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DoUtor Iluminado
Guia introdutório à vida e obra de
Ramon Llull
 
Josep M. Buades
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São Paulo
2019
 
Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência
“Raimundo Lúlio” (Ramon Llull)
 
 
 
© 2019 by Josep Maria Buades Juan
© 2019 by Instituto Brasileiro de Filosofia e
Ciência «Raimundo Lúlio» (Ramon Llull)
 
Revisão Técnica
Esteve Jaulent
Capa
Tarlei E. de Oliveira
Diagramação
Tarlei E. de Oliveira
 
 
Doutor Iluminado/ Josep M. Buades. — São Paulo : Instituto Brasileiro
de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2018.
 
Bibliografia
ISBN 85-89294-74-4
1. Biografia 2. Lúlio, Raimundo. I. Título.
2019.1348 CDD 920
CDU 929
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva – CRB-8/9410
 
 
Índice para catálogação sistemática:
1. Biografia 920
2. Biografia 929
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
de acordo com ISBD
 
 
INSTITUTO BRASILEIRO DE FILOSOFIA E
CIÊNCIA “RAIMUNDO LÚLIO” (RAMON LLULL)
 
Esteve Jaulent
Presidente
Mauro Keller
Vice-Presidente
Josep Blanes Sala
Secretario
 
Plaça de la Sé, n. 21 – cj. 1006
São Paulo – SP BRASIL
Tel. (0xx11) 3101-6785
www.ramonllull.net // dep.editorial@ramonllull.net
 
Versão em português a cargo do autor
 
Índice
NOTA DO EDITOR
PALAVRAS PRÉVIAS
Trovador
CorteSão
Mís�co
Peregrino
Estudioso
Lógico
Filósofo
TeóloGo
CieN�sta
Universitário
CruzadO
FundAdor
InDivíduo
MáR�r
Heterodoxo?
Inspirador
BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA
 
 NOTA DO EDITOR
 
 
Esta biografia do Doutor Iluminado não é de forma alguma uma
hagiografia. Conta a vida e as circunstâncias de um pensador
importante que tem sido objeto de estudo há mais de sete séculos.
O objetivo do livro é ajudar a difundir o pensamento de Ramon Llull,
compreendendo-o em seu contexto histórico, social e pessoal. Para
sua leitura, o leitor não precisa ser especialista em história, lógica ou
filosofia, nem em qualquer outra disciplina em particular. Tampouco
precisa aderir a algum dogma religioso. Não é um livro para o
público exclusivamente cristão.
 O estudo do pensamento de Llull continua a crescer entre os atuais
pesquisadores e acadêmicos. Em Palma, Barcelona, Freiburg,
Roma, Palermo, Florença, Louisville e São Paulo, entre outras
cidades, existem centros de estudos sobre Ramon Llull. Esses
centros são a melhor prova do interesse que existe hoje pelo
pensamento do Doutor Iluminado.
 Se um dia o Vaticano decidir canonizar Llull, esta será uma
excelente notícia para os católicos. No entanto, a relevância do
pensamento de Llull, que sobreviveu por setecentos anos apesar de
todos os tipos de suspeitas, condenações e perseguições,
independe de considerações sobre a sua santidade.
 
 
PALAVRAS PRÉVIAS
 
 
A ilha de Maiorca, território que viu nascer o protagonista deste livro, está
cheia de lugares que prestam homenagem à figura de Ramon Llull. Sua
estátua majestosa preside a entrada à cidade de Maiorca (hoje Palma)
vindo do Moll Vell (Cais Velho). No pedestal podemos ler textos em catalão,
la�m e árabe, os três idiomas que cul�vou em sua obra escrita. Seu nome
também é dado a uma rua do centro histórico que comunica o convento de
São Francisco (onde são conservados os restos mortais de Llull) com uma
fortaleza de origem muçulmana que serviu como sede dos cavaleiros
templários antes da dissolução desta ordem, no começo do século XIV.
Con�nuando a caminhar pelas ruas serpenteantes de Canamunt (o bairro
alto do perímetro medieval) nos deparamos com o Estudo Geral Luliano.
Atualmente este prédio serve de escola de idiomas e de extensão dos
cursos universitários, embora, como o seu nome indica, quando esta
ins�tuição foi fundada no século XV �vesse como missão principal servir de
centro de estudos superiores, orientado especialmente ao ensino da Arte
luliana. Prosseguindo nosso passeio por Palma chegaremos ao Ins�tuto de
Bacharelado (ensino médio) Ramon Llull, um edi�cio pelo qual têm
passado, ora como alunos ora como professores, muitos dos principais
intelectuais da ilha nos úl�mos cento e cinquenta anos. Entre eles, alguns
dos lulistas que aparecem na sucinta bibliografia ao final deste livro, como
Sebas�à Trias, de quem �ve a honra de ser aluno na minha adolescência.
Indo pelo curso an�go da Riera, córrego que no passado abastecia d’água a
cidade, chegaremos ao mosteiro de La Real, chamado assim porque em
1229 o rei de Aragão Jaime I estabeleceu lá o acampamento de onde
organizou o assédio à medina muçulmana de Mayurqa. Originariamente
fundado pelos monges cistercienses e na atualidade man�do pela ordem
dos Missionários dos Sagrados Corações, foi em La Real onde Ramon Llull
estudou por vários anos e adquiriu a base de conhecimentos que lhe
permi�ria acometer suas empresas mais ambiciosas. Hoje, na Biblioteca
Balear deste mosteiro conserva-se um dos principais acervos de obras
lulianas a nível mundial.
Muito perto de La Real encontraremos a estrada que comunica Palma com
a vila de Valldemossa. No quilômetro 7,5 há a saída para entrar na
Universidade das Ilhas Baleares, herdeira espiritual do Estudo Geral Luliano
medieval. Lá encontramos mais uma vez o nome de Ramon Llull, que ba�za
o edi�cio que serve de sede para a Faculdade de Filosofia e Letras. Subindo
pela estrada de montanha, e após termos atravessado s’Estret, entraremos
no an�go vale de Mussa, topônimo que deu lugar ao atual nome de
Valldemossa. Esta localidade, berço de santa camponesa Caterina Tomás,
respira uma atmosfera de fervor católico. Muitas de suas casas, construídas
com pedra à maneira tradicional maiorquina, têm na porta um azulejo
pintado com cenas piedosas da Beateta. Não é raro ver nelas também a
figura de Ramon Llull estudando, escrevendo ou pregando. Se nos
adentrarmos mais um pouco entre as montanhas, seguindo pela sinuosa
estrada que une Valldemossa com Deià, nos depararemos com bucólicas
vistas que mesclam os agrestes alcan�lados da Serra de Tramontana com a
placidez do mar Mediterrâneo. Lá, rodeado dessas paisagens únicas,
Ramon Llull fundou em um local chamado Miramar um mosteiro para a
formação de monges tradutores. Apenas sobram ves�gios dessa
construção na atual possessió (fazenda) de Miramar, cujas casas, datadas
no século XIX, foram mandadas construir pelo arquiduque Luís Salvador da
Áustria.
E se dos mirantes de Valldemossa dirigimos o olhar para o extremo sul da
ilha, veremos com certeza um morro que se destaca no meio de uma
extensa planície. Trata-se de monte de Randa, local onde a tradição diz que
Ramon Llull teve uma experiência mís�ca que lhe serviria de base para a
elaboração de sua Arte. Montanha santa, Randa acolhe três santuários: as
ermidas de Gràcia e de Sant Honorat e o mosteiro de Cura. Neste úl�mo,
os frades franciscanos guardam com carinho a memória da estadia de Llull
nessas terras.
Não me estenderei mais na descrição dos espaços de Maiorca em que a
sua presença con�nua viva, mesmo que bem poderia fazê-lo, dada a
abundância. Vou preferir atravessar o mar e desembarcar na cidade de
Barcelona. A capital da Catalunha também possui um bom número de
locais que homenageiam o ilustre “catalão de Maiorca”, como assim Llull
gostava de apresentar-se.
O governo da Catalunha tem um ins�tuto des�nado à projeção
internacional da língua e cultura catalãs, cuja sede fica em Barcelona.
Adivinham o nome? Efe�vamente. Se Portugal tem o Ins�tuto Camões, a
Alemanha o Goethe e a Espanha o Cervantes, a Catalunha criou o Ins�tuto
Ramon Llull com esse mesmo propósito. Também encontramos o seu
nome numa universidade privada, para mais informação controlada pela
Companhia de Jesus, e que destaca no ensino, entre outras disciplinas, da
engenharia química, da administração de empresas e do jornalismo.
No entanto, a veneração que o nome de Ramon Llull desperta entre os
falantes da língua catalã contrasta com a ignorância que paira sobre sua
obra. Se fizéssemos uma enquete improvisada entre os transeuntes das
ruas de Palma, Barcelona ou de qualquer outro território dos Países
Catalães seria di�cil encontrar um habitante local que não �vesse ouvido
nunca falarde Llull. Porém, se lhes perguntássemos o �tulo de algum dos
mais de 270 livros que este autor escreveu
1
 ou sobre os feitos que lhe dão
fama, seguramente receberíamos respostas impacientes ou evasivas. De
igual maneira, encontraremos rela�vamente poucos �tulos de Lúlio ao
alcance do leitor nas livrarias catalãs, baleares ou valencianas. Ao contrário
dos alemães, dos portugueses e dos espanhóis, que não devem fazer
grandes esforços para adquirir exemplares do Fausto, de Os Lusíadas ou de
Dom Quixote, respec�vamente, o Livro de Contemplação em Deus -
primeira obra literária escrita em catalão da história - é uma raridade
bibliográfica dificílima de achar nas livrarias comerciais.
Mas esta ignorância não fica apenas restrita ao homem da rua. Inclusive
pessoas cultas e com boa formação acadêmica sabem pouco ou nada de
Ramon Llull. A culpa não é delas, mas do sumiço do pensamento luliano
nas histórias da filosofia mais consultadas pelos universitários. Às vezes,
por incrível que pareça, resulta mais fácil achar a pegada de Lúlio nos
autores que influenciou (figuras, aliás, do tamanho de Giordano Bruno,
René Descartes ou Go�ried Leibniz, por mencionar apenas os mais
conhecidos) do que acessando às próprias obras que o maiorquino
escreveu, muitas das quais ainda aguardam para ser (re)editadas.
Por que este filósofo, que alcançou a fama e influenciou tantos autores
posteriores, é hoje uma figura tão desconhecida para o público geral será
uma das questões que tentarei responder ao leitor no decorrer das
próximas páginas.
 
* * *
 
Na hora de estruturar o conteúdo desta aproximação à vida e à obra de
Llull inspirei-me na figura A de sua Arte. Como na exploração que Llull fez
da Divindade mediante a combinação de dezesseis dignidades, minha
exposição é dividida em dezesseis capítulos, cada um deles assignado a
uma das qualidades ou a�vidades que Llull desenvolveu ao longo de sua
vida. O leitor pode seguir a sequência que lhe apresento e que segue
grosso modo uma ordem cronológica. Mas também pode desentender-se
da minha proposta e proceder à leitura dos capítulos da maneira que
considerar mais conveniente, ou até mesmo pular aqueles que não sejam
de seu interesse.
Não tenho certeza de que Lúlio �vesse gostado da estruturação deste livro.
Cristão convicto como era, porventura teria se escandalizado com a minha
aproximação. Talvez até a �vesse achado sacrílega, não sei. Mesmo assim,
espero que o leito mais ortodoxo saiba me perdoar, já que o espírito que
me guia é o do dida�smo, sem a mais mínima vontade de ofender
quaisquer crenças religiosas.
O leitor logo perceberá que este livro não foi escrito com um afã de
exaus�vidade. A obra de Llull é tão rica e variada que às vezes me
assombro de que uma única vida humana pudesse tomar conta dessa
produção tão vasta. Ao contrário, preferiria que este livro não saciasse por
completo o ape�te do leitor e o animasse a ler outras obras sobre o Doutor
Iluminado. Se consigo despertar essa vontade, o trabalho de escrita destas
linhas ver-se-á suficientemente recompensado.
Quero concluir estas breves linhas introdutórias expressando meu
agradecimento ao editor deste livro. Catalão de nascimento e paulistano
de adoção, Esteve Jaulent teve a coragem de fundar o Ins�tuto Brasileiro
de Filosofia e Ciência Ramon Llull há quase vinte anos em São Paulo,
superando todo �po de adversidades. Foi ele quem, nos idos de 2002,
jantando numa pizzaria do bairro do Bixiga, abriu-me os olhos à vida e obra
do maiorquino mais universal. A ele devo o imenso prazer de ter ido
descobrindo nos úl�mos quinze anos o impressionante legado de Llull.
Jamais, nos meus anos de estudante, teria imaginado que precisaria residir
na outra ponta do mundo para debruçar-me sobre uma figura que era para
mim tão familiar e tão distante ao mesmo tempo. A vida, com certeza, nos
depara emocionantes surpresas.
Em virtude do constante trabalho do Ins�tuto, do qual sou membro graças
à generosidade de seu fundador, que me integrou no grupo de estudo
mesmo sem credenciais acadêmicas que avalizassem tal honra, pude
entrar em contato com alguns dos mais pres�giosos lulistas que exercem
suas pesquisas no Brasil e no exterior. Junto com eles, fui também
contagiado pelo entusiasmo das jovens promessas desta área da filosofia.
Cada reunião de trabalho, cada seminário ou congresso, cada ar�go
publicado e cada conversa informal man�da com eles enriqueceram-me
enormemente. Porém, não tenho como negar que esses contatos também
punham sobre a mesa quão grandes eram minhas lacunas históricas,
filosóficas, teológicas, antropológicas... e de tantas outras ciências que
Lúlio cul�vou com uma facilidade impressionante.
O impulso para a redação deste livro foi fruto de uma palestra que realizei
em agosto de 2017 na Associação Cultural Catalonia, a convite de seu
presidente Màrius Vendrell. Graças à sua amabilidade, �ve a ocasião de
apresentar na sede da en�dade de ascendência catalã mais veterana do
Brasil um esboço do mundo mediterrâneo na época de Ramon Llull. Pelo
visto, a minha intervenção teve boa acolhida por parte do público e Esteve
Jaulent, presente no evento, me propôs transformar as ideias que �nha
acabado de expor em uma síntese biográfica do Doutor Iluminado. De
início não me vi com forças de acometer aquela empresa, mas a insistência
do Esteve acabou por vencer minhas resistências e pouco meses mais
tarde eu já estava sentado no computador escrevendo estes parágrafos.
Minha visão da obra luliana, no entanto, nem sempre coincide com a dele.
Diferenças de geração, de formação e de credo abrem con�nuos debates
entre nós, durante os quais sempre assumo o papel do pupilo díscolo que
provoca o paciente mestre. Por isso, peço ao leitor que perdoe meus
deslizes, mas sobretudo que em caso nenhum jogue a culpa deles nas
costas do meu bom amigo Esteve. O único responsável dos possíveis erros
que contenha este texto sou eu, o autor destas linhas.
 
Trovador
 
A biografia de Ramon Llull (Raimundus Lullus em la�m, Raimundo Lúlio em
português, Raimundo Lulio em castelhano, Raymond Lulle em francês, رامون
em árabe) está in�mamente ligada a expansão da Coroa de Aragão ao لول
longo do século XIII. A casa condal de Barcelona, que em meados do século
XII �nha acessado ao trono de Aragão mediante o casamento de Raimundo
Berengário IV, conde de Barcelona, com Petronília, filha de Ramiro I “o
Monge”, rei de Aragão, criou uma extensa rede de ligames feudais que
uniam reinos e condados em ambos os lados da cordilheira dos Pirineus.
Ao Sul desses territórios cristãos, o Al-Andalus islâmico dessangrava-se em
divisões internas, após o fim do império almóade. Tirando par�do desta
debilidade dos muçulmanos, todos os monarcas cristãos da Península
Ibérica, numa raríssima demonstração de unidade, assestaram-lhes um
duro golpe na batalha das Navas de Tolosa (1212). A vitória cristã foi tão
incontestável que em poucas décadas a presença muçulmana ficou restrita
aos confins do reino nasrida de Granada, que em seu momento de máximo
esplendor abrangeu menos da metade da super�cie da atual região da
Andaluzia.
Enquanto isso, ao Norte, no País d’Oc, cujos territórios iam da Gasconha
até a Provença, vivenciava-se uma de suas épocas de maior esplendor,
tornando Occitânia um dos territórios mais prósperos e avançados do
Europa no século XII. As cruzadas, iniciadas em 1095, trouxeram consigo
um desenvolvimento urbano espetacular na região. A circulação de
moedas e a troca de mercadorias com o Mediterrâneo oriental, aliada ao
florescer industrial, fizeram crescer cidades como Toulouse, Narbonne,
Montpellier ou Marselha, algumas das quais fincavam suas raízes na época
da romanização. O “ar da liberdade” que as pessoas respiravam nessas
urbes e que contrariava a severa ordem feudal, também comportou
mudanças culturais, em âmbitos tão diversos como o direito, as artes
plás�cas, a música, a espiritualidade ou as relações amorosas.
Mas as cidades, com sua troca livre de produtos e de ideias, também se
tornariam logo espaços de heterodoxia religiosa.As heresias andaram à
solta por terras occitanas no século XII. De todas elas a mais popular foi o
catarismo. Esta palavra deriva do termo grego kátharos e significa puro. Os
cátaros pra�cavam um sincre�smo entre o maniqueísmo e o cris�anismo.
O maniqueísmo era uma doutrina do profeta Mani (ou Manés), que viveu
na Mesopotâmia no século III d.C. Mani inspirou-se na religião dualista
propagada por Zoroastro entre os medos no século VII a.C. e que se
tornaria a religião oficial da Pérsia nas dinas�as aquemênida e sassânida.
Os maniqueus espalharam-se pelo império romano, junto com outras
seitas orientais, entre elas a dos cristãos. Um dos primeiros doutores da
Igreja, Agos�nho de Hipona, foi pra�cante do dualismo maniqueísta até
sua conversão à fé de Cristo. Perseguido por um catolicismo que no século
IV abandonaria as catacumbas para virar a religião oficial do império, o
maniqueísmo sumiria do Mediterrâneo por vários séculos, para ressurgir
na península balcânica no começo do segundo milênio. De lá, por
caminhos ainda não muito bem conhecidos, chegaria até o Meio-dia
francês na forma do catarismo.
Ao igual que outras religiões dualistas, os cátaros acreditavam na existência
de dois deuses: um deus maligno, que havia criado o mundo material e do
qual procediam todos os males; e um deus benigno, criador do espírito e
do bem. Porém, o catarismo cris�anizou essas duas divindades, ao
considerar que o deus criador da matéria era o mesmo que aparecia na
Bíblia na personificação de Jeová (isto é, o Deus do An�go Testamento, que
para os cristãos é o Deus Pai), enquanto o deus criador do espírito era o
Deus do Novo Testamento (ou seja, o Deus Filho ou Jesus Cristo). Seguindo 
os princípios dualistas, para os cátaros a história do universo era uma luta 
eterna entre o bem e o mal. O pra�cante do catarismo podia contribuir ao
desfecho deste combate ficando do lado do Deus Filho e, portanto,
apoiando a causa do bem. A melhor maneira de demonstrar este apoio era
levando uma vida pura (daí o termo grego de cátaro), de renúncia ao gozo
dos prazeres materiais. Neste sen�do, para o catarismo a morte era como
uma libertação, já que era no exato momento do falecimento quando a
alma boa se despia do corpo que a aprisionava como uma casca e voltava
ao Céu, onde viveria feliz para sempre junto ao Deus bom que a amava.
O catarismo cresceu tão depressa ao longo do século XII que as
autoridades religiosas ficaram alarmadas. Com sua prá�ca de pureza,
abs�nência sexual e desapego pela riqueza ou pela ostentação, os cátaros
eram sujeitos que pareciam seguir a verdadeira mensagem de Jesus. O
contraste com a prá�ca religiosa do setor mais relaxado do clero católico
era gritante, num tempo em que o nicolaísmo (sacerdotes casados ou
amancebados) e a simonia (compra de cargos eclesiás�cos), entre outros
desvios, eram o pão nosso de cada dia. Enquanto as inicia�vas
reformadoras empreendidas pela hierarquia católica eram ainda modestas
e as ordens femininas escassas, o catarismo captou a nova religiosidade
que provinha das cidades e abriu suas congregações às mulheres. Com isso
ganharam o respeito de boa parte do povo occitano e de alguns de seus
condes, que não hesitaram em dar abrigo e proteção aos “puros”.
À preocupação de bispos e priores pelo crescimento da heresia no País
d’Oc, temos que somar as ambições do rei da França, que naquela altura
do século só �nha o controle direto sobre a metade Norte (o País d’Oïl) do
que hoje conhecemos como território francês. Quando finalmente o Papa
de Roma assinou a bula que decretava a cruzada contra os albigenses (Albi
era uma das cidades em que os cátaros �nham maior presença), os
guerreiros francos, liderados por Simão de Mon�ort, não pensaram por
duas vezes e armaram um exército que invadiu o Sul. O rei Pedro II de
Aragão, que ob�vera anos atrás o qualifica�vo de “Católico” por sua luta
contra a progressão do catarismo ao Sul dos Pirineus, acudiu em auxílio de
seus vassalos occitanos. Contudo, na batalha de Muret (1213) a sorte
esteve do lado dos cruzados e Pedro II foi derrotado e morto em combate.
O futuro dos occitanos estava selado: a par�r de então seriam súbditos do
rei da França. Uns poucos cátaros sobreviventes refugiaram-se no castelo
de Montsegur e dentro de suas muralhas inexpugnáveis con�nuaram a
pra�car a fé dualista até que finalmente foram exterminados em meados
do século XIII.
Mas os novos costumes urbanos não afetaram somente a esfera espiritual.
Uma nova era de amor român�co, em que os amantes não renunciavam a
expor publicamente sua paixão, deu lugar a uma corrente literária: o amor
cortês. Cul�vado pelos trovadores (isto é, “achadores” das palavras certas),
estes proclamavam aos quatro ventos seu amor pela “dama”, objeto de
desejo não apenas espiritual, mas também �sico. As cortes dos condes
occitanos e catalães foram povoadas pelos poetas amorosos e alguns
nobres também se animaram a compor e cantar seus próprios versos. O
papel da mulher na “trova”, todavia, não ficou apenas limitado a ser o
objeto do desejo masculino. Por fortuna conservamos os textos das
trobatriz, poe�sas que assumem a voz cantante (nunca melhor dito), com
versos em que recriminam a frieza dos amantes ou as suas limitações nas
artes da galanteria.
Todo esse mundo de cátaros e trovadores foi bruscamente ceifado pela
cruzada albigense. O País d’Oc, que no século XII se tornara a vanguarda do
Ocidente cristão e cujos costumes refinados foram imitados pela Europa
toda, entraria em um lento processo de decadência. Guerreiros francos
primeiro e as ordens mendicantes depois “limparam” o território de
heterodoxia, mas também abortaram um período de fér�l cria�vidade
literária e musical. Os dominicanos, recentemente fundados como ordem
religiosa, usaram a pregação para convencer e os autos da fé para punir,
enquanto os franciscanos, com sua espiritualidade despojada e suas
maneiras próximas dos puros cátaros, atraíam as massas que desejavam a
reforma da Igreja. As ordens medicantes (categoria em que estão inclusos
dominicanos e franciscanos, entre outros) respiravam a mesma atmosfera
de espiritualidade urbana que �nha visto crescer a heresia cátara, porém
em todo momento se man�veram fiéis à hierarquia católica e ao papado.
Seu papel na erradicação das heresias medievais foi primordial, ao
construir uma alterna�va viável - e dentro da ortodoxia -, o que sem
dúvida foi um revulsivo para os jovens que buscavam uma maneira nova de
viver o cris�anismo, mais evangélica e com uma piedade mais voltada aos
pobres, aos doentes e aos excluídos.
Não sabemos até que ponto o catarismo teve influência (se teve alguma)
nos anos de formação de Lúlio. Nos seus textos não encontramos
nenhuma citação expressa a essa heresia, nem para cri�cá-la, nem para
endossar os seus princípios. Pode ser que para Lúlio a questão cátara fosse
um capítulo encerrado no livro da história, mas também é possível que o
seu silêncio fosse fruto de um tabu, transmi�do pelos colonos occitanos de
Maiorca, que preferiram deletar essa página dolorosa de suas biografias.
De qualquer maneira, Lúlio cresceu num entorno em que o aggiornamento
da Igreja era discu�do com ardor. Já adulto, chegou a definir seus próprios
planos para uma reforma da hierarquia católica que, sem pôr jamais em
dúvida nem o seu magistério nem a sua unidade, a afastasse dos vícios
pra�cados por alguns ministros transviados.
Entretanto, Lúlio foi fortemente influenciado pelo amor cortês. Como nos
conta em suas memórias, de jovem pra�cou assiduamente a trova. Para
um filho de catalães crescido em uma ilha repovoada por um grande
con�ngente de occitanos (como assim atestam os muitos sobrenomes
maiorquino que coincidem com topônimos do Midi francês) a arte de
trovar deveu ser, junto com as can�gas dos escravos sarracenos, o
transfundo musical de sua infância. Albas, tençons, planys e baladas eram
cantadas pelas ruas da cidade imitando os trovadores de maior sucesso,
aqueles cujos triunfos nos Jogos Florais os faziam merecedores do �tulo de
mestres no Gai Saber.Ele próprio compôs algumas can�lenas galantes
para mulheres com as que teve algum envolvimento amoroso. O idioma
não devia supor nenhuma barreira para o jovem Ramon. O catalão e o
occitano são dois dialetos do la�m tão próximos que até o século XIII
resultou complicado diferenciá-los. Como prova, basta ler a crônica de
Jaime I (Livro dos feitos) e observar a quan�dade de expressões occitanas
num texto escrito por amanuenses catalães.
Depois de sua conversão, Lúlio conservaria uma relação de amor/ódio com
a arte de trovar. Se por um lado relacionava essas composições com a vida
pecaminosa que levou na juventude, por outro jamais conseguiria
desembaraçar-se por completo do legado literário do amor cortês. Em
muitas de suas obras, sobretudo as de conteúdo mais literário, Ramon Llull
revela-se como um autên�co jogral, destro no uso do vocabulário e cheio
de inven�va. Entretanto, o objeto de seu amor foll (amor louco) será a
par�r de agora Deus e não mais qualquer donzela com a que tenha
cruzado olhares libidinosos nas vielas da cidade de Maiorca.
Sob esse novo enfoque voltado à religiosidade e dando as costas às paixões
frívolas, o autor virará do avesso o espírito carnal da poesia trovadoresca
para transformá-la em um canto de louvor religioso. Isso fica muito claro
nos versos que dedicará a Nossa Senhora. A vós, Dona Virgem Santa Maria,
por exemplo, é uma manifestação claríssima de como os recursos que os
trovadores usavam para seduzir a dama são aplicados agora para venerar a
Mãe de Deus. Neste poema, recolhido no Livro de Evast e Blanquerna
(1276-83),
2
 a Virgem Maria torna-se a Dama por excelência dos devotos
cristãos, reunindo nela todas as virtudes femininas em um grau de
perfeição como nenhuma outra mulher mortal tenha alcançado jamais.
Canta Llull na primeira estrofe deste poema:
A vós, Dona Virgem Santa Maria
Entrega-se aquele que quer se apaixonar
De vós tão forte que nada quereria,
Se vós não es�verdes, desejar nem amar;
Pois todo querer melhoraria
Sobre tudo aquilo que não for
O vosso amor, vós mãe do amor;
Quem não vos ama cai no desamor.
3
 
Este poema é apenas uma amostra da devoção que Llull sen�u por Nossa
Senhora, a quem dedicará diversos livros. Entre os anos de 1290 e 1293
comporá o Liber de sancta Maria, Hores de nostra Dona santa Maria e De
la passió e lo desconhort de nostra Dona, todos movidos pelo mesmo
fervor mariano.
 
 
 
CorteSão
 
Herdeiro da coroa real de Aragão e da condal de Barcelona, além de
senhor de Montpellier por herança materna, o filho de Pedro II, um
menino de apenas quatro anos chamado Jaime, não teria outra escolha
para expandir seu reino senão invadir os territórios muçulmanos do Sul.
Assim, Jaime I chegaria a ser conhecido como “o Conquistador”, já que em
virtude das campanhas militares acrescentaria ao seu patrimônio os �tulos
de rei de Maiorca (1229) e de Valência (1235).
Um dos cavalheiros que acompanhou o rei na conquista de Maiorca foi
Ramon Amat, apelidado de Llull por conta de umas terras que a família
�nha no interior da Catalunha e que no passado se supõe que pertenceram
a um tal de Ludovico ou Lullus. Na estrita ordem feudal, os Amat faziam
parte do estamento dos mercadores e, graças à riqueza acumulada durante
gerações, �nham adquirido um certo status de nobreza que lhes permi�a
par�cipar nas guerras junto com os cavaleiros. Mesmo assim, para os
detratores do filósofo, como o inquisidor Eimerich, essa origem social
inferior seria uma mácula que não perderão oportunidade de esfregar na
sua cara.
A conquista de Maiorca foi uma operação bélica que durou quase quatro
meses, entre o início de setembro, quando a frota catalã zarpou de Salou, e
o dia 31 de dezembro de 1229, data em que as tropas cristãs conseguiram
arrombar os muros da cidade e, com uma violência sem limites,
exterminariam os seus moradores. Como o próprio rei Jaime I explicaria no
Livro dos feitos, o que mo�vou a conquista da ilha foi a denúncia da
pirataria pra�cada pelos mouros. Era exatamente o mesmo pretexto que
jus�ficara a conquista romana por parte do cônsul Quinto Cecílio Metelo
(123 a. C.), propiciara a anexação das Baleares ao Al-Andalus no começo do
século X e mo�vara a cruzada catalano-pisana (1114-15).
Em um jantar na casa do rico mercador Pere Martel em Barcelona,
ofereceram ao conde-rei um menu confeccionado com produtos insulares,
o que serviu para deixar constância da fer�lidade daquelas terras. Com
apenas vinte anos de idade, Jaime I abraçou imediatamente com furor
juvenil a empreitada. Seria a primeira vez que um rei cristão da Hispânia
par�ria para uma campanha an�bia, a qual, além de acrescentar mais um
reino às suas posses, também deveria servir para consolidá-lo no trono
como um rei adulto e, portanto, afastar a tentação dos seus tutores de
con�nuar governando em nome dele.
Não foi fácil conquistar a ilha. Embora a taifa de Maiorca �vesse ganhado a
independência de Dênia poucos anos atrás, suas muralhas eram sólidas e
seus celeiros rela�vamente bem abastecidos. Os conselheiros do rei
recomendaram si�ar a cidade muçulmana e cortar a acéquia que lhe
fornecia água. A frota cristã posicionou-se na baía para impedir a chegada
de suprimentos aos si�ados. No entanto, o outono de 1229 foi dos mais
úmidos do século e a água de chuva bastou para manter os aljubes da
cidade em níveis aceitáveis. Quanto mais Madina Mayurqa resis�a aos
embates dos cristãos, maior era a discórdia que se espalhava pelo
acampamento de La Real. Sem rápidos resultados tangíveis, havia
inquietação entre as tropas do rei de Aragão, enquanto cresciam as vozes
que defendiam um pronto regresso à Catalunha, ainda que fosse de mãos
vazias.
Finalmente, depois de um longo assédio salpicado de malfadadas
tenta�vas de assalto, no úl�mo dia do ano as forças cristãs puderam
derrubar uma parte das muralhas. Foi num setor próximo da Porta Pintada,
hoje conhecido como Praça Espanha (com uma estátua equestre de Jaime I
rendendo homenagem à gesta). A jornada de São Silvestre foi nefasta para
os habitantes da cidade. As hostes catalãs irromperam em suas ruas e
mataram a destro e sinistro. As casas foram saqueadas e muitas delas
incendiadas. Famílias inteiras foram passadas pelas armas e seus bens
depredados. Os soldados cristãos pra�caram todo �po de sevícias,
mu�lando clérigos, estuprando mulheres e sequestrando crianças para
forçar os pais a entregar-lhes o dinheiro e as joias que �nham escondido. O
vali Abu Yahya tentou em vão refugiar-se com o resto de suas tropas na
Almudaina, o palácio urbano que servia de corte ao rei de Maiorca. Porém,
soldados de Tortosa pularam os muros da fortaleza e assassinaram o úl�mo
soberano mouro da ilha, não sem antes submetê-lo a uma longa e
impiedosa agonia.
Nos meses posteriores o exército do conde-rei encarregar-se-ia de sufocar
os úl�mos redutos de resistência local. Aqueles que puderam
abandonaram às pressas seus bens e fugiram para o Norte da África. Os
que não �veram essa fortuna acabaram sendo executados ou rebaixados à
condição de escravos dos novos senhores de Maiorca.
Para garan�r o repovoamento da ilha por famílias cristãs, o rei mandou
publicar uma Carta de Franquezas e Privilégios, que dotava de uma
margem de liberdade extensa aos que optassem por morar naquela ilha
perdida no meio do mar. Temos ciência, pelos documentos notariais e
pelos sobrenomes de muitos maiorquinos, que o chamado do rei fez efeito
e conseguiu que a ilha recebesse um con�ngente significa�vo de colonos,
sobretudo catalães e occitanos. Haveria entre eles refugiados da cruzada
albigense? Seria o catarismo uma fé que estes colonos trouxeram consigo e
pra�cariam em segredo? Não temos provas determinantes disso, mas é
uma hipótese no mínimo plausível.
Como prêmio aos cavaleiros que o acompanharam nessa empreitada,
Jaime I fez uma par�lha do território conquistado, deixando por escrito no
Livro do Repar�mento que a metade das terras do reino seriam para si
mesmo e a outra metade seria dividida entre os quatro magnatas: o conde
do Rossilhão, o arcebispo de Barcelona,o conde de Empúries e o visconde
de Bearn. De todos eles somente Nuno Sanç (conde do Rossilhão e úl�mo
regente até a maioridade de Jaime I) acabaria ficando na ilha, na qualidade
lugar-tenente, quando o rei resolveu voltar para seus domínios
peninsulares.
Do resto das Baleares, há de dizer-se que os nobres catalães �veram um
papel determinante na conquista das vizinhas ilhas de Ibiza e Formentera,
em uma campanha realizada sem a par�cipação do rei. Entretanto,
Minorca foi a única das ilhas que se manteve como reino muçulmano
independente, embora sujeito ao pagamento de um tributo anual ao rei de
Aragão.
Após a conquista, o rei entregou parte de sua metade de Maiorca a nobres
do braço médio e menor que o ajudaram na expedição. Ramon Amat foi
um dos beneficiários do favor real. As terras que lhe foram entregues em
Pollença e Algaida geravam suficientes rendas como para garan�r uma vida
acomodada na casa que a família �nha no bairro de Sant Miquel da cidade
de Maiorca. A perspec�va de um futuro promissor na ilha fez com que o
pai de Llull renunciasse a voltar a Barcelona. Em vez disso, foi sua esposa,
Isabel d’Erill quem atravessou o mar e aceitou o desafio de começar uma
nova vida em uma terra desconhecida e recém arrancada do domínio
muçulmano.
Ramon Llull foi concebido pouco depois do reencontro do casal Amat, o
que nos permite supor que nasceu em 1232 ou 1233. Contudo, não
conservamos nenhuma cer�dão de ba�smo que nos permita confirmar a
data exata de seu nascimento. Mesmo assim, o protagonista deste livro
deveu ser um dos primeiros maiorquinos nascidos de pais catalães após a
conquista. Não em vão Lúlio gostava de apresentar-se como “catalão de
Maiorca”. A esse fato temos de acrescentar que foi filho único. O casal
Amat concebeu-o numa idade avançada, ao parecer depois de dez anos de
matrimônio, e não teve mais descendência posteriormente. Criado numa
família com posses e rodeado de uma população local sujeita à condição
servil, a infância de Llull foi cheia de mimos e afagos. Ele mesmo lembra
em suas memórias dos flaons (massa doce recheia de requeijão e
perfumada com hortelã, segundo a receita da iguaria do mesmo nome que
ainda hoje é cozinhada em Ibiza) que sua mãe lhe preparava.
Enquanto isso, seu pai alternava a gestão das propriedades agrícolas com
as responsabilidades no palácio real. O primeiro lugar-tenente durou
poucos anos na Almudaina. Nuno Sanç logo regressaria ao seu condado
transpirenaico. Jaime I cederia o reino de Maiorca, em qualidade de feudo
vitalício, ao Infante Pedro, filho do rei Sancho I de Portugal, o qual
governaria a ilha por mais de quinze anos, até sua morte. A administração
real �nha como principais magistrados o batlle, responsável pelo
patrimônio do rei e que exercia funções de juiz, e o veguer, que se
encarregava de preservar a ordem pública. Mas o reino também �nha
ins�tuições de autogoverno reconhecidas pelas cons�tuições, privilégios e
franquezas que Jaime I foi aprovando ao longo do tempo. A principal delas
era o colégio dos seis jurados, que representava os diversos estamentos da
sociedade feudal. Os jurados �nham extensas competências sobre a
administração da cidade o do reino de Maiorca. Além da administração
real e das ins�tuições de autogoverno dos cidadãos da ilha, também
exis�am os batlles senhoriais. Estes responsabilizavam-se pela
administração das terras concedidas aos magnatas e dispunham de larga
autonomia. Tudo, em suma, respondia a um modelo polí�co do feudalismo
tardio, já quase em transição para formas de monarquia autoritária
próprias da Baixa Idade Média.
Fruto do seu segundo casamento com Violante de Hungria, Jaime I teve
dos filhos homens: os infantes Pedro e Jaime. Embora o rei mudasse de
testamento com rela�va frequência, desde seu nascimento o Infante Jaime
foi chamado a tornar-se o futuro rei de Maiorca. Devido à posição de
pres�gio que Ramon Amat �nha na Almudaina, um Lúlio adolescente foi
promovido à categoria de preceptor do herdeiro do reino. A par�r de
então o nosso futuro pensador iria escalando posições no palácio real.
Provindo de uma família de mercadores e mostrando-se muito apto para a
contabilidade e os negócios, nos seus vinte e poucos anos Ramon Llull seria
nomeado senescal. Esta era uma posição existente em quase todas as
cortes medievais. Tinha sua origem no reino da França e cuidava de toda a
intendência do palácio. Um senescal era algo assim como um mordomo-
mor, que velava pela despensa real, garan�ndo que sempre es�vesse cheia
de produtos de primeiríssima qualidade, bem como da supervisão do
pessoal que tomava conta do palácio, dos serviçais que limpavam todas as
salas até a equipe que nas cozinhas preparavam as ágapes com que eram
recebidos os visitantes ilustres. O senescal tomava conta das celebrações
organizadas com mo�vo das fes�vidades religiosas ou por questões civis,
tais como a comemoração de vitórias militares, enlaces matrimoniais do
monarca ou nascimentos no seio da família real.
Bem posicionado socialmente, herdeiro de fincas rús�cas nada
desdenháveis e com um cargo destacado na corte, o jovem Ramon Llull era
um par�do e tanto. A família arranjou-lhe o casamento com uma moça
bela e de boa família: Blanca Picany. Os Picany �nham enriquecido muito
pra�cando diversos negócios, entre eles a trata de escravos. Deviam ser
uma das poucas famílias com recursos suficientes para cobrir um dote à
altura daquela figura preeminente da corte. Blanca cumprirá com rigor
seus deveres de esposa e dará a Ramon dois filhos: Magdalena e Domenge
(Domingos). No entanto, será um matrimônio infeliz.
A vida de família não era o que Lúlio procurava aos seus vinte e tantos
anos. Senescal e trovador, rico em dinheiro e recursos galantes, Ramon
Llull foi um pai ausente que somente parava em casa para as necessidades
básicas da alimentação e do sono. O resto do tempo preferia desperdiçá-lo
em a�vidades frívolas que lhe comportavam prazeres nada espirituais.
Esses anos de vida pecaminosa acabariam tornando-se um pesado fardo
em sua vida adulta. Ao refle�r sobre seus tempos moços, Ramon
lamentará reiteradamente sua conduta desviada.
Sobre este relato da juventude de Lúlio, amplamente aceito na tradição
insular e na bibliografia mais citada, temos de fazer uma ressalva. Mesmo
que em sua autobiografia (a Vida coetânea, 1311), Llull mencione
expressamente que exerceu o cargo de seneschal mensis na corte de
Maiorca, há décadas essa afirmação vem sendo ques�onada pelos
historiadores. Em primeiro lugar, porque o nome de Raimundo Lúlio não
aparece nos arquivos conservados da corte, o que é no mínimo
surpreendente, dada a importância do cargo de senescal. E em segundo
lugar porque, numa sociedade tão estra�ficada em classes como a
medieval, custa muito de acreditar que alguém de berço rela�vamente
modesto pudesse ocupar uma responsabilidade tão alta no reino. Como o
inquisidor Eimerich remarcará con�nuamente em sua avaliação e
condenação das obras de Llull, o maiorquino era um membro do
estamento dos mercatores e, mesmo que seu pai �vesse colaborado na
conquista de Maiorca, o seu rango na compar�mentada estrutura social
não era compa�vel com tão alta dis�nção. De forma parecida, as lendas
que circulam na ilha sobre a nomeação de um Ramon Llull ainda
adolescente como preceptor do futuro rei Jaime II de Maiorca têm ficado
totalmente desacreditadas por um setor da historiografia que não aceita
mais a tradição de olhos fechados e exige provas documentais que deem
suporte a tais afirmações.
Sendo assim, se o que ele contou aos cartuxos de Vauvert era mera
invenção, ao que dedicou seus anos moços Ramon Llull? Na verdade, não
sabemos. Seguramente ajudou no gerenciamento dos negócios de seu pai,
já fosse nas propriedades agrícolas que ele ganhou após na conquista, já
fosse em transações comerciais de produtos ou escravos. Pelo que indica o
próprio Lúlio, seja qual for a a�vidade prosaica que lhe foi encomendada,
ficou com tempo livre para fazer composições poé�cas ao es�lo dos
trovadores e para as aventuras amorosas.
Com independênciade sua mocidade cortesã ser realidade ou ficção, não
há como negar que o autor sen�u predileção pela ordem da cavalaria, à
qual dedicou uma obra monográfica. O Livro da Ordem da Cavalaria (1274-
76) é, ao mesmo tempo, um tratado para a formação dos futuros
cavalheiros e uma análise do simbolismo das peças que integram sua
indumentária e armamento. Tudo isso sempre sob o prisma da Arte, como
o exemplifica Llull quando diz no capítulo V que ao cavaleiro é dada a lança
para significar a verdade, porque a verdade é reta e não torta, e que o ferro
da lança significa a força de verdade sobre a falsidade. De igual maneira, o
pendão significa que a verdade é demonstrada a todos e não há poder de
falsidade nem de engano, assim como a verdade é a base da esperança.
Em suas reflexões, Lúlio trata a ordem da cavalaria com certa nostalgia,
como se em seu tempo �vessem sido abandonados os velhos valores que
fizeram dela a glória da Cristandade. Segundo o pensador, as principais
funções do cavaleiro são manter e paz e proteger o cris�anismo de seus
inimigos. Para isso o cavaleiro devia personificar as virtudes cristãs e fugir
dos vícios e do pecado. Todavia, para fazer parte da ordem da cavalaria não
é necessário fazer voto algum de pobreza. Ramon Llull entende que o
cavaleiro deve ser rico, pois só assim conseguirá cobrir as despesas em
armamento e em forragem da montaria que sua a�vidade requere. Com
isso, o autor adota uma postura mais aberta do que o ideal do monge-
soldado propugnado pelas ordens militares. Todavia, Lúlio considera de
grande importância que exista uma relação próxima entre os cavaleiros e
os clérigos. Estes devem prover auxílio espiritual aos bellatores e orientá-
los em todo momento pelo reto caminho. Como vemos, a elaboração
ideológica que Ramon Llull fez da ordem da cavalaria estava em perfeita
sintonia com as inicia�vas da Igreja católica de “civilizar” os nobres e
encaminhar seus ímpetos para obje�vos que fossem de comum interesse
para todos os cristãos.
Essa nostalgia pelos velhos tempos �nha sua razão de ser. Lúlio viveu numa
época de transição entre o que os historiadores denominarão a Plena
Idade Média e o Feudalismo Tardio. Os vínculos de vassalagem, que tanta
importância �veram na formação das hostes medievais, perderão
relevância à medida em que se consolidem as monarquias autoritárias. Os
reis europeus desconfiarão cada vez mais dos nobres, os quais serão vistos
como um elemento de constante instabilidade polí�ca, e apostarão
preferencialmente pelos exércitos de mercenários. Para tal será necessário
angariar maiores recursos, o que significará mudanças significa�vas nas
finanças públicas. Pelo fato de os nobres e os clérigos serem estamentos
privilegiados – e, portanto, imunes ao pagamento de impostos -, os
monarcas medievais voltarão seus olhos para as cidades. A florescente
burguesia urbana, nutrida de ricos mercadores e hábeis artesãos, será a
classe social sobre a qual recairá o financiamento do cofre real. Não será,
porém, uma colaboração que lhe sairá de graça ao monarca. Os burgueses
lhe exigirão, no decorrer das cortes convocadas para tal fim, que em troca
de seu dinheiro este lhes garanta toda uma série de direitos e liberdades. A
ordem feudal, surgida num tempo em que o vil metal era escasso e o
comércio ficava limitado às redondezas dos burgos, na Baixa Idade Média
irá se configurando em uma nova estrutura polí�ca e social derivada da
nova realidade do incipiente capitalismo mercan�l. A monarquia absoluta,
já no século XVII, completará o processo de domes�cação da nobreza,
transformando-a de classe fundamental do feudalismo em uma mera
comparsa à espreita das benesses cortesãs do palácio real.
O próprio Ramon Llull foi uma boa personificação desse Zeitgeist, embora,
como é lógico, não fosse consciente disso. No século em que viveu e nos
posteriores, a alta origem da linhagem iria perdendo força na formação da
ordem de cavalaria, em favor de outros vínculos mais pragmá�cos, como
os derivados de um patrimônio que permi�sse custear um cavalo, uma
armadura e um séquito, bem como o serviço leal ao monarca. Aliás, com a
burocra�zação derivada do aumento da documentação escrita, o rei
precisará de pessoas inteligentes e bem formadas (juristas e bachareles)
para conduzir adequadamente os seus negócios, em detrimento dos
privilégios derivados do elevado berço. Toda uma mudança significa�va
que antecipará a meritocracia dos tempos modernos. Todavia, não será
uma transição fácil nem pacífica. Os avanços alternar-se-ão com os recuos,
mas no final das contas os séculos XIII e XIV pressagiam mudanças
profundas que iriam se consolidar em épocas posteriores.
Uma boa mostra desses tempos poli�camente convulsos que Lúlio teve de
viver foi o reinado de Pedro III “o Grande” de Aragão, protó�po do rei
autoritário que lutou contra as escleró�cas estruturas feudais que
conspiravam contra a hegemonia da coroa. Foi precisamente Pedro III
quem ins�tuiria as Cortes em cada um dos três territórios peninsulares que
integravam a Coroa: os reinos de Aragão e Valência e os condados catalães,
que com o tempo seriam conhecidos como Principado da Catalunha (em
alusão ao caráter de princeps, ou primus inter pares, ostentado pelo conde
de Barcelona). Embora no século XII houvesse o antecedente dos tribunais
de paz e trégua, a ins�tuição das Cortes foi mo�vada pela necessidade de
angariar recursos para financiar o crescente gasto militar do monarca, em
decorrência da expansão da Coroa de Aragão pelo Mediterrâneo central.
O evento conhecido como “As Vésperas Sicilianas” (1282) foi o estopim de
um longo conflito entre a casa de Barcelona e a de Anjou. O levante
popular em Sicília contra o rei Carlos I foi rapidamente socorrido por Pedro
III, casado com Constança, princesa Hohenstaufen descendente do
imperador Frederico II (senhor da ilha até sua morte, ocorrida em 1250).
Em Palermo Pedro III foi coroado rei da ilha, contrariando os direitos que
os angevinos �nham sobre ela. Embora os angevinos reclamassem da
usurpação come�da, o exército do rei de Aragão, formado em sua maioria
por soldados mercenários (almogávares), mostrou-se superior no campo
de batalha.
A guerra siciliana logo se tornaria um conflito internacional de grandes
proporções e Carlos I ganharia o apoio do rei da França Filipe III (parente
dos Anjou) e do Papado (subserviente aos interesses do rei da França). À
vista de que a via diplomá�ca não sur�a efeito, o Sumo Pon�fice decretaria
a excomunhão de Pedro III e promoveria uma cruzada contra os territórios
da Coroa de Aragão.
Filipe III armou um poderoso exército e invadiu a Catalunha. Antes de
cruzar os Pirineus as tropas francesas �veram que atravessar o condado do
Rossilhão, que fazia parte do patrimônio do rei Jaime II de Maiorca. Este,
sem recursos para se opor à invasão, pra�camente deu passagem livre aos
soldados franceses, uma a�tude que o seu irmão, Pedro III, entenderia
como uma imperdoável traição. Embora a campanha terrestre de Filipe III
ob�vesse notórios êxitos, como a conquista de Girona (setembro de 1286),
a fortuna lhe foi adversa no mar. Comandadas pelo almirante calabrês
Roger de Llúria, as naves do rei de Aragão ocasionaram severas derrotas à
frota dos Anjou no Sul da Itália. Afastado o perigo de uma invasão angevina
da Sicília, o almirante deslocou suas galés para a costa catalã, cortando
assim as linhas de fornecimento marí�mo do exército francês.
Carente de suprimentos e contagiado pela epidemia de peste que dizimara
previamente os defensores de Girona, o exército invasor foi incapaz de
segurar suas posições. Filipe III teve de ordenar a evacuação da Catalunha.
Ao atravessar os Pirineus pelo desfiladeiro de Panissars, as tropas francesas
foram objeto de uma emboscada e sofreram numerosas baixas. O próprio
rei da França salvou-se por pouco, mas a fugida às pressas de Panissars não
lhe pouparia a vida. Os germes da peste que �nha contraído durante a
ocupação de Girona acabariam por levá-lo ao túmulo poucas semanas mais
tarde.
Uma vez expulso o inimigodas terras catalãs, Pedro III resolveu punir seu
irmão pelo comportamento morno na hora de encarar os invasores
franceses. Em outubro de 1286 encomendou ao seu filho Afonso a
organização de uma expedição de cas�go contra as Baleares, a parte mais
importante dos territórios de Jaime II e ao mesmo tempo uma das menos
protegidas. O reino de Maiorca caiu quase sem pestanear (salvo alguns
castelos nas montanhas), enquanto o rei de Aragão falecia na Catalunha
por culpa de umas febres. Em meio à campanha balear, assumiria o trono
seu filho, que seria conhecido como Afonso III “o Liberal”. A conquista das
ilhas completar-se-ia com a tomada de Minorca, território que Jaime I
havia deixado como reino mouro tributário e que a par�r de então passaria
a fazer parte do reino de Maiorca.
Sem seu “reino no meio do mar”, Jaime II conservou tão somente alguns
pequenos territórios no con�nente, como o senhorio de Montpellier, os
condados do Rossilhão, a Cerdanya e o Vallespir, todos eles situados na
atualidade no Sul da França. Ainda que Ramon Llull devesse sen�r uma
certa simpa�a pelo legí�mo rei de Maiorca, ao qual a tradição diz que
serviu como preceptor na juventude, a sua posição polí�ca foi sempre
neutra e pragmá�ca. Lúlio frequentará a corte de Montpellier e obterá
recursos de Jaime II para suas empresas, mais isso não será empecilho para
que também visite as cortes de seus sobrinhos Jaime II de Aragão e
Frederico III de Sicília. Inclusive as cortes dos reis da França (Valois) e de
Nápoles (Anjou), rivais à morte da casa de Barcelona, foram frequentadas
pelo maiorquino. Ramon Llull não teve escrúpulos em assessorar esses reis
“adversários” e dedicar-lhes obras cien�ficas e filosóficas. Tampouco
mostrou preocupação por se o ocupante do trono de São Pedro era aliado
dos franceses ou próximo dos interesses da Coroa de Aragão. Suas
inquietações andavam por outras searas e seu projeto de conversão dos
infiéis mediante as razões necessárias con�das no “melhor livro do
mundo” precisava de todos os apoios possíveis, com independência de
mesquinhas disputas entre as dinas�as reinantes.
É por isso que indagar num suposto caráter nacional de Llull é uma
extemporaneidade condenada ao fracasso. Seu comportamento não era
diferente dos reis medievais, que não hesitavam em casar seus filhos com
os herdeiros de coroas contra as quais guerreavam constantemente. Ele
próprio se autoproclamava “catalão de Maiorca”, mas sua nação (se é que
�nha uma mínima noção de nacionalidade no sen�do moderno) era
quanto menos o mundo cristão la�no, se não toda a humanidade. Nada a
ver com o patrio�smo moderno que se espalhará por todo o mundo
ocidental ao longo do século XIX. Por isso, malgrado Lúlio ser um dos
primeiros autores medievais a usar o vernáculo (no caso, o catalão) para a
produção cien�fica e literária, as atuais controvérsias sobre a sua
“maiorquinidade”, “catalanidade” ou “hispanidade” são apenas ar��cios
ideológicos fora de contexto. O Doutor Iluminado foi um personagem tão 
universal como o catolicismo que professou com fervor.
Aliás, nas suas inúmeras viagens pelo mundo mediterrâneo Lúlio adquiriu
um profundo conhecimento da mecânica das cortes, principescas ou
eclesiás�cas, e das misérias humanas que nelas se dirimiam. No delicioso
Livro das Bestas, sexto capítulo do total dez que integram o extenso Felix
ou Livro das Maravilhas (1288-89), o escritor �ra proveito do gênero da
fábula para encenar uma alegoria das disputas pelo poder. O Livro das
Bestas é inspirado pelo poema persa Calila e Dimna, mas também
podemos achar nele as influências do francês Roman du Renard e de
fábulas clássicas gregas e la�nas. O rei é o leão, que governa graças ao
apoio dos animais herbívoros. A astuta raposa trama um complô contra ele
e ganha a adesão do urso, a ursa, o leopardo e a serpente, enquanto o
galo, o cão e o pavão olham atentamente a situação antes de decidir por
qual par�do tomar. No entanto, como sempre acontece na obra luliana, a
finalidade deste livro não é meramente literária, mas servir de alerta aos
príncipes reinantes sobre as infaustas consequências de levar a sério os
maus conselheiros.
De guisa mais próxima aos espelhos de príncipes, manuais sobre
governança com grande circulação na Idade Média, em 1304 Llull terminou
a redação do Livro do Conselho. Neste extenso tratado o maiorquino
reflete sobre o bom governo que deve reger em todas as cortes, das
eclesiás�cas às civis. De dimensões muito mais reduzidas é a Arte do
conselho (dezembro de 1315), escrita durante a úl�ma estada de Lúlio na
África e dedicada aos governantes de Túnis. Sabemos que este compêndio
de filosofia polí�ca foi escrito originalmente em árabe e depois traduzido
ao catalão e ao la�m. De acordo com os princípios da Arte, Llull dá
sugestões sobre a melhor maneira de pedir e dar conselho. Para tal fim é
desenhada uma nova figura da Arte, formada por quatro círculos com nove
celas cada um e presidida por la letra A, que, imóvel, representa a Deus
como guia de toda atuação polí�ca.
 
 
 
Mís�co
 
Diz a tradição popular, porém sem nenhuma prova fidedigna que o
testemunhe, que foi o amor por uma mulher o que levou o trovador
Ramon a tornar-se o mís�co Llull. O mo�vo dessa súbita conversão foi uma
descoberta terrível. Perseguindo a amada pelas ruas da cidade de Maiorca,
esta escondeu-se na igreja de Santa Eulália. Lá, na penumbra de uma
capela lateral, acuada pelos embates do amante voluptuoso, a dama
descobriu-se o peito. Horrorizado, Ramon Llull contemplou um tumor em
estado avançado que corroía o seio. Essa visão de um mal que naquela
época não �nha cura transformou para sempre a vida do cortesão.
O próprio Llull nos conta em sua Vida coetânea, espécie de memórias que
ditou aos monges de Vauvert, uma versão bastante diferente desta
história. O filósofo reconhece que bebia de amores por uma mulher, cuja
beleza lhe inspirava poemas e canções. Enquanto ele estava em seus
aposentos, compondo uma can�lena em homenagem à amada, apareceu-
lhe Jesus Cristo crucificado. Perplexo, parou a escrita e deitou-se,
confiando em que uma bela noite de sono o libertaria dessa assombração.
Porém, para sua surpresa, a aparição do Messias na cruz repe�u-se uma
vez e outra e outra... assim, até um total de cinco vezes. Temendo perder o
juízo, resolveu não sair mais de casa.
Refle�ndo em seu confinamento domés�co, Ramon Llull chegou à
conclusão de que aquela série de aparições era uma mensagem que lhe
enviava o Criador. Deus queria que abandonasse essa vida pecaminosa,
cheia de prazeres fúteis e vazia de espiritualidade.
Um domingo a família finalmente convenceu-o a sair de casa e respirar um
pouco de ar fresco. Acompanharam-no até a catedral para ouvir missa.
Naquele dia o bispo de Mallorca, Ramon de Torrella, dedicou a homilia a
contar a vida de São Francisco de Assis. Para seu espanto, o relato que o
bispo fez acerca do santo guardava muitas semelhanças com a sua própria
vida. Bem igual que o poverello de Assis, Ramon Llull �nha sido criado
numa família acomodada que lhe atendeu em todos seus caprichos, sem
faltar-lhe nem bem materiais nem status social. Contudo, o jovem de Assis
não achou sen�do naquela vida que para muitos seria mo�vo de inveja.
Então decidiu entregar todas suas posses aos pobres e, com um pequeno
grupo de amigos, fundou na Porciúncula o primeiro cenáculo dos “irmãos
menores”, germe de uma futura ordem mendicante que em poucas
décadas espalharia por toda a cristandade la�na uma nova compreensão
do homem, da natureza e da relação de ambos face à Divindade.
Suponho que Llull deveu acompanhar de olhos arregalados a narração dos
acontecimentos da vida de São Francisco. Conhecia de vista os irmãos
franciscanos, que todas as manhãs saíam em duplas à procura de esmolas
para os pobres e para o sustento de seus conventos, mas ignorava a origem
dessa ordem que enraizara firmemente nas cidades. O momento
culminante da homilia do bispo foi a hora em que o santo de Assis recebeu
os es�gmas de Cristo. Isso o tornara um ser humano sem par, o único aquem Deus premiara com as cinco feridas que Jesus havia recebido na
cruz.
Sem ter ido tão longe, Ramon Llull também experimentara na in�midade
do seu quarto o contato direto com Deus. As aparições do Crucificado
foram uma forma de comunicação com o Ser Supremo que escapavam a
uma análise racional. Ele era também, do seu jeito, um mís�co e devia
devotar sua vida ao estudo e à oração. Portanto, cumpria abandonar os
ligames que o atavam à família e à corte, falsas obrigações que o afastavam
de seu verdadeiro des�no. Com trinta anos acumulados nas costas, uma
esposa, dois filhos e o cargo de senescal no palácio da Almudaina, Ramon
mudou radicalmente o rumo de sua existência e resolveu dedicar os
seguintes dez anos à peregrinação, ao estudo e à oração.
No monte Randa, o morro entre Algaida e Llucmajor que provavelmente
fazia parte das terras de sua família, Ramon Llull teve uma visão que
mudaria para sempre sua forma de pensar. Fazendo vida de eremita,
apenas interrompida pela chegada dos serviçais que lhe traziam comida,
viu um jovem pastor que cuidava de um rebanho de ovelhas. Bastou um
breve aceno ao moço para que, num piscar de olhos, Ramon
compreendesse que a missão de sua vida era escrever o melhor livro
escrito até então, um livro tão potente cuja simples leitura faria convencer
qualquer descrente da verdade dos dogmas cristãos. O mís�co/filósofo
Lúlio teimará até a morte por transformar essa iluminação divina em um
texto inteligível para os humanos e isso o levará a reescrever uma vez e
outra a mesma obra: a sua Arte.
Mas a Arte não é um fim em si mesmo. Lúlio não quer passar à posteridade
apenas pelas suas ideias ou pelas suas composições literárias. O que o
move é servir a Deus. E a melhor maneira de servi-Lo é promovendo a
conversão dos gen�os. Como conseguir que as legiões de descrentes se
curvem diante da cruz e sigam o caminho da Salvação? Pois bem,
convencendo-os da superioridade dos dogmas cristãos mediante
argumentações lógicas que sejam compreensíveis tanto para os sábios
mais eruditos quanto para o povo iletrado. É sob essa missão conversora
que a escrita do “melhor livro do mundo” ganha sen�do. Para tão alto
obje�vo, talvez até impossível de a�ngir por um simples mortal, Ramon
Llull consagraria a sua vida.
Uma das principais correntes mís�cas daquela época não estava no
cris�anismo, mas no islamismo. Os sufis �nham desenvolvido técnicas de
concentração que lhes permi�am manter um contato direto com Deus. O
sábio de Múrcia Ibn Arabi foi um dos principais pensadores sufistas. Em
seus escritos concluiu que ao conhecimento pode chegar-se por duas vias
paralelas e compa�veis: a via lenta da razão, a qual, passo a passo, avança
para conclusões cada vez mais complexas; e a via rápida da iluminação,
com a que Deus nos transmite toda a sabedoria humana no mesmo breve
instante que uma centelha demora para iluminar o céu.
O mis�cismo luliano não é apenas fruto de experiências extra-sensoriais.
Ramon Llull deveu conhecer e estudar (ou pelo menos assim se desprende
da leitura de seus textos) a obra de Ibn Arabi, considerado um dos pais do
sufismo. Para descrever suas experiências mís�cas, este pensador
muçulmano criou uma nova linguagem, mediante a justaposição de nomes
com finalidade metafórica. Esse novo patamar de expressão linguís�ca
desenvolvido pelo sufismo influenciou poderosamente a criação luliana. O
maiorquino também foi levado pelo impulso de es�car até o limite as
regras da gramá�ca e da morfologia, formando novos vocábulos
inexistentes na língua falada, mas necessários para descrever, em todas as
suas nuanças, o novo sistema lógico-meta�sico que estava prestes a criar.
Ramon Llull dedicaria toda sua vida a buscar as palavras certas com as que
poder comunicar à perfeição a mensagem divina. Seu maior anseio foi,
pois, construir o “idioma perfeito” capaz de exprimir até o mais mínimo
detalhe o conteúdo da visão mís�ca recebida em Randa e que, ademais,
fosse compreensível por todo ser humano, com independência de sua
religião ou do vernáculo que falasse.
Também o entendimento de que todas as grandes religiões têm uma base
comum, observável, entre outras coisas, pelos atributos que assignam à
Divindade, tem um claro precedente na obra de Ibn Arabi. Em Al-Futuhat
al-Makiyya (As revelações de Meca) o sábio árabe reconhece que o Alcorão
bebe da mesma tradição religiosa dos outros povos do Livro. Inclusive,
chega a afirmar que aquilo em que os judeus e cristãos acreditam é para
eles tão verdadeiro quanto o que os muçulmanos creem baseando-se no
Alcorão. Palavras sem dúvida revolucionárias para um século XIII marcado
pelas guerras de religião e cujo rela�vismo cultural possivelmente tenha
influenciado na escrita do Livro do gen�o e dos três sábios (1274-83).
Porém – e essa é uma grande diferença entre os dois pensadores -,
enquanto para Lúlio esta unidade de base das três religiões monoteístas
tem de conduzir necessariamente para uma unificação de todos os credos
no cris�anismo (o único que o maiorquino considera plenamente
verdadeiro), Ibn Arabi adota uma postura mais próxima dos valores que
dominam na nossa época, ou seja, os de um mul�culturalismo que prega a
coexistência pacífica de todas as fés e culturas, sem impor a superioridade
de umas sobre as outras.
Mesmo que em sua vida adulta Llull adotasse um comportamento voltado
exclusivamente ao estudo e ao desenvolvimento de sua Arte, a veia
trovadoresca às vezes faz ato de presença na produção literária,
elaborando uma curiosa mistura entre a tradição do amor cortês occitano
e a mís�ca sufi. É o caso, por exemplo, do Livro do amigo e do amado,
4
espécie de apêndice lírico do livro Blanquerna (1276-83). Através das 365
metáforas morais (uma por cada dia do ano) escritas em prosa poé�ca,
Lúlio dá a volta por cima à tradição dos trovadores, elevando à esfera
mís�ca o que na origem era pura emo�vidade sensual. Os dois
protagonistas do livro são a personificação do homem ascé�co que procura
pela verdade (o amigo) e o Ser Supremo (o amado). Entre eles vai se
desenrolando uma relação de amor que transcorre entre grandes
padecimentos.
No Livro do amigo e do amado é percep�vel a interpretação do amor feita
pelo sufismo. Ibn Arabi entendia o amor como a verdadeira síntese de
todas as virtudes. Porém, o amor a Deus por si só é insuficiente, segundo o
murciano, se não vem acompanhado do amor pela Criação. Embu�do de
teosofia e pacifismo, o sufismo promove o amor ao próximo como uma via
que conduz ao amor a Deus. Está ideia percorre o livro de Lúlio, como
podemos observar no seguinte fragmento:
59. O amigo andava desejando o seu amado e encontrou dois amigos que o saudaram com
amor e choros, e abraçaram-se e beijaram-se. O amigo desmaiou, tão fortemente os dois
amigos lhe lembraram o seu amado.
A noção do amor passional como uma dor profunda que atenaza os
amantes a ponto de deixá-los sem vontade de dormir, comer ou sequer
viver quando estão longe do ente querido, é uma concepção habitual nas
manifestações do amor cortês e também terá uma presença constante na
lírica luliana. A paixão, portanto, no sen�do em que a trata Lúlio não deve
ser entendida à maneira dos român�cos do século XIX, mas segundo a
e�mologia da passio la�na, termo emparentado com o pathos grego e que
pode ser traduzido como sofrimento:
129. O amado aproximava-se do amigo para que o consolasse e confortasse nos sofrimentos
que suportava e nos prantos que chorava. E quanto mais o amado se aproximava do amigo,
o amigo mais fortemente chorava e sofria por causa das desonras que faziam sofrer o seu
amado.
30. O amigo desobedeceu ao seu amado e chorou. O amado veio morrer no seio do seu
amigo para que o amigo recuperasse aquilo que havia perdido; e deu-lhe maior dom do que
aquele que �nha perdido.
Contudo, nessas metáforas o Llull filósofo prima por cima do Ramon
trovador (e inclusive do mís�co), como na hora de tratar a natureza do
amor:
138. Perguntaram ao amigo de que nascia o amor e de que vivia e por que morria. O amigo
respondeu que o amor nascia na recordaçãoe vivia da inteligência e morria pelo
esquecimento.
Mas Lúlio não deixa passar nenhuma oportunidade para lecionar sobre
questões teológicas, com ânimo quase de catecumenato:
284. “Diz, louco: o que é o pecado?” Respondeu: “Uma intenção avessa e dirigida contra a
intenção final e a razão pela qual o meu amado tem criado todas as coisas”.
359: “Diz, louco: o que a religião?” Respondeu: “Limpeza de pensamento e desejo de morrer
para honrar o meu amado e renunciar ao mundo para que não haja obstáculo na sua
contemplação e para dizer a verdade de suas honras”.
Nestes dois úl�mos trechos há de destacar-se que, para tratar de questões
profundas e muito sérias, Lúlio rebaixa o amigo (isto é, ele mesmo) à
condição de louco. Essa não foi a única vez que o pensador se apresenta
como alguém cujo discernimento está longe da normalidade. Em outro
capítulo do mesmo romance Blanquerna o autor aparece como um
personagem mais da trama, concretamente como Ramon lo foll, nome que
podemos traduzir como Ramon o luná�co ou Ramon o doido. Em outras
obras aparecerá como o Doutor Fantás�co, epíteto que seus crí�cos
ferozes lhe puseram em virtude de uma fér�l imaginação, mais própria dos
moradores do hospício do que das autoridades acadêmicas. Em uma
estratégia curiosa de superação dessa espécie de bullying (como diríamos
hoje), Ramon Llull opta por exibir com orgulho o infame �tulo que lhe
atribuíam seus acossadores. Isso porque, no fundo, o espírito cria�vo de
Lúlio é compreensivo com um certo grau de loucura, indispensável para
ques�onar as ideias preconcebidas que temos herdado.
Mís�co, sim; mas também pragmá�co. São muitas as faces de Lúlio que
transparecem da leitura de suas obras. Quiçá vivia com a mente nas
nuvens, mas os pés jamais deixaram de pisar o firme chão.
 
 
 
 
Peregrino
 
A era de Llull foi intensa em peregrinações. No Levante está Jerusalém, a
cidade santa das três grandes religiões monoteístas. Para os judeus, nela
está localizado o templo que o rei Davi mandou construir para preservar a
arca da Aliança. Por seu lado, para os cristãos, foi o palco da paixão, morte
e ressurreição de Jesus, fatos que selaram a Nova Aliança que conduzirá à
salvação da humanidade. Enquanto isso, para os muçulmanos, Jerusalém é
o des�no do profeta Maomé na Viagem Noturna que o levou até o céu. No
Poente, San�ago de Compostela, onde segundo a tradição cristã são
conservados os restos mortais do apóstolo São Jaime. E, bem no meio do
mundo mediterrâneo, a cidade eterna de Roma, em uma de cujas sete
colinas, a chamada de Va�cano, o Papa chefia a orbe católica. A
peregrinação a qualquer uma dessas três cidades santas concede a
indulgência plenária ao cristão que as visitar. Sabemos com certeza que
Llull que fez duas das três peregrinações (San�ago e Roma) e há fortes
indícios de que também esteve em Jerusalém.
A primeira peregrinação aconteceu pouco depois de sua crise de fé. Aos
trinta e poucos anos de idade resolveu cruzar o mar e visitar lugares
santos. A primeira parada nesta viagem espiritual e de procura da
redenção foi Rocamadour. Este enclave, situado na região francesa de
Dordogne, possui um santuário dedicado à veneração da Mãe de Deus e é
ainda hoje muito frequentado por romeiros e peregrinos.
De lá Llull par�u para a Galiza. Não sabemos ao certo qual caminho ele
seguiu, mas provavelmente atravessou os Pirineus pelo desfiladeiro de
Roncesvalles (Navarra) e con�nuou o percurso pelo conhecido como
Caminho Francês, uma estrada que se adentrava pelos reinos de Castela e
Leão até chegar ao des�no final de San�ago de Compostela. O Caminho
Francês �nha sido muito trilhado nos séculos XI e XII por reis, religiosos e
ar�stas e foi uma das vias de introdução da arte românica na Península
Ibérica. A basílica de San�ago, com seu pór�co da Glória, bem no centro da
praça do Obradoiro, é uma das joias da arquitetura e escultura de todos os
tempos. Gosto de imaginar Raimundo Lúlio examinando com atenção as
imagens que reproduziam passagens das Sagradas Escrituras. Como bom
trovador que fora na mocidade, Llull deveu olhar com especial esmero os
instrumentos musicais ali representados. Dentre eles devia destacar o
organistrum, uma espécie de órgão portá�l que funciona com uma
manivela e que servia de acompanhamento ao cantor que entoava as
músicas do Codex Calix�nus no altar maior da catedral.
Estas duas peregrinações �veram um efeito taumatúrgico. Ramon Llull
voltou a Maiorca com os ânimos restabelecidos. Porém, antes ele fez uma
parada em Barcelona, cidade onde moravam alguns de seus parentes. Na
capital do principal condado da Catalunha, Lúlio teve a oportunidade de
entrevistar-se com Raimundo de Penyafort. Este frade dominicano, que
seria canonizado pela Igreja, era uma autoridade jurídica, tendo compilado
muitos dos cânones do direito eclesiás�co. E ainda lhe sobrara tempo para
fundar, junto com o provençal Pedro Nolasco, a ordem dos mercedários,
uma congregação de frades des�nada à libertação de cristãos escravizados
pelos mouros e que com o tempo viraria uma ordem focada na atenção
aos presidiários em geral. Penyafort mostrou interesse por conhecer
aquele maiorquino que se dizia iluminado por Deus. Llull aproveitou a
oportunidade para pedir-lhe conselho sobre como poderia prosseguir os
estudos que o levariam a escrever “o melhor livro do mundo”. Penyafort,
chocado pelo excesso de ambição do homem, tentou afastar de sua cabeça
a ideia de frequentar algum centro universitário e lhe propôs voltar a
Maiorca. Lá, em sua ilha natal, deveria completar as múl�plas lacunas de
sua formação. Sem essa educação prévia de nada serviriam as viagens de
Llull aos grandes centros do pensamento europeu. Llull escutou as
recomendações do sábio e dedicará os seguintes anos a estudar em
Maiorca, de forma bastante autodidata.
As viagens a Roma só se realizaram após este intervalo forma�vo. Lúlio
visitou a cúria papal em quatro ocasiões. Em nenhuma delas a
peregrinação foi o mo�vo principal da jornada. Na primeira visita (1287)
Ramon Llull tentou expor ao papa seu projeto de cruzada espiritual, tarefa
que incumbiria à nova ordem de monges tradutores e pregadores. Esta
ordem em questão havia sido aprovada em 1276 por meio de uma bula
pon��cia e teve em Miramar sua primeira casa. Como veremos no capítulo
“Fundador”, a experiência de Miramar não foi muito bem-sucedida.
Contudo, Lúlio não teve oportunidade de expor nem uma palavra desse
projeto ao papa, pois Honório IV morreu pouco antes de o maiorquino
chegar à Cidade Eterna.
A segunda viagem a Roma teve lugar entre 1291 e 1292, em circunstâncias
que aparentavam ser mais propícias para os planos de Llull. O sólio
pon��cio �nha por �tular Nicolau IV, o primeiro pon�fice franciscano da
história, que, ademais, já estava familiarizado com as teses lulianas, das
quais fizera uma leitura favorável. Aliás, antes de chegar à cadeira de São
Pedro, Girolamo Masci havia desenvolvido uma extensa a�vidade
diplomá�ca, com frequentes contatos com o mundo oriental, já fosse para
resolver as controvérsias teológicas que separavam os cristãos ortodoxos
dos católicos, já fosse para dialogar com os muçulmanos ou com outros
povos pagãos das estepes. Contudo, esta segunda visita também se
malogrou por culpa do inesperado falecimento de Nicolau IV (1292).
A terceira visita (1294) teve como mo�vo a eleição papal de Celes�no V e
não foi exatamente em Roma, mas em Nápoles, cidade onde estava
reunido o colégio cardinalício. Esse conclave foi um dos mais conturbados
da história, já que os cardeais não conseguiam chegar a um candidato de
consenso. As facções romanas dos Orsini e dos Colonna criaram minorias
de bloqueio que deixaram o conclave em suspenso por quase dois anos.
Enquanto isso, os reis de Aragão e da França, além de seus primos
angevinos, que reinavam em Nápoles, conspiravam para atrair o favor dos
príncipes da igreja para suas respec�vas causas. O rei de Nápoles Carlos II
chegou a irromper no local onde se celebrava o conclave para cobrar uma
rápida conclusão do mesmo.
Finalmente o nome escolhidofoi o de um eremita chamado Pietro
Morrone, que habitava desde décadas atrás nas montanhas dos Abruzzi.
Perfeito desconhecedor dos meandros da polí�ca va�cana, Morrone
beneficiou-se da profecia que circulava a respeito da perdição da Igreja
caso não fosse achado um homem santo que a dirigisse. Já octogenário, o
novo papa escolheu o nome de Celes�no V. Imediatamente Ramon Llull viu
nele uma espécie de alter ego. Por uma feliz coincidência, quinze anos
antes o filósofo �nha escrito uma narração cujo protagonista, Blanquerna,
�vera um périplo vital parecido com o do papa. Igual que ele, Blanquerna
�nha abandonado a vida mundana e empreendera o caminho da
san�dade. Primeiro como ermitão, depois como monge e sucessivamente
como prior e bispo, Blanquerna �nha pra�cado reformas em todos os
cargos eclesiás�cos que ocupara, sempre no sen�do de retornar o dia a dia
dos clérigos ao espírito originário dos Evangelhos. Na ficção de Llull, a fama
de Blanquerna chegou tão longe que, contra prognós�co, acabaria sendo
proclamado Sumo Pon�fice. De seu trono romano, o personagem luliano
dará lições aos cardeais que se afastavam da mensagem cristã, pra�cando
uma espécie de minirreforma eclesiás�ca.
Ao saber da decisão do conclave, Ramon Llull par�u rapidamente para
Nápoles carregando consigo cópias de diversas obras suas, entre elas,
naturalmente, o Blanquerna. De novo o des�no cruzou-se na vida de Llull
em sen�do nega�vo. O recém-eleito Celes�no V não conseguiu adaptar-se
ao intrigante mundo da cúria va�cana e, antes de cumprir o primeiro ano
de pon�ficado, renunciou a chefiar a igreja. Seu sucessor, o autocrá�co
Bonifácio VIII, manifestava ideais muito distantes do reformismo de Llull.
Por isso, a terceira viagem de Lúlio a Roma, depois de uma exitosa estadia
em Nápoles, onde pôde pregar na catedral e ensinar na universidade,
resultou ser tão improdu�va quanto as anteriores. A hierarquia católica
con�nuou a fazer ouvidos moucos às propostas lulianas. Embora redigisse
uma longa pe�ção a Bonifácio VIII, na qual expunha os detalhes do seu
projeto de cruzada espiritual, não temos constância de que a audiência
papal chegasse a celebrar-se nem no Va�cano nem nas dependências
privadas de Anagni, onde este pon�fice passou longas temporadas. Sem
nenhum resultado tangível, Ramon Llull abandonou Roma em 1296 e
voltou para Montpellier.
Lúlio ainda terá um quarto encontro com o papa, mas será longe da Cidade
Eterna. Em concreto, coincidirá com Clemente V durante sua viagem a Lyon
para ser proclamado Sumo Pon�fice. Nessa viagem, acontecida depois da
escrita do Livro do Fim (1305), o pensador terá a oportunidade de expor a
Clemente V suas teses sobre uma derradeira cruzada que forçasse os
muçulmanos a escutar as pregações da Arte luliana, as quais, segundo o
parecer de seu autor, provocariam conversões automá�cas dos infiéis.
Apesar da intercessão do rei Jaime II de Aragão, ca�vado pela tese luliana
do Rex Bellator, não parece que o plano de Lúlio para recuperar Terra Santa
fosse levado muito a sério nas esferas pon��cias.
Essas mesmas ideias con�das no Livro do Fim seriam repe�das ante a
presença do papa no posterior concílio ecumênico de Vienne. Tampouco
nessa ocasião Lúlio a�ngiu o obje�vo almejado e o Sumo Pon�fice
manteve-se impermeável às suas teses, salvo algumas pequenas
concessões, como a autorização para fundar novas escolas de línguas
orientais que facilitassem a pregação do Evangelho na Ásia. Clemente V foi
um papa perfeitamente alinhado às posições geopolí�cas do rei da França,
máximo ar�fice de sua ascensão ao sólio pon��cio. Esta subserviência
papal chegou ao ponto de mudar sua corte de Roma para a pacata cidade
de Avignon, em troca da proteção de Filipe IV. Será o passo prévio ao Cisma
de Ocidente, que entre 1378 e 1417 dividirá a fidelidade dos católicos
entre dois papas: o de Roma e de Avignon.
Comentamos no começo deste capítulo que na Idade Média havia três
grandes peregrinações que os cristãos podiam realizar: San�ago de
Compostela, Roma e Jerusalém. Nos parágrafos anteriores deixamos
constância de que Ramon Llull pra�cou as duas primeiras. A questão agora
é saber se também viajou até Jerusalém. Foi Lúlio um dos poucos homens
de sua época a completar as três grandes peregrinações? Ora, neste ponto
os estudiosos encontram-se divididos. Há um indício poderoso para
acreditar que, com efeito, Ramon Llull visitou os Santos Lugares da
Pales�na, mas também existem mo�vos para a dúvida sobre se essa
jornada realmente aconteceu.
Sabemos, porque assim o reconhece o próprio Lúlio em suas memórias,
que o maiorquino viajou até as terras banhadas pelo Mediterrâneo
oriental. Na ilha de Chipre fez uma longa estadia, durante a qual manteve
contatos com o rei de Jerusalém e o grande mestre da ordem do Templo.
Essa viagem acontecerá em 1302, mais de dez anos depois da queda de
São João de Acre (1291), o úl�mo empório que os cruzados conservavam
na Pales�na. A sua perda forçou as ordens militares a buscar novas bases
em ilhas próximas ao con�nente asiá�co: os templários escolheram Chipre
e os hospitaleiros Rodes.
No começo do século XIV circulou o boato de que os tártaros �nham
invadido a Crescente Fér�l e derrotado os mamelucos. O khan Cassano,
segundo essas mesmas no�cias de fonte desconhecida, solicitara ao papa o
envio de emissários para proceder à sua conversão ao catolicismo. Lúlio
acreditou nessas informações e viajou até o outro extremo do Mare
Nostrum. Também sabemos que interrompeu sua estadia em Chipre para ir
à Ásia Menor, muito provavelmente com o propósito de visitar Armênia. O
mo�vo deste deslocamento permanece obscuro. Foi, quiçá, uma missão
diplomá�ca encomendada pelas autoridades cipriotas para conhecer em
primeira mão a situação no Próximo Oriente e avaliar uma eventual aliança
com os tártaros? Não sabemos. São apenas elucubrações.
Os que defendem que a peregrinação de Lúlio a Jerusalém teve lugar
fundamentam esta suposição numa descrição con�da no Livro do Fim, cujo
texto original em la�m diz assim:
Sed aliud altare est, quod est exemplar et dominus omnium aliorum. Et quando uidi, in ipso
duae lampades solae erant; una tamem fracta est. Ciuitas depopulata est, eo quia ibi quase
quinquaginta homines non morantur; sed hic mul� serpentes in cauernulis commorantur; et
illa ciuitas est excellen�ssima super omnes alias ciuitates; et hoc intelligo quo ad Deum.
 
Neste trecho do Liber de Fine, o maiorquino compara a riqueza de
iluminação e ornamentos do altar de São Pedro em Roma com a pobreza
“de outro altar que é exemplar e o senhor de todos os demais”. Lúlio
afirma que esse altar somente possuía duas lâmpadas que o iluminassem,
e uma delas estava quebrada. Aliás, em palavras do maiorquino, a cidade
que abrigava esse altar estava tão despovoada que apenas cinquenta
moradores podiam ser achados. Em lugar de pessoas, eram as serpentes as
que pululavam à vontade na urbe. Todas essas descrições fazem pensar,
sem muito risco, que Lúlio está se referindo à Jerusalém do começo do
século XIV.
Para os autores par�dários de que a peregrinação a Jerusalém realmente
aconteceu, essas palavras de Lúlio evidenciam que o pensador visitou a
Cidade Santa de judeus, cristãos e muçulmanos. No entanto, um olhar mais
crí�co abre todo um leque de ques�onamentos. Essa descrição do Livro do
Fim foi fruto de uma experiência pessoal ou, pelo contrário, reproduziu o
testemunho de terceiros? Por que Lúlio mostra tanto receio em afirmar
que visitou Jerusalém em obras posteriores? Resulta quanto menos
estranho que esta viagem não fosse mencionada na Vida coetânea, livro
escrito anos depois e no qual são narradas sem rodeios as peregrinações a
Rocamadour e San�ago de Compostela.
Não quero com estas linhas negar redondamente a peregrinação de
Ramon Llull a Jerusalém, mas considero que este é um episódio da sua
biografia ainda em aberto. Se a peregrinação realmente ocorreu, por
mo�vos que desconheço, Lúlio fez questão de tratar esse assunto com
nebuloso mistério, em lugar de difundi-lo com o orgulho �pico de um
peregrino.Estudioso
 
Como ele mesmo reconhece em diversos textos, Ramon Llull não teve em
seus anos de infância e juventude a formação �pica de um clérigo, posto
que não era esse o des�no habitual para o primogênito de uma família de
mercadores, com anseio de tornar-se cavaleiros. A crise de fé chegou a
Ramon em um momento em que era um homem quase iletrado, sem
muitas noções de gramá�ca. Ainda menos provido dos conhecimentos
suficientes de filosofia e teologia necessários para escrever aquele livro
chamado a tornar-se o melhor do mundo, com cuja leitura os infiéis
aceitariam de olhos fechados a superioridade do cris�anismo. Após as
peregrinações a Rocamadour e Compostela, ele sen�u vontade de
frequentar os centros universitários e formar-se nessas matérias rodeado
dos mais pres�giosos professores. Entretanto, Raimundo de Penyafort
esfriou esse impulso e fez-lhe ver que não estava preparado para os
estudos superiores.
Seguindo esta recomendação, Lúlio voltou a Maiorca e lá ficou pelos
seguintes nove ou dez anos, durante os quais acumulou um vasto saber em
diversas matérias. Não sabemos ao certo se teve um tutor ou mestre que o
guiasse nessa fase de aprendizado, mas parece bastante provável que
Ramon seguiu os estudos de maneira autodidata e guiando-se em boa
medida pela própria intuição. Sem dúvida, tornou-se um visitante assíduo
das bibliotecas da cidade, das quais infelizmente tampouco sabemos
grande coisa. Imaginamos que os dominicanos conservavam um bom
acervo bibliográfico em seu convento, muito próximo do palácio real da
Almudaina. Esta coleção devia incluir um número significa�vo de obras em
árabe (o studium arabicum que vemos mencionado em diversas fontes do
século XIII). Também os monges cistercienses do recém fundado mosteiro
de La Real deviam possuir uma biblioteca com documentos importantes,
sobretudo cópias da Bíblia e comentários sobre textos piedosos. Não é
disparatado supor, aliás, que nas longas sessões de leitura Ramon
recebesse o auxílio dos eclesiás�cos que gerenciavam ou frequentavam as
bibliotecas, ajudando-o a entender conceitos teológicos ou a traduzir
obscuras formas grama�cais la�nas. Contudo, é sumamente arriscado
aventurar-se a afirmar quais foram exatamente os autores e as obras que
integraram o corpus forma�vo de Llull, já que ele faz contadas referências
aos textos que influenciaram nos seus escritos. Ademais, o fato de a Arte
fugir geralmente do argumento de autoridade e centrar-se exclusivamente
em princípios racionais (as razões necessárias) torna muito árduo o
trabalho de pesquisar quais foram as leituras que Lúlio teve na sua etapa
de formação. Neste ponto, como em outros muitos da vida do maiorquino,
os pesquisadores movem-se bastante às escuras.
Apesar desta falta de referências expressas, estudando a obra luliana
evidencia-se a influência de diversos escritores an�gos e medievais, que
Lúlio deve ter lido, já fosse em cópias de seus textos originais ou, com
maior probabilidade, através de glosas escritas por terceiros. Assim, entre
os autores que influenciaram Ramon nesses anos de formação devemos
destacar os gregos clássicos Platão, Aristóteles, Ptolomeu e Empédocles; os
cristãos Pseudo-Dionísio Aeropagita, Agos�nho de Hipona, Ricardo de São
Vítor, Boécio, Gregório Magno, Pedro Lombardo, Tomás de Aquino,
Mar�nho Ânglico, Ricardo de Mediavilla e Egídio Romano; os muçulmanos
Abuhamid al Ghazali, Averróis de Córdoba, Al Kindi, Ibn Arabi de Múrcia; o
averroísta cristão Síger de Brabante, entre outros. Tudo em suma leva Pere
Villalba a considerar Ramon Llull como um dos melhores representantes do
“escola�cismo popular”, já que bebia das mesmas fontes que boa parte do
pensamento cristão do século XIII, mas sem fazer parte da corrente
Escolás�ca propriamente dita.
Na Vida coetânea, o maiorquino dedica apenas as seguintes linhas a
descrever esses anos:
5
Quando aí [Maiorca] chegou, abandonando o modo de vida faustoso que �vera, ves�u um
hábito do burel mais grosseiro que pode encontrar, e assim, nessa mesma cidade, estudou
um pouco de gramá�ca e, tendo comprado ali mesmo um Sarraceno, aprendeu com ele a
língua árabe.
O único mestre ao que Llull alude expressamente em sua produção literária
é justamente o escravo sarraceno. Embora o pensador achasse
indispensável conhecer a língua arábica para realizar seu projeto de
conversão, não podemos descartar a hipótese de Llull ter �do ao alcance
alguns textos de autores muçulmanos. Além dos exemplares que
sobreviveram ao espólio que se seguiu à conquista cristã, os mercadores
judeus também deviam comerciar com livros matemá�cos, filosóficos,
médicos ou técnicos, muitos deles de autores árabes. Lúlio pôde ter �do
acesso a essas obras e, pelo fato de lê-las no seu idioma original,
engrandecer poderosamente a sua mente, abrindo-a a um conhecimento
muitas vezes negligenciado pelos pensadores cristãos. Aliás, o domínio da
língua arábica e o seu profundo conhecimento do Alcorão e da religião
islâmica fazem de Lúlio uma rara avis dentro da história da filosofia
ocidental, um chris�anus arabicus, como já foi definido. Assim, por
exemplo, o seu livro sobre os Cem nomes de Deus (1288) só pode ser
compreendido se conhecemos previamente a crença muçulmana segundo
a qual Alá possui cem nomes diferentes, noventa e nove dos quais estão ao
alcance do homem, enquanto o úl�mo, o centésimo, ainda não foi
descoberto. Segundo essa mesma crença, o sábio que o descobrir a�ngirá
o conhecimento mais profundo sobre a essência divina.
A fluência na língua árabe será um diferencial que fará com que Ramon
Llull se destaque da imensa maioria de seus contemporâneos. No entanto,
não estou tão seguro de que essa influência arábica lhe ajudasse na
difusão da Arte nos cenáculos eruditos do Ocidente. Muito pelo contrário,
penso que contribuiu a dar à criação luliana uma pá�na de exo�smo e,
consequentemente, a levantar alguns receios à sua recepção acadêmica,
pelo seu caráter um tanto outsider. Com o domínio do árabe, Llull
desenvolverá uma linguagem original, incorporando sufixos até então
nunca usados nem em la�m nem em catalão.
Contudo, a relação com o escravo mouro não acabou bem. Estando Ramon
ausente, o escravo blasfemou contra o nome de Jesus, o que provocou a
ira dos vizinhos. Ao saber desse ato ignominioso, Lúlio o repreendeu e
bateu nele diversas vezes. Ressen�do pelo cas�go infringido, o escravo
tentou assassinar o mestre com uma faca. Porém, os golpes do mouro só
causaram feridas superficiais em Ramon. Como cas�go, o escravo foi preso
num cárcere domés�co, enquanto seu dono resolvia o que fazer com ele.
Embora o ato fosse gravíssimo, Llull não queria puni-lo excessivamente, já
que se sen�a em dívida com ele por ter-lhe ensinado a língua árabe. Pediu
a intercessão de Nossa Senhora e ficou sozinho rezando, à espera de uma
resposta das Alturas. Depois de três dias, ainda sem saber bem o que fazer,
Ramon voltou a casa e lá encontrou o escravo morto. Seu corpo estava
pendurado com uma soga amarrada ao teto. Antes de o mestre tomar
qualquer decisão sobre o seu futuro, o mouro preferiu abandonar este
mundo pelos próprios meios.
Se a linguagem será uma preocupação constante de Lúlio – levando-o à
configuração de uma nova língua de caráter universal -, o interesse pelos
números não será menor. A efeitos numerológicos, boa parte da sua
produção gira em torno do número quatro e do número três. O primeiro
deles deriva do estudo dos autores an�gos, que se inspiravam sobretudo
no mundo �sico. Com um número quatro era possível dividir a matéria em
grandes categorias: ar, fogo, terra e água. O ar �nha em comum com o fogo
o caráter quente, enquanto dividia com a água a umidade. O fogo, por sua
vez, era seco como a terra. E a terra compar�lhava com a água o caráter
frio. Dispostos em forma de quadrado, os quatro elementos clássicos
permi�am relações de concordância entre os que �nham algum aspecto
em comum (calor, frio, umidade e sequidade) e de contrariedade entre os
dois pares opostos (ar/terra e fogo/água).
A par�r dos quatro elementos - teoria que teveem Aristóteles um de seus
máximos divulgadores, mesmo que o crédito dela deva ser atribuído a
autores anteriores, como Anaxímenes -, a ciência greco-romana expandiu-
se por todos os campos. Os textos médicos de Galeno são claramente
derivados dessa ideia, a ponto de desenvolver a teoria dos quatro
humores, cada um dos quais relacionado com um elemento diferente. Até
a psicologia dos indivíduos dependia da predominância de um elemento
ou de outro em seu corpo. Assim, havia pessoas sanguíneas (ar), coléricas
(fogo), melancólicas (terra) ou flegmá�cas (água). Ainda hoje, os
pra�cantes da astrologia classificam os doze signos do Zodíaco conforme a
suposta influência que neles exercem cada um dos quatro elementos.
Todavia, Lúlio não demoraria a perceber as limitações da teoria dos quatro
elementos. Embora servisse para entender os seres materiais, uma vez
sublimada a esfera terrestre estes perdiam sua virtualidade. Para entender
a Deus, o número idôneo não era o quatro, mas o três, já que este
descreve melhor as pessoas que, segundo o dogma cristão, integram a
Divindade (Pai, Filho e Espírito Santo).
Com isso, Ramon Llull foi um passo além do hilemorfismo. As coisas não
eram cons�tuídas apenas por matéria e forma, tal como defendia
Aristóteles. Cumpria acrescentar um terceiro fator: a conexão da matéria e
da forma. Ou, como o maiorquino definiria em uma das primeiras
manifestações do conceito de correla�vo: Deus + criatura + operação. Com
o tempo, a estrutura do correla�vo tornar-se-á criador/criado/criação.
O aprofundamento no significado nos números três e quatro (e suas
representações gráficas em forma de triângulos e quadrados,
respec�vamente) é essencial para uma plena compreensão da Arte luliana.
O próprio Doutor Iluminado quando quis explicar a quadratura do círculo
teve de fazer uso de outra forma geométrica. Adivinham qual? Com efeito,
o triângulo.
 
 
 
Lógico
 
Entre os séculos XII e XIII aconteceu a recepção no Ocidente de duas
grandes contribuições árabes ao pensamento universal. A primeira foi
estritamente original do mundo islâmico: a álgebra, ou seja, a formulação
de problemas matemá�cos para resolver uma incógnita. A segunda foi
original em termos mais rela�vos, já que o papel dos sábios muçulmanos
foi o de recuperar, comentar e divulgar achados de um passado distante,
que �nham ficado pra�camente esquecidos por quase mil anos. Estou me
referindo à lógica e mais concretamente à lógica aristotélica, da qual Al-
Gazali (ou Al-Ghazali) foi um de seus pioneiros sinte�zadores e
comentadores medievais, com obras como Maqâsid al-falâssifa
(Tendências dos filósofos).
A lógica foi uma das primeiras disciplinas a despertar o interesse de Lúlio,
ainda em sua fase de formação. A primeira obra que ele escreveu, antes do
colossal Livro de contemplação em Deus (1271-73), foi mais modesta em
suas dimensões, porém muito relevante no desenvolvimento posterior da
filosofia luliana. Trata-se da Lógica de Al-Gazali (1271?), autor persa ao
qual Ramon Llull frequentemente se refere pelo seu nome catalanizado:
Algatzell. Este autor, muito importante na história do pensamento islâmico,
era pouco conhecido nos lares cristãos do século XIII. Com quase absoluta
certeza, Lúlio chegou a ele diretamente, através da leitura de seus textos
originais em árabe. É possível, inclusive, que o maiorquino escrevesse a
Lógica de Al-Gazali originariamente em árabe, embora na atualidade só
conservemos as versões em catalão e la�m. É um texto rimado, para
facilitar sua memorização, e que o autor faz questão de verter em
vernáculo para alcançar inclusive àqueles que não sabem la�m, tal como
diz bem na primeira estrofe, numa declaração de princípios que guiará
toda a obra luliana:
 
Deus, para honrar-Vos,
Da lógica tratamos brevemente
A qual é compêndio novo
Onde ao meu entendimento apelo,
Que translado do la�m ao romance
Em rimas e em palavras singelas,
Para tal de poder ensinar
Lógica e filosofar
Àqueles que não sabem la�m
Nem arábico, porque Vós
Me encaminhastes, Senhor, ao saber
E a boa intenção ter.
6
 
Nos 1.598 versos seguintes, Lúlio comenta os aspectos fundamentais da
lógica de Algatzell, como a sua u�lidade, as matérias em que é dividida, a
forma dos silogismos e as falácias, entre outras questões.
No século IV a.C. Aristóteles definira o primeiro grande tratado de lógica
formal em toda uma série de textos que na Idade Média adquirirão o nome
de Organon. O filósofo grego expôs as regras a par�r das quais, dada uma
premissa maior e uma premissa menor podiam ser extraídas conclusões
logicamente congruentes. Resumindo muito, a lógica aristotélica dava
validade a conclusões que chegavam a uma consequência a par�r de uma
causa (quia) ou a uma causa a par�r de uma consequência (propter quid).
À maneira de exemplo, com a demonstração quia, se vemos uma floresta
arder à noite podemos concluir que há fumaça, mesmo que a escuridão
não nos permita vê-la. Através da demonstração propter quid seguimos o
caminho inverso: se de dia vemos fumaça no horizonte podemos estar
confiantes de que lá há fogo, embora as chamas não sejam visíveis a olho
nu. No entanto, esta lógica formal não se preocupava pela verdade das
premissas em si. Apenas cuidava de controlar se a conclusão seguia as
regras formais do silogismo, mas sem entrar em valorações acerca da
veracidade ou falsidade dessa conclusão lógica.
Vou tentar explicar isso com um exemplo. Suponhamos que a premissa
maior é “todos os humanos são elefantes” e a premissa menor “todos os
elefantes são carnívoros”. Neste caso a conclusão “todos os humanos são
carnívoros” é totalmente correta segundo a lógica formal de Aristóteles.
Não importa que as premissas sejam materialmente falsas. Todos sabemos
que os humanos não são elefantes e que os elefantes, até onde alcança a
zoologia, são herbívoros. Também sabemos que os humanos não são
estritamente carnívoros, mas onívoros (alguns inclusive são veganos,
seguindo uma moda recente). Mesmo assim, par�ndo da base das regras
do Organon, a conclusão que afirma que todos os humanos são carnívoros
é plenamente coerente do ponto de vista da lógica.
Agora vamos pôr outro exemplo em sen�do contrário. A premissa maior é
“todos os humanos são animais” e a premissa menor é “todos os elefantes
são animais”. Podemos afirmar como conclusão “todos os humanos não
são elefantes”? Pois bem, não podemos. Pelo menos não em aplicação das
regras da lógica aristotélica, apesar de o senso comum nos dizer que tanto
as duas premissas quanto a conclusão são certas.
Por que isso é assim? Bom, para entendê-lo primeiro temos que explicar
que as premissas estão integradas por três termos: maior, médio e menor.
Voltando ao primeiro exemplo, “humanos” seria o termo maior, “elefantes”
o termo médio e “carnívoros” o termo menor. Da mesma maneira, no
segundo exemplo “humanos” seria o termo maior, “animais” o termo
médio e “elefantes” o termo menor. Como vemos, os dois termos médios
destes exemplos aparecem somente nas premissas, mas estão ausentes
nas conclusões. Isto é devido a que na lógica aristotélica o termo médio é
uma essência abstrata, ao contrário dos termos maior e menor, que são
concretos. Mesmo que o termo médio não seja concreto, isso não altera as
regras formais da lógica. Portanto, o silogismo funcionará sem problemas
seguindo a mesma mecânica, com independência de o termo médio ser ou
não ser um ato concreto.
Este desligamento da lógica formal com a “realidade das coisas” causou
grande desconforto entre os pensadores medievais. Um deles, Lúlio, não se
resignou a afastar os procedimentos da lógica da verdade das premissas.
Como aponta Umberto Eco, para Lúlio as regras lógicas têm que ser
coerentes com a grande cadeia do ser, sobre a qual se assenta toda a teoria
luliana. Só que para conseguir isso o maiorquino nos levará a misturar a
lógica formal com algo tão aparentemente incompa�vel como a meta�sica.
Lúlio não rejeitou a lógica aristotélica, mas considerou as demonstrações
quia e propter quid insuficientes para chegar a um certo conhecimentode
Deus. Para o Doutor Iluminado, tais argumentações ajudavam a entender
os fenômenos naturais, mas eram inservíveis em se tratando dos dogmas
da religião. A lógica que nos ajuda a entender o pensamento dos homens
não é, segundo ele, a mesma que a lógica que precisamos para nos
aproximar ao pensamento de Deus ou ao pensamento dos anjos ou ao
pensamento dos animais, para pôr três exemplos de entes diferentes.
Cumpria, pois, achar um novo sistema de demonstração que superasse o
velho esquema de causa e efeito.
Esta descoberta de Lúlio será uma nova lógica-meta�sica (a Arte), edificada
sobre a relação real existente entre o pensamento e os modos de ser de
cada realidade. Em consequência, a lógica luliana difere da aristotélica num
ponto crucial: enquanto para o grego o termo médio do silogismo é uma
essência abstrata, na Arte luliana o termo médio é um ato concreto.
Portanto, a lógica luliana vai além de uma lógica formal para tornar-se uma
autên�ca lógica real. Para obter isso na prá�ca, a Arte de Llull introduz o
princípio de conveniência (desconhecido na lógica aristotélica) e a sua
derivada: a demonstração “por equiparação”. Assim, o princípio de
conveniência parte da igualdade do aparelho demonstra�vo e do aparelho
demonstrado, cuja relação passa a ser “conveniente” ou “inconveniente” e
não mais apenas “verdadeira” ou “falsa”, como acontecia no silogismo
aristotélico. Por sua vez, a demonstração “por equiparação”, um dos
alicerces fundamentais da Arte, tem como base o princípio de
conveniência, que possibilita argumentações que não ficam restritas à
esfera do que é verdadeiro ou falso e que admite argumentar sobre aquilo
que já não existe ou não exis�u nunca – como é tudo o que é possível -.
A lógica real luliana fundamenta-se nas Dignidades de Deus, a par�r das
quais e mediante razões necessárias Lúlio desdobra a virtualidade de sua
construção lógico-meta�sica orientada, inicialmente, à conversão dos
infiéis. O conceito das Dignidades, Atributos ou Virtudes de Deus aparece
bem no início da obra literária luliana, pois encontramos suas primeiras
referências já no Livro de contemplação em Deus. Neste tema a influência
da teologia islâmica é evidente. Como já vimos, para os muçulmanos Alá
possui cem nomes, dos quais apenas os noventa e nove primeiros estão ao
alcance da mente humana. Agora vamos acrescentar que cada um desses
nomes faz referência a uma hadra. As hadras são qualidades existentes no
mundo material, mas somente na Divindade alcançam sua perfeição, como
a bondade, a grandeza, a liberalidade ou a misericórdia, entre outras.
Mas não foram apenas as hadras as que influenciaram na concepção das
dignidades lulianas. Seguramente os sephiroth judaicos �veram um papel
semelhante ou inclusive superior. Os cabalistas extraíram nove sephiroth
de Jeová (por coincidência, o mesmo número de dignidades que
encontramos nas formulações tardias da Arte luliana) e os entendiam não
apenas como princípios lógicos demonstráveis, mas como essências
iden�ficáveis com o próprio Deus.
No começo Llull trabalhará com dezesseis dignidades, as dezesseis que
aparecem na Figura A da Arte nas suas primeiras formulações. Com o
tempo, o número de dignidades seria reduzido a nove. O mo�vo dessa
mudança não está totalmente claro. Talvez Llull considerasse que sete
delas eram redundantes ou que podiam ser abrangidas pelas nove
restantes. Outra hipótese plausível é a que defende Pring-Mill, segundo
cuja interpretação, o número de dezesseis, ao ser o quadrado de quatro,
está in�mamente vinculado à teoria dos quatro elementos da matéria
(terra, ar, fogo e água). Esta teoria dos quatro elementos, nascida na Grécia
Clássica, imperaria sem oposição nos estudos �sicos e médicos da Europa
medieval e permanecerá vigente até o século XVII. Com a redução para
nove dignidades, isto é, o quadrado de três, Llull adaptou a Arte à trindade
do Deus cristão (Pai, Filho e Espírito Santo).
A Arte será objeto de con�nuas revisões periódicas. Dá a impressão de que
Lúlio nunca ficou sa�sfeito por completo, seguramente por ser consciente
das limitações da linguagem humana. Por isso, a cada certo tempo voltará
à Arte para retocá-la, estender seus limites ou simplificá-la com o intuito
de fazê-la mais compreensível aos estudiosos de Paris. Segundo
Domínguez Reboiras, a Arte e suas variações são o assunto principal de
treze obras de Lúlio, começando pela Ars compendiosa inveniendi
veritatem, composta em Maiorca em 1274, até à Ars generalis ul�ma, cuja
composição se realizou entre as cidades de Lyon e Pisa nos anos que vão
de 1305 a 1308. Das outras treze obras relacionadas com a Arte, as que
ganharam maior relevância foram: Ars demonstra�va (Montpellier, c.
1283), Ars inven�va verita�s (Montpellier, 1290), Tabula generalis (esforço
de sistema�zação gráfica das principais figuras da Arte, cuja composição foi
iniciada em Túnis em 1293 e completado um ano depois em Nápoles) e a
Ars brevis (espécie de car�lha ou manual introdutório, escrito em Pisa em
1308).
A Arte luliana atendia a diversas funções. A primeira, conforme confessa
seu autor, conhecer e amar a Deus, duas ações (o conhecimento e o amor)
que para Llull eram indissolúveis. Mas a Arte também devia mo�var o
apreço pelas virtudes e o ódio pelos vícios. Em terceiro lugar, a Arte
cumpria um rol de instrumento para desfazer os erros dos infiéis e
promover sua conversão ao cris�anismo, por meio de razões necessárias.
Aliás, os mecanismos lógicos da Arte deviam facilitar a formulação de
questões e dar-lhes respostas, o que com certeza permi�ria uma rápida
apreensão de diversas ciências, as quais, sob o guarda-chuva
epistemológico da Arte, ganhariam em clareza e racionalidade. Em suma, a
Arte, tal como Lúlio a concebera, era uma metaciência, ou “ciência de
ciências”, que por força conduziria quem a pra�casse ao conhecimento
verdadeiro e, portanto, o aproximaria de Deus e o afastaria do erro e do
pecado.
Sendo que a especulação sobre seu modelo lógico serviu de guia para boa
parte da criação luliana, costuma-se a dividir as obras deste pensador em
quatro fases sucessivas:
a) A fase pré-ar�s�ca (1271-74), na qual um Ramon Llull ainda em
formação começa a esboçar as linhas gerais de sua Arte, com
obras como a Lógica de Algatzell ou o Livro de contemplação em
Deus.
b) A fase quaternária (1274-89), em que Llull já traça os elementos
fundamentais de sua Arte, que toma como base dezesseis
Dignidades de Deus. Correspondem a esta fase obras como a Ars
compendiosa inveniendi veritatem ou a Ars demonstra�va.
c) A fase ternária (1290-1308), durante a qual Ramon Llull busca
simplificar a Arte para torná-la mais compreensível. As dezesseis
Dignidades da Figura A são reduzidas a nove. A Ars generalis
ul�ma será a máxima expressão desta concepção ternária da Arte
luliana.
d) A fase pós-ternária (1308-1315), em que o empenho de Llull se
focará mais em u�lizar a Arte como método de resposta a
questões concretas, por meio da escrita de opúsculos e tratados
breves, do que em reelaborar a Arte de maneira extensiva.
As principais figuras da Arte luliana são as seguintes:
Figura A: Representa a Deus através da conjunção de todas as suas
Dignidades. Estas dignidades são atributos da Divindade e, portanto,
princípios absolutos. Ficam acima de qualquer demonstração cien�fica, já
que, em sua máxima expressão, são intrínsecos a Deus, tal como é
concebido pelas três grandes religiões do Livro. A defesa de sua existência,
pois, não depende de argumentos lógicos, mas da mera crença no Ser
Supremo. São justamente estas dignidades as que dão o componente
meta�sico ao edi�cio lógico e meta�sico luliano.
Como consequência, para Llull cada uma das Dignidades é infinita e igual à 
essência divina. As Dignidades são, portanto, princípios do ser e do agir, 
tanto de Deus como de suas criaturas. Lúlio afirma também que estas
 Dignidades são princípios do conhecer e que o ser humano pode conhecê-
las apenas parcialmente. Adicionalmente, as Dignidades são correla�vas,
posto que nelas há um elemento agente, outropaciente e um conec�vo.
Assim fazendo, Lúlio extrapola na sua linguagem o significado do número
três, o que lhe serve para explicar parcialmente os dogmas cristãos e ver as
três dimensões no universo criado.
Na figura A é onde fica mais evidente o funcionamento da demonstração
por equiparação. Cada uma das dignidades se inter-relaciona com todas as
demais, numa posição de igualdade entre si. Como o próprio Lúlio
reconhece, esta igualdade entre as proposições é uma diferença chave em
relação com as demonstrações clássicas quia e propter quid. Nestes
úl�mos casos, seguindo a lógica aristotélica, as premissas não são iguais:
uma é a maior e a outra a menor (a causa e o efeito, nos fenômenos
�sicos).
Cada dignidade está representada por uma letra (BCDEFGHIKLMNOPQR
nas versões quaternárias da Arte e BCDEFGHIK nas ternárias). A letra A fica
no centro da figura e não representa nenhuma dignidade por si só, mas a
soma de todas elas, ou que nos leva a coligir que a letra A é a
representação por antonomásia de Deus.
 
Figura S: Representa os processos de conhecimento dos seres espirituais
por meio da memória, intelecto, vontade e ação. Estas quatro instâncias
conformam os vér�ces de um quadrado que gira ao redor de um círculo
gerando combinações lógicas. Esta figura simboliza em certa medida o
papel subje�vo que o ar�sta deve adotar se quer explorar todos os
pormenores da Arte.
O sistema lógico-meta�sico de Llull não é algo que deva ser memorizado.
Muito pelo contrário: exige a quem se aproxime dele um esforço de
apreensão que só adquirirá depois de muito tempo de estudo e reflexão.
Mas a Arte (sobretudo as versões mais simplificadas, como a Ars brevis)
facilitam seu acesso mediante figuras que permitem uma aprendizagem
quase que brincando – embora Llull sempre tratasse sua invenção com a
maior seriedade e rigor intelectual - com letras, palavras e formas
geométricas. Justamente nesse processo combinatório o ar�sta extrairá
conclusões verdadeiras às questões que se proponha, conduzindo a Arte
para novos horizontes, muitos deles impensáveis mesmo para seu inventor.
 
 
Figura T: Trata dos princípios e dos significados, isto é, dos modos de
processar os dados recebidos através da Figura S. Se na Figura A a Arte
opera com princípios absolutos, aqui Lúlio dá preponderância aos
princípios chamados posteriormente por seus comentadores de “rela�vos”,
exprimidos em forma de triângulos: verde (diferença-concordância-
contrariedade), vermelho (princípio-meio-fim) e amarelo (maioridade-
igualdade-minoridade). Enquanto os princípios absolutos (ou Dignidades)
são qualidades divinas, os princípios da Figura T indicam as diferentes
perspec�vas que os seres espirituais adotam nos seus atos.
Estes princípios da Figura T pertencem aos seres espirituais, que são os que
os possuem. Algumas destas perspec�vas também podem ser aplicadas a
Deus, tais como a Diferença, o Princípio, o Meio, ou o Fim. A atualidade das
Dignidades pode ser vista em sua Maioridade, sua Igualdade, sua
Diferença, etc.
 
 
 
 
Figura V: É a representação gráfica das virtudes e dos vícios (figura V).
 
 
Figura X: Representa graficamente a predes�nação.
 
 
Figuras Y e Z: São as únicas figuras não passíveis de combinação, já que
simbolizam os princípios absolutos da Verdade (Y) e da Falsidade (Z).
 
 
Figura após figura e revisão após revisão, Lúlio irá elaborando com a sua
Arte (ou lógica real) uma “máquina de pensar” (ratus apparatus). Ao
esmiuçar formulações complexas em argumentações simples, a Arte de
Lúlio acabou por se tornar um ar��cio (macchina) que permi�a ao seu
operador (ar�sta) demonstrar (inventar) a verdade. Para facilitar o uso da
Arte quase como se de um aparelho de cálculo se tratasse, várias das
figuras saíram (textualmente) do papel e se tornaram objetos móveis de
madeira com formas de quadrados, círculos e triângulos, mediante os
quais o ar�sta podia realizar manualmente as operações lógicas
necessárias.
Todavia, a Arte não está moldada num numerus clausus de figuras. Estas
representações gráficas são complementares e ajudam à exposição dos
mecanismos lógicos dos diferentes temas do pensamento luliano,
adaptando-se às necessidades de cada situação. Por exemplo, na estadia
de Ramon Llull na universidade de Paris em 1288-89, foram acrescentadas
as figuras da Teologia, da Filosofia do Direito, a Elemental, a Demonstra�va
e a do Alfabeto.
O desenvolvimento da Arte trouxe consigo importantes novidades no
vocabulário filosófico. Para o uso dos correla�vos (atos a�vos, passivos e
cone�vos) Lúlio recorreu amiúde a desinências, tais como os sufixos –
�vo/a, -bilio/a e –are. Embora esses sufixos exis�ssem no la�m e nas
línguas romances, eram raramente usados, sobretudo do modo como o
maiorquino os manipulava. Essa obscuridade da linguagem luliana era uma
barreira importante para a compreensão e difusão da Arte e na atualidade
supõe um desafio para os tradutores dos seus livros. Para alguns crí�cos,
Ramon Llull se aproximava mais das estruturas linguís�cas do árabe do que
da morfologia própria dos idiomas la�nos, o que incrementou a (má) fama
de chris�anus arabicus que o perseguiria pelo resto da vida.
Embora a Arte �vesse intrinsicamente um componente lógico, Lúlio não
abandonou o cul�vo da lógica como disciplina per se. Já septuagenário,
concebeu em Gênova a Lógica Nova (1303). Nela, além de tratar aspectos
comuns desta área do conhecimento, como os silogismos e os universais, o
pensador aprofunda na relação da lógica com as outras ciências, como a
teologia, a medicina ou o direito. Dentro desta linha de lógica aplicada, um
ano mais tarde, em 1304, escreve o Livro para provar alguns ar�gos da fé
católica mediante razões silogís�cas.
 
Filósofo
 
Junto com a recepção da lógica aristotélica, o pensamento cristão do
século XIII viu o ressurgimento de uma disciplina rela�vamente pouco
pra�cada pelas gerações imediatamente anteriores: a filosofia. Quase
todas as contribuições importantes do pensamento filosófico até então
�nham se concentrado nas obras dos Padres da Igreja. Autores como Santo
Agos�nho, São Jerônimo, Santo Ambrósio ou Santo Isidoro de Sevilha
�nham feito um compêndio do conhecimento an�go adaptando-o aos
dogmas da nova religião monoteísta, que a par�r do século IV se tornou a
fé oficial do Império Romano e de boa parte dos reinos germânicos que o
sucederam no Ocidente. Pra�camente todos esses autores es�veram
influenciados, grosso modo, pela filosofia de Platão, mais concretamente
pelo neoplatonismo de pensadores como Plo�no. Também
compar�lhavam em boa medida o ideal ecumênico do estoicismo, o que se
tornaria uma das marcas dis�n�vas da Igreja católica que, papa após papa
e concílio após concílio, ia se consolidando paula�namente.
Depois da literatura patrís�ca, e salvo contadas exceções (como o
renascimento carolíngio, o qual produziu figuras tão eminentes como
Alcuíno de York), a filosofia cristã limitou-se à repe�ção e comentário
daquilo que fora escrito pelos Padres. A escassez material da Alta Idade
Média, com a diminuição do comércio e da circulação dos metais preciosos
para encunhar moedas, fez com que os utensílios de escrita fossem
tremendamente caros. O pergaminho (extraído da pele do cordeiro) e os
pigmentos corantes necessários para a confecção da �nta eram itens raros,
a ponto de serem reservados para a reprodução de livros sacros, cujos
textos únicos eram iluminados com primorosas miniaturas.
Essa situação começou a mudar a par�r do século XII. Por um lado, a
reabertura das rotas comerciais no Mediterrâneo permi�u um
florescimento das cidades do Ocidente cristão como havia muito tempo
não se via. De repente, afluíram para as urbes europeias todo �po de
mercadorias do Oriente, até então quase desconhecidas: tecidos de seda
tão finos que davam a sensação de estar trajando uma segunda pele,
especiarias que disfarçavam o gosto podre de alimentos em mau estado e
incrementavam a sensação de saciedade em quem as experimentava,
escravos loiros provenientes de terras eslavas e traficadosno mercado de
Constan�nopla, armas confeccionadas com aço leve e resistente, etc. Aliás,
os cristãos aprenderam dos muçulmanos a arte de confeccionar papel, um
suporte muito mais barato que o pergaminho, com o qual proliferaram os
registros por escrito de contratos, balancetes contábeis e decretos
pala�nos. Mas os sábios árabes transferiram aos cristãos um conhecimento
mais perigoso, que punha em risco os alicerces da sociedade feudal. Estou
me referindo à filosofia; e mais concretamente, à filosofia de raiz
aristotélica. Culpado em parte por isso foi Al-Kindi, fundador do
pensamento filosófico árabe (falasifa), que, ao contrário da patrís�ca
cristã, bebia de uma fonte até então pouco comentada: Aristóteles, o
pensador que se tornaria o Filósofo (em maiúscula) da Baixa Idade Média
europeia.
Cem anos depois de Córdoba ter perdido a condição de capital do califado
de Al-Andalus, em pleno século XII, dois pensadores locais, um judeu e um
muçulmano, mudariam o rumo da filosofia. O judeu chamava-se Moisés
ibn Maimônides e era de profissão médico. O muçulmano era Ibn Roschd,
porém no Ocidente seria mais conhecido pelo seu nome la�nizado:
Averróis ou Averroes. Embora ambos �vessem nascido e crescido na
mesma cidade e �vessem idades semelhantes, não temos nenhuma
constância de eles terem se conhecido pessoalmente. Apesar de
professarem religiões dis�ntas, os dois usavam a mesma língua em seus
escritos: o árabe. Surpreende, portanto, que dois indivíduos tão brilhantes
não man�vessem diálogo pessoal entre si, mais ainda morando na mesma
cidade.
Por vias paralelas e sem comunicação aparente, ao estudar a obra de
Aristóteles em sua tradução ao árabe e media�zada pelos comentaristas
muçulmanos, Maimônides e Averróis chegaram pra�camente à mesma
conclusão, uma conclusão tão revolucionária que com certeza os levou à
perplexidade. De fato, não é casualidade que Maimônides in�tulasse sua
obra mais importante justamente como Guia dos perplexos, nem é
coincidência que Averróis se opusesse às teses de Al-Gazali – quem, apesar
do estudo da lógica aristotélica, defendia a supremacia da fé sobre a razão
- com o seu livro A incoerência da incoerência. O que provocou tamanha
surpresa nos dois cordobeses? Digamos que foi a descoberta de que havia
uma contraposição entre a verdade apreendida dos textos sagrados e a
verdade que surgia da mente humana racional.
Para entender isso vamos ter que retroceder de novo ao tempo dos gregos,
quando Aristóteles ensinava aos alunos do Liceu que o homem pode
conhecer a realidade mediante os sen�dos. Parece algo óbvio, não? Pois
no século IV a. C. esta tese ficava longe de ser uma unanimidade. A
meta�sica aristotélica afasta-se diametralmente do realismo então
predominante e prescinde do mundo das ideias defendido com inteligência
e habilidade literária pelo seu mestre, Platão. A realidade que percebemos
através dos sen�dos não é para Aristóteles uma mera sombra de um
mundo superior e ideal, mas é a realidade em si mesma.
Consequentemente, a mente humana pode e deve entender o mundo que
a rodeia; e uma das chaves para alcançar a verdadeira ciência é a
sistema�zação racional de todo o conhecimento acumulado pela
humanidade. Em livros como Polí�ca ou Poé�ca Aristóteles dá uma aula
magistral acerca da sistema�zação do saber, com o obje�vo não apenas
erudito de acumular dados inconexos, mas sobretudo de entender a
realidade em toda sua complexidade.
Averróis irá além. Ao estudar Aristóteles, o sábio muçulmano chega à
conclusão de que a verdade racional se justapõe à verdade dos ensinos
religiosos, já que em muitos casos as duas verdades afirmam coisas
diferentes, quando não totalmente opostas. Sendo assim, qual dessas duas
verdades é superior? Averróis não será tão temerário como para entrar no
mérito e preferirá ficar longe dessa disputa, especialmente num momento
em que Al-Andalus foi invadido por duas seitas islâmicas que pregavam
interpretações extremas do Alcorão: os almorávidas e os almóadas.
Precisamente, existe um amplo consenso entre os historiadores em que
essa involução do islamismo para posições religiosas mais faná�cas nos
séculos XIII e XIV será um fator que abortará uma eventual revolução
cien�fica no Islã. O germe da racionalidade e do espírito crí�co da falasifa
será abafado pelos monges guerreiros que imporão a fé do Profeta a golpe
de cimitarra.
Entretanto, alguns seguidores cristãos de Averróis não hesitarão em
quebrar essa barreira e promulgarão que a verdade da razão é superior à
da fé. O averroísmo la�no fru�ficou na universidade de Paris no úl�mo
terço do século XIII, muitos anos após a morte do filósofo andalusino. Siger
de Brabante foi um de seus mais conspícuos preconizadores. A rápida
propagação da tese da dupla verdade nos círculos acadêmicos alarmou as
autoridades eclesiás�cas, que temeram que se espalhasse como outras
tantas heresias e contaminasse os espíritos jovens e ingênuos. O bispo de
Paris Estêvão Tempier perseguiu os averroístas e proibiu o ensino de suas
teses na Sorbonne. Essas interdições serviram de pouco, já que, em praça
pública ou nos cenáculos clandes�nos, os comentários de Averróis à obra
de Aristóteles con�nuaram a ocupar um lugar de destaque nos debates
filosóficos até bem entrado o século XIV.
Ramon Llull ficou rela�vamente impermeável à recepção de Aristóteles no
pensamento cristão do século XIII, apesar de ter sido um comentarista da
obra de Al-Gazali. Como já expusemos, sua principal criação lógico-
filosófica, a Arte, parte de princípios transcendentes: as Dignidades. Lúlio
as interpreta como elementos intrínsecos da Divindade e, portanto,
presentes, mesmo que imperfeitamente, no mundo sensível. A Arte,
portanto, transcende tanto o realismo das ideias platônicas como o
empirismo essencialista de Aristóteles. O conhecimento próprio ao ser
humano é sempre parcial, seja o seu objeto Deus ou as criaturas. Por este
mo�vo e de forma pouco acertada (ao meu ver), às vezes a filosofia luliana
tem sido qualificada de neoplatônica.
Todavia, Ramon Llull par�cipou a�vamente do debate acerca do
averroísmo. Sua postura foi completamente contrária às teses da dupla
verdade, pelo menos da maneira como eram defendidas pelos
comentaristas de Averróis na universidade de Paris. Para Lúlio havia uma
única verdade, à qual podia chegar-se por diferentes vias, como a fé, a
iluminação divina ou o pensamento racional. O dogma, a mís�ca e o
silogismo conduziam necessariamente às mesmas conclusões e a Arte
luliana era uma mistura dessas três vias que a humanidade possuía para
alcançar a verdade. Uma verdade que, para o fervoroso Llull, não podia ser
outra que a do cris�anismo na versão católica.
Em sua úl�ma estadia em Paris, Ramon Llull compôs uma dúzia de obras
em que cri�cava sem piedade o averroísmo. Uma das mais extensas foi o
Liber lamenta�ones Philosofiae seu De Duodecim principiis Philosofiae
(1311), dedicada ao rei da França Filipe IV com o obje�vo nada dissimulado
de ganhar o seu favor. Com esse posicionamento, porém, Lúlio tornou-se
um dos adversários preferidos da nova geração de filósofos que ensinavam
na Sorbonne, como Marsílio de Pádua e seu discípulo João de Jaldun, que
defendiam a capa e espada a superioridade da razão sobre a fé.
No âmbito da é�ca Lúlio também se manifesta como um autor original. A
base do seu discurso é a doutrina da primeira e da segunda intenções, que
dará �tulo ao Liber de prima et secunda inten�one (1274-83). Sob esses
conceitos um tanto estranhos para o profano, Llull entende o Criador como
“primeira intenção” e todos os seres criados, entre eles o homem, como
“segunda intenção”. Do ponto de vista da é�ca, a intenção que deve reger
sempre e em primeiro lugar é a intenção com a qual Deus decidiu-se a criar
o universo: o Amor. As outras intenções são secundárias (recordemos ao
leitor que na é�ca é necessário ordenar sempre as intenções). Por
conseguinte, se algo for feito por outra intenção que não fosse essa
“primeira” - a de Deus ao criar o universo - será sempre para qualquer
criatura, seja homem ou coisa,uma “segunda intenção”. Como o homem 
foi criado para conhecer, amar e louvar a Deus, Lúlio entende que a 
religiosidade do ser humano deve seguir sempre a “primeira intenção”,
exigindo para tal o máximo esforço do indivíduo, em corpo e alma. Daqui
se extrai que o entendimento, a vontade, a memória e a afe�vidade, que
fazem parte da natureza humana, devem estar totalmente implicadas em
qualquer a�vidade do ser humano, incluindo a religião. A a�vidade
religiosa, portanto, nunca deve seguir uma “segunda intenção”.
Esta é�ca da “primeira intenção” está presente, de uma forma ou outra,
em boa parte das obras luliana. Ramon Llull, desde os seus primeiros
escritos, manifestou seu desejo de que o ser humano entendesse, na
medida de suas forças, as Sagradas Escrituras e os dogmas da fé católica,
porque para amar a Deus é preciso entender a sua Palavra.
Como exprimirá de maneira poé�ca no Livro de amigo e de amado, a
religião é para Llull, antes de tudo, “limpeza de pensamento”, o que na
prá�ca supõe despojá-la de toda supers�ção e centrar-se em uma devoção
fundamentada no conhecimento profundo. Esta necessidade de entender
a Deus para conhecê-Lo melhor e assim tornar-se um melhor cristão
norteará a obra filosófica de Ramon Llull até o fim de seus dias. Na úl�ma
obra que conservamos dele, o Livro sobre Deus e o mundo, escrita em
Túnis no final de 1315, insis�rá nesta questão com as seguintes palavras:
“O homem existe principalmente para conhecer a Deus pelo entendimento
e não para amar a Deus pela crença, e aquele que prefere ter mérito antes
pelo crer que pelo entender prefere a si mesmo antes que a Deus, e faz de
si mesmo um deus fantás�co. Na verdade, este deus fantás�co pode ser
chamado de ídolo”.
7
 
 
 
TeóloGo
 
 
A interdependência da filosofia com a teologia não foi uma preocupação
tão somente de Raimundo Lúlio. Em maior ou menor medida, quase todos
os pensadores cristãos dos séculos XIII e XIV abordaram essa questão.
Provavelmente os que ob�veram maior sucesso na época foram Alberto
Magno e seu discípulo Tomás de Aquino. O alemão e o italiano fizeram
uma grande contribuição à história do pensamento ao tratar de
compa�bilizar a filosofia aristotélica com a teologia cristã fazendo uso de
um método novo de raciocínio, que logo será conhecido como escolás�ca.
O suposto primordial da escolás�ca, que tem na Summa Teologica de
Aquino sua pedra miliar, é que a única verdade é a revelada. No entanto, o
pensamento lógico pode nos ajudar a decifrar seus mistérios e fazê-los
mais compreensíveis ao homem. Mas sem que isso signifique, em caso
algum, que a filosofia possa contradizer os dogmas da religião. Ao
contrário, quando fazendo uso da filosofia é alcançada uma proposição
contrária à fé, então é óbvio que o teólogo está seguindo a via errada.
Embora nos seus começos o método de raciocínio de Alberto Magno e
Tomás de Aquino ficasse sob suspeita - inclusive com proibições de seu
ensino nas universidades -, por volta de 1280 a escolás�ca �nha virado a
metodologia triunfante no meio acadêmico. Em breve, tornar-se-ia a
filosofia por excelência da Igreja Católica, condição man�da até os nossos
dias. Os dois sábios seriam canonizados após a morte e chegariam a ser
proclamados Doutores da Igreja. Uma das razões que explica tamanho
êxito foi o apoio irrestrito que a escolás�ca recebeu da ordem dos
pregadores, da qual os dois santos fizeram parte. Devido ao predomínio
das ordens mendicantes nos estudos gerais, esta aposta dos dominicanos
pelo método escolás�co obteve uma legião de seguidores. Em sucessivas
gerações, os escolás�cos aprimoraram seu es�lo, ganhando em su�leza e
sofis�cação.
Ramon Llull não foi nunca um escolás�co stricto sensu, nem na forma nem
no conteúdo, já que não par�lhava da ideia de a verdade racional ser
inferior à revelada. Para ele, a verdade era única e tanto fazia a via para
a�ngi-la. À compreensão do Logos podia chegar-se através da
hermenêu�ca das Sagradas Escrituras, mediante experiências mís�cas que
levassem o espírito à transcendência ou pela simples observação atenta da
natureza, porque tudo, no final das contas, para o Doutor Iluminado
respondia ao Uno, isto é, à unidade do Ser.
Também nas formas os textos de Lúlio diferem grandemente dos
escolás�cos. Enquanto estes úl�mos davam grande importância ao
argumento de autoridade, baseando muitas de suas afirmações em
passagens bíblicas ou na cotação de textos de outros autores renomados
(já fossem pensadores pagãos, muçulmanos, judeus ou cristãos), Ramon
Llull foge do argumento de autoridade como da peste. O porquê disso
encontra-se no uso instrumental que o maiorquino dava à sua Arte. Sua
construção lógico-filosófica-teológica não servia apenas para os cristãos
entenderem melhor os alicerces da sua fé, mas para convencer os
descrentes da superioridade do cris�anismo. Para tal finalidade serviam de
pouco os argumentos de autoridade, já que os infiéis, ao seguir uma
tradição religiosa completamente diferente, não aceitavam a validade
desses argumentos por si mesmos. Portanto, de pouco ou nada serviria
recitar capítulos e versículos dos Evangelhos se os gen�os não
reconheciam a priori a Boa Nova que Jesus ensinou e que os Apóstolos
difundiram. Cumpria, então, buscar outro caminho, fundamentado na
razão e nos elementos teológicos comuns a todas as grandes religiões.
Somente assim as conversões tão almejadas poderiam ser conseguidas.
Por este mesmo mo�vo a obra de Ramon Llull também se separa em
grande medida da tradição escolás�ca. Enquanto os sábios das
universidades empenhavam-se em usar um la�m refinado em seus textos,
eliminando os barbarismos e vulgarismos tão próprios da Alta Idade
Média, e procuravam uma linguagem rebuscada, só ao alcance de uma
elite bem-educada, Lúlio não hesitava em escrever em romance catalão ou
até mesmo em árabe, se com isso sua palavra chegava a uma massa que
não �nha por que ser especialmente culta e menos ainda entender o la�m.
Isso não significa, contudo, que os textos de Lúlio sejam de fácil leitura. A
Ars Generalis Ul�ma (1307), derradeira versão da Arte que conservamos,
foi escrita em la�m e é uma obra densa que exige do estudioso muitas
horas de dedicação. Entretanto, o maiorquino buscou compaginar a
erudição exigida nos grandes centros do pensamento ocidental com outros
livros de cunho mais divulgador, que pudessem chegar a um público mais
extenso. É por isso que a Arte impregna toda sua obra literária, inclusive os
textos estritamente de ficção, já que neles Llull aproveita qualquer
peripécia de seus personagens para �rar conclusões de índole filosófica ou
moral. Com abundantes exemplos e provérbios, o autor dá lições
inspiradas em sua Arte. Inclusive a estrutura de suas obras narra�vas tem
por base aspectos religiosos, como as virtudes cardinais, os pecados
capitais, os dez mandamentos, as cinco feridas de Cristo na cruz, entre
outros elementos presentes na devoção cristã.
Em certas questões doutrinais as proposições lulianas entravam em plena
colisão com a escolás�ca. É o caso, entre outros, do dogma da Imaculada
Conceição de Maria, que Ramon Llull defendeu quase seiscentos anos
antes de ser proclamado solenemente pela Igreja católica. O maiorquino
baseou sua defesa em que Maria deveria ter sido concebida sem o pecado
original em virtude da teoria da “recriação”, que Llull extraíra a par�r de
uma razão necessária. Contra esse dogma haviam opinado autores do
máximo pres�gio, inclusive doutores da Igreja, como Alberto Magno o
Tomás de Aquino, e nos séculos posteriores daria lugar a grandes disputas
teológicas, sendo os franciscanos os principais defensores da Imaculada
Conceição e os dominicanos seus detratores mais acérrimos. Finalmente,
em 1854 o papa Pio IX proclamou Urbi et orbe o dogma da Imaculada
Conceição de Maria, que se celebra todo dia 8 de dezembro, numa das
fes�vidades mais importantes do calendário católico.
Uma das obras que melhor exemplifica essa mistura de literatura, filosofia
e teologia é o Livro do gen�o e dos três sábios. Nele, um homem sem
nenhuma fé(o gen�o) vaga desesperado por um bosque. Sem encontrar
sen�do à vida resolve se suicidar, mas muda de planos no úl�mo minuto
quando aparece uma mulher que personifica a Inteligência. Esta lhe
apresenta três sábios. Cada um deles professa uma religião dis�nta: o
primeiro é judeu, o segundo cristão e o terceiro muçulmano. Usando
argumentos lógicos os três sábios explicam ao gen�o os principais dogmas
sobre os que sustentam suas crenças. Assim, além de outras questões, o
sábio judeu demonstrará que Deus existe, que é Uno, que entregou a Lei a
Moisés e que julgará a todos no dia do Juízo Final, condenando os maus ao
inferno e premiando os bons com a glória eterna. Por sua vez, o sábio
cristão encarregar-se-á de provar, entre outras coisas, que Deus é Uno e
Trino ao mesmo tempo, a Encarnação de Deus em Jesus, nascido de Maria
Virgem e que seria crucificado, morto e ressuscitado para a salvação da
humanidade. O sábio muçulmano defenderá o Profeta Maomé como o
úl�mo depositário da palavra de Deus, que tem no Alcorão sua escrita
defini�va.
Das diversas argumentações do livro, vou me centrar nos parágrafos
seguintes na parte em que o cristão faz a demonstração do dogma da
Trindade de maneira alegórica, a par�r das flores das árvores, as quais
representam diversos princípios teológicos e filosóficos. A aproximação de
Lúlio a esse problema – diante do qual muitos teólogos naufragaram – é
extremamente original. Através de alguns trechos da edição brasileira do
Livro do gen�o e dos três sábios,
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 tentarei resumir os pontos principais.
O sábio cristão apresenta a prova da seguinte maneira:
Para provar que há Trindade em Deus, colhemos primeiramente da primeira árvore esta flor
de bondade e grandeza, pela qual provaremos que necessariamente convém, conforme as
condições das cinco árvores, que Deus seja Trindade. Em seguida, provada a Trindade,
provaremos três ar�gos, isto é, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e provaremos como estes
três ar�gos são uma só essência, um só Deus.
A prova da Trindade de Llull baseia-se em um elemento básico de sua Arte,
que é a relação existente entre gerador, gerado e procedente.
Ora, se em Deus há um bem gerador que seja infinita bondade, grandeza, eternidade, poder,
sabedoria, amor e perfeição, que gera um bem infinito em bondade, grandeza, poder,
sabedoria, amor e perfeição, e que do bem gerador e do bem gerado resulte um bem
infinito em bondade, grandeza, poder, sabedoria, amor e perfeição, maior é a flor em Deus
que não seria se em Deus não houvesse aquilo que acima foi dito. Porque cada um dos três
acima ditos é, por todas as flores da árvore, tão bom e tão grande como seria a Trindade de
Deus sem que ela não houvesse Trindade. E como, conforme as condições da árvore, a Deus
convém ser conhecida a maior bondade, por isso é a Trindade, naquilo que acima foi dito,
demonstrável.
O gen�o ques�ona a argumentação do cristão, embora concorde com ele
em que um Deus trino tenha maior bondade que um Deus com uma única
pessoa. No entanto, pergunta se não seria melhor ainda que Deus �vesse
quatro, cinco ou até infinitas pessoas. A esta ressalva o sábio opõe que a
perfeição se obtém com um único gerador, gerado e procedente e que uma
infinidade de geradores, gerados e procedentes levaria à imperfeição de
Deus. E isso, por definição, é incorreto, já que Deus é perfeito.
Respondeu o cristão: — Se em Deus conviesse haver mais de um gerador, de um gerado e 
de um procedente, o gerador não seria infinito em bondade, grandeza, eternidade, poder, 
sabedoria, amor e perfeição, porque não bastaria por si, enquanto gerador, para gerar em 
quem pudesse ser gerada uma infinita bondade, grandeza, poder, sabedoria, amor e 
perfeição; e nem este gerador, nem este gerado seriam capazes de dar a um procedente de 
ambos uma infinita bondade, grandeza, etc.; nem todos os geradores, gerados e 
procedentes que seriam em número infinito bastariam para exis�r perfeição de bondade, 
grandeza, eternidade, poder, etc. Porque um número infinito não pode ter perfeição, já que 
a mul�plicação em número infinito e a perfeição se desconvém. Ora, sendo isto assim, 
então, conforme a perfeição das flores, haveria imperfeição em Deus, e as flores seriam 
contrárias umas às outras, se em Deus houvesse infinitos geradores, gerados e procedentes.
O gen�o não fica sa�sfeito com o raciocínio e insiste em que um número
de quatro ou de cinco ou de mil pessoas pode conter maior bem que um
número de três. A essa alegação retruca o cristão dizendo que ter mais de
um gerador, gerado e procedente levaria à crença na existência de diversos
deuses e, como já fora demonstrado pelo sábio judeu, “um só Deus basta
para conter toda a bondade, grandeza, etc., que entre todos teriam, e
ainda poderia ter mais do que entre todos poderiam ter”.
Mesmo aceitando o monoteísmo, o gen�o não acaba de ver claro que
sejam necessárias as três pessoas divinas dis�ntas, já que com uma única
pessoa Deus poderia ser igualmente infinito em bondade, grandeza, etc. O
sábio contesta essa crí�ca com as seguintes palavras:
Respondeu o cristão: — Não é verdade, porque se em Deus não houvesse dis�ntas 
propriedades pessoais, não haveria obra pela qual fosse engendrado um bem infinito em 
grandeza, eternidade, etc., de um bem infinito em grandeza, eternidade, etc. E se em Deus 
não se originasse um bem infinito em grandeza, eternidade, etc., de um bem gerador 
infinito e de um bem infinito engendrado, ali não haveria as flores das árvores em perfeição, 
e a Trindade de Deus careceria desta obra acima dita; a qual obra é infinita em bondade, 
grandeza, etc.; e esta obra, e as três pessoas dis�ntas, tendo cada uma sua propriedade 
dis�nta, pessoal e infinita em bondade, grandeza, etc., são a própria Trindade divina, que é 
uma só essência e existe em Trindade de pessoas. E como o ser e uma obra tão gloriosa 
como é a obra acima dita se convém, e como a privação da obra acima mencionada se 
convém com o não-ser, e como o ser convém com maior nobreza onde houver obra boa do 
que onde não a houver; e como à essência de Deus convém ser dada e atribuída uma maior 
nobreza; por isso fica significado necessariamente que em Deus haja obra em Trindade. 
Porque se não a houvesse, haveria contrariedade nas flores da primeira árvore, e isto é 
impossível; pela qual impossibilidade a Trindade é demonstrável.
Esta demonstração será aprofundada nas seguintes páginas do livro, ao
longo das quais o sábio corrobora suas afirmações mediante combinações
de folhas da árvore que representam as virtudes teologais e os pecados
capitais. De cada combinação são extraíam conclusões lógicas que
cer�ficam a veracidade dos postulados cristãos.
Uma vez convencido de que a Trindade é uma caracterís�ca de Deus e que
pode ser comprovada, o gen�o indaga sobre como transformar os
conceitos lulianos de gerador, gerado e procedente no Pai, Filho e Espírito
Santo. Ele não entende que se o Filho é criado pelo Pai, o primeiro possa
ser tão eterno como o segundo. O sábio replica que a geração em Deus é
diferente à das plantas ou dos animais:
Há uma grande diferença entre a natureza criada e a incriada. E isto é porque a eternidade e
a perfeição convém com a natureza incriada, o que não ocorre com a natureza criada. Por
isso, a geração e a processão que há em Deus é diversa da geração e processão que há nas
criaturas. Assim como a pedra, sendo pedra, não pode ser homem, assim o Filho de Deus e o
Santo Espírito, tendo perfeição e eternidade, não podem ter começo nem fim, porque se o
�vessem não teriam perfeição nem eternidade, as quais são sem princípio e fim”.
Em consequência, “porque amando e entendendo o Pai divino a Si mesmo
e à sua bondade, grandeza, eternidade, etc., é gerado o Filho, que é igual
ao Pai em bondade, grandeza, eternidade, etc.” O gen�o parece
medianamente convencido de que o Deus Filho procede do Deus Pai e,
apesar de ter sido gerado por este úl�mo, mantém todas as infinitas
dignidades. O que não acaba de entender é que o Espírito Santo proceda
do Pai e do Filho.Para dar resposta, o cristão fundamenta seu discurso no
conceito do procedente da Arte luliana:
Porque conforme a perfeição divina convém com a bondade, a grandeza, a eternidade, etc.,
entendendo e amando o Pai a si mesmo e ao Filho que gera, e entendendo e amando o Filho
ao Pai e a si mesmo, convém que de ambos proceda uma outra pessoa igual a eles em
bondade, grandeza, eternidade, etc., e esta é o Santo Espírito de quem tu perguntas. E se do
entendimento e amor do Pai e do Filho, e ainda da sua bondade, grandeza, eternidade,
poder, perfeição não procedesse uma outra pessoa igual ao Pai e ao Filho em bondade,
grandeza, eternidade, etc., haveria defeito no entendimento e na vontade do Pai e do Filho,
o que é impossível.
Nesse ponto, o gen�o faz um ques�onamento que ainda hoje é uma das
bases teológicas do cisma entre a Igreja católica ocidental e a Igreja
ortodoxa oriental. A pergunta em questão é: “Por que o Santo Espírito não
procede de uma pessoa apenas, mas procede de ambas?” Embora sem
querer, o gen�o acaba de referir-se à velha disputa do filioque, que foi
tratada com profusão no segundo Concílio de Lyon (1272). A resposta que
o cristão lhe dá segue a mais estrita ortodoxia católica:
Respondeu o cristão: — Assim como o Pai e o Filho convém na mesma nobreza, assim
também o Santo Espírito seria menos nobre se não procedesse de ambas as pessoas. De
onde que, para que as flores da árvore convenham melhor com o Santo Espírito, convém
que o Santo Espírito proceda do Pai e do Filho.
Malgrado todos os esforços do sábio, o dogma da Trindade não resulta
evidente por completo para o gen�o. Este não acaba de entender por que
o Espírito Santo não procede de outra pessoa igual a si mesma ou por que
o Filho não gera outra pessoa igual a si mesma. Sem perder a paciência, o
sábio reitera os argumentos extraídos das flores da árvore:
Todo o Filho é gerado de todo o Pai, e todo o Santo Espírito procede de todo o Pai e de todo 
o Filho. E se não fosse assim como tu perguntas, a totalidade acima dita não conviria com as 
flores da árvore, e seria perfeição contrária às flores, o que é impossível. Por esta 
impossibilidade se demonstra, na condição das flores, que a totalidade é assim como tu a 
perguntas.
Mesmo assim, o assunto não fica claro para o gen�o, que volta a insis�r na
necessidade da Trindade. “Não haveria perfeição em Deus sem ela? Duas
pessoas não bastariam para tudo aquilo a que bastam três?”, pergunta de
novo. O cristão abraça a existência das três dimensões nos seres como
prova adicional da Trindade:
Como o corpo que não poderia ser um sem ser comprido, largo e profundo, nem o
comprimento, a largura e a profundidade poderiam estar juntos sem que o corpo fosse um.
Ora, sendo uma realidade que nas criaturas convêm melhor os números um e três, por isso
convém que em Deus, que tem um ser mais pleno do que o das criaturas, seu ser convenha
com o um e com o três em número, porque se isto não ocorresse, seguir-se-ia que o ser e o
número conviriam melhor na criatura do que em Deus, o que é impossível. Por esta
impossibilidade fica demonstrado que em Deus convém haver uma Essência que seja em
três pessoas, sem mais e sem menos. Porque se isto não fosse assim, não haveria
concordância nas flores da primeira árvore, nem as suas condições poderiam ser
conservadas.
Finalmente, o abrumado gen�o, que ainda está digerindo o paralelismo
entre a unidade e tridimensionalidade dos seres materiais com o Deus Uno
e Trino, quer saber se somente os cristãos acreditam na Trindade ou se
esta crença é comum entre os três sábios com os que debate.
E o cristão respondeu e disse: — Os judeus e os sarracenos não entendem a Trindade que
nós cremos, e pensam que nós cremos em outra Trindade na qual nós não cremos e que não
existe em Deus. É por isso que nós não concordamos com eles, nem eles conosco. Mas se
eles entendessem a Trindade que nós cremos haver em Deus, a força da razão, a
concordância das flores da primeira árvore e as condições dela os moveria a conceber a
verdade da santa Trindade de nosso Senhor Deus.
Já foi apontado em diversas ocasiões que o Livro do gen�o e dos três
sábios é uma obra muito avançada ao seu tempo. Embora Lúlio seja um
crente cristão convicto, isso não é obstáculo para que possa dar voz à
opinião discrepante de outras religiões. O tratamento dado aos que
professam o judaísmo e o islamismo é de grande respeito, o que contraria
essa visão limitada que às vezes temos da Idade Média, como uma era das
trevas e do fana�smo. Não em vão o Livro do gen�o e dos três sábios tem
sido qualificado como um precedente do moderno diálogo inter-religioso,
baseado na vontade de aprender das crenças e da espiritualidade alheias,
respeitando em todo momento as diferenças dogmá�cas de cada
confissão.
Lúlio deixa o final do livro “em aberto”, avançando-se em mais de
setecentos anos à literatura pós-moderna. Quando o gen�o está prestes a
comunicar por qual fé se decanta, “os três sábios responderam e disseram
que como cada um deles pensava que o gen�o escolhera a sua lei, não
queriam saber qual lei de fato escolhera”. Preferem ir embora antes de o
gen�o comunicar sua decisão, pois assim poderão con�nuar discu�ndo
entre eles, confiando em que por meio da razão chegarão à mesma
conclusão. Aliás, já sós e antes de despedir-se, os três sábios pedem
perdão uns aos outros por qualquer palavra que pudesse ter resultado
ofensiva e fazem votos para que em um futuro não muito distante as três
fés sejam uma só e acabem de uma vez por todas os conflitos e as guerras
causadas pela religião.
Vemos, pois, que o Livro do gen�o e dos três sábios é o avesso dos livros de
apologia do cris�anismo usuais na Idade Média (e em tempos posteriores).
Mas sua leitura pode nos levar à conclusão errada de que Ramon Llull era
um rela�vista cultural. Não é assim. Lúlio não prega a igualdade de todas
as religiões; está plenamente convencido da superioridade do cris�anismo.
Porém, está ciente de que só mediante o diálogo e a convicção poderá
conduzir os descrentes para o caminho da Salvação. E esse diálogo deve
basear-se, antes de mais nada, em saber ouvir e respeitar as ideias do
outro. O pensamento de Lúlio é certamente revolucionário e resulta fácil
de entender que indivíduos imbuídos de fana�smo o acusassem de
heterodoxo ou até mesmo de herege.
Mas a Arte luliana não foi apenas uma construção teórica. Llull pôs em
prá�ca seus postulados nas três viagens que fez à África (as quais serão
tratadas no capítulo “Már�r”), cujo obje�vo era converter in situ os
muçulmanos. Também sabemos que em 1294 recebeu do rei Carlos II de
Nápoles autorização para pregar aos muçulmanos de Lucera, uma
localidade desse reino próxima ao mar Adriá�co. Muito provavelmente na
sua viagem a Chipre travou contato com teólogos de outras religiões,
especialmente dos ramos orientais do cris�anismo, já fosse com ortodoxos
gregos como com cristãos nestorianos e jacobitas, cujos dogmas principais
são deba�dos na Disputa de cinco sábios (1294), escrita com anterioridade
a esta viagem. Aliás, temos documentado que nos seus úl�mos anos de
vida Frederico III animou Lúlio a disputar com sábios judeus na ilha da
Sicília e que essas disputa�ones com efeito se realizaram, bem que
seguindo os moldes dos debates medievais, ou seja, em praça pública e
sob guarda armada.
 
CieN�sta
 
Temos que ir com cuidado com as palavras, pois às vezes na Idade Média
�nham um significado completamente diferente do que lhes damos hoje.
Como já vimos, Ars (Arte) englobava muito mais do que as a�vidades que
perseguem um fim esté�co, para referir-se a ações pautadas por um
método predeterminado (recta ra�o). A Ars la�na estava estreitamente
emparentada com o termo grego techné, do qual germina a noção atual de
técnica. A Arte luliana deve ser entendida em seu sen�do primigênio, isto
é, uma técnica ou método. Sendo assim, o que Lúlio procurava estabelecer
com a sua Arte era uma “ciência das ciências”, a qual con�nha todos os
princípios básicos do saber. A par�r deles o ar�sta (hoje diríamoscien�sta)
vai descendo aos ramos inferiores do conhecimento, que agrupamos em
disciplinas ou matérias acadêmicas. Seguindo o seu método global para
encontrar a verdade, o ar�sta vai descobrindo os pormenores de todos os
âmbitos do saber. E esse método global devia estar ao alcance de todo
mundo. Por isso a busca incessante por formas geométricas ou botânicas
que ajudassem à recordação dos complexos silogismos. A imagem que
autores posteriores têm nos transmi�do de um Ramon Llull nigromante ou
alquimista não pode ser mais injusta a propósito de um homem que
devotou a vida inteira a aperfeiçoar os mecanismos lógicos do pensamento
e comunicar suas descobertas mediante desenhos, parábolas e exemplos
de claro teor didá�co e mnemotécnico.
Igualmente, a Scien�a (Ciência) diferia bastante do que atualmente
consideramos como estritamente cien�fico. Para os pensadores medievais
a ciência equivalia ao saber verdadeiro, com independência de esse
conhecimento provir do exame da natureza, de processos da razão ou de
revelações religiosas. Nesse sen�do, a Arte luliana perseguia a ciência, isto
é, mediante a sua aplicação o ar�sta saberia dis�nguir entre proposições
certas e falsas. Mas era ciência por si mesma?
A questão é delicada. René Descartes, em seu Discurso do Método, censura
que a Arte de Llull somente servisse para demonstrar aquilo que já
conhecemos. Mas Descartes viveu no século XVII e Llull havia falecido
trezentos anos antes. Aliás, o significado de ciência no mundo ocidental
mudará por completo a par�r das contribuições cartesianas. Seguramente
os contemporâneos do Doutor Iluminado nem podiam imaginar que a
mente humana criaria no futuro algo como o método cien�fico, uma
poderosa ferramenta conceptual que significou um ponto de inflexão na
história do pensamento e que trouxe grandes progressos materiais para a
humanidade.
Entretanto, e em favor do lulismo, cumpre dizer que não está nada claro
que a Arte fosse concebida por Llull para dar uma explicação lógica e
coerente para toda a Criação. Muito pelo contrário, Lúlio entendia a sua
Arte como um instrumento para provocar conversões e não como um fim
em si mesmo. Não há provas que nos levem a pensar que o maiorquino
abrigasse em seu foro ín�mo a crença de que o ser humano fosse capaz de
entender tudo. Como bom crente, para Lúlio havia grandes espaços da
realidade que ficariam para sempre longe do entendimento dos homens e
cuja compreensão plena só estaria ao alcance do Ser Supremo. Ainda que
Lúlio, fazendo um exercício de ucronia, �vesse vivido no século XVII e
concordasse com Descartes na existência de uma mathesis universalis
(conceito que o maiorquino provavelmente teria traduzido como Logos ou
Ser), não tenho certeza de que par�lhasse do mesmo o�mismo do filósofo
francês a propósito da capacidade humana para compreender à perfeição
toda a realidade que nos rodeia.
Durante toda sua vida intelectual Ramon Llull esbarrou com as limitações
da linguagem humana. Nenhuma das tantas revisões que fez da Arte
deixou-o sa�sfeito por completo. Sempre tentou depurá-la mais, à procura
de uma linguagem perfeita que captasse até os mínimos detalhes a
mensagem que Deus lhe transmi�ra numa breve visão mís�ca. Com isso,
redação após redação, a Arte luliana foi ganhando em complexidade e
sofis�cação, mas também a�ngia cotas cada vez mais altas de obscuridade,
a ponto de se tornar quase ininteligível para os não iniciados.
Como apenas conservamos manuscritos lulianos, não sabemos se era o
próprio Lúlio quem redigia seus textos ou se preferia ditá-los aos
escreventes. Seguramente esta segunda opção fosse a preferida pelo
filósofo em seus úl�mos anos de vida, quando nem a vista nem as
ar�culações dos dedos deviam permi�r longas sessões de escrita. Também
temos constância de que optava pelo ditado quando queria garan�r que o
texto es�vesse escrito no la�m mais pulcro possível. O complexo de
inferioridade por não ter aprendido a língua de Cícero na escola o
acompanharia até os seus momentos derradeiros. Os monges da cartuxa
de Vauvert lhe serviram de escreventes nas estadias que ele fez em Paris. A
eles ditou diversas obras des�nadas ao rei da França e outros membros da
família real, bem como a sua autobiografia.
Contudo, a escrita (como a linguagem em geral) foi matéria de reflexão de
Lúlio, chegando a engenhar um método taquigráfico (Ars notatoria, 1274)
para acelerar e simplificar a árdua tarefa de tomar notas. Esse tratado de
taquigrafia demonstra que Lúlio também sen�a preocupação pelas
disciplinas de caráter mais prá�co.
Entendida como Scien�a, a Ars de Ramon Llull era filha de seu tempo e,
portanto, estava imbuída das teorias sobre a natureza que circulavam no
meio acadêmico. Já mostramos como a teoria dos quatro elementos (terra,
fogo, água e ar) influenciaram nas primi�vas concepções da Arte. Muito
provavelmente os colóquios de Lúlio com os professores de medicina do
estudo geral de Montpellier �veram um grande papel nisso, já que os
quatro elementos estavam presentes na configuração da matéria, mas
também serviam para diagnos�car as doenças humanas e prescrever seus
remédios. Como a astrologia ainda hoje pressupõe, cada um dos quatro
elementos determinava um �po de caráter ou personalidade, do
flegmá�co ao irascível.
De modo parecido, a doutrina sobre os níveis do Ser, do mais baixo (os
seres inanimados) ao Ser Supremo (Deus), também está presente na obra
de Lúlio. No seu Livro da ascensão e descenso do entendimento (Liber de
ascensu et descensu intelligecto, no original em la�m de 1305) o
maiorquino entende o ato de conhecer quase como uma escadaria, em
que os degraus estariam formados pelos minerais, os vegetais, os animais,
os seres humanos, os corpos celestes, os anjos e a Divindade. Por meio do
intelecto podemos subir ou descer degraus dentro da estrutura do Ser.
Consequentemente, nem todas as disciplinas cien�ficas teriam, sob o olhar
medieval, o mesmo rango. Não era a mesma coisa estudar as flores, por
muito belas que sejam, do que entender os desígnios de Deus. Portanto, a
teologia era superior à filosofia, a filosofia superior às ciências da natureza
e as ciências da natureza superiores a disciplinas técnicas como a
engenharia. Esta dis�nção não era original do Medievo, pois reproduzia as
fontes da filosofia clássica, embora peneiradas pelo neoplatonismo da
literatura patrís�ca.
No entanto, toda a Criação, dos seres inanimados às leis que regem o
movimento dos astros, é única. Deus criou o mundo como um reflexo de Si
mesmo e através do estudo dessa realidade sensível podemos conhecer,
embora de maneira parcial e imperfeita, a Deus em toda a Sua grandeza.
Esta visão da Criação (ou do Ser ou do Logos) como uma unidade ajuda a
explicar por que Ramon Llull estudou com tanto afinco disciplinas tão
distantes e às vezes sem nenhuma aparente conexão.
Mas a divisão do ser em diferentes escalas também tem os seus
desdobramentos no âmbito da lógica. Para Lúlio - como para boa parte dos
autores da tradição lógica ocidental -, os princípios estão “acima” das
conclusões. Por conseguinte, os processos analí�cos supõem um descenso
do intelecto, enquanto as sínteses sua ascensão. Dito de outro modo: a
mente ascende do par�cular ao general e descende quando chega a uma
conclusão concreta a par�r de um princípio geral.
Neste sen�do, Pere Villalba recomenda ler o Livro da ascensão e descenso
do intelecto juntamente com o Livro da significação (1304) e o Livro sobre
a demonstração por equiparação (1305). Segundo este estudioso, as três
obras formam uma boa introdução para entender a metodologia luliana.
A preocupação por sinte�zar todo o saber disponível no seu tempo numa
única obra está presente desde o início da carreira literária do Doutor
Iluminado. A segunda (e mais extensa) obra que ele compôs, o Livro de
contemplação em Deus, persegue justamente esse fim. Posteriormente,
uma obra com um viés mais literário como é o Félix ou livro das maravilhas
segue uma estrutura parecida, também inspirada na unidade do ser: Deus,
anjos, céu, elementos, plantas,metais, bestas, homem, Paraíso e Inferno.
Desses capítulos, o mais extenso é o dedicado ao homem, que ocupa mais
da metade de todo o livro.
Quase três décadas depois, Lúlio voltará a escrever uma vasta obra na qual
procura oferecer uma visão sistemá�ca do conhecimento. Trata-se da
Árvore da Ciência (1295). Segundo o que o próprio autor revela na
introdução do livro, esta obra é a enésima tenta�va de tornar inteligível a
Arte, à vista de que os contemporâneos teimavam em negar as virtudes
que o Doutor Iluminado atribuía à sua principal criação intelectual. Mesmo
que o �tulo faça referência a uma árvore, seria mais ajustado in�tulá-la de
Bosque da Ciência, já que a exposição do saber está estruturada num total
de dezesseis árvores, que misturam a escala do ser (tal como interpretada
pela filosofia medieval) com os elementos estruturadores da Arte: árvore
elementar, árvore vegetal, árvore sensual, árvore imagina�va, árvore
humana, árvore moral, árvore imperial, árvore apostólica, árvore celes�al,
árvore angelical, árvore sempiterna, árvore maternal, árvore de Jesus
Cristo, árvore divina, árvore exemplificadora e árvore ques�onadora. Cada
árvore, por sua vez, está dividida em sete partes: raiz, tronco, galhos,
ramos, folhas, flores e frutos. Além disso, cada livro da Árvore da Ciência
consta de nove princípios absolutos, equivalentes às Dignidades de Deus
(bondade, magnitude, duração, poder, sabedoria, vontade, virtude,
verdade e glória), e outros nove princípios rela�vos, também presentes nas
figuras da Arte (diferença, concordância, contrariedade, princípio, meio,
fim, maioridade, igualdade e minoridade).
A cada árvore do Livro da Ciência corresponderia uma disciplina cien�fica
diferente. Assim, a �sica encarregar-se-ia da árvore elementar, a botânica
da vegetal, a biologia da sensual, as artes da imagina�va, a antropologia da
humana, a é�ca da moral, a polí�ca da imperial, a eclesiás�ca da
apostólica, a astrologia da celes�al, a angelologia da angelical, a
escatologia da sempiterna, a mariologia da maternal, a cristologia de Cristo
e a teologia da divina. Olhando para o catálogo de obras de Ramon Llull
percebemos que o maiorquino dedicaria tratados específicos para muitas
dessas matérias.
Uma das questões mais interessantes na aproximação luliana à teoria do
conhecimento é o papel principal que o maiorquino dá ao amor. Para ele o
saber é a soma da sapiência, da amância e da memorância. Ou, dito de
uma maneira mais atual: do saber, do amar e do recordar. Para Llull esses
três elementos são fundamentais para um completo conhecimento das
coisas. Chama a atenção a ênfase dada ao amor, que sem dúvida contrasta
com as modernas doutrinas cien�ficas, que pelo geral prescindem
absolutamente dele. Não podemos obliterar que Lúlio era um pensador
cristão e que o cris�anismo é, acima de tudo, a religião do amor. A Criação
do universo, incluindo a criação do homem (bem como a encarnação de
Deus em Jesus e a paixão, morte e ressurreição do Messias), exprimiu o
amor de Deus a todo o universo. Como corolário disso, há de dizer-se que,
dentro das polêmicas teológicas de seu tempo, Lúlio colocou-se
claramente a favor dos que afirmavam que Deus teria se encarnado em
qualquer caso, mesmo se o homem não �vesse pecado.
Sobre esta base cristã, Lúlio elabora a sua teoria do conhecimento
incluindo o amor como um fator fundamental do saber. Com diz o Doutor
Iluminado, não conhecemos de verdade aquilo que não amamos nem
podemos amar de verdade aquilo que não conhecemos. Ao qual
poderíamos acrescentar, mesmo que Lúlio não o �vesse dito nunca desse
modo: e o esquecimento leva à ignorância e ao desamor. Esse é um
enfoque em perfeita consonância com as Sagradas Escrituras, tal como São
Paulo expôs aos corín�os: “E ainda que �vesse o dom de profecia, e
conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que �vesse toda a
fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não �vesse amor, nada
seria” (1 Cor 13, 2).
O amor como objeto de especulação intelectual está presente em diversas
obras, embora talvez seja na Ars ama�va (1290) onde isso fique mais
evidente. Como em toda a Ars luliana há uma mescla de lógica e mís�ca. O
obje�vo do livro é a análise do amor ao bem, na linha do idealismo de
Platão; só que Lúlio iden�fica o bem com Deus e isto conduz a que toda a
argumentação lógica tenha como alicerce a teologia. De novo, a
epistemologia da “mís�ca cien�fica”, isto é, a firme convicção de que a
Verdade é una e que pode ser alcançada tanto pelos meios racionais da
lógica quanto pelos mecanismos irracionais da fé, preside todo o
pensamento do Doutor Iluminado, dando coerência à aparente
contradição entre os termos Doutor (cien�sta) e Iluminado (mís�co).
Ramon Llull dispôs-se a explicar todas essas coisas ao seu filho Domenge.
Dele sabemos bastante pouco, já que raramente aparece nos textos do pai.
Lúlio abandonou a família para centrar-se na vida ascé�ca e de pregação
quando Domenge devia ter poucos anos de idade e nada indica que entre
eles houvesse um relacionamento muito estreito. Era o caçula da família,
porém o herdeiro da família Amat/Llull segundo o direito consuetudinário
catalão. Sua irmã mais velha, Magdalena, casou-se com Pere de
Sentmenat, membro de uma rica família de Maiorca, mas de Domenge não
sabemos se permaneceu solteiro, se se casou ou se teve filhos.
Ora porque Llull temia que seu filho somente es�vesse interessado em
prazeres banais, ora porque considerava que devia transmi�r-lhe toda sua
sabedoria de uma forma ordenada, o pensador redigiu um livro dedicado a
ele. O resultado foi a Doutrina pueril (1274-76), uma obra cujo �tulo
manifestava com todas as letras que estava dirigida à educação
(doutrinamento) das crianças (pueris). Nesse livro Lúlio trata de transmi�r a
seu filho tudo aquilo que considera indispensável para que seja um bom
cristão, isto é, um homem ao mesmo tempo temoroso de Deus e com
anelo de saber. Uma vez finalizada a obra, o autor enviou uma cópia a Pere
Galceran, o procurador que administrava os bens de Llull durante suas
longas ausências da ilha, com o fim de que a entregasse a Domenge para a
sua instrução.
Não temos constância de que o filho de Llull lesse o livro nem que dele
extraísse as boas lições que o pai lhe �nha preparado. Muito
provavelmente a Doutrina pueril dormiu o sonho dos justos, guardada em
alguma gaveta ou prateleira da casa dos Llull na cidade de Maiorca. Não
obstante, o pensador não desis�rá de transmi�r sua sabedoria ao
descendente e para ele comporá outras obras de caráter didá�co, tais
como a Árvore de filosofia desejada (1294). Mesmo em se tratando de um
dos maiores cumes da pedagogia medieval, nada nos prova que a obra de
Lúlio sur�sse os efeitos esperados. Domenge não seguiria os passos do pai.
Inclusive, uma vez morto, não seria ele quem, como legí�mo herdeiro,
preservasse seu legado. Será Pere de Sentmenat (o genro de Lúlio) a
pessoa que mais empenho porá em Maiorca para a conservação dos seus
escritos, organizando um acervo documental que, com o tempo, faria
florescer uma sólida escola de lulís�ca na ilha.
Além das obras em que Lúlio estudou a Scien�a em abstrato,
estabelecendo pontes de comunicação com sua Arte, do ponto de vista
filosófico e teológico, este autor nos deixou um bom número de obras
dedicadas a disciplinas concretas do saber. No seu extenso catálogo
encontramos monografias sobre medicina, direito (com especial
consideração pelo direito natural), lógica, sistemas de eleição de pessoas, a
predes�nação e o livre alvedrio, astronomia, geometria (como a
quadratura e a triangulação do círculo, entre outras questões), retórica,
meta�sica, etc.
Mais polêmica, porém, resulta a contribuição de Lúlio às ciências aplicadas.
Alguns autores têm visto nele um precursor da escola maiorquina de
cartografia, que terá seu máximo esplendor cinquenta anos depois de sua
morte, com a obra de Abraão e Jafuda Cresques. A influência luliana
também é sen�da em invenções como o compasso ou o astrolábio,
verdadeiras revoluções na arte de navegar, emboraseja complicado
afirmar qual o papel que o Doutor Iluminado teve exatamente nestas
descobertas.
 
 
 
 
Universitário
 
A relação de Ramon Llull com a universidade (ou com os estudos gerais,
termo mais comum na Idade Média) foi um tanto problemá�ca. Quem
�nha previsto isso de maneira preclara foi Raimundo de Penyafort, que, ao
conhecer Lúlio pessoalmente, fez o possível para tolher-lhe a ideia de
seguir estudos universitários. Penyafort estava ciente de que as ordens
medicantes dominavam o mundo acadêmico no século XIII, mais
concretamente nas disciplinas de teologia e filosofia, pelas quais o
maiorquino mostrara maior inclinação. A carreira universitária corria em
paralelo ao desenvolvimento espiritual dos clérigos e, na rígida ordem
social do Medievo, era di�cil ser aceito em algum estudo geral sem ter
adquirido pelo menos as ordens menores. “O hábito faz o monge”, diz o
velho refrão castelhano. E naquela época o hábito também fazia o
estudante.
Apesar dessas dificuldades, Ramon Llull nunca desis�u do sonho de
triunfar no meio acadêmico. Como vimos antes, ao regressar de suas
peregrinações, acolheu de bom grado a dica de Penyafort e dedicou os dez
anos seguintes a um re�ro centrado no estudo e na vida contempla�va em
sua Maiorca natal. Após esse parêntese forma�vo, com quarenta anos de
vida e no mínimo duas obras importantes escritas (o Livro de contemplação
em Deus e a Lógica de Al-Gazali), nosso pensador sen�u-se
suficientemente preparado para explicar suas descobertas ao mundo.
A primeira universidade onde se deteve foi a de Montpellier. Nesta cidade
do Sul da França o rei Jaime II de Maiorca �nha sua corte na maior parte
do ano. Era um núcleo urbano buliçoso, com rico comércio e uma
universidade que era referência no Ocidente pelos estudos de medicina. Lá
é muito provável que Lúlio aprofundasse seu conhecimento das ciências
naturais, inclusive da alquimia, uma disciplina que sempre detestou e
contra a qual não poupou crí�cas. Também parece evidente que manteve
contatos habituais com a comunidade judaica de Montpellier, que
supomos que lhe ensinaria alguns rudimentos de hebraico e o iniciaria na
cabala. De ser essa suposição certa, explicar-se-ia em boa medida algumas
semelhanças existentes entre a Arte luliana e as disciplinas esotéricas
judaicas.
Além de completar sua formação, as diversas estadias em Montpellier lhe
ajudaram na difusão de sua obra. Sabemos que o rei de Maiorca entregou
cópias de diversas obras de Lúlio a franciscanos importantes. Estes, após
sua leitura, apreciaram a dedicação do maiorquino e louvaram seus
achados, facilitando a recepção do seu pensamento entre os frades
menores.
Mesmo com todo o barulho de suas ruas, lotadas de alunos à procura dos
locais onde os mestres ministravam as aulas, o estudo geral de Montpellier
deveu parecer a Llull uma peça de caça menor. O lugar onde se deba�am
as questões verdadeiramente transcendentais ficava mais ao Norte, na
universidade da Sorbonne, na capital do rei dos francos. Temos
documentadas quatro visitas a Paris: 1287-89, 1297-1299, 1306 (a mais
breve de todas) e a de 1309-11 (durante a qual ditou sua autobiografia aos
monges de Vauvert).
A primeira experiência parisiense (1287-89) foi frustrante. Lúlio chegou lá
com a vontade de convencer todo mundo da u�lidade de sua Arte para
converter os infiéis e achou as portas fechadas. Várias razões mo�varam
esse rechaço. A primeira era que Lúlio não encaixava em absoluto na
imagem �pica do estudante da Sorbonne. Era um homem maduro, que
logo entraria na senectude, casado, com dois filhos, de família de origem
mercan�l e que abandonara seus nobres cargos na corte para perseguir a
quimera de uma iluminação divina. O rótulo de phantas�cus, ou seja,
aloprado, caiu-lhe tal qual um sambenito. Nenhum dos dis�ntos
professores da Sorbonne poderia, em seu são juízo, dar acolhimento às
teses daquela figura esquisita, que ves�a quase como um mouro, mal
falava la�m, luzia uma longa e descuidada barba (quando os religiosos
�nham por costume barbear-se com esmero) e apresentava como
demonstração de seu grande saber uma série de figuras lógicas que pouco
ou nada �nham a ver com o pensamento cristão tradicional. Ramon Llull
era, portanto, a olhos dos acadêmicos parisienses, o avesso radical de um
de seus pares.
Mas havia uma segunda causa para tal rejeição. Quando Lúlio compareceu
na Sorbonne para defender sua Arte, os dominicanos já haviam apostado
todas as fichas em seu cavalo ganhador: Tomás de Aquino. A escolás�ca
concedia aos frades pregadores um arcabouço formal e doutrinal tão
potente que se fechava em si mesmo, sem precisar de mais nada para
defender suas teses. Os franciscanos opuseram-se à hegemonia do
tomismo com uma epistemologia alterna�va, que dava um papel maior ao
conhecimento empírico. Assim, seriam o inglês Roger Bacon e o escocês
Duns Escoto os melhores representantes de uma filosofia franciscana, que,
sem pôr em questão os dogmas religiosos, reivindicava maior ênfase à
realidade que os humanos captam através dos sen�dos. Não está muito
claro se Lúlio chegou a ter contato pessoal com esses pensadores
franciscanos. Com quem seria mais provável que �vesse uma entrevista foi
João Duns Escoto, já que este foi mestre em Paris entre 1302 e 1307, datas
que coincidem com uma das quatro visitas do maiorquino à cidade do
Sena. Inclusive, circula uma apócrifa Disputa�o entre Ramon Llull e Duns
Escoto. No entanto, não temos provas fidedignas de que esse encontro
chegasse a produzir-se.
Fazendo um símil com a história da arte, a escolás�ca defendida pelos
dominicanos vinha a ser algo assim como as catedrais gó�cas do
pensamento. Com pilares sólidos e esbeltos, que suportavam os nervos
que seguravam o teto e u�lizavam os arcobotantes para desviar o excesso
de carga nos contrafortes exteriores, o es�lo (mal chamado de) gó�co
a�ngiu cotas arquitetônicas impensáveis na Europa posterior à queda o
Império Romano. Mediante esses avanços no cálculo de estruturas e
desvio de pesos, os arquitetos da arte gó�ca permi�am a abertura de
grandes vãos, os quais, decorados com preciosos vitrais, faziam entrar a luz
do sol ao mesmo tempo em que mostravam coloridas cenas bíblicas. Sobre
uma repe�ção de princípios arquitetônicos claramente definidos eram
erigidas as portentosas catedrais, que ainda hoje causam estupor em quem
as visita. Na sua busca pela maior glória de Deus, os arquitetos do es�lo
gó�co fizeram inúmeras variações sobre as mesmas estruturas básicas.
Com isso conseguiram fazer evoluir as técnicas constru�vas para modelos
cada vez mais complexos, mas sem perder um ápice das caraterís�cas
originárias dos seus princípios edifica�vos.
Os franciscanos, entretanto, seriam melhor representados pelos afrescos
de Gio�o. Nessas criações pictóricas a observação do mundo natural é
tratada com preciosismo até nos mais mínimos detalhes, mostrando a
beleza de uma Criação em que o ser humano coexiste num plano de
igualdade com os outros seres. Nessas pinturas não fazia falta exagerar na
grandiloquência. O mundo �sico é tão bonito que basta com representá-lo
de maneira realista para causar o máximo impacto no observador. Era uma
esté�ca, a franciscana, mais próxima do humanismo que estava prestes a
eclodir na Europa dois séculos mais tarde. Nesta nova concepção da arte e
do pensamento o ser humano irá ocupando paula�namente o lugar central
que até então �nha sido exclusivo de Deus.
E onde ficava a filosofia de Ramon Llull nesse debate? Pois bem, nem de
um lado nem do outro. Como já vimos, a Arte luliana parte de
pressupostos bem dis�ntos do tomismo, mas tampouco abraça o
empirismo franciscano do século XIII. Sua Arte, curiosa mescla de lógica e
de meta�sica, incomodava a gregos e troianos. Contudo, é certo que os
franciscanos se mostraram muito mais à vontade com Lúlio do que os seus
adversários da ordem dos pregadores. Esta luta entre lulistas (franciscanos)
e an�lulistas (dominicanos) persis�ria por muitos séculos após a morte do
maiorquino e seria causa de terríveis controvérsias filosóficase teológicas,
especialmente em sua Maiorca natal.
Mesmo assim, nesta primeira estadia em Paris Lúlio obteve alguns êxitos
parciais. Bem no finalzinho, o chanceler Bertold de Saint-Denys autorizou
uma leitura pública da Arte luliana, evento que provavelmente aconteceu
durante a Quaresma de 1289, quando se celebravam as Quaes�ones
quodlibetales. Entre os especialistas há dúvidas de se, graças a esta
exposição perante os professores e alunos de Paris, Lúlio chegasse a ser
considerado como um Magister Ar�um. A consecução desta categoria
acadêmica, malgrado não ter frequentado os cursos regulares da
universidade, suporia a convalidação de suas obras. Sem ela não era
permi�do ensinar em público nas dependências da Sorbonne. Embora não
conservemos nenhuma prova documental da outorga desta dignidade,
sabemos que a par�r dessa data Ramon luziria orgulhoso seu �tulo de
Magister em certos documentos.
Mesmo assim, o sen�mento geral de fracasso superou alguns sucessos
pontuais. Esta primeira viagem a Paris deixou um resultado muito abaixo
das expecta�vas, o que encheu Ramon Llull de tristeza. Na sua volta a
Montpellier compôs o Félix ou livro das maravilhas do mundo, uma obra
que deveu servir-lhe para descarregar as tensões acumuladas e
sistema�zar, mais uma vez, todo o aprendizado adquirido à beira do Sena.
Mas Llull não desis�ria jamais de levar seu pensamento à principal
universidade da Cristandade. Em virtude de sua constância e de uma
possível aceitação acadêmica – embora fosse por conta do que hoje
chamaríamos de honoris causa -, Lúlio conseguiu criar um pequeno grupo
de seguidores que se interessou pelo estudo da Arte. Dentre eles havia um
erudito que �nha triunfado nos círculos acadêmicos parisienses com sua
obra De ocula morali. Seu autor, Pierre de la Cepère (também conhecido
como Pedro de Limoges), havia reunido uma vasta biblioteca com mais de
cem �tulos, entre eles várias obras de Lúlio. Outra figura importante que
recebeu influência luliana foi Pietro Gradenigo, dux de Veneza entre 1288 e
1311, a quem o maiorquino enviou algumas obras, como sabemos graças à
carta que as acompanhava. Veneza era um dos principais portos do
Mediterrâneo e sua expansão comerciais pelas rotas que comunicavam a
Europa com a Ásia faziam dela um enclave decisivo para qualquer projeto
de cruzada.
No entanto, o seu discípulo número um foi Tomás Le Myéser, que deveu
conhecer durante a primeira viagem a Paris (1287-89). Le Myéser foi um
dos ar�fices da persistência do lulismo após a morte de Llull. Era um pouco
o contrário de seu mestre: educado desde bem novo para se tornar
sacerdote e procedente de uma abastada família do norte da França,
Tomás alcançaria elevadas dignidades eclesiás�cas, chegando a ser o
vigário de Arras. Gosto de imaginar Lúlio e Le Myéser passeando juntos
pelas vielas da Paris medieval, discu�ndo sobre o divino e o humano. Havia
entre eles uma diferença de idade de mais de quarenta anos, mas isso não
foi obstáculo para que a amizade fosse mutuamente benéfica. O jovem
francês andava trajado conforme exigia sua alta linhagem e a ambição de
ocupar cargos de destaque na corte. O maiorquino ves�a de maneira
estrambó�ca, parecendo mais um santão sarraceno do que um pensador
católico. Tomás deveu ficar admirado pela sabedoria de um mestre que, se
nas conversas cara a cara mostrava a mesma prolixidade que nos seus
escritos, �nha de ser por força um caso grave de loquacidade. Aliás, Ramon
Llull, pelo fato de ter sido cortesão e casado, havia �do uma série de
experiência de vida que o francês, como consequência dos votos de
cas�dade, pobreza e obediência, nem �vera nem iria ter no futuro. Mas
essa admiração devia ser uma via de mão dupla, já que certamente Lúlio
devia professar inveja – pelo menos interna - para com aquele aluno que
levava uma vida exemplar. Estudante aplicado, Tomás Le Myéser foi com
muita probabilidade uma ajuda e tanto no aperfeiçoamento linguís�co dos
textos la�nos de Lúlio, além de tê-lo ajudado a entender melhor as
nuances das disputas polí�cas e intelectuais entre as igrejinhas que
lutavam pela hegemonia na Sorbonne.
Somente na quarta estadia em Paris (1309-11), um Raimundo Lúlio quase
octogenário obteria permissão para ministrar aulas de sua Arte, em
igualdade de condições com os professores que faziam parte do corpo
docente da universidade. Ao parecer, a aprovação pública da obra luliana
ocorreu em 10 de fevereiro de 1310, quando quarenta mestres e bacharéis
em Artes e Medicina juraram que, por própria vontade e a requerimento
do mestre Ramon Llull, catalão de Maiorca, escutaram a Arte por este
inventada e asseguraram que era boa, ú�l e necessária e que não havia
nada nela contrário à fé católica. Um ano mais tarde chegaria mais um
reconhecimento, com a aprovação das suas obras por parte de Francisco
Caroccioli, chanceler da universidade de Paris (1311).
Um fato que pode ter ajudado à obtenção dessa licença foi a publicação
dos textos an�averroístas. Com eles Lúlio se punha claramente do lado da
ortodoxia parisiense, embora com essa a�tude se lavrasse o
descontentamento das gerações mais jovens de filósofos. O averroísmo
la�no �nha na universidade de Paris seu principal núcleo intelectual, em
virtude do sucesso das teses de Siger de Brabante, expostas a par�r de
1267 e que logo provocaram todo �po de condenações teológicas. Figuras
proeminentes da escolás�ca, como Alberto Magno e Tomás de Aquino
lançaram severas crí�cas ao averroísmo, negando a sua compa�bilidade
com a doutrina católica. Em 1270 o bispo Estevão Tempier tomou cartas no
assunto e proibiu o ensino de treze teses averroístas na universidade de
Paris. Mesmo assim, os seguidores do averroísmo la�no (cuja interpretação
de Aristóteles às vezes �nha pouco ou nada a ver com os postulados
defendidos pelo filósofo de Córdoba) não pararam de crescer, tornando-se
uma dissidência a�va face à hegemonia da escolás�ca. Na virada do século
XIII para o XIV, autores como Marsílio de Pádua, João de Jaldun ou Antonio
de Parma estavam plenamente “de moda” nos círculos acadêmicos.
Algumas das ideias propagadas por esses averroístas eram que o mundo é
eterno, a universalidade do intelecto (isto é, todos os seres compar�lham
um mesmo espírito) e inclusive a superioridade da razão sobre a fé.
Para Lúlio esses postulados eram completamente errôneos e inaceitáveis e
não poupará esforços para opor-se a eles. Este an�verroísmo militante será
esgrimido em séculos posteriores como argumento contra a modernidade
de Ramon Llull, situando este autor (de maneira injusta) do lado das
posições mais reacionárias do pensamento de sua época.
Apesar de todos os esforços, o lulismo tardaria muito a triunfar (se alguma
vez o conseguiu) nos centros acadêmicos mais reputados. Mas isso não
significa que sua filosofia não congregasse um grande número de
seguidores nos séculos posteriores. Como veremos no capítulo
“Inspirador”, Lúlio acabaria se tornando algo parecido ao filósofo oficial da
Coroa de Aragão, com grande predicamento inclusive na época dos reis
Habsburgo da Espanha (séculos XVI e XVII), mas nas principais
universidades europeias con�nuaria a ser tratado como um ponto
excêntrico fora da curva da história do pensamento universal.
 
 
CruzadO
 
Ramon Llull, como pessoa, foi gestado logo após uma cruzada. A ilha de
Maiorca foi arrebatada dos muçulmanos manu militare e seus traços de
iden�dade islâmica foram destruídos até apenas sobrarem alguns
ves�gios. Apesar disso, a vida do pensador transcorreu numa época
crepuscular do espírito cruzado. Se algo houve de glorioso nessas guerras
de religião ficou circunscrito às três primeiras. A par�r da quarta, em que
os venezianos aproveitaram as tropas la�nas para saquear Bizâncio
esquecendo por completo de Terra Santa, a história das cruzadas é uma
sucessão de derrotas militares, fiascos diplomá�cos e disputas internas. No
século XIII as campanhas no Levante foram um con�nuo recuar dos reinos
cristãos até sua completa expulsão da Pales�na com a queda de São João
de Acre (1291).
Enquanto Lúlio amadurecia,as cruzadas iam perdendo seu sen�do original
e se tornaram uma moeda de troca para dirimir controvérsias entre os
príncipes cristãos. Assim, a cruzada albigense foi no final das contas um
pretexto para o rei da França apoderar-se dos territórios occitanos. A sexta
cruzada, por sua vez, teve origem no confronto, ideológico e armado, entre
o papa e o imperador. Gregório IX forçou Frederico II a rumar para Terra
Santa, sob pena de ser excomungado. Para surpresa geral, o que os
anteriores reis não �nham conseguido pela força das armas, Frederico II
obteve pelos seus dotes diplomá�cos. Os mamelucos aceitaram de bom
grado ceder ao imperador as cidades de Jerusalém, Belém e Nazaré, além
do salvo-conduto para os peregrinos visitarem livremente os Santos
Lugares. Esta foi uma vitória cristã em toda regra e sem derramar nem uma
gota de sangue, porém não foi materializada. Gregório IX considerou
totalmente inaceitável a recuperação de Terra Santa por vias estritamente
pactuadas e ordenou rasgar o acordo de paz alcançado pelo imperador.
Nenhuma das outras cruzadas posteriores a�ngiu seu obje�vo. Em 1269, o
rei Jaime I de Aragão organizou sua própria expedição para conquistar
Jerusalém. Antes de iniciar a longa travessia, a frota recalou em Maiorca.
Alguns autores supõem que houve um encontro entre o rei e Ramon Llull,
embora não conservemos nenhuma prova que o acredite. A cruzada foi um
fracasso estrepitoso, já que uma forte tempestade afundou várias naves e
obrigou a frota a retornar aos portos da Península Ibérica antes de
avistarem a costa da Sicília. O fiasco dessa inicia�va consolidou a convicção
que Llull já expressara no Livro de contemplação em Deus de que a
dominação de Terra Santa não seria ob�da pela força das armas, mas à
maneira como Jesus e os apóstolos a conquistaram, ou seja, “com amor e
orações e espalhando lágrimas e sangue”.
Pedro III de Aragão, filho de Jaime I o Conquistador e irmão de Jaime II de
Maiorca, padeceu na sua própria carne os efeitos da cruzada. Por conta de
sua intervenção no conflito siciliano (lembremos que o povo da Sicília �nha
se sublevado contra o domínio dos Anjou, primos do rei da França, na
Páscoa de 1282), o rei de Aragão acabou sentando-se no trono de Palermo,
sob o aplauso do povo e dos nobres da ilha. Isso gerou uma forte inimizade
com os franceses e com o papa, seu principal aliado na Itália. Este úl�mo
excomungou Pedro III e benzeu uma cruzada para arrebatar-lhe a coroa. A
guerra foi finalmente vencida pelo rei catalão, que expulsou o exército
francês de seus territórios e infringiu severas derrotas à frota angevina.
Malgrado esse panorama pouco mo�vador, Ramon Llull con�nuava a
acreditar que uma das principais missões dos cristãos era recuperar os
lugares em que Jesus pregou e arrebatá-los do controle dos infiéis.
Entretanto, as técnicas que preconizava para alcançar tal fim se afastavam
muito das cruzadas ao uso. Ciente do fracasso das operações militares,
Lúlio opinava que a verdadeira e defini�va cruzada seria de raiz espiritual.
Nem as lanças nem as catapultas fariam dos cristãos os donos da Pales�na,
mas a conversão da população local à fé de Cristo.
Perseguindo esse obje�vo, Llull dedicaria grandes esforços intelectuais e
diplomá�cos. Num primeiro momento, ao cogitar como recuperar Terra
Santa, o pensador focou na ação da ordem de tradutores e pregadores.
Bastaria subs�tuir os exércitos cruzados por uma legião de monges bem
treinados no uso da Arte e com suficiente domínio das línguas orientais
para defender com convicção e bons argumentos lógicos a superioridade
do cris�anismo. Neste sen�do, a proposta de Lúlio para retomar os Santos
Lugares fundamentava-se numa “cruzada espiritual”, mediante a qual, os
descrentes renunciariam de forma natural às suas falsas religiões e
abraçariam de pleno coração a fé no Crucificado. Estas ideias foram
encaminhadas ao Sumo Pon�fice em forma de duas solicitações formais: a
primeira ao papa Celes�no V - Pe��o Raymundi pro conversione infidelium
ad Coeles�num V papa (1294) - e a segunda ao seu sucessor - Pe��o
Raymundi pro conversione infidelium ad Bonifa�um VIII papa (1295) -.
As ideias de Ramon Llull eram, com certeza, muito avançadas para a época.
Por isso, ainda hoje este autor é citado como um predecessor do moderno
diálogo inter-religioso. Pregar a conversão pacífica dos que professam
outra religião, em vez de quebrar-lhes o crânio por não par�lhar nossas
mesmas crenças foi um grande progresso, especialmente em uma época
tão dada à barbárie como a Idade Média. Não obstante, entre as teses
luliana e o diálogo inter-religioso atual (nomeadamente nas suas versões
pós-modernas) existe um abismo.
Lúlio não foi em nenhum caso um rela�vista cultural. A sua aproximação às
outras religiões jamais foi guiada por uma mera vontade erudita, nem
pressupunha uma equidistância neutra diante dos diversos dogmas
religiosos. Para Ramon Llull o cris�anismo, em sua modalidade católica, era
a única religião verdadeira e podia ser demonstrada mediante o uso da
razão. Se alguém pra�cava outra religião, isso somente podia ser devido à
ignorância, já que, tão bom ponto lhe fosse apresentado o catolicismo de
uma forma adequada, o infiel deveria reconhecer o erro e converter-se.
Portanto, estudar e compreender a religião do outro era apenas uma
estratégia para conhecer os pontos fracos de sua fé. Com isso, nas
argumentações o ar�sta luliano poderia concentrar o seu poder de fogo
naqueles aspectos mais débeis dos dogmas do oponente, pondo em
evidência as bases falhas de suas crenças. Deste ponto de vista o diálogo
inter-religioso dista enormemente de uma simples troca de experiências
culturais que busca o mútuo enriquecimento. Bem ao contrário, o diálogo
luliano persegue a conversão do outro; e consegui-lo ou não depende do
adestramento recebido pelo ar�sta, nunca da veracidade dos dogmas
cristãos, cuja superioridade Lúlio dá por certa.
Esse diálogo luliano também significa uma superação das disputa�ones,
que geralmente aconteciam na Semana Santa. Nesses debates públicos um
teólogo cristão enfrentava suas teses às de um rabino judeu. Uma das
disputa�ones mais famosas na época do Llull (e que temos bem
documentada) foi a organizada em Barcelona em 1263 e que teve como
protagonistas o frade dominicano Pau Cris�à i o rabino Moisés ben
Nahman. Contudo, esses debates religiosos eram completamente desiguais
e �nham mais de farsa do que de um diálogo franco e aberto. Rodeados
por uma população que militava fervorosamente no cris�anismo, e
assis�dos pelas tropas reais, o rabino não dispunha de muita margem de
manobra para defender suas posições. Ao contrário, lhe convinha adotar
uma postura defensiva, para, ao menos, evitar que a Sexta-Feira Santa
(data em que se rememora a morte de Jesus) voltasse a servir de pretexto
para a prá�ca de violência contra a minoria judaica.
Lúlio percebeu com o tempo – e provavelmente como consequência das
duas primeiras viagens à África e do périplo pelo Mediterrâneo oriental -
que usando apenas os meios pacíficos e dialogados propostos inicialmente
a sua cruzada espiritual nunca obteria novas adesões. Então compreendeu
que havia outros fatores sociais e econômicos a serem levados em conta e 
que dificultavam a conversão dos infiéis. Teve inclusive oportunidade de 
comprovar pessoalmente como os poderosos faziam o possível para evitar
o debate sobre os dogmas religiosos. Ora, o diálogo é sempre uma
comunicação de mão dupla e, da mesma maneira que dois indivíduos não
brigam se um deles não quer, é impossível que duas pessoas dialoguem
entre si se uma se nega a conversar. Foi a par�r do Livro do Fim que Ramon
Llull começa a cogitar um certo uso da força, sempre limitada e orientada a
levar para a mesa de diálogo àqueles que preferiam ficar de boca fechada e
ouvidos tampados.
Nesta reformulação da “cruzada espiritual” con�da no Livro do Fim, Llull
traça um plano completo que levaria os cristãos a recuperar Terra Santa.
Para começar, todas as ordens militares deveriam unificar-se em uma só,
superando assimas atávicas rivalidades entre templários e hospitalários.
Esta nova agrupação de monges guerreiros, fruto da fusão das anteriores,
seria chamada de Ordem do Espírito Santo, cujo mestre seria um Rex
Bellator (rei guerreiro). O líder em questão da nova ordem militar deveria
ser um príncipe que primasse tanto pelos dotes de cavaleiro quanto por
irrepreensíveis princípios morais. Numa epístola encaminhada ao papa
Nicolau IV em 1292 (portanto, anterior o Livro do Fim), o pensador esboça
as caraterís�cas deste caudilho das hostes cristãs: “um rei valente e
devoto, que não tenha mulher ou que quisesse renunciar a ela”. O projeto,
todavia, frustrou-se com a morte do papa, ocorrida pouco depois da
escrita da carta.
O melhor candidato para conduzir as hostes cristãs era, segundo Llull, o
Infante Jaime, primogênito de Jaime II de Aragão. Conhecido pela sua
cas�dade e espiritualidade, o herdeiro da Casa de Barcelona reunia boa
parte dos requisitos defendidos na obra luliana. Este rei guerreiro deveria
aglu�nar todos os esforços numa ambiciosa empresa bélica, que começaria
com a expulsão dos muçulmanos do sul da Península Ibérica, con�nuaria
com a ocupação dos reinos sarracenos do norte da África e prosseguiria
rumo a Leste, até a defini�va conquista da Pales�na.
No entanto, o projeto de transformar um príncipe catalão no reanimador
do espírito cruzado não sentou nada bem na corte de Paris. O máximo
apologista do reino, Pierre Dubois, escreveu às pressas uma obra
alterna�va ao Livro do Fim, in�tulada De Recupera�one Terrae Sanctae.
Nela defendia a aparição de um Rex Pacis (rei da paz), em contraposição ao
rei guerreiro de Llull. A figura mais indicada para ostentar o cargo de rei de
toda a Cristandade era ninguém menos de Carlos de Valois, irmão do rei
Felipe IV “o Belo”. A rota sugerida por Dubois era completamente oposta à
de Llull: Carlos de Valois deveria atravessar a Europa toda até
Constan�nopla, onde seria coroado imperador bizan�no. A con�nuação
seguiria um caminho parecido ao da terceira cruzada, atravessando
Anatólia e Síria até à cidade santa de Jerusalém.
Ramon Llull tentou convencer o papa das bondades de suas teses e para
isso entrevistou-se com Clemente V pouco antes de ser coroado em Lyon
com a mitra papal, mas sem sucesso. Já fosse pela fama que Lúlio �nha
adquirido de pensador “fantás�co”, já fosse pela ação da diplomacia
francesa, as portas do Va�cano man�veram-se fechadas ao seu projeto do
Rex Bellator. A derradeira tenta�va aconteceu no concílio ecumênico de
Vienne, onde Llull teve a oportunidade de intercambiar opiniões sobre a
cruzada com diversos prelados eclesiás�cos, porém sem obter respaldo
algum.
O único resultado prá�co do Livro do Fim foi servir de inspiração para a
malfadada campanha militar dos reis Jaime II de Aragão e Afonso XI de
Castela contra o reino muçulmano de Granada. Este era o úl�mo bas�ão
sob domínio islâmico que sobrou na Península Ibérica desde meados do
século XIII. A dinas�a nasrida reinou sobre as taifas que sobraram do Al-
Andalus após as invasões cristãs que se sucederam à derrota na batalha
das Navas de Tolosa. O plano idealizado para a defini�va expulsão dos reis
muçulmanos da Hispânia consis�a em uma dupla ofensiva. As tropas
castelhanas deviam avançar por terra pelo extremo ocidental do reino,
com o obje�vo de conquistar Algeciras. Por sua vez, a frota catalã atacaria
Almería, no outro extremo do reino nasrida. Dessa forma o reino de
Granada ver-se-ia atacado pelos dois lados, diminuindo assim suas
possibilidades de reagir. Não obstante, a guerra foi um desastre. O rei de
Castela padeceu a deserção de seus nobres e as naves do rei de Aragão
mostraram-se insuficientes para tomar a bem for�ficada praça de Almería.
 
 
 
 
 
 
 
FundAdor
 
Como temos visto, o principal obje�vo da vida de Llull, uma vez conver�do
à piedade cristã, foi conseguir a conversão dos infiéis ao cris�anismo.
Escrever “o melhor livro do mundo” era um requisito sine qua non, porém
insuficiente, para tal propósito. Também havia de organizar uma ordem
religiosa de monges que propagassem a Arte, com o intuito de obter por
meio do diálogo e do raciocínio as tão aneladas conversões. Ao idealizar a
sua ordem, Ramon espelhou nela suas melhores virtudes. Os membros dos
cenáculos lulianos deveriam ser, para início de conversa, pessoas com
grande anseio pelo conhecimento. Ademais, deveriam dedicar muitas
horas de sua vida à leitura, interpretação e prá�ca da Arte. Todavia, esse
estudo deveria ir acompanhado pela aprendizagem das línguas que
falavam os que ainda não reconheciam a supremacia da Cruz. O árabe era,
logicamente, a primeira delas, mas também o hebraico, o aramaico, o
siríaco, o berbere e os idiomas dos povos das estepes asiá�cas, dos turcos
aos mongóis; em todas essas línguas deveriam ser vazados os
ensinamentos do Evangelho. Uma vez somado todo este conhecimento e
munidos com os recursos da Arte, os monges lulianos par�riam para a
missão conversora, abandonando suas terras de procedência e surcando os
sete mares. Não havia obra humana mais importante do que a conversão,
sem a qual a salvação de milhões de almas seria impossível. Nem sequer a
vida dos monges tradutores podia ter mais importância do que a expansão
da Boa Nova por todo o mundo.
Llull era tudo isso que os seus monges deveriam ser: pensador, tradutor,
missionário e até már�r (se era esse o desígnio da Providência). Mas essas
qualidades não eram tão fáceis de achar entre os noviços, muitos deles
ainda impúberes e sem meridiana ideia do que a vida poderia reservar-
lhes. Tampouco o momento era dos mais oportunos para a fundação de
uma nova ordem monás�ca. Depois da eclosão das ordens mendicantes
nas duas primeiras décadas do século XIII, o papado examinou com pouco
entusiasmo a autorização de novas ordens. Somente os carmelitas
receberiam a bênção papal nos anos seguintes. E mesmo assim foram
obrigados a usar a regra de Santo Agos�nho, redigida quase novecentos
anos antes e que nunca �nha sido u�lizada. A época de Lúlio foi mais um
tempo de eliminação de ordens regulares (como ocorreu com os
templários) do que de incorporação de novas.
Contudo, a teimosia de Ramon Llull rendeu-lhe bons frutos. As gestões
pra�cadas no Va�cano levaram à aceitação papal da ordem de monges
tradutores.
9
 Uma bula de João XXI, datada no dia 17 de outubro de 1276,
autorizou a fundação de Miramar. Para o financiamento da empresa, o
fundador contou com o apoio de Jaime II de Maiorca, quem lhe garan�u
quinhentos florins anuais, o que era uma soma nada desprezível.
10
 Os
hierarcas franciscanos receberam de bom grado a inicia�va luliana, já que
contou com o apoio explícito do ministro provincial da ordem dos frades
menores na Coroa de Aragão e do próprio Girolamo d’Ascoli, então
ministro geral dos franciscanos - que com o tempo iria se tornar o papa
Nicolau IV -. O convento franciscano da ilha “cedeu” treze noviços que
interromperam sua formação como frades menores para alistar-se à nova
ordem de tradutores.
Como já foi mencionado, o local escolhido para pôr a pedra fundacional da
primeira casa dos monges lulianos foi Miramar, uma propriedade agrícola
na Serra de Tramontana, ao Norte da ilha, entre os municípios de
Valldemossa e Deià. Ramon Llull obteve Miramar em troca de uma alcaria
(espécie de fazenda que incluía um pequeno povoado) que sua família
possuía perto do mosteiro de La Real.
Entre as montanhas e o mar, numa íngreme encosta com solo pouco apto
para a agricultura e frequentada por cabras e outros animais silvestres,
Miramar era um lugar idôneo para o re�ro espiritual. Entretanto,
contrariando os planos do Doutor Iluminado, este cenáculo montanhês
não deu início a um novo movimento religioso. Dez anos depois de sua
fundação o mosteiro deixou de funcionar. As construções que se
edificaram para dar abrigo aos noviços foram ruindo aos poucos. Ficaram
nessa lamentável situação até o final do século XIX, quando um membro
da família real austríaca, o arquiduque Luís Salvador de Habsburgo,
durante seu “autoexílio”em Maiorca, comprou a possessió e mandou
reconstruir o eremitério. Hoje em dia, os herdeiros de Miramar conservam
com carinho a memória de Ramon Llull, reproduzindo no solo as figuras
principais de sua Arte e ministrando cursos que divulgam o seu legado.
Desconhecemos as causas do fracasso de Miramar. Provavelmente, os
obje�vos dessa criação eram muito superiores aos recursos disponíveis.
Como era habitual nele, Raimundo Lúlio olhava para muito longe e pensava
grande, mas essas intenções raramente desciam ao terreno dos detalhes
co�dianos. Provavelmente, com sua facilidade para deixar voar a
imaginação, sua voracidade leitora e sua grafomania (a produção literária
de Lúlio es�ma-se em mais de vinte mil páginas), não devia sobrar muito
tempo para as questões mais prosaicas, tais como a intendência do
mosteiro, a formação dos monges, o suporte espiritual àqueles que
duvidavam de sua fé, a resolução dos conflitos normais em qualquer local
de convivência, etc. O Doctor Phantas�cus com certeza preferia mergulhar
em seus altos pensamentos antes que se preocupar por afazeres menos
elevados. E a consolidação do embrionário mosteiro de Miramar não foi
um projeto suficiente animador como para ancorá-lo em Maiorca. Pelo
contrário, não me estranharia que a ro�na de Miramar o empurrasse a
empreender novas e emocionantes viagens, mesmo que somente fosse
para fugir de uma realidade monás�ca que seguramente o entediava.
Ainda que em sua autobiografia o fundador não faça menção ao fim que
Miramar teve, sabemos por fontes de arquivo que no dia 19 de março de
1301 Jaime II de Maiorca decretou a cessão do imóvel ao abade de La Real.
É mais que provável que essa decisão fosse tomada pelo rei muitos meses
(ou anos) depois de Miramar ter se transformado em uma triste ruína.
Mesmo que essa primeira fundação fosse um fracasso, Llull não desis�u
jamais do projeto. Uma vez e outra seria apresentada a ordem dos monges
tradutores, já fosse em sua produção bibliográfica, em visitas às cortes
reais ou durante parlamentos com autoridades eclesiás�cas. O maiorquino
sempre teve muito claro que uso da força não bastava para recuperar Terra
Santa. A cruzada deveria ser espiritual (e, por conseguinte, conduzida por
religiosos hábeis no uso da Arte) ou não alcançaria jamais a conversão dos
infiéis.
A úl�ma grande oportunidade de expor suas ideias sobre a cruzada, o
papel que nela jogariam os monges lulianos e, no geral, acerca da reforma
que deveria ser empreendida na Igreja para voltar às épocas de esplendor,
apresentou-se com o concílio ecumênico de Vienne. Esse �po de concílios
era muito raro, já que o Papa apenas os convoca para tratar de assuntos
doutrinais profundos.
Ramon Llull encaminhou seus passos rumo a Vienne do Delfinado,
novamente com a esperança de convencer o Pon�fice da necessidade de
construir vários mosteiros seguindo o modelo de Miramar. Porém, essa
questão não constou na pauta conciliar. Clemente V �nha outros assuntos
mais prioritários para discu�r, como a dissolução da ordem do Templo ou a
perseguição dos franciscanos espirituais.
O papa gascão sabia perfeitamente que se ostentava o sólio pon��cio isso
era devido em boa medida à ação diplomá�ca de Filipe IV, o mesmo rei da
França que em 1307 mandara arrestar todos os cavaleiros templários de
seu reino. Embora abrigasse sérias dúvidas sobre as confissões que os
oficiais franceses lhes arrancaram, amiúde após longas e terríveis sessões
de tortura, Clemente V �nha bem claro que não queria seguir os passos de
seu antecessor, o malogrado Bonifácio VIII, expulso do poder a mãos dos
sequazes de Filipe IV. O poder do rei da França era tão grande nessa altura
do século e, ao mesmo tempo, a situação de Roma tão confli�va por culpa
dos con�nuos confrontos entre as famílias nobiliárquicas, que o papa
acabaria por tomar uma decisão inédita: mudar a Santa Sé da an�ga capital
do império romano à pacata Avignon. Esta cidade, localizada perto da foz
do Ródano, estava rodeada de territórios controlados por Filipe IV, mas
fazia parte do Patrimônio de São Pedro. Com isso o papa matava dois
coelhos de uma cajadada só: ficava sob o abrigo do Rei Cris�aníssimo,
porém sem ter que sair dos territórios papais e mantendo a sua autonomia
sobre as questões temporais.
Junto com a ex�nção da ordem do Templo, no concílio de Vienne também
se tomaram duras medidas contra outros suspeitos de heresia. Os
begardos e beguinas, cristãos laicos que viviam sua fé de maneira sui
generis, foram lembrados de que fora da Igreja não existe salvação possível
(ex Ecclesia nulla salus) e suas prá�cas condenadas. Também alguns
pensadores da linha espiritual dos franciscanos (os fra�celli) foram
cominados a prosseguir pelo caminho da ortodoxia se não queriam ver
suas obras censuradas.
O único êxito rela�vo que Llull obteve em Vienne foi conseguir que nas
atas conciliares se deixasse constância por escrito da necessidade de
inaugurar centros de ensino de idiomas orientais nas principais
universidades. Era um resultado modesto e muito distante da grande
ordem de missionários por ele concebida. Mas, no final das contas, era
uma medida baseada nos mesmos ideais defendidos por Llull. Contudo,
pra�camente nenhum centro de idiomas foi inaugurado nas décadas
posteriores e essa medida conciliar ficou no papel. A formação teológica
con�nuaria a ser basicamente em la�m, com algumas pequenas incursões
no grego. Os pensadores cristãos permaneceriam de costas viradas para
com as línguas orientais por um longo espaço de tempo.
Outro pequeno triunfo de Llull foi a promulgação da bula Redemptor
noster, que estabelecia a cobrança de um dízimo específico para sufragar a
nova cruzada. Aliás, com a proclamação da ordem do Hospital de São João
como legí�ma sucessora da ordem do Templo verificava-se uma velha
aspiração luliana: a de unificar todas as ordens militares em uma só. Com
recursos para o financiamento da campanha bélica e sem as rivalidades
que haviam enturvado as relações entre os monges guerreiros, só faltava
que um Rex Bellator tomasse as rédeas do exército cristão e o conduzisse à
luta contra os descrentes. Todavia, essa cruzada derradeira seguindo a
car�lha do Livro do Fim não se materializaria nunca. Os dízimos, quando
angariados, teriam usos bastante diferentes dos previstos por Llull.
Contudo, essa viagem a Vienne do Delfinado nos deixou um prazeroso
texto literário, in�tulado Fantás�co. Emparentado com o poema
autobiográfico Desconhort (1295), o Fantás�co (cujo �tulo original é
Disputa�o Petri clerici et Raymundi phantas�ci, 1311) é um diálogo
imaginário entre Raimundo Lúlio e um eclesiás�co de nome Pedro, ambos
a caminho do concílio. No entanto, os mo�vos que levam os dois homens
para o Delfinado não podem ser mais opostos. Enquanto Lúlio quer
aproveitar a oportunidade para convencer o papa e os prelados da
necessidade de fundar uma nova ordem de tradutores, o seu interlocutor
não procura outra coisa que sa�sfazer as ambições econômicas e de
honras eclesiás�cas de sua família. Como é de se imaginar, essas visões tão
contrárias provocam um duro debate. Nos versos do Fantás�co, Ramon
Llull, além de fazer um resumo apologé�co de sua vida e obra, põe bem
claramente, preto sobre branco, os vícios em que incorriam muitos
membros da Igreja. Evidenciando esses defeitos, o autor pretendia ganhar
adeptos à sua causa em prol da reforma das estruturas da Igreja católica, já
que, infelizmente, alguns de seus ministros haviam se afastado da
mensagem salvadora do Evangelho.
 
 
 
 
InDivíduo
 
Uma das coisas que mais chama a atenção a respeito da modernidade de
Lúlio é o papel que o Eu teve em sua produção literária. No geral, os
autores medievais eram muito pudorosos em relação às suas vivências
pessoais e raramente vazavam em seus textos questões ín�mas, salvo nos
casos de exposições públicas de pecados. Neste sen�do, Santo Agos�nho
traçou em suas Confissões um modelo que serviria quase de gênero
literário para autores posteriores. Esta influência do bispo de Hipona
manifesta-se claramente nos textosautobiográficos de Ramon Llull. Neles,
o maiorquino, de maneira parecida à de Santo Agos�nho, remarca seus
pecados de juventude, talvez para destacar o contraste com sua vida
piedosa posterior. Já na primeira obra extensa, o Livro de contemplação em
Deus, descreve a si mesmo com as seguintes palavras: “tanto o pecado e a
loucura têm me enfraquecido e empequenecido e me feito mesquinho que
em mim não há lugar para que nenhuma sabedoria pudesse entrar nem
caber”.
Entretanto, na minha opinião, as obras autobiográficas deste autor
transcendem o marco meramente espiritual e abordam a questão do
indivíduo de maneira muito mais moderna. Embora às vezes possa dar a
sensação de o discurso luliano ter sempre um quê de moralidade, ao
destampar suas vivências mais ín�mas, Ramon Llull vai um passo além do
discurso meramente exemplificador. O ser humano, com todas as suas
contraditórias emoções, é um objeto de estudo para o maiorquino. Uma
das vias que ele tem para aprofundar na compreensão do homem é
precisamente debruçar-se nas suas próprias emoções.
Por outra parte, a sua origem social também deveu influir nessa percepção
do Eu. Como sabemos, a família Amat (apelidada de Llull) procedia do
estamento dos comerciantes, ainda que �vesse ascendido recentemente a
uma categoria próxima à dos cavaleiros. Também sabemos, graças aos
estudos de história social, que na Baixa Idade Média as classes burguesas
(comerciantes, artesãos e professionais liberais) �veram um papel chave na
erosão da ordem feudal. As cidades que habitavam supunham uma
excepcionalidade dentro do imutável status dos bellatores, oratores e
laboratores. Esse desafio à ordem estabelecida ficou bem palpável na
literatura do século XIV (Boccaccio, Chaucer, Hita, etc.) e uma das
caracterís�cas mais evidentes é a promoção do indivíduo, cujas ações nem
sempre são justas nem edificantes.
Foi Ramon Llull um precursor desta nova abordagem do Eu? Mais ou
menos. O subje�vismo luliano é filho de seu tempo e está in�mamente
ligado à nova espiritualidade gerada e transmi�da pelas ordens
medicantes. Sobretudo a dos franciscanos, que romperam com a estrita
compar�mentação da sociedade feudal, atendendo às necessidades das
emergentes cidades. Sua preocupação pela situação dos pobres, dos
doentes, dos idosos e dos órfãos veio acompanhada de um novo discurso
de amor, que emanava das fontes do Evangelho, mas que também
transmi�a uma conexão do homem com a natureza. Francisco de Assis foi
um exemplo disso. Contrariando as disposições de sua família, que o
educara para fazer dele um cavaleiro galhardo e abastado, Francisco
negou-se a aceitar o papel que a ordem social lhe havia des�nado. Largou
riquezas e honrarias e, em uma manifestação máxima de autonomia do Eu,
resolveu orientar sua vida na procura da imitação de Cristo. Algo
semelhante faria Lúlio anos mais tarde e, como o próprio autor reconhece
em seus textos autobiográficos, o relato da vida do poverello de Assis
marcou-o decisivamente. Portanto, à influência literária da obra de Santo
Agos�nho, Lúlio contrapõe as narrações da vida de São Francisco de Assis,
que São Boaventura se encarregaria de compilar por escrito.
A individualidade de Llull exprime-se de maneiras muito diversas. Uma
delas foi a sua prá�ca do cris�anismo. Mesmo estando muito próximos de
franciscanos e dominicanos, o maiorquino não engrossou suas fileiras. Em
sua autobiografia reconhecerá que sua conversão foi “à penitência”, o que
o torna um dos pioneiros da prá�ca laica da religiosidade católica. Pode-se
argumentar que pelo fato de ele ser casado e com filhos, seu perfil não
encaixava totalmente no noviciado ao uso. Todavia, não podemos esquecer
que as ordens mendicantes previram a incorporação de laicos às suas
estruturas. O caso dos franciscanos é talvez o mais claro, já que exis�a uma
ordem (a Terceira) pensada especificamente para eles. Inclusive, segundo a
tradição, Ramon Llull foi sepultado no convento de São Francisco da cidade
de Maiorca ves�ndo o hábito da ordem Terceira.
Também em sua relação com Deus Lúlio exala individualidade. A crise que
teve em Gênova e que o impediu de embarcar rumo à África para
converter os muçulmanos provocou-lhe uma longa convalescência.
Durante a mesma, Lúlio teve uma visão em que Deus lhe indicava que
devia ves�r o hábito da ordem dos pregadores se queria que sua alma se
salvasse. Sendo que os dominicanos �nham mostrado pouco interesse pela
Arte, Lúlio percebe que a aceitação da regra dos frades de São Domingos
faria com que sua obra se perdesse para sempre. Entretanto, os
franciscanos já �nham aprovado o ensino da Arte em seus centros.
Portanto, o maiorquino deve escolher entre a salvação da alma e a
salvação de sua obra intelectual. E, surpreendentemente, resolve não
seguir o mandado de Deus e renuncia a se incorporar à ordem dos
pregadores. Em sua valente oposição aos desígnios divinos, Ramon Llull
aceita que sua alma queime eternamente no inferno antes que se arriscar
a perder todo o trabalho feito. Essa decisão, um tanto inesperada em se
tratando de um cristão pra�cante, ele mesmo a explica afirmando que o
maior bem que poderia fazer para a glória de Deus seria o ensino da Arte,
a qual conduziria à conversão e salvação de todos os povos gen�os.
Estamos à par desse episódio graças ao principal texto autobiográfico de
Llull, a Vida Coetânea, que foi ditada aos monges de Vauvert durante sua
úl�ma estadia em Paris. Um Ramon idoso, que já �nha cumprido os oitenta
anos, passa a limpo sua vida. O local escolhido para esta revisão vital não
podia ser mais indicado. Dentro do tumulto da corte do rei da França, o
mosteiro de Vauvert era um remanso de paz. Erigido no espaço que hoje
ocupam os jardins de Luxemburgo, Vauvert era um cenáculo de monges
cartuxos. De todas as ordens monás�cas que foram surgindo seguindo a
estela de São Bento de Núrsia, a Cartuxa era sem dúvida uma das mais
rigorosas. Um voto de silêncio absoluto era imposto aos seus membros, a
ponto de não poder ultrapassar um determinado número de palavras por
dia. Quando um cartuxo cruzava com outro pelos corredores do mosteiro o
único cumprimento que lhe era permi�do proferir era: “Irmão, recorda que
hás de morrer”. Nesse entorno de austeridade e rigor máximos, Ramon
Llull deveu ter uma experiência homologável às sessões de psicoterapia,
mais de quinhentos antes do nascimento de Sigmund Freud. Envolvido
pelo silêncio sepulcral dos cartuxos e sabendo-se livre de interrupções ou
julgamentos alheios, no ditado de suas memórias em Vauvert Ramon Llull
libertou boa parte das opiniões, pensamentos e lembranças que guardara
por décadas dentro de si. O resultado foi um documento rela�vamente
breve, mas que condensa em poucas páginas os fatos mais relevantes da
sua vida.
Além da Vida Coetânea, conservamos outros dois textos autobiográficos de
Lúlio: o Canto de Ramon (1300) e o Desconhort (Desconsolo). No primeiro
destes poemas, Ramon Llull faz uma relação de sua conversão,
experiências mís�cas e redação da Arte, bem como da fundação do
mosteiro de Miramar com o intuito de contribuir à conversão de
sarracenos, tártaros e judeus. O Canto de Ramon, porém, não é um escrito
autolaudatório. Muito pelo contrário, nele Llull reconhece o fracasso de
sua obra, com versos como estes: “Sou homem velho, pobre, desprezado /
não tenho ajuda de homem nascido” ou “sou pouco conhecido e
amado”.
11
Desconsolo também segue a mesma tendência, sob o influxo da lírica
trovadoresca, que o autor pra�cara em seus anos moços. O tom e a
temá�ca são muito parecidos com os do Canto de Ramon. O poema
começa com um Ramon Llull envelhecido e cansado, que, após trinta anos
de tentar sem sucesso difundir sua Arte, se interroga pelo mo�vo de tal
fracasso. Já na primeira estrofe do Desconsolo, o autor se encomenda a
Deus, seu único amigo, posto que não existe ninguém no mundo que possa
confortá-lo. Nas estrofes seguintes, Ramon mantém um diálogo com um
ermitão, que inicialmente ques�ona a bondade de sua obra. O debate
sobre a Arte passa por alguns momentos tensos, mas finalmenteo ermitão
louvará o trabalho feito e incen�vará Lúlio a não abandonar a missão que
Deus lhe encarregara. Assim, Ramon Llull chega ao desfecho do poema
pondo nos lábios do ermitão os seguintes versos: 
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Oh, Deus humilde, piedoso! Por mercê vos peço
Que convosco esteja Ramon, tanto que o guardeis de dano.
A vós, Deus poderoso, meu amigo Ramon encomendo;
E que ao mundo envieis homens que tenham talante
Para morrer por vosso amor, e que vajam mostrando
A verdade da fé, pelo mundo predicando,
Segundo o que Ramon já tem começado.
 
Entretanto, o Livro de Evast e Blanquerna, sem ser uma autobiografia, está
claramente inspirado na vida do autor. O protagonista desta obra,
Blanquerna (ou Blaquerna, sem o primeiro n, segundo algumas edições), é
uma espécie de alter ego idealizado de Ramon Llull. Ao narrar as peripécias
de Blanquerna, quiçá sem querer, o autor nos conta a vida que teria
gostado de ter. Os pais do protagonista, Evast e Aloma, apresentam alguns
traços semelhantes aos dos pais de Lúlio. É significa�vo o paralelismo entre
os mimos que Aloma faz ao seu filho Blanquerna e a forma como Ramon
Llull foi tratado por sua mãe quando menino. A namorada de Blanquerna,
de nome Natana (ou Anastásia), também reflete algumas das qualidades
que Llull teria gostado de encontrar em sua esposa. Mas é na meteórica
trajetória do protagonista, que passa de ser apenas um laico alheio ao
asce�smo a sofrer uma crise existencial que o levará para a conversão,
onde a projeção idealizada da vida de Lúlio fica mais evidente. Nos
capítulos seguintes, Blanquerna abandonará a família e centrar-se-á na
vida contempla�va numa ermida. Depois trocará a experiência eremí�ca
pela de um mosteiro, do qual se tornará prior. Posteriormente obterá a
�tularidade de uma sede episcopal e finalmente ocupará a cadeira de São
Pedro. Será no Va�cano onde melhor ficará plasmado o intuito de Ramon
Llull de escrever a sua autobiografia utópica, exprimindo o seu projeto
reformista. O livro conclui com o protagonista abandonando a Santa Sé,
após ter tomado providências contra os desvios morais da cúria, para
voltar à vida solitária e contempla�va da ermida.
Blanquerna é muitas coisas ao mesmo tempo. Para começar é um dos
primeiros exemplos que temos de romance de formação (embora resulte
discu�vel considerá-lo um romance no senso moderno do termo), em que
vemos evoluir o protagonista pelas dis�ntas etapas da vida. Mas o livro é
também um manifesto polí�co em prol da reforma das estruturas da Igreja,
escrito com su�leza, sem derivar num panfleto. O método escolhido para
expor o seu programa reformador é um dos preferidos de Lúlio: os
exemplos. Blanquerna é colocado perante diversas situações de conflito
sobre as quais deverá dar o seu parecer. A resolução das controvérsias
sempre será feita com inteligência e aplicando os ensinamentos de Jesus.
Esta sabedoria, unida à piedade, será a alavanca que empurrará
Blanquerna para cargos eclesiás�cos cada vez de maior responsabilidade.
Mas a narra�va também é um veículo para explicar ao leitor menos erudito
o funcionamento da Arte luliana.
Qual demiurgo, com Blanquerna Ramon Llull molda um personagem
literário à sua imagem e semelhança, refle�ndo nele a sua subje�vidade. O
resultado será um indivíduo que sai das palavras escritas no papel com
menos imperfeições que o escritor que o idealizou. Essa é uma das
qualidades que, do meu ponto de vista, tornam o Livro de Evast e
Blanquerna uma obra surpreendentemente próxima da nossa
contemporaneidade.
A esses textos de caráter mais ou menos autobiográfico, devemos
acrescentar toda uma série de documentos públicos (procurações, atas
notariais, bulas, contratos, etc.) que a especialista J. N. Hillgarth tem
recolhido em forma de diplomatário. Esses documentos oferecem muita
luz sobre aspectos da vida privada de Ramon Llull e ajudam a entendê-lo
em seu contexto social e familiar. Assim, nos deparamos que em 1276 (o
mesmo ano da fundação de Miramar), Blanca Picany – esposa de Llull –
compareceu perante Pere Caldes, batlle (juiz real) da cidade de Maiorca,
para denunciar que seu marido �nha se tornado “tão contempla�vo que
não atende à administração dos seus bens temporais e, desta maneira,
seus bens perecem e também são devastados”. A demanda vinha
acompanhada de cargos contundentes contra o Doutor Iluminado, que era
acusado de não dedicar o suficiente tempo à administração dos bens nem
ao provimento das necessidades materiais da esposa e os dois filhos. O juiz
sentenciou em favor de Blanca e outorgou ao seu cunhado Pere Galceran
poderes de procurador sobre os bens de Ramon. Suponho que esta
decisão judicial significou um alívio para Llull, já que o libertava dos
afazeres domés�cos que o afastavam demasiado do cumprimento de seus
altos ideais.
É igualmente esclarecedor para adentrar-nos na in�midade de Lúlio o
Testamento, assinado em Maiorca, perante o notário Jaume Avinyó, em 26
de abril de 1313. Na cópia conservada (e talvez incompleta) deste
documento são nomeados quatro marmessors (testamenteiros), entre os
quais está seu genro Pere de Sentmenat. Do testamento chama a atenção
que Ramon Llull não possui naquele momento nenhum bem imóvel (o que
faz suspeitar que �vesse feito anteriormente doação mor�s causa deles
aos seus filhos Domenge e Magdalena, que aparecem como herdeiros na
cópia notarial). Tampouco Ramon dedica nenhum espaço a legar recursos
para sufragar missas ou rezas por sua alma, como era habitual na Baixa
Idade Média, quando a crença no Purgatório estava muito espalhada. Ao
contrário, pelo que o testador mostra maior preocupação é pela
conservação, tradução ao la�m e divulgação de seus livros, tarefas para as
que des�na a metade dos recursos pecuniários de que dispõe. O mosteiro
de La Real, a cartuxa de Vauvert e o amigo genovês Percival Spínola são
citados especificamente como os custódios da bibliografia de Llull. O
dinheiro remanescente seria distribuído entre as igrejas, os conventos e os
mosteiros de Maiorca e des�nado a obras pias.
Outro elemento que denota a profunda subje�vidade de Lúlio, a ponto de
torná-lo um autor “moderno”, mesmo vivendo a cavalo entre os séculos
XIII e XIV, é a grande importância que dá ao texto escrito. Não esqueçamos
que nos movemos na época medieval, quando as pessoas alfabe�zadas
eram uma reduzidíssima minoria e os livros um produto extremamente
caro. Aliás, essa quase veneração que Lúlio professava pela produção
bibliográfica contrasta com sua procedência social. Sendo do estamento
mercan�l, é mais que provável que não �vesse na infância uma formação
em cultura literária homologável, por exemplo, à que se esperava dos
clérigos.
Esta consciência de ser autor de uma obra perdurável faz-se ainda mais
evidente a par�r de 1294, ano em que Lúlio adota o salutar hábito de
concluir seus textos com o local e a data em que foram finalizados.
Novamente, estamos ante um achado muito raro entre os autores
medievais. Os estudiosos da literatura dessa época sabem quão di�cil é
datar com precisão as obras literárias. Ramon Llull �ra esse peso das costas
dos estudiosos e graças a essa datação dos livros conseguimos não
somente entender melhor a evolução de seu pensamento ao longo do
tempo, mas também acompanhar o autor em suas frequentes viagens.
Num tempo em que a produção literária era basicamente de transmissão
oral e os alunos dos estudos gerais �nham que decorar os textos que seus
professores recitavam, Llull faz questão de deixar seu pensamento sempre
por escrito, preto sobre branco. Talvez a sua origem mercadora es�vesse
na raiz de tal conduta. Como bom comerciante, Lúlio confiava mais nos
contratos escritos (e se possível com fé pública notarial) do que na
oralidade, já que, como é bem sabido, as palavras são levadas pelo vento,
enquanto os documentos escritos sobrevivem melhor ao passo dos anos.
Tinha senso de humor Ramon Llull? Há autores que opinam que não. Os
seus textos, sobretudo os filosóficos, são sérios e sisudos e não des�lam
nem uma pitada de humor. Aliás, nos retratos que Tomás Le Myéser
encomendou,o pensador sempre aparece de cara séria, sem a mínima
sombra de um sorriso. Isso era algo comum na representação plás�ca das
pessoas sábias, já que o estudo de questões tão elevadas como a
Divindade, o Ser ou os Universais exigia uma conduta de rigor e disciplina,
totalmente alheia à gargalhada dos tolos. É sabido também que Lúlio se
arrependeu toda a vida pelos pecados da juventude e não deixou passar
nenhuma ocasião para autoflagelar-se pelas suas fraquezas, citando
inclusive o con�nuo jato de lágrimas que escorregava pela sua longa barba.
Entretanto, devo reconhecer que até o momento presente eu não tenho
conhecido nenhuma pessoa inteligente que não dispusesse de um mínimo
senso de humor. E lendo a produção literária de Llull percebo no autor um
certo humor autodeprecia�vo, o qual, com o passar do tempo, acabará por
converter-se em uma das senhas de iden�dade da literatura em língua
catalã, de Joanot Martorell a Quim Monzó.
Como senão entender que Ramon Llull se transforme em personagem de
seus próprios livros e que sua aparição se faça adotando os mesmos
apelidos com que seus crí�cos mais ferozes o ba�zavam? Assim, fazendo
um exercício literário digno da Pós-Modernidade, em um capítulo do
Blanquerna, a cúria va�cana recebe a visita de um tal Ramon lo foll
(Raimundo o louco). Ademais, Llull descreve o personagem de Ramon lo
foll com as mesmas caracterís�cas �sicas, vestes e modos com os quais ele
era conhecido (e caçoado) nas cortes europeias. Mesmo assim, seu
personagem demonstra a todos, por meio de exemplos e lições, que de
louco só tem o nome e que suas sugestões para o bom funcionamento da
Igreja estão carregadas de justas razões. Numa linha similar, em outros
textos Ramon Llull usará o �tulo de Doctor Phantas�cus (Doutor Aloprado)
para descrever a si mesmo, acolhendo com tom sarcás�co um dos insultos
mais propagados pelos seus crí�cos. Phantas�cus será justamente o �tulo
de um de seus poemas, em que fará cerrada defesa de suas ideias, mesmo
se autoqualificando de maluco. Contudo, ao assumir com orgulho esse
papel que os detratores lhe atribuíam, Llull faz um interessante exercício
de reversão de culpas. Se aquele que é tachado de doido demonstra com
argumentos racionais a bondade de seus argumentos, quem é decerto o
louco e quem é o são?
Dificilmente alguém sem um profundo senso do humor teria se atrevido a
tanto. Contudo, não encontraremos na obra de Llull piadas (longe da sua
intenção vulgarizar o pensamento até extremos ridículos), mas sim
algumas notas de fina ironia. Um �po de humor, todavia, somente
acessível a eruditos familiarizados com o imaginário medieval.
Se Llull, com o seu senso de humor autodeprecia�vo, inaugurou o que
seria uma das constantes da produção literária catalã, a sua biografia
também exemplifica outro dos traços mais marcantes da “catalanidade”: o
movimento pendular entre o seny (bom senso, moderação) e a rauxa
(desenfreio). Esses dois extremos, quase sintomá�cos de um distúrbio
bipolar, estão bem presentes na vida e obra do Doutor Iluminado. Por um
lado, seus arroubos de grandeza, que transformam a rauxa em projetos
mirabolantes, tais como a escrita do melhor livro do mundo, a unificação
de todas as ordens militares, a organização da cruzada defini�va sob o
comando de um rei casto e guerreiro, a fundação de uma nova ordem de
monges tradutores ou a pretensão de converter os descrentes ao
cris�anismo pelo mero uso das razões necessárias. E pelo outro, o seny que
preside o trabalho constante de estudo, reflexão e aperfeiçoamento, graças
ao qual sua Arte se tornou uma obra imortal. O homem que sente o
irrefreável chamado de Deus e se sente compelido a grandes feitos é, ao
mesmo tempo, o pai de família que se preocupa pela instrução de seu filho
e que no final dos seus dias ditará um testamento que garanta o bem-estar
da prole e a sobrevivência de sua produção literária.
Se nos deixássemos levar apenas pelas descrições que Lúlio deixou de si
mesmo, teríamos uma visão muito limitada de como era fisicamente.
Graças à autópsia realizada em 1985 pelo Dr. Bartolomé Nadal Moncada
sobre os restos mortais depositados no convento de São Francisco de
Palma, estamos cientes de que o pensador ao morrer media 1,62 m de
altura (algo nada desprezível para o Mediterrâneo do século XIV). De �po
pícnico, com um abdômen proeminente e braços pouco musculosos,
sobretudo quando comparados com as pernas, muito mais desenvolvidas,
Llull usufruiu de um bom estado geral de saúde que o levou a superar os
oitenta anos de idade. Estas conclusões da autópsia conduzida pelo Dr.
Nadal coincidem bastante com os retratos do filósofo con�dos nas
miniaturas do Breviculum, que são consideradas as representações
pictóricas mais fidedignas do pensador.
Por todas as razões aduzidas nos parágrafos anteriores, Raimundo Lúlio
aparece diante de nós não é apenas como o pai fundador da literatura
catalã e o pioneiro no uso do vernáculo romance para a produção
cien�fica, mas também como um precursor, com cinco séculos de
antecedência, dos livre-pensadores do Iluminismo. Com seu espírito
independente, sem amarras nem doutrinais nem corpora�vas, somado a
uma visão unitária da Cristandade La�na (que também se antecipa ao
europeísmo nascido após a II Guerra Mundial), Llull apresenta-se como um
intelectual avant la le�re. Por isso mesmo seu pensamento, pouco amigo
da disciplina escolás�ca, é tão di�cil de encaixilhar nos estritos moldes das
análises costumeiras da filosofia medieval. Uma liberdade de pensamento,
contudo, que para Lúlio não pressupõe em absoluto uma contradição com
o fervor católico que professou até o final dos seus dias.
 
 
MáR�r
 
O mar�rio é algo consubstancial ao cris�anismo. A salvação da
humanidade tem sua base justamente no julgamento, suplício, morte e
posterior ressurreição do Messias. Inclusive, o método usado para a
execução do Filho de Deus foi um dos mais cruéis: uma lenta morte
pregado a uma cruz. A lembrança do mar�rio de Cristo tem uma presença
constante entre os cristãos mediante o símbolo que muitos carregam
consigo e que, no final das contas, representa um instrumento de tortura.
As páginas mais pungentes dos quatro Evangelhos são precisamente as que
fazem referência à paixão de Jesus Cristo e sua leitura, pra�cada em
público todos os anos na Semana Santa, comove até mesmo àqueles que
não comungam com os dogmas do cris�anismo.
A imitação de Cristo levou os primi�vos cristãos a aceitar o mar�rio antes
que renegar de sua fé. Nas diversas perseguições romanas muitos crentes
da nova religião pereceram das maneiras mais terríveis, entre eles os
primeiros papas e patriarcas da Igreja. Segundo a tradição, São Pedro foi
crucificado de cabeça para baixo e Santo Inácio de An�oquia devorado
pelas feras no circo romano. Outros muitos már�res anônimos são
rememorados nas fes�vidades de Todos os Santos (primeiro de novembro)
e dos Santos Inocentes (28 de dezembro). Ainda hoje morrer mar�rizado é
um dos critérios que o Va�cano aplica para aceitar novas canonizações. E
se lermos o santoral encontraremos todo um catálogo de atrocidades
pra�cadas pelos adversários do cris�anismo.
A questão do eventual mar�rio está presente na causa de canonização de
Ramon Llull, ainda em aberto setecentos anos depois de sua morte.
Embora o seu mar�rio tenha sido um argumento frequentemente
esgrimido pelos par�dários de elevá-lo aos altares, não temos nenhuma
prova concludente neste sen�do. Apesar disso, a possibilidade de ele
morrer mar�rizado (ou de aceitar este fim) esteve presente em diversos
momentos da biografia de Lúlio. Como ele mesmo reconhece, de pouco
adianta escrever o melhor livro do mundo para convencer os infiéis se
estes desconhecem a sua existência. Não bastava, portanto, com escrever
uma Arte des�nada somente aos eruditos cristãos. Cumpria aplicar sua
mecânica em terras hos�s e provocar conversões com o seu uso prá�co. E
esta era sem dúvida uma empresa muito arriscada.
Orientado pela ideia de viajar para o Norte da África e levar a cabo sua
vocação missionária, Ramon Llullencaminhou os passos até Gênova, um
dos portos com maior tráfico mercan�l no Mediterrâneo. Estando lá,
preparou tudo para a jornada, mas a noite antes da par�da teve um
colapso nervoso. Lúlio obnubilou-se com imagens mentais do que lhe
poderia acontecer em Berberia. A sua imaginação foi pródiga em
pensamentos sobre terríficos tormentos que os muçulmanos pra�cariam
nele. Ficou sem forças, deitado na cama, aterrorizado. Quando finalmente
conseguiu levantar-se, o navio que devia levá-lo até as terras dos infiéis já
�nha zarpado. Então o medo foi subs�tuído pelo remorso e Lúlio caiu em
uma profunda tristeza, que hoje provavelmente seria diagnos�cada como
depressão.
A primeira experiência missionária finalmente aconteceria alguns anos
mais tarde. Llull embarcou numa galera e desembarcou no porto de Túnis,
capital de Ifriqiya, um dos mais prósperos reinos do Norte da África. O
filósofo pediu que o encaminhassem para os homens sábios da cidade.
Uma vez na sua presença, reptou-os a dialogar sobre os fundamentos dos
dogmas de suas respec�vas religiões. Lúlio prometeu que, caso os sábios
muçulmanos lhe apresentassem bons argumentos, ele renunciaria ao
cris�anismo e submeter-se-ia ao Islã. Obviamente, esperava dos seus
interlocutores um tratamento recíproco. Mas não foi bem isso o que
aconteceu.
Na sua conversação com os mouros Ramon Llull empregou todos os
raciocínios da Arte para demonstrar mediante razões naturais os dogmas
da fé cristã e negar os do islamismo. Contudo, de pouco serviram suas
dissertações sobre a dignidades divinas e o substrato teológico comum a
todas as grandes religiões monoteístas. Os interlocutores não somente
negaram qualquer validade às suas palavras, mas também mandaram
prendê-lo.
Na corte real, Llull foi acusado de fomentar a apostasia, um crime
hediondo que na lei corânica é penalizado com a morte. Tudo parecia
indicar que o des�no do maiorquino seria morrer executado, quando um
dos conselheiros reais deu um parecer que divergia da maioria. Segundo
esse jurisconsulto não era uma boa ideia executar o missionário, já que os
cristãos guardariam essa afrenta na memória e retaliariam com a mesma
moeda caso um muçulmano fosse pregar a fé de Maomé entre eles. A
pena de morte lhe seria comutada pela expulsão do reino de Ifriqiya,
porém, antes, no longo caminho até o porto, seria agredido �sica e
verbalmente por uma mul�dão enfurecida. Ramon Llull desta vez
conseguiu voltar da África machucado, mas vivo.
Na segunda viagem a terras sarracenas a cidade escolhida foi a de Bugia,
hoje chamada de Bejaïa e localizada na Argélia. Bugia era na época
medieval uma próspera urbe, conhecida (como seu nome indica) pela
produção de velas, candeias e círios feitos de cera de abelha. O elevado
consumo destes produtos nas igrejas cristãs fomentou um intenso
comércio com a cidade africana. Tendo em vista que a estratégia de tentar
convencer os sábios muçulmanos acerca das bondades do cris�anismo não
�nha dado certo em sua primeira visita a terras muçulmanas, desta vez
Lúlio optou por expor seu discurso em viva voz para todo mundo ouvir. O
local escolhido foi a esplanada perto da mesquita. Lá o maiorquino
começou a gritar que o Islã era uma seita malvada e Maomé um falso
profeta. Acrescentou a essas palavras ofensivas que ele �nha como provar
que a fé cristã era a única e verdadeira. Não foi necessário esperar muito
tempo até uma massa humana enraivecida chegar lá com vontade de
acabar com a vida daquele introme�do que ousava expressar-se de
maneira tão injuriosa.
Nesse dia Ramon Llull salvou a pele graças à pronta aparição do mu�i
(mencionado na Vida Coetânea como episcopus, isto é, bispo), que quis
saber o mo�vo daquele grande alboroto na praça. O clérigo iniciou um
diálogo com o filósofo e lhe perguntou como era tão inconsciente de ir até
aquele país para impugnar a fé de Maomé, sabendo que a apostasia era
condenada com a morte, ao qual Llull respondeu: “O verdadeiro servo de
Deus não deve temer o perigo da morte para manifestar a sua fé aos
infiéis, que estão em erro, e trazer aqueles à via da salvação”. Essas
palavras deram início a um intenso debate, talvez um dos raros momentos
em que Llull pôde pôr em funcionamento a Arte para a conversão dos
infiéis.
No entanto, esse “diálogo inter-religioso” não acabou bem para o cristão.
Depois de ouvir atentamente os argumentos lógicos que, segundo Lúlio,
demonstravam os dogmas do cris�anismo, o mu�i preferiu não retrucar.
Não sabemos se isso foi por falta de argumentos, por absoluta
incompreensão da dissertação luliana ou pela perplexidade que lhe
causara tamanha temeridade. Malgrado os protestos dos mouros que
exigiam que fosse executado imediatamente, o clérigo ordenou prender o
infiel e trancá-lo num cárcere. Com isso salvou-o de uma quase segura
lapidação.
Ramon Llull passou uma longa temporada acorrentado na masmorra, à
espera da sentença. Mas os juízes não chegavam a um consenso sobre se o
filósofo era uma pessoa em seu são juízo ou um simples demente. Se fosse
um homem cabal, a resolução judicial era muito clara de acordo com a
xaria: morte por apedrejamento. Porém, se fosse um incapaz, sem
consciência dos seus atos, deveria ser posto em liberdade. Mesmo assim,
os juízes não se arriscaram a permi�r que depusesse em favor de sua
causa. O mu�i, impressionado com a habilidade lógica com que exprimia
seus argumentos, temia que as palavras de Llull na corte que o julgava
fossem uma faca de dois gumes. Por este mo�vo, preferiu mudá-lo para
uma prisão mais amena e lhe ofereceu todo �po de benesses (bebidas,
alimentos, mulheres, roupas, etc.) em troca de sua conversão ao
islamismo. Contudo, Ramon Llull rejeitou esses obséquios e manteve-se
firme nas suas crenças. Afirmou que eram eles, os muçulmanos, os que
fariam bem se convertendo ao cris�anismo, já que a salvação da alma era
uma graça muito superior a todos os prazeres com que queriam presenteá-
lo. Nesse período de reclusão e apesar dos desencontros ideológicos, Lúlio
e o mu�i resolveram escrever um livro a duas mãos, no qual cada um deles
exporia as razões que faziam sua fé superior à do outro.
Afinal, à vista de que Lúlio não cedia às pressões nem às tentações e
temendo uma revolta popular que o executasse sumariamente, chegou
uma ordem de expulsão do rei mouro. Comerciantes italianos �raram-no
fur�vamente da cadeia e o embarcaram numa nave rumo a Pisa. Por azar
do des�no a embarcação afundou no mar Tirreno e a obra escrita em
árabe conjuntamente com o mu�i perdeu-se. Meses depois do incidente,
Lúlio reescreverá esse livro, agora em la�m, sob o �tulo de Liber
disputa�onis Raymundi chris�ani et Homeri saraceni (1307).
Da terceira jornada à África somente temos informações dispersas. Por se
tratar da úl�ma viagem de Ramon Llull e ter acontecido anos depois da
redação da Vida Coetânea, não possuímos o mesmo relato autobiográfico
dos casos anteriores. Por fontes indiretas podemos supor que o mo�vo da
viagem foi uma solicitação feita pelo rei de Túnis Ibn al-Lihyani, o qual,
após ter chegado ao poder com a ajuda de mercenários catalães e
sicilianos, mostrou curiosidade pela fé cristã. Por este mo�vo solicitou ao
rei de Trinácria que lhe enviasse um doutor na matéria para ensinar-lhe os
dogmas da religião do Crucificado. Supomos que essa solicitação trazia
implícita uma possível conversão do rei mouro ao cris�anismo, caso os
argumentos fossem suficientemente convincentes. Após consultar o seu
irmão Jaime II de Aragão, Frederico III resolveu enviar para essa missão,
meio diplomá�ca, meio missionária, ninguém menos que Ramon Llull,
quem fazia anos que morava na Sicília e �nha se tornado um dos
conselheiros prediletos do rei.
Também sabemos, porque assim consta numa ata do Colégio da Juraria,
que Ramon Llull não foi diretamente de Sicília até Túnis, mas preferiu fazer
escala em Maiorca, o que sem dúvida alongou a jornada por muitas
semanas. Qual o mo�vo desta parada? Não sabemos ao certo. É possível
que a escala em Maiorca fosse devida ao fato de o rei Sancho I (sucessor
de Jaime II) ter em vigorum vantajoso tratado comercial com o rei Abu
Bekk de Bugia, pelo qual as ilhas Baleares serviam nessas datas de porta de
acesso aos mercados africanos. Mas tampouco resulta ousado imaginar
que, dada a avançada idade de Lúlio (mais de oitenta anos), este decidisse
despedir-se de seus entes queridos antes de acometer o que seria o
derradeiro périplo de sua existência. A ata mencionada comprova que os
seis jurados despediram Lúlio com honras dignas de toda uma celebridade
no porto da cidade de Maiorca em agosto de 1314.
As úl�mas obras de Ramon Llull são no geral breves opúsculos de poucas
páginas, basicamente sobre questões teológicas ou filosóficas concretas.
Alguns dos textos estão dedicados às autoridades religiosas muçulmanas
que o acolheram. O úl�mo destes opúsculos está datado em dezembro de
1315 no Norte da África. Depois dessa data não conservamos nenhum
outro documento de Lúlio, o que nos faz pensar que o filósofo adoeceu
gravemente no final de 1315 ou começo de 1316. Esta enfermidade
provocou seu regresso urgente para Maiorca. Levando em consideração
que nos meses de inverno a navegação marí�ma era quase nula, já que as
condições climatológicas não a permi�am, o mais provável é que Lúlio
voltasse para sua terra a par�r de março ou abril, quando a primavera
diminuía o perigo de tempestades no mar. Tampouco sabemos com certeza
se Ramon Llull faleceu no navio que o levou para Maiorca ou se seu óbito
aconteceu depois de desembarcar na ilha.
Alguns apologistas de Lúlio opinam que foi mar�rizado durante sua
derradeira estadia em Ifriqiya e que, a raiz destas feridas, resolveu cancelar
sua ação missionária. De fato, em Maiorca está amplamente estendida a
crença entre os devotos do Beato de que este foi lapidado no Norte da
África e que morreu por culpa das feridas durante a travessia marí�ma de
volta à ilha. A no�cia mais an�ga deste mar�rio de que temos constância é
devida a Nicolau de Pax, um lulista que viveu entre os séculos XV e XVI,
mas desconhecemos se as (eventuais) fontes em que se baseou eram
suficientemente confiáveis. Esta hipótese, se provada, seria um forte
argumento na causa de canonização. Porém, é problemá�ca, já que está
isenta de evidências documentais que a respaldem com firmeza. Ao
contrário, tanto o caráter paradiplomá�co da viagem de Lúlio quanto o fato
de ele ter dedicado diversas obras aos religiosos muçulmanos que o
receberam tornam di�cil de sustentar a hipótese do mar�rio. Resulta
muito mais crível que a doença de Llull foi fruto de sua avançada idade,
acompanhada pelo sobre-esforço que teve de pra�car nessa jornada final.
Como vemos na prolixa produção bibliográfica dos seus úl�mos anos, o
Doutor Iluminado manteve até o final de sua vida uma a�vidade muito
acima do habitual em uma pessoa tão idosa.
Contudo, mesmo que a morte de Ramon Llull não fosse devida às feridas
ocasionadas pela sua a�vidade evangelizadora na África, não faltam
argumentos para considerá-lo már�r do mesmo jeito. Lembremos, senão,
o sermão que Santo Agos�nho dedicou aos már�res São João Evangelista,
Santo Estêvão e os Santos Inocentes. O caso de São João guarda
paralelismos com o de Lúlio. Segundo a tradição, este apóstolo foi
mandado prender pelo imperador Domiciano e levado a Roma. Lá seria
submergido em um caldeirão com óleo fervendo. Miraculosamente São
João se salvo dessa provação e seria enviado ao exílio na ilha de Patmos,
onde iria ter a revelação do fim do mundo, tal como con�da no livro do
Apocalipse. O evangelista viveria por longos anos e, após a morte do
imperador romano que o perseguira, voltaria a Éfeso e prosseguiria suas
pregações. Se no juízo de Santo Agos�nho não havia dúvida de São João
Evangelista ser um már�r, ainda que morresse muito tempo depois de ter
padecido a tortura, este mesmo raciocínio poderia ser aplicado por
analogia a Lúlio.
Contudo, e malgrado todos esses esforços e padecimentos sofridos, não
temos garan�as de que Ramon Llull �vesse ob�do a conversão de algum
gen�o. Para ele, o insucesso de sua Arte devia-se à sua incapacidade de
transformar a mensagem divina recebida em Randa em palavras que
permi�ssem comunicá-la em toda sua amplidão aos humanos. Essa falta
de êxito radicava, para Lúlio, em sua vida pecadora, que não o fazia
merecedor de tão grande recompensa por parte do Al�ssimo. Entretanto,
visto de uma distância de sete séculos, pode parecer que Lúlio foi um
pouco ingênuo. Ao limitar o diálogo inter-religioso a um debate lógico
sobre dogmas confrontados, o maiorquino eludiu os aspectos rela�vos às
iden�dades cole�vas presentes em todas as religiões. Muitas pessoas não
creem em um determinado deus (ou em vários) porque tenham a
convicção racional da superioridade da sua fé, mas pelo sen�mento de
respeito à tradição herdada dos pais ou pela iden�ficação com um
determinado grupo humano. Os indivíduos geralmente nascem no seio de
uma religião e morrem sem terem se ques�onado jamais sobre a validade
de suas crenças. Aliás, a troca de uma fé por outra é algo severamente
punido em muitos credos, já seja mediante a exclusão social do apostata
ou aplicando duras penas, inclusive a condena à morte. Mas ainda há outro
fator que Llull não teve presente: como pesquisas cien�ficas do século XXI
vêm demonstrando, em se tratando de pessoas faná�cas ou de firmes
convicções, o confronto com argumentos ou provas que desmontam sua
ideologia raramente conduz à aceitação das ideias contrárias. Muito pelo
contrário: mesmo sem argumentos racionais que as sustentem, essas
pessoas de pensamento inflexível reafirmam-se ainda mais nas suas
crenças.
Algo disso deve ter (pelo menos) intuído o próprio Lúlio. É revelador um
episódio relatado no Livro do Fim, em que se narra um encontro entre o
Doutor Iluminado e um judeu acontecido em Gênova em 1304. Ramon
tentou disputar com o judeu sobre a fé fazendo uso das razões necessárias.
Este negou-se em redondo alegando que o Sumo Pon�fice não permi�a
isso. O maiorquino retrucou desafiando-o a um debate em que as suas
razões seriam tão concludentes que não teria outro remédio que renunciar
à sua fé. Diante da insistência do cristão, o judeu acabou por aceitar o
desafio. No entanto, na hora da verdade preferiu sair correndo e deixar
Lúlio com a palavra na boca.
 
 
 
Heterodoxo?
 
Antes da conversão, Ramon Llull era um homem �pico do seu tempo, bem
posicionado socialmente e com uma vida bastante mundana. Se
es�véssemos passeando pela cidade de Maiorca por volta de 1260 e
�véssemos cruzado com ele, muito provavelmente nada de sua aparência
teria chamado demasiado a nossa atenção, salvo talvez as ricas roupas que
ves�a ou seu porte galhardo, próprio de um sedutor de altura mediana,
porém bom conhecedor de suas habilidades amatórias. Entretanto, se
�véssemos nos deparado com ele trinta anos mais tarde, numa das tantas
trilhas que percorreu ao longo da vida, teríamos levado um susto, com
certeza.
O Lúlio pensador foi um perfeito outsider. Ves�a à moda sarracena,
frequentava as aulas das universidades com alunos que poderiam ser
perfeitamente seus filhos e, pelo menos no início de seu i�nerário
acadêmico, não dominava suficientemente o la�m. Em contraste,
expressava-se com fluidez em árabe, um idioma totalmente exó�co para os
eclesiás�cos que se formavam nas escolas de filosofia mais conceituadas.
Seu pensamento não seguia as modas predominantes e sua Arte inspirava-
se nos princípios da Cabala e dos sephiroth judaicos e �nha muito em
comum com as hadras muçulmanas. Num momento em que Averróis era o
autor mais comentado na universidade de Paris, Lúlio escreve uma dúzia
de obras que arremetem contra o pensamento do filósofo de Córdoba. E,
enquanto a escolás�ca tomista se torna aos poucos o método de estudo
preferido pelos professores universitários, com sua escrupulosa dissertação
a par�r dos Textos Sagrados, os grandes pensadores e seus comentaristas,
a Arte luliana prescinde de argumentos de autoridade e opta por
fundamentar-se apenas na lógica natural.
Em paralelo, os anos de vida de Ramon Llull supõem o definhar dos ideaiscruzados. São João de Acre cai em mãos muçulmanas quando o
maiorquino beira os sessenta anos de idade. Depois dessa data nenhuma
outra cruzada será organizada e o ideal de recuperação dos Santos Lugares
irá se apagando lentamente. Outras prioridades ocuparão o topo das
agendas dos governantes, mas Lúlio teimará em fazer ver a importância da
recuperação de Terra Santa. Quase pregando no deserto, em sucessivas
obras Ramon Llull definirá planos (alguns deles mirabolantes) para
organizar uma campanha militar defini�va, que, junto com a ação
conversora de seus monges tradutores, restabelecerá para sempre o
controle cristão sobre a Pales�na.
Além disso, Llull frequentou amizades quanto menos perigosas.
Entrevistou-se em Chipre com Jacques Molay, úl�mo grande mestre da
ordem do Templo. A par�r de 1307 cairiam sobre esta ordem militar
pesadíssimas acusações de heresia, contendo um leque de crimes que iam
da sodomia até a adoração ao Diabo. Não sabemos ao certo se Lúlio
chegou a relacionar-se pessoalmente com Arnau de Vilanova, uma das
mentes mais importantes da ciência catalã do século XIII e, ao mesmo
tempo, objeto de severas acusações por desvios doutrinais. Todavia,
resulta di�cil acreditar que o Doutor Iluminado não �vesse nenhum
contato com ele, já fosse diretamente ou por meio dos seus discípulos.
Também sabemos que o maiorquino dedicou os úl�mos de sua vida a
aconselhar o rei de Trinácria sobre a melhor maneira de governar Sicília.
Sobre o reinado de Frederico III e suas controvérsias com o papado convém
fazer um breve inciso. O conflito siciliano prolongou-se no tempo.
Malgrado a invasão francesa da Catalunha (1286) ter se saldado com o
rotundo fracasso, os angevinos não renunciaram aos seus direitos sobre a
ilha. Com o fim de a�ngir uma solução negociada a essa questão, o papa
Bonifácio VIII propiciou a assinatura do tratado de Anagni (1295). Segundo
este acordo, Jaime II de Aragão renunciava aos reinos de Maiorca (em favor
de seu �o Jaime II, legí�mo soberano das ilhas Baleares) e de Sicília (em
favor do angevino Carlos II, rei de Nápoles). Em troca, o rei de Aragão
ganhava a �tularidade das ilhas de Córsega e Sardenha, então sob a órbita
da república de Gênova. Parecia um bom acordo para todas as partes em
li�gio, mas havia um pequeno detalhe que não havia sido levado em
consideração: o povo siciliano não queria nem ouvir falar de uma
res�tuição ao trono da dinas�a Anjou, lembrada como governantes
injustos e arbitrários. Portanto, as cortes de Palermo rejeitaram os termos
do tratado de Anagni e man�veram Frederico III como seu rei. Diante deste
fait accompli o papado não teve mais remédio que alterar as cláusulas
pactuadas inicialmente. Na sua reformulação eram impostas ao rei eleito
pelos sicilianos duas condições: a) não poderia ostentar o �tulo de rei de
Sicília, já que este pertencia por direito a Carlos II; no lugar, seria conhecido
como rei de Trinácria, �tulo criado ad hoc, e b) o seu reinado seria vitalício,
o que significava que não poderia legar Sicília aos seus sucessores. Esta
segunda condição não seria jamais cumprida e a ilha con�nuaria sob o
controle da casa de Barcelona por várias gerações.
Nesse contexto histórico, Frederico III foi conhecido por seus con�nuos
confrontos com o papa, o que o levou, entre outras coisas, a transformar a
ilha de Sicília em um ninho de dissidentes da linha oficial do catolicismo.
Ramon Llull sem dúvida se relacionou e intercambiou opiniões com muitos
deles, sobretudo com os franciscanos espirituais, cujas teses ficaram
feridas (mas não de morte) no concílio de Vienne.
Aliás, nesses anos o nome de Raimundo Lúlio logo se tornaria sinônimo de
alquimista ou especialista em ciências ocultas. Esta fama foi
completamente injus�ficada. Llull pecou mais de deísta do que de
esotérico, apesar de as figuras geométricas com as que tentava explicar a
Arte poderem levar a tal engano. É possível que em alguma de suas
estadias em Montpellier �vesse aprendido as técnicas alquímicas, mas o
valor que ele dava a estas prá�cas era muito baixo. Assim fica evidente nas
menções que Lúlio faz da alquimia nos textos cuja autoria é incontestada.
Em todos eles o pensador mostra-se extremamente contrário aos
alquimistas, os quais são tratados como meros charlatães. Contudo, para
sua desgraça, diversos autores de textos alquímicos usaram o nome de
Lúlio para dar às suas obras uma pá�na de credibilidade. Por volta de
oitenta obras apócrifas circularam a par�r do século XIV, algumas delas
escritas muitos anos depois de o filósofo ter falecido, exibindo
orgulhosamente o nome de Raimundo Lúlio na capa. As que fizeram maior
sucesso foram o Testamentum (datado em 1332) e o Liber de secre�s
naturae seu de quinta essencia (de datação desconhecida, mas
provavelmente de meados do século XIV).
Por que surgiu esse pseudolulismo alquímico? Embora seja di�cil dar uma
resposta taxa�va, não custa muito imaginar que, para leitores superficiais,
a Arte luliana - e mais concretamente suas representações gráficas - se
assemelha às formas usadas pelas ciências ocultas. Aliás, a aparente
impenetrabilidade do discurso luliano para os estudiosos pouco
familiarizados com a sua obra pode levar a julgá-lo, de maneira um tanto
preconceituosa, como fruto de um pensamento esotérico. De fato, o
verdadeiro autor do Testamentum (especula-se que foi Ramon de Tàrrega,
um médico judeu converso de Maiorca que �nha se formado na
universidade de Montpellier), demonstra ser um bom conhecedor da Arte
luliana, muitos de cujos recursos lógicos e gráficos u�liza para explicar os
princípios da alquimia.
Aliás, na questão da atribuição de obras de escritores anônimos a autores
consagrados, Ramon Llull não foi um caso único. Os nomes de outros
contemporâneos seus, como Roger Bacon ou Arnau de Vilanova, também
foram objeto de usurpação como pretensos responsáveis por textos de
prá�ca alquímica. Biógrafos e estudiosos da obra luliana preservariam, sem
querer, o pseudolulismo, em pese a que a próprio Llull em repe�das
ocasiões carregara contra os alquimistas. Este trecho do Félix é uma boa
prova disso:
36. Da Alquimia.
Félix perguntou ao filósofo se a alquimia é a arte pela qual se pode fazer a transmutação de
um metal em outro. O filósofo respondeu que convém à transmutação de um elemento em
outro a transmutação substancial e a acidental, isto é, a forma e a matéria devem se
transmudar, com todos seus acidentes em uma substância nova compostas de novas formas,
matérias e acidentes.
-E tal obra, belo amigo, disse o filósofo a Félix, não pode ser feita ar�ficialmente, porque a
natureza possui o o�cio de todos os seus poderes.
[...]
-Senhor, disse Félix ao filósofo, conforme vossas palavras, parece que é coisa impossível
fazer a transmutação de um elemento em outro e de um metal em outro segundo a arte da
alquimia, pois dissestes que nenhum metal tem o ape�te para mudar seu ser em outro.
Porque se mudasse seu ser em outro, não seria o mesmo ser que amava ser. Logo, entendi
bem todas as vossas razões e semelhanças. Mas de uma coisa maravilho-me fortemente:
como o homem pode ter tão grande afeição à arte da alquimia se essa arte não é
verdadeira?
13
 
Esses equívocos sobre a autoria dos textos pseudolulianos acabariam por
alimentar a animadversão contra a obra luliana autên�ca, cri�cada per
aequiparan�am de heré�ca ou, no mínimo, de heterodoxa. Os
dominicanos foram os que lideraram a ofensiva an�luliana, ainda em vida
de Ramon Llull.
Não é de se estranhar, portanto, que cerca de cinquenta anos depois de
sua morte o inquisidor-geral da Coroa de Aragão, Nicolau Eimerich,
iniciasse um minucioso processo de avaliação de sua obra. Os núcleos
lulianos vinham se espalhado por diversas cidades localizadas sob a
soberania de Pedro IV “o Cerimonioso” e o inquisidor quis averiguar até
que ponto seguiam a ortodoxia cristã. O processo de Eimerich contra Llull
foi uma autên�ca “causa geral” não apenas contra o pensamento do
maiorquino, mas sobretudo contra as pessoas de seus seguidores. O
resultado foi devastador: em partepor uso de fontes não fidedignas, em
parte por interpretações que não seguiam o espírito original de Lúlio e em
parte pela má-fé do inquisidor, uma longa lista de desvios doutrinais foi
elencada por Eimerich. De resultas dela, o inquisidor procedeu à condena
fulminante das teses luliana e à proibição de seu ensino nos estudos gerais
de teologia. A interpretação amiúde enviesada que Eimerich faz a respeito
do pensamento de Ramon Llull leva a supor que a sentença puni�va já
estava escrita de antemão. O inquisidor apenas mergulhou nos textos
lulianos, já fossem estes verdadeiros ou espúrios, para extrair deles provas
e argumentos que dessem consistência à sua repressão.
O an�lulismo de Eimerich condensa-se principalmente no Tractatus contra
doctrinam Raymundi Lulli (1389). Nesse texto o inquisidor contesta que a
Arte luliana seja fruto de uma iluminação divina e ataca os seguidores que
consideravam a teologia de Ramon Llull superior à dos Doutores da Igreja.
Em seu ânimo perseguidor, Eimerich mistura os postulados dos lulistas com
os dos franciscanos espirituais, atribuindo ao maiorquino dogmas que na
realidade provinham de outros autores com os quais não �nha a mais
mínima proximidade ideológica. Como conclusão, o inquisidor manda
proibir todas as obras de Ramon Llull nos territórios do rei de Aragão e,
ademais, envia uma cópia do Tractatus contra doctrinam Raymundi Lulli ao
colégio dos cardeais para que estes, se o considerarem oportuno,
procedessem à proibição da doutrina em todo o orbe católico.
A instâncias do inquisidor da Coroa de Aragão, circulou na corte pon��cia
de Avignon a bula Conserva�oni purita�s fidei catholicae, atribuída ao
Papa Gregório XI, mas cuja auten�cidade era mais do que controversa.
Segundo este documento, o Sumo Pon�fice, após ter lido vinte livros de
Ramon Llull e detectado neles mais de duzentos erros doutrinais, ordenava
a re�rada de circulação do conjunto de sua obra para submetê-la a um
profundo exame. A divulgação desta bula apócrifa (supostamente datada
em 1376) mo�vou uma contraofensiva ideológica nos centros de estudos
lulianos, que procuraram nos reis de Aragão Pedro IV “o Cerimonioso” e,
após sua morte, de seu filho João I proteção frente à ofensiva inquisitorial.
O estudo geral de Lleida liderará a resistência ao veto à obra luliana, o que
deteriorará as relações entre Antoni Riera, seu principal estudioso, e o
inquisidor. Enquanto isso, os conselhos municipais de Barcelona e Valência
fizeram declarações públicas de apoio à causa luliana, elevando o debate
teológico até quase uma questão de orgulho cole�vo dos territórios de
língua catalã. O teólogo Jaume de Xiva viajará a Avignon, em qualidade de
representante de ambas as cidades e tentará sem sucesso convencer a
cúria pon��cia das bondades da doutrina luliana, acusando Eimerich de
excessos e men�ras. Diante das reclamações do rei João I, o papa
Clemente VII chama a declarar Eimerich em 1389, com a intenção de
resolver esse conflito aberto entre o papado e o monarca de Aragão. O
pleito sobre a ortodoxia ou heterodoxia de Lúlio só irá em aumento nos
anos seguintes, correndo em paralelo ao desfecho do Cisma de Ocidente.
Será durante o pon�ficado de Mar�nho V (1417-31) quando por fim seja
reconhecida a falsidade da bula Conserva�oni purita�s fidei catholicae e,
com isso, levantadas todas as penalidades existentes contra o estudo da
obra luliana. Sem embargo, essa sentença foi publicada vinte anos depois
do falecimento de Nicolau Eimerich.
As dúvidas que a hierarquia católica �nha sobre a heterodoxia – ou mesmo
heresia - de Ramon Llull con�nuaram no século XVI. Embora na sua ilha
natal o filósofo �vesse sido venerado como beato pra�camente desde o
mesmíssimo dia da sua morte, o seu culto público somente foi aprovado
pelo papa Leão X (1513-21). Este êxito dos par�dários da causa luliana viu-
se rela�vizado pelo fato de a bea�ficação de Ramon Llull ficar circunscrita
apenas à diocese de Maiorca. Por outro lado, a sombra de Eimerich
con�nuou a projetar-se sobre o Va�cano e as obras lulianas vez por outra
passaram a integrar o Índice de obras de leitura proibida aos católicos.
Estas polêmicas teológicas sobre a obra de Llull prosseguirão, em maior ou
menor medida, nos séculos seguintes. O padre Feijoo foi, no XVIII, um dos
seus úl�mos e mais virulentos detratores, mas as crí�cas lançadas por
aquele que foi um dos mais ilustres mestres do Iluminismo hispânico
raramente repousavam numa leitura atenta da obra de Llull. Assim, na
segunda metade do século XIX, Menéndez y Pelayo em sua obra Historia
de los heterodoxos españoles eximiu Lúlio de qualquer acusação de heresia
e reprochou Feijoo por repe�r velhas e conhecidas diatribes sem ter se
debruçado sobre a obra autên�ca do maiorquino.
Todavia, e em pesar de que na atualidade nenhuma autoridade acadêmica
ou eclesiás�ca duvide da perfeita sintonia da obra de Llull com os dogmas
do cris�anismo católico, o processo de canonização do Doutor Iluminado
ficou paralisado no Va�cano por mais de 350 anos. Vez por outra os
par�dários da causa luliana sentem suas esperanças revigoradas em
virtude de algum sinal vindo da Santa Sé. Foi o caso, por exemplo, da
canonização durante o pon�ficado de João Paulo II de João Duns Escoto
(20 de março de 1993), filósofo e teólogo contemporâneo de Lúlio e, como
ele, por longo tempo objeto de discussões sobre a ortodoxia de sua obra.
Nos úl�mos anos, porém, com mo�vo do sé�mo centenário da morte do
maiorquino, a causa de canonização de Lúlio tem sido reaberta e não é
demasiado arriscado supor que o processo possa ser encerrado ainda no
pon�ficado do atual Papa Francisco. No momento atual, contudo, não
podemos prognos�car qual será o desfecho. Não obstante, qualquer
decisão pon��cia sobre a san�dade de Ramon Llull não afeta em absoluto
a relevância e significado de sua obra, que sem dúvida con�nuará a ser
objeto de estudo e reflexão por muitos séculos.
 
 
 
 
 
 
 
Inspirador
 
A ordem de monges tradutores e pregadores que Ramon Llull tanto
anelava foi uma experiência de breve duração e a fundação de Miramar
não sobreviveu por muitos anos. Entretanto, um dos principais legados do
pensador foi o lulismo, isto é, a coorte de estudiosos que perpetuou a
transmissão dos seus achados e que chega até os nossos dias. Tomás Le
Myésier foi um dos primeiros discípulos de Llull, com quem teve contato ao
longo de algumas estadias em Paris. A ele devemos quatro coletâneas de
obras de seu mestre: o Electorium Magnum - legado à universidade da
Sorbonne -, o Breviculum ex ar�bus Raimundi electum ad praeceptum
reginae Franciae et Navarrae - que como o próprio �tulo indica foi
dedicado a rainha Branca de Navarra, esposa de Filipe IV da França -, além
das perdidas Electorium Medium e Electorium Minimum. Destas, a mais
reproduzida é o Breviculum, atualmente conservado em Karlsruhe
(Alemanha), pois este manuscrito está decorado com uma série de
belíssimas miniaturas que retratam o filósofo em diversas fases de sua
existência ou em alegorias que mostram sua luta em prol da verdade.
Outro polo importante do lulismo medieval foi Maiorca, onde o genro de
Llull, Pere de Sentmenat, recopilou uma extensa coleção de seus escritos.
De maneira parecida, graças aos bons o�cios de Perceval Spínola, amigo de
Llull, Gênova tornou-se outro dos centros do lulismo já no século XIV.
Dentro dos territórios da Coroa de Aragão, a cidade de Valência viu
florescer um importante grupo de estudiosos da obra de Llull, alguns dos
quais sofreram a perseguição do inquisidor Eimerich.
Já no começo do século XV destaca a figura do filósofo catalão Ramon
Sibiuda, autor que seria professor na universidade de Toulouse e
influenciaria o pensamento de Montaigne. Sibiuda alinhou-se com as teses
lulianas à procura de respostas racionais para os mistérios da fé. Em
paralelo, superadas as perseguições inquisitoriais, formou-se um
importante grupo de lulistas em Barcelona. Graças ao legado de Joana
Margarita Safont e aos esforços de Antoni Sedacer, em 1431 a Escola
Lulís�ca de Barcelonapassou a dispor de um imóvel apto para conservar as
obras de Ramon Llull e ministrar aulas que difundissem seu pensamento.
A primeira universidade de Maiorca, fundada em 1481 recebeu o nome de
Estudo Geral Luliano. Como é de se supor, a principal disciplina ensinada
neste centro acadêmico foi a Arte de Llull. Ao igual que no caso da escola
lulís�ca de Barcelona, a de Maiorca também foi fruto de um legado de uma
dama piedosa, desta vez Agnès de Pax de Quint. Pere Deguí foi o primeiro
catedrá�co do Estudo Geral Luliano de Maiorca e em virtude de seu bom
relacionamento com a corte dos Reis Católicos (Isabel I de Castela e
Fernando II de Aragão) ajudou a difundir o pensamento de Llull pelos
reinos da Península Ibérica, a ponto de, talvez, ter despertado a
curiosidade do cardeal Francisco Jiménez de Cisneros pela obra do
maiorquino.
Cisneros foi um personagem decisivo na história de Castela das primeiras
décadas do século XVI. Além de assumir por um tempo a regência, após a
morte da rainha Isabel “a Católica”, foi o fundador da universidade de
Alcalá de Henares (1508), que logo rivalizaria com a de Salamanca na
excelência de seu corpo docente. Gonzalo Gil seria o primeiro catedrá�co
de filosofia e teologia luliana de Alcalá. Nesse núcleo lulista lecionaria
Nicolau de Pax, que traduziria ao castelhano o Desconsolo. Este lulista
maiorquino também publicaria em Alcalá alguns textos de caráter didá�co
e introdutório, como as Dyalec�cae introduc�ones illumina� doctoris et
martyris Raymundi Lulli (1518).
A influência de Lúlio se projeta sobre a Renascença italiana e é novamente
a figura de Pere Deguí a que teve um papel primordial nesta difusão.
Giovanni Pico dela Mirandola foi um admirador da obra de Llull, justo no
momento em que a corte dos Médici em Florença experimenta o ressurgir
da filosofia neoplatônica. No século XVI, Giordano Bruno dedicará diversas
obras a comentar o pensamento luliano. Algumas delas já anunciam no
�tulo uma homenagem ao maiorquino. É o caso, por exemplo do tratado
De compendiosa architectura et complemento ar�s Lulii (1582). Como
sabemos, a vida Giordano Bruno teve um fim abrupto. Em 1600 foi
condenado pela inquisição pelas suas teses heré�cas e queimado na
fogueira em Roma.
No plano religioso, as propostas de Llull de convencer os gen�os por meio
da razão inspiraram em parte a ação catequizadora dos religiosos que
seguiram as tropas castelhanas pelo Novo Mundo. Um discípulo de Pere
Deguí, Bernat Boïl, acompanhou Cristóvão Colombo na sua segunda
viagem à América. Sabemos que Bartolomé de las Casas, um dos primeiros
advogados da causa indígena, foi leitor da obra luliana e u�lizou as razões
necessárias como argumento para defender a catequização pacífica dos
índios, num momento em que os conquistadores europeus não mostravam
muitos escrúpulos em relação às prá�cas genocidas. Também o rei Filipe II
da Espanha foi um entusiasta do pensamento do maiorquino e ordenou,
contra o parecer dos dominicanos, que a biblioteca do mosteiro do Escorial
conservasse uma extensa coleção de obras de Llull. Há indícios sobrados de
que Juan de Herrera, o ar�fice do Escorial, inspirou-se nas figuras da Arte
luliana para desenhar a planta do edi�cio. Inclusive, em seu Tratado del
cuerpo cúbico o arquiteto real fez uma original síntese dos princípios
geométricos de Euclides com a meta�sica de Lúlio.
No século XVII, em plena revolução cien�fica, o nome de Ramon Llull
aparece mencionado em múl�plas obras. Em alguns casos, como no
Discurso do método de René Descartes, para rejeitar seu método para
encontrar a verdade, por considerar o filósofo francês que a Arte só servia
para demonstrar coisas já sabidas. Mesmo assim, a defesa cartesiana da
mathesis universalis guarda estreita relação com muitos dos postulados da
Arte de Lúlio. Em outros casos, como no de Go�ried Wilhelm Leibniz, para
reconhecer no pensador maiorquino um pioneiro em diversos ramos da
matemá�ca, como a combinatória. Assim, na Disserta�o (1666) Leibniz
expõe sua vontade de superar a lógica meramente demonstra�va e
caminhar para uma lógica inven�va, seguindo claramente a seara que Llull
havia aberto quatro séculos antes.
No século XVIII será a cidade alemã de Mogúncia (Mainz) o centro
nevrálgico dos estudos lulianos. Lá o bispo ordenou imprimir o que ainda
hoje é uma das recopilações mais exaus�vas da obra de Llull. Este trabalho
ingente será levado a cabo pelo pres�gioso teólogo Ivo Salzinger. Este
mandou buscar pela Europa exemplares dos textos lulianos e com eles
preparou uma preciosa edição em dez volumes, dos quais somente os oito
primeiros acabaram sendo impressos (quatro deles publicados
postumamente). A Edi�o Magun�na é uma rara peça bibliográfica, de cuja
posse poucas bibliotecas do mundo podem se orgulhar. Foi uma
compilação de grande importância para a preservação do pensamento de
Llull. Contudo, também ajudou a perpetuar a imagem do pensador como
cul�vador da alquimia, já que Salzinger não somente incluiu os textos
autên�cos do maiorquino como deu conta – embora de boa-fé - de alguns
dos textos apócrifos.
Na mesma centúria, e em parte como consequência do Iluminismo, na ilha
de Maiorca aparentemente serão superadas as disputas entre franciscanos
e dominicanos, que haviam permeado o debate teológico dos séculos
anteriores. Ramon Llull finalmente será aceito sem ressalvas como o
pensador insular de maior projeção universal. Boa parte deste mérito deve
ser atribuído a Antoni Ramon Pasqual, autor das Vindiciae Lulliane,
publicadas em Avignon em 1778. Enquanto isso, na França as contribuições
lógicas e combinatórias de Lúlio inspirarão o marquês de Condorcet, cujos
sistemas matemá�cos para votações derivam em parte da De arte
elec�onis luliana.
Este reconhecimento ver-se-á incrementado a par�r de meados do século
XIX, quando o movimento literário da Renaixença, de base român�ca e
nacionalista, considerará Llull o pai fundador das letras catalãs. Será a
época da proliferação nos Países Catalães dos Jogos Florais, os quais, à
imitação dos seus homônimos medievais, incen�varão o uso do catalão
como língua de criação literária. Com eles, crescerá a admiração por aquele
homem que no século XIII, sem referentes prévios, escolhera o idioma
materno para escrever sobre Deus, os homens e a ciência. Os pioneiros
deste enfoque literário/filológico da obra luliana foram o alemão Adolf
Helfferich e os maiorquinos Jeroni Rosselló e Joaquim Maria Bover. O
avanço da disciplina da romanís�ca, sobretudo nos centros acadêmicos
germânicos, correu em paralelo à recuperação da língua catalã, subme�da
desde o começo do século XVIII a um uso puramente domés�co e familiar.
Será esse o momento em que Lúlio virará uma espécie de pai fundador do
catalão, num plano semelhante ao que teve Lutero na formação do
moderno idioma alemão (Hochdeutsch) ou Luis Vaz de Camões com o
português literário. A par�r desta linha de estudo proliferarão análises da
obra literária luliana, procurando nela a imitação de modelos la�nos, bem
como o emprés�mo de barbarismos de línguas próximas, nomeadamente
do occitano. A par�r de então Ramon Llull tornar-se-á quase uma grife,
uma chancela que concede autoridade cien�fica à ins�tuição que leva o
seu nome. Já em 1880 será criada em Maiorca a Societat Arqueològica
Lul·liana, en�dade que aglu�nará uma parte considerável dos estudiosos
insulares, em áreas tão diversas como a história, a linguís�ca ou a
antropologia. Com o tempo, esta sociedade acadêmica foi reduzindo a
produção de estudos estritamente lulís�cos, para centrar-se em outras
ciências humanas. Este espaço foi ocupado pela Maioricensis Schola
Lullis�ca, fundada em Palma em 1935 por Francesc Sureda Blanes. A
Maioricensis edita periodicamente Studia Lulliana, revista de referência
para os estudiosos de Ramon Llull.
O processo de secularização das sociedades europeias experimentado a
par�r do século XIX e acelerado nos úl�mos sessenta anos, com a
separação radical entre religião e ciência, tem diminuído o interesse pelo
Llull pensador, ao mesmo tempo que ia crescendoa veneração pelo Llull
literato. Não é raro ler histórias do pensamento ocidental em que o nome
de Ramon Llull aparece mencionado apenas como uma nota de rodapé, se
tanto. Apesar da originalidade de seus escritos, ao contrário de outros
autores contemporâneas seus, Llull às vezes não encaixa em histórias da
filosofia excessivamente lineais. Pesam contra ele o fato de não ter servido
de base de uma corrente teológica ou filosófica dominante (como foi o
caso de Tomás de Aquino com a escolás�ca, por exemplo) nem ter
pra�cado um empirismo que pudesse ser lido a posteriori como precursor
do moderno método cien�fico (como no caso de Roger Bacon ou Duns
Escoto). A tudo isso temos de acrescentar que Ramon Llull dedicou boa
parte de sua vida a esforços tão démodés (a olhos da ciência de hoje) como
a demonstração dos dogmas católicos mediante razões necessárias ou a
escrita de um livro cuja leitura produzisse a conversão automá�ca dos
infiéis.
Porventura isso explique por que os estudiosos atuais prefiram analisar o
modo como Llull ajudou a moldar o catalão literário antes que adentrar-se
nos recursos lógicos u�lizados para comprovar os mistérios da Trindade.
Não deixa de ser paradoxal esta proliferação de estudos filológicos se
levarmos em conta que a imensa maioria dos �tulos lulianos foi concebida
em la�m (apenas conservamos 17 obras em catalão, mais outras 34
bilíngues, em la�m e catalão) e, além disso, que para Llull a criação literária
era um meio para espalhar sua Arte através de exemplos facilmente
compreensíveis, mas não uma finalidade em si mesma.
Ademais, Llull tem sido tratado por ramos do saber que ele, em seu
Mediterrâneo medieval, nem teria imaginado que pudessem exis�r algum
dia. Estou me referindo, entre outras áreas do conhecimento, à semió�ca e
às ciências da computação. Umberto Eco mostrou interesse pela obra
luliana, à qual dedicou alguns de seus estudos. Figura eminente da ciência
que estuda os símbolos, Eco apaixonou-se pelas alterações que Llull
introduziu à linguagem humana, criando novos vocábulos e desinências
para dar vazão aos complexos conceitos da Arte.
Em relação à informá�ca, há autores que opinam que Lúlio foi um
precedente da moderna ciência da computação. Segundo esta
interpretação, os modernos computadores seriam a con�nuação
ciberné�ca do ratus apparatus (máquina de pensar) que Llull idealizou
como artefato para fazer complicadas operações lógicas. Sob este prisma, o
maiorquino seria um dos primeiros pensadores da história que quis
formatar todo o conhecimento humano em categorias matemá�cas
facilmente mecanizáveis. O que na Arte se prevê como uma sucessão de
figuras geométricas que o ar�sta deve operar manualmente para extrair
conclusões elevadas, a par�r da década de 1940, graças à mágica do
eletromagne�smo e à necessidade de decifrar códigos secretos inimigos,
transformar-se-á em um aparelho digital que revolucionará por completo a
vida dos indivíduos e das sociedades humanas: o computador.
Todavia, a este enfoque podemos fazer uma série de ressalvas. A primeira
é que a Arte luliana não é exatamente uma máquina de pensar. É verdade
que tem uma base de lógica combinatória que a aproxima à informá�ca de
nossos dias, porém, e esta é a segunda observação, a Arte não é um
automa�smo. Ao contrário, a lógica luliana exige uma par�cipação a�va do
ar�sta em todo o processo de conhecimento. A manipulação das figuras da
Arte permite extrair e – isto é importante – escolher conclusões elevadas,
numa a�vidade em que a subje�vidade do indivíduo tem um papel
decisivo. Finalmente, em terceiro lugar, a ciência da computação atual não
tem as preocupações meta�sicas da lógica de Lúlio nem pretende chegar a
um saber verdadeiro que leve à conversão dos infiéis. Os usos dos nossos
computadores são de índole mais prá�ca, ajudando-nos a mul�plicar as
habilidades humanas de cálculo e de memória, principalmente.
Já para recapitular, somente acrescentar que o pensamento luliano
con�nua a ser uma fonte inesgotável de inspiração para os pesquisadores
atuais. Ins�tutos cien�ficos dedicados ao estudo da sua obra estão em
a�vo atualmente em Palma, Barcelona, Freiburg, Roma, Palermo, Florença
e São Paulo, entre outras cidades. As a�vidades destes centros de pesquisa
são a melhor constatação da vigência atual das ideias do Doutor Iluminado
setecentos anos depois de sua morte.
 
BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA
 
 
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Na internet também há abundante informação disponível. Eis alguns links a
modo de orientação para o leitor:
h�p://ramonllull.net/sw_principal/l_br/home.php
http://ramonllull.net/sw_principal/l_br/home.php
h�p://quisestlullus.narpan.net/720_fant.html
h�p://crai.ub.edu/ca/recursos-d-informacio/patrimoni-
bibliografic/colleccions-tem%C3%A0�ques/r-llull
h�p://orbita.bib.ub.edu/llull/index.asp
http://quisestlullus.narpan.net/720_fant.html
http://crai.ub.edu/ca/recursos-d-informacio/patrimoni-bibliografic/colleccions-tem%C3%A0tiques/r-llull
http://orbita.bib.ub.edu/llull/index.asp
Notes
[←1]
Fernando Domínguez Reboiras lista um total de 280 obras escritas por Ramon Llull, inclusive
24 livros perdidos. De algumas destas obras perdidas (as de número 255 a 268, compostas
durante a úl�ma viagem à África) não conservamos sequer o �tulo. Também,
surpreendentemente, existem na relação de Domínguez Reboiras quatro obras ainda inéditas,
apesar de terem sido escritas há mais de sete séculos. A cifra incrementa-se
consideravelmente se somarmos os �tulos atribuídos a Lúlio, muitos deles de alquimia. Estas
obras apócrifas formam o corpus do pseudolulismo, que não tem relação alguma com a
produçãoliterária autên�ca do Doutor Iluminado.
[←2]
Para a datação das obras de Ramon Llull seguimos a referência do catálogo do Raimundus
Lullus Ins�tut, da Universidade de Freiburg (Alemanha), conforme con�do em DOMÍNGUEZ
REBOIRAS, F.: Ramon Llull. El mejor libro del mundo. Barcelona, 2016.
[←3]
Tradução livre do autor a par�r do original catalão.
[←4]
Os trechos reproduzidos do Livro do amigo e do amado correspondem à tradução de Luiz
Carlos Bombassaro, publicada pelo Editora Escala (São Paulo, s.a.).
[←5]
Versão portuguesa da Vida coetânea a cargo de Luísa Costa Gomes, publicada em Vida de
Ramón, Lisboa, 1991, pp.211-234. Fonte:
h�p://www.ramonllull.net/sw_studies/l_br/t_luisacosta.htm
[←6]
Tradução livre do autor do original em catalão.
[←7]
Tradução do autor a par�r da versão castelhana citada em: DOMÍNGUEZ REBOIRAS, F.: Ramon
Llull. El mejor libro del mundo. Barcelona, 2016, versão Kindle, posição 5841.
[←8]
Lúlio, Raimundo: Livro do gen�o e dos três sábios (1274-1276). Introdução, tradução e notas
de Esteve Jaulent. Editora Vozes. Petrópolis, 2001, pp. 84-100.
[←9]
Há controvérsia sobre se esta ordem idealizada por Lúlio seria monacal, conventual ou
simplesmente uma agrupação de fiéis leigos. Na Vida coetânea são usados tanto o termo de
mosteiro quanto o de frades.
[←10]
O historiador Álvaro Santamaría tem posto de manifesto que o florim era uma moeda que
não circulava no reino de Maiorca na época da fundação de Miramar, o que tem levantado
dúvidas sobre se tal subsídio realmente exis�u.
[←11]
Tradução livre do autor a par�r do original em catalão.
[←12]
Tradução livre do autor a par�r do original em catalão.
[←13]
Os trechos reproduzidos do Félix correspondem à tradução de Ricardo da Costa, publicada
pela Editora Escala (São Paulo, 2009).
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