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DoUtor Iluminado Guia introdutório à vida e obra de Ramon Llull Josep M. Buades São Paulo 2019 Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull) © 2019 by Josep Maria Buades Juan © 2019 by Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência «Raimundo Lúlio» (Ramon Llull) Revisão Técnica Esteve Jaulent Capa Tarlei E. de Oliveira Diagramação Tarlei E. de Oliveira Doutor Iluminado/ Josep M. Buades. — São Paulo : Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2018. Bibliografia ISBN 85-89294-74-4 1. Biografia 2. Lúlio, Raimundo. I. Título. 2019.1348 CDD 920 CDU 929 Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva – CRB-8/9410 Índice para catálogação sistemática: 1. Biografia 920 2. Biografia 929 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD INSTITUTO BRASILEIRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIA “RAIMUNDO LÚLIO” (RAMON LLULL) Esteve Jaulent Presidente Mauro Keller Vice-Presidente Josep Blanes Sala Secretario Plaça de la Sé, n. 21 – cj. 1006 São Paulo – SP BRASIL Tel. (0xx11) 3101-6785 www.ramonllull.net // dep.editorial@ramonllull.net Versão em português a cargo do autor Índice NOTA DO EDITOR PALAVRAS PRÉVIAS Trovador CorteSão Mís�co Peregrino Estudioso Lógico Filósofo TeóloGo CieN�sta Universitário CruzadO FundAdor InDivíduo MáR�r Heterodoxo? Inspirador BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA NOTA DO EDITOR Esta biografia do Doutor Iluminado não é de forma alguma uma hagiografia. Conta a vida e as circunstâncias de um pensador importante que tem sido objeto de estudo há mais de sete séculos. O objetivo do livro é ajudar a difundir o pensamento de Ramon Llull, compreendendo-o em seu contexto histórico, social e pessoal. Para sua leitura, o leitor não precisa ser especialista em história, lógica ou filosofia, nem em qualquer outra disciplina em particular. Tampouco precisa aderir a algum dogma religioso. Não é um livro para o público exclusivamente cristão. O estudo do pensamento de Llull continua a crescer entre os atuais pesquisadores e acadêmicos. Em Palma, Barcelona, Freiburg, Roma, Palermo, Florença, Louisville e São Paulo, entre outras cidades, existem centros de estudos sobre Ramon Llull. Esses centros são a melhor prova do interesse que existe hoje pelo pensamento do Doutor Iluminado. Se um dia o Vaticano decidir canonizar Llull, esta será uma excelente notícia para os católicos. No entanto, a relevância do pensamento de Llull, que sobreviveu por setecentos anos apesar de todos os tipos de suspeitas, condenações e perseguições, independe de considerações sobre a sua santidade. PALAVRAS PRÉVIAS A ilha de Maiorca, território que viu nascer o protagonista deste livro, está cheia de lugares que prestam homenagem à figura de Ramon Llull. Sua estátua majestosa preside a entrada à cidade de Maiorca (hoje Palma) vindo do Moll Vell (Cais Velho). No pedestal podemos ler textos em catalão, la�m e árabe, os três idiomas que cul�vou em sua obra escrita. Seu nome também é dado a uma rua do centro histórico que comunica o convento de São Francisco (onde são conservados os restos mortais de Llull) com uma fortaleza de origem muçulmana que serviu como sede dos cavaleiros templários antes da dissolução desta ordem, no começo do século XIV. Con�nuando a caminhar pelas ruas serpenteantes de Canamunt (o bairro alto do perímetro medieval) nos deparamos com o Estudo Geral Luliano. Atualmente este prédio serve de escola de idiomas e de extensão dos cursos universitários, embora, como o seu nome indica, quando esta ins�tuição foi fundada no século XV �vesse como missão principal servir de centro de estudos superiores, orientado especialmente ao ensino da Arte luliana. Prosseguindo nosso passeio por Palma chegaremos ao Ins�tuto de Bacharelado (ensino médio) Ramon Llull, um edi�cio pelo qual têm passado, ora como alunos ora como professores, muitos dos principais intelectuais da ilha nos úl�mos cento e cinquenta anos. Entre eles, alguns dos lulistas que aparecem na sucinta bibliografia ao final deste livro, como Sebas�à Trias, de quem �ve a honra de ser aluno na minha adolescência. Indo pelo curso an�go da Riera, córrego que no passado abastecia d’água a cidade, chegaremos ao mosteiro de La Real, chamado assim porque em 1229 o rei de Aragão Jaime I estabeleceu lá o acampamento de onde organizou o assédio à medina muçulmana de Mayurqa. Originariamente fundado pelos monges cistercienses e na atualidade man�do pela ordem dos Missionários dos Sagrados Corações, foi em La Real onde Ramon Llull estudou por vários anos e adquiriu a base de conhecimentos que lhe permi�ria acometer suas empresas mais ambiciosas. Hoje, na Biblioteca Balear deste mosteiro conserva-se um dos principais acervos de obras lulianas a nível mundial. Muito perto de La Real encontraremos a estrada que comunica Palma com a vila de Valldemossa. No quilômetro 7,5 há a saída para entrar na Universidade das Ilhas Baleares, herdeira espiritual do Estudo Geral Luliano medieval. Lá encontramos mais uma vez o nome de Ramon Llull, que ba�za o edi�cio que serve de sede para a Faculdade de Filosofia e Letras. Subindo pela estrada de montanha, e após termos atravessado s’Estret, entraremos no an�go vale de Mussa, topônimo que deu lugar ao atual nome de Valldemossa. Esta localidade, berço de santa camponesa Caterina Tomás, respira uma atmosfera de fervor católico. Muitas de suas casas, construídas com pedra à maneira tradicional maiorquina, têm na porta um azulejo pintado com cenas piedosas da Beateta. Não é raro ver nelas também a figura de Ramon Llull estudando, escrevendo ou pregando. Se nos adentrarmos mais um pouco entre as montanhas, seguindo pela sinuosa estrada que une Valldemossa com Deià, nos depararemos com bucólicas vistas que mesclam os agrestes alcan�lados da Serra de Tramontana com a placidez do mar Mediterrâneo. Lá, rodeado dessas paisagens únicas, Ramon Llull fundou em um local chamado Miramar um mosteiro para a formação de monges tradutores. Apenas sobram ves�gios dessa construção na atual possessió (fazenda) de Miramar, cujas casas, datadas no século XIX, foram mandadas construir pelo arquiduque Luís Salvador da Áustria. E se dos mirantes de Valldemossa dirigimos o olhar para o extremo sul da ilha, veremos com certeza um morro que se destaca no meio de uma extensa planície. Trata-se de monte de Randa, local onde a tradição diz que Ramon Llull teve uma experiência mís�ca que lhe serviria de base para a elaboração de sua Arte. Montanha santa, Randa acolhe três santuários: as ermidas de Gràcia e de Sant Honorat e o mosteiro de Cura. Neste úl�mo, os frades franciscanos guardam com carinho a memória da estadia de Llull nessas terras. Não me estenderei mais na descrição dos espaços de Maiorca em que a sua presença con�nua viva, mesmo que bem poderia fazê-lo, dada a abundância. Vou preferir atravessar o mar e desembarcar na cidade de Barcelona. A capital da Catalunha também possui um bom número de locais que homenageiam o ilustre “catalão de Maiorca”, como assim Llull gostava de apresentar-se. O governo da Catalunha tem um ins�tuto des�nado à projeção internacional da língua e cultura catalãs, cuja sede fica em Barcelona. Adivinham o nome? Efe�vamente. Se Portugal tem o Ins�tuto Camões, a Alemanha o Goethe e a Espanha o Cervantes, a Catalunha criou o Ins�tuto Ramon Llull com esse mesmo propósito. Também encontramos o seu nome numa universidade privada, para mais informação controlada pela Companhia de Jesus, e que destaca no ensino, entre outras disciplinas, da engenharia química, da administração de empresas e do jornalismo. No entanto, a veneração que o nome de Ramon Llull desperta entre os falantes da língua catalã contrasta com a ignorância que paira sobre sua obra. Se fizéssemos uma enquete improvisada entre os transeuntes das ruas de Palma, Barcelona ou de qualquer outro território dos Países Catalães seria di�cil encontrar um habitante local que não �vesse ouvido nunca falarde Llull. Porém, se lhes perguntássemos o �tulo de algum dos mais de 270 livros que este autor escreveu 1 ou sobre os feitos que lhe dão fama, seguramente receberíamos respostas impacientes ou evasivas. De igual maneira, encontraremos rela�vamente poucos �tulos de Lúlio ao alcance do leitor nas livrarias catalãs, baleares ou valencianas. Ao contrário dos alemães, dos portugueses e dos espanhóis, que não devem fazer grandes esforços para adquirir exemplares do Fausto, de Os Lusíadas ou de Dom Quixote, respec�vamente, o Livro de Contemplação em Deus - primeira obra literária escrita em catalão da história - é uma raridade bibliográfica dificílima de achar nas livrarias comerciais. Mas esta ignorância não fica apenas restrita ao homem da rua. Inclusive pessoas cultas e com boa formação acadêmica sabem pouco ou nada de Ramon Llull. A culpa não é delas, mas do sumiço do pensamento luliano nas histórias da filosofia mais consultadas pelos universitários. Às vezes, por incrível que pareça, resulta mais fácil achar a pegada de Lúlio nos autores que influenciou (figuras, aliás, do tamanho de Giordano Bruno, René Descartes ou Go�ried Leibniz, por mencionar apenas os mais conhecidos) do que acessando às próprias obras que o maiorquino escreveu, muitas das quais ainda aguardam para ser (re)editadas. Por que este filósofo, que alcançou a fama e influenciou tantos autores posteriores, é hoje uma figura tão desconhecida para o público geral será uma das questões que tentarei responder ao leitor no decorrer das próximas páginas. * * * Na hora de estruturar o conteúdo desta aproximação à vida e à obra de Llull inspirei-me na figura A de sua Arte. Como na exploração que Llull fez da Divindade mediante a combinação de dezesseis dignidades, minha exposição é dividida em dezesseis capítulos, cada um deles assignado a uma das qualidades ou a�vidades que Llull desenvolveu ao longo de sua vida. O leitor pode seguir a sequência que lhe apresento e que segue grosso modo uma ordem cronológica. Mas também pode desentender-se da minha proposta e proceder à leitura dos capítulos da maneira que considerar mais conveniente, ou até mesmo pular aqueles que não sejam de seu interesse. Não tenho certeza de que Lúlio �vesse gostado da estruturação deste livro. Cristão convicto como era, porventura teria se escandalizado com a minha aproximação. Talvez até a �vesse achado sacrílega, não sei. Mesmo assim, espero que o leito mais ortodoxo saiba me perdoar, já que o espírito que me guia é o do dida�smo, sem a mais mínima vontade de ofender quaisquer crenças religiosas. O leitor logo perceberá que este livro não foi escrito com um afã de exaus�vidade. A obra de Llull é tão rica e variada que às vezes me assombro de que uma única vida humana pudesse tomar conta dessa produção tão vasta. Ao contrário, preferiria que este livro não saciasse por completo o ape�te do leitor e o animasse a ler outras obras sobre o Doutor Iluminado. Se consigo despertar essa vontade, o trabalho de escrita destas linhas ver-se-á suficientemente recompensado. Quero concluir estas breves linhas introdutórias expressando meu agradecimento ao editor deste livro. Catalão de nascimento e paulistano de adoção, Esteve Jaulent teve a coragem de fundar o Ins�tuto Brasileiro de Filosofia e Ciência Ramon Llull há quase vinte anos em São Paulo, superando todo �po de adversidades. Foi ele quem, nos idos de 2002, jantando numa pizzaria do bairro do Bixiga, abriu-me os olhos à vida e obra do maiorquino mais universal. A ele devo o imenso prazer de ter ido descobrindo nos úl�mos quinze anos o impressionante legado de Llull. Jamais, nos meus anos de estudante, teria imaginado que precisaria residir na outra ponta do mundo para debruçar-me sobre uma figura que era para mim tão familiar e tão distante ao mesmo tempo. A vida, com certeza, nos depara emocionantes surpresas. Em virtude do constante trabalho do Ins�tuto, do qual sou membro graças à generosidade de seu fundador, que me integrou no grupo de estudo mesmo sem credenciais acadêmicas que avalizassem tal honra, pude entrar em contato com alguns dos mais pres�giosos lulistas que exercem suas pesquisas no Brasil e no exterior. Junto com eles, fui também contagiado pelo entusiasmo das jovens promessas desta área da filosofia. Cada reunião de trabalho, cada seminário ou congresso, cada ar�go publicado e cada conversa informal man�da com eles enriqueceram-me enormemente. Porém, não tenho como negar que esses contatos também punham sobre a mesa quão grandes eram minhas lacunas históricas, filosóficas, teológicas, antropológicas... e de tantas outras ciências que Lúlio cul�vou com uma facilidade impressionante. O impulso para a redação deste livro foi fruto de uma palestra que realizei em agosto de 2017 na Associação Cultural Catalonia, a convite de seu presidente Màrius Vendrell. Graças à sua amabilidade, �ve a ocasião de apresentar na sede da en�dade de ascendência catalã mais veterana do Brasil um esboço do mundo mediterrâneo na época de Ramon Llull. Pelo visto, a minha intervenção teve boa acolhida por parte do público e Esteve Jaulent, presente no evento, me propôs transformar as ideias que �nha acabado de expor em uma síntese biográfica do Doutor Iluminado. De início não me vi com forças de acometer aquela empresa, mas a insistência do Esteve acabou por vencer minhas resistências e pouco meses mais tarde eu já estava sentado no computador escrevendo estes parágrafos. Minha visão da obra luliana, no entanto, nem sempre coincide com a dele. Diferenças de geração, de formação e de credo abrem con�nuos debates entre nós, durante os quais sempre assumo o papel do pupilo díscolo que provoca o paciente mestre. Por isso, peço ao leitor que perdoe meus deslizes, mas sobretudo que em caso nenhum jogue a culpa deles nas costas do meu bom amigo Esteve. O único responsável dos possíveis erros que contenha este texto sou eu, o autor destas linhas. Trovador A biografia de Ramon Llull (Raimundus Lullus em la�m, Raimundo Lúlio em português, Raimundo Lulio em castelhano, Raymond Lulle em francês, رامون em árabe) está in�mamente ligada a expansão da Coroa de Aragão ao لول longo do século XIII. A casa condal de Barcelona, que em meados do século XII �nha acessado ao trono de Aragão mediante o casamento de Raimundo Berengário IV, conde de Barcelona, com Petronília, filha de Ramiro I “o Monge”, rei de Aragão, criou uma extensa rede de ligames feudais que uniam reinos e condados em ambos os lados da cordilheira dos Pirineus. Ao Sul desses territórios cristãos, o Al-Andalus islâmico dessangrava-se em divisões internas, após o fim do império almóade. Tirando par�do desta debilidade dos muçulmanos, todos os monarcas cristãos da Península Ibérica, numa raríssima demonstração de unidade, assestaram-lhes um duro golpe na batalha das Navas de Tolosa (1212). A vitória cristã foi tão incontestável que em poucas décadas a presença muçulmana ficou restrita aos confins do reino nasrida de Granada, que em seu momento de máximo esplendor abrangeu menos da metade da super�cie da atual região da Andaluzia. Enquanto isso, ao Norte, no País d’Oc, cujos territórios iam da Gasconha até a Provença, vivenciava-se uma de suas épocas de maior esplendor, tornando Occitânia um dos territórios mais prósperos e avançados do Europa no século XII. As cruzadas, iniciadas em 1095, trouxeram consigo um desenvolvimento urbano espetacular na região. A circulação de moedas e a troca de mercadorias com o Mediterrâneo oriental, aliada ao florescer industrial, fizeram crescer cidades como Toulouse, Narbonne, Montpellier ou Marselha, algumas das quais fincavam suas raízes na época da romanização. O “ar da liberdade” que as pessoas respiravam nessas urbes e que contrariava a severa ordem feudal, também comportou mudanças culturais, em âmbitos tão diversos como o direito, as artes plás�cas, a música, a espiritualidade ou as relações amorosas. Mas as cidades, com sua troca livre de produtos e de ideias, também se tornariam logo espaços de heterodoxia religiosa.As heresias andaram à solta por terras occitanas no século XII. De todas elas a mais popular foi o catarismo. Esta palavra deriva do termo grego kátharos e significa puro. Os cátaros pra�cavam um sincre�smo entre o maniqueísmo e o cris�anismo. O maniqueísmo era uma doutrina do profeta Mani (ou Manés), que viveu na Mesopotâmia no século III d.C. Mani inspirou-se na religião dualista propagada por Zoroastro entre os medos no século VII a.C. e que se tornaria a religião oficial da Pérsia nas dinas�as aquemênida e sassânida. Os maniqueus espalharam-se pelo império romano, junto com outras seitas orientais, entre elas a dos cristãos. Um dos primeiros doutores da Igreja, Agos�nho de Hipona, foi pra�cante do dualismo maniqueísta até sua conversão à fé de Cristo. Perseguido por um catolicismo que no século IV abandonaria as catacumbas para virar a religião oficial do império, o maniqueísmo sumiria do Mediterrâneo por vários séculos, para ressurgir na península balcânica no começo do segundo milênio. De lá, por caminhos ainda não muito bem conhecidos, chegaria até o Meio-dia francês na forma do catarismo. Ao igual que outras religiões dualistas, os cátaros acreditavam na existência de dois deuses: um deus maligno, que havia criado o mundo material e do qual procediam todos os males; e um deus benigno, criador do espírito e do bem. Porém, o catarismo cris�anizou essas duas divindades, ao considerar que o deus criador da matéria era o mesmo que aparecia na Bíblia na personificação de Jeová (isto é, o Deus do An�go Testamento, que para os cristãos é o Deus Pai), enquanto o deus criador do espírito era o Deus do Novo Testamento (ou seja, o Deus Filho ou Jesus Cristo). Seguindo os princípios dualistas, para os cátaros a história do universo era uma luta eterna entre o bem e o mal. O pra�cante do catarismo podia contribuir ao desfecho deste combate ficando do lado do Deus Filho e, portanto, apoiando a causa do bem. A melhor maneira de demonstrar este apoio era levando uma vida pura (daí o termo grego de cátaro), de renúncia ao gozo dos prazeres materiais. Neste sen�do, para o catarismo a morte era como uma libertação, já que era no exato momento do falecimento quando a alma boa se despia do corpo que a aprisionava como uma casca e voltava ao Céu, onde viveria feliz para sempre junto ao Deus bom que a amava. O catarismo cresceu tão depressa ao longo do século XII que as autoridades religiosas ficaram alarmadas. Com sua prá�ca de pureza, abs�nência sexual e desapego pela riqueza ou pela ostentação, os cátaros eram sujeitos que pareciam seguir a verdadeira mensagem de Jesus. O contraste com a prá�ca religiosa do setor mais relaxado do clero católico era gritante, num tempo em que o nicolaísmo (sacerdotes casados ou amancebados) e a simonia (compra de cargos eclesiás�cos), entre outros desvios, eram o pão nosso de cada dia. Enquanto as inicia�vas reformadoras empreendidas pela hierarquia católica eram ainda modestas e as ordens femininas escassas, o catarismo captou a nova religiosidade que provinha das cidades e abriu suas congregações às mulheres. Com isso ganharam o respeito de boa parte do povo occitano e de alguns de seus condes, que não hesitaram em dar abrigo e proteção aos “puros”. À preocupação de bispos e priores pelo crescimento da heresia no País d’Oc, temos que somar as ambições do rei da França, que naquela altura do século só �nha o controle direto sobre a metade Norte (o País d’Oïl) do que hoje conhecemos como território francês. Quando finalmente o Papa de Roma assinou a bula que decretava a cruzada contra os albigenses (Albi era uma das cidades em que os cátaros �nham maior presença), os guerreiros francos, liderados por Simão de Mon�ort, não pensaram por duas vezes e armaram um exército que invadiu o Sul. O rei Pedro II de Aragão, que ob�vera anos atrás o qualifica�vo de “Católico” por sua luta contra a progressão do catarismo ao Sul dos Pirineus, acudiu em auxílio de seus vassalos occitanos. Contudo, na batalha de Muret (1213) a sorte esteve do lado dos cruzados e Pedro II foi derrotado e morto em combate. O futuro dos occitanos estava selado: a par�r de então seriam súbditos do rei da França. Uns poucos cátaros sobreviventes refugiaram-se no castelo de Montsegur e dentro de suas muralhas inexpugnáveis con�nuaram a pra�car a fé dualista até que finalmente foram exterminados em meados do século XIII. Mas os novos costumes urbanos não afetaram somente a esfera espiritual. Uma nova era de amor român�co, em que os amantes não renunciavam a expor publicamente sua paixão, deu lugar a uma corrente literária: o amor cortês. Cul�vado pelos trovadores (isto é, “achadores” das palavras certas), estes proclamavam aos quatro ventos seu amor pela “dama”, objeto de desejo não apenas espiritual, mas também �sico. As cortes dos condes occitanos e catalães foram povoadas pelos poetas amorosos e alguns nobres também se animaram a compor e cantar seus próprios versos. O papel da mulher na “trova”, todavia, não ficou apenas limitado a ser o objeto do desejo masculino. Por fortuna conservamos os textos das trobatriz, poe�sas que assumem a voz cantante (nunca melhor dito), com versos em que recriminam a frieza dos amantes ou as suas limitações nas artes da galanteria. Todo esse mundo de cátaros e trovadores foi bruscamente ceifado pela cruzada albigense. O País d’Oc, que no século XII se tornara a vanguarda do Ocidente cristão e cujos costumes refinados foram imitados pela Europa toda, entraria em um lento processo de decadência. Guerreiros francos primeiro e as ordens mendicantes depois “limparam” o território de heterodoxia, mas também abortaram um período de fér�l cria�vidade literária e musical. Os dominicanos, recentemente fundados como ordem religiosa, usaram a pregação para convencer e os autos da fé para punir, enquanto os franciscanos, com sua espiritualidade despojada e suas maneiras próximas dos puros cátaros, atraíam as massas que desejavam a reforma da Igreja. As ordens medicantes (categoria em que estão inclusos dominicanos e franciscanos, entre outros) respiravam a mesma atmosfera de espiritualidade urbana que �nha visto crescer a heresia cátara, porém em todo momento se man�veram fiéis à hierarquia católica e ao papado. Seu papel na erradicação das heresias medievais foi primordial, ao construir uma alterna�va viável - e dentro da ortodoxia -, o que sem dúvida foi um revulsivo para os jovens que buscavam uma maneira nova de viver o cris�anismo, mais evangélica e com uma piedade mais voltada aos pobres, aos doentes e aos excluídos. Não sabemos até que ponto o catarismo teve influência (se teve alguma) nos anos de formação de Lúlio. Nos seus textos não encontramos nenhuma citação expressa a essa heresia, nem para cri�cá-la, nem para endossar os seus princípios. Pode ser que para Lúlio a questão cátara fosse um capítulo encerrado no livro da história, mas também é possível que o seu silêncio fosse fruto de um tabu, transmi�do pelos colonos occitanos de Maiorca, que preferiram deletar essa página dolorosa de suas biografias. De qualquer maneira, Lúlio cresceu num entorno em que o aggiornamento da Igreja era discu�do com ardor. Já adulto, chegou a definir seus próprios planos para uma reforma da hierarquia católica que, sem pôr jamais em dúvida nem o seu magistério nem a sua unidade, a afastasse dos vícios pra�cados por alguns ministros transviados. Entretanto, Lúlio foi fortemente influenciado pelo amor cortês. Como nos conta em suas memórias, de jovem pra�cou assiduamente a trova. Para um filho de catalães crescido em uma ilha repovoada por um grande con�ngente de occitanos (como assim atestam os muitos sobrenomes maiorquino que coincidem com topônimos do Midi francês) a arte de trovar deveu ser, junto com as can�gas dos escravos sarracenos, o transfundo musical de sua infância. Albas, tençons, planys e baladas eram cantadas pelas ruas da cidade imitando os trovadores de maior sucesso, aqueles cujos triunfos nos Jogos Florais os faziam merecedores do �tulo de mestres no Gai Saber.Ele próprio compôs algumas can�lenas galantes para mulheres com as que teve algum envolvimento amoroso. O idioma não devia supor nenhuma barreira para o jovem Ramon. O catalão e o occitano são dois dialetos do la�m tão próximos que até o século XIII resultou complicado diferenciá-los. Como prova, basta ler a crônica de Jaime I (Livro dos feitos) e observar a quan�dade de expressões occitanas num texto escrito por amanuenses catalães. Depois de sua conversão, Lúlio conservaria uma relação de amor/ódio com a arte de trovar. Se por um lado relacionava essas composições com a vida pecaminosa que levou na juventude, por outro jamais conseguiria desembaraçar-se por completo do legado literário do amor cortês. Em muitas de suas obras, sobretudo as de conteúdo mais literário, Ramon Llull revela-se como um autên�co jogral, destro no uso do vocabulário e cheio de inven�va. Entretanto, o objeto de seu amor foll (amor louco) será a par�r de agora Deus e não mais qualquer donzela com a que tenha cruzado olhares libidinosos nas vielas da cidade de Maiorca. Sob esse novo enfoque voltado à religiosidade e dando as costas às paixões frívolas, o autor virará do avesso o espírito carnal da poesia trovadoresca para transformá-la em um canto de louvor religioso. Isso fica muito claro nos versos que dedicará a Nossa Senhora. A vós, Dona Virgem Santa Maria, por exemplo, é uma manifestação claríssima de como os recursos que os trovadores usavam para seduzir a dama são aplicados agora para venerar a Mãe de Deus. Neste poema, recolhido no Livro de Evast e Blanquerna (1276-83), 2 a Virgem Maria torna-se a Dama por excelência dos devotos cristãos, reunindo nela todas as virtudes femininas em um grau de perfeição como nenhuma outra mulher mortal tenha alcançado jamais. Canta Llull na primeira estrofe deste poema: A vós, Dona Virgem Santa Maria Entrega-se aquele que quer se apaixonar De vós tão forte que nada quereria, Se vós não es�verdes, desejar nem amar; Pois todo querer melhoraria Sobre tudo aquilo que não for O vosso amor, vós mãe do amor; Quem não vos ama cai no desamor. 3 Este poema é apenas uma amostra da devoção que Llull sen�u por Nossa Senhora, a quem dedicará diversos livros. Entre os anos de 1290 e 1293 comporá o Liber de sancta Maria, Hores de nostra Dona santa Maria e De la passió e lo desconhort de nostra Dona, todos movidos pelo mesmo fervor mariano. CorteSão Herdeiro da coroa real de Aragão e da condal de Barcelona, além de senhor de Montpellier por herança materna, o filho de Pedro II, um menino de apenas quatro anos chamado Jaime, não teria outra escolha para expandir seu reino senão invadir os territórios muçulmanos do Sul. Assim, Jaime I chegaria a ser conhecido como “o Conquistador”, já que em virtude das campanhas militares acrescentaria ao seu patrimônio os �tulos de rei de Maiorca (1229) e de Valência (1235). Um dos cavalheiros que acompanhou o rei na conquista de Maiorca foi Ramon Amat, apelidado de Llull por conta de umas terras que a família �nha no interior da Catalunha e que no passado se supõe que pertenceram a um tal de Ludovico ou Lullus. Na estrita ordem feudal, os Amat faziam parte do estamento dos mercadores e, graças à riqueza acumulada durante gerações, �nham adquirido um certo status de nobreza que lhes permi�a par�cipar nas guerras junto com os cavaleiros. Mesmo assim, para os detratores do filósofo, como o inquisidor Eimerich, essa origem social inferior seria uma mácula que não perderão oportunidade de esfregar na sua cara. A conquista de Maiorca foi uma operação bélica que durou quase quatro meses, entre o início de setembro, quando a frota catalã zarpou de Salou, e o dia 31 de dezembro de 1229, data em que as tropas cristãs conseguiram arrombar os muros da cidade e, com uma violência sem limites, exterminariam os seus moradores. Como o próprio rei Jaime I explicaria no Livro dos feitos, o que mo�vou a conquista da ilha foi a denúncia da pirataria pra�cada pelos mouros. Era exatamente o mesmo pretexto que jus�ficara a conquista romana por parte do cônsul Quinto Cecílio Metelo (123 a. C.), propiciara a anexação das Baleares ao Al-Andalus no começo do século X e mo�vara a cruzada catalano-pisana (1114-15). Em um jantar na casa do rico mercador Pere Martel em Barcelona, ofereceram ao conde-rei um menu confeccionado com produtos insulares, o que serviu para deixar constância da fer�lidade daquelas terras. Com apenas vinte anos de idade, Jaime I abraçou imediatamente com furor juvenil a empreitada. Seria a primeira vez que um rei cristão da Hispânia par�ria para uma campanha an�bia, a qual, além de acrescentar mais um reino às suas posses, também deveria servir para consolidá-lo no trono como um rei adulto e, portanto, afastar a tentação dos seus tutores de con�nuar governando em nome dele. Não foi fácil conquistar a ilha. Embora a taifa de Maiorca �vesse ganhado a independência de Dênia poucos anos atrás, suas muralhas eram sólidas e seus celeiros rela�vamente bem abastecidos. Os conselheiros do rei recomendaram si�ar a cidade muçulmana e cortar a acéquia que lhe fornecia água. A frota cristã posicionou-se na baía para impedir a chegada de suprimentos aos si�ados. No entanto, o outono de 1229 foi dos mais úmidos do século e a água de chuva bastou para manter os aljubes da cidade em níveis aceitáveis. Quanto mais Madina Mayurqa resis�a aos embates dos cristãos, maior era a discórdia que se espalhava pelo acampamento de La Real. Sem rápidos resultados tangíveis, havia inquietação entre as tropas do rei de Aragão, enquanto cresciam as vozes que defendiam um pronto regresso à Catalunha, ainda que fosse de mãos vazias. Finalmente, depois de um longo assédio salpicado de malfadadas tenta�vas de assalto, no úl�mo dia do ano as forças cristãs puderam derrubar uma parte das muralhas. Foi num setor próximo da Porta Pintada, hoje conhecido como Praça Espanha (com uma estátua equestre de Jaime I rendendo homenagem à gesta). A jornada de São Silvestre foi nefasta para os habitantes da cidade. As hostes catalãs irromperam em suas ruas e mataram a destro e sinistro. As casas foram saqueadas e muitas delas incendiadas. Famílias inteiras foram passadas pelas armas e seus bens depredados. Os soldados cristãos pra�caram todo �po de sevícias, mu�lando clérigos, estuprando mulheres e sequestrando crianças para forçar os pais a entregar-lhes o dinheiro e as joias que �nham escondido. O vali Abu Yahya tentou em vão refugiar-se com o resto de suas tropas na Almudaina, o palácio urbano que servia de corte ao rei de Maiorca. Porém, soldados de Tortosa pularam os muros da fortaleza e assassinaram o úl�mo soberano mouro da ilha, não sem antes submetê-lo a uma longa e impiedosa agonia. Nos meses posteriores o exército do conde-rei encarregar-se-ia de sufocar os úl�mos redutos de resistência local. Aqueles que puderam abandonaram às pressas seus bens e fugiram para o Norte da África. Os que não �veram essa fortuna acabaram sendo executados ou rebaixados à condição de escravos dos novos senhores de Maiorca. Para garan�r o repovoamento da ilha por famílias cristãs, o rei mandou publicar uma Carta de Franquezas e Privilégios, que dotava de uma margem de liberdade extensa aos que optassem por morar naquela ilha perdida no meio do mar. Temos ciência, pelos documentos notariais e pelos sobrenomes de muitos maiorquinos, que o chamado do rei fez efeito e conseguiu que a ilha recebesse um con�ngente significa�vo de colonos, sobretudo catalães e occitanos. Haveria entre eles refugiados da cruzada albigense? Seria o catarismo uma fé que estes colonos trouxeram consigo e pra�cariam em segredo? Não temos provas determinantes disso, mas é uma hipótese no mínimo plausível. Como prêmio aos cavaleiros que o acompanharam nessa empreitada, Jaime I fez uma par�lha do território conquistado, deixando por escrito no Livro do Repar�mento que a metade das terras do reino seriam para si mesmo e a outra metade seria dividida entre os quatro magnatas: o conde do Rossilhão, o arcebispo de Barcelona,o conde de Empúries e o visconde de Bearn. De todos eles somente Nuno Sanç (conde do Rossilhão e úl�mo regente até a maioridade de Jaime I) acabaria ficando na ilha, na qualidade lugar-tenente, quando o rei resolveu voltar para seus domínios peninsulares. Do resto das Baleares, há de dizer-se que os nobres catalães �veram um papel determinante na conquista das vizinhas ilhas de Ibiza e Formentera, em uma campanha realizada sem a par�cipação do rei. Entretanto, Minorca foi a única das ilhas que se manteve como reino muçulmano independente, embora sujeito ao pagamento de um tributo anual ao rei de Aragão. Após a conquista, o rei entregou parte de sua metade de Maiorca a nobres do braço médio e menor que o ajudaram na expedição. Ramon Amat foi um dos beneficiários do favor real. As terras que lhe foram entregues em Pollença e Algaida geravam suficientes rendas como para garan�r uma vida acomodada na casa que a família �nha no bairro de Sant Miquel da cidade de Maiorca. A perspec�va de um futuro promissor na ilha fez com que o pai de Llull renunciasse a voltar a Barcelona. Em vez disso, foi sua esposa, Isabel d’Erill quem atravessou o mar e aceitou o desafio de começar uma nova vida em uma terra desconhecida e recém arrancada do domínio muçulmano. Ramon Llull foi concebido pouco depois do reencontro do casal Amat, o que nos permite supor que nasceu em 1232 ou 1233. Contudo, não conservamos nenhuma cer�dão de ba�smo que nos permita confirmar a data exata de seu nascimento. Mesmo assim, o protagonista deste livro deveu ser um dos primeiros maiorquinos nascidos de pais catalães após a conquista. Não em vão Lúlio gostava de apresentar-se como “catalão de Maiorca”. A esse fato temos de acrescentar que foi filho único. O casal Amat concebeu-o numa idade avançada, ao parecer depois de dez anos de matrimônio, e não teve mais descendência posteriormente. Criado numa família com posses e rodeado de uma população local sujeita à condição servil, a infância de Llull foi cheia de mimos e afagos. Ele mesmo lembra em suas memórias dos flaons (massa doce recheia de requeijão e perfumada com hortelã, segundo a receita da iguaria do mesmo nome que ainda hoje é cozinhada em Ibiza) que sua mãe lhe preparava. Enquanto isso, seu pai alternava a gestão das propriedades agrícolas com as responsabilidades no palácio real. O primeiro lugar-tenente durou poucos anos na Almudaina. Nuno Sanç logo regressaria ao seu condado transpirenaico. Jaime I cederia o reino de Maiorca, em qualidade de feudo vitalício, ao Infante Pedro, filho do rei Sancho I de Portugal, o qual governaria a ilha por mais de quinze anos, até sua morte. A administração real �nha como principais magistrados o batlle, responsável pelo patrimônio do rei e que exercia funções de juiz, e o veguer, que se encarregava de preservar a ordem pública. Mas o reino também �nha ins�tuições de autogoverno reconhecidas pelas cons�tuições, privilégios e franquezas que Jaime I foi aprovando ao longo do tempo. A principal delas era o colégio dos seis jurados, que representava os diversos estamentos da sociedade feudal. Os jurados �nham extensas competências sobre a administração da cidade o do reino de Maiorca. Além da administração real e das ins�tuições de autogoverno dos cidadãos da ilha, também exis�am os batlles senhoriais. Estes responsabilizavam-se pela administração das terras concedidas aos magnatas e dispunham de larga autonomia. Tudo, em suma, respondia a um modelo polí�co do feudalismo tardio, já quase em transição para formas de monarquia autoritária próprias da Baixa Idade Média. Fruto do seu segundo casamento com Violante de Hungria, Jaime I teve dos filhos homens: os infantes Pedro e Jaime. Embora o rei mudasse de testamento com rela�va frequência, desde seu nascimento o Infante Jaime foi chamado a tornar-se o futuro rei de Maiorca. Devido à posição de pres�gio que Ramon Amat �nha na Almudaina, um Lúlio adolescente foi promovido à categoria de preceptor do herdeiro do reino. A par�r de então o nosso futuro pensador iria escalando posições no palácio real. Provindo de uma família de mercadores e mostrando-se muito apto para a contabilidade e os negócios, nos seus vinte e poucos anos Ramon Llull seria nomeado senescal. Esta era uma posição existente em quase todas as cortes medievais. Tinha sua origem no reino da França e cuidava de toda a intendência do palácio. Um senescal era algo assim como um mordomo- mor, que velava pela despensa real, garan�ndo que sempre es�vesse cheia de produtos de primeiríssima qualidade, bem como da supervisão do pessoal que tomava conta do palácio, dos serviçais que limpavam todas as salas até a equipe que nas cozinhas preparavam as ágapes com que eram recebidos os visitantes ilustres. O senescal tomava conta das celebrações organizadas com mo�vo das fes�vidades religiosas ou por questões civis, tais como a comemoração de vitórias militares, enlaces matrimoniais do monarca ou nascimentos no seio da família real. Bem posicionado socialmente, herdeiro de fincas rús�cas nada desdenháveis e com um cargo destacado na corte, o jovem Ramon Llull era um par�do e tanto. A família arranjou-lhe o casamento com uma moça bela e de boa família: Blanca Picany. Os Picany �nham enriquecido muito pra�cando diversos negócios, entre eles a trata de escravos. Deviam ser uma das poucas famílias com recursos suficientes para cobrir um dote à altura daquela figura preeminente da corte. Blanca cumprirá com rigor seus deveres de esposa e dará a Ramon dois filhos: Magdalena e Domenge (Domingos). No entanto, será um matrimônio infeliz. A vida de família não era o que Lúlio procurava aos seus vinte e tantos anos. Senescal e trovador, rico em dinheiro e recursos galantes, Ramon Llull foi um pai ausente que somente parava em casa para as necessidades básicas da alimentação e do sono. O resto do tempo preferia desperdiçá-lo em a�vidades frívolas que lhe comportavam prazeres nada espirituais. Esses anos de vida pecaminosa acabariam tornando-se um pesado fardo em sua vida adulta. Ao refle�r sobre seus tempos moços, Ramon lamentará reiteradamente sua conduta desviada. Sobre este relato da juventude de Lúlio, amplamente aceito na tradição insular e na bibliografia mais citada, temos de fazer uma ressalva. Mesmo que em sua autobiografia (a Vida coetânea, 1311), Llull mencione expressamente que exerceu o cargo de seneschal mensis na corte de Maiorca, há décadas essa afirmação vem sendo ques�onada pelos historiadores. Em primeiro lugar, porque o nome de Raimundo Lúlio não aparece nos arquivos conservados da corte, o que é no mínimo surpreendente, dada a importância do cargo de senescal. E em segundo lugar porque, numa sociedade tão estra�ficada em classes como a medieval, custa muito de acreditar que alguém de berço rela�vamente modesto pudesse ocupar uma responsabilidade tão alta no reino. Como o inquisidor Eimerich remarcará con�nuamente em sua avaliação e condenação das obras de Llull, o maiorquino era um membro do estamento dos mercatores e, mesmo que seu pai �vesse colaborado na conquista de Maiorca, o seu rango na compar�mentada estrutura social não era compa�vel com tão alta dis�nção. De forma parecida, as lendas que circulam na ilha sobre a nomeação de um Ramon Llull ainda adolescente como preceptor do futuro rei Jaime II de Maiorca têm ficado totalmente desacreditadas por um setor da historiografia que não aceita mais a tradição de olhos fechados e exige provas documentais que deem suporte a tais afirmações. Sendo assim, se o que ele contou aos cartuxos de Vauvert era mera invenção, ao que dedicou seus anos moços Ramon Llull? Na verdade, não sabemos. Seguramente ajudou no gerenciamento dos negócios de seu pai, já fosse nas propriedades agrícolas que ele ganhou após na conquista, já fosse em transações comerciais de produtos ou escravos. Pelo que indica o próprio Lúlio, seja qual for a a�vidade prosaica que lhe foi encomendada, ficou com tempo livre para fazer composições poé�cas ao es�lo dos trovadores e para as aventuras amorosas. Com independênciade sua mocidade cortesã ser realidade ou ficção, não há como negar que o autor sen�u predileção pela ordem da cavalaria, à qual dedicou uma obra monográfica. O Livro da Ordem da Cavalaria (1274- 76) é, ao mesmo tempo, um tratado para a formação dos futuros cavalheiros e uma análise do simbolismo das peças que integram sua indumentária e armamento. Tudo isso sempre sob o prisma da Arte, como o exemplifica Llull quando diz no capítulo V que ao cavaleiro é dada a lança para significar a verdade, porque a verdade é reta e não torta, e que o ferro da lança significa a força de verdade sobre a falsidade. De igual maneira, o pendão significa que a verdade é demonstrada a todos e não há poder de falsidade nem de engano, assim como a verdade é a base da esperança. Em suas reflexões, Lúlio trata a ordem da cavalaria com certa nostalgia, como se em seu tempo �vessem sido abandonados os velhos valores que fizeram dela a glória da Cristandade. Segundo o pensador, as principais funções do cavaleiro são manter e paz e proteger o cris�anismo de seus inimigos. Para isso o cavaleiro devia personificar as virtudes cristãs e fugir dos vícios e do pecado. Todavia, para fazer parte da ordem da cavalaria não é necessário fazer voto algum de pobreza. Ramon Llull entende que o cavaleiro deve ser rico, pois só assim conseguirá cobrir as despesas em armamento e em forragem da montaria que sua a�vidade requere. Com isso, o autor adota uma postura mais aberta do que o ideal do monge- soldado propugnado pelas ordens militares. Todavia, Lúlio considera de grande importância que exista uma relação próxima entre os cavaleiros e os clérigos. Estes devem prover auxílio espiritual aos bellatores e orientá- los em todo momento pelo reto caminho. Como vemos, a elaboração ideológica que Ramon Llull fez da ordem da cavalaria estava em perfeita sintonia com as inicia�vas da Igreja católica de “civilizar” os nobres e encaminhar seus ímpetos para obje�vos que fossem de comum interesse para todos os cristãos. Essa nostalgia pelos velhos tempos �nha sua razão de ser. Lúlio viveu numa época de transição entre o que os historiadores denominarão a Plena Idade Média e o Feudalismo Tardio. Os vínculos de vassalagem, que tanta importância �veram na formação das hostes medievais, perderão relevância à medida em que se consolidem as monarquias autoritárias. Os reis europeus desconfiarão cada vez mais dos nobres, os quais serão vistos como um elemento de constante instabilidade polí�ca, e apostarão preferencialmente pelos exércitos de mercenários. Para tal será necessário angariar maiores recursos, o que significará mudanças significa�vas nas finanças públicas. Pelo fato de os nobres e os clérigos serem estamentos privilegiados – e, portanto, imunes ao pagamento de impostos -, os monarcas medievais voltarão seus olhos para as cidades. A florescente burguesia urbana, nutrida de ricos mercadores e hábeis artesãos, será a classe social sobre a qual recairá o financiamento do cofre real. Não será, porém, uma colaboração que lhe sairá de graça ao monarca. Os burgueses lhe exigirão, no decorrer das cortes convocadas para tal fim, que em troca de seu dinheiro este lhes garanta toda uma série de direitos e liberdades. A ordem feudal, surgida num tempo em que o vil metal era escasso e o comércio ficava limitado às redondezas dos burgos, na Baixa Idade Média irá se configurando em uma nova estrutura polí�ca e social derivada da nova realidade do incipiente capitalismo mercan�l. A monarquia absoluta, já no século XVII, completará o processo de domes�cação da nobreza, transformando-a de classe fundamental do feudalismo em uma mera comparsa à espreita das benesses cortesãs do palácio real. O próprio Ramon Llull foi uma boa personificação desse Zeitgeist, embora, como é lógico, não fosse consciente disso. No século em que viveu e nos posteriores, a alta origem da linhagem iria perdendo força na formação da ordem de cavalaria, em favor de outros vínculos mais pragmá�cos, como os derivados de um patrimônio que permi�sse custear um cavalo, uma armadura e um séquito, bem como o serviço leal ao monarca. Aliás, com a burocra�zação derivada do aumento da documentação escrita, o rei precisará de pessoas inteligentes e bem formadas (juristas e bachareles) para conduzir adequadamente os seus negócios, em detrimento dos privilégios derivados do elevado berço. Toda uma mudança significa�va que antecipará a meritocracia dos tempos modernos. Todavia, não será uma transição fácil nem pacífica. Os avanços alternar-se-ão com os recuos, mas no final das contas os séculos XIII e XIV pressagiam mudanças profundas que iriam se consolidar em épocas posteriores. Uma boa mostra desses tempos poli�camente convulsos que Lúlio teve de viver foi o reinado de Pedro III “o Grande” de Aragão, protó�po do rei autoritário que lutou contra as escleró�cas estruturas feudais que conspiravam contra a hegemonia da coroa. Foi precisamente Pedro III quem ins�tuiria as Cortes em cada um dos três territórios peninsulares que integravam a Coroa: os reinos de Aragão e Valência e os condados catalães, que com o tempo seriam conhecidos como Principado da Catalunha (em alusão ao caráter de princeps, ou primus inter pares, ostentado pelo conde de Barcelona). Embora no século XII houvesse o antecedente dos tribunais de paz e trégua, a ins�tuição das Cortes foi mo�vada pela necessidade de angariar recursos para financiar o crescente gasto militar do monarca, em decorrência da expansão da Coroa de Aragão pelo Mediterrâneo central. O evento conhecido como “As Vésperas Sicilianas” (1282) foi o estopim de um longo conflito entre a casa de Barcelona e a de Anjou. O levante popular em Sicília contra o rei Carlos I foi rapidamente socorrido por Pedro III, casado com Constança, princesa Hohenstaufen descendente do imperador Frederico II (senhor da ilha até sua morte, ocorrida em 1250). Em Palermo Pedro III foi coroado rei da ilha, contrariando os direitos que os angevinos �nham sobre ela. Embora os angevinos reclamassem da usurpação come�da, o exército do rei de Aragão, formado em sua maioria por soldados mercenários (almogávares), mostrou-se superior no campo de batalha. A guerra siciliana logo se tornaria um conflito internacional de grandes proporções e Carlos I ganharia o apoio do rei da França Filipe III (parente dos Anjou) e do Papado (subserviente aos interesses do rei da França). À vista de que a via diplomá�ca não sur�a efeito, o Sumo Pon�fice decretaria a excomunhão de Pedro III e promoveria uma cruzada contra os territórios da Coroa de Aragão. Filipe III armou um poderoso exército e invadiu a Catalunha. Antes de cruzar os Pirineus as tropas francesas �veram que atravessar o condado do Rossilhão, que fazia parte do patrimônio do rei Jaime II de Maiorca. Este, sem recursos para se opor à invasão, pra�camente deu passagem livre aos soldados franceses, uma a�tude que o seu irmão, Pedro III, entenderia como uma imperdoável traição. Embora a campanha terrestre de Filipe III ob�vesse notórios êxitos, como a conquista de Girona (setembro de 1286), a fortuna lhe foi adversa no mar. Comandadas pelo almirante calabrês Roger de Llúria, as naves do rei de Aragão ocasionaram severas derrotas à frota dos Anjou no Sul da Itália. Afastado o perigo de uma invasão angevina da Sicília, o almirante deslocou suas galés para a costa catalã, cortando assim as linhas de fornecimento marí�mo do exército francês. Carente de suprimentos e contagiado pela epidemia de peste que dizimara previamente os defensores de Girona, o exército invasor foi incapaz de segurar suas posições. Filipe III teve de ordenar a evacuação da Catalunha. Ao atravessar os Pirineus pelo desfiladeiro de Panissars, as tropas francesas foram objeto de uma emboscada e sofreram numerosas baixas. O próprio rei da França salvou-se por pouco, mas a fugida às pressas de Panissars não lhe pouparia a vida. Os germes da peste que �nha contraído durante a ocupação de Girona acabariam por levá-lo ao túmulo poucas semanas mais tarde. Uma vez expulso o inimigodas terras catalãs, Pedro III resolveu punir seu irmão pelo comportamento morno na hora de encarar os invasores franceses. Em outubro de 1286 encomendou ao seu filho Afonso a organização de uma expedição de cas�go contra as Baleares, a parte mais importante dos territórios de Jaime II e ao mesmo tempo uma das menos protegidas. O reino de Maiorca caiu quase sem pestanear (salvo alguns castelos nas montanhas), enquanto o rei de Aragão falecia na Catalunha por culpa de umas febres. Em meio à campanha balear, assumiria o trono seu filho, que seria conhecido como Afonso III “o Liberal”. A conquista das ilhas completar-se-ia com a tomada de Minorca, território que Jaime I havia deixado como reino mouro tributário e que a par�r de então passaria a fazer parte do reino de Maiorca. Sem seu “reino no meio do mar”, Jaime II conservou tão somente alguns pequenos territórios no con�nente, como o senhorio de Montpellier, os condados do Rossilhão, a Cerdanya e o Vallespir, todos eles situados na atualidade no Sul da França. Ainda que Ramon Llull devesse sen�r uma certa simpa�a pelo legí�mo rei de Maiorca, ao qual a tradição diz que serviu como preceptor na juventude, a sua posição polí�ca foi sempre neutra e pragmá�ca. Lúlio frequentará a corte de Montpellier e obterá recursos de Jaime II para suas empresas, mais isso não será empecilho para que também visite as cortes de seus sobrinhos Jaime II de Aragão e Frederico III de Sicília. Inclusive as cortes dos reis da França (Valois) e de Nápoles (Anjou), rivais à morte da casa de Barcelona, foram frequentadas pelo maiorquino. Ramon Llull não teve escrúpulos em assessorar esses reis “adversários” e dedicar-lhes obras cien�ficas e filosóficas. Tampouco mostrou preocupação por se o ocupante do trono de São Pedro era aliado dos franceses ou próximo dos interesses da Coroa de Aragão. Suas inquietações andavam por outras searas e seu projeto de conversão dos infiéis mediante as razões necessárias con�das no “melhor livro do mundo” precisava de todos os apoios possíveis, com independência de mesquinhas disputas entre as dinas�as reinantes. É por isso que indagar num suposto caráter nacional de Llull é uma extemporaneidade condenada ao fracasso. Seu comportamento não era diferente dos reis medievais, que não hesitavam em casar seus filhos com os herdeiros de coroas contra as quais guerreavam constantemente. Ele próprio se autoproclamava “catalão de Maiorca”, mas sua nação (se é que �nha uma mínima noção de nacionalidade no sen�do moderno) era quanto menos o mundo cristão la�no, se não toda a humanidade. Nada a ver com o patrio�smo moderno que se espalhará por todo o mundo ocidental ao longo do século XIX. Por isso, malgrado Lúlio ser um dos primeiros autores medievais a usar o vernáculo (no caso, o catalão) para a produção cien�fica e literária, as atuais controvérsias sobre a sua “maiorquinidade”, “catalanidade” ou “hispanidade” são apenas ar��cios ideológicos fora de contexto. O Doutor Iluminado foi um personagem tão universal como o catolicismo que professou com fervor. Aliás, nas suas inúmeras viagens pelo mundo mediterrâneo Lúlio adquiriu um profundo conhecimento da mecânica das cortes, principescas ou eclesiás�cas, e das misérias humanas que nelas se dirimiam. No delicioso Livro das Bestas, sexto capítulo do total dez que integram o extenso Felix ou Livro das Maravilhas (1288-89), o escritor �ra proveito do gênero da fábula para encenar uma alegoria das disputas pelo poder. O Livro das Bestas é inspirado pelo poema persa Calila e Dimna, mas também podemos achar nele as influências do francês Roman du Renard e de fábulas clássicas gregas e la�nas. O rei é o leão, que governa graças ao apoio dos animais herbívoros. A astuta raposa trama um complô contra ele e ganha a adesão do urso, a ursa, o leopardo e a serpente, enquanto o galo, o cão e o pavão olham atentamente a situação antes de decidir por qual par�do tomar. No entanto, como sempre acontece na obra luliana, a finalidade deste livro não é meramente literária, mas servir de alerta aos príncipes reinantes sobre as infaustas consequências de levar a sério os maus conselheiros. De guisa mais próxima aos espelhos de príncipes, manuais sobre governança com grande circulação na Idade Média, em 1304 Llull terminou a redação do Livro do Conselho. Neste extenso tratado o maiorquino reflete sobre o bom governo que deve reger em todas as cortes, das eclesiás�cas às civis. De dimensões muito mais reduzidas é a Arte do conselho (dezembro de 1315), escrita durante a úl�ma estada de Lúlio na África e dedicada aos governantes de Túnis. Sabemos que este compêndio de filosofia polí�ca foi escrito originalmente em árabe e depois traduzido ao catalão e ao la�m. De acordo com os princípios da Arte, Llull dá sugestões sobre a melhor maneira de pedir e dar conselho. Para tal fim é desenhada uma nova figura da Arte, formada por quatro círculos com nove celas cada um e presidida por la letra A, que, imóvel, representa a Deus como guia de toda atuação polí�ca. Mís�co Diz a tradição popular, porém sem nenhuma prova fidedigna que o testemunhe, que foi o amor por uma mulher o que levou o trovador Ramon a tornar-se o mís�co Llull. O mo�vo dessa súbita conversão foi uma descoberta terrível. Perseguindo a amada pelas ruas da cidade de Maiorca, esta escondeu-se na igreja de Santa Eulália. Lá, na penumbra de uma capela lateral, acuada pelos embates do amante voluptuoso, a dama descobriu-se o peito. Horrorizado, Ramon Llull contemplou um tumor em estado avançado que corroía o seio. Essa visão de um mal que naquela época não �nha cura transformou para sempre a vida do cortesão. O próprio Llull nos conta em sua Vida coetânea, espécie de memórias que ditou aos monges de Vauvert, uma versão bastante diferente desta história. O filósofo reconhece que bebia de amores por uma mulher, cuja beleza lhe inspirava poemas e canções. Enquanto ele estava em seus aposentos, compondo uma can�lena em homenagem à amada, apareceu- lhe Jesus Cristo crucificado. Perplexo, parou a escrita e deitou-se, confiando em que uma bela noite de sono o libertaria dessa assombração. Porém, para sua surpresa, a aparição do Messias na cruz repe�u-se uma vez e outra e outra... assim, até um total de cinco vezes. Temendo perder o juízo, resolveu não sair mais de casa. Refle�ndo em seu confinamento domés�co, Ramon Llull chegou à conclusão de que aquela série de aparições era uma mensagem que lhe enviava o Criador. Deus queria que abandonasse essa vida pecaminosa, cheia de prazeres fúteis e vazia de espiritualidade. Um domingo a família finalmente convenceu-o a sair de casa e respirar um pouco de ar fresco. Acompanharam-no até a catedral para ouvir missa. Naquele dia o bispo de Mallorca, Ramon de Torrella, dedicou a homilia a contar a vida de São Francisco de Assis. Para seu espanto, o relato que o bispo fez acerca do santo guardava muitas semelhanças com a sua própria vida. Bem igual que o poverello de Assis, Ramon Llull �nha sido criado numa família acomodada que lhe atendeu em todos seus caprichos, sem faltar-lhe nem bem materiais nem status social. Contudo, o jovem de Assis não achou sen�do naquela vida que para muitos seria mo�vo de inveja. Então decidiu entregar todas suas posses aos pobres e, com um pequeno grupo de amigos, fundou na Porciúncula o primeiro cenáculo dos “irmãos menores”, germe de uma futura ordem mendicante que em poucas décadas espalharia por toda a cristandade la�na uma nova compreensão do homem, da natureza e da relação de ambos face à Divindade. Suponho que Llull deveu acompanhar de olhos arregalados a narração dos acontecimentos da vida de São Francisco. Conhecia de vista os irmãos franciscanos, que todas as manhãs saíam em duplas à procura de esmolas para os pobres e para o sustento de seus conventos, mas ignorava a origem dessa ordem que enraizara firmemente nas cidades. O momento culminante da homilia do bispo foi a hora em que o santo de Assis recebeu os es�gmas de Cristo. Isso o tornara um ser humano sem par, o único aquem Deus premiara com as cinco feridas que Jesus havia recebido na cruz. Sem ter ido tão longe, Ramon Llull também experimentara na in�midade do seu quarto o contato direto com Deus. As aparições do Crucificado foram uma forma de comunicação com o Ser Supremo que escapavam a uma análise racional. Ele era também, do seu jeito, um mís�co e devia devotar sua vida ao estudo e à oração. Portanto, cumpria abandonar os ligames que o atavam à família e à corte, falsas obrigações que o afastavam de seu verdadeiro des�no. Com trinta anos acumulados nas costas, uma esposa, dois filhos e o cargo de senescal no palácio da Almudaina, Ramon mudou radicalmente o rumo de sua existência e resolveu dedicar os seguintes dez anos à peregrinação, ao estudo e à oração. No monte Randa, o morro entre Algaida e Llucmajor que provavelmente fazia parte das terras de sua família, Ramon Llull teve uma visão que mudaria para sempre sua forma de pensar. Fazendo vida de eremita, apenas interrompida pela chegada dos serviçais que lhe traziam comida, viu um jovem pastor que cuidava de um rebanho de ovelhas. Bastou um breve aceno ao moço para que, num piscar de olhos, Ramon compreendesse que a missão de sua vida era escrever o melhor livro escrito até então, um livro tão potente cuja simples leitura faria convencer qualquer descrente da verdade dos dogmas cristãos. O mís�co/filósofo Lúlio teimará até a morte por transformar essa iluminação divina em um texto inteligível para os humanos e isso o levará a reescrever uma vez e outra a mesma obra: a sua Arte. Mas a Arte não é um fim em si mesmo. Lúlio não quer passar à posteridade apenas pelas suas ideias ou pelas suas composições literárias. O que o move é servir a Deus. E a melhor maneira de servi-Lo é promovendo a conversão dos gen�os. Como conseguir que as legiões de descrentes se curvem diante da cruz e sigam o caminho da Salvação? Pois bem, convencendo-os da superioridade dos dogmas cristãos mediante argumentações lógicas que sejam compreensíveis tanto para os sábios mais eruditos quanto para o povo iletrado. É sob essa missão conversora que a escrita do “melhor livro do mundo” ganha sen�do. Para tão alto obje�vo, talvez até impossível de a�ngir por um simples mortal, Ramon Llull consagraria a sua vida. Uma das principais correntes mís�cas daquela época não estava no cris�anismo, mas no islamismo. Os sufis �nham desenvolvido técnicas de concentração que lhes permi�am manter um contato direto com Deus. O sábio de Múrcia Ibn Arabi foi um dos principais pensadores sufistas. Em seus escritos concluiu que ao conhecimento pode chegar-se por duas vias paralelas e compa�veis: a via lenta da razão, a qual, passo a passo, avança para conclusões cada vez mais complexas; e a via rápida da iluminação, com a que Deus nos transmite toda a sabedoria humana no mesmo breve instante que uma centelha demora para iluminar o céu. O mis�cismo luliano não é apenas fruto de experiências extra-sensoriais. Ramon Llull deveu conhecer e estudar (ou pelo menos assim se desprende da leitura de seus textos) a obra de Ibn Arabi, considerado um dos pais do sufismo. Para descrever suas experiências mís�cas, este pensador muçulmano criou uma nova linguagem, mediante a justaposição de nomes com finalidade metafórica. Esse novo patamar de expressão linguís�ca desenvolvido pelo sufismo influenciou poderosamente a criação luliana. O maiorquino também foi levado pelo impulso de es�car até o limite as regras da gramá�ca e da morfologia, formando novos vocábulos inexistentes na língua falada, mas necessários para descrever, em todas as suas nuanças, o novo sistema lógico-meta�sico que estava prestes a criar. Ramon Llull dedicaria toda sua vida a buscar as palavras certas com as que poder comunicar à perfeição a mensagem divina. Seu maior anseio foi, pois, construir o “idioma perfeito” capaz de exprimir até o mais mínimo detalhe o conteúdo da visão mís�ca recebida em Randa e que, ademais, fosse compreensível por todo ser humano, com independência de sua religião ou do vernáculo que falasse. Também o entendimento de que todas as grandes religiões têm uma base comum, observável, entre outras coisas, pelos atributos que assignam à Divindade, tem um claro precedente na obra de Ibn Arabi. Em Al-Futuhat al-Makiyya (As revelações de Meca) o sábio árabe reconhece que o Alcorão bebe da mesma tradição religiosa dos outros povos do Livro. Inclusive, chega a afirmar que aquilo em que os judeus e cristãos acreditam é para eles tão verdadeiro quanto o que os muçulmanos creem baseando-se no Alcorão. Palavras sem dúvida revolucionárias para um século XIII marcado pelas guerras de religião e cujo rela�vismo cultural possivelmente tenha influenciado na escrita do Livro do gen�o e dos três sábios (1274-83). Porém – e essa é uma grande diferença entre os dois pensadores -, enquanto para Lúlio esta unidade de base das três religiões monoteístas tem de conduzir necessariamente para uma unificação de todos os credos no cris�anismo (o único que o maiorquino considera plenamente verdadeiro), Ibn Arabi adota uma postura mais próxima dos valores que dominam na nossa época, ou seja, os de um mul�culturalismo que prega a coexistência pacífica de todas as fés e culturas, sem impor a superioridade de umas sobre as outras. Mesmo que em sua vida adulta Llull adotasse um comportamento voltado exclusivamente ao estudo e ao desenvolvimento de sua Arte, a veia trovadoresca às vezes faz ato de presença na produção literária, elaborando uma curiosa mistura entre a tradição do amor cortês occitano e a mís�ca sufi. É o caso, por exemplo, do Livro do amigo e do amado, 4 espécie de apêndice lírico do livro Blanquerna (1276-83). Através das 365 metáforas morais (uma por cada dia do ano) escritas em prosa poé�ca, Lúlio dá a volta por cima à tradição dos trovadores, elevando à esfera mís�ca o que na origem era pura emo�vidade sensual. Os dois protagonistas do livro são a personificação do homem ascé�co que procura pela verdade (o amigo) e o Ser Supremo (o amado). Entre eles vai se desenrolando uma relação de amor que transcorre entre grandes padecimentos. No Livro do amigo e do amado é percep�vel a interpretação do amor feita pelo sufismo. Ibn Arabi entendia o amor como a verdadeira síntese de todas as virtudes. Porém, o amor a Deus por si só é insuficiente, segundo o murciano, se não vem acompanhado do amor pela Criação. Embu�do de teosofia e pacifismo, o sufismo promove o amor ao próximo como uma via que conduz ao amor a Deus. Está ideia percorre o livro de Lúlio, como podemos observar no seguinte fragmento: 59. O amigo andava desejando o seu amado e encontrou dois amigos que o saudaram com amor e choros, e abraçaram-se e beijaram-se. O amigo desmaiou, tão fortemente os dois amigos lhe lembraram o seu amado. A noção do amor passional como uma dor profunda que atenaza os amantes a ponto de deixá-los sem vontade de dormir, comer ou sequer viver quando estão longe do ente querido, é uma concepção habitual nas manifestações do amor cortês e também terá uma presença constante na lírica luliana. A paixão, portanto, no sen�do em que a trata Lúlio não deve ser entendida à maneira dos român�cos do século XIX, mas segundo a e�mologia da passio la�na, termo emparentado com o pathos grego e que pode ser traduzido como sofrimento: 129. O amado aproximava-se do amigo para que o consolasse e confortasse nos sofrimentos que suportava e nos prantos que chorava. E quanto mais o amado se aproximava do amigo, o amigo mais fortemente chorava e sofria por causa das desonras que faziam sofrer o seu amado. 30. O amigo desobedeceu ao seu amado e chorou. O amado veio morrer no seio do seu amigo para que o amigo recuperasse aquilo que havia perdido; e deu-lhe maior dom do que aquele que �nha perdido. Contudo, nessas metáforas o Llull filósofo prima por cima do Ramon trovador (e inclusive do mís�co), como na hora de tratar a natureza do amor: 138. Perguntaram ao amigo de que nascia o amor e de que vivia e por que morria. O amigo respondeu que o amor nascia na recordaçãoe vivia da inteligência e morria pelo esquecimento. Mas Lúlio não deixa passar nenhuma oportunidade para lecionar sobre questões teológicas, com ânimo quase de catecumenato: 284. “Diz, louco: o que é o pecado?” Respondeu: “Uma intenção avessa e dirigida contra a intenção final e a razão pela qual o meu amado tem criado todas as coisas”. 359: “Diz, louco: o que a religião?” Respondeu: “Limpeza de pensamento e desejo de morrer para honrar o meu amado e renunciar ao mundo para que não haja obstáculo na sua contemplação e para dizer a verdade de suas honras”. Nestes dois úl�mos trechos há de destacar-se que, para tratar de questões profundas e muito sérias, Lúlio rebaixa o amigo (isto é, ele mesmo) à condição de louco. Essa não foi a única vez que o pensador se apresenta como alguém cujo discernimento está longe da normalidade. Em outro capítulo do mesmo romance Blanquerna o autor aparece como um personagem mais da trama, concretamente como Ramon lo foll, nome que podemos traduzir como Ramon o luná�co ou Ramon o doido. Em outras obras aparecerá como o Doutor Fantás�co, epíteto que seus crí�cos ferozes lhe puseram em virtude de uma fér�l imaginação, mais própria dos moradores do hospício do que das autoridades acadêmicas. Em uma estratégia curiosa de superação dessa espécie de bullying (como diríamos hoje), Ramon Llull opta por exibir com orgulho o infame �tulo que lhe atribuíam seus acossadores. Isso porque, no fundo, o espírito cria�vo de Lúlio é compreensivo com um certo grau de loucura, indispensável para ques�onar as ideias preconcebidas que temos herdado. Mís�co, sim; mas também pragmá�co. São muitas as faces de Lúlio que transparecem da leitura de suas obras. Quiçá vivia com a mente nas nuvens, mas os pés jamais deixaram de pisar o firme chão. Peregrino A era de Llull foi intensa em peregrinações. No Levante está Jerusalém, a cidade santa das três grandes religiões monoteístas. Para os judeus, nela está localizado o templo que o rei Davi mandou construir para preservar a arca da Aliança. Por seu lado, para os cristãos, foi o palco da paixão, morte e ressurreição de Jesus, fatos que selaram a Nova Aliança que conduzirá à salvação da humanidade. Enquanto isso, para os muçulmanos, Jerusalém é o des�no do profeta Maomé na Viagem Noturna que o levou até o céu. No Poente, San�ago de Compostela, onde segundo a tradição cristã são conservados os restos mortais do apóstolo São Jaime. E, bem no meio do mundo mediterrâneo, a cidade eterna de Roma, em uma de cujas sete colinas, a chamada de Va�cano, o Papa chefia a orbe católica. A peregrinação a qualquer uma dessas três cidades santas concede a indulgência plenária ao cristão que as visitar. Sabemos com certeza que Llull que fez duas das três peregrinações (San�ago e Roma) e há fortes indícios de que também esteve em Jerusalém. A primeira peregrinação aconteceu pouco depois de sua crise de fé. Aos trinta e poucos anos de idade resolveu cruzar o mar e visitar lugares santos. A primeira parada nesta viagem espiritual e de procura da redenção foi Rocamadour. Este enclave, situado na região francesa de Dordogne, possui um santuário dedicado à veneração da Mãe de Deus e é ainda hoje muito frequentado por romeiros e peregrinos. De lá Llull par�u para a Galiza. Não sabemos ao certo qual caminho ele seguiu, mas provavelmente atravessou os Pirineus pelo desfiladeiro de Roncesvalles (Navarra) e con�nuou o percurso pelo conhecido como Caminho Francês, uma estrada que se adentrava pelos reinos de Castela e Leão até chegar ao des�no final de San�ago de Compostela. O Caminho Francês �nha sido muito trilhado nos séculos XI e XII por reis, religiosos e ar�stas e foi uma das vias de introdução da arte românica na Península Ibérica. A basílica de San�ago, com seu pór�co da Glória, bem no centro da praça do Obradoiro, é uma das joias da arquitetura e escultura de todos os tempos. Gosto de imaginar Raimundo Lúlio examinando com atenção as imagens que reproduziam passagens das Sagradas Escrituras. Como bom trovador que fora na mocidade, Llull deveu olhar com especial esmero os instrumentos musicais ali representados. Dentre eles devia destacar o organistrum, uma espécie de órgão portá�l que funciona com uma manivela e que servia de acompanhamento ao cantor que entoava as músicas do Codex Calix�nus no altar maior da catedral. Estas duas peregrinações �veram um efeito taumatúrgico. Ramon Llull voltou a Maiorca com os ânimos restabelecidos. Porém, antes ele fez uma parada em Barcelona, cidade onde moravam alguns de seus parentes. Na capital do principal condado da Catalunha, Lúlio teve a oportunidade de entrevistar-se com Raimundo de Penyafort. Este frade dominicano, que seria canonizado pela Igreja, era uma autoridade jurídica, tendo compilado muitos dos cânones do direito eclesiás�co. E ainda lhe sobrara tempo para fundar, junto com o provençal Pedro Nolasco, a ordem dos mercedários, uma congregação de frades des�nada à libertação de cristãos escravizados pelos mouros e que com o tempo viraria uma ordem focada na atenção aos presidiários em geral. Penyafort mostrou interesse por conhecer aquele maiorquino que se dizia iluminado por Deus. Llull aproveitou a oportunidade para pedir-lhe conselho sobre como poderia prosseguir os estudos que o levariam a escrever “o melhor livro do mundo”. Penyafort, chocado pelo excesso de ambição do homem, tentou afastar de sua cabeça a ideia de frequentar algum centro universitário e lhe propôs voltar a Maiorca. Lá, em sua ilha natal, deveria completar as múl�plas lacunas de sua formação. Sem essa educação prévia de nada serviriam as viagens de Llull aos grandes centros do pensamento europeu. Llull escutou as recomendações do sábio e dedicará os seguintes anos a estudar em Maiorca, de forma bastante autodidata. As viagens a Roma só se realizaram após este intervalo forma�vo. Lúlio visitou a cúria papal em quatro ocasiões. Em nenhuma delas a peregrinação foi o mo�vo principal da jornada. Na primeira visita (1287) Ramon Llull tentou expor ao papa seu projeto de cruzada espiritual, tarefa que incumbiria à nova ordem de monges tradutores e pregadores. Esta ordem em questão havia sido aprovada em 1276 por meio de uma bula pon��cia e teve em Miramar sua primeira casa. Como veremos no capítulo “Fundador”, a experiência de Miramar não foi muito bem-sucedida. Contudo, Lúlio não teve oportunidade de expor nem uma palavra desse projeto ao papa, pois Honório IV morreu pouco antes de o maiorquino chegar à Cidade Eterna. A segunda viagem a Roma teve lugar entre 1291 e 1292, em circunstâncias que aparentavam ser mais propícias para os planos de Llull. O sólio pon��cio �nha por �tular Nicolau IV, o primeiro pon�fice franciscano da história, que, ademais, já estava familiarizado com as teses lulianas, das quais fizera uma leitura favorável. Aliás, antes de chegar à cadeira de São Pedro, Girolamo Masci havia desenvolvido uma extensa a�vidade diplomá�ca, com frequentes contatos com o mundo oriental, já fosse para resolver as controvérsias teológicas que separavam os cristãos ortodoxos dos católicos, já fosse para dialogar com os muçulmanos ou com outros povos pagãos das estepes. Contudo, esta segunda visita também se malogrou por culpa do inesperado falecimento de Nicolau IV (1292). A terceira visita (1294) teve como mo�vo a eleição papal de Celes�no V e não foi exatamente em Roma, mas em Nápoles, cidade onde estava reunido o colégio cardinalício. Esse conclave foi um dos mais conturbados da história, já que os cardeais não conseguiam chegar a um candidato de consenso. As facções romanas dos Orsini e dos Colonna criaram minorias de bloqueio que deixaram o conclave em suspenso por quase dois anos. Enquanto isso, os reis de Aragão e da França, além de seus primos angevinos, que reinavam em Nápoles, conspiravam para atrair o favor dos príncipes da igreja para suas respec�vas causas. O rei de Nápoles Carlos II chegou a irromper no local onde se celebrava o conclave para cobrar uma rápida conclusão do mesmo. Finalmente o nome escolhidofoi o de um eremita chamado Pietro Morrone, que habitava desde décadas atrás nas montanhas dos Abruzzi. Perfeito desconhecedor dos meandros da polí�ca va�cana, Morrone beneficiou-se da profecia que circulava a respeito da perdição da Igreja caso não fosse achado um homem santo que a dirigisse. Já octogenário, o novo papa escolheu o nome de Celes�no V. Imediatamente Ramon Llull viu nele uma espécie de alter ego. Por uma feliz coincidência, quinze anos antes o filósofo �nha escrito uma narração cujo protagonista, Blanquerna, �vera um périplo vital parecido com o do papa. Igual que ele, Blanquerna �nha abandonado a vida mundana e empreendera o caminho da san�dade. Primeiro como ermitão, depois como monge e sucessivamente como prior e bispo, Blanquerna �nha pra�cado reformas em todos os cargos eclesiás�cos que ocupara, sempre no sen�do de retornar o dia a dia dos clérigos ao espírito originário dos Evangelhos. Na ficção de Llull, a fama de Blanquerna chegou tão longe que, contra prognós�co, acabaria sendo proclamado Sumo Pon�fice. De seu trono romano, o personagem luliano dará lições aos cardeais que se afastavam da mensagem cristã, pra�cando uma espécie de minirreforma eclesiás�ca. Ao saber da decisão do conclave, Ramon Llull par�u rapidamente para Nápoles carregando consigo cópias de diversas obras suas, entre elas, naturalmente, o Blanquerna. De novo o des�no cruzou-se na vida de Llull em sen�do nega�vo. O recém-eleito Celes�no V não conseguiu adaptar-se ao intrigante mundo da cúria va�cana e, antes de cumprir o primeiro ano de pon�ficado, renunciou a chefiar a igreja. Seu sucessor, o autocrá�co Bonifácio VIII, manifestava ideais muito distantes do reformismo de Llull. Por isso, a terceira viagem de Lúlio a Roma, depois de uma exitosa estadia em Nápoles, onde pôde pregar na catedral e ensinar na universidade, resultou ser tão improdu�va quanto as anteriores. A hierarquia católica con�nuou a fazer ouvidos moucos às propostas lulianas. Embora redigisse uma longa pe�ção a Bonifácio VIII, na qual expunha os detalhes do seu projeto de cruzada espiritual, não temos constância de que a audiência papal chegasse a celebrar-se nem no Va�cano nem nas dependências privadas de Anagni, onde este pon�fice passou longas temporadas. Sem nenhum resultado tangível, Ramon Llull abandonou Roma em 1296 e voltou para Montpellier. Lúlio ainda terá um quarto encontro com o papa, mas será longe da Cidade Eterna. Em concreto, coincidirá com Clemente V durante sua viagem a Lyon para ser proclamado Sumo Pon�fice. Nessa viagem, acontecida depois da escrita do Livro do Fim (1305), o pensador terá a oportunidade de expor a Clemente V suas teses sobre uma derradeira cruzada que forçasse os muçulmanos a escutar as pregações da Arte luliana, as quais, segundo o parecer de seu autor, provocariam conversões automá�cas dos infiéis. Apesar da intercessão do rei Jaime II de Aragão, ca�vado pela tese luliana do Rex Bellator, não parece que o plano de Lúlio para recuperar Terra Santa fosse levado muito a sério nas esferas pon��cias. Essas mesmas ideias con�das no Livro do Fim seriam repe�das ante a presença do papa no posterior concílio ecumênico de Vienne. Tampouco nessa ocasião Lúlio a�ngiu o obje�vo almejado e o Sumo Pon�fice manteve-se impermeável às suas teses, salvo algumas pequenas concessões, como a autorização para fundar novas escolas de línguas orientais que facilitassem a pregação do Evangelho na Ásia. Clemente V foi um papa perfeitamente alinhado às posições geopolí�cas do rei da França, máximo ar�fice de sua ascensão ao sólio pon��cio. Esta subserviência papal chegou ao ponto de mudar sua corte de Roma para a pacata cidade de Avignon, em troca da proteção de Filipe IV. Será o passo prévio ao Cisma de Ocidente, que entre 1378 e 1417 dividirá a fidelidade dos católicos entre dois papas: o de Roma e de Avignon. Comentamos no começo deste capítulo que na Idade Média havia três grandes peregrinações que os cristãos podiam realizar: San�ago de Compostela, Roma e Jerusalém. Nos parágrafos anteriores deixamos constância de que Ramon Llull pra�cou as duas primeiras. A questão agora é saber se também viajou até Jerusalém. Foi Lúlio um dos poucos homens de sua época a completar as três grandes peregrinações? Ora, neste ponto os estudiosos encontram-se divididos. Há um indício poderoso para acreditar que, com efeito, Ramon Llull visitou os Santos Lugares da Pales�na, mas também existem mo�vos para a dúvida sobre se essa jornada realmente aconteceu. Sabemos, porque assim o reconhece o próprio Lúlio em suas memórias, que o maiorquino viajou até as terras banhadas pelo Mediterrâneo oriental. Na ilha de Chipre fez uma longa estadia, durante a qual manteve contatos com o rei de Jerusalém e o grande mestre da ordem do Templo. Essa viagem acontecerá em 1302, mais de dez anos depois da queda de São João de Acre (1291), o úl�mo empório que os cruzados conservavam na Pales�na. A sua perda forçou as ordens militares a buscar novas bases em ilhas próximas ao con�nente asiá�co: os templários escolheram Chipre e os hospitaleiros Rodes. No começo do século XIV circulou o boato de que os tártaros �nham invadido a Crescente Fér�l e derrotado os mamelucos. O khan Cassano, segundo essas mesmas no�cias de fonte desconhecida, solicitara ao papa o envio de emissários para proceder à sua conversão ao catolicismo. Lúlio acreditou nessas informações e viajou até o outro extremo do Mare Nostrum. Também sabemos que interrompeu sua estadia em Chipre para ir à Ásia Menor, muito provavelmente com o propósito de visitar Armênia. O mo�vo deste deslocamento permanece obscuro. Foi, quiçá, uma missão diplomá�ca encomendada pelas autoridades cipriotas para conhecer em primeira mão a situação no Próximo Oriente e avaliar uma eventual aliança com os tártaros? Não sabemos. São apenas elucubrações. Os que defendem que a peregrinação de Lúlio a Jerusalém teve lugar fundamentam esta suposição numa descrição con�da no Livro do Fim, cujo texto original em la�m diz assim: Sed aliud altare est, quod est exemplar et dominus omnium aliorum. Et quando uidi, in ipso duae lampades solae erant; una tamem fracta est. Ciuitas depopulata est, eo quia ibi quase quinquaginta homines non morantur; sed hic mul� serpentes in cauernulis commorantur; et illa ciuitas est excellen�ssima super omnes alias ciuitates; et hoc intelligo quo ad Deum. Neste trecho do Liber de Fine, o maiorquino compara a riqueza de iluminação e ornamentos do altar de São Pedro em Roma com a pobreza “de outro altar que é exemplar e o senhor de todos os demais”. Lúlio afirma que esse altar somente possuía duas lâmpadas que o iluminassem, e uma delas estava quebrada. Aliás, em palavras do maiorquino, a cidade que abrigava esse altar estava tão despovoada que apenas cinquenta moradores podiam ser achados. Em lugar de pessoas, eram as serpentes as que pululavam à vontade na urbe. Todas essas descrições fazem pensar, sem muito risco, que Lúlio está se referindo à Jerusalém do começo do século XIV. Para os autores par�dários de que a peregrinação a Jerusalém realmente aconteceu, essas palavras de Lúlio evidenciam que o pensador visitou a Cidade Santa de judeus, cristãos e muçulmanos. No entanto, um olhar mais crí�co abre todo um leque de ques�onamentos. Essa descrição do Livro do Fim foi fruto de uma experiência pessoal ou, pelo contrário, reproduziu o testemunho de terceiros? Por que Lúlio mostra tanto receio em afirmar que visitou Jerusalém em obras posteriores? Resulta quanto menos estranho que esta viagem não fosse mencionada na Vida coetânea, livro escrito anos depois e no qual são narradas sem rodeios as peregrinações a Rocamadour e San�ago de Compostela. Não quero com estas linhas negar redondamente a peregrinação de Ramon Llull a Jerusalém, mas considero que este é um episódio da sua biografia ainda em aberto. Se a peregrinação realmente ocorreu, por mo�vos que desconheço, Lúlio fez questão de tratar esse assunto com nebuloso mistério, em lugar de difundi-lo com o orgulho �pico de um peregrino.Estudioso Como ele mesmo reconhece em diversos textos, Ramon Llull não teve em seus anos de infância e juventude a formação �pica de um clérigo, posto que não era esse o des�no habitual para o primogênito de uma família de mercadores, com anseio de tornar-se cavaleiros. A crise de fé chegou a Ramon em um momento em que era um homem quase iletrado, sem muitas noções de gramá�ca. Ainda menos provido dos conhecimentos suficientes de filosofia e teologia necessários para escrever aquele livro chamado a tornar-se o melhor do mundo, com cuja leitura os infiéis aceitariam de olhos fechados a superioridade do cris�anismo. Após as peregrinações a Rocamadour e Compostela, ele sen�u vontade de frequentar os centros universitários e formar-se nessas matérias rodeado dos mais pres�giosos professores. Entretanto, Raimundo de Penyafort esfriou esse impulso e fez-lhe ver que não estava preparado para os estudos superiores. Seguindo esta recomendação, Lúlio voltou a Maiorca e lá ficou pelos seguintes nove ou dez anos, durante os quais acumulou um vasto saber em diversas matérias. Não sabemos ao certo se teve um tutor ou mestre que o guiasse nessa fase de aprendizado, mas parece bastante provável que Ramon seguiu os estudos de maneira autodidata e guiando-se em boa medida pela própria intuição. Sem dúvida, tornou-se um visitante assíduo das bibliotecas da cidade, das quais infelizmente tampouco sabemos grande coisa. Imaginamos que os dominicanos conservavam um bom acervo bibliográfico em seu convento, muito próximo do palácio real da Almudaina. Esta coleção devia incluir um número significa�vo de obras em árabe (o studium arabicum que vemos mencionado em diversas fontes do século XIII). Também os monges cistercienses do recém fundado mosteiro de La Real deviam possuir uma biblioteca com documentos importantes, sobretudo cópias da Bíblia e comentários sobre textos piedosos. Não é disparatado supor, aliás, que nas longas sessões de leitura Ramon recebesse o auxílio dos eclesiás�cos que gerenciavam ou frequentavam as bibliotecas, ajudando-o a entender conceitos teológicos ou a traduzir obscuras formas grama�cais la�nas. Contudo, é sumamente arriscado aventurar-se a afirmar quais foram exatamente os autores e as obras que integraram o corpus forma�vo de Llull, já que ele faz contadas referências aos textos que influenciaram nos seus escritos. Ademais, o fato de a Arte fugir geralmente do argumento de autoridade e centrar-se exclusivamente em princípios racionais (as razões necessárias) torna muito árduo o trabalho de pesquisar quais foram as leituras que Lúlio teve na sua etapa de formação. Neste ponto, como em outros muitos da vida do maiorquino, os pesquisadores movem-se bastante às escuras. Apesar desta falta de referências expressas, estudando a obra luliana evidencia-se a influência de diversos escritores an�gos e medievais, que Lúlio deve ter lido, já fosse em cópias de seus textos originais ou, com maior probabilidade, através de glosas escritas por terceiros. Assim, entre os autores que influenciaram Ramon nesses anos de formação devemos destacar os gregos clássicos Platão, Aristóteles, Ptolomeu e Empédocles; os cristãos Pseudo-Dionísio Aeropagita, Agos�nho de Hipona, Ricardo de São Vítor, Boécio, Gregório Magno, Pedro Lombardo, Tomás de Aquino, Mar�nho Ânglico, Ricardo de Mediavilla e Egídio Romano; os muçulmanos Abuhamid al Ghazali, Averróis de Córdoba, Al Kindi, Ibn Arabi de Múrcia; o averroísta cristão Síger de Brabante, entre outros. Tudo em suma leva Pere Villalba a considerar Ramon Llull como um dos melhores representantes do “escola�cismo popular”, já que bebia das mesmas fontes que boa parte do pensamento cristão do século XIII, mas sem fazer parte da corrente Escolás�ca propriamente dita. Na Vida coetânea, o maiorquino dedica apenas as seguintes linhas a descrever esses anos: 5 Quando aí [Maiorca] chegou, abandonando o modo de vida faustoso que �vera, ves�u um hábito do burel mais grosseiro que pode encontrar, e assim, nessa mesma cidade, estudou um pouco de gramá�ca e, tendo comprado ali mesmo um Sarraceno, aprendeu com ele a língua árabe. O único mestre ao que Llull alude expressamente em sua produção literária é justamente o escravo sarraceno. Embora o pensador achasse indispensável conhecer a língua arábica para realizar seu projeto de conversão, não podemos descartar a hipótese de Llull ter �do ao alcance alguns textos de autores muçulmanos. Além dos exemplares que sobreviveram ao espólio que se seguiu à conquista cristã, os mercadores judeus também deviam comerciar com livros matemá�cos, filosóficos, médicos ou técnicos, muitos deles de autores árabes. Lúlio pôde ter �do acesso a essas obras e, pelo fato de lê-las no seu idioma original, engrandecer poderosamente a sua mente, abrindo-a a um conhecimento muitas vezes negligenciado pelos pensadores cristãos. Aliás, o domínio da língua arábica e o seu profundo conhecimento do Alcorão e da religião islâmica fazem de Lúlio uma rara avis dentro da história da filosofia ocidental, um chris�anus arabicus, como já foi definido. Assim, por exemplo, o seu livro sobre os Cem nomes de Deus (1288) só pode ser compreendido se conhecemos previamente a crença muçulmana segundo a qual Alá possui cem nomes diferentes, noventa e nove dos quais estão ao alcance do homem, enquanto o úl�mo, o centésimo, ainda não foi descoberto. Segundo essa mesma crença, o sábio que o descobrir a�ngirá o conhecimento mais profundo sobre a essência divina. A fluência na língua árabe será um diferencial que fará com que Ramon Llull se destaque da imensa maioria de seus contemporâneos. No entanto, não estou tão seguro de que essa influência arábica lhe ajudasse na difusão da Arte nos cenáculos eruditos do Ocidente. Muito pelo contrário, penso que contribuiu a dar à criação luliana uma pá�na de exo�smo e, consequentemente, a levantar alguns receios à sua recepção acadêmica, pelo seu caráter um tanto outsider. Com o domínio do árabe, Llull desenvolverá uma linguagem original, incorporando sufixos até então nunca usados nem em la�m nem em catalão. Contudo, a relação com o escravo mouro não acabou bem. Estando Ramon ausente, o escravo blasfemou contra o nome de Jesus, o que provocou a ira dos vizinhos. Ao saber desse ato ignominioso, Lúlio o repreendeu e bateu nele diversas vezes. Ressen�do pelo cas�go infringido, o escravo tentou assassinar o mestre com uma faca. Porém, os golpes do mouro só causaram feridas superficiais em Ramon. Como cas�go, o escravo foi preso num cárcere domés�co, enquanto seu dono resolvia o que fazer com ele. Embora o ato fosse gravíssimo, Llull não queria puni-lo excessivamente, já que se sen�a em dívida com ele por ter-lhe ensinado a língua árabe. Pediu a intercessão de Nossa Senhora e ficou sozinho rezando, à espera de uma resposta das Alturas. Depois de três dias, ainda sem saber bem o que fazer, Ramon voltou a casa e lá encontrou o escravo morto. Seu corpo estava pendurado com uma soga amarrada ao teto. Antes de o mestre tomar qualquer decisão sobre o seu futuro, o mouro preferiu abandonar este mundo pelos próprios meios. Se a linguagem será uma preocupação constante de Lúlio – levando-o à configuração de uma nova língua de caráter universal -, o interesse pelos números não será menor. A efeitos numerológicos, boa parte da sua produção gira em torno do número quatro e do número três. O primeiro deles deriva do estudo dos autores an�gos, que se inspiravam sobretudo no mundo �sico. Com um número quatro era possível dividir a matéria em grandes categorias: ar, fogo, terra e água. O ar �nha em comum com o fogo o caráter quente, enquanto dividia com a água a umidade. O fogo, por sua vez, era seco como a terra. E a terra compar�lhava com a água o caráter frio. Dispostos em forma de quadrado, os quatro elementos clássicos permi�am relações de concordância entre os que �nham algum aspecto em comum (calor, frio, umidade e sequidade) e de contrariedade entre os dois pares opostos (ar/terra e fogo/água). A par�r dos quatro elementos - teoria que teveem Aristóteles um de seus máximos divulgadores, mesmo que o crédito dela deva ser atribuído a autores anteriores, como Anaxímenes -, a ciência greco-romana expandiu- se por todos os campos. Os textos médicos de Galeno são claramente derivados dessa ideia, a ponto de desenvolver a teoria dos quatro humores, cada um dos quais relacionado com um elemento diferente. Até a psicologia dos indivíduos dependia da predominância de um elemento ou de outro em seu corpo. Assim, havia pessoas sanguíneas (ar), coléricas (fogo), melancólicas (terra) ou flegmá�cas (água). Ainda hoje, os pra�cantes da astrologia classificam os doze signos do Zodíaco conforme a suposta influência que neles exercem cada um dos quatro elementos. Todavia, Lúlio não demoraria a perceber as limitações da teoria dos quatro elementos. Embora servisse para entender os seres materiais, uma vez sublimada a esfera terrestre estes perdiam sua virtualidade. Para entender a Deus, o número idôneo não era o quatro, mas o três, já que este descreve melhor as pessoas que, segundo o dogma cristão, integram a Divindade (Pai, Filho e Espírito Santo). Com isso, Ramon Llull foi um passo além do hilemorfismo. As coisas não eram cons�tuídas apenas por matéria e forma, tal como defendia Aristóteles. Cumpria acrescentar um terceiro fator: a conexão da matéria e da forma. Ou, como o maiorquino definiria em uma das primeiras manifestações do conceito de correla�vo: Deus + criatura + operação. Com o tempo, a estrutura do correla�vo tornar-se-á criador/criado/criação. O aprofundamento no significado nos números três e quatro (e suas representações gráficas em forma de triângulos e quadrados, respec�vamente) é essencial para uma plena compreensão da Arte luliana. O próprio Doutor Iluminado quando quis explicar a quadratura do círculo teve de fazer uso de outra forma geométrica. Adivinham qual? Com efeito, o triângulo. Lógico Entre os séculos XII e XIII aconteceu a recepção no Ocidente de duas grandes contribuições árabes ao pensamento universal. A primeira foi estritamente original do mundo islâmico: a álgebra, ou seja, a formulação de problemas matemá�cos para resolver uma incógnita. A segunda foi original em termos mais rela�vos, já que o papel dos sábios muçulmanos foi o de recuperar, comentar e divulgar achados de um passado distante, que �nham ficado pra�camente esquecidos por quase mil anos. Estou me referindo à lógica e mais concretamente à lógica aristotélica, da qual Al- Gazali (ou Al-Ghazali) foi um de seus pioneiros sinte�zadores e comentadores medievais, com obras como Maqâsid al-falâssifa (Tendências dos filósofos). A lógica foi uma das primeiras disciplinas a despertar o interesse de Lúlio, ainda em sua fase de formação. A primeira obra que ele escreveu, antes do colossal Livro de contemplação em Deus (1271-73), foi mais modesta em suas dimensões, porém muito relevante no desenvolvimento posterior da filosofia luliana. Trata-se da Lógica de Al-Gazali (1271?), autor persa ao qual Ramon Llull frequentemente se refere pelo seu nome catalanizado: Algatzell. Este autor, muito importante na história do pensamento islâmico, era pouco conhecido nos lares cristãos do século XIII. Com quase absoluta certeza, Lúlio chegou a ele diretamente, através da leitura de seus textos originais em árabe. É possível, inclusive, que o maiorquino escrevesse a Lógica de Al-Gazali originariamente em árabe, embora na atualidade só conservemos as versões em catalão e la�m. É um texto rimado, para facilitar sua memorização, e que o autor faz questão de verter em vernáculo para alcançar inclusive àqueles que não sabem la�m, tal como diz bem na primeira estrofe, numa declaração de princípios que guiará toda a obra luliana: Deus, para honrar-Vos, Da lógica tratamos brevemente A qual é compêndio novo Onde ao meu entendimento apelo, Que translado do la�m ao romance Em rimas e em palavras singelas, Para tal de poder ensinar Lógica e filosofar Àqueles que não sabem la�m Nem arábico, porque Vós Me encaminhastes, Senhor, ao saber E a boa intenção ter. 6 Nos 1.598 versos seguintes, Lúlio comenta os aspectos fundamentais da lógica de Algatzell, como a sua u�lidade, as matérias em que é dividida, a forma dos silogismos e as falácias, entre outras questões. No século IV a.C. Aristóteles definira o primeiro grande tratado de lógica formal em toda uma série de textos que na Idade Média adquirirão o nome de Organon. O filósofo grego expôs as regras a par�r das quais, dada uma premissa maior e uma premissa menor podiam ser extraídas conclusões logicamente congruentes. Resumindo muito, a lógica aristotélica dava validade a conclusões que chegavam a uma consequência a par�r de uma causa (quia) ou a uma causa a par�r de uma consequência (propter quid). À maneira de exemplo, com a demonstração quia, se vemos uma floresta arder à noite podemos concluir que há fumaça, mesmo que a escuridão não nos permita vê-la. Através da demonstração propter quid seguimos o caminho inverso: se de dia vemos fumaça no horizonte podemos estar confiantes de que lá há fogo, embora as chamas não sejam visíveis a olho nu. No entanto, esta lógica formal não se preocupava pela verdade das premissas em si. Apenas cuidava de controlar se a conclusão seguia as regras formais do silogismo, mas sem entrar em valorações acerca da veracidade ou falsidade dessa conclusão lógica. Vou tentar explicar isso com um exemplo. Suponhamos que a premissa maior é “todos os humanos são elefantes” e a premissa menor “todos os elefantes são carnívoros”. Neste caso a conclusão “todos os humanos são carnívoros” é totalmente correta segundo a lógica formal de Aristóteles. Não importa que as premissas sejam materialmente falsas. Todos sabemos que os humanos não são elefantes e que os elefantes, até onde alcança a zoologia, são herbívoros. Também sabemos que os humanos não são estritamente carnívoros, mas onívoros (alguns inclusive são veganos, seguindo uma moda recente). Mesmo assim, par�ndo da base das regras do Organon, a conclusão que afirma que todos os humanos são carnívoros é plenamente coerente do ponto de vista da lógica. Agora vamos pôr outro exemplo em sen�do contrário. A premissa maior é “todos os humanos são animais” e a premissa menor é “todos os elefantes são animais”. Podemos afirmar como conclusão “todos os humanos não são elefantes”? Pois bem, não podemos. Pelo menos não em aplicação das regras da lógica aristotélica, apesar de o senso comum nos dizer que tanto as duas premissas quanto a conclusão são certas. Por que isso é assim? Bom, para entendê-lo primeiro temos que explicar que as premissas estão integradas por três termos: maior, médio e menor. Voltando ao primeiro exemplo, “humanos” seria o termo maior, “elefantes” o termo médio e “carnívoros” o termo menor. Da mesma maneira, no segundo exemplo “humanos” seria o termo maior, “animais” o termo médio e “elefantes” o termo menor. Como vemos, os dois termos médios destes exemplos aparecem somente nas premissas, mas estão ausentes nas conclusões. Isto é devido a que na lógica aristotélica o termo médio é uma essência abstrata, ao contrário dos termos maior e menor, que são concretos. Mesmo que o termo médio não seja concreto, isso não altera as regras formais da lógica. Portanto, o silogismo funcionará sem problemas seguindo a mesma mecânica, com independência de o termo médio ser ou não ser um ato concreto. Este desligamento da lógica formal com a “realidade das coisas” causou grande desconforto entre os pensadores medievais. Um deles, Lúlio, não se resignou a afastar os procedimentos da lógica da verdade das premissas. Como aponta Umberto Eco, para Lúlio as regras lógicas têm que ser coerentes com a grande cadeia do ser, sobre a qual se assenta toda a teoria luliana. Só que para conseguir isso o maiorquino nos levará a misturar a lógica formal com algo tão aparentemente incompa�vel como a meta�sica. Lúlio não rejeitou a lógica aristotélica, mas considerou as demonstrações quia e propter quid insuficientes para chegar a um certo conhecimentode Deus. Para o Doutor Iluminado, tais argumentações ajudavam a entender os fenômenos naturais, mas eram inservíveis em se tratando dos dogmas da religião. A lógica que nos ajuda a entender o pensamento dos homens não é, segundo ele, a mesma que a lógica que precisamos para nos aproximar ao pensamento de Deus ou ao pensamento dos anjos ou ao pensamento dos animais, para pôr três exemplos de entes diferentes. Cumpria, pois, achar um novo sistema de demonstração que superasse o velho esquema de causa e efeito. Esta descoberta de Lúlio será uma nova lógica-meta�sica (a Arte), edificada sobre a relação real existente entre o pensamento e os modos de ser de cada realidade. Em consequência, a lógica luliana difere da aristotélica num ponto crucial: enquanto para o grego o termo médio do silogismo é uma essência abstrata, na Arte luliana o termo médio é um ato concreto. Portanto, a lógica luliana vai além de uma lógica formal para tornar-se uma autên�ca lógica real. Para obter isso na prá�ca, a Arte de Llull introduz o princípio de conveniência (desconhecido na lógica aristotélica) e a sua derivada: a demonstração “por equiparação”. Assim, o princípio de conveniência parte da igualdade do aparelho demonstra�vo e do aparelho demonstrado, cuja relação passa a ser “conveniente” ou “inconveniente” e não mais apenas “verdadeira” ou “falsa”, como acontecia no silogismo aristotélico. Por sua vez, a demonstração “por equiparação”, um dos alicerces fundamentais da Arte, tem como base o princípio de conveniência, que possibilita argumentações que não ficam restritas à esfera do que é verdadeiro ou falso e que admite argumentar sobre aquilo que já não existe ou não exis�u nunca – como é tudo o que é possível -. A lógica real luliana fundamenta-se nas Dignidades de Deus, a par�r das quais e mediante razões necessárias Lúlio desdobra a virtualidade de sua construção lógico-meta�sica orientada, inicialmente, à conversão dos infiéis. O conceito das Dignidades, Atributos ou Virtudes de Deus aparece bem no início da obra literária luliana, pois encontramos suas primeiras referências já no Livro de contemplação em Deus. Neste tema a influência da teologia islâmica é evidente. Como já vimos, para os muçulmanos Alá possui cem nomes, dos quais apenas os noventa e nove primeiros estão ao alcance da mente humana. Agora vamos acrescentar que cada um desses nomes faz referência a uma hadra. As hadras são qualidades existentes no mundo material, mas somente na Divindade alcançam sua perfeição, como a bondade, a grandeza, a liberalidade ou a misericórdia, entre outras. Mas não foram apenas as hadras as que influenciaram na concepção das dignidades lulianas. Seguramente os sephiroth judaicos �veram um papel semelhante ou inclusive superior. Os cabalistas extraíram nove sephiroth de Jeová (por coincidência, o mesmo número de dignidades que encontramos nas formulações tardias da Arte luliana) e os entendiam não apenas como princípios lógicos demonstráveis, mas como essências iden�ficáveis com o próprio Deus. No começo Llull trabalhará com dezesseis dignidades, as dezesseis que aparecem na Figura A da Arte nas suas primeiras formulações. Com o tempo, o número de dignidades seria reduzido a nove. O mo�vo dessa mudança não está totalmente claro. Talvez Llull considerasse que sete delas eram redundantes ou que podiam ser abrangidas pelas nove restantes. Outra hipótese plausível é a que defende Pring-Mill, segundo cuja interpretação, o número de dezesseis, ao ser o quadrado de quatro, está in�mamente vinculado à teoria dos quatro elementos da matéria (terra, ar, fogo e água). Esta teoria dos quatro elementos, nascida na Grécia Clássica, imperaria sem oposição nos estudos �sicos e médicos da Europa medieval e permanecerá vigente até o século XVII. Com a redução para nove dignidades, isto é, o quadrado de três, Llull adaptou a Arte à trindade do Deus cristão (Pai, Filho e Espírito Santo). A Arte será objeto de con�nuas revisões periódicas. Dá a impressão de que Lúlio nunca ficou sa�sfeito por completo, seguramente por ser consciente das limitações da linguagem humana. Por isso, a cada certo tempo voltará à Arte para retocá-la, estender seus limites ou simplificá-la com o intuito de fazê-la mais compreensível aos estudiosos de Paris. Segundo Domínguez Reboiras, a Arte e suas variações são o assunto principal de treze obras de Lúlio, começando pela Ars compendiosa inveniendi veritatem, composta em Maiorca em 1274, até à Ars generalis ul�ma, cuja composição se realizou entre as cidades de Lyon e Pisa nos anos que vão de 1305 a 1308. Das outras treze obras relacionadas com a Arte, as que ganharam maior relevância foram: Ars demonstra�va (Montpellier, c. 1283), Ars inven�va verita�s (Montpellier, 1290), Tabula generalis (esforço de sistema�zação gráfica das principais figuras da Arte, cuja composição foi iniciada em Túnis em 1293 e completado um ano depois em Nápoles) e a Ars brevis (espécie de car�lha ou manual introdutório, escrito em Pisa em 1308). A Arte luliana atendia a diversas funções. A primeira, conforme confessa seu autor, conhecer e amar a Deus, duas ações (o conhecimento e o amor) que para Llull eram indissolúveis. Mas a Arte também devia mo�var o apreço pelas virtudes e o ódio pelos vícios. Em terceiro lugar, a Arte cumpria um rol de instrumento para desfazer os erros dos infiéis e promover sua conversão ao cris�anismo, por meio de razões necessárias. Aliás, os mecanismos lógicos da Arte deviam facilitar a formulação de questões e dar-lhes respostas, o que com certeza permi�ria uma rápida apreensão de diversas ciências, as quais, sob o guarda-chuva epistemológico da Arte, ganhariam em clareza e racionalidade. Em suma, a Arte, tal como Lúlio a concebera, era uma metaciência, ou “ciência de ciências”, que por força conduziria quem a pra�casse ao conhecimento verdadeiro e, portanto, o aproximaria de Deus e o afastaria do erro e do pecado. Sendo que a especulação sobre seu modelo lógico serviu de guia para boa parte da criação luliana, costuma-se a dividir as obras deste pensador em quatro fases sucessivas: a) A fase pré-ar�s�ca (1271-74), na qual um Ramon Llull ainda em formação começa a esboçar as linhas gerais de sua Arte, com obras como a Lógica de Algatzell ou o Livro de contemplação em Deus. b) A fase quaternária (1274-89), em que Llull já traça os elementos fundamentais de sua Arte, que toma como base dezesseis Dignidades de Deus. Correspondem a esta fase obras como a Ars compendiosa inveniendi veritatem ou a Ars demonstra�va. c) A fase ternária (1290-1308), durante a qual Ramon Llull busca simplificar a Arte para torná-la mais compreensível. As dezesseis Dignidades da Figura A são reduzidas a nove. A Ars generalis ul�ma será a máxima expressão desta concepção ternária da Arte luliana. d) A fase pós-ternária (1308-1315), em que o empenho de Llull se focará mais em u�lizar a Arte como método de resposta a questões concretas, por meio da escrita de opúsculos e tratados breves, do que em reelaborar a Arte de maneira extensiva. As principais figuras da Arte luliana são as seguintes: Figura A: Representa a Deus através da conjunção de todas as suas Dignidades. Estas dignidades são atributos da Divindade e, portanto, princípios absolutos. Ficam acima de qualquer demonstração cien�fica, já que, em sua máxima expressão, são intrínsecos a Deus, tal como é concebido pelas três grandes religiões do Livro. A defesa de sua existência, pois, não depende de argumentos lógicos, mas da mera crença no Ser Supremo. São justamente estas dignidades as que dão o componente meta�sico ao edi�cio lógico e meta�sico luliano. Como consequência, para Llull cada uma das Dignidades é infinita e igual à essência divina. As Dignidades são, portanto, princípios do ser e do agir, tanto de Deus como de suas criaturas. Lúlio afirma também que estas Dignidades são princípios do conhecer e que o ser humano pode conhecê- las apenas parcialmente. Adicionalmente, as Dignidades são correla�vas, posto que nelas há um elemento agente, outropaciente e um conec�vo. Assim fazendo, Lúlio extrapola na sua linguagem o significado do número três, o que lhe serve para explicar parcialmente os dogmas cristãos e ver as três dimensões no universo criado. Na figura A é onde fica mais evidente o funcionamento da demonstração por equiparação. Cada uma das dignidades se inter-relaciona com todas as demais, numa posição de igualdade entre si. Como o próprio Lúlio reconhece, esta igualdade entre as proposições é uma diferença chave em relação com as demonstrações clássicas quia e propter quid. Nestes úl�mos casos, seguindo a lógica aristotélica, as premissas não são iguais: uma é a maior e a outra a menor (a causa e o efeito, nos fenômenos �sicos). Cada dignidade está representada por uma letra (BCDEFGHIKLMNOPQR nas versões quaternárias da Arte e BCDEFGHIK nas ternárias). A letra A fica no centro da figura e não representa nenhuma dignidade por si só, mas a soma de todas elas, ou que nos leva a coligir que a letra A é a representação por antonomásia de Deus. Figura S: Representa os processos de conhecimento dos seres espirituais por meio da memória, intelecto, vontade e ação. Estas quatro instâncias conformam os vér�ces de um quadrado que gira ao redor de um círculo gerando combinações lógicas. Esta figura simboliza em certa medida o papel subje�vo que o ar�sta deve adotar se quer explorar todos os pormenores da Arte. O sistema lógico-meta�sico de Llull não é algo que deva ser memorizado. Muito pelo contrário: exige a quem se aproxime dele um esforço de apreensão que só adquirirá depois de muito tempo de estudo e reflexão. Mas a Arte (sobretudo as versões mais simplificadas, como a Ars brevis) facilitam seu acesso mediante figuras que permitem uma aprendizagem quase que brincando – embora Llull sempre tratasse sua invenção com a maior seriedade e rigor intelectual - com letras, palavras e formas geométricas. Justamente nesse processo combinatório o ar�sta extrairá conclusões verdadeiras às questões que se proponha, conduzindo a Arte para novos horizontes, muitos deles impensáveis mesmo para seu inventor. Figura T: Trata dos princípios e dos significados, isto é, dos modos de processar os dados recebidos através da Figura S. Se na Figura A a Arte opera com princípios absolutos, aqui Lúlio dá preponderância aos princípios chamados posteriormente por seus comentadores de “rela�vos”, exprimidos em forma de triângulos: verde (diferença-concordância- contrariedade), vermelho (princípio-meio-fim) e amarelo (maioridade- igualdade-minoridade). Enquanto os princípios absolutos (ou Dignidades) são qualidades divinas, os princípios da Figura T indicam as diferentes perspec�vas que os seres espirituais adotam nos seus atos. Estes princípios da Figura T pertencem aos seres espirituais, que são os que os possuem. Algumas destas perspec�vas também podem ser aplicadas a Deus, tais como a Diferença, o Princípio, o Meio, ou o Fim. A atualidade das Dignidades pode ser vista em sua Maioridade, sua Igualdade, sua Diferença, etc. Figura V: É a representação gráfica das virtudes e dos vícios (figura V). Figura X: Representa graficamente a predes�nação. Figuras Y e Z: São as únicas figuras não passíveis de combinação, já que simbolizam os princípios absolutos da Verdade (Y) e da Falsidade (Z). Figura após figura e revisão após revisão, Lúlio irá elaborando com a sua Arte (ou lógica real) uma “máquina de pensar” (ratus apparatus). Ao esmiuçar formulações complexas em argumentações simples, a Arte de Lúlio acabou por se tornar um ar��cio (macchina) que permi�a ao seu operador (ar�sta) demonstrar (inventar) a verdade. Para facilitar o uso da Arte quase como se de um aparelho de cálculo se tratasse, várias das figuras saíram (textualmente) do papel e se tornaram objetos móveis de madeira com formas de quadrados, círculos e triângulos, mediante os quais o ar�sta podia realizar manualmente as operações lógicas necessárias. Todavia, a Arte não está moldada num numerus clausus de figuras. Estas representações gráficas são complementares e ajudam à exposição dos mecanismos lógicos dos diferentes temas do pensamento luliano, adaptando-se às necessidades de cada situação. Por exemplo, na estadia de Ramon Llull na universidade de Paris em 1288-89, foram acrescentadas as figuras da Teologia, da Filosofia do Direito, a Elemental, a Demonstra�va e a do Alfabeto. O desenvolvimento da Arte trouxe consigo importantes novidades no vocabulário filosófico. Para o uso dos correla�vos (atos a�vos, passivos e cone�vos) Lúlio recorreu amiúde a desinências, tais como os sufixos – �vo/a, -bilio/a e –are. Embora esses sufixos exis�ssem no la�m e nas línguas romances, eram raramente usados, sobretudo do modo como o maiorquino os manipulava. Essa obscuridade da linguagem luliana era uma barreira importante para a compreensão e difusão da Arte e na atualidade supõe um desafio para os tradutores dos seus livros. Para alguns crí�cos, Ramon Llull se aproximava mais das estruturas linguís�cas do árabe do que da morfologia própria dos idiomas la�nos, o que incrementou a (má) fama de chris�anus arabicus que o perseguiria pelo resto da vida. Embora a Arte �vesse intrinsicamente um componente lógico, Lúlio não abandonou o cul�vo da lógica como disciplina per se. Já septuagenário, concebeu em Gênova a Lógica Nova (1303). Nela, além de tratar aspectos comuns desta área do conhecimento, como os silogismos e os universais, o pensador aprofunda na relação da lógica com as outras ciências, como a teologia, a medicina ou o direito. Dentro desta linha de lógica aplicada, um ano mais tarde, em 1304, escreve o Livro para provar alguns ar�gos da fé católica mediante razões silogís�cas. Filósofo Junto com a recepção da lógica aristotélica, o pensamento cristão do século XIII viu o ressurgimento de uma disciplina rela�vamente pouco pra�cada pelas gerações imediatamente anteriores: a filosofia. Quase todas as contribuições importantes do pensamento filosófico até então �nham se concentrado nas obras dos Padres da Igreja. Autores como Santo Agos�nho, São Jerônimo, Santo Ambrósio ou Santo Isidoro de Sevilha �nham feito um compêndio do conhecimento an�go adaptando-o aos dogmas da nova religião monoteísta, que a par�r do século IV se tornou a fé oficial do Império Romano e de boa parte dos reinos germânicos que o sucederam no Ocidente. Pra�camente todos esses autores es�veram influenciados, grosso modo, pela filosofia de Platão, mais concretamente pelo neoplatonismo de pensadores como Plo�no. Também compar�lhavam em boa medida o ideal ecumênico do estoicismo, o que se tornaria uma das marcas dis�n�vas da Igreja católica que, papa após papa e concílio após concílio, ia se consolidando paula�namente. Depois da literatura patrís�ca, e salvo contadas exceções (como o renascimento carolíngio, o qual produziu figuras tão eminentes como Alcuíno de York), a filosofia cristã limitou-se à repe�ção e comentário daquilo que fora escrito pelos Padres. A escassez material da Alta Idade Média, com a diminuição do comércio e da circulação dos metais preciosos para encunhar moedas, fez com que os utensílios de escrita fossem tremendamente caros. O pergaminho (extraído da pele do cordeiro) e os pigmentos corantes necessários para a confecção da �nta eram itens raros, a ponto de serem reservados para a reprodução de livros sacros, cujos textos únicos eram iluminados com primorosas miniaturas. Essa situação começou a mudar a par�r do século XII. Por um lado, a reabertura das rotas comerciais no Mediterrâneo permi�u um florescimento das cidades do Ocidente cristão como havia muito tempo não se via. De repente, afluíram para as urbes europeias todo �po de mercadorias do Oriente, até então quase desconhecidas: tecidos de seda tão finos que davam a sensação de estar trajando uma segunda pele, especiarias que disfarçavam o gosto podre de alimentos em mau estado e incrementavam a sensação de saciedade em quem as experimentava, escravos loiros provenientes de terras eslavas e traficadosno mercado de Constan�nopla, armas confeccionadas com aço leve e resistente, etc. Aliás, os cristãos aprenderam dos muçulmanos a arte de confeccionar papel, um suporte muito mais barato que o pergaminho, com o qual proliferaram os registros por escrito de contratos, balancetes contábeis e decretos pala�nos. Mas os sábios árabes transferiram aos cristãos um conhecimento mais perigoso, que punha em risco os alicerces da sociedade feudal. Estou me referindo à filosofia; e mais concretamente, à filosofia de raiz aristotélica. Culpado em parte por isso foi Al-Kindi, fundador do pensamento filosófico árabe (falasifa), que, ao contrário da patrís�ca cristã, bebia de uma fonte até então pouco comentada: Aristóteles, o pensador que se tornaria o Filósofo (em maiúscula) da Baixa Idade Média europeia. Cem anos depois de Córdoba ter perdido a condição de capital do califado de Al-Andalus, em pleno século XII, dois pensadores locais, um judeu e um muçulmano, mudariam o rumo da filosofia. O judeu chamava-se Moisés ibn Maimônides e era de profissão médico. O muçulmano era Ibn Roschd, porém no Ocidente seria mais conhecido pelo seu nome la�nizado: Averróis ou Averroes. Embora ambos �vessem nascido e crescido na mesma cidade e �vessem idades semelhantes, não temos nenhuma constância de eles terem se conhecido pessoalmente. Apesar de professarem religiões dis�ntas, os dois usavam a mesma língua em seus escritos: o árabe. Surpreende, portanto, que dois indivíduos tão brilhantes não man�vessem diálogo pessoal entre si, mais ainda morando na mesma cidade. Por vias paralelas e sem comunicação aparente, ao estudar a obra de Aristóteles em sua tradução ao árabe e media�zada pelos comentaristas muçulmanos, Maimônides e Averróis chegaram pra�camente à mesma conclusão, uma conclusão tão revolucionária que com certeza os levou à perplexidade. De fato, não é casualidade que Maimônides in�tulasse sua obra mais importante justamente como Guia dos perplexos, nem é coincidência que Averróis se opusesse às teses de Al-Gazali – quem, apesar do estudo da lógica aristotélica, defendia a supremacia da fé sobre a razão - com o seu livro A incoerência da incoerência. O que provocou tamanha surpresa nos dois cordobeses? Digamos que foi a descoberta de que havia uma contraposição entre a verdade apreendida dos textos sagrados e a verdade que surgia da mente humana racional. Para entender isso vamos ter que retroceder de novo ao tempo dos gregos, quando Aristóteles ensinava aos alunos do Liceu que o homem pode conhecer a realidade mediante os sen�dos. Parece algo óbvio, não? Pois no século IV a. C. esta tese ficava longe de ser uma unanimidade. A meta�sica aristotélica afasta-se diametralmente do realismo então predominante e prescinde do mundo das ideias defendido com inteligência e habilidade literária pelo seu mestre, Platão. A realidade que percebemos através dos sen�dos não é para Aristóteles uma mera sombra de um mundo superior e ideal, mas é a realidade em si mesma. Consequentemente, a mente humana pode e deve entender o mundo que a rodeia; e uma das chaves para alcançar a verdadeira ciência é a sistema�zação racional de todo o conhecimento acumulado pela humanidade. Em livros como Polí�ca ou Poé�ca Aristóteles dá uma aula magistral acerca da sistema�zação do saber, com o obje�vo não apenas erudito de acumular dados inconexos, mas sobretudo de entender a realidade em toda sua complexidade. Averróis irá além. Ao estudar Aristóteles, o sábio muçulmano chega à conclusão de que a verdade racional se justapõe à verdade dos ensinos religiosos, já que em muitos casos as duas verdades afirmam coisas diferentes, quando não totalmente opostas. Sendo assim, qual dessas duas verdades é superior? Averróis não será tão temerário como para entrar no mérito e preferirá ficar longe dessa disputa, especialmente num momento em que Al-Andalus foi invadido por duas seitas islâmicas que pregavam interpretações extremas do Alcorão: os almorávidas e os almóadas. Precisamente, existe um amplo consenso entre os historiadores em que essa involução do islamismo para posições religiosas mais faná�cas nos séculos XIII e XIV será um fator que abortará uma eventual revolução cien�fica no Islã. O germe da racionalidade e do espírito crí�co da falasifa será abafado pelos monges guerreiros que imporão a fé do Profeta a golpe de cimitarra. Entretanto, alguns seguidores cristãos de Averróis não hesitarão em quebrar essa barreira e promulgarão que a verdade da razão é superior à da fé. O averroísmo la�no fru�ficou na universidade de Paris no úl�mo terço do século XIII, muitos anos após a morte do filósofo andalusino. Siger de Brabante foi um de seus mais conspícuos preconizadores. A rápida propagação da tese da dupla verdade nos círculos acadêmicos alarmou as autoridades eclesiás�cas, que temeram que se espalhasse como outras tantas heresias e contaminasse os espíritos jovens e ingênuos. O bispo de Paris Estêvão Tempier perseguiu os averroístas e proibiu o ensino de suas teses na Sorbonne. Essas interdições serviram de pouco, já que, em praça pública ou nos cenáculos clandes�nos, os comentários de Averróis à obra de Aristóteles con�nuaram a ocupar um lugar de destaque nos debates filosóficos até bem entrado o século XIV. Ramon Llull ficou rela�vamente impermeável à recepção de Aristóteles no pensamento cristão do século XIII, apesar de ter sido um comentarista da obra de Al-Gazali. Como já expusemos, sua principal criação lógico- filosófica, a Arte, parte de princípios transcendentes: as Dignidades. Lúlio as interpreta como elementos intrínsecos da Divindade e, portanto, presentes, mesmo que imperfeitamente, no mundo sensível. A Arte, portanto, transcende tanto o realismo das ideias platônicas como o empirismo essencialista de Aristóteles. O conhecimento próprio ao ser humano é sempre parcial, seja o seu objeto Deus ou as criaturas. Por este mo�vo e de forma pouco acertada (ao meu ver), às vezes a filosofia luliana tem sido qualificada de neoplatônica. Todavia, Ramon Llull par�cipou a�vamente do debate acerca do averroísmo. Sua postura foi completamente contrária às teses da dupla verdade, pelo menos da maneira como eram defendidas pelos comentaristas de Averróis na universidade de Paris. Para Lúlio havia uma única verdade, à qual podia chegar-se por diferentes vias, como a fé, a iluminação divina ou o pensamento racional. O dogma, a mís�ca e o silogismo conduziam necessariamente às mesmas conclusões e a Arte luliana era uma mistura dessas três vias que a humanidade possuía para alcançar a verdade. Uma verdade que, para o fervoroso Llull, não podia ser outra que a do cris�anismo na versão católica. Em sua úl�ma estadia em Paris, Ramon Llull compôs uma dúzia de obras em que cri�cava sem piedade o averroísmo. Uma das mais extensas foi o Liber lamenta�ones Philosofiae seu De Duodecim principiis Philosofiae (1311), dedicada ao rei da França Filipe IV com o obje�vo nada dissimulado de ganhar o seu favor. Com esse posicionamento, porém, Lúlio tornou-se um dos adversários preferidos da nova geração de filósofos que ensinavam na Sorbonne, como Marsílio de Pádua e seu discípulo João de Jaldun, que defendiam a capa e espada a superioridade da razão sobre a fé. No âmbito da é�ca Lúlio também se manifesta como um autor original. A base do seu discurso é a doutrina da primeira e da segunda intenções, que dará �tulo ao Liber de prima et secunda inten�one (1274-83). Sob esses conceitos um tanto estranhos para o profano, Llull entende o Criador como “primeira intenção” e todos os seres criados, entre eles o homem, como “segunda intenção”. Do ponto de vista da é�ca, a intenção que deve reger sempre e em primeiro lugar é a intenção com a qual Deus decidiu-se a criar o universo: o Amor. As outras intenções são secundárias (recordemos ao leitor que na é�ca é necessário ordenar sempre as intenções). Por conseguinte, se algo for feito por outra intenção que não fosse essa “primeira” - a de Deus ao criar o universo - será sempre para qualquer criatura, seja homem ou coisa,uma “segunda intenção”. Como o homem foi criado para conhecer, amar e louvar a Deus, Lúlio entende que a religiosidade do ser humano deve seguir sempre a “primeira intenção”, exigindo para tal o máximo esforço do indivíduo, em corpo e alma. Daqui se extrai que o entendimento, a vontade, a memória e a afe�vidade, que fazem parte da natureza humana, devem estar totalmente implicadas em qualquer a�vidade do ser humano, incluindo a religião. A a�vidade religiosa, portanto, nunca deve seguir uma “segunda intenção”. Esta é�ca da “primeira intenção” está presente, de uma forma ou outra, em boa parte das obras luliana. Ramon Llull, desde os seus primeiros escritos, manifestou seu desejo de que o ser humano entendesse, na medida de suas forças, as Sagradas Escrituras e os dogmas da fé católica, porque para amar a Deus é preciso entender a sua Palavra. Como exprimirá de maneira poé�ca no Livro de amigo e de amado, a religião é para Llull, antes de tudo, “limpeza de pensamento”, o que na prá�ca supõe despojá-la de toda supers�ção e centrar-se em uma devoção fundamentada no conhecimento profundo. Esta necessidade de entender a Deus para conhecê-Lo melhor e assim tornar-se um melhor cristão norteará a obra filosófica de Ramon Llull até o fim de seus dias. Na úl�ma obra que conservamos dele, o Livro sobre Deus e o mundo, escrita em Túnis no final de 1315, insis�rá nesta questão com as seguintes palavras: “O homem existe principalmente para conhecer a Deus pelo entendimento e não para amar a Deus pela crença, e aquele que prefere ter mérito antes pelo crer que pelo entender prefere a si mesmo antes que a Deus, e faz de si mesmo um deus fantás�co. Na verdade, este deus fantás�co pode ser chamado de ídolo”. 7 TeóloGo A interdependência da filosofia com a teologia não foi uma preocupação tão somente de Raimundo Lúlio. Em maior ou menor medida, quase todos os pensadores cristãos dos séculos XIII e XIV abordaram essa questão. Provavelmente os que ob�veram maior sucesso na época foram Alberto Magno e seu discípulo Tomás de Aquino. O alemão e o italiano fizeram uma grande contribuição à história do pensamento ao tratar de compa�bilizar a filosofia aristotélica com a teologia cristã fazendo uso de um método novo de raciocínio, que logo será conhecido como escolás�ca. O suposto primordial da escolás�ca, que tem na Summa Teologica de Aquino sua pedra miliar, é que a única verdade é a revelada. No entanto, o pensamento lógico pode nos ajudar a decifrar seus mistérios e fazê-los mais compreensíveis ao homem. Mas sem que isso signifique, em caso algum, que a filosofia possa contradizer os dogmas da religião. Ao contrário, quando fazendo uso da filosofia é alcançada uma proposição contrária à fé, então é óbvio que o teólogo está seguindo a via errada. Embora nos seus começos o método de raciocínio de Alberto Magno e Tomás de Aquino ficasse sob suspeita - inclusive com proibições de seu ensino nas universidades -, por volta de 1280 a escolás�ca �nha virado a metodologia triunfante no meio acadêmico. Em breve, tornar-se-ia a filosofia por excelência da Igreja Católica, condição man�da até os nossos dias. Os dois sábios seriam canonizados após a morte e chegariam a ser proclamados Doutores da Igreja. Uma das razões que explica tamanho êxito foi o apoio irrestrito que a escolás�ca recebeu da ordem dos pregadores, da qual os dois santos fizeram parte. Devido ao predomínio das ordens mendicantes nos estudos gerais, esta aposta dos dominicanos pelo método escolás�co obteve uma legião de seguidores. Em sucessivas gerações, os escolás�cos aprimoraram seu es�lo, ganhando em su�leza e sofis�cação. Ramon Llull não foi nunca um escolás�co stricto sensu, nem na forma nem no conteúdo, já que não par�lhava da ideia de a verdade racional ser inferior à revelada. Para ele, a verdade era única e tanto fazia a via para a�ngi-la. À compreensão do Logos podia chegar-se através da hermenêu�ca das Sagradas Escrituras, mediante experiências mís�cas que levassem o espírito à transcendência ou pela simples observação atenta da natureza, porque tudo, no final das contas, para o Doutor Iluminado respondia ao Uno, isto é, à unidade do Ser. Também nas formas os textos de Lúlio diferem grandemente dos escolás�cos. Enquanto estes úl�mos davam grande importância ao argumento de autoridade, baseando muitas de suas afirmações em passagens bíblicas ou na cotação de textos de outros autores renomados (já fossem pensadores pagãos, muçulmanos, judeus ou cristãos), Ramon Llull foge do argumento de autoridade como da peste. O porquê disso encontra-se no uso instrumental que o maiorquino dava à sua Arte. Sua construção lógico-filosófica-teológica não servia apenas para os cristãos entenderem melhor os alicerces da sua fé, mas para convencer os descrentes da superioridade do cris�anismo. Para tal finalidade serviam de pouco os argumentos de autoridade, já que os infiéis, ao seguir uma tradição religiosa completamente diferente, não aceitavam a validade desses argumentos por si mesmos. Portanto, de pouco ou nada serviria recitar capítulos e versículos dos Evangelhos se os gen�os não reconheciam a priori a Boa Nova que Jesus ensinou e que os Apóstolos difundiram. Cumpria, então, buscar outro caminho, fundamentado na razão e nos elementos teológicos comuns a todas as grandes religiões. Somente assim as conversões tão almejadas poderiam ser conseguidas. Por este mesmo mo�vo a obra de Ramon Llull também se separa em grande medida da tradição escolás�ca. Enquanto os sábios das universidades empenhavam-se em usar um la�m refinado em seus textos, eliminando os barbarismos e vulgarismos tão próprios da Alta Idade Média, e procuravam uma linguagem rebuscada, só ao alcance de uma elite bem-educada, Lúlio não hesitava em escrever em romance catalão ou até mesmo em árabe, se com isso sua palavra chegava a uma massa que não �nha por que ser especialmente culta e menos ainda entender o la�m. Isso não significa, contudo, que os textos de Lúlio sejam de fácil leitura. A Ars Generalis Ul�ma (1307), derradeira versão da Arte que conservamos, foi escrita em la�m e é uma obra densa que exige do estudioso muitas horas de dedicação. Entretanto, o maiorquino buscou compaginar a erudição exigida nos grandes centros do pensamento ocidental com outros livros de cunho mais divulgador, que pudessem chegar a um público mais extenso. É por isso que a Arte impregna toda sua obra literária, inclusive os textos estritamente de ficção, já que neles Llull aproveita qualquer peripécia de seus personagens para �rar conclusões de índole filosófica ou moral. Com abundantes exemplos e provérbios, o autor dá lições inspiradas em sua Arte. Inclusive a estrutura de suas obras narra�vas tem por base aspectos religiosos, como as virtudes cardinais, os pecados capitais, os dez mandamentos, as cinco feridas de Cristo na cruz, entre outros elementos presentes na devoção cristã. Em certas questões doutrinais as proposições lulianas entravam em plena colisão com a escolás�ca. É o caso, entre outros, do dogma da Imaculada Conceição de Maria, que Ramon Llull defendeu quase seiscentos anos antes de ser proclamado solenemente pela Igreja católica. O maiorquino baseou sua defesa em que Maria deveria ter sido concebida sem o pecado original em virtude da teoria da “recriação”, que Llull extraíra a par�r de uma razão necessária. Contra esse dogma haviam opinado autores do máximo pres�gio, inclusive doutores da Igreja, como Alberto Magno o Tomás de Aquino, e nos séculos posteriores daria lugar a grandes disputas teológicas, sendo os franciscanos os principais defensores da Imaculada Conceição e os dominicanos seus detratores mais acérrimos. Finalmente, em 1854 o papa Pio IX proclamou Urbi et orbe o dogma da Imaculada Conceição de Maria, que se celebra todo dia 8 de dezembro, numa das fes�vidades mais importantes do calendário católico. Uma das obras que melhor exemplifica essa mistura de literatura, filosofia e teologia é o Livro do gen�o e dos três sábios. Nele, um homem sem nenhuma fé(o gen�o) vaga desesperado por um bosque. Sem encontrar sen�do à vida resolve se suicidar, mas muda de planos no úl�mo minuto quando aparece uma mulher que personifica a Inteligência. Esta lhe apresenta três sábios. Cada um deles professa uma religião dis�nta: o primeiro é judeu, o segundo cristão e o terceiro muçulmano. Usando argumentos lógicos os três sábios explicam ao gen�o os principais dogmas sobre os que sustentam suas crenças. Assim, além de outras questões, o sábio judeu demonstrará que Deus existe, que é Uno, que entregou a Lei a Moisés e que julgará a todos no dia do Juízo Final, condenando os maus ao inferno e premiando os bons com a glória eterna. Por sua vez, o sábio cristão encarregar-se-á de provar, entre outras coisas, que Deus é Uno e Trino ao mesmo tempo, a Encarnação de Deus em Jesus, nascido de Maria Virgem e que seria crucificado, morto e ressuscitado para a salvação da humanidade. O sábio muçulmano defenderá o Profeta Maomé como o úl�mo depositário da palavra de Deus, que tem no Alcorão sua escrita defini�va. Das diversas argumentações do livro, vou me centrar nos parágrafos seguintes na parte em que o cristão faz a demonstração do dogma da Trindade de maneira alegórica, a par�r das flores das árvores, as quais representam diversos princípios teológicos e filosóficos. A aproximação de Lúlio a esse problema – diante do qual muitos teólogos naufragaram – é extremamente original. Através de alguns trechos da edição brasileira do Livro do gen�o e dos três sábios, 8 tentarei resumir os pontos principais. O sábio cristão apresenta a prova da seguinte maneira: Para provar que há Trindade em Deus, colhemos primeiramente da primeira árvore esta flor de bondade e grandeza, pela qual provaremos que necessariamente convém, conforme as condições das cinco árvores, que Deus seja Trindade. Em seguida, provada a Trindade, provaremos três ar�gos, isto é, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e provaremos como estes três ar�gos são uma só essência, um só Deus. A prova da Trindade de Llull baseia-se em um elemento básico de sua Arte, que é a relação existente entre gerador, gerado e procedente. Ora, se em Deus há um bem gerador que seja infinita bondade, grandeza, eternidade, poder, sabedoria, amor e perfeição, que gera um bem infinito em bondade, grandeza, poder, sabedoria, amor e perfeição, e que do bem gerador e do bem gerado resulte um bem infinito em bondade, grandeza, poder, sabedoria, amor e perfeição, maior é a flor em Deus que não seria se em Deus não houvesse aquilo que acima foi dito. Porque cada um dos três acima ditos é, por todas as flores da árvore, tão bom e tão grande como seria a Trindade de Deus sem que ela não houvesse Trindade. E como, conforme as condições da árvore, a Deus convém ser conhecida a maior bondade, por isso é a Trindade, naquilo que acima foi dito, demonstrável. O gen�o ques�ona a argumentação do cristão, embora concorde com ele em que um Deus trino tenha maior bondade que um Deus com uma única pessoa. No entanto, pergunta se não seria melhor ainda que Deus �vesse quatro, cinco ou até infinitas pessoas. A esta ressalva o sábio opõe que a perfeição se obtém com um único gerador, gerado e procedente e que uma infinidade de geradores, gerados e procedentes levaria à imperfeição de Deus. E isso, por definição, é incorreto, já que Deus é perfeito. Respondeu o cristão: — Se em Deus conviesse haver mais de um gerador, de um gerado e de um procedente, o gerador não seria infinito em bondade, grandeza, eternidade, poder, sabedoria, amor e perfeição, porque não bastaria por si, enquanto gerador, para gerar em quem pudesse ser gerada uma infinita bondade, grandeza, poder, sabedoria, amor e perfeição; e nem este gerador, nem este gerado seriam capazes de dar a um procedente de ambos uma infinita bondade, grandeza, etc.; nem todos os geradores, gerados e procedentes que seriam em número infinito bastariam para exis�r perfeição de bondade, grandeza, eternidade, poder, etc. Porque um número infinito não pode ter perfeição, já que a mul�plicação em número infinito e a perfeição se desconvém. Ora, sendo isto assim, então, conforme a perfeição das flores, haveria imperfeição em Deus, e as flores seriam contrárias umas às outras, se em Deus houvesse infinitos geradores, gerados e procedentes. O gen�o não fica sa�sfeito com o raciocínio e insiste em que um número de quatro ou de cinco ou de mil pessoas pode conter maior bem que um número de três. A essa alegação retruca o cristão dizendo que ter mais de um gerador, gerado e procedente levaria à crença na existência de diversos deuses e, como já fora demonstrado pelo sábio judeu, “um só Deus basta para conter toda a bondade, grandeza, etc., que entre todos teriam, e ainda poderia ter mais do que entre todos poderiam ter”. Mesmo aceitando o monoteísmo, o gen�o não acaba de ver claro que sejam necessárias as três pessoas divinas dis�ntas, já que com uma única pessoa Deus poderia ser igualmente infinito em bondade, grandeza, etc. O sábio contesta essa crí�ca com as seguintes palavras: Respondeu o cristão: — Não é verdade, porque se em Deus não houvesse dis�ntas propriedades pessoais, não haveria obra pela qual fosse engendrado um bem infinito em grandeza, eternidade, etc., de um bem infinito em grandeza, eternidade, etc. E se em Deus não se originasse um bem infinito em grandeza, eternidade, etc., de um bem gerador infinito e de um bem infinito engendrado, ali não haveria as flores das árvores em perfeição, e a Trindade de Deus careceria desta obra acima dita; a qual obra é infinita em bondade, grandeza, etc.; e esta obra, e as três pessoas dis�ntas, tendo cada uma sua propriedade dis�nta, pessoal e infinita em bondade, grandeza, etc., são a própria Trindade divina, que é uma só essência e existe em Trindade de pessoas. E como o ser e uma obra tão gloriosa como é a obra acima dita se convém, e como a privação da obra acima mencionada se convém com o não-ser, e como o ser convém com maior nobreza onde houver obra boa do que onde não a houver; e como à essência de Deus convém ser dada e atribuída uma maior nobreza; por isso fica significado necessariamente que em Deus haja obra em Trindade. Porque se não a houvesse, haveria contrariedade nas flores da primeira árvore, e isto é impossível; pela qual impossibilidade a Trindade é demonstrável. Esta demonstração será aprofundada nas seguintes páginas do livro, ao longo das quais o sábio corrobora suas afirmações mediante combinações de folhas da árvore que representam as virtudes teologais e os pecados capitais. De cada combinação são extraíam conclusões lógicas que cer�ficam a veracidade dos postulados cristãos. Uma vez convencido de que a Trindade é uma caracterís�ca de Deus e que pode ser comprovada, o gen�o indaga sobre como transformar os conceitos lulianos de gerador, gerado e procedente no Pai, Filho e Espírito Santo. Ele não entende que se o Filho é criado pelo Pai, o primeiro possa ser tão eterno como o segundo. O sábio replica que a geração em Deus é diferente à das plantas ou dos animais: Há uma grande diferença entre a natureza criada e a incriada. E isto é porque a eternidade e a perfeição convém com a natureza incriada, o que não ocorre com a natureza criada. Por isso, a geração e a processão que há em Deus é diversa da geração e processão que há nas criaturas. Assim como a pedra, sendo pedra, não pode ser homem, assim o Filho de Deus e o Santo Espírito, tendo perfeição e eternidade, não podem ter começo nem fim, porque se o �vessem não teriam perfeição nem eternidade, as quais são sem princípio e fim”. Em consequência, “porque amando e entendendo o Pai divino a Si mesmo e à sua bondade, grandeza, eternidade, etc., é gerado o Filho, que é igual ao Pai em bondade, grandeza, eternidade, etc.” O gen�o parece medianamente convencido de que o Deus Filho procede do Deus Pai e, apesar de ter sido gerado por este úl�mo, mantém todas as infinitas dignidades. O que não acaba de entender é que o Espírito Santo proceda do Pai e do Filho.Para dar resposta, o cristão fundamenta seu discurso no conceito do procedente da Arte luliana: Porque conforme a perfeição divina convém com a bondade, a grandeza, a eternidade, etc., entendendo e amando o Pai a si mesmo e ao Filho que gera, e entendendo e amando o Filho ao Pai e a si mesmo, convém que de ambos proceda uma outra pessoa igual a eles em bondade, grandeza, eternidade, etc., e esta é o Santo Espírito de quem tu perguntas. E se do entendimento e amor do Pai e do Filho, e ainda da sua bondade, grandeza, eternidade, poder, perfeição não procedesse uma outra pessoa igual ao Pai e ao Filho em bondade, grandeza, eternidade, etc., haveria defeito no entendimento e na vontade do Pai e do Filho, o que é impossível. Nesse ponto, o gen�o faz um ques�onamento que ainda hoje é uma das bases teológicas do cisma entre a Igreja católica ocidental e a Igreja ortodoxa oriental. A pergunta em questão é: “Por que o Santo Espírito não procede de uma pessoa apenas, mas procede de ambas?” Embora sem querer, o gen�o acaba de referir-se à velha disputa do filioque, que foi tratada com profusão no segundo Concílio de Lyon (1272). A resposta que o cristão lhe dá segue a mais estrita ortodoxia católica: Respondeu o cristão: — Assim como o Pai e o Filho convém na mesma nobreza, assim também o Santo Espírito seria menos nobre se não procedesse de ambas as pessoas. De onde que, para que as flores da árvore convenham melhor com o Santo Espírito, convém que o Santo Espírito proceda do Pai e do Filho. Malgrado todos os esforços do sábio, o dogma da Trindade não resulta evidente por completo para o gen�o. Este não acaba de entender por que o Espírito Santo não procede de outra pessoa igual a si mesma ou por que o Filho não gera outra pessoa igual a si mesma. Sem perder a paciência, o sábio reitera os argumentos extraídos das flores da árvore: Todo o Filho é gerado de todo o Pai, e todo o Santo Espírito procede de todo o Pai e de todo o Filho. E se não fosse assim como tu perguntas, a totalidade acima dita não conviria com as flores da árvore, e seria perfeição contrária às flores, o que é impossível. Por esta impossibilidade se demonstra, na condição das flores, que a totalidade é assim como tu a perguntas. Mesmo assim, o assunto não fica claro para o gen�o, que volta a insis�r na necessidade da Trindade. “Não haveria perfeição em Deus sem ela? Duas pessoas não bastariam para tudo aquilo a que bastam três?”, pergunta de novo. O cristão abraça a existência das três dimensões nos seres como prova adicional da Trindade: Como o corpo que não poderia ser um sem ser comprido, largo e profundo, nem o comprimento, a largura e a profundidade poderiam estar juntos sem que o corpo fosse um. Ora, sendo uma realidade que nas criaturas convêm melhor os números um e três, por isso convém que em Deus, que tem um ser mais pleno do que o das criaturas, seu ser convenha com o um e com o três em número, porque se isto não ocorresse, seguir-se-ia que o ser e o número conviriam melhor na criatura do que em Deus, o que é impossível. Por esta impossibilidade fica demonstrado que em Deus convém haver uma Essência que seja em três pessoas, sem mais e sem menos. Porque se isto não fosse assim, não haveria concordância nas flores da primeira árvore, nem as suas condições poderiam ser conservadas. Finalmente, o abrumado gen�o, que ainda está digerindo o paralelismo entre a unidade e tridimensionalidade dos seres materiais com o Deus Uno e Trino, quer saber se somente os cristãos acreditam na Trindade ou se esta crença é comum entre os três sábios com os que debate. E o cristão respondeu e disse: — Os judeus e os sarracenos não entendem a Trindade que nós cremos, e pensam que nós cremos em outra Trindade na qual nós não cremos e que não existe em Deus. É por isso que nós não concordamos com eles, nem eles conosco. Mas se eles entendessem a Trindade que nós cremos haver em Deus, a força da razão, a concordância das flores da primeira árvore e as condições dela os moveria a conceber a verdade da santa Trindade de nosso Senhor Deus. Já foi apontado em diversas ocasiões que o Livro do gen�o e dos três sábios é uma obra muito avançada ao seu tempo. Embora Lúlio seja um crente cristão convicto, isso não é obstáculo para que possa dar voz à opinião discrepante de outras religiões. O tratamento dado aos que professam o judaísmo e o islamismo é de grande respeito, o que contraria essa visão limitada que às vezes temos da Idade Média, como uma era das trevas e do fana�smo. Não em vão o Livro do gen�o e dos três sábios tem sido qualificado como um precedente do moderno diálogo inter-religioso, baseado na vontade de aprender das crenças e da espiritualidade alheias, respeitando em todo momento as diferenças dogmá�cas de cada confissão. Lúlio deixa o final do livro “em aberto”, avançando-se em mais de setecentos anos à literatura pós-moderna. Quando o gen�o está prestes a comunicar por qual fé se decanta, “os três sábios responderam e disseram que como cada um deles pensava que o gen�o escolhera a sua lei, não queriam saber qual lei de fato escolhera”. Preferem ir embora antes de o gen�o comunicar sua decisão, pois assim poderão con�nuar discu�ndo entre eles, confiando em que por meio da razão chegarão à mesma conclusão. Aliás, já sós e antes de despedir-se, os três sábios pedem perdão uns aos outros por qualquer palavra que pudesse ter resultado ofensiva e fazem votos para que em um futuro não muito distante as três fés sejam uma só e acabem de uma vez por todas os conflitos e as guerras causadas pela religião. Vemos, pois, que o Livro do gen�o e dos três sábios é o avesso dos livros de apologia do cris�anismo usuais na Idade Média (e em tempos posteriores). Mas sua leitura pode nos levar à conclusão errada de que Ramon Llull era um rela�vista cultural. Não é assim. Lúlio não prega a igualdade de todas as religiões; está plenamente convencido da superioridade do cris�anismo. Porém, está ciente de que só mediante o diálogo e a convicção poderá conduzir os descrentes para o caminho da Salvação. E esse diálogo deve basear-se, antes de mais nada, em saber ouvir e respeitar as ideias do outro. O pensamento de Lúlio é certamente revolucionário e resulta fácil de entender que indivíduos imbuídos de fana�smo o acusassem de heterodoxo ou até mesmo de herege. Mas a Arte luliana não foi apenas uma construção teórica. Llull pôs em prá�ca seus postulados nas três viagens que fez à África (as quais serão tratadas no capítulo “Már�r”), cujo obje�vo era converter in situ os muçulmanos. Também sabemos que em 1294 recebeu do rei Carlos II de Nápoles autorização para pregar aos muçulmanos de Lucera, uma localidade desse reino próxima ao mar Adriá�co. Muito provavelmente na sua viagem a Chipre travou contato com teólogos de outras religiões, especialmente dos ramos orientais do cris�anismo, já fosse com ortodoxos gregos como com cristãos nestorianos e jacobitas, cujos dogmas principais são deba�dos na Disputa de cinco sábios (1294), escrita com anterioridade a esta viagem. Aliás, temos documentado que nos seus úl�mos anos de vida Frederico III animou Lúlio a disputar com sábios judeus na ilha da Sicília e que essas disputa�ones com efeito se realizaram, bem que seguindo os moldes dos debates medievais, ou seja, em praça pública e sob guarda armada. CieN�sta Temos que ir com cuidado com as palavras, pois às vezes na Idade Média �nham um significado completamente diferente do que lhes damos hoje. Como já vimos, Ars (Arte) englobava muito mais do que as a�vidades que perseguem um fim esté�co, para referir-se a ações pautadas por um método predeterminado (recta ra�o). A Ars la�na estava estreitamente emparentada com o termo grego techné, do qual germina a noção atual de técnica. A Arte luliana deve ser entendida em seu sen�do primigênio, isto é, uma técnica ou método. Sendo assim, o que Lúlio procurava estabelecer com a sua Arte era uma “ciência das ciências”, a qual con�nha todos os princípios básicos do saber. A par�r deles o ar�sta (hoje diríamoscien�sta) vai descendo aos ramos inferiores do conhecimento, que agrupamos em disciplinas ou matérias acadêmicas. Seguindo o seu método global para encontrar a verdade, o ar�sta vai descobrindo os pormenores de todos os âmbitos do saber. E esse método global devia estar ao alcance de todo mundo. Por isso a busca incessante por formas geométricas ou botânicas que ajudassem à recordação dos complexos silogismos. A imagem que autores posteriores têm nos transmi�do de um Ramon Llull nigromante ou alquimista não pode ser mais injusta a propósito de um homem que devotou a vida inteira a aperfeiçoar os mecanismos lógicos do pensamento e comunicar suas descobertas mediante desenhos, parábolas e exemplos de claro teor didá�co e mnemotécnico. Igualmente, a Scien�a (Ciência) diferia bastante do que atualmente consideramos como estritamente cien�fico. Para os pensadores medievais a ciência equivalia ao saber verdadeiro, com independência de esse conhecimento provir do exame da natureza, de processos da razão ou de revelações religiosas. Nesse sen�do, a Arte luliana perseguia a ciência, isto é, mediante a sua aplicação o ar�sta saberia dis�nguir entre proposições certas e falsas. Mas era ciência por si mesma? A questão é delicada. René Descartes, em seu Discurso do Método, censura que a Arte de Llull somente servisse para demonstrar aquilo que já conhecemos. Mas Descartes viveu no século XVII e Llull havia falecido trezentos anos antes. Aliás, o significado de ciência no mundo ocidental mudará por completo a par�r das contribuições cartesianas. Seguramente os contemporâneos do Doutor Iluminado nem podiam imaginar que a mente humana criaria no futuro algo como o método cien�fico, uma poderosa ferramenta conceptual que significou um ponto de inflexão na história do pensamento e que trouxe grandes progressos materiais para a humanidade. Entretanto, e em favor do lulismo, cumpre dizer que não está nada claro que a Arte fosse concebida por Llull para dar uma explicação lógica e coerente para toda a Criação. Muito pelo contrário, Lúlio entendia a sua Arte como um instrumento para provocar conversões e não como um fim em si mesmo. Não há provas que nos levem a pensar que o maiorquino abrigasse em seu foro ín�mo a crença de que o ser humano fosse capaz de entender tudo. Como bom crente, para Lúlio havia grandes espaços da realidade que ficariam para sempre longe do entendimento dos homens e cuja compreensão plena só estaria ao alcance do Ser Supremo. Ainda que Lúlio, fazendo um exercício de ucronia, �vesse vivido no século XVII e concordasse com Descartes na existência de uma mathesis universalis (conceito que o maiorquino provavelmente teria traduzido como Logos ou Ser), não tenho certeza de que par�lhasse do mesmo o�mismo do filósofo francês a propósito da capacidade humana para compreender à perfeição toda a realidade que nos rodeia. Durante toda sua vida intelectual Ramon Llull esbarrou com as limitações da linguagem humana. Nenhuma das tantas revisões que fez da Arte deixou-o sa�sfeito por completo. Sempre tentou depurá-la mais, à procura de uma linguagem perfeita que captasse até os mínimos detalhes a mensagem que Deus lhe transmi�ra numa breve visão mís�ca. Com isso, redação após redação, a Arte luliana foi ganhando em complexidade e sofis�cação, mas também a�ngia cotas cada vez mais altas de obscuridade, a ponto de se tornar quase ininteligível para os não iniciados. Como apenas conservamos manuscritos lulianos, não sabemos se era o próprio Lúlio quem redigia seus textos ou se preferia ditá-los aos escreventes. Seguramente esta segunda opção fosse a preferida pelo filósofo em seus úl�mos anos de vida, quando nem a vista nem as ar�culações dos dedos deviam permi�r longas sessões de escrita. Também temos constância de que optava pelo ditado quando queria garan�r que o texto es�vesse escrito no la�m mais pulcro possível. O complexo de inferioridade por não ter aprendido a língua de Cícero na escola o acompanharia até os seus momentos derradeiros. Os monges da cartuxa de Vauvert lhe serviram de escreventes nas estadias que ele fez em Paris. A eles ditou diversas obras des�nadas ao rei da França e outros membros da família real, bem como a sua autobiografia. Contudo, a escrita (como a linguagem em geral) foi matéria de reflexão de Lúlio, chegando a engenhar um método taquigráfico (Ars notatoria, 1274) para acelerar e simplificar a árdua tarefa de tomar notas. Esse tratado de taquigrafia demonstra que Lúlio também sen�a preocupação pelas disciplinas de caráter mais prá�co. Entendida como Scien�a, a Ars de Ramon Llull era filha de seu tempo e, portanto, estava imbuída das teorias sobre a natureza que circulavam no meio acadêmico. Já mostramos como a teoria dos quatro elementos (terra, fogo, água e ar) influenciaram nas primi�vas concepções da Arte. Muito provavelmente os colóquios de Lúlio com os professores de medicina do estudo geral de Montpellier �veram um grande papel nisso, já que os quatro elementos estavam presentes na configuração da matéria, mas também serviam para diagnos�car as doenças humanas e prescrever seus remédios. Como a astrologia ainda hoje pressupõe, cada um dos quatro elementos determinava um �po de caráter ou personalidade, do flegmá�co ao irascível. De modo parecido, a doutrina sobre os níveis do Ser, do mais baixo (os seres inanimados) ao Ser Supremo (Deus), também está presente na obra de Lúlio. No seu Livro da ascensão e descenso do entendimento (Liber de ascensu et descensu intelligecto, no original em la�m de 1305) o maiorquino entende o ato de conhecer quase como uma escadaria, em que os degraus estariam formados pelos minerais, os vegetais, os animais, os seres humanos, os corpos celestes, os anjos e a Divindade. Por meio do intelecto podemos subir ou descer degraus dentro da estrutura do Ser. Consequentemente, nem todas as disciplinas cien�ficas teriam, sob o olhar medieval, o mesmo rango. Não era a mesma coisa estudar as flores, por muito belas que sejam, do que entender os desígnios de Deus. Portanto, a teologia era superior à filosofia, a filosofia superior às ciências da natureza e as ciências da natureza superiores a disciplinas técnicas como a engenharia. Esta dis�nção não era original do Medievo, pois reproduzia as fontes da filosofia clássica, embora peneiradas pelo neoplatonismo da literatura patrís�ca. No entanto, toda a Criação, dos seres inanimados às leis que regem o movimento dos astros, é única. Deus criou o mundo como um reflexo de Si mesmo e através do estudo dessa realidade sensível podemos conhecer, embora de maneira parcial e imperfeita, a Deus em toda a Sua grandeza. Esta visão da Criação (ou do Ser ou do Logos) como uma unidade ajuda a explicar por que Ramon Llull estudou com tanto afinco disciplinas tão distantes e às vezes sem nenhuma aparente conexão. Mas a divisão do ser em diferentes escalas também tem os seus desdobramentos no âmbito da lógica. Para Lúlio - como para boa parte dos autores da tradição lógica ocidental -, os princípios estão “acima” das conclusões. Por conseguinte, os processos analí�cos supõem um descenso do intelecto, enquanto as sínteses sua ascensão. Dito de outro modo: a mente ascende do par�cular ao general e descende quando chega a uma conclusão concreta a par�r de um princípio geral. Neste sen�do, Pere Villalba recomenda ler o Livro da ascensão e descenso do intelecto juntamente com o Livro da significação (1304) e o Livro sobre a demonstração por equiparação (1305). Segundo este estudioso, as três obras formam uma boa introdução para entender a metodologia luliana. A preocupação por sinte�zar todo o saber disponível no seu tempo numa única obra está presente desde o início da carreira literária do Doutor Iluminado. A segunda (e mais extensa) obra que ele compôs, o Livro de contemplação em Deus, persegue justamente esse fim. Posteriormente, uma obra com um viés mais literário como é o Félix ou livro das maravilhas segue uma estrutura parecida, também inspirada na unidade do ser: Deus, anjos, céu, elementos, plantas,metais, bestas, homem, Paraíso e Inferno. Desses capítulos, o mais extenso é o dedicado ao homem, que ocupa mais da metade de todo o livro. Quase três décadas depois, Lúlio voltará a escrever uma vasta obra na qual procura oferecer uma visão sistemá�ca do conhecimento. Trata-se da Árvore da Ciência (1295). Segundo o que o próprio autor revela na introdução do livro, esta obra é a enésima tenta�va de tornar inteligível a Arte, à vista de que os contemporâneos teimavam em negar as virtudes que o Doutor Iluminado atribuía à sua principal criação intelectual. Mesmo que o �tulo faça referência a uma árvore, seria mais ajustado in�tulá-la de Bosque da Ciência, já que a exposição do saber está estruturada num total de dezesseis árvores, que misturam a escala do ser (tal como interpretada pela filosofia medieval) com os elementos estruturadores da Arte: árvore elementar, árvore vegetal, árvore sensual, árvore imagina�va, árvore humana, árvore moral, árvore imperial, árvore apostólica, árvore celes�al, árvore angelical, árvore sempiterna, árvore maternal, árvore de Jesus Cristo, árvore divina, árvore exemplificadora e árvore ques�onadora. Cada árvore, por sua vez, está dividida em sete partes: raiz, tronco, galhos, ramos, folhas, flores e frutos. Além disso, cada livro da Árvore da Ciência consta de nove princípios absolutos, equivalentes às Dignidades de Deus (bondade, magnitude, duração, poder, sabedoria, vontade, virtude, verdade e glória), e outros nove princípios rela�vos, também presentes nas figuras da Arte (diferença, concordância, contrariedade, princípio, meio, fim, maioridade, igualdade e minoridade). A cada árvore do Livro da Ciência corresponderia uma disciplina cien�fica diferente. Assim, a �sica encarregar-se-ia da árvore elementar, a botânica da vegetal, a biologia da sensual, as artes da imagina�va, a antropologia da humana, a é�ca da moral, a polí�ca da imperial, a eclesiás�ca da apostólica, a astrologia da celes�al, a angelologia da angelical, a escatologia da sempiterna, a mariologia da maternal, a cristologia de Cristo e a teologia da divina. Olhando para o catálogo de obras de Ramon Llull percebemos que o maiorquino dedicaria tratados específicos para muitas dessas matérias. Uma das questões mais interessantes na aproximação luliana à teoria do conhecimento é o papel principal que o maiorquino dá ao amor. Para ele o saber é a soma da sapiência, da amância e da memorância. Ou, dito de uma maneira mais atual: do saber, do amar e do recordar. Para Llull esses três elementos são fundamentais para um completo conhecimento das coisas. Chama a atenção a ênfase dada ao amor, que sem dúvida contrasta com as modernas doutrinas cien�ficas, que pelo geral prescindem absolutamente dele. Não podemos obliterar que Lúlio era um pensador cristão e que o cris�anismo é, acima de tudo, a religião do amor. A Criação do universo, incluindo a criação do homem (bem como a encarnação de Deus em Jesus e a paixão, morte e ressurreição do Messias), exprimiu o amor de Deus a todo o universo. Como corolário disso, há de dizer-se que, dentro das polêmicas teológicas de seu tempo, Lúlio colocou-se claramente a favor dos que afirmavam que Deus teria se encarnado em qualquer caso, mesmo se o homem não �vesse pecado. Sobre esta base cristã, Lúlio elabora a sua teoria do conhecimento incluindo o amor como um fator fundamental do saber. Com diz o Doutor Iluminado, não conhecemos de verdade aquilo que não amamos nem podemos amar de verdade aquilo que não conhecemos. Ao qual poderíamos acrescentar, mesmo que Lúlio não o �vesse dito nunca desse modo: e o esquecimento leva à ignorância e ao desamor. Esse é um enfoque em perfeita consonância com as Sagradas Escrituras, tal como São Paulo expôs aos corín�os: “E ainda que �vesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que �vesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não �vesse amor, nada seria” (1 Cor 13, 2). O amor como objeto de especulação intelectual está presente em diversas obras, embora talvez seja na Ars ama�va (1290) onde isso fique mais evidente. Como em toda a Ars luliana há uma mescla de lógica e mís�ca. O obje�vo do livro é a análise do amor ao bem, na linha do idealismo de Platão; só que Lúlio iden�fica o bem com Deus e isto conduz a que toda a argumentação lógica tenha como alicerce a teologia. De novo, a epistemologia da “mís�ca cien�fica”, isto é, a firme convicção de que a Verdade é una e que pode ser alcançada tanto pelos meios racionais da lógica quanto pelos mecanismos irracionais da fé, preside todo o pensamento do Doutor Iluminado, dando coerência à aparente contradição entre os termos Doutor (cien�sta) e Iluminado (mís�co). Ramon Llull dispôs-se a explicar todas essas coisas ao seu filho Domenge. Dele sabemos bastante pouco, já que raramente aparece nos textos do pai. Lúlio abandonou a família para centrar-se na vida ascé�ca e de pregação quando Domenge devia ter poucos anos de idade e nada indica que entre eles houvesse um relacionamento muito estreito. Era o caçula da família, porém o herdeiro da família Amat/Llull segundo o direito consuetudinário catalão. Sua irmã mais velha, Magdalena, casou-se com Pere de Sentmenat, membro de uma rica família de Maiorca, mas de Domenge não sabemos se permaneceu solteiro, se se casou ou se teve filhos. Ora porque Llull temia que seu filho somente es�vesse interessado em prazeres banais, ora porque considerava que devia transmi�r-lhe toda sua sabedoria de uma forma ordenada, o pensador redigiu um livro dedicado a ele. O resultado foi a Doutrina pueril (1274-76), uma obra cujo �tulo manifestava com todas as letras que estava dirigida à educação (doutrinamento) das crianças (pueris). Nesse livro Lúlio trata de transmi�r a seu filho tudo aquilo que considera indispensável para que seja um bom cristão, isto é, um homem ao mesmo tempo temoroso de Deus e com anelo de saber. Uma vez finalizada a obra, o autor enviou uma cópia a Pere Galceran, o procurador que administrava os bens de Llull durante suas longas ausências da ilha, com o fim de que a entregasse a Domenge para a sua instrução. Não temos constância de que o filho de Llull lesse o livro nem que dele extraísse as boas lições que o pai lhe �nha preparado. Muito provavelmente a Doutrina pueril dormiu o sonho dos justos, guardada em alguma gaveta ou prateleira da casa dos Llull na cidade de Maiorca. Não obstante, o pensador não desis�rá de transmi�r sua sabedoria ao descendente e para ele comporá outras obras de caráter didá�co, tais como a Árvore de filosofia desejada (1294). Mesmo em se tratando de um dos maiores cumes da pedagogia medieval, nada nos prova que a obra de Lúlio sur�sse os efeitos esperados. Domenge não seguiria os passos do pai. Inclusive, uma vez morto, não seria ele quem, como legí�mo herdeiro, preservasse seu legado. Será Pere de Sentmenat (o genro de Lúlio) a pessoa que mais empenho porá em Maiorca para a conservação dos seus escritos, organizando um acervo documental que, com o tempo, faria florescer uma sólida escola de lulís�ca na ilha. Além das obras em que Lúlio estudou a Scien�a em abstrato, estabelecendo pontes de comunicação com sua Arte, do ponto de vista filosófico e teológico, este autor nos deixou um bom número de obras dedicadas a disciplinas concretas do saber. No seu extenso catálogo encontramos monografias sobre medicina, direito (com especial consideração pelo direito natural), lógica, sistemas de eleição de pessoas, a predes�nação e o livre alvedrio, astronomia, geometria (como a quadratura e a triangulação do círculo, entre outras questões), retórica, meta�sica, etc. Mais polêmica, porém, resulta a contribuição de Lúlio às ciências aplicadas. Alguns autores têm visto nele um precursor da escola maiorquina de cartografia, que terá seu máximo esplendor cinquenta anos depois de sua morte, com a obra de Abraão e Jafuda Cresques. A influência luliana também é sen�da em invenções como o compasso ou o astrolábio, verdadeiras revoluções na arte de navegar, emboraseja complicado afirmar qual o papel que o Doutor Iluminado teve exatamente nestas descobertas. Universitário A relação de Ramon Llull com a universidade (ou com os estudos gerais, termo mais comum na Idade Média) foi um tanto problemá�ca. Quem �nha previsto isso de maneira preclara foi Raimundo de Penyafort, que, ao conhecer Lúlio pessoalmente, fez o possível para tolher-lhe a ideia de seguir estudos universitários. Penyafort estava ciente de que as ordens medicantes dominavam o mundo acadêmico no século XIII, mais concretamente nas disciplinas de teologia e filosofia, pelas quais o maiorquino mostrara maior inclinação. A carreira universitária corria em paralelo ao desenvolvimento espiritual dos clérigos e, na rígida ordem social do Medievo, era di�cil ser aceito em algum estudo geral sem ter adquirido pelo menos as ordens menores. “O hábito faz o monge”, diz o velho refrão castelhano. E naquela época o hábito também fazia o estudante. Apesar dessas dificuldades, Ramon Llull nunca desis�u do sonho de triunfar no meio acadêmico. Como vimos antes, ao regressar de suas peregrinações, acolheu de bom grado a dica de Penyafort e dedicou os dez anos seguintes a um re�ro centrado no estudo e na vida contempla�va em sua Maiorca natal. Após esse parêntese forma�vo, com quarenta anos de vida e no mínimo duas obras importantes escritas (o Livro de contemplação em Deus e a Lógica de Al-Gazali), nosso pensador sen�u-se suficientemente preparado para explicar suas descobertas ao mundo. A primeira universidade onde se deteve foi a de Montpellier. Nesta cidade do Sul da França o rei Jaime II de Maiorca �nha sua corte na maior parte do ano. Era um núcleo urbano buliçoso, com rico comércio e uma universidade que era referência no Ocidente pelos estudos de medicina. Lá é muito provável que Lúlio aprofundasse seu conhecimento das ciências naturais, inclusive da alquimia, uma disciplina que sempre detestou e contra a qual não poupou crí�cas. Também parece evidente que manteve contatos habituais com a comunidade judaica de Montpellier, que supomos que lhe ensinaria alguns rudimentos de hebraico e o iniciaria na cabala. De ser essa suposição certa, explicar-se-ia em boa medida algumas semelhanças existentes entre a Arte luliana e as disciplinas esotéricas judaicas. Além de completar sua formação, as diversas estadias em Montpellier lhe ajudaram na difusão de sua obra. Sabemos que o rei de Maiorca entregou cópias de diversas obras de Lúlio a franciscanos importantes. Estes, após sua leitura, apreciaram a dedicação do maiorquino e louvaram seus achados, facilitando a recepção do seu pensamento entre os frades menores. Mesmo com todo o barulho de suas ruas, lotadas de alunos à procura dos locais onde os mestres ministravam as aulas, o estudo geral de Montpellier deveu parecer a Llull uma peça de caça menor. O lugar onde se deba�am as questões verdadeiramente transcendentais ficava mais ao Norte, na universidade da Sorbonne, na capital do rei dos francos. Temos documentadas quatro visitas a Paris: 1287-89, 1297-1299, 1306 (a mais breve de todas) e a de 1309-11 (durante a qual ditou sua autobiografia aos monges de Vauvert). A primeira experiência parisiense (1287-89) foi frustrante. Lúlio chegou lá com a vontade de convencer todo mundo da u�lidade de sua Arte para converter os infiéis e achou as portas fechadas. Várias razões mo�varam esse rechaço. A primeira era que Lúlio não encaixava em absoluto na imagem �pica do estudante da Sorbonne. Era um homem maduro, que logo entraria na senectude, casado, com dois filhos, de família de origem mercan�l e que abandonara seus nobres cargos na corte para perseguir a quimera de uma iluminação divina. O rótulo de phantas�cus, ou seja, aloprado, caiu-lhe tal qual um sambenito. Nenhum dos dis�ntos professores da Sorbonne poderia, em seu são juízo, dar acolhimento às teses daquela figura esquisita, que ves�a quase como um mouro, mal falava la�m, luzia uma longa e descuidada barba (quando os religiosos �nham por costume barbear-se com esmero) e apresentava como demonstração de seu grande saber uma série de figuras lógicas que pouco ou nada �nham a ver com o pensamento cristão tradicional. Ramon Llull era, portanto, a olhos dos acadêmicos parisienses, o avesso radical de um de seus pares. Mas havia uma segunda causa para tal rejeição. Quando Lúlio compareceu na Sorbonne para defender sua Arte, os dominicanos já haviam apostado todas as fichas em seu cavalo ganhador: Tomás de Aquino. A escolás�ca concedia aos frades pregadores um arcabouço formal e doutrinal tão potente que se fechava em si mesmo, sem precisar de mais nada para defender suas teses. Os franciscanos opuseram-se à hegemonia do tomismo com uma epistemologia alterna�va, que dava um papel maior ao conhecimento empírico. Assim, seriam o inglês Roger Bacon e o escocês Duns Escoto os melhores representantes de uma filosofia franciscana, que, sem pôr em questão os dogmas religiosos, reivindicava maior ênfase à realidade que os humanos captam através dos sen�dos. Não está muito claro se Lúlio chegou a ter contato pessoal com esses pensadores franciscanos. Com quem seria mais provável que �vesse uma entrevista foi João Duns Escoto, já que este foi mestre em Paris entre 1302 e 1307, datas que coincidem com uma das quatro visitas do maiorquino à cidade do Sena. Inclusive, circula uma apócrifa Disputa�o entre Ramon Llull e Duns Escoto. No entanto, não temos provas fidedignas de que esse encontro chegasse a produzir-se. Fazendo um símil com a história da arte, a escolás�ca defendida pelos dominicanos vinha a ser algo assim como as catedrais gó�cas do pensamento. Com pilares sólidos e esbeltos, que suportavam os nervos que seguravam o teto e u�lizavam os arcobotantes para desviar o excesso de carga nos contrafortes exteriores, o es�lo (mal chamado de) gó�co a�ngiu cotas arquitetônicas impensáveis na Europa posterior à queda o Império Romano. Mediante esses avanços no cálculo de estruturas e desvio de pesos, os arquitetos da arte gó�ca permi�am a abertura de grandes vãos, os quais, decorados com preciosos vitrais, faziam entrar a luz do sol ao mesmo tempo em que mostravam coloridas cenas bíblicas. Sobre uma repe�ção de princípios arquitetônicos claramente definidos eram erigidas as portentosas catedrais, que ainda hoje causam estupor em quem as visita. Na sua busca pela maior glória de Deus, os arquitetos do es�lo gó�co fizeram inúmeras variações sobre as mesmas estruturas básicas. Com isso conseguiram fazer evoluir as técnicas constru�vas para modelos cada vez mais complexos, mas sem perder um ápice das caraterís�cas originárias dos seus princípios edifica�vos. Os franciscanos, entretanto, seriam melhor representados pelos afrescos de Gio�o. Nessas criações pictóricas a observação do mundo natural é tratada com preciosismo até nos mais mínimos detalhes, mostrando a beleza de uma Criação em que o ser humano coexiste num plano de igualdade com os outros seres. Nessas pinturas não fazia falta exagerar na grandiloquência. O mundo �sico é tão bonito que basta com representá-lo de maneira realista para causar o máximo impacto no observador. Era uma esté�ca, a franciscana, mais próxima do humanismo que estava prestes a eclodir na Europa dois séculos mais tarde. Nesta nova concepção da arte e do pensamento o ser humano irá ocupando paula�namente o lugar central que até então �nha sido exclusivo de Deus. E onde ficava a filosofia de Ramon Llull nesse debate? Pois bem, nem de um lado nem do outro. Como já vimos, a Arte luliana parte de pressupostos bem dis�ntos do tomismo, mas tampouco abraça o empirismo franciscano do século XIII. Sua Arte, curiosa mescla de lógica e de meta�sica, incomodava a gregos e troianos. Contudo, é certo que os franciscanos se mostraram muito mais à vontade com Lúlio do que os seus adversários da ordem dos pregadores. Esta luta entre lulistas (franciscanos) e an�lulistas (dominicanos) persis�ria por muitos séculos após a morte do maiorquino e seria causa de terríveis controvérsias filosóficase teológicas, especialmente em sua Maiorca natal. Mesmo assim, nesta primeira estadia em Paris Lúlio obteve alguns êxitos parciais. Bem no finalzinho, o chanceler Bertold de Saint-Denys autorizou uma leitura pública da Arte luliana, evento que provavelmente aconteceu durante a Quaresma de 1289, quando se celebravam as Quaes�ones quodlibetales. Entre os especialistas há dúvidas de se, graças a esta exposição perante os professores e alunos de Paris, Lúlio chegasse a ser considerado como um Magister Ar�um. A consecução desta categoria acadêmica, malgrado não ter frequentado os cursos regulares da universidade, suporia a convalidação de suas obras. Sem ela não era permi�do ensinar em público nas dependências da Sorbonne. Embora não conservemos nenhuma prova documental da outorga desta dignidade, sabemos que a par�r dessa data Ramon luziria orgulhoso seu �tulo de Magister em certos documentos. Mesmo assim, o sen�mento geral de fracasso superou alguns sucessos pontuais. Esta primeira viagem a Paris deixou um resultado muito abaixo das expecta�vas, o que encheu Ramon Llull de tristeza. Na sua volta a Montpellier compôs o Félix ou livro das maravilhas do mundo, uma obra que deveu servir-lhe para descarregar as tensões acumuladas e sistema�zar, mais uma vez, todo o aprendizado adquirido à beira do Sena. Mas Llull não desis�ria jamais de levar seu pensamento à principal universidade da Cristandade. Em virtude de sua constância e de uma possível aceitação acadêmica – embora fosse por conta do que hoje chamaríamos de honoris causa -, Lúlio conseguiu criar um pequeno grupo de seguidores que se interessou pelo estudo da Arte. Dentre eles havia um erudito que �nha triunfado nos círculos acadêmicos parisienses com sua obra De ocula morali. Seu autor, Pierre de la Cepère (também conhecido como Pedro de Limoges), havia reunido uma vasta biblioteca com mais de cem �tulos, entre eles várias obras de Lúlio. Outra figura importante que recebeu influência luliana foi Pietro Gradenigo, dux de Veneza entre 1288 e 1311, a quem o maiorquino enviou algumas obras, como sabemos graças à carta que as acompanhava. Veneza era um dos principais portos do Mediterrâneo e sua expansão comerciais pelas rotas que comunicavam a Europa com a Ásia faziam dela um enclave decisivo para qualquer projeto de cruzada. No entanto, o seu discípulo número um foi Tomás Le Myéser, que deveu conhecer durante a primeira viagem a Paris (1287-89). Le Myéser foi um dos ar�fices da persistência do lulismo após a morte de Llull. Era um pouco o contrário de seu mestre: educado desde bem novo para se tornar sacerdote e procedente de uma abastada família do norte da França, Tomás alcançaria elevadas dignidades eclesiás�cas, chegando a ser o vigário de Arras. Gosto de imaginar Lúlio e Le Myéser passeando juntos pelas vielas da Paris medieval, discu�ndo sobre o divino e o humano. Havia entre eles uma diferença de idade de mais de quarenta anos, mas isso não foi obstáculo para que a amizade fosse mutuamente benéfica. O jovem francês andava trajado conforme exigia sua alta linhagem e a ambição de ocupar cargos de destaque na corte. O maiorquino ves�a de maneira estrambó�ca, parecendo mais um santão sarraceno do que um pensador católico. Tomás deveu ficar admirado pela sabedoria de um mestre que, se nas conversas cara a cara mostrava a mesma prolixidade que nos seus escritos, �nha de ser por força um caso grave de loquacidade. Aliás, Ramon Llull, pelo fato de ter sido cortesão e casado, havia �do uma série de experiência de vida que o francês, como consequência dos votos de cas�dade, pobreza e obediência, nem �vera nem iria ter no futuro. Mas essa admiração devia ser uma via de mão dupla, já que certamente Lúlio devia professar inveja – pelo menos interna - para com aquele aluno que levava uma vida exemplar. Estudante aplicado, Tomás Le Myéser foi com muita probabilidade uma ajuda e tanto no aperfeiçoamento linguís�co dos textos la�nos de Lúlio, além de tê-lo ajudado a entender melhor as nuances das disputas polí�cas e intelectuais entre as igrejinhas que lutavam pela hegemonia na Sorbonne. Somente na quarta estadia em Paris (1309-11), um Raimundo Lúlio quase octogenário obteria permissão para ministrar aulas de sua Arte, em igualdade de condições com os professores que faziam parte do corpo docente da universidade. Ao parecer, a aprovação pública da obra luliana ocorreu em 10 de fevereiro de 1310, quando quarenta mestres e bacharéis em Artes e Medicina juraram que, por própria vontade e a requerimento do mestre Ramon Llull, catalão de Maiorca, escutaram a Arte por este inventada e asseguraram que era boa, ú�l e necessária e que não havia nada nela contrário à fé católica. Um ano mais tarde chegaria mais um reconhecimento, com a aprovação das suas obras por parte de Francisco Caroccioli, chanceler da universidade de Paris (1311). Um fato que pode ter ajudado à obtenção dessa licença foi a publicação dos textos an�averroístas. Com eles Lúlio se punha claramente do lado da ortodoxia parisiense, embora com essa a�tude se lavrasse o descontentamento das gerações mais jovens de filósofos. O averroísmo la�no �nha na universidade de Paris seu principal núcleo intelectual, em virtude do sucesso das teses de Siger de Brabante, expostas a par�r de 1267 e que logo provocaram todo �po de condenações teológicas. Figuras proeminentes da escolás�ca, como Alberto Magno e Tomás de Aquino lançaram severas crí�cas ao averroísmo, negando a sua compa�bilidade com a doutrina católica. Em 1270 o bispo Estevão Tempier tomou cartas no assunto e proibiu o ensino de treze teses averroístas na universidade de Paris. Mesmo assim, os seguidores do averroísmo la�no (cuja interpretação de Aristóteles às vezes �nha pouco ou nada a ver com os postulados defendidos pelo filósofo de Córdoba) não pararam de crescer, tornando-se uma dissidência a�va face à hegemonia da escolás�ca. Na virada do século XIII para o XIV, autores como Marsílio de Pádua, João de Jaldun ou Antonio de Parma estavam plenamente “de moda” nos círculos acadêmicos. Algumas das ideias propagadas por esses averroístas eram que o mundo é eterno, a universalidade do intelecto (isto é, todos os seres compar�lham um mesmo espírito) e inclusive a superioridade da razão sobre a fé. Para Lúlio esses postulados eram completamente errôneos e inaceitáveis e não poupará esforços para opor-se a eles. Este an�verroísmo militante será esgrimido em séculos posteriores como argumento contra a modernidade de Ramon Llull, situando este autor (de maneira injusta) do lado das posições mais reacionárias do pensamento de sua época. Apesar de todos os esforços, o lulismo tardaria muito a triunfar (se alguma vez o conseguiu) nos centros acadêmicos mais reputados. Mas isso não significa que sua filosofia não congregasse um grande número de seguidores nos séculos posteriores. Como veremos no capítulo “Inspirador”, Lúlio acabaria se tornando algo parecido ao filósofo oficial da Coroa de Aragão, com grande predicamento inclusive na época dos reis Habsburgo da Espanha (séculos XVI e XVII), mas nas principais universidades europeias con�nuaria a ser tratado como um ponto excêntrico fora da curva da história do pensamento universal. CruzadO Ramon Llull, como pessoa, foi gestado logo após uma cruzada. A ilha de Maiorca foi arrebatada dos muçulmanos manu militare e seus traços de iden�dade islâmica foram destruídos até apenas sobrarem alguns ves�gios. Apesar disso, a vida do pensador transcorreu numa época crepuscular do espírito cruzado. Se algo houve de glorioso nessas guerras de religião ficou circunscrito às três primeiras. A par�r da quarta, em que os venezianos aproveitaram as tropas la�nas para saquear Bizâncio esquecendo por completo de Terra Santa, a história das cruzadas é uma sucessão de derrotas militares, fiascos diplomá�cos e disputas internas. No século XIII as campanhas no Levante foram um con�nuo recuar dos reinos cristãos até sua completa expulsão da Pales�na com a queda de São João de Acre (1291). Enquanto Lúlio amadurecia,as cruzadas iam perdendo seu sen�do original e se tornaram uma moeda de troca para dirimir controvérsias entre os príncipes cristãos. Assim, a cruzada albigense foi no final das contas um pretexto para o rei da França apoderar-se dos territórios occitanos. A sexta cruzada, por sua vez, teve origem no confronto, ideológico e armado, entre o papa e o imperador. Gregório IX forçou Frederico II a rumar para Terra Santa, sob pena de ser excomungado. Para surpresa geral, o que os anteriores reis não �nham conseguido pela força das armas, Frederico II obteve pelos seus dotes diplomá�cos. Os mamelucos aceitaram de bom grado ceder ao imperador as cidades de Jerusalém, Belém e Nazaré, além do salvo-conduto para os peregrinos visitarem livremente os Santos Lugares. Esta foi uma vitória cristã em toda regra e sem derramar nem uma gota de sangue, porém não foi materializada. Gregório IX considerou totalmente inaceitável a recuperação de Terra Santa por vias estritamente pactuadas e ordenou rasgar o acordo de paz alcançado pelo imperador. Nenhuma das outras cruzadas posteriores a�ngiu seu obje�vo. Em 1269, o rei Jaime I de Aragão organizou sua própria expedição para conquistar Jerusalém. Antes de iniciar a longa travessia, a frota recalou em Maiorca. Alguns autores supõem que houve um encontro entre o rei e Ramon Llull, embora não conservemos nenhuma prova que o acredite. A cruzada foi um fracasso estrepitoso, já que uma forte tempestade afundou várias naves e obrigou a frota a retornar aos portos da Península Ibérica antes de avistarem a costa da Sicília. O fiasco dessa inicia�va consolidou a convicção que Llull já expressara no Livro de contemplação em Deus de que a dominação de Terra Santa não seria ob�da pela força das armas, mas à maneira como Jesus e os apóstolos a conquistaram, ou seja, “com amor e orações e espalhando lágrimas e sangue”. Pedro III de Aragão, filho de Jaime I o Conquistador e irmão de Jaime II de Maiorca, padeceu na sua própria carne os efeitos da cruzada. Por conta de sua intervenção no conflito siciliano (lembremos que o povo da Sicília �nha se sublevado contra o domínio dos Anjou, primos do rei da França, na Páscoa de 1282), o rei de Aragão acabou sentando-se no trono de Palermo, sob o aplauso do povo e dos nobres da ilha. Isso gerou uma forte inimizade com os franceses e com o papa, seu principal aliado na Itália. Este úl�mo excomungou Pedro III e benzeu uma cruzada para arrebatar-lhe a coroa. A guerra foi finalmente vencida pelo rei catalão, que expulsou o exército francês de seus territórios e infringiu severas derrotas à frota angevina. Malgrado esse panorama pouco mo�vador, Ramon Llull con�nuava a acreditar que uma das principais missões dos cristãos era recuperar os lugares em que Jesus pregou e arrebatá-los do controle dos infiéis. Entretanto, as técnicas que preconizava para alcançar tal fim se afastavam muito das cruzadas ao uso. Ciente do fracasso das operações militares, Lúlio opinava que a verdadeira e defini�va cruzada seria de raiz espiritual. Nem as lanças nem as catapultas fariam dos cristãos os donos da Pales�na, mas a conversão da população local à fé de Cristo. Perseguindo esse obje�vo, Llull dedicaria grandes esforços intelectuais e diplomá�cos. Num primeiro momento, ao cogitar como recuperar Terra Santa, o pensador focou na ação da ordem de tradutores e pregadores. Bastaria subs�tuir os exércitos cruzados por uma legião de monges bem treinados no uso da Arte e com suficiente domínio das línguas orientais para defender com convicção e bons argumentos lógicos a superioridade do cris�anismo. Neste sen�do, a proposta de Lúlio para retomar os Santos Lugares fundamentava-se numa “cruzada espiritual”, mediante a qual, os descrentes renunciariam de forma natural às suas falsas religiões e abraçariam de pleno coração a fé no Crucificado. Estas ideias foram encaminhadas ao Sumo Pon�fice em forma de duas solicitações formais: a primeira ao papa Celes�no V - Pe��o Raymundi pro conversione infidelium ad Coeles�num V papa (1294) - e a segunda ao seu sucessor - Pe��o Raymundi pro conversione infidelium ad Bonifa�um VIII papa (1295) -. As ideias de Ramon Llull eram, com certeza, muito avançadas para a época. Por isso, ainda hoje este autor é citado como um predecessor do moderno diálogo inter-religioso. Pregar a conversão pacífica dos que professam outra religião, em vez de quebrar-lhes o crânio por não par�lhar nossas mesmas crenças foi um grande progresso, especialmente em uma época tão dada à barbárie como a Idade Média. Não obstante, entre as teses luliana e o diálogo inter-religioso atual (nomeadamente nas suas versões pós-modernas) existe um abismo. Lúlio não foi em nenhum caso um rela�vista cultural. A sua aproximação às outras religiões jamais foi guiada por uma mera vontade erudita, nem pressupunha uma equidistância neutra diante dos diversos dogmas religiosos. Para Ramon Llull o cris�anismo, em sua modalidade católica, era a única religião verdadeira e podia ser demonstrada mediante o uso da razão. Se alguém pra�cava outra religião, isso somente podia ser devido à ignorância, já que, tão bom ponto lhe fosse apresentado o catolicismo de uma forma adequada, o infiel deveria reconhecer o erro e converter-se. Portanto, estudar e compreender a religião do outro era apenas uma estratégia para conhecer os pontos fracos de sua fé. Com isso, nas argumentações o ar�sta luliano poderia concentrar o seu poder de fogo naqueles aspectos mais débeis dos dogmas do oponente, pondo em evidência as bases falhas de suas crenças. Deste ponto de vista o diálogo inter-religioso dista enormemente de uma simples troca de experiências culturais que busca o mútuo enriquecimento. Bem ao contrário, o diálogo luliano persegue a conversão do outro; e consegui-lo ou não depende do adestramento recebido pelo ar�sta, nunca da veracidade dos dogmas cristãos, cuja superioridade Lúlio dá por certa. Esse diálogo luliano também significa uma superação das disputa�ones, que geralmente aconteciam na Semana Santa. Nesses debates públicos um teólogo cristão enfrentava suas teses às de um rabino judeu. Uma das disputa�ones mais famosas na época do Llull (e que temos bem documentada) foi a organizada em Barcelona em 1263 e que teve como protagonistas o frade dominicano Pau Cris�à i o rabino Moisés ben Nahman. Contudo, esses debates religiosos eram completamente desiguais e �nham mais de farsa do que de um diálogo franco e aberto. Rodeados por uma população que militava fervorosamente no cris�anismo, e assis�dos pelas tropas reais, o rabino não dispunha de muita margem de manobra para defender suas posições. Ao contrário, lhe convinha adotar uma postura defensiva, para, ao menos, evitar que a Sexta-Feira Santa (data em que se rememora a morte de Jesus) voltasse a servir de pretexto para a prá�ca de violência contra a minoria judaica. Lúlio percebeu com o tempo – e provavelmente como consequência das duas primeiras viagens à África e do périplo pelo Mediterrâneo oriental - que usando apenas os meios pacíficos e dialogados propostos inicialmente a sua cruzada espiritual nunca obteria novas adesões. Então compreendeu que havia outros fatores sociais e econômicos a serem levados em conta e que dificultavam a conversão dos infiéis. Teve inclusive oportunidade de comprovar pessoalmente como os poderosos faziam o possível para evitar o debate sobre os dogmas religiosos. Ora, o diálogo é sempre uma comunicação de mão dupla e, da mesma maneira que dois indivíduos não brigam se um deles não quer, é impossível que duas pessoas dialoguem entre si se uma se nega a conversar. Foi a par�r do Livro do Fim que Ramon Llull começa a cogitar um certo uso da força, sempre limitada e orientada a levar para a mesa de diálogo àqueles que preferiam ficar de boca fechada e ouvidos tampados. Nesta reformulação da “cruzada espiritual” con�da no Livro do Fim, Llull traça um plano completo que levaria os cristãos a recuperar Terra Santa. Para começar, todas as ordens militares deveriam unificar-se em uma só, superando assimas atávicas rivalidades entre templários e hospitalários. Esta nova agrupação de monges guerreiros, fruto da fusão das anteriores, seria chamada de Ordem do Espírito Santo, cujo mestre seria um Rex Bellator (rei guerreiro). O líder em questão da nova ordem militar deveria ser um príncipe que primasse tanto pelos dotes de cavaleiro quanto por irrepreensíveis princípios morais. Numa epístola encaminhada ao papa Nicolau IV em 1292 (portanto, anterior o Livro do Fim), o pensador esboça as caraterís�cas deste caudilho das hostes cristãs: “um rei valente e devoto, que não tenha mulher ou que quisesse renunciar a ela”. O projeto, todavia, frustrou-se com a morte do papa, ocorrida pouco depois da escrita da carta. O melhor candidato para conduzir as hostes cristãs era, segundo Llull, o Infante Jaime, primogênito de Jaime II de Aragão. Conhecido pela sua cas�dade e espiritualidade, o herdeiro da Casa de Barcelona reunia boa parte dos requisitos defendidos na obra luliana. Este rei guerreiro deveria aglu�nar todos os esforços numa ambiciosa empresa bélica, que começaria com a expulsão dos muçulmanos do sul da Península Ibérica, con�nuaria com a ocupação dos reinos sarracenos do norte da África e prosseguiria rumo a Leste, até a defini�va conquista da Pales�na. No entanto, o projeto de transformar um príncipe catalão no reanimador do espírito cruzado não sentou nada bem na corte de Paris. O máximo apologista do reino, Pierre Dubois, escreveu às pressas uma obra alterna�va ao Livro do Fim, in�tulada De Recupera�one Terrae Sanctae. Nela defendia a aparição de um Rex Pacis (rei da paz), em contraposição ao rei guerreiro de Llull. A figura mais indicada para ostentar o cargo de rei de toda a Cristandade era ninguém menos de Carlos de Valois, irmão do rei Felipe IV “o Belo”. A rota sugerida por Dubois era completamente oposta à de Llull: Carlos de Valois deveria atravessar a Europa toda até Constan�nopla, onde seria coroado imperador bizan�no. A con�nuação seguiria um caminho parecido ao da terceira cruzada, atravessando Anatólia e Síria até à cidade santa de Jerusalém. Ramon Llull tentou convencer o papa das bondades de suas teses e para isso entrevistou-se com Clemente V pouco antes de ser coroado em Lyon com a mitra papal, mas sem sucesso. Já fosse pela fama que Lúlio �nha adquirido de pensador “fantás�co”, já fosse pela ação da diplomacia francesa, as portas do Va�cano man�veram-se fechadas ao seu projeto do Rex Bellator. A derradeira tenta�va aconteceu no concílio ecumênico de Vienne, onde Llull teve a oportunidade de intercambiar opiniões sobre a cruzada com diversos prelados eclesiás�cos, porém sem obter respaldo algum. O único resultado prá�co do Livro do Fim foi servir de inspiração para a malfadada campanha militar dos reis Jaime II de Aragão e Afonso XI de Castela contra o reino muçulmano de Granada. Este era o úl�mo bas�ão sob domínio islâmico que sobrou na Península Ibérica desde meados do século XIII. A dinas�a nasrida reinou sobre as taifas que sobraram do Al- Andalus após as invasões cristãs que se sucederam à derrota na batalha das Navas de Tolosa. O plano idealizado para a defini�va expulsão dos reis muçulmanos da Hispânia consis�a em uma dupla ofensiva. As tropas castelhanas deviam avançar por terra pelo extremo ocidental do reino, com o obje�vo de conquistar Algeciras. Por sua vez, a frota catalã atacaria Almería, no outro extremo do reino nasrida. Dessa forma o reino de Granada ver-se-ia atacado pelos dois lados, diminuindo assim suas possibilidades de reagir. Não obstante, a guerra foi um desastre. O rei de Castela padeceu a deserção de seus nobres e as naves do rei de Aragão mostraram-se insuficientes para tomar a bem for�ficada praça de Almería. FundAdor Como temos visto, o principal obje�vo da vida de Llull, uma vez conver�do à piedade cristã, foi conseguir a conversão dos infiéis ao cris�anismo. Escrever “o melhor livro do mundo” era um requisito sine qua non, porém insuficiente, para tal propósito. Também havia de organizar uma ordem religiosa de monges que propagassem a Arte, com o intuito de obter por meio do diálogo e do raciocínio as tão aneladas conversões. Ao idealizar a sua ordem, Ramon espelhou nela suas melhores virtudes. Os membros dos cenáculos lulianos deveriam ser, para início de conversa, pessoas com grande anseio pelo conhecimento. Ademais, deveriam dedicar muitas horas de sua vida à leitura, interpretação e prá�ca da Arte. Todavia, esse estudo deveria ir acompanhado pela aprendizagem das línguas que falavam os que ainda não reconheciam a supremacia da Cruz. O árabe era, logicamente, a primeira delas, mas também o hebraico, o aramaico, o siríaco, o berbere e os idiomas dos povos das estepes asiá�cas, dos turcos aos mongóis; em todas essas línguas deveriam ser vazados os ensinamentos do Evangelho. Uma vez somado todo este conhecimento e munidos com os recursos da Arte, os monges lulianos par�riam para a missão conversora, abandonando suas terras de procedência e surcando os sete mares. Não havia obra humana mais importante do que a conversão, sem a qual a salvação de milhões de almas seria impossível. Nem sequer a vida dos monges tradutores podia ter mais importância do que a expansão da Boa Nova por todo o mundo. Llull era tudo isso que os seus monges deveriam ser: pensador, tradutor, missionário e até már�r (se era esse o desígnio da Providência). Mas essas qualidades não eram tão fáceis de achar entre os noviços, muitos deles ainda impúberes e sem meridiana ideia do que a vida poderia reservar- lhes. Tampouco o momento era dos mais oportunos para a fundação de uma nova ordem monás�ca. Depois da eclosão das ordens mendicantes nas duas primeiras décadas do século XIII, o papado examinou com pouco entusiasmo a autorização de novas ordens. Somente os carmelitas receberiam a bênção papal nos anos seguintes. E mesmo assim foram obrigados a usar a regra de Santo Agos�nho, redigida quase novecentos anos antes e que nunca �nha sido u�lizada. A época de Lúlio foi mais um tempo de eliminação de ordens regulares (como ocorreu com os templários) do que de incorporação de novas. Contudo, a teimosia de Ramon Llull rendeu-lhe bons frutos. As gestões pra�cadas no Va�cano levaram à aceitação papal da ordem de monges tradutores. 9 Uma bula de João XXI, datada no dia 17 de outubro de 1276, autorizou a fundação de Miramar. Para o financiamento da empresa, o fundador contou com o apoio de Jaime II de Maiorca, quem lhe garan�u quinhentos florins anuais, o que era uma soma nada desprezível. 10 Os hierarcas franciscanos receberam de bom grado a inicia�va luliana, já que contou com o apoio explícito do ministro provincial da ordem dos frades menores na Coroa de Aragão e do próprio Girolamo d’Ascoli, então ministro geral dos franciscanos - que com o tempo iria se tornar o papa Nicolau IV -. O convento franciscano da ilha “cedeu” treze noviços que interromperam sua formação como frades menores para alistar-se à nova ordem de tradutores. Como já foi mencionado, o local escolhido para pôr a pedra fundacional da primeira casa dos monges lulianos foi Miramar, uma propriedade agrícola na Serra de Tramontana, ao Norte da ilha, entre os municípios de Valldemossa e Deià. Ramon Llull obteve Miramar em troca de uma alcaria (espécie de fazenda que incluía um pequeno povoado) que sua família possuía perto do mosteiro de La Real. Entre as montanhas e o mar, numa íngreme encosta com solo pouco apto para a agricultura e frequentada por cabras e outros animais silvestres, Miramar era um lugar idôneo para o re�ro espiritual. Entretanto, contrariando os planos do Doutor Iluminado, este cenáculo montanhês não deu início a um novo movimento religioso. Dez anos depois de sua fundação o mosteiro deixou de funcionar. As construções que se edificaram para dar abrigo aos noviços foram ruindo aos poucos. Ficaram nessa lamentável situação até o final do século XIX, quando um membro da família real austríaca, o arquiduque Luís Salvador de Habsburgo, durante seu “autoexílio”em Maiorca, comprou a possessió e mandou reconstruir o eremitério. Hoje em dia, os herdeiros de Miramar conservam com carinho a memória de Ramon Llull, reproduzindo no solo as figuras principais de sua Arte e ministrando cursos que divulgam o seu legado. Desconhecemos as causas do fracasso de Miramar. Provavelmente, os obje�vos dessa criação eram muito superiores aos recursos disponíveis. Como era habitual nele, Raimundo Lúlio olhava para muito longe e pensava grande, mas essas intenções raramente desciam ao terreno dos detalhes co�dianos. Provavelmente, com sua facilidade para deixar voar a imaginação, sua voracidade leitora e sua grafomania (a produção literária de Lúlio es�ma-se em mais de vinte mil páginas), não devia sobrar muito tempo para as questões mais prosaicas, tais como a intendência do mosteiro, a formação dos monges, o suporte espiritual àqueles que duvidavam de sua fé, a resolução dos conflitos normais em qualquer local de convivência, etc. O Doctor Phantas�cus com certeza preferia mergulhar em seus altos pensamentos antes que se preocupar por afazeres menos elevados. E a consolidação do embrionário mosteiro de Miramar não foi um projeto suficiente animador como para ancorá-lo em Maiorca. Pelo contrário, não me estranharia que a ro�na de Miramar o empurrasse a empreender novas e emocionantes viagens, mesmo que somente fosse para fugir de uma realidade monás�ca que seguramente o entediava. Ainda que em sua autobiografia o fundador não faça menção ao fim que Miramar teve, sabemos por fontes de arquivo que no dia 19 de março de 1301 Jaime II de Maiorca decretou a cessão do imóvel ao abade de La Real. É mais que provável que essa decisão fosse tomada pelo rei muitos meses (ou anos) depois de Miramar ter se transformado em uma triste ruína. Mesmo que essa primeira fundação fosse um fracasso, Llull não desis�u jamais do projeto. Uma vez e outra seria apresentada a ordem dos monges tradutores, já fosse em sua produção bibliográfica, em visitas às cortes reais ou durante parlamentos com autoridades eclesiás�cas. O maiorquino sempre teve muito claro que uso da força não bastava para recuperar Terra Santa. A cruzada deveria ser espiritual (e, por conseguinte, conduzida por religiosos hábeis no uso da Arte) ou não alcançaria jamais a conversão dos infiéis. A úl�ma grande oportunidade de expor suas ideias sobre a cruzada, o papel que nela jogariam os monges lulianos e, no geral, acerca da reforma que deveria ser empreendida na Igreja para voltar às épocas de esplendor, apresentou-se com o concílio ecumênico de Vienne. Esse �po de concílios era muito raro, já que o Papa apenas os convoca para tratar de assuntos doutrinais profundos. Ramon Llull encaminhou seus passos rumo a Vienne do Delfinado, novamente com a esperança de convencer o Pon�fice da necessidade de construir vários mosteiros seguindo o modelo de Miramar. Porém, essa questão não constou na pauta conciliar. Clemente V �nha outros assuntos mais prioritários para discu�r, como a dissolução da ordem do Templo ou a perseguição dos franciscanos espirituais. O papa gascão sabia perfeitamente que se ostentava o sólio pon��cio isso era devido em boa medida à ação diplomá�ca de Filipe IV, o mesmo rei da França que em 1307 mandara arrestar todos os cavaleiros templários de seu reino. Embora abrigasse sérias dúvidas sobre as confissões que os oficiais franceses lhes arrancaram, amiúde após longas e terríveis sessões de tortura, Clemente V �nha bem claro que não queria seguir os passos de seu antecessor, o malogrado Bonifácio VIII, expulso do poder a mãos dos sequazes de Filipe IV. O poder do rei da França era tão grande nessa altura do século e, ao mesmo tempo, a situação de Roma tão confli�va por culpa dos con�nuos confrontos entre as famílias nobiliárquicas, que o papa acabaria por tomar uma decisão inédita: mudar a Santa Sé da an�ga capital do império romano à pacata Avignon. Esta cidade, localizada perto da foz do Ródano, estava rodeada de territórios controlados por Filipe IV, mas fazia parte do Patrimônio de São Pedro. Com isso o papa matava dois coelhos de uma cajadada só: ficava sob o abrigo do Rei Cris�aníssimo, porém sem ter que sair dos territórios papais e mantendo a sua autonomia sobre as questões temporais. Junto com a ex�nção da ordem do Templo, no concílio de Vienne também se tomaram duras medidas contra outros suspeitos de heresia. Os begardos e beguinas, cristãos laicos que viviam sua fé de maneira sui generis, foram lembrados de que fora da Igreja não existe salvação possível (ex Ecclesia nulla salus) e suas prá�cas condenadas. Também alguns pensadores da linha espiritual dos franciscanos (os fra�celli) foram cominados a prosseguir pelo caminho da ortodoxia se não queriam ver suas obras censuradas. O único êxito rela�vo que Llull obteve em Vienne foi conseguir que nas atas conciliares se deixasse constância por escrito da necessidade de inaugurar centros de ensino de idiomas orientais nas principais universidades. Era um resultado modesto e muito distante da grande ordem de missionários por ele concebida. Mas, no final das contas, era uma medida baseada nos mesmos ideais defendidos por Llull. Contudo, pra�camente nenhum centro de idiomas foi inaugurado nas décadas posteriores e essa medida conciliar ficou no papel. A formação teológica con�nuaria a ser basicamente em la�m, com algumas pequenas incursões no grego. Os pensadores cristãos permaneceriam de costas viradas para com as línguas orientais por um longo espaço de tempo. Outro pequeno triunfo de Llull foi a promulgação da bula Redemptor noster, que estabelecia a cobrança de um dízimo específico para sufragar a nova cruzada. Aliás, com a proclamação da ordem do Hospital de São João como legí�ma sucessora da ordem do Templo verificava-se uma velha aspiração luliana: a de unificar todas as ordens militares em uma só. Com recursos para o financiamento da campanha bélica e sem as rivalidades que haviam enturvado as relações entre os monges guerreiros, só faltava que um Rex Bellator tomasse as rédeas do exército cristão e o conduzisse à luta contra os descrentes. Todavia, essa cruzada derradeira seguindo a car�lha do Livro do Fim não se materializaria nunca. Os dízimos, quando angariados, teriam usos bastante diferentes dos previstos por Llull. Contudo, essa viagem a Vienne do Delfinado nos deixou um prazeroso texto literário, in�tulado Fantás�co. Emparentado com o poema autobiográfico Desconhort (1295), o Fantás�co (cujo �tulo original é Disputa�o Petri clerici et Raymundi phantas�ci, 1311) é um diálogo imaginário entre Raimundo Lúlio e um eclesiás�co de nome Pedro, ambos a caminho do concílio. No entanto, os mo�vos que levam os dois homens para o Delfinado não podem ser mais opostos. Enquanto Lúlio quer aproveitar a oportunidade para convencer o papa e os prelados da necessidade de fundar uma nova ordem de tradutores, o seu interlocutor não procura outra coisa que sa�sfazer as ambições econômicas e de honras eclesiás�cas de sua família. Como é de se imaginar, essas visões tão contrárias provocam um duro debate. Nos versos do Fantás�co, Ramon Llull, além de fazer um resumo apologé�co de sua vida e obra, põe bem claramente, preto sobre branco, os vícios em que incorriam muitos membros da Igreja. Evidenciando esses defeitos, o autor pretendia ganhar adeptos à sua causa em prol da reforma das estruturas da Igreja católica, já que, infelizmente, alguns de seus ministros haviam se afastado da mensagem salvadora do Evangelho. InDivíduo Uma das coisas que mais chama a atenção a respeito da modernidade de Lúlio é o papel que o Eu teve em sua produção literária. No geral, os autores medievais eram muito pudorosos em relação às suas vivências pessoais e raramente vazavam em seus textos questões ín�mas, salvo nos casos de exposições públicas de pecados. Neste sen�do, Santo Agos�nho traçou em suas Confissões um modelo que serviria quase de gênero literário para autores posteriores. Esta influência do bispo de Hipona manifesta-se claramente nos textosautobiográficos de Ramon Llull. Neles, o maiorquino, de maneira parecida à de Santo Agos�nho, remarca seus pecados de juventude, talvez para destacar o contraste com sua vida piedosa posterior. Já na primeira obra extensa, o Livro de contemplação em Deus, descreve a si mesmo com as seguintes palavras: “tanto o pecado e a loucura têm me enfraquecido e empequenecido e me feito mesquinho que em mim não há lugar para que nenhuma sabedoria pudesse entrar nem caber”. Entretanto, na minha opinião, as obras autobiográficas deste autor transcendem o marco meramente espiritual e abordam a questão do indivíduo de maneira muito mais moderna. Embora às vezes possa dar a sensação de o discurso luliano ter sempre um quê de moralidade, ao destampar suas vivências mais ín�mas, Ramon Llull vai um passo além do discurso meramente exemplificador. O ser humano, com todas as suas contraditórias emoções, é um objeto de estudo para o maiorquino. Uma das vias que ele tem para aprofundar na compreensão do homem é precisamente debruçar-se nas suas próprias emoções. Por outra parte, a sua origem social também deveu influir nessa percepção do Eu. Como sabemos, a família Amat (apelidada de Llull) procedia do estamento dos comerciantes, ainda que �vesse ascendido recentemente a uma categoria próxima à dos cavaleiros. Também sabemos, graças aos estudos de história social, que na Baixa Idade Média as classes burguesas (comerciantes, artesãos e professionais liberais) �veram um papel chave na erosão da ordem feudal. As cidades que habitavam supunham uma excepcionalidade dentro do imutável status dos bellatores, oratores e laboratores. Esse desafio à ordem estabelecida ficou bem palpável na literatura do século XIV (Boccaccio, Chaucer, Hita, etc.) e uma das caracterís�cas mais evidentes é a promoção do indivíduo, cujas ações nem sempre são justas nem edificantes. Foi Ramon Llull um precursor desta nova abordagem do Eu? Mais ou menos. O subje�vismo luliano é filho de seu tempo e está in�mamente ligado à nova espiritualidade gerada e transmi�da pelas ordens medicantes. Sobretudo a dos franciscanos, que romperam com a estrita compar�mentação da sociedade feudal, atendendo às necessidades das emergentes cidades. Sua preocupação pela situação dos pobres, dos doentes, dos idosos e dos órfãos veio acompanhada de um novo discurso de amor, que emanava das fontes do Evangelho, mas que também transmi�a uma conexão do homem com a natureza. Francisco de Assis foi um exemplo disso. Contrariando as disposições de sua família, que o educara para fazer dele um cavaleiro galhardo e abastado, Francisco negou-se a aceitar o papel que a ordem social lhe havia des�nado. Largou riquezas e honrarias e, em uma manifestação máxima de autonomia do Eu, resolveu orientar sua vida na procura da imitação de Cristo. Algo semelhante faria Lúlio anos mais tarde e, como o próprio autor reconhece em seus textos autobiográficos, o relato da vida do poverello de Assis marcou-o decisivamente. Portanto, à influência literária da obra de Santo Agos�nho, Lúlio contrapõe as narrações da vida de São Francisco de Assis, que São Boaventura se encarregaria de compilar por escrito. A individualidade de Llull exprime-se de maneiras muito diversas. Uma delas foi a sua prá�ca do cris�anismo. Mesmo estando muito próximos de franciscanos e dominicanos, o maiorquino não engrossou suas fileiras. Em sua autobiografia reconhecerá que sua conversão foi “à penitência”, o que o torna um dos pioneiros da prá�ca laica da religiosidade católica. Pode-se argumentar que pelo fato de ele ser casado e com filhos, seu perfil não encaixava totalmente no noviciado ao uso. Todavia, não podemos esquecer que as ordens mendicantes previram a incorporação de laicos às suas estruturas. O caso dos franciscanos é talvez o mais claro, já que exis�a uma ordem (a Terceira) pensada especificamente para eles. Inclusive, segundo a tradição, Ramon Llull foi sepultado no convento de São Francisco da cidade de Maiorca ves�ndo o hábito da ordem Terceira. Também em sua relação com Deus Lúlio exala individualidade. A crise que teve em Gênova e que o impediu de embarcar rumo à África para converter os muçulmanos provocou-lhe uma longa convalescência. Durante a mesma, Lúlio teve uma visão em que Deus lhe indicava que devia ves�r o hábito da ordem dos pregadores se queria que sua alma se salvasse. Sendo que os dominicanos �nham mostrado pouco interesse pela Arte, Lúlio percebe que a aceitação da regra dos frades de São Domingos faria com que sua obra se perdesse para sempre. Entretanto, os franciscanos já �nham aprovado o ensino da Arte em seus centros. Portanto, o maiorquino deve escolher entre a salvação da alma e a salvação de sua obra intelectual. E, surpreendentemente, resolve não seguir o mandado de Deus e renuncia a se incorporar à ordem dos pregadores. Em sua valente oposição aos desígnios divinos, Ramon Llull aceita que sua alma queime eternamente no inferno antes que se arriscar a perder todo o trabalho feito. Essa decisão, um tanto inesperada em se tratando de um cristão pra�cante, ele mesmo a explica afirmando que o maior bem que poderia fazer para a glória de Deus seria o ensino da Arte, a qual conduziria à conversão e salvação de todos os povos gen�os. Estamos à par desse episódio graças ao principal texto autobiográfico de Llull, a Vida Coetânea, que foi ditada aos monges de Vauvert durante sua úl�ma estadia em Paris. Um Ramon idoso, que já �nha cumprido os oitenta anos, passa a limpo sua vida. O local escolhido para esta revisão vital não podia ser mais indicado. Dentro do tumulto da corte do rei da França, o mosteiro de Vauvert era um remanso de paz. Erigido no espaço que hoje ocupam os jardins de Luxemburgo, Vauvert era um cenáculo de monges cartuxos. De todas as ordens monás�cas que foram surgindo seguindo a estela de São Bento de Núrsia, a Cartuxa era sem dúvida uma das mais rigorosas. Um voto de silêncio absoluto era imposto aos seus membros, a ponto de não poder ultrapassar um determinado número de palavras por dia. Quando um cartuxo cruzava com outro pelos corredores do mosteiro o único cumprimento que lhe era permi�do proferir era: “Irmão, recorda que hás de morrer”. Nesse entorno de austeridade e rigor máximos, Ramon Llull deveu ter uma experiência homologável às sessões de psicoterapia, mais de quinhentos antes do nascimento de Sigmund Freud. Envolvido pelo silêncio sepulcral dos cartuxos e sabendo-se livre de interrupções ou julgamentos alheios, no ditado de suas memórias em Vauvert Ramon Llull libertou boa parte das opiniões, pensamentos e lembranças que guardara por décadas dentro de si. O resultado foi um documento rela�vamente breve, mas que condensa em poucas páginas os fatos mais relevantes da sua vida. Além da Vida Coetânea, conservamos outros dois textos autobiográficos de Lúlio: o Canto de Ramon (1300) e o Desconhort (Desconsolo). No primeiro destes poemas, Ramon Llull faz uma relação de sua conversão, experiências mís�cas e redação da Arte, bem como da fundação do mosteiro de Miramar com o intuito de contribuir à conversão de sarracenos, tártaros e judeus. O Canto de Ramon, porém, não é um escrito autolaudatório. Muito pelo contrário, nele Llull reconhece o fracasso de sua obra, com versos como estes: “Sou homem velho, pobre, desprezado / não tenho ajuda de homem nascido” ou “sou pouco conhecido e amado”. 11 Desconsolo também segue a mesma tendência, sob o influxo da lírica trovadoresca, que o autor pra�cara em seus anos moços. O tom e a temá�ca são muito parecidos com os do Canto de Ramon. O poema começa com um Ramon Llull envelhecido e cansado, que, após trinta anos de tentar sem sucesso difundir sua Arte, se interroga pelo mo�vo de tal fracasso. Já na primeira estrofe do Desconsolo, o autor se encomenda a Deus, seu único amigo, posto que não existe ninguém no mundo que possa confortá-lo. Nas estrofes seguintes, Ramon mantém um diálogo com um ermitão, que inicialmente ques�ona a bondade de sua obra. O debate sobre a Arte passa por alguns momentos tensos, mas finalmenteo ermitão louvará o trabalho feito e incen�vará Lúlio a não abandonar a missão que Deus lhe encarregara. Assim, Ramon Llull chega ao desfecho do poema pondo nos lábios do ermitão os seguintes versos: 12 Oh, Deus humilde, piedoso! Por mercê vos peço Que convosco esteja Ramon, tanto que o guardeis de dano. A vós, Deus poderoso, meu amigo Ramon encomendo; E que ao mundo envieis homens que tenham talante Para morrer por vosso amor, e que vajam mostrando A verdade da fé, pelo mundo predicando, Segundo o que Ramon já tem começado. Entretanto, o Livro de Evast e Blanquerna, sem ser uma autobiografia, está claramente inspirado na vida do autor. O protagonista desta obra, Blanquerna (ou Blaquerna, sem o primeiro n, segundo algumas edições), é uma espécie de alter ego idealizado de Ramon Llull. Ao narrar as peripécias de Blanquerna, quiçá sem querer, o autor nos conta a vida que teria gostado de ter. Os pais do protagonista, Evast e Aloma, apresentam alguns traços semelhantes aos dos pais de Lúlio. É significa�vo o paralelismo entre os mimos que Aloma faz ao seu filho Blanquerna e a forma como Ramon Llull foi tratado por sua mãe quando menino. A namorada de Blanquerna, de nome Natana (ou Anastásia), também reflete algumas das qualidades que Llull teria gostado de encontrar em sua esposa. Mas é na meteórica trajetória do protagonista, que passa de ser apenas um laico alheio ao asce�smo a sofrer uma crise existencial que o levará para a conversão, onde a projeção idealizada da vida de Lúlio fica mais evidente. Nos capítulos seguintes, Blanquerna abandonará a família e centrar-se-á na vida contempla�va numa ermida. Depois trocará a experiência eremí�ca pela de um mosteiro, do qual se tornará prior. Posteriormente obterá a �tularidade de uma sede episcopal e finalmente ocupará a cadeira de São Pedro. Será no Va�cano onde melhor ficará plasmado o intuito de Ramon Llull de escrever a sua autobiografia utópica, exprimindo o seu projeto reformista. O livro conclui com o protagonista abandonando a Santa Sé, após ter tomado providências contra os desvios morais da cúria, para voltar à vida solitária e contempla�va da ermida. Blanquerna é muitas coisas ao mesmo tempo. Para começar é um dos primeiros exemplos que temos de romance de formação (embora resulte discu�vel considerá-lo um romance no senso moderno do termo), em que vemos evoluir o protagonista pelas dis�ntas etapas da vida. Mas o livro é também um manifesto polí�co em prol da reforma das estruturas da Igreja, escrito com su�leza, sem derivar num panfleto. O método escolhido para expor o seu programa reformador é um dos preferidos de Lúlio: os exemplos. Blanquerna é colocado perante diversas situações de conflito sobre as quais deverá dar o seu parecer. A resolução das controvérsias sempre será feita com inteligência e aplicando os ensinamentos de Jesus. Esta sabedoria, unida à piedade, será a alavanca que empurrará Blanquerna para cargos eclesiás�cos cada vez de maior responsabilidade. Mas a narra�va também é um veículo para explicar ao leitor menos erudito o funcionamento da Arte luliana. Qual demiurgo, com Blanquerna Ramon Llull molda um personagem literário à sua imagem e semelhança, refle�ndo nele a sua subje�vidade. O resultado será um indivíduo que sai das palavras escritas no papel com menos imperfeições que o escritor que o idealizou. Essa é uma das qualidades que, do meu ponto de vista, tornam o Livro de Evast e Blanquerna uma obra surpreendentemente próxima da nossa contemporaneidade. A esses textos de caráter mais ou menos autobiográfico, devemos acrescentar toda uma série de documentos públicos (procurações, atas notariais, bulas, contratos, etc.) que a especialista J. N. Hillgarth tem recolhido em forma de diplomatário. Esses documentos oferecem muita luz sobre aspectos da vida privada de Ramon Llull e ajudam a entendê-lo em seu contexto social e familiar. Assim, nos deparamos que em 1276 (o mesmo ano da fundação de Miramar), Blanca Picany – esposa de Llull – compareceu perante Pere Caldes, batlle (juiz real) da cidade de Maiorca, para denunciar que seu marido �nha se tornado “tão contempla�vo que não atende à administração dos seus bens temporais e, desta maneira, seus bens perecem e também são devastados”. A demanda vinha acompanhada de cargos contundentes contra o Doutor Iluminado, que era acusado de não dedicar o suficiente tempo à administração dos bens nem ao provimento das necessidades materiais da esposa e os dois filhos. O juiz sentenciou em favor de Blanca e outorgou ao seu cunhado Pere Galceran poderes de procurador sobre os bens de Ramon. Suponho que esta decisão judicial significou um alívio para Llull, já que o libertava dos afazeres domés�cos que o afastavam demasiado do cumprimento de seus altos ideais. É igualmente esclarecedor para adentrar-nos na in�midade de Lúlio o Testamento, assinado em Maiorca, perante o notário Jaume Avinyó, em 26 de abril de 1313. Na cópia conservada (e talvez incompleta) deste documento são nomeados quatro marmessors (testamenteiros), entre os quais está seu genro Pere de Sentmenat. Do testamento chama a atenção que Ramon Llull não possui naquele momento nenhum bem imóvel (o que faz suspeitar que �vesse feito anteriormente doação mor�s causa deles aos seus filhos Domenge e Magdalena, que aparecem como herdeiros na cópia notarial). Tampouco Ramon dedica nenhum espaço a legar recursos para sufragar missas ou rezas por sua alma, como era habitual na Baixa Idade Média, quando a crença no Purgatório estava muito espalhada. Ao contrário, pelo que o testador mostra maior preocupação é pela conservação, tradução ao la�m e divulgação de seus livros, tarefas para as que des�na a metade dos recursos pecuniários de que dispõe. O mosteiro de La Real, a cartuxa de Vauvert e o amigo genovês Percival Spínola são citados especificamente como os custódios da bibliografia de Llull. O dinheiro remanescente seria distribuído entre as igrejas, os conventos e os mosteiros de Maiorca e des�nado a obras pias. Outro elemento que denota a profunda subje�vidade de Lúlio, a ponto de torná-lo um autor “moderno”, mesmo vivendo a cavalo entre os séculos XIII e XIV, é a grande importância que dá ao texto escrito. Não esqueçamos que nos movemos na época medieval, quando as pessoas alfabe�zadas eram uma reduzidíssima minoria e os livros um produto extremamente caro. Aliás, essa quase veneração que Lúlio professava pela produção bibliográfica contrasta com sua procedência social. Sendo do estamento mercan�l, é mais que provável que não �vesse na infância uma formação em cultura literária homologável, por exemplo, à que se esperava dos clérigos. Esta consciência de ser autor de uma obra perdurável faz-se ainda mais evidente a par�r de 1294, ano em que Lúlio adota o salutar hábito de concluir seus textos com o local e a data em que foram finalizados. Novamente, estamos ante um achado muito raro entre os autores medievais. Os estudiosos da literatura dessa época sabem quão di�cil é datar com precisão as obras literárias. Ramon Llull �ra esse peso das costas dos estudiosos e graças a essa datação dos livros conseguimos não somente entender melhor a evolução de seu pensamento ao longo do tempo, mas também acompanhar o autor em suas frequentes viagens. Num tempo em que a produção literária era basicamente de transmissão oral e os alunos dos estudos gerais �nham que decorar os textos que seus professores recitavam, Llull faz questão de deixar seu pensamento sempre por escrito, preto sobre branco. Talvez a sua origem mercadora es�vesse na raiz de tal conduta. Como bom comerciante, Lúlio confiava mais nos contratos escritos (e se possível com fé pública notarial) do que na oralidade, já que, como é bem sabido, as palavras são levadas pelo vento, enquanto os documentos escritos sobrevivem melhor ao passo dos anos. Tinha senso de humor Ramon Llull? Há autores que opinam que não. Os seus textos, sobretudo os filosóficos, são sérios e sisudos e não des�lam nem uma pitada de humor. Aliás, nos retratos que Tomás Le Myéser encomendou,o pensador sempre aparece de cara séria, sem a mínima sombra de um sorriso. Isso era algo comum na representação plás�ca das pessoas sábias, já que o estudo de questões tão elevadas como a Divindade, o Ser ou os Universais exigia uma conduta de rigor e disciplina, totalmente alheia à gargalhada dos tolos. É sabido também que Lúlio se arrependeu toda a vida pelos pecados da juventude e não deixou passar nenhuma ocasião para autoflagelar-se pelas suas fraquezas, citando inclusive o con�nuo jato de lágrimas que escorregava pela sua longa barba. Entretanto, devo reconhecer que até o momento presente eu não tenho conhecido nenhuma pessoa inteligente que não dispusesse de um mínimo senso de humor. E lendo a produção literária de Llull percebo no autor um certo humor autodeprecia�vo, o qual, com o passar do tempo, acabará por converter-se em uma das senhas de iden�dade da literatura em língua catalã, de Joanot Martorell a Quim Monzó. Como senão entender que Ramon Llull se transforme em personagem de seus próprios livros e que sua aparição se faça adotando os mesmos apelidos com que seus crí�cos mais ferozes o ba�zavam? Assim, fazendo um exercício literário digno da Pós-Modernidade, em um capítulo do Blanquerna, a cúria va�cana recebe a visita de um tal Ramon lo foll (Raimundo o louco). Ademais, Llull descreve o personagem de Ramon lo foll com as mesmas caracterís�cas �sicas, vestes e modos com os quais ele era conhecido (e caçoado) nas cortes europeias. Mesmo assim, seu personagem demonstra a todos, por meio de exemplos e lições, que de louco só tem o nome e que suas sugestões para o bom funcionamento da Igreja estão carregadas de justas razões. Numa linha similar, em outros textos Ramon Llull usará o �tulo de Doctor Phantas�cus (Doutor Aloprado) para descrever a si mesmo, acolhendo com tom sarcás�co um dos insultos mais propagados pelos seus crí�cos. Phantas�cus será justamente o �tulo de um de seus poemas, em que fará cerrada defesa de suas ideias, mesmo se autoqualificando de maluco. Contudo, ao assumir com orgulho esse papel que os detratores lhe atribuíam, Llull faz um interessante exercício de reversão de culpas. Se aquele que é tachado de doido demonstra com argumentos racionais a bondade de seus argumentos, quem é decerto o louco e quem é o são? Dificilmente alguém sem um profundo senso do humor teria se atrevido a tanto. Contudo, não encontraremos na obra de Llull piadas (longe da sua intenção vulgarizar o pensamento até extremos ridículos), mas sim algumas notas de fina ironia. Um �po de humor, todavia, somente acessível a eruditos familiarizados com o imaginário medieval. Se Llull, com o seu senso de humor autodeprecia�vo, inaugurou o que seria uma das constantes da produção literária catalã, a sua biografia também exemplifica outro dos traços mais marcantes da “catalanidade”: o movimento pendular entre o seny (bom senso, moderação) e a rauxa (desenfreio). Esses dois extremos, quase sintomá�cos de um distúrbio bipolar, estão bem presentes na vida e obra do Doutor Iluminado. Por um lado, seus arroubos de grandeza, que transformam a rauxa em projetos mirabolantes, tais como a escrita do melhor livro do mundo, a unificação de todas as ordens militares, a organização da cruzada defini�va sob o comando de um rei casto e guerreiro, a fundação de uma nova ordem de monges tradutores ou a pretensão de converter os descrentes ao cris�anismo pelo mero uso das razões necessárias. E pelo outro, o seny que preside o trabalho constante de estudo, reflexão e aperfeiçoamento, graças ao qual sua Arte se tornou uma obra imortal. O homem que sente o irrefreável chamado de Deus e se sente compelido a grandes feitos é, ao mesmo tempo, o pai de família que se preocupa pela instrução de seu filho e que no final dos seus dias ditará um testamento que garanta o bem-estar da prole e a sobrevivência de sua produção literária. Se nos deixássemos levar apenas pelas descrições que Lúlio deixou de si mesmo, teríamos uma visão muito limitada de como era fisicamente. Graças à autópsia realizada em 1985 pelo Dr. Bartolomé Nadal Moncada sobre os restos mortais depositados no convento de São Francisco de Palma, estamos cientes de que o pensador ao morrer media 1,62 m de altura (algo nada desprezível para o Mediterrâneo do século XIV). De �po pícnico, com um abdômen proeminente e braços pouco musculosos, sobretudo quando comparados com as pernas, muito mais desenvolvidas, Llull usufruiu de um bom estado geral de saúde que o levou a superar os oitenta anos de idade. Estas conclusões da autópsia conduzida pelo Dr. Nadal coincidem bastante com os retratos do filósofo con�dos nas miniaturas do Breviculum, que são consideradas as representações pictóricas mais fidedignas do pensador. Por todas as razões aduzidas nos parágrafos anteriores, Raimundo Lúlio aparece diante de nós não é apenas como o pai fundador da literatura catalã e o pioneiro no uso do vernáculo romance para a produção cien�fica, mas também como um precursor, com cinco séculos de antecedência, dos livre-pensadores do Iluminismo. Com seu espírito independente, sem amarras nem doutrinais nem corpora�vas, somado a uma visão unitária da Cristandade La�na (que também se antecipa ao europeísmo nascido após a II Guerra Mundial), Llull apresenta-se como um intelectual avant la le�re. Por isso mesmo seu pensamento, pouco amigo da disciplina escolás�ca, é tão di�cil de encaixilhar nos estritos moldes das análises costumeiras da filosofia medieval. Uma liberdade de pensamento, contudo, que para Lúlio não pressupõe em absoluto uma contradição com o fervor católico que professou até o final dos seus dias. MáR�r O mar�rio é algo consubstancial ao cris�anismo. A salvação da humanidade tem sua base justamente no julgamento, suplício, morte e posterior ressurreição do Messias. Inclusive, o método usado para a execução do Filho de Deus foi um dos mais cruéis: uma lenta morte pregado a uma cruz. A lembrança do mar�rio de Cristo tem uma presença constante entre os cristãos mediante o símbolo que muitos carregam consigo e que, no final das contas, representa um instrumento de tortura. As páginas mais pungentes dos quatro Evangelhos são precisamente as que fazem referência à paixão de Jesus Cristo e sua leitura, pra�cada em público todos os anos na Semana Santa, comove até mesmo àqueles que não comungam com os dogmas do cris�anismo. A imitação de Cristo levou os primi�vos cristãos a aceitar o mar�rio antes que renegar de sua fé. Nas diversas perseguições romanas muitos crentes da nova religião pereceram das maneiras mais terríveis, entre eles os primeiros papas e patriarcas da Igreja. Segundo a tradição, São Pedro foi crucificado de cabeça para baixo e Santo Inácio de An�oquia devorado pelas feras no circo romano. Outros muitos már�res anônimos são rememorados nas fes�vidades de Todos os Santos (primeiro de novembro) e dos Santos Inocentes (28 de dezembro). Ainda hoje morrer mar�rizado é um dos critérios que o Va�cano aplica para aceitar novas canonizações. E se lermos o santoral encontraremos todo um catálogo de atrocidades pra�cadas pelos adversários do cris�anismo. A questão do eventual mar�rio está presente na causa de canonização de Ramon Llull, ainda em aberto setecentos anos depois de sua morte. Embora o seu mar�rio tenha sido um argumento frequentemente esgrimido pelos par�dários de elevá-lo aos altares, não temos nenhuma prova concludente neste sen�do. Apesar disso, a possibilidade de ele morrer mar�rizado (ou de aceitar este fim) esteve presente em diversos momentos da biografia de Lúlio. Como ele mesmo reconhece, de pouco adianta escrever o melhor livro do mundo para convencer os infiéis se estes desconhecem a sua existência. Não bastava, portanto, com escrever uma Arte des�nada somente aos eruditos cristãos. Cumpria aplicar sua mecânica em terras hos�s e provocar conversões com o seu uso prá�co. E esta era sem dúvida uma empresa muito arriscada. Orientado pela ideia de viajar para o Norte da África e levar a cabo sua vocação missionária, Ramon Llullencaminhou os passos até Gênova, um dos portos com maior tráfico mercan�l no Mediterrâneo. Estando lá, preparou tudo para a jornada, mas a noite antes da par�da teve um colapso nervoso. Lúlio obnubilou-se com imagens mentais do que lhe poderia acontecer em Berberia. A sua imaginação foi pródiga em pensamentos sobre terríficos tormentos que os muçulmanos pra�cariam nele. Ficou sem forças, deitado na cama, aterrorizado. Quando finalmente conseguiu levantar-se, o navio que devia levá-lo até as terras dos infiéis já �nha zarpado. Então o medo foi subs�tuído pelo remorso e Lúlio caiu em uma profunda tristeza, que hoje provavelmente seria diagnos�cada como depressão. A primeira experiência missionária finalmente aconteceria alguns anos mais tarde. Llull embarcou numa galera e desembarcou no porto de Túnis, capital de Ifriqiya, um dos mais prósperos reinos do Norte da África. O filósofo pediu que o encaminhassem para os homens sábios da cidade. Uma vez na sua presença, reptou-os a dialogar sobre os fundamentos dos dogmas de suas respec�vas religiões. Lúlio prometeu que, caso os sábios muçulmanos lhe apresentassem bons argumentos, ele renunciaria ao cris�anismo e submeter-se-ia ao Islã. Obviamente, esperava dos seus interlocutores um tratamento recíproco. Mas não foi bem isso o que aconteceu. Na sua conversação com os mouros Ramon Llull empregou todos os raciocínios da Arte para demonstrar mediante razões naturais os dogmas da fé cristã e negar os do islamismo. Contudo, de pouco serviram suas dissertações sobre a dignidades divinas e o substrato teológico comum a todas as grandes religiões monoteístas. Os interlocutores não somente negaram qualquer validade às suas palavras, mas também mandaram prendê-lo. Na corte real, Llull foi acusado de fomentar a apostasia, um crime hediondo que na lei corânica é penalizado com a morte. Tudo parecia indicar que o des�no do maiorquino seria morrer executado, quando um dos conselheiros reais deu um parecer que divergia da maioria. Segundo esse jurisconsulto não era uma boa ideia executar o missionário, já que os cristãos guardariam essa afrenta na memória e retaliariam com a mesma moeda caso um muçulmano fosse pregar a fé de Maomé entre eles. A pena de morte lhe seria comutada pela expulsão do reino de Ifriqiya, porém, antes, no longo caminho até o porto, seria agredido �sica e verbalmente por uma mul�dão enfurecida. Ramon Llull desta vez conseguiu voltar da África machucado, mas vivo. Na segunda viagem a terras sarracenas a cidade escolhida foi a de Bugia, hoje chamada de Bejaïa e localizada na Argélia. Bugia era na época medieval uma próspera urbe, conhecida (como seu nome indica) pela produção de velas, candeias e círios feitos de cera de abelha. O elevado consumo destes produtos nas igrejas cristãs fomentou um intenso comércio com a cidade africana. Tendo em vista que a estratégia de tentar convencer os sábios muçulmanos acerca das bondades do cris�anismo não �nha dado certo em sua primeira visita a terras muçulmanas, desta vez Lúlio optou por expor seu discurso em viva voz para todo mundo ouvir. O local escolhido foi a esplanada perto da mesquita. Lá o maiorquino começou a gritar que o Islã era uma seita malvada e Maomé um falso profeta. Acrescentou a essas palavras ofensivas que ele �nha como provar que a fé cristã era a única e verdadeira. Não foi necessário esperar muito tempo até uma massa humana enraivecida chegar lá com vontade de acabar com a vida daquele introme�do que ousava expressar-se de maneira tão injuriosa. Nesse dia Ramon Llull salvou a pele graças à pronta aparição do mu�i (mencionado na Vida Coetânea como episcopus, isto é, bispo), que quis saber o mo�vo daquele grande alboroto na praça. O clérigo iniciou um diálogo com o filósofo e lhe perguntou como era tão inconsciente de ir até aquele país para impugnar a fé de Maomé, sabendo que a apostasia era condenada com a morte, ao qual Llull respondeu: “O verdadeiro servo de Deus não deve temer o perigo da morte para manifestar a sua fé aos infiéis, que estão em erro, e trazer aqueles à via da salvação”. Essas palavras deram início a um intenso debate, talvez um dos raros momentos em que Llull pôde pôr em funcionamento a Arte para a conversão dos infiéis. No entanto, esse “diálogo inter-religioso” não acabou bem para o cristão. Depois de ouvir atentamente os argumentos lógicos que, segundo Lúlio, demonstravam os dogmas do cris�anismo, o mu�i preferiu não retrucar. Não sabemos se isso foi por falta de argumentos, por absoluta incompreensão da dissertação luliana ou pela perplexidade que lhe causara tamanha temeridade. Malgrado os protestos dos mouros que exigiam que fosse executado imediatamente, o clérigo ordenou prender o infiel e trancá-lo num cárcere. Com isso salvou-o de uma quase segura lapidação. Ramon Llull passou uma longa temporada acorrentado na masmorra, à espera da sentença. Mas os juízes não chegavam a um consenso sobre se o filósofo era uma pessoa em seu são juízo ou um simples demente. Se fosse um homem cabal, a resolução judicial era muito clara de acordo com a xaria: morte por apedrejamento. Porém, se fosse um incapaz, sem consciência dos seus atos, deveria ser posto em liberdade. Mesmo assim, os juízes não se arriscaram a permi�r que depusesse em favor de sua causa. O mu�i, impressionado com a habilidade lógica com que exprimia seus argumentos, temia que as palavras de Llull na corte que o julgava fossem uma faca de dois gumes. Por este mo�vo, preferiu mudá-lo para uma prisão mais amena e lhe ofereceu todo �po de benesses (bebidas, alimentos, mulheres, roupas, etc.) em troca de sua conversão ao islamismo. Contudo, Ramon Llull rejeitou esses obséquios e manteve-se firme nas suas crenças. Afirmou que eram eles, os muçulmanos, os que fariam bem se convertendo ao cris�anismo, já que a salvação da alma era uma graça muito superior a todos os prazeres com que queriam presenteá- lo. Nesse período de reclusão e apesar dos desencontros ideológicos, Lúlio e o mu�i resolveram escrever um livro a duas mãos, no qual cada um deles exporia as razões que faziam sua fé superior à do outro. Afinal, à vista de que Lúlio não cedia às pressões nem às tentações e temendo uma revolta popular que o executasse sumariamente, chegou uma ordem de expulsão do rei mouro. Comerciantes italianos �raram-no fur�vamente da cadeia e o embarcaram numa nave rumo a Pisa. Por azar do des�no a embarcação afundou no mar Tirreno e a obra escrita em árabe conjuntamente com o mu�i perdeu-se. Meses depois do incidente, Lúlio reescreverá esse livro, agora em la�m, sob o �tulo de Liber disputa�onis Raymundi chris�ani et Homeri saraceni (1307). Da terceira jornada à África somente temos informações dispersas. Por se tratar da úl�ma viagem de Ramon Llull e ter acontecido anos depois da redação da Vida Coetânea, não possuímos o mesmo relato autobiográfico dos casos anteriores. Por fontes indiretas podemos supor que o mo�vo da viagem foi uma solicitação feita pelo rei de Túnis Ibn al-Lihyani, o qual, após ter chegado ao poder com a ajuda de mercenários catalães e sicilianos, mostrou curiosidade pela fé cristã. Por este mo�vo solicitou ao rei de Trinácria que lhe enviasse um doutor na matéria para ensinar-lhe os dogmas da religião do Crucificado. Supomos que essa solicitação trazia implícita uma possível conversão do rei mouro ao cris�anismo, caso os argumentos fossem suficientemente convincentes. Após consultar o seu irmão Jaime II de Aragão, Frederico III resolveu enviar para essa missão, meio diplomá�ca, meio missionária, ninguém menos que Ramon Llull, quem fazia anos que morava na Sicília e �nha se tornado um dos conselheiros prediletos do rei. Também sabemos, porque assim consta numa ata do Colégio da Juraria, que Ramon Llull não foi diretamente de Sicília até Túnis, mas preferiu fazer escala em Maiorca, o que sem dúvida alongou a jornada por muitas semanas. Qual o mo�vo desta parada? Não sabemos ao certo. É possível que a escala em Maiorca fosse devida ao fato de o rei Sancho I (sucessor de Jaime II) ter em vigorum vantajoso tratado comercial com o rei Abu Bekk de Bugia, pelo qual as ilhas Baleares serviam nessas datas de porta de acesso aos mercados africanos. Mas tampouco resulta ousado imaginar que, dada a avançada idade de Lúlio (mais de oitenta anos), este decidisse despedir-se de seus entes queridos antes de acometer o que seria o derradeiro périplo de sua existência. A ata mencionada comprova que os seis jurados despediram Lúlio com honras dignas de toda uma celebridade no porto da cidade de Maiorca em agosto de 1314. As úl�mas obras de Ramon Llull são no geral breves opúsculos de poucas páginas, basicamente sobre questões teológicas ou filosóficas concretas. Alguns dos textos estão dedicados às autoridades religiosas muçulmanas que o acolheram. O úl�mo destes opúsculos está datado em dezembro de 1315 no Norte da África. Depois dessa data não conservamos nenhum outro documento de Lúlio, o que nos faz pensar que o filósofo adoeceu gravemente no final de 1315 ou começo de 1316. Esta enfermidade provocou seu regresso urgente para Maiorca. Levando em consideração que nos meses de inverno a navegação marí�ma era quase nula, já que as condições climatológicas não a permi�am, o mais provável é que Lúlio voltasse para sua terra a par�r de março ou abril, quando a primavera diminuía o perigo de tempestades no mar. Tampouco sabemos com certeza se Ramon Llull faleceu no navio que o levou para Maiorca ou se seu óbito aconteceu depois de desembarcar na ilha. Alguns apologistas de Lúlio opinam que foi mar�rizado durante sua derradeira estadia em Ifriqiya e que, a raiz destas feridas, resolveu cancelar sua ação missionária. De fato, em Maiorca está amplamente estendida a crença entre os devotos do Beato de que este foi lapidado no Norte da África e que morreu por culpa das feridas durante a travessia marí�ma de volta à ilha. A no�cia mais an�ga deste mar�rio de que temos constância é devida a Nicolau de Pax, um lulista que viveu entre os séculos XV e XVI, mas desconhecemos se as (eventuais) fontes em que se baseou eram suficientemente confiáveis. Esta hipótese, se provada, seria um forte argumento na causa de canonização. Porém, é problemá�ca, já que está isenta de evidências documentais que a respaldem com firmeza. Ao contrário, tanto o caráter paradiplomá�co da viagem de Lúlio quanto o fato de ele ter dedicado diversas obras aos religiosos muçulmanos que o receberam tornam di�cil de sustentar a hipótese do mar�rio. Resulta muito mais crível que a doença de Llull foi fruto de sua avançada idade, acompanhada pelo sobre-esforço que teve de pra�car nessa jornada final. Como vemos na prolixa produção bibliográfica dos seus úl�mos anos, o Doutor Iluminado manteve até o final de sua vida uma a�vidade muito acima do habitual em uma pessoa tão idosa. Contudo, mesmo que a morte de Ramon Llull não fosse devida às feridas ocasionadas pela sua a�vidade evangelizadora na África, não faltam argumentos para considerá-lo már�r do mesmo jeito. Lembremos, senão, o sermão que Santo Agos�nho dedicou aos már�res São João Evangelista, Santo Estêvão e os Santos Inocentes. O caso de São João guarda paralelismos com o de Lúlio. Segundo a tradição, este apóstolo foi mandado prender pelo imperador Domiciano e levado a Roma. Lá seria submergido em um caldeirão com óleo fervendo. Miraculosamente São João se salvo dessa provação e seria enviado ao exílio na ilha de Patmos, onde iria ter a revelação do fim do mundo, tal como con�da no livro do Apocalipse. O evangelista viveria por longos anos e, após a morte do imperador romano que o perseguira, voltaria a Éfeso e prosseguiria suas pregações. Se no juízo de Santo Agos�nho não havia dúvida de São João Evangelista ser um már�r, ainda que morresse muito tempo depois de ter padecido a tortura, este mesmo raciocínio poderia ser aplicado por analogia a Lúlio. Contudo, e malgrado todos esses esforços e padecimentos sofridos, não temos garan�as de que Ramon Llull �vesse ob�do a conversão de algum gen�o. Para ele, o insucesso de sua Arte devia-se à sua incapacidade de transformar a mensagem divina recebida em Randa em palavras que permi�ssem comunicá-la em toda sua amplidão aos humanos. Essa falta de êxito radicava, para Lúlio, em sua vida pecadora, que não o fazia merecedor de tão grande recompensa por parte do Al�ssimo. Entretanto, visto de uma distância de sete séculos, pode parecer que Lúlio foi um pouco ingênuo. Ao limitar o diálogo inter-religioso a um debate lógico sobre dogmas confrontados, o maiorquino eludiu os aspectos rela�vos às iden�dades cole�vas presentes em todas as religiões. Muitas pessoas não creem em um determinado deus (ou em vários) porque tenham a convicção racional da superioridade da sua fé, mas pelo sen�mento de respeito à tradição herdada dos pais ou pela iden�ficação com um determinado grupo humano. Os indivíduos geralmente nascem no seio de uma religião e morrem sem terem se ques�onado jamais sobre a validade de suas crenças. Aliás, a troca de uma fé por outra é algo severamente punido em muitos credos, já seja mediante a exclusão social do apostata ou aplicando duras penas, inclusive a condena à morte. Mas ainda há outro fator que Llull não teve presente: como pesquisas cien�ficas do século XXI vêm demonstrando, em se tratando de pessoas faná�cas ou de firmes convicções, o confronto com argumentos ou provas que desmontam sua ideologia raramente conduz à aceitação das ideias contrárias. Muito pelo contrário: mesmo sem argumentos racionais que as sustentem, essas pessoas de pensamento inflexível reafirmam-se ainda mais nas suas crenças. Algo disso deve ter (pelo menos) intuído o próprio Lúlio. É revelador um episódio relatado no Livro do Fim, em que se narra um encontro entre o Doutor Iluminado e um judeu acontecido em Gênova em 1304. Ramon tentou disputar com o judeu sobre a fé fazendo uso das razões necessárias. Este negou-se em redondo alegando que o Sumo Pon�fice não permi�a isso. O maiorquino retrucou desafiando-o a um debate em que as suas razões seriam tão concludentes que não teria outro remédio que renunciar à sua fé. Diante da insistência do cristão, o judeu acabou por aceitar o desafio. No entanto, na hora da verdade preferiu sair correndo e deixar Lúlio com a palavra na boca. Heterodoxo? Antes da conversão, Ramon Llull era um homem �pico do seu tempo, bem posicionado socialmente e com uma vida bastante mundana. Se es�véssemos passeando pela cidade de Maiorca por volta de 1260 e �véssemos cruzado com ele, muito provavelmente nada de sua aparência teria chamado demasiado a nossa atenção, salvo talvez as ricas roupas que ves�a ou seu porte galhardo, próprio de um sedutor de altura mediana, porém bom conhecedor de suas habilidades amatórias. Entretanto, se �véssemos nos deparado com ele trinta anos mais tarde, numa das tantas trilhas que percorreu ao longo da vida, teríamos levado um susto, com certeza. O Lúlio pensador foi um perfeito outsider. Ves�a à moda sarracena, frequentava as aulas das universidades com alunos que poderiam ser perfeitamente seus filhos e, pelo menos no início de seu i�nerário acadêmico, não dominava suficientemente o la�m. Em contraste, expressava-se com fluidez em árabe, um idioma totalmente exó�co para os eclesiás�cos que se formavam nas escolas de filosofia mais conceituadas. Seu pensamento não seguia as modas predominantes e sua Arte inspirava- se nos princípios da Cabala e dos sephiroth judaicos e �nha muito em comum com as hadras muçulmanas. Num momento em que Averróis era o autor mais comentado na universidade de Paris, Lúlio escreve uma dúzia de obras que arremetem contra o pensamento do filósofo de Córdoba. E, enquanto a escolás�ca tomista se torna aos poucos o método de estudo preferido pelos professores universitários, com sua escrupulosa dissertação a par�r dos Textos Sagrados, os grandes pensadores e seus comentaristas, a Arte luliana prescinde de argumentos de autoridade e opta por fundamentar-se apenas na lógica natural. Em paralelo, os anos de vida de Ramon Llull supõem o definhar dos ideaiscruzados. São João de Acre cai em mãos muçulmanas quando o maiorquino beira os sessenta anos de idade. Depois dessa data nenhuma outra cruzada será organizada e o ideal de recuperação dos Santos Lugares irá se apagando lentamente. Outras prioridades ocuparão o topo das agendas dos governantes, mas Lúlio teimará em fazer ver a importância da recuperação de Terra Santa. Quase pregando no deserto, em sucessivas obras Ramon Llull definirá planos (alguns deles mirabolantes) para organizar uma campanha militar defini�va, que, junto com a ação conversora de seus monges tradutores, restabelecerá para sempre o controle cristão sobre a Pales�na. Além disso, Llull frequentou amizades quanto menos perigosas. Entrevistou-se em Chipre com Jacques Molay, úl�mo grande mestre da ordem do Templo. A par�r de 1307 cairiam sobre esta ordem militar pesadíssimas acusações de heresia, contendo um leque de crimes que iam da sodomia até a adoração ao Diabo. Não sabemos ao certo se Lúlio chegou a relacionar-se pessoalmente com Arnau de Vilanova, uma das mentes mais importantes da ciência catalã do século XIII e, ao mesmo tempo, objeto de severas acusações por desvios doutrinais. Todavia, resulta di�cil acreditar que o Doutor Iluminado não �vesse nenhum contato com ele, já fosse diretamente ou por meio dos seus discípulos. Também sabemos que o maiorquino dedicou os úl�mos de sua vida a aconselhar o rei de Trinácria sobre a melhor maneira de governar Sicília. Sobre o reinado de Frederico III e suas controvérsias com o papado convém fazer um breve inciso. O conflito siciliano prolongou-se no tempo. Malgrado a invasão francesa da Catalunha (1286) ter se saldado com o rotundo fracasso, os angevinos não renunciaram aos seus direitos sobre a ilha. Com o fim de a�ngir uma solução negociada a essa questão, o papa Bonifácio VIII propiciou a assinatura do tratado de Anagni (1295). Segundo este acordo, Jaime II de Aragão renunciava aos reinos de Maiorca (em favor de seu �o Jaime II, legí�mo soberano das ilhas Baleares) e de Sicília (em favor do angevino Carlos II, rei de Nápoles). Em troca, o rei de Aragão ganhava a �tularidade das ilhas de Córsega e Sardenha, então sob a órbita da república de Gênova. Parecia um bom acordo para todas as partes em li�gio, mas havia um pequeno detalhe que não havia sido levado em consideração: o povo siciliano não queria nem ouvir falar de uma res�tuição ao trono da dinas�a Anjou, lembrada como governantes injustos e arbitrários. Portanto, as cortes de Palermo rejeitaram os termos do tratado de Anagni e man�veram Frederico III como seu rei. Diante deste fait accompli o papado não teve mais remédio que alterar as cláusulas pactuadas inicialmente. Na sua reformulação eram impostas ao rei eleito pelos sicilianos duas condições: a) não poderia ostentar o �tulo de rei de Sicília, já que este pertencia por direito a Carlos II; no lugar, seria conhecido como rei de Trinácria, �tulo criado ad hoc, e b) o seu reinado seria vitalício, o que significava que não poderia legar Sicília aos seus sucessores. Esta segunda condição não seria jamais cumprida e a ilha con�nuaria sob o controle da casa de Barcelona por várias gerações. Nesse contexto histórico, Frederico III foi conhecido por seus con�nuos confrontos com o papa, o que o levou, entre outras coisas, a transformar a ilha de Sicília em um ninho de dissidentes da linha oficial do catolicismo. Ramon Llull sem dúvida se relacionou e intercambiou opiniões com muitos deles, sobretudo com os franciscanos espirituais, cujas teses ficaram feridas (mas não de morte) no concílio de Vienne. Aliás, nesses anos o nome de Raimundo Lúlio logo se tornaria sinônimo de alquimista ou especialista em ciências ocultas. Esta fama foi completamente injus�ficada. Llull pecou mais de deísta do que de esotérico, apesar de as figuras geométricas com as que tentava explicar a Arte poderem levar a tal engano. É possível que em alguma de suas estadias em Montpellier �vesse aprendido as técnicas alquímicas, mas o valor que ele dava a estas prá�cas era muito baixo. Assim fica evidente nas menções que Lúlio faz da alquimia nos textos cuja autoria é incontestada. Em todos eles o pensador mostra-se extremamente contrário aos alquimistas, os quais são tratados como meros charlatães. Contudo, para sua desgraça, diversos autores de textos alquímicos usaram o nome de Lúlio para dar às suas obras uma pá�na de credibilidade. Por volta de oitenta obras apócrifas circularam a par�r do século XIV, algumas delas escritas muitos anos depois de o filósofo ter falecido, exibindo orgulhosamente o nome de Raimundo Lúlio na capa. As que fizeram maior sucesso foram o Testamentum (datado em 1332) e o Liber de secre�s naturae seu de quinta essencia (de datação desconhecida, mas provavelmente de meados do século XIV). Por que surgiu esse pseudolulismo alquímico? Embora seja di�cil dar uma resposta taxa�va, não custa muito imaginar que, para leitores superficiais, a Arte luliana - e mais concretamente suas representações gráficas - se assemelha às formas usadas pelas ciências ocultas. Aliás, a aparente impenetrabilidade do discurso luliano para os estudiosos pouco familiarizados com a sua obra pode levar a julgá-lo, de maneira um tanto preconceituosa, como fruto de um pensamento esotérico. De fato, o verdadeiro autor do Testamentum (especula-se que foi Ramon de Tàrrega, um médico judeu converso de Maiorca que �nha se formado na universidade de Montpellier), demonstra ser um bom conhecedor da Arte luliana, muitos de cujos recursos lógicos e gráficos u�liza para explicar os princípios da alquimia. Aliás, na questão da atribuição de obras de escritores anônimos a autores consagrados, Ramon Llull não foi um caso único. Os nomes de outros contemporâneos seus, como Roger Bacon ou Arnau de Vilanova, também foram objeto de usurpação como pretensos responsáveis por textos de prá�ca alquímica. Biógrafos e estudiosos da obra luliana preservariam, sem querer, o pseudolulismo, em pese a que a próprio Llull em repe�das ocasiões carregara contra os alquimistas. Este trecho do Félix é uma boa prova disso: 36. Da Alquimia. Félix perguntou ao filósofo se a alquimia é a arte pela qual se pode fazer a transmutação de um metal em outro. O filósofo respondeu que convém à transmutação de um elemento em outro a transmutação substancial e a acidental, isto é, a forma e a matéria devem se transmudar, com todos seus acidentes em uma substância nova compostas de novas formas, matérias e acidentes. -E tal obra, belo amigo, disse o filósofo a Félix, não pode ser feita ar�ficialmente, porque a natureza possui o o�cio de todos os seus poderes. [...] -Senhor, disse Félix ao filósofo, conforme vossas palavras, parece que é coisa impossível fazer a transmutação de um elemento em outro e de um metal em outro segundo a arte da alquimia, pois dissestes que nenhum metal tem o ape�te para mudar seu ser em outro. Porque se mudasse seu ser em outro, não seria o mesmo ser que amava ser. Logo, entendi bem todas as vossas razões e semelhanças. Mas de uma coisa maravilho-me fortemente: como o homem pode ter tão grande afeição à arte da alquimia se essa arte não é verdadeira? 13 Esses equívocos sobre a autoria dos textos pseudolulianos acabariam por alimentar a animadversão contra a obra luliana autên�ca, cri�cada per aequiparan�am de heré�ca ou, no mínimo, de heterodoxa. Os dominicanos foram os que lideraram a ofensiva an�luliana, ainda em vida de Ramon Llull. Não é de se estranhar, portanto, que cerca de cinquenta anos depois de sua morte o inquisidor-geral da Coroa de Aragão, Nicolau Eimerich, iniciasse um minucioso processo de avaliação de sua obra. Os núcleos lulianos vinham se espalhado por diversas cidades localizadas sob a soberania de Pedro IV “o Cerimonioso” e o inquisidor quis averiguar até que ponto seguiam a ortodoxia cristã. O processo de Eimerich contra Llull foi uma autên�ca “causa geral” não apenas contra o pensamento do maiorquino, mas sobretudo contra as pessoas de seus seguidores. O resultado foi devastador: em partepor uso de fontes não fidedignas, em parte por interpretações que não seguiam o espírito original de Lúlio e em parte pela má-fé do inquisidor, uma longa lista de desvios doutrinais foi elencada por Eimerich. De resultas dela, o inquisidor procedeu à condena fulminante das teses luliana e à proibição de seu ensino nos estudos gerais de teologia. A interpretação amiúde enviesada que Eimerich faz a respeito do pensamento de Ramon Llull leva a supor que a sentença puni�va já estava escrita de antemão. O inquisidor apenas mergulhou nos textos lulianos, já fossem estes verdadeiros ou espúrios, para extrair deles provas e argumentos que dessem consistência à sua repressão. O an�lulismo de Eimerich condensa-se principalmente no Tractatus contra doctrinam Raymundi Lulli (1389). Nesse texto o inquisidor contesta que a Arte luliana seja fruto de uma iluminação divina e ataca os seguidores que consideravam a teologia de Ramon Llull superior à dos Doutores da Igreja. Em seu ânimo perseguidor, Eimerich mistura os postulados dos lulistas com os dos franciscanos espirituais, atribuindo ao maiorquino dogmas que na realidade provinham de outros autores com os quais não �nha a mais mínima proximidade ideológica. Como conclusão, o inquisidor manda proibir todas as obras de Ramon Llull nos territórios do rei de Aragão e, ademais, envia uma cópia do Tractatus contra doctrinam Raymundi Lulli ao colégio dos cardeais para que estes, se o considerarem oportuno, procedessem à proibição da doutrina em todo o orbe católico. A instâncias do inquisidor da Coroa de Aragão, circulou na corte pon��cia de Avignon a bula Conserva�oni purita�s fidei catholicae, atribuída ao Papa Gregório XI, mas cuja auten�cidade era mais do que controversa. Segundo este documento, o Sumo Pon�fice, após ter lido vinte livros de Ramon Llull e detectado neles mais de duzentos erros doutrinais, ordenava a re�rada de circulação do conjunto de sua obra para submetê-la a um profundo exame. A divulgação desta bula apócrifa (supostamente datada em 1376) mo�vou uma contraofensiva ideológica nos centros de estudos lulianos, que procuraram nos reis de Aragão Pedro IV “o Cerimonioso” e, após sua morte, de seu filho João I proteção frente à ofensiva inquisitorial. O estudo geral de Lleida liderará a resistência ao veto à obra luliana, o que deteriorará as relações entre Antoni Riera, seu principal estudioso, e o inquisidor. Enquanto isso, os conselhos municipais de Barcelona e Valência fizeram declarações públicas de apoio à causa luliana, elevando o debate teológico até quase uma questão de orgulho cole�vo dos territórios de língua catalã. O teólogo Jaume de Xiva viajará a Avignon, em qualidade de representante de ambas as cidades e tentará sem sucesso convencer a cúria pon��cia das bondades da doutrina luliana, acusando Eimerich de excessos e men�ras. Diante das reclamações do rei João I, o papa Clemente VII chama a declarar Eimerich em 1389, com a intenção de resolver esse conflito aberto entre o papado e o monarca de Aragão. O pleito sobre a ortodoxia ou heterodoxia de Lúlio só irá em aumento nos anos seguintes, correndo em paralelo ao desfecho do Cisma de Ocidente. Será durante o pon�ficado de Mar�nho V (1417-31) quando por fim seja reconhecida a falsidade da bula Conserva�oni purita�s fidei catholicae e, com isso, levantadas todas as penalidades existentes contra o estudo da obra luliana. Sem embargo, essa sentença foi publicada vinte anos depois do falecimento de Nicolau Eimerich. As dúvidas que a hierarquia católica �nha sobre a heterodoxia – ou mesmo heresia - de Ramon Llull con�nuaram no século XVI. Embora na sua ilha natal o filósofo �vesse sido venerado como beato pra�camente desde o mesmíssimo dia da sua morte, o seu culto público somente foi aprovado pelo papa Leão X (1513-21). Este êxito dos par�dários da causa luliana viu- se rela�vizado pelo fato de a bea�ficação de Ramon Llull ficar circunscrita apenas à diocese de Maiorca. Por outro lado, a sombra de Eimerich con�nuou a projetar-se sobre o Va�cano e as obras lulianas vez por outra passaram a integrar o Índice de obras de leitura proibida aos católicos. Estas polêmicas teológicas sobre a obra de Llull prosseguirão, em maior ou menor medida, nos séculos seguintes. O padre Feijoo foi, no XVIII, um dos seus úl�mos e mais virulentos detratores, mas as crí�cas lançadas por aquele que foi um dos mais ilustres mestres do Iluminismo hispânico raramente repousavam numa leitura atenta da obra de Llull. Assim, na segunda metade do século XIX, Menéndez y Pelayo em sua obra Historia de los heterodoxos españoles eximiu Lúlio de qualquer acusação de heresia e reprochou Feijoo por repe�r velhas e conhecidas diatribes sem ter se debruçado sobre a obra autên�ca do maiorquino. Todavia, e em pesar de que na atualidade nenhuma autoridade acadêmica ou eclesiás�ca duvide da perfeita sintonia da obra de Llull com os dogmas do cris�anismo católico, o processo de canonização do Doutor Iluminado ficou paralisado no Va�cano por mais de 350 anos. Vez por outra os par�dários da causa luliana sentem suas esperanças revigoradas em virtude de algum sinal vindo da Santa Sé. Foi o caso, por exemplo, da canonização durante o pon�ficado de João Paulo II de João Duns Escoto (20 de março de 1993), filósofo e teólogo contemporâneo de Lúlio e, como ele, por longo tempo objeto de discussões sobre a ortodoxia de sua obra. Nos úl�mos anos, porém, com mo�vo do sé�mo centenário da morte do maiorquino, a causa de canonização de Lúlio tem sido reaberta e não é demasiado arriscado supor que o processo possa ser encerrado ainda no pon�ficado do atual Papa Francisco. No momento atual, contudo, não podemos prognos�car qual será o desfecho. Não obstante, qualquer decisão pon��cia sobre a san�dade de Ramon Llull não afeta em absoluto a relevância e significado de sua obra, que sem dúvida con�nuará a ser objeto de estudo e reflexão por muitos séculos. Inspirador A ordem de monges tradutores e pregadores que Ramon Llull tanto anelava foi uma experiência de breve duração e a fundação de Miramar não sobreviveu por muitos anos. Entretanto, um dos principais legados do pensador foi o lulismo, isto é, a coorte de estudiosos que perpetuou a transmissão dos seus achados e que chega até os nossos dias. Tomás Le Myésier foi um dos primeiros discípulos de Llull, com quem teve contato ao longo de algumas estadias em Paris. A ele devemos quatro coletâneas de obras de seu mestre: o Electorium Magnum - legado à universidade da Sorbonne -, o Breviculum ex ar�bus Raimundi electum ad praeceptum reginae Franciae et Navarrae - que como o próprio �tulo indica foi dedicado a rainha Branca de Navarra, esposa de Filipe IV da França -, além das perdidas Electorium Medium e Electorium Minimum. Destas, a mais reproduzida é o Breviculum, atualmente conservado em Karlsruhe (Alemanha), pois este manuscrito está decorado com uma série de belíssimas miniaturas que retratam o filósofo em diversas fases de sua existência ou em alegorias que mostram sua luta em prol da verdade. Outro polo importante do lulismo medieval foi Maiorca, onde o genro de Llull, Pere de Sentmenat, recopilou uma extensa coleção de seus escritos. De maneira parecida, graças aos bons o�cios de Perceval Spínola, amigo de Llull, Gênova tornou-se outro dos centros do lulismo já no século XIV. Dentro dos territórios da Coroa de Aragão, a cidade de Valência viu florescer um importante grupo de estudiosos da obra de Llull, alguns dos quais sofreram a perseguição do inquisidor Eimerich. Já no começo do século XV destaca a figura do filósofo catalão Ramon Sibiuda, autor que seria professor na universidade de Toulouse e influenciaria o pensamento de Montaigne. Sibiuda alinhou-se com as teses lulianas à procura de respostas racionais para os mistérios da fé. Em paralelo, superadas as perseguições inquisitoriais, formou-se um importante grupo de lulistas em Barcelona. Graças ao legado de Joana Margarita Safont e aos esforços de Antoni Sedacer, em 1431 a Escola Lulís�ca de Barcelonapassou a dispor de um imóvel apto para conservar as obras de Ramon Llull e ministrar aulas que difundissem seu pensamento. A primeira universidade de Maiorca, fundada em 1481 recebeu o nome de Estudo Geral Luliano. Como é de se supor, a principal disciplina ensinada neste centro acadêmico foi a Arte de Llull. Ao igual que no caso da escola lulís�ca de Barcelona, a de Maiorca também foi fruto de um legado de uma dama piedosa, desta vez Agnès de Pax de Quint. Pere Deguí foi o primeiro catedrá�co do Estudo Geral Luliano de Maiorca e em virtude de seu bom relacionamento com a corte dos Reis Católicos (Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão) ajudou a difundir o pensamento de Llull pelos reinos da Península Ibérica, a ponto de, talvez, ter despertado a curiosidade do cardeal Francisco Jiménez de Cisneros pela obra do maiorquino. Cisneros foi um personagem decisivo na história de Castela das primeiras décadas do século XVI. Além de assumir por um tempo a regência, após a morte da rainha Isabel “a Católica”, foi o fundador da universidade de Alcalá de Henares (1508), que logo rivalizaria com a de Salamanca na excelência de seu corpo docente. Gonzalo Gil seria o primeiro catedrá�co de filosofia e teologia luliana de Alcalá. Nesse núcleo lulista lecionaria Nicolau de Pax, que traduziria ao castelhano o Desconsolo. Este lulista maiorquino também publicaria em Alcalá alguns textos de caráter didá�co e introdutório, como as Dyalec�cae introduc�ones illumina� doctoris et martyris Raymundi Lulli (1518). A influência de Lúlio se projeta sobre a Renascença italiana e é novamente a figura de Pere Deguí a que teve um papel primordial nesta difusão. Giovanni Pico dela Mirandola foi um admirador da obra de Llull, justo no momento em que a corte dos Médici em Florença experimenta o ressurgir da filosofia neoplatônica. No século XVI, Giordano Bruno dedicará diversas obras a comentar o pensamento luliano. Algumas delas já anunciam no �tulo uma homenagem ao maiorquino. É o caso, por exemplo do tratado De compendiosa architectura et complemento ar�s Lulii (1582). Como sabemos, a vida Giordano Bruno teve um fim abrupto. Em 1600 foi condenado pela inquisição pelas suas teses heré�cas e queimado na fogueira em Roma. No plano religioso, as propostas de Llull de convencer os gen�os por meio da razão inspiraram em parte a ação catequizadora dos religiosos que seguiram as tropas castelhanas pelo Novo Mundo. Um discípulo de Pere Deguí, Bernat Boïl, acompanhou Cristóvão Colombo na sua segunda viagem à América. Sabemos que Bartolomé de las Casas, um dos primeiros advogados da causa indígena, foi leitor da obra luliana e u�lizou as razões necessárias como argumento para defender a catequização pacífica dos índios, num momento em que os conquistadores europeus não mostravam muitos escrúpulos em relação às prá�cas genocidas. Também o rei Filipe II da Espanha foi um entusiasta do pensamento do maiorquino e ordenou, contra o parecer dos dominicanos, que a biblioteca do mosteiro do Escorial conservasse uma extensa coleção de obras de Llull. Há indícios sobrados de que Juan de Herrera, o ar�fice do Escorial, inspirou-se nas figuras da Arte luliana para desenhar a planta do edi�cio. Inclusive, em seu Tratado del cuerpo cúbico o arquiteto real fez uma original síntese dos princípios geométricos de Euclides com a meta�sica de Lúlio. No século XVII, em plena revolução cien�fica, o nome de Ramon Llull aparece mencionado em múl�plas obras. Em alguns casos, como no Discurso do método de René Descartes, para rejeitar seu método para encontrar a verdade, por considerar o filósofo francês que a Arte só servia para demonstrar coisas já sabidas. Mesmo assim, a defesa cartesiana da mathesis universalis guarda estreita relação com muitos dos postulados da Arte de Lúlio. Em outros casos, como no de Go�ried Wilhelm Leibniz, para reconhecer no pensador maiorquino um pioneiro em diversos ramos da matemá�ca, como a combinatória. Assim, na Disserta�o (1666) Leibniz expõe sua vontade de superar a lógica meramente demonstra�va e caminhar para uma lógica inven�va, seguindo claramente a seara que Llull havia aberto quatro séculos antes. No século XVIII será a cidade alemã de Mogúncia (Mainz) o centro nevrálgico dos estudos lulianos. Lá o bispo ordenou imprimir o que ainda hoje é uma das recopilações mais exaus�vas da obra de Llull. Este trabalho ingente será levado a cabo pelo pres�gioso teólogo Ivo Salzinger. Este mandou buscar pela Europa exemplares dos textos lulianos e com eles preparou uma preciosa edição em dez volumes, dos quais somente os oito primeiros acabaram sendo impressos (quatro deles publicados postumamente). A Edi�o Magun�na é uma rara peça bibliográfica, de cuja posse poucas bibliotecas do mundo podem se orgulhar. Foi uma compilação de grande importância para a preservação do pensamento de Llull. Contudo, também ajudou a perpetuar a imagem do pensador como cul�vador da alquimia, já que Salzinger não somente incluiu os textos autên�cos do maiorquino como deu conta – embora de boa-fé - de alguns dos textos apócrifos. Na mesma centúria, e em parte como consequência do Iluminismo, na ilha de Maiorca aparentemente serão superadas as disputas entre franciscanos e dominicanos, que haviam permeado o debate teológico dos séculos anteriores. Ramon Llull finalmente será aceito sem ressalvas como o pensador insular de maior projeção universal. Boa parte deste mérito deve ser atribuído a Antoni Ramon Pasqual, autor das Vindiciae Lulliane, publicadas em Avignon em 1778. Enquanto isso, na França as contribuições lógicas e combinatórias de Lúlio inspirarão o marquês de Condorcet, cujos sistemas matemá�cos para votações derivam em parte da De arte elec�onis luliana. Este reconhecimento ver-se-á incrementado a par�r de meados do século XIX, quando o movimento literário da Renaixença, de base român�ca e nacionalista, considerará Llull o pai fundador das letras catalãs. Será a época da proliferação nos Países Catalães dos Jogos Florais, os quais, à imitação dos seus homônimos medievais, incen�varão o uso do catalão como língua de criação literária. Com eles, crescerá a admiração por aquele homem que no século XIII, sem referentes prévios, escolhera o idioma materno para escrever sobre Deus, os homens e a ciência. Os pioneiros deste enfoque literário/filológico da obra luliana foram o alemão Adolf Helfferich e os maiorquinos Jeroni Rosselló e Joaquim Maria Bover. O avanço da disciplina da romanís�ca, sobretudo nos centros acadêmicos germânicos, correu em paralelo à recuperação da língua catalã, subme�da desde o começo do século XVIII a um uso puramente domés�co e familiar. Será esse o momento em que Lúlio virará uma espécie de pai fundador do catalão, num plano semelhante ao que teve Lutero na formação do moderno idioma alemão (Hochdeutsch) ou Luis Vaz de Camões com o português literário. A par�r desta linha de estudo proliferarão análises da obra literária luliana, procurando nela a imitação de modelos la�nos, bem como o emprés�mo de barbarismos de línguas próximas, nomeadamente do occitano. A par�r de então Ramon Llull tornar-se-á quase uma grife, uma chancela que concede autoridade cien�fica à ins�tuição que leva o seu nome. Já em 1880 será criada em Maiorca a Societat Arqueològica Lul·liana, en�dade que aglu�nará uma parte considerável dos estudiosos insulares, em áreas tão diversas como a história, a linguís�ca ou a antropologia. Com o tempo, esta sociedade acadêmica foi reduzindo a produção de estudos estritamente lulís�cos, para centrar-se em outras ciências humanas. Este espaço foi ocupado pela Maioricensis Schola Lullis�ca, fundada em Palma em 1935 por Francesc Sureda Blanes. A Maioricensis edita periodicamente Studia Lulliana, revista de referência para os estudiosos de Ramon Llull. O processo de secularização das sociedades europeias experimentado a par�r do século XIX e acelerado nos úl�mos sessenta anos, com a separação radical entre religião e ciência, tem diminuído o interesse pelo Llull pensador, ao mesmo tempo que ia crescendoa veneração pelo Llull literato. Não é raro ler histórias do pensamento ocidental em que o nome de Ramon Llull aparece mencionado apenas como uma nota de rodapé, se tanto. Apesar da originalidade de seus escritos, ao contrário de outros autores contemporâneas seus, Llull às vezes não encaixa em histórias da filosofia excessivamente lineais. Pesam contra ele o fato de não ter servido de base de uma corrente teológica ou filosófica dominante (como foi o caso de Tomás de Aquino com a escolás�ca, por exemplo) nem ter pra�cado um empirismo que pudesse ser lido a posteriori como precursor do moderno método cien�fico (como no caso de Roger Bacon ou Duns Escoto). A tudo isso temos de acrescentar que Ramon Llull dedicou boa parte de sua vida a esforços tão démodés (a olhos da ciência de hoje) como a demonstração dos dogmas católicos mediante razões necessárias ou a escrita de um livro cuja leitura produzisse a conversão automá�ca dos infiéis. Porventura isso explique por que os estudiosos atuais prefiram analisar o modo como Llull ajudou a moldar o catalão literário antes que adentrar-se nos recursos lógicos u�lizados para comprovar os mistérios da Trindade. Não deixa de ser paradoxal esta proliferação de estudos filológicos se levarmos em conta que a imensa maioria dos �tulos lulianos foi concebida em la�m (apenas conservamos 17 obras em catalão, mais outras 34 bilíngues, em la�m e catalão) e, além disso, que para Llull a criação literária era um meio para espalhar sua Arte através de exemplos facilmente compreensíveis, mas não uma finalidade em si mesma. Ademais, Llull tem sido tratado por ramos do saber que ele, em seu Mediterrâneo medieval, nem teria imaginado que pudessem exis�r algum dia. Estou me referindo, entre outras áreas do conhecimento, à semió�ca e às ciências da computação. Umberto Eco mostrou interesse pela obra luliana, à qual dedicou alguns de seus estudos. Figura eminente da ciência que estuda os símbolos, Eco apaixonou-se pelas alterações que Llull introduziu à linguagem humana, criando novos vocábulos e desinências para dar vazão aos complexos conceitos da Arte. Em relação à informá�ca, há autores que opinam que Lúlio foi um precedente da moderna ciência da computação. Segundo esta interpretação, os modernos computadores seriam a con�nuação ciberné�ca do ratus apparatus (máquina de pensar) que Llull idealizou como artefato para fazer complicadas operações lógicas. Sob este prisma, o maiorquino seria um dos primeiros pensadores da história que quis formatar todo o conhecimento humano em categorias matemá�cas facilmente mecanizáveis. O que na Arte se prevê como uma sucessão de figuras geométricas que o ar�sta deve operar manualmente para extrair conclusões elevadas, a par�r da década de 1940, graças à mágica do eletromagne�smo e à necessidade de decifrar códigos secretos inimigos, transformar-se-á em um aparelho digital que revolucionará por completo a vida dos indivíduos e das sociedades humanas: o computador. Todavia, a este enfoque podemos fazer uma série de ressalvas. A primeira é que a Arte luliana não é exatamente uma máquina de pensar. É verdade que tem uma base de lógica combinatória que a aproxima à informá�ca de nossos dias, porém, e esta é a segunda observação, a Arte não é um automa�smo. Ao contrário, a lógica luliana exige uma par�cipação a�va do ar�sta em todo o processo de conhecimento. A manipulação das figuras da Arte permite extrair e – isto é importante – escolher conclusões elevadas, numa a�vidade em que a subje�vidade do indivíduo tem um papel decisivo. Finalmente, em terceiro lugar, a ciência da computação atual não tem as preocupações meta�sicas da lógica de Lúlio nem pretende chegar a um saber verdadeiro que leve à conversão dos infiéis. Os usos dos nossos computadores são de índole mais prá�ca, ajudando-nos a mul�plicar as habilidades humanas de cálculo e de memória, principalmente. Já para recapitular, somente acrescentar que o pensamento luliano con�nua a ser uma fonte inesgotável de inspiração para os pesquisadores atuais. Ins�tutos cien�ficos dedicados ao estudo da sua obra estão em a�vo atualmente em Palma, Barcelona, Freiburg, Roma, Palermo, Florença e São Paulo, entre outras cidades. As a�vidades destes centros de pesquisa são a melhor constatação da vigência atual das ideias do Doutor Iluminado setecentos anos depois de sua morte. BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA AA. VV.: Ramon Llull and Islam, the Beginning of Dialogue. Quaderns de la Mediterrània, 9. Barcelona, 2008. BADIA, L.: Literatura catalana medieval. Selecció de textos. Barcelona, 1985. BATLLORI, M.: Ramon Llull en el món del seu temps. Barcelona, 1998. BONNER, A. (ed.): Obres selectes de Ramon Llull (1232-1316). Palma, 1989. CARRERAS ARTAU, T.; CARRERAS ARTAU, J.: Historia de la filoso�a española. Filoso�a cris�ana de los siglos XIII al XV 2 vols. Madrid, 1939-43. DOMÍNGUEZ REBOIRAS, F.: Ramon Llull. El mejor libro del mundo. Barcelona, 2016. ECO, U.: La ricerca della lingua perfe�a. Bari, 1993. FIDORA, A.; HIGUERA, J. G. 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A cifra incrementa-se consideravelmente se somarmos os �tulos atribuídos a Lúlio, muitos deles de alquimia. Estas obras apócrifas formam o corpus do pseudolulismo, que não tem relação alguma com a produçãoliterária autên�ca do Doutor Iluminado. [←2] Para a datação das obras de Ramon Llull seguimos a referência do catálogo do Raimundus Lullus Ins�tut, da Universidade de Freiburg (Alemanha), conforme con�do em DOMÍNGUEZ REBOIRAS, F.: Ramon Llull. El mejor libro del mundo. Barcelona, 2016. [←3] Tradução livre do autor a par�r do original catalão. [←4] Os trechos reproduzidos do Livro do amigo e do amado correspondem à tradução de Luiz Carlos Bombassaro, publicada pelo Editora Escala (São Paulo, s.a.). [←5] Versão portuguesa da Vida coetânea a cargo de Luísa Costa Gomes, publicada em Vida de Ramón, Lisboa, 1991, pp.211-234. Fonte: h�p://www.ramonllull.net/sw_studies/l_br/t_luisacosta.htm [←6] Tradução livre do autor do original em catalão. [←7] Tradução do autor a par�r da versão castelhana citada em: DOMÍNGUEZ REBOIRAS, F.: Ramon Llull. El mejor libro del mundo. Barcelona, 2016, versão Kindle, posição 5841. [←8] Lúlio, Raimundo: Livro do gen�o e dos três sábios (1274-1276). Introdução, tradução e notas de Esteve Jaulent. Editora Vozes. Petrópolis, 2001, pp. 84-100. [←9] Há controvérsia sobre se esta ordem idealizada por Lúlio seria monacal, conventual ou simplesmente uma agrupação de fiéis leigos. Na Vida coetânea são usados tanto o termo de mosteiro quanto o de frades. [←10] O historiador Álvaro Santamaría tem posto de manifesto que o florim era uma moeda que não circulava no reino de Maiorca na época da fundação de Miramar, o que tem levantado dúvidas sobre se tal subsídio realmente exis�u. [←11] Tradução livre do autor a par�r do original em catalão. [←12] Tradução livre do autor a par�r do original em catalão. [←13] Os trechos reproduzidos do Félix correspondem à tradução de Ricardo da Costa, publicada pela Editora Escala (São Paulo, 2009). NOTA DO EDITOR PALAVRAS PRÉVIAS Trovador CorteSão Místico Peregrino Estudioso Lógico Filósofo TeóloGo CieNtista Universitário CruzadO FundAdor InDivíduo MáRtir Heterodoxo? Inspirador BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA