonio Maspoli de Araújo, (org.). Teologia: Ciência e Profissão, pp. 188,189. 310 DEMOSS, Matthew S. DGGNT, p.131. 31 1 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. [Tradução de I.F.L. Ferreira]. São Paulo, Edições Paulinas, 1992, p.238. Tendo em mente tal fato, podemos dizer então que é absolutamente natural encontrar tais semitismos em nosso texto. k) Parrésia Finalmente, o último recurso estilístico marcano que gostaríamos de destacar na perícope que estamos estudando é a parrésia. Trata-se da “recusa intencional (e, talvez, tramada) a moderar palavras que correm o risco de causar uma reação negativa de uma audiência, mas que, ao contrário, traz mais simpatia para o falante e/ou escritor”.310 * Em nossa passagem, um fato em específico salta diante dos nossos olhos: os demônios que atormentam o geraseno são chamados de “legião”. E curioso notar que Marcos não tem a mínima intenção de omitir tal afirmação (e por sinal, ousada) em seu texto. Muito pelo contrário, ele até a menciona duas vezes (vv.9,15). O autor não faz o mínimo esforço para esconder as conotações políticas que jazem por trás de suas palavras. Dito de outra forma, em Mc 5.1-20 “encontramos imagens que visam recordar a ocupação O 1 1 militar romana na Palestina”. Mais adiante, veremos este 208 SA + ANÁS, DE1T1©NI®S £ LEGIé aspecto sociopolítico existente em tomo do nome “legião” com maiores detalhes. Em suma, através da análise estilística da perícope de Mc 5.1-20, pudemos constatar que o autor é bem versátil em sua narrativa. Marcos emprega vários recursos literários em seu texto, os quais se misturam de forma admirável, a fim de dar à sua história maior colorido e maior beleza. D. Análise de Conteúdo A análise de conteúdo é uma parte do processo exegético que visa esclarecer o significado do texto em seu todo e em seus detalhes.312 313 Dito de outra forma, tal análise terá como principal objetivo fazer uma espécie de comentário versículo por versículo de Mc 5.1-20, linha de trabalho esta que, segundo penso, nos proporcionará uma compreensão muito mais profunda do texto e de seu significado. Vejamos, então, que surpresas fascinantes o estudo desta passagem nos reserva por meio desse tipo de análise. 312 WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. São Leopoldo, Sinodal / São Paulo, Paulus,1998, p.337. 313 JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST], Missouri, College Press, 1965, p. 139. A mesma opinião é encontrada também em: GRAY, James Comper & ADAMS, George M. Bible Commentary: Matthew - Acts. Vol.4, Grand Rapids, Zondervan Publishing House, S.d., p.208. “E vieram para o outro lado do mar, para a região dos Gerasenos. ” (v.l). Os fatos descritos em toda esta perícope (5.1-20) são 313situados por Johnson e Dewelt no outono de 28 AD. Trata-se de uma passagem que tem a sua autoria tradicionalmente 209 CARL®S AUGUS + ® VAILA + +1 atribuída a Pedro.314 Quanto ao v.l, em específico, podemos dizer que ele é claramente redacional, pois serve para ligar a perícope do Endemoninhado Geraseno (5.1-20) com a perícope anterior da Tempestade no Mar da Galiléia (4.35-41). É curioso notar que Marcos descreve Jesus atravessando esse mar várias vezes (p.ex., 4.35; 5.1,21; 6.45; 8.13). Tal ênfase descritiva é um Leitmotiv (isto é, uma ação ou esquema que se repete em diferentes textos de um mesmo autor ou livro, para os quais funciona como um fio condutor) que acompanha o ministério de Jesus na Galiléia.315 Como observou Guelich, ‘“o outro lado’ amarra esta história à anterior por indicar a chegada no destino dado em 4.35 para a viagem do barco”.316 317 Aliás, gastava-se mais ou menos duas horas para que se pudesse atravessar esse ‘mar’. E aqui, o vocábulo ‘mar’ é colocado propositalmente entre aspas, pois, ao que tudo demonstra, as indicações geográficas fornecidas por Marcos não parecem ser Neste caso, Pedro teria sido a fonte principal de Marcos. Cf. COOK, Guillermo y FOULKES, Ricardo. Marcos. [Comentário Biblico Hispano- Americano], Miami, Editorial Caribe con La Cooperación de La Fraternidad Teológica Latino-Americana, 1990, p. 143. Cf. também: CRANFIELD, C. E. B. The Gospel According to St. Mark. Cambridge, Cambridge University Press, 1983, p. 175. 315 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo, Paulinas, 2000, p. 179. Gnilka comenta que “o descer Jesus do barco se corresponde ao subir no verso 18 e mostra de novo a preocupação de Marcos: criar conexões tanto com o anterior como com o que virá depois”. (Cf. GNILKA, Joachim. El Evangelio Según San Marcos. Vol. I. [Traducción de Victor A. Martinez de Lapera]. Salamanca, Ediciones Sígueme, 2005, p.233). 316 GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], Dallas, Word Books, Publisher, 1989, p.275. Bornkamm, estranhamente cita Mc 5.1 como referência ao estilo de ensino de Jesus, o qual costumava ensinar sentado. (Cf. BORNKAMM, Günther. Jesus de Nazaré. [Tradução de José dos Santos Gonçalves e Nélio Schneider]. São Paulo, Teológica, 2005, p.76). 317 LANE, William L. The Gospel According to Mark Vol.2. [NICNT]. Grand Rapids I Cambridge, William B. Eerdmans Publishing Company, 1974, p. 181. O grifo é meu. 210 sa+anás, DEmêNies ê legiã© topográficas, mas acima de tudo, teológicas, uma vez que o mar não é um mar, mas sim o lago de Tiberíades e, além disso, a região dos gerasenos também possui problemas de ordem geográfica que prejudicam a sua atestação.318 Contudo, por se tratar de uma terra gentílica, era um local impuro conforme a tradição judaica.319 * E já que entramos nesse assunto, a maior dificuldade de nossa passagem está justamente em identificar a localidade exata onde os fatos descritos no texto teriam ocorrido. Os sinóticos nos oferecem três opções: Gadara (Mateus), Gerasa (Marcos) e Gerasa™ (Lucas). No que diz respeito ao aspecto geográfico, Gadara estava situada a cerca de 10 km da margem do lago e, na época, era capital da Peréia, que dava o nome de “terra dos gadarenos” ao local (Mt 8.28).321 Josefo chama este país de “a Gadarite”.322 Contudo, Johnson e Dewelt afirmam que Gadara está a três horas de jornada ao sul do lago, não sendo, portanto, provável que o milagre tenha ocorrido ali.323 Logo, sob o aspecto topográfico, Gadara não 318 MAGGI, Alberto. Jesúsy Belcehú: Satán y demonios en el Evangelio de Marcos. [Traducción de Maria del Carmen Blanco Moreno y Ramón Afonso Díez Aragón], Bilbao, Editorial Desclée de Brouwer, S.A., 2000, p.142. 319 Cf. DANBY, Herbert. The Mishnah. [Translated from the Hebrew with introduction and brief explanatory notes by Herbert Danby]. Oxford, Oxford University Press, 1988, p.290. Embora Lucas também mencione “Gerasa” em seu texto sinotico, a alternativa “Gergesa” aparece proeminentemente em: N L 0 E /' 33 157 205 579 700,xt 1241 1342 syrpal copbo arm eth geo slavmss Diatessaronam Origen Titus-Bostra Epiphanius Cyrillem Hesychius, motivo pelo qual a citamos aqui. (Cf. ALAND, Barbara, ALAND, Kurt, KARAVIDOPOULOS, Johannes, MARTINI, Carlo M. & METZGER, Bruce M. The Greek New Testament. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 2005, p.231). 321 POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos. [Tradução de Hans Udo Fuchs]. Curitiba, Editora Evangélica Esperança, 1998, p. 178. 32? LENSKI, Richard C.H. The Interpretation of St. Matthew's Gospel. Minneapolis, Augsburg Publishing House, 1961, p.350. 323 JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [Bible Study Textbook], Missouri, College Press, 1965, p.140. Entretanto, de acordo com 211 CARLffiS AUGUS+® VAILA + +I parece ser o local que melhor se encaixe em nosso relato. Quanto a Gerasa, deve ser dito que esta se situava a aproximadamente 55 km ou a uns dois dias de jornada do mar.324 325 Tendo como base essa distância, Fitzmeyer ironiza, dizendo que “o estouro dos porcos de Gerasa até o Lago Genesaré deve ter feito deles o rebanho mais energético da o o c Josefo, a região de Gadara chegava até o lago, sendo que algumas moedas da cidade que foram encontradas retratavam barcos. (Cf. POHL, Adolf. Op.Cit., p.178). 324 GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [Word Biblical Commentary]. Dallas, Word Books, Publisher, 1989, p.275. Cf. também: GNILKA, Joachim. El Evangelio Segiin San Marcos. Vol. I. [Traducción de Victor A. Martinez de Lapera]. Salamanca, Ediciones Sigueme, 2005, p.234; POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos. [Tradução de Hans Udo Fuchs]. Curitiba, Editora Evangélica Esperança, 1998, p. 178. 325 FITZMEYER, Joseph A. The Gospel According to Luke I-IX. Vol.28. [The Anchor Bible]. New York, Doubleday, 1981, p.736. 326 Idem, Ibidem. 327 MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And Commentary. Vol.27. [The Anchor Bible], New York, Doubleday, 1999, p.342. Redding cita T. R. Malty, quem “sugere que Pedro, falando aramaico com sotaque galileu, falou sobre Ger’sa, e que Marcos, soletrando em letras gregas, chamou o povo de Gerasenos, e foi imaginado pelos críticos ter história!”. Certamente, os porcos teriam morrido antes pela exaustão, do que por afogamento, se tivessem percorrido uma distância “maratônica” destas! E este mesmo autor ainda identifica Gerasa com a moderna Jerash, na Transjordânia, uma cidade da Decápolis nas montanhas de Gileade próxima à margem do deserto em direção ao leste.326 327 Como pode ser notado, Gerasa também não nos oferece a melhor localização para os eventos narrados em nosso texto. Porém, como observa Joel Marcus de forma convincente, embora Gerasa seja uma opção geograficamente difícil, todavia, ela é apropriada simbolicamente, uma vez que a raiz hebraica grs significa “expulsar”, sendo este um termo comum para se referir ao exorcismo. Finalmente, nos deparamos com a terceira 212 SA+ANÁS, D£IT1©NI©S E LEGIé alternativa, Gergesa. Ao que parece, a variante “Gergesenos”, o mais inferior dos resgistros atestados, é também a mais plausível geograficamente.328 Pohl comenta que “o pequeno povoado de Gergesa (...) cujas ruínas até hoje podem ser visitadas à margem do lago, é considerado o local do evento desde o século III. Dois quilômetros ao sul há uma ladeira íngreme de 44 m de altura, distante 30 a 40 m do lago.329 Entretanto, este mesmo autor ainda cita Eusébio, segundo quem Gergesa não passava de uma aldeia.330 Sendo assim, acredito que a melhorforma de resolver esse dilema seja através de um binômio, o binômio: Texto/Topografia (TT). Do ponto de vista textual, a variante Gerasenos é vista pelos estudiosos da Crítica Textual como a leitura mais correta.331 Porém, do ponto de vista topográfico, a leitura alternativa Gergesenos é a que melhor se encaixa em nosso relato, pois, como vimos, Gergesa ficava bem próxima do Mar da Galiléia. De uma distância como esta, os porcos certamente poderíam mergulhar no lago mais tranqüilamente! Seja como for, até que novos fatos venham à tona ou até que novas descobertas arqueológicas sejam feitas, a questão do “binômio TT” ainda permanecerá em aberto. Mais adiante, quando falarmos sobre a crítica textual de nossa perícope, mencionarei estas variantes textuais com o acréscimo de outros detalhes. cometido um erro, quando ele estava apenas comunicando com sua habitual precisão”. (Cf. REDDING, David A. 77n? Miracles of Christ. Westwood, Fleming H. Revell Company, 1964, p. 185). 328 MARCUS, Joel. Op.Cit., p.342. 329 POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos, p. 178. 330 Idem, Ibidem. 331 METZGER, Bruce M. A Textual Commentary on the Greek New Testament. London, United Bible Societies, 1975, p.84. “E saindo ele do barco, logo encontrou-se com ele dos sepulcros um homem com espírito imundo ” (v.2) 213 CARL®S AUGUS+® VAILA + +I É interessante notar, já de início neste verso, o contraste entre o verbo rjÀQov', “vieram”, que aparece na terceira pessoa do plural (v.l) e a expressão è^ÀQóvroç avroô, “saindo ele”, que é encontrada aqui no singular (v.2). Enquanto que o primeiro sugere a presença dos discípulos (cf. 4.35-41), a segunda focaliza a sua atenção somente em Jesus. Pohl explica essa mudança brusca do plural (Jesus e os discípulos) para o singular (somente Jesus) de uma forma teologicamente muito correta: “(...) para os olhos do narrador, desaparecem os que acompanham Jesus. Seu relato é cristocêntrico”.332 333 O desaparecimento dos discípulos é, na verdade, um exemplo do recurso narrativo conhecido como “economia do relato”. Trata- se de um artifício literário que faz permanecer em cena somente os elementos essenciais, ou seja, tudo o que é supérfluo e serve tão somente para contextualizar ou dar verosimilhança ao POHL, Adolf. Op.Cit., pp.l80,181. 333 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo, Paulinas, 2000, p. 119. 334 Segundo A. N. Wilson: “O endemoninhado da caverna (é como ele chama ao geraseno) (...) parece muito real. Mais real, curiosamente, do que Jesus”. (Cf. WILSON, A. N. Jesus, uma biografia. [Tradução de Ruy Jungmann], Rio de Janeiro, Ediouro, 1993, p. 182). 335 LENSKI, Richard C.H. The Interpretation of St. Mark’s Gospel. Minneapolis, Augsburg Publishing House, 1964, p.206. O O 1 episódio desaparece sem maiores comentários. Outro fato que nos salta aos olhos neste verso é a menção feita a apenas “um homem” (àvOpcoiroç), o qual encontra-se com Jesus.334 Enquanto Lucas segue Marcos de perto e também cita somente um endemoninhado em seu relato (Lc 8.27), Mateus, porém, faz referência a ôúo ôatpoviCópevoi, “dois endemoninhados” (Mt 8.28). Para Lenski, não há nenhuma contradição nisso, pois um dos dois era evidentemente o líder e o porta-voz, enquanto que o outro era apenas o seu companheiro.335 Outra coisa que nos 214 SA+ANÁS, DEffl©N!©S E LEGIé chama a atenção é o fato do homem sair 6K tôv pi/rmeítov, “dos sepulcros”, em direção a Jesus. Já mencionamos anteriormente em nossa análise estilística que a referência aos sepulcros é recorrente na passagem (cf. vv. 2,3,5). Segundo a mishná, entrar em contato com uma região onde houvesse sepulturas tomaria a pessoa impura (Mishná, tratado Oholoth, 2.3). E, além disso, a mishná também ensina que “se um homem passar por um país gentio, em região montanhosa ou rochosa, ele se toma impuro” (Mishná, tratado Oholoth, 18.6).336 337 Percebe-se, portanto, um cenário de grande impureza em nosso texto, pois além do endemoninhado estar numa terra gentia (e Jesus também estava!), ele também vinha de um local que era cerimonialmente impuro: dos sepulcros. Adin Steinsaltz, em seu comentário feito ao Talmude, nos ajuda a compreender porque os sepulcros são considerados elementos impuros: “(...) pode-se dizer que o que está vivo e são não tem impureza e que a impureza aumenta quando algo se aproxima da morte. Assim, de acordo com a terminologia talmúdica, a coisa mais impura, ‘a suprema causa de impureza’ (avi avot ha-tumà), é um cadáver (...). O objeto impuro não é apenas impuro em si mesmo, mas também transmite sua poluição ao que entra em contato com ele. (...) A poluição usualmente passa pelo toque do objeto impuro, mas, às vezes, até por ficar sob o mesmo teto ou por transportar o objeto poluído sem tocá-lo diretamente”.338 E Joel Marcus, citando Bratcher, declara que “as pessoas eram muitas vezes enterradas em cavernas abertas dentro das rochas, grandes o suficiente para uma pessoa entrar em pé, e normalmente altas o suficiente dentro para permitir que uma pessoa permanecesse na vertical. 336 DANBY, Herbert. The Mishnah. [Translated from the Hebrew with introduction and brief explanatory notes by Herbert Danby]. Oxford, Oxford University Press, 1988, p.652. 337 Idem, Ibidem, p.675. 338 STEINSALTZ, Adin. O Talmude Essencial. [Tradução de Elias Davidovich]. Rio de Janeiro, A. Koogan Editor, 1989, pp.269,270. 215 CARLOS AUGUS+© VAILA + + I Um lugar assim poder ia prover abrigo para um homem que não tivesse outro lugar para morar. Os túmulos, portanto, eram lugares ritualmente impuros por causa da presença de restos mortais. (...) Esta impureza fazia do cemitério um lugar ideal para a morada dos ‘espíritos impuros’”.339 Por último, o verso ainda diz que o homem estava èv ttveúpaTt aKaOapm), “em (com) espírito imundo (impuro)”. Em outras palavras, “a terra impura é habitação adequada ao espírito impuro”.340 Nesta situação de impureza tríplice, representada por: terra pagã, túmulos e possessão demoníaca, o resultado seria uma separação total de Deus, sem esperança.341 MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction and Commentary. Vol.27. [AB]. New York, Doubleday, 1999, p.342. Segundo Deissmann, “que os ôaipóvio. permanecem perto do túmulo é uma idéia do Judaísmo pós-bíblico: estes demônios dos túmulos auxiliam os homens nas práticas mágicas”. (Cf. DEISSMANN, G. Adolf. Bible Studies: contributions chiefly from papyri and inscriptions to the history of the language, the literature, and the religion of hellenistic Judaism and primitive Christianity. [Translated from german by Alexander Grieve]. Peabody, Hendrickson Publishers, 1988, p.281). 340 SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JUNIOR, João Luiz Correia. Evangelho de Marcos. Vol. I: 1-8. Petrópolis, Vozes, 2002, p.222. Lockyer comenta que “sua impureza pertencente [do endemoninhado] por meio da constante submissão ao maligno se tomava grandemente acentuada pela presença dos espíritos impuros”. (Cf. LOCKYER, Herbert. All the Miracles of the Bible. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1961, p. 188). 341 POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos, p. 181. “O qual tinha a morada nos sepulcros, e nem com corrente ninguém podia prendê-lo ” (v.3) Neste verso, outro dado é fornecido a respeito da ligação do homem com os sepulcros: eles eram a sua KaToitcqaiv’, “morada”. Pohl descreve esta situação nestes termos: “Uma porção de homens se arremessava contra ele, para domá-lo 216 SA+ANÁS, DEIT1®NI®S E LEGIî como um animal selvagem. (...) Por último, o expulsaram, de modo que só lhe restaram as cavernas dos túmulos. Os mortos não lhe faziam nenhum mal, mas também não o protegiam de si mesmo”.342 William Barclay, citando W.M. Thomson em seu livro The Land and the Book, nos fornece um interessante comentário sobre o perfil de alguns loucos que existiam na região do Oriente Médio, no século XIX, os quais nos lembram o nosso relato: 342 Idem, Ibidem, p. 181.343 BARCLAY, William. The Gospel of Matthew. Vol.l. Philadelphia, The Westminster Press, 1958, p.328. Segundo Renan, “em nossos dias, na Síria, considera-se loucos ou possuídos pelo demônio (essas duas idéias são a mesma coisa, medjoun) pessoas que apresentam apenas alguma esquisitice”. O autor ainda prossegue, dizendo que a frase Daemonium habes, “tens demônio” - que aparece em textos tais como: Mt 11.18; Lc 7.33; Jo 7.20; 8.48, 52; 10.20 - deve ser traduzida por “você é louco”, sendo dito em árabe: Medjnoun enté. Por fim, Renan ainda argumenta que o verbo daimonan também possui, durante toda a Antigüidade clássica, o sentido de “estar louco”. (Cf. RENAN, Ernest. Vida de Jesus. [Tradução de Eliana Maria de A. Martins]. São Paulo, Martin Claret, 1992, p.265, incluindo a nota 28). Há alguns casos muito semelhantes nos dias de hoje - maníacos furiosos e perigosos, que perambulam sobre as montanhas e dormem em cavernas e túmulos. Em seus piores paroxismos eles são bastante indomáveis e prodigiosamente fortes (...). E este é um dos traços mais comuns desta loucura, que as vítimas se recusam a usar roupas. Eu tenho visto, muitas vezes, eles totalmente nus nas ruas lotadas de Beirute c Sidon. Há também casos em que eles correm freneticamente por todo o país e assustam toda a vizinhança.343 Além desse item, dois outros elementos chamam a nossa atenção neste verso. Primeiramente, a tentativa de prender o endemoninhado com uma corrente. O termo utilizado aqui para “corrente” é o vocábulo áÀúoei, que faz referência a “uma 217 CARLffiS AUGUS + ® VAILA + + I cadeia, um laço, pelo qual o corpo, ou alguma parte dele (as mãos, os pés) é presa”.3 4 Este homem, assim como os escravos daquela época, andava amarrado com grilhões e correntes.344 345 Há, sem dúvida alguma, uma forte conotação política aqui, através da qual nós podemos ver o poder dominante, Roma, tratando as classes dominadas como escravos. Porém, trataremos deste assunto com maiores pormenores mais adiante. Finalmente, o verso nos diz que “ninguém podia prendê-lo”. Aqui, a palavra “prendê-lo” é derivada do verbo 5éco, “amarrar, sujeitar com correntes”.346 Tal verbo faz parte do vocabulário específico dos exorcismos.347 De acordo com Myers, “este exorcismo constitui, assim, outro episódio-chave na luta de Jesus, o mais forte, para ‘amarrar o homem forte’. No exorcismo da sinagoga [Mc 1.21-28], ele se identificava com a classe escriba, agora ele se identifica com os exércitos de César”.348 Assim, o verso termina mostrando a impotência dos homens e de seus mecanismos humanos em sua tentativa de controlar o endemoninhado. Para Kertelge, esta descrição do 144344 THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.29. 345 PALLARES, José Cárdenas. O Poder do Carpinteiro Jesus no Evangelho de Marcos. [Tradução de Afonso Maria Ligório Soares]. Aparecida, Editora Santuário, 2002, p.77. 346 BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). Diccionario Exegético del Nuevo Testamento. Vol.l. (OC-K). [Traducción de Constantino Ruiz- Garrido]. Salamanca, Ediciones Sigueme, 2005, p.883. Aqui, o verbo Sèco também pode ser traduzido por “domar”, sendo um termo usado para se referir aos animais (cf. Tg 3.7). (Cf. MAGGI, Alberto. Jesús y Belcebú: Satán y demonios en el Evangelio de Marcos. [Traducción de Maria dei Carmen Blanco Moreno y Ramón Afonso Díez Aragón], Bilbao, Editorial Desclée de Brouwer, S.A., 2000, p. 144). 347 RABUSKE, Irineu J. Jesus Exorcista: estudo exegético e hermenêutico de Mc 3,20-30. São Paulo, Edições Paulinas, 2001, p.263. 34R MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. [Tradução de I.F.L. Ferreira], São Paulo, Edições Paulinas, 1992, p.240. 218 sa+anás, DemèNies e legiã® endemoninhado refere-se às características de um louco furioso.349 349 O artigo de Karl Kertelge, intitulado: Diabos e demônios, exorcismos em perspectiva bíblica, foi reunido com outros artigos de outros autores que também tratam da temática demonológica, e foi transformado em livro. (Cf. KASPER, Walter, LEHMANN, Karl, KERTELGE, Karl & MISCHO, Johannes. Diabo - Demônios - Possessão. [Tradução de Silvino Amhold], São Paulo, Edições Loyola, 1992, pp.33,34). 350 ROGERS JR., Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic and Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1998, p.76. 3S 1 WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X. Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1957, p. 101. "por isso, ele tinha sido preso muitas vezes com algemas e correntes, e tinham sido rompidas por ele as correntes, e as algemas tinham sido esmagadas, e ninguém podia subjugá-lo ” (v-4) Este verso, que mais parece uma repetição amplificada do anterior, nos fornece algumas informações interessantes. Primeiramente, somos informados de que o endemoninhado havia sido preso troÀÀáKiç, “muitas vezes”. Isto significa que o seu estado de endemoninhamento já era algo rotineiro. Além disso, ele fora preso “com algemas e correntes”. Aqui, a palavra “algemas” é a tradução de iréôatç, que se refere a “grilhões para os pés, cadeias”.350 * Já o outro termo, àÀóoeoLv, “correntes”, é entendido por Wuest como um instrumento que prende as “mãos”, uma vez que é dito que “o endemoninhado estava preso o c t tanto pelas suas mãos como pelos seus pés”. Robertson ainda sugere que as algemas (grilhões) poderíam ter sido cordas, e não 219 CARLffiS AUGUS + ffi VAILA + +I exatamente cadeias. Seja como for, este cenário que descreve sucessivas tentativas frustradas de imobilização do endemoninhado, serve para chamar a atenção do leitor para a tamanha periculosidade do endemoninhado, bem como, prepara os leitores para a descrição subseqüente da libertação sobrenatural do homem, a qual se dará por intermédio do poder de Jesus. Uma história bem contada tem que possuir dramatic idade em seu enredo, a fim de que os ouvintes/leitores estejam presos à trama que é narrada. Nesse quesito, Marcos sabe realmente como prender a atenção de seus leitores. Finalmente, chama-nos também a atenção o uso repetitivo do infinitivo no verso 4. As expressões: ôeôéoôai (“ter sido preso”), ôieonáoQai (“terem sido rompidas”), ouvTcrpLcliQai (“terem sido esmagadas”) e ôapáoai (“subjugar”) aparecem todas no infinitivo. Dessas, as primeiras três aparecem no infinitivo perfeito na voz passiva, o perfectum (acabado), que exprime o resultado da ação; e a última aparece no infinitivo aoristo (pontual), que traz a idéia absoluta, pura do ato verbal.* 353 Quanto à questão do uso da voz passiva, Joel Marcus diz o seguinte: “talvez Marcos escolha o passivo porque o homem não está no controle de sua vida, mas é a vítima de forças externas. Nós podemos quase que falar de um ‘endemoninhado passivo’ aqui”.354 De qualquer forma, a passividade do homem enquanto possuído, demonstra claramente que ele tem a sua vontade escravizada fortemente pelos demônios.355 ROBERTSON, Archibald Thomas. The Gospel According to Matthew and the Gospel According to Mark. Vol. I. [WPNT], Nashville, Broadman Press, 1930, p.295. 353 Cf. MURACHCO, Henrique. Língua Grega: visão semântica, lógica, orgânica e funcional. Vol.l. São Paulo, Discurso Editorial / Editora Vozes, 2007, p.301. 354 MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And Commentary, p.343. 355 Aliás, o nome dos demônios que escravizam esse homem por meio de sua possessão, legião, é bem sugestivo, pois devemos lembrar que “o proprietário 220 SA+ANÁS, DEHlêNieS E LEGIî “E continuamente, de noite e de dia, estava nos sepulcros e nos montes gritando e cortando a si mesmo com pedras", (v.5). Aqui, o adjetivo pronominal uavròç, “continuamente”, descreve a triste rotina em que vivia este miserável homem. Quanto à frase: vuktòç kocl rip-épocç, “de noite e de dia", ela significa, segundo Swete, “em intervalos durante a noite e o dia”, pois, segundo ele, caso fosse sem intervalos, ininterruptamente, deveria ser empregada aqui a expressão 3ià kocvtóç (cf. Dt33.10 [LXX]; Lc 24.53; Hb 9.6).356 Por outro lado, a indicação temporal “noite e (...) dia" também reflete a contagem judaica de um pôr-do-sol até o outro pôr-do-sol.357 Além disso, uma nova informação topográfica nos é fornecida aqui. O texto diz que o endemoninhado estava èv rotç ópeotv, “nos montes”. Segundo Alberto Maggi, o homem buscava uma salvação na proteção das divindades que, conforme a cultura da época, residiam nos montes (Ex 3.12; Dt 12.2; Jr 2.20; 3.6; Ez 6.13).358 Todavia, segundo a concepção dos antigos, os montes [romano] de um escravo tinha liberdade para chicoteá-lo, prendê-lo ou matá- lo, com ou sem motivo”. (Cf. MELTZER, Milton. História Ilustrada da Escravidão. [Tradução de Mauro Silva]. Rio de Janeiro, Ediouro, 2004, p.143). 356 SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark. [Kregel Reprint Library Series], Grand Rapids, Kregel Publications, 1977, p.93. 357 ROGERS JR., Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic and Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1998, p.76. 358 MAGGI, Alberto. Jesús y Belcebii: Satan y demonios en el Evangelio de Marcos, p.144. Paliares comenta: “Não se deve esquecer que, na simbologia bíblica, o fundo do mar, como chama o evangelista ao lago, é o contrário da montanha”. Porém, ele não explica em que consiste tal diferença. (Cf. 221 CARLOS AUGUS + ffi VAILA + + I não representavam um lugar de refugio devido à pressão das civilizações, antes, eram lugares perigosos por causa da presença de selvagens e loucos.359 Outro detalhe importante nos é dado: o homem estava KpáCcov (“gritando”).360 Ao que tudo indica, esse termo denota um grito desarticulado, um som agudo.361 Com a possessão, o homem perde a capacidade de articular as palavras ordenadamente.362 Por último, o verso diz PALLARES, José Cárdenas. O Poder do Carpinteiro Jesus no Evangelho de Marcos, p.76). 359 MILLER, Dale-MILLER, Patrícia. The Gospel of Mark as Midrash on earlier Jewish and New Testament Literature. New York, The Edwin Mellen Press, 1990, p.249. Esta concepção vai de encontro ao exemplo que Hunter cita em seu comentário sobre Marcos: “(...) a experiência do viajante Warburton (The Crescent and the Crown, ii,352): Ao descer dos montes do Líbano eu me achei em um cemitério. O silêncio da noite era agora interrompido por um feroz grito e por uivos, que eu descobri procederem de um maníaco que estava nu, o qual estava brigando com algum cachorro selvagem por um osso”. (Cf. HUNTER, A. M. The Gospel According to Saint Mark. London, SCM Press Ltd., 1957, p.63). Já de acordo com Tenney: “Muitos povos antigos consideravam as montanhas como lugares sagrados”. (Cf. TENNEY, Merril C. (ed.). The Zondervan Pictorial Bible Dictionary. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1963, p.560). 360 O dramaturgo grego Aristófanes (V-IV século a.C.) usa esse termo para se referir, por exemplo, ao som emitido pelas rãs. (Cf. VINCENT, Marvin R. Word Studies in the New Testament. Vol.l. [The Synoptic Gospels, Acts of the Apostles, Epistles of Peter, James and Jude]. Virginia, Macdonald Publishing Company, 1886, p. 187). 361 WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X. Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1957, p.101. Joel Marcus comenta que “este verbo pode ser usado para uma fala articulada (...), mas também para sons feitos quando alguém emite um grito alto, mas sem palavras capazes de serem compreendidas”. (Cf. MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And Commentary. Vol.27. [AB], p.343). De acordo com Swete, “a palavra sugere uma forte emoção, que pode ser tanto boa quanto má”. (Cf. SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark. [Kregel Reprint Library Series]. Grand Rapids, Kregel Publications, 1977, p.93). 362 De acordo com Aune: “O fenômeno da voz alta com a qual um oráculo pode estar se expressando pode ser interpretado pelo narrador e sua audiência 222 SA+ANÁS, D£m®NI®S Ê LEGIî que o homem estava KaTctKÓiruwv èauròv ÀíQoiç (^cortando a si mesmo com pedras”}. Lane faz o seguinte comentário a esse respeito: Estava esta prática associada com a adoração a divindades demoníacas? Cortar a carne em uma adoração frenética é algo muito antigo (cf. 1 Rs 18.28). Em Mc 5.7, Jesus c chamado por um título bem atestado em contextos sincréticos gentios c judaicos, apropriado à Decápolis como uma região helenista e pagã. A sugestão que se encontra à mão é a de que o endemoninhado estava envolvido em uma forma de adoração contrária à sua vontade.363 como um sinal de possessão. No NT os demônios são descritos como emitindo gritos altos através de suas vítimas (Mc 1.26; 5.7; Lc 4.33; 8.28; At 8.7; 16.17)”. (Cf. AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Company, 1983, pp.435,436, nota 5). Será que os gritos do endemoninhado poderíam ser, na verdade, protestos emitidos contra a ocupação romana? Embora tal hipótese seja tentadora, acho isso pouco provável. 63 LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT], Grand Rapids / Cambridge, William B. Eerdmans Publishing Company, 1974, p. 182. 364 SWETE, Henry Barclay. Op.Cit., p.93. Deve-se dizer ainda que o verbo “cortar”, que aparece aqui no particípio presente (Ka-raKÓitrcov), isto é, “cortar em pedaços”, dá a entender que o seu corpo pudesse estar dilacerado e cicatrizado em todas as partes.364 Aliás, se tomarmos em conjunto os w.3-5, veremos que eles contêm as quatro características da insanidade conforme o Talmude: (a) correr por toda a parte à noite (cf. 5.5); (b) passar a noite em um cemitério (cf. 5.3); (c) rasgar a única peça de roupa (cf. ÕLeoiráoôaL - derivado de ôtaoTtáco, “rasgar em partes” - cf. 5.4); e (d) destruir a única coisa que lhe tem sido dada (cf. 223 CARLOS AUGUS + ffi VAILA + +! 0WTÉTpL(|)9ca - “terem sido esmagadas” - cf. 5.4).365 Finalmente, muitos têm encontrado alguns pontos de contato entre partes da perícope que estamos estudando e Is 65.1-7,11. Sobretudo, os versos 4 e 5.366 Estes versos falam sobre: “morar entre as sepulturas”, “passar a noite em lugares misteriosos” e “comer carne de porco” (Is 65.4)367 e, além disso, encontramos também a frase: “Fica onde estás, não te chegues a mim ” (Is 65.5). Embora tais textos possuam algumas poucas semelhanças entre si, não creio que Isaías tenha influenciado partes da narrativa de Mc 5.1-20. Tais passagens são muito heterogêneas em seus propósitos e em seus respectivos contextos. GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], p.278. Cf. também: LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT], p. 182; GNILKA, Joachim. El Evangelio Segiin San Marcos. Vol. I, p.236. 36 Cf. GNILKA, Joachim. Op.Cit., p.237; MAGGI, Alberto. Jesús y Belcebú: Satan y demonios en el Evangelio de Marcos, p.144; GUELICH, Robert A. Op.Cit., p.278; SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JÚNIOR, João Luiz Correia. Evangelho de Marcos. Vol. I: 1-8, p.223. Paliares, porém, não vê nenhuma relação entre Is 65 e Mc 5. (Cf. PALLARES, José Cárdenas. O Poder do Carpinteiro Jesus no Evangelho de Marcos, pp.75,76). 367 Em Is 65.4 e em 66.3,17, os porcos são mencionados em um contexto cúltico possivelmente como alimentos que servem como oferendas. (Cf. KEEL, Othmar & UEHLINGER, Christoph. Gods, Goddesses, and Images of God: in ancient Israel. Minneapolis, Fortress Press, 1996, p.384, nota 8). “E, vendo a Jesus de longe, correu e prostrou-se perante ele” (v.6). Ao compararmos este verso com o v.2, verificamos que este verso resume e ao mesmo tempo desenvolve aquele. Sobre a expressão: irpootKÚvT|oev avrcp “prostrou-se perante ele”, tal ação parece constituir-se em um ato de homenagem, o qual demonstra que, imediatamente, antes de qualquer diálogo, o 224 SA+ANÁS, D£m©NI©S £ LEGIî 368 demônio respeitou profundamente o poder de Jesus. Entretanto, para Paul Minear, quem adorou a Jesus foi o homem e não o demônio. SegundoMinear, “ele estava incapaz de escapar da legião, mas ele claramente queria escapar”.368 369 Esta última observação é deveras interessante, pois, a meu ver, retrata de forma vivida o tamanho sofrimento do homem. Esta alternância conflituosa entre as ações do demônio e as ações do homem dramatizam ainda mais a condição do endemoninhado, preparando o leitor para o poderoso milagre que estará para acontecer. 368 ANDERSON, Hugh. The Gospel of Mark. [NCBC], Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publ. Co. & London, Marshall, Morgan & Scott Publ. Ltd., 1981, p. 148; GREEN, Joel B. & TURNER, Max. Jesus of Nazareth: Lord and Christ: essays on the historical Jesus and New Testament christology. Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Company I Carlisle, The Paternoster Press, 1994, p. 51, nota 69. MINEAR, Paul S. The Gospel According to Mark. [LBC]. Atlanta, John Knox Press, 1982, p.74. 370 LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT], p.183. Expressões semelhantes ocorrem também no Antigo Testamento, como, por exemplo, em: Js 22.24; Jz 11.12; 2 Sm 16.10; 19.22; 1 Rs 17.18. “E gritando com forte voz, disse: ‘O que a mim e a ti, Jesus, filho do Deus Altíssimo? Conjuro a ti por Deus, não me atormentes’(v.7). Os gritos que serviram para concluir o verso 5 reaparecem novamente aqui. Desta vez, porém, o grito aparece com maior intensidade, pois o endemoninhado grita cjxovf) lieyúÀr], “com grande voz”. Sobre a frase: Tí èpoi Kal ooí, “O que a mim e a ti?”, a mesma poderia ser expressa assim: “O que nós temos em comum?” ou “Por que você está mexendo comigo?”.370 Quanto ao título ulè tov 9eoô tou ín|t Lotou, “Filho do Deus Altíssimo”, já foi dito anteriormente que se trata de um 225 CARLSS AUGUS + ® VAILA + + I semitismo, derivado do hebraico 5 “Deus Altíssimo” ou “Altíssimo”. Tal título tem raízes tanto no AT, onde ele originalmente refletia um nome divino cananita (cf. Gn 14.18-20), como também na religião grega, onde esse termo era uma designação comum para Zeus. Contudo, deve ser dito aqui que o demônio usa esse título, não para expressar a sua crença na dignidade de Jesus, mas na esperança de controlá- lo, conforme a crença da época.371 372 Já a expressão ópKÍCco oe tòv Qeóv, “conjuro-te por Deus”, merece uma análise um pouco mais detalhada. O termo ôpKÍCoo, “conjuro”, que aparece em Xenofonte, Demóstenes e Políbio, significava: “forçar a fazer um juramento, administrar um juramento a”.373 No período do NT, o termo mantém basicamente os mesmos significados: “implorar, colocar sob um juramento, motivar alguém a jurar, 371 MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And Commentary. Vol.27. [AB], p.343. Cf. também: HUNTER, A. M. The Gospel According to Saint Mark. London, SCM Press Ltd., 1957, p.64; LENSK.I, Richard C.H. The Interpretation of St. Luke's Gospel. Minneapolis, Augsburg Publishing House, 1961, p.474. Achtemeier faz a seguinte observação sobre o título Filho de Deus: “Este título aparece (...) no início, no meio e na conclusão da narrativa de Marcos, e parece ser a estrutura cristológica em torno da qual o Evangelho pode estar organizado”. (Cf. ACHTEMEIER, Paul J. Mark. [PC], Philadelphia, Fortress Press, 1980, p.35). Para obter mais informações sobre o título cristológico “Filho de Deus”, consulte: ROBINSON, James M. The Gospel of Jesus. New York, HarperCollins Publishers, 2005, pp.181-184; CULLMAN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. [Tradução de Daniel Costa e Daniel de Oliveira]. São Paulo, Editora Liber, 2001, pp.359-379. 172 GAEBELEIN, Frank E. The Expositor's Bible Commentary. [Matthew, Mark and Luke].Vol.8. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1984, p.657. Para Evans, “este verso está moldado por idéias e linguagem da magia helenista”. (Cf. EVANS, C. F. Saint Luke. [TPI New Testament Commentaries]. London, SCM Press / Philadelphia, Trinity Press International, 1990, p.385). 373 THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.453. 226 SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî insistir que alguém tome um juramento”.374 No verso que ora estamos estudando, o demônio tenta se desviar do exorcismo por meio de uma fórmula invocatória, convocando um poder superior, “Conjuro-te por Deus” = “Eu invoco Deus contra você”.375 Guelich enxerga aqui uma dupla ironia: Primeira, a fórmula de conjuração geralmente aparece nos lábios do exorcista, e não nos lábios do demônio! Segunda, o demônio exconjura Jesus por Deus, a quem ele reconhece ser justamente o Pai de Jesus!376 Adolf Pohl se expressa com indignação sobre este fato: “Conjurar o Filho de Deus em nome de Deus? Idéia absurda e inútil!”.377 Há um exemplo extraído da Antigüidade, no qual não-cristãos usam um amuleto pendurado sobre uma pessoa que está sofrendo. A colocação de tal amuleto sobre o doente é acompanhada pela invocação que menciona uma série de fórmulas mágicas. A primeira delas era: bpKÍÇa) cre Kard tov 0EOV ' Eppaícov ’ Irpov, “Conjuro-te por Jesus, deus dos hebreus”.378 Este exemplo extraído da literatura não-cristã faz- nos lembrar do episódio ocorrido em At 19.13, no qual os sete filhos de um judeu chamado Ceva tentam - sem sucesso - expulsar demônios com a fórmula: 'OpKÍCco v|iâç tòv ’Irjooôv ôv IlaíiÀoç KT|púooei, isto é, “Esconjuro-vos por Jesus a quem Paulo proclama”. Eles acreditavam que havia um poder mágico por trás do nome de Jesus e que, ao pronunciá-lo, os demônios seriam expulsos. Porém, tal fato não aconteceu. A frase pq pe PaoavíoT]ç, “não me atormentes” também deve ser mencionada aqui. O vocábulo paoavíoco, “tormento”, significava ROGERS JR„ Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic and Exegetical Key to the Greek New Testament, p.76. 375 EVANS, C. F. Op.Cit., p.385 376 GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], p.279. 377 POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos, p. 182. -770 KITTEL, Gerhard, (ed.). Theological Dictionary of the New Testament. [Translated and Edited by Geoffrey W. Bromiley], Vol. V. [E-IIa]. Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1999, p.463. 227 CARLOSAUGUS+® VAILA++I primeiramente “provar metais”, e depois “testar alguém por meio da tortura”. Esse tormento pode ser uma referência à punição escatológica (Cf. Mt 8.29).* 380 Finalmente, Lane cita S. Eitrem (Some Notes on the Demonology in the New Testament), segundo quem, é inconcebível que o homem pudesse ter se dirigido até Jesus imediatamente com uma conjuração tão forte como a encontrada neste verso. Eitrem sugere a seguinte reconstrução do diálogo: WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X. Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1957, p. 103. Jamieson, Fausset e Brown vêem na expressão “não me atormentes” uma grande ironia: “Eis aqui o atormentador, que prevê, teme e pede isenção de tormentos!”. (Cf. JAMIESON, R„ FAUSSET, A. R. & BROWN, David. Comentário Exegetico y Explicativo de La Biblia. Tomo II. (El Nuevo Testamento). [Traductores: Jaime C. Quarles e Lemuel C. Quarles], El Paso, Casa Bautista de Publicaciones, 1987, p.98). 380 GAEBELEIN, Frank E. The Expositor's Bible Commentary. [Matthew, Mark and Luke].Vol.8. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1984, p.658. 381 LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT], p.183. Demônio: O que cu tenho contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Jesus: Qual é o seu nome? Demônio: Meu nome é Legião. Jesus: Sai do homem, Legião! Demônio: Conjuro-tc por Deus, que vocc não nos atormente c não nos envie para fora da região.381 Seja como for, este verso prepara os leitores de Marcos para a descrição do ritual de exorcismo que se dá entre os vv.7- 13. 228 SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIé “Pois dizia a ele: ‘Sai, espírito imundo, do homem' (v-8). __________________________ ___ Este verso parece ser um acréscimo posterior. A pergunta pelo nome (v.9) depois da ordem de saída (v.8) nos transmite essa impressão.382 Segundo Guelich, a razão para esta adição origina-se supostamente da ausência do típico comando explícito parao demônio sair. Assim, Marcos ou algum redator primitivo simplesmente forneceu um componente perdido para uma história de exorcismo.383 A frase fÀeyfv yàp arruo, “pois dizia a ele”, aparece no imperfeito, “ele estava dizendo” ou “ele estava dizendo repetidamente”, indicando o grau de dificuldade deste exorcismo.384 Quanto ao imperativo aoristo ”E^À9e, “sai!”, trata-se de uma ordem típica dada ao demônio nos relatos de exorcismos, a fim de que abandone o corpo que está possuindo.385 No Talmude Babilônico, encontramos um relato de exorcismo, o qual fora praticado por dois renomados rabis tanaíticos do começo do II século d.C., Simeão ben Yohai e Eleazar ben Yose, os quais, ao expulsarem um demônio da filha de um imperador romano, dão a ordem: “Ben Temalion, sail Ben Temalion, sail” (bMeilah 17b).386 Deve ser observado que 2 SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JÚNIOR, João Luiz Correia. Evangelho de Marcos. Vol. 1: 1-8, p.220. 383 GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], p.28O. 384 EVANS, C. F. Saint Luke. [NTC], p.386. Cf. também: WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X, p. 103; CRANFIELD, C. E. B. The Gospel According to St. Mark, p. 178. 385 Em Marcos, o verbo E^ép%O|J.ai é encontrado em quatro expulsões de demônios narradas no Evangelho (1.25s; 5.8,13; 7.29s; 9.25s, 29). (Cf. BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l, p.1431). Cf. também: BARRET, C. K. The New Testament Background: selected documents. New York, Harper & Row, Publishers, 1961, p34. 386 VERMES, Geza. O Autêntico Evangelho de Jesus. [Tradução de Renato Aguiar]. Rio de Janeiro, Record, 2006, p.24. 229 CARL©S AUGUS + ffi VAILA + + I tanto neste relato de exorcismo, quanto nos demais que aparecem na Bíblia, não há necessidade do exorcismo ser acompanhado de elementos tais como confissão de pecados, renúncia e quebra de ídolos por parte do endemoninhado, como ensinam alguns.387 Não há nenhum registro bíblico sobre Jesus ou algum de seus discípulos terem usado algum desses estratagemas em seus exorcismos. 387 Esta equivocada opinião é defendida, por exemplo, por Neuza Itioka, que diz: “Se estivermos envolvidos com a expulsão de demônios (...) estes sairão facilmente com o comando em nome de Jesus Cristo, se todas as condições do preparo forem satisfeitas, tais como confissão, renúncia, quebra de ídolos”. (Os grifos são meus). (Cf. ITIOKA, Neuza. Os Deuses da Umbanda. São Paulo, ABU Editora, 1988, p.212). Entretanto, é muito boa a abordagem que Itioka faz sobre a Umbanda e o Espiritismo em seu livro. 388 WUEST, Kenneth S. Op.Cit., p.103. 389 Segundo Moxnes, o endemoninhado “identificou as legiões romanas com os demônios e, como pessoa possuída que era, pôde expressar sua oposição à dominação romana”. (Cf. MOXNES, Halvor. Poner a Jesús en su Lugar: una vision radical dei grupo familiar y el Reino de Dios. [Traducción de Carmen Bernabé Ubieta]. Estella, Editorial Verbo Divino, 2005, p.254). Kelly, comentando a expressão: “Qual é o teu nome?”, cita Beda (c.673-735): “Como diz Beda, Jesus não tentava obter informação que Ele não soubesse; simplesmente queria que Sua cura parecesse ainda mais impressionante (presumivelmente para humilhar a Legião)”. (Cf. KELLY, Henry Ansgar. “E perguntava a ele: ‘Qual é o teu nome? ’ E respondeu- lhe: ‘Legião é o meu nome, porque somos muitos ’ (v.9). Aqui, encontramos o verbo “perguntar” novamente no imperfeito: “E ètrrípcÓTa ("perguntava") a ele”. A tradução correta seria: “Ele continuava a perguntá-lo”, o que implica em dizer que o demônio somente respondeu depois de repetido questionamento.388 389 Mas, afinal, qual era a pergunta que Jesus insistia em fazer-lhe? A pergunta era: Tí óuopá oot; (“Qual é o teu nome?”), a qual é extremamente significativa para a compreensão deste verso. No mundo antigo era considerado 230 SA + ANÁS, DEffi©Nl©S Ê LEGIé da maior importância conhecer o nome correto de um adversário (cf. Gn 32.27,29). No exorcismo, acreditava-se que ter o conhecimento do verdadeiro nome do demônio proporcionava maior poder sobre ele.390 O texto apócrifo do Testamento de Salomão (o qual tem a sua redação final datada pelos críticos em geral entre 300-400 d.C.)391 nos é particularmente importante neste sentido. Nele encontramos alguns diálogos entre Salomão e os demônios, os quais automaticamente nos remetem a este verso de Marcos. A seguir, cito três curiosos exemplos extraídos dessa literatura extra-bíblica: Satã: uma biografia. [Tradução de Renato Rezende]. São Paulo, Globo, 2008, p.299). 390 CRANFIELD, C. E. B. 77ze Gospel According to St. Mark, p.178. Segundo Cole: “(...) na Bíblia, nome significa ‘natureza’: então o homem estava praticamente convidado a confessar a natureza dos poderes do mal pelos quais ele era escravizado”. (Cf. COLE, R.A. The Gospel According to St. Mark: An Introduction And Commentary. [TNTC], Leicester, Inter Varsity Press / Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Company, 1983, p.98). Também encontramos no PMG 4.3037-39 a seguinte formula: “Eu conjuro você, todo espírito demoníaco, a dizer de que espécie você é”. (Cf. MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And Commentary. Vol.27. [AB], p.344). 391 Embora os críticos escolham tai data para a redação final do texto, não seria errado admitir que o mesmo possa refletir materiais que, em sua origem, sejam dos séculos I e II de nossa era. (Cf. MACHO, A. Diez. Apócrifos Dei Antiguo Testamento. Vol.V, p.329). I. (...) eu, Salomão, me levantei de meu trono e vi ao demônio amedrontado e aterrorizado. Disse-lhe: - Quem cs tu? Qual é o teu nome? Respondeu: - Mc chamo Ornías. (...) Sou um demônio noturno e posso assumir três formas: algumas vezes, quando o homem arde em desejos, assumo a figura de uma moça jovem, e quando me tocam sofrem muitas dores. Outras vezes, como ser alado, me 231 CARLOS AUGUS+© VAILA + + I encontro nos lugares celestiais, e em outras apareço em forma de leão. (Test. Salomão 2.1-3).392 393 392 Idem, Ibidem, pp.337,338. 393 Idem, Ibidem, p.340. Os acréscimos entre colchetes são meus. Aqui, Onoscelis é o nome de um demônio feminino, cujo corpo era de uma mulher e as pernas de uma mula. 394 Idem, Ibidem, pp.341,342. II. Quando [o demônio] se apresentou diante de mim [Salomão], lhe disse: - Quem és tu? Respondeu: - Mc chamo Onoscelis e (sou) um espírito corporificado, que 393mc escondo sobre a terra (...). (Test. Salomão 4.3,4). III. Ordenei que me trouxessem outro demônio, c conduziram diante dc mim a Asmodeu, o malvado demônio, atado. Perguntei-lhe: - Quem és tu? (...) eu, Salomão, (...) ordenei que o atassem com o maior cuidado c o flagelassem até que declarasse quem era c cm que consistia sua tarefa. O demônio falou assim: - Meu nome, glorioso, é Asmodeu. Procuro com orgulho fazer o mal aos humanos cm todo o mundo. (...) (Test. Salomão 5.1- 2,6).394 Essa literatura não-cristã que pode ter a sua gênese juntamente com os primórdios do cristianismo nos mostra que saber o nome do demônio era, de fato, um elemento importante para o sucesso do exorcismo. Porém, como já foi dito antes, para Johnson e Dewelt a inquirição acerca do nome não foi dirigida ao demônio, mas sim ao homem: Qual é o teu nome? O Senhor fez esta pergunta ao homem aflito. Por qual motivo? Não há nada tão conveniente como uma calma e simples questão para trazer um louco a si. 232 SA + ANÁS, D£íTlffiNI®S £ L£GIî Não há forma mais natural de despertar em um homem que está fora de si a consciência de sua própria personalidade do que fazê-lo dizer seu próprio nome. O nome do homem toma-se a expressão de seu caráter, e um resumo da história de sua vida. A primeira condição de alguma cura deste homem aflito era um retorno ao distinto sentimento de sua própria personalidade. (...) O homem foi perguntado, mas o demônio respondeu, 395demonstrando seu total domínio sobre ele. Contudo, voltando ao diálogo entre Jesus e o demônio, este último, ao ouvir apergunta acerca do nome, responde: AeyLcov óvopá poi, ótl ttoààoí èopeu, “Legião é o meu nome, porque somos muitos”. Essa resposta é muito curiosa, pois nos mostra a fusão do singular com o plural: “Legião é o meu nome, porque somos muitos”.’ Além disso, o termo grego Aeyiwu, ’ JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST], p.144. Opinião semelhante é encontrada em: BONNET, L. y SCHROEDER, A. Comentário del Nuevo Testamento: Evangelios Sinopticos. Tomo I. El Paso, Casa Bautista de Publicaciones, 1982, p.367. 396 Foi sugerido também que o termo legião se refere ao “espírito imundo” (porquanto o seu gênero em grego é neutro), enquanto que o incisivo somos muitos designa aos “homens” (pois tal expressão aparece no gênero masculino). (Cf. MAGGI, Alberto. Jesús y Belcebú: Satán y demonios en el Evangelio de Marcos, p.147). No Testamento de Salomão 11.3 há um demônio que diz: “(...) envio as legiões de demônios que estão debaixo das minhas ordens - pois que me introduzo por todos os lugares -, e o nome de todos os demônios que estão ao meu comando é ‘legião’”. (Cf. MACHO, A. Diez. Apócrifas Dei Antiguo Testamento. Vol.V, p.354). Para outros exemplos bíblicos de possessão por mais de um espírito impuro, cf. Mc 16.9; Lc 11.26. Na volumosa obra de Stuart Clark, Pensando com Demônios, também encontramos relatos de pessoas que são possuídas por vários demônios durante o fim da Idade Média. Clark cita, dentre outros, o caso da francesa Madeleine Demandols, que havia sido possuída por 6.660 demônios e também menciona o caso de uma vienense chamada Anna Schlutterbãurin, que estava possuída por 12.000 demônios! (Cf. CLARK, Stuart. Pensando com Demônios: a idéia de bruxaria no principio da Europa moderna. [Tradução de Celso Mauro Paciomik]. São Paulo, Edusp, 2006, pp.515, 539). Mckenzie diz que na antiga Mesopotâmia o número de demônios era quase 233 CARL®S AUGUS+® VAILA + + I “Legião”, é claramente um latinismo, sendo derivado da palavra latina legio.391 Entretanto, legio é sua forma não somente no latim, mas também no grego tardio, tanto helênico quanto literário, o qual também aparece provavelmente no Aramaico da Palestina; ele é encontrado nos escritos rabínicos (Singular: Plural: pT^) e nas inscrições aramaicas primitivas, e ele sobrevive ainda em Lejjun, o moderno nome de um local normalmente identificado como Megido. Na verdade, o nome “Legião” era uma referência feita a um corpo de soldados romanos cujo número divergia de tempos em tempos, mas que, no tempo do imperador Augusto, parecia consistir de 6.826 homens (isto é, 6.100 a pé e 726 a cavalo).399 Aliás, e por falar ilimitado. (Cf. MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. [Tradução de Álvaro Cunha], São Paulo, Paulus, 1983, p.225). Evans chama a atenção para a singularidade dessa possessão, pois “até então Jesus havia expulsado demônios individuais; agora, ali estava a oportunidade de demonstrar seu poder sobre um exército de demônios”. (Cf. EVANS, Craig A. Lucas. (Novo Comentário Bíblico Contemporâneo - Baseado na Edição Contemporânea de Almeida). [Tradução de Oswaldo Ramos]. São Paulo, Editora Vida, 1996, p. 154). Para T. Cahill, o relato da possessão de Maria Madalena por sete demônios em Mc 16.9 pode significar que ela talvez fosse vítima de uma forma particular de esquizofrenia, a qual era simbolizada por “sete demônios”. (Cf. CAHILL, Thomas. Desire of the Everlasting Hills: the world before and after Jesus. New York, Anchor Books, 1999, p.211). 1Q7 BUTTRICK, George Arthur, (ed.). IDB. An Illustrated Encyclopedia. Vol.3. Nashville, Abingdon Press, 1981, p. 110. Para Paul Winter: “Do modo como [a história] está reproduzida no segundo evangelho, podemos inferir que a prevenção anti-romana em algum momento interferiu no caráter da narrativa. Isto pode ser verificado no uso da palavra Aeyixóv [legiões] como nome do agente demoníaco. (...) O uso dessa palavra latina constitui um ataque verbal direto às forças de ocupação no território judaico”. (Cf. WINTER, Paul. Sobre o Processo de Jesus. [Tradução de Sergio Alcides], Rio de Janeiro, Editora Imago, 1998, p.247). 398 SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark, p.95. THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.373. Lane sugere que a entrada do termo “legião” na fala coloquial indica que a ocupação romana era um fardo pesado para as pessoas. Porém, para ele, tal termo não demonstra um 234 SA+ANÁS, DEinêNieS £ LEGIî em nomes de demônios, deve ser mencionado aqui que o já citado Testamento de Salomão faz referência a 52 nomes diferentes de demônios, os quais dominam sobre as mais diversas áreas.400 sentimento anti-romano, antes, deve ser compreendido dentro do contexto da luta entre as forças de Deus e as de Satanás. (Cf. LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT], pp. 184,185). Rohden comenta que a palavra “legião” deve ser vista como simples sinônimo de grande multidão. (Cf. ROHDEN, Huberto. Novo Testamento: tradução do texto original grego, com as variantes da Vulgata e amplamente anotada. São Paulo, União Cultural Editora Ltda., S.d., p.101). Hastings faz um interessante comentário sobre o termo “legião”, dizendo que seu uso era muito comum na literatura midráshica e talmúdica (do séc. III d.C. em diante). Segundo ele, em algumas destas situações, Leyidiv pode ser usado como uma ilustração do termo em sua ocorrência no NT. Para ele, o vocábulo “legião” possuía vários significados nestas literaturas: (1) Significando um grande número: “E mais fácil alimentar uma legião na Galiléia do que amamentar uma criança na terra de Israel”. (Gênesis Rabba XX.6); (2) Significando uma especial e severa punição: “As águas do dilúvio são comparadas a uma ‘cruel legião’”. (Gênesis Rabba iv.6; confira também v.6); (3) Significando (sob certas circunstâncias) impureza: “Uma legião em marcha é impura porque caveiras são usadas como amuletos, as quais são sempre transportadas por ela”. (Talmude Babilônico, Tratado Hullin, 123a); (4) Significando comparecí mento diante de um rei: “Deus fala de Israel na passagem do Mar Vermelho como ‘minhas legiões’” (Êxodo Rabba xxiii.7). “A tribo de Levi é a legião que permanece na presença real de Deus” (Números Rabba i. 12). “Quando Deus vai adiante ‘para a paz’ é assistido por multidões e legiões”. (Números Rabba xi). Estas referências ilustram tanto Mt 26.53 (“Doze legiões de anjos”); cf. (1) e (4); quanto Mc 5.9 (“Legião... porque somos muitos”); cf. (1) e (2). Hastings conclui, dizendo que a ideia de impureza não é proeminente na palavra. (Cf. HASTINGS, James. A Dictionary of the Bible. Vol.3. Peabody, Hendrickson Publishers, 1988, P-94). u Para saber o nome de cada um desses demônios e em que área atuam, veja todo o capítulo 10 de: MACHO, A. Diez. Apocrifos Dei Antiguo Testamento. Vol.V, pp.381-383. Finalmente, foi sugerido que o nome “legião” talvez significasse que o homem havia tido uma experiência infeliz com a legião romana e isso havia causado sua loucura, ou então, 235 CARL©S AUGUS + ® VA1LA + + 1 que ele sentia como se estivesse possuído por milhares de demônios (já que a legião romana consistia de mais de seis mil homens).401 Outrossim, talvez esse nome também significasse “legionário”, já que o termo estrangeiro “legião” era assim compreendido no rabinismo.402 Deve-se mencionar ainda que havia um ditado popular judaico que dizia: “Uma legião de espíritos malignos está diante dos homens, dizendo: ‘quando será que ele cai nas mãos de uma destas coisas e será [por elas] tomado’”.403 GAEBELEIN, Frank E. The Expositor's Bible Commentary. [Matthew, Mark and Luke]. Vol.8, p.658. 402 GNILK.A, Joachim. El Evangelio Según San Marcos. Vol. I, p.238. J. Jeremias traz uma importante nota sobre o termo “legião” encontrado nessa passagem. Ele diz: “Em vários casos pode-se demonstrar ou ao menos supor que uma história de milagre resultou de um mal-entendido de linguagem. Assim, a lenda da passagem dos demônios para a enorme vara de dois mil porcos(Mc 5.12s. par.) deve ter-se originado do sentido duplo do aramaico ^JÍ’35 / ligyona / que significa: 1) legião, 2) legionário. Quando o espírito mau do possesso responde à pergunta pelo seu nome: AEyicòv bvogá got, bu ícoAãoí. bogEV [legião é o meu nome, porque somos muitos] (...), isso originalmente deve ter significado: ‘Eu me chamo Soldado, pois há muitos do meu tipo (e nós nos assemelhamos uns aos outros como um soldado ao outro)’. A palavra ligyona foi erroneamente entendida como ‘legião’: ‘Eu me chamo Legião, porque o nosso número é grande (e todo um regimento de nós mora no doente)’, e obteve-se assim a idéia da possessão do doente por milhares de maus espíritos”. (Cf. JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento. [Tradução de João Rezende Costa]. São Paulo, Teológica / Paulus, 2004, p. 147). 403 Cf. BARCLAY, William. The Gospel of Mark, p.l 17; EDERSHEIM, Alfred. The Life and Times of Jesus the Messiah. Peabody, Hendrickson Publishers, 1883, p.612. De qualquer forma, o vocábulo também poderia ser uma alusão à situação política reinante no país. Os romanos estavam assentados como força de ocupação e não tinham intenção de abandonar o país. Em linha com isto se encontra precisamente a 236 sa+anás, DeméNies e legiã® primeira das petições, segundo a qual se pede a Jesus que não expulse os demônios para fora daquela localidade.404 404 GNILKA, Joachim. El Evangelio Según San Marcos. Vol. I, pp.238,239. 405 ANDERSON, Hugh. The Gospel of Mark. [NCBC], Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publ. Co. & London, Marshall, Morgan & Scott Publ. Ltd., 1981, p.149. 406 MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And Commentary. Vol.27. [AB], p.345. 407 SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark, p.95. Segundo Lane: “Assumindo que os demônios são o sujeito de TtapEKáXet (...) há paralelos em que demônios são enviados para lugares como o deserto, as montanhas desabitadas, o mar, os fins do mundo (cf. Tb 8.3), e para dentro de animais, de forma que eles não possam prejudicar os homens. Se o homem é o sujeito, seus pedidos poderiam ser um patético apelo para que não fosse movido novamente, como os homens da cidade tinham feito muitas vezes”. (Cf. LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT], p. 185). “E implorava-lhe muito para que não os mandasse para fora da região (v. 10). Antes de qualquer coisa, deve ser dito que o pedido dos demônios para que não fossem enviados para fora do país é uma característica das histórias de exorcismo.405 Aqui, o verbo -fiapfKáÀei, “implorava”, aparece no imperfeito. Marcos usa o tempo imperfeito que indica repetição ou ação contínua, evidentemente porque estas petições são mal-sucedidas e, portanto, repetidas. Já no verso 12, o tempo muda para o aoristo, porque a petição é concedida.406 Um fato curioso aparece neste verso: a petição feita no singular, “implorava”, é seguida pelo plural, “que não os mandasse”. Swete explica que o singular é usado porque os espíritos, falando através da voz do homem, são ainda considerados como um único ego.407 Quanto ao verbo àTrooreíÀq, “mandasse, enviasse”, o mesmo aparece no subjuntivo aoristo, sendo derivado de àKooTÉXÃco, “enviar para 237 CARLOS AUGUS + ® VAILA + + 1 fora”.408 No que diz respeito ao fato de os demônios não quererem sair daquela região, alguns expositores, citando Grotius, dizem que a região da Decápolis, repleta de judeus apóstatas helenistas, era amada pelos demônios.409 Schweizer comenta que “para o contador de história judeu é claro que os demônios são prósperos no território gentílico e por esta razão não queiram deixá-lo”.410 Dessa forma, os demônios pedem educadamente a Jesus que não os expulse daquela região (região que, na verdade, não está submetida à Lei de Moisés, por tratar- se de um território pagão).411 Do ponto de vista sociopolítico, podemos notar que a “legião” queria continuar mantendo a sua força de ocupação naquele território. Como acontece a qualquer conquistador, seria muito ruim ter que abrir mão de um pedaço de terra que fora conquistado a duras custas. ROGERS JR., Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic and Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1998, p.76. 409 WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X, p. 104. Segundo Mulholland: “o conceito do domínio territorial dos espíritos (cf. Dn 10.12-14,20; At 19.35) se reflete nas expressões “lugares altos” (Nm 33.52 [“ídolos”], etc.) e os deuses da “planície” (1 Rs 20.23). Povos animistas crêem que certos espíritos são senhores sobre um território ou uma casa em que habitam”. (Cf. MULHOLLAND, Dewey M. Marcos, Introdução e Comentário. [Tradução de Maria Judith Prado Menga]. São Paulo, Vida Nova, 1978, p.93). 410 SCHWEIZER, Eduard. The Good News According to Mark. [Translated from german by Donald H. Madvig]. Atlanta, John Knox Press, 1970, p. 114. Além disso, deve-se lembrar que nas antigas culturas, os espíritos eram normalmente associados a determinados locais. (Cf. KEENER, Craig S. CBANT, 154). 41 1 DUQUESNE, Jacques. Jesus. [Tradução de Daniel Piza], São Paulo, Geração Editorial, 2005, p. 137. “E estava ali, perto do monte, uma grande manada de porcos pastando ” (v. 11). 238 SA+ANÁS. D£1T1®NI®S E LEGIî É muito provável que o episódio dos demônios entrando nos porcos, os quais se precipitam despenhadeiro abaixo até o Mar da Galiléia e se afogam (vv. 11-13), seja um acréscimo posterior à forma dessa história de exorcismo.412 Em seu abrangente estudo sobre a história do endemoninhado geraseno, Annen utiliza um argumento baseado no critério da coerência para corroborar tal pensamento. Seu principal argumento é que, no material do Evangelho com boa probabilidade de ser histórico, Jesus nunca realiza um milagre destrutivo que venha a prejudicar alguém (neste caso, o[s] dono[s] dos porcos) e que pareça se comprazer no espetacular, apenas pelo espetacular.413 Além disso, a palavra áyéÀT], “manada, rebanho”, também chama a nossa atenção neste verso. Derrett observou que esse termo é inadequado para se referir a porcos, os quais não andam em rebanhos. Segundo ele, esse vocábulo era empregado muitas vezes para se referir a um bando de recrutas militares.414 Se esta opinião estiver correta, logo, segue-se que os “porcos” seriam os próprios soldados romanos, a legião!415 Tal interpretação teria, MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico. Vol.II, Livro III, 1998, p. 173. 413 ANNEN, Franz. Heil für die Heiden. Zur Bedeutung und Geschichte der Tradition vom besessenem Gerasener. Frankfurter Theologische Studien 20; Frankfurt, Knetcht, 1976, p.192. Apud: MEIER, John P. Op. Cit., pp. 190,191. 4 4 DERRETT, J. Duncan M. Contributions to the Study of the Gerasene Demoniac. JSNT, 3, p.5. Apud: MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos, p.238. Esse termo aparece com o sentido de “rebanho” ao longo de toda a obra de Homero (aprox. 900 a.C.). (Cf. THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.6). 415 Essa também é a opinião de Maggi, segundo quem, “nos tempos de Jesus, com a figura do porco se designava aos romanos, como ocupantes da terra de Israel, representada nos Salmos como uma ‘vinha devastada pelos javalis do bosque’ (SI 80.4). Além do mais, como afronta aos judeus, o estandarte da Legião X Fretensis era precisamente um javali. O termo ‘manada’ indica a grande riqueza dos ocupantes, obtida mediante a violenta submissão dos 239 CARL®S AUGUS+® VAILA + + 1 portanto, uma forte conotação política. Bem, mas voltando à figura dos porcos, os quais são citados ao longo de nossa perícope (vv.l 1-13,16), creio que caibam aqui algumas observações a seu respeito. Primeiramente, a Mishná proibe a criação deste animal: “Ninguém [outros textos trazem: Nenhum israelita] pode criar porco em parte alguma”. (Baba Kamma, Tratado Nezikin, 7.7).416 E, além disso, o Talmude também diz: “Amaldiçoado seja aquele que cria porcos”.417 Embora a Mishná e o Talmude,