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A CLÍNICA DO TRAUMA AULA 2 Profª Giovana Fonseca Madrucci 2 CONVERSA INICIAL A visão econômica do psiquismo e a importância do irrepresentável para a clínica do trauma Até aqui, trabalhamos o percurso percorrido por Freud naquilo que chamamos de teoria do trauma. Inicialmente, Freud entende a questão dessa forma: um certo acontecimento, afeto, impulso muito intenso, que o sujeito não teve condições psíquicas de elaborar/incorporar ao seu psiquismo, produz um efeito traumático, gera um movimento de repressão (que é emanado pelo eu), que por sua vez leva ao recalque e, com isso, à formação do sintoma. O trauma, então, seria a causa do adoecimento neurótico/histérico do indivíduo e essa é a base da neurótica freudiana. A partir do momento em que Freud se atenta para a origem sexual desse conteúdo traumático e para o papel que esse conteúdo proveniente principalmente da sexualidade infantil tem no inconsciente do indivíduo, ele estabelece a sua teoria da sedução. Ele propõe, nesse momento, que a pessoa adoecida (traumatizada) haveria sofrido abuso (ou algo similar) por parte de um adulto e que essa experiência seria aquilo que deixaria o sujeito traumatizado. Passa a entender também o trauma como algo que acontece em dois tempos: num primeiro momento, o sujeito sofre o golpe e não tem condições de dar o sentido/elaborar a experiência vivida; e, num segundo momento, que remete ao primeiro, o sujeito já tem mais possibilidades de dar sentido à experiência e se entende abusado. A teoria da sedução logo é abandonada, pois, para que se levasse essa ideia adiante, dever-se-ia presumir que as famílias normalmente possuíssem pessoas abusadoras, e essa generalização é um tanto complicada. Nesse ponto, a noção de realidade psíquica torna-se muito importante e cede terreno à noção de fantasia. Não importava mais, portanto, que houvesse o abuso real ou não, mas sim as impressões particulares e aquilo que o sujeito significou das experiências sexuais vividas. Haveria, então, a fantasia do abuso/sedução. Entretanto, com o avanço das ideias que sustentavam a formalização de topologia psíquica – na passagem da primeira para a segunda tópica, principalmente –, Freud percebe que uma visão de economia psíquica era também muito importante para a compreensão do trauma. 3 Para o entendimento do funcionamento do sintoma, além dos aspectos topológicos, ele nos evidenciou que o psiquismo funcionaria regido por um mecanismo importantíssimo: o princípio do prazer. O princípio do prazer seria a busca pela homeostase psíquica (excitação demais e excitação de menos seriam sentidas como desprazeres e poderiam deixar registros de trauma no psiquismo do indivíduo). Além disso, ele entende que a força que rege o psiquismo é a libido. Num primeiro momento, ele entende que, para que haja a vigência do princípio do prazer, a libido deve se dirigir tanto para o próprio eu (autopreservação) quanto para os objetos (o investimento em objetos impede que o psiquismo fique inundado e, com isso, produza no indivíduo a sensação de desprazer). É com o atendimento às neuroses (traumáticas) de guerra e com o aprofundamento da compreensão sobre o sintoma (a compulsão à repetição) que, em 1920, Freud (2010a) muda sua concepção sobre o funcionamento econômico do psiquismo e postula a existência de duas forças psíquicas que regeriam o psiquismo: a pulsão de vida e a pulsão de morte. A pulsão de morte iria em direção à aniquilação e à destruição e procuraria o nível zero de tensão psíquica (estado nirvânico). Com isso, Freud também muda sua compreensão sobre a angústia e essa mudança também gera alterações na forma de se entender a questão do trauma. Tenha um bom estudo! TEMA 1 – AS NEUROSES TRAUMÁTICAS DE GUERRA E O FORT-DA: A PULSÃO DE MORTE EM CENA PARA O ENTENDIMENTO DO TRAUMA Favero (2009) nos diz que, com base nas primeiras formalizações de Freud acerca do funcionamento do psiquismo (a questão do inconsciente, do recalque etc.), pode-se concluir que a relação estabelecida entre o trauma e o sintoma nos dá subsídios para afirmar que ele seria a forma encontrada pelo inconsciente para obter satisfação e trazer à tona (e de volta) o conteúdo traumático, mesmo que esse conteúdo pertença ao campo da fantasia. A formação sintomática seria como uma atualização do trauma, fazendo aflorar os conteúdos libidinais do sujeito, que, em momento muito anterior, por lhe gerarem um conflito ético e moral, precisaram ser esquecidos, recalcados. A autora (Favero, 2009) ainda nos situa que, no período em que Freud estabelece a sua neurótica, tem-se uma concepção de que as fantasias funcionam como fachadas psíquicas diante dos eventos que são realmente Highlight 4 importantes na etiologia das neuroses (os conteúdos e impulsos provenientes da sexualidade infantil), que estariam ocultos, à primeira vista, cifrados pelo sintoma. Freud, nesse momento, entende o papel crucial e a importância da fantasia e da realidade psíquica e se preocupa menos com reencontrar elementos realmente ocorridos (factuais), que poderiam estar na base da irrupção de um quadro histérico, preocupação que tinha no início das suas investigações sobre a histeria. Nesse momento de suas elaborações, ele já se dá conta de que o acontecimento concebido como desencadeador da neurose pode ser um elemento imaginário, que provoca o trauma. Ainda sobre a formação e a importância do sintoma, Vitorello (2015) nos assinala que a pulsão tem uma busca imperativa por satisfação, e a forma como ela a encontra é por meio daquele que seria o derivado mais importante da fantasia: o sintoma. Segundo o autor, a fantasia funciona como um tipo de matriz ou script que fixa a forma com a qual o sujeito se relaciona com o real. Determina, por exemplo, sua forma de se relacionar e suas escolhas pulsionais e de objeto. Sintetizando, a fantasia é uma forma de organizar a relação do sujeito com uma realidade que a própria fantasia transforma. Trauma e fantasia, nesse início das formulações de Freud sobre o tema, portanto, estão profundamente interligados. Mas, com as observações e reformulações de Freud acerca do aparelho psíquico (a transição da primeira para a segunda tópica, por exemplo), entram em cena novas concepções, agora com alguma ênfase na economia psíquica, que é crucial para o entendimento do impacto do trauma, no psiquismo. De acordo com Favero (2009), a ideia de trauma retorna modificada entre os anos 1915 a 1929. Essa nova forma de entender a questão acabou sendo imposta a Freud devido aos casos de neurose traumática pós-guerra, que resultavam de acidentes dolorosos recentes e que, aparentemente, não tinham nenhuma relação privilegiada com objetos sexuais, concepção primordial em seu primeiro entendimento da questão. Freud, a partir daí, passa a entender que os sintomas provenientes do trauma (com base nas neuroses de guerra) resultam de uma fixação no momento do acidente traumático. O momento traumático/acidente passa a ser reeditado nos sonhos e a ressurgir em ataques histeriformes, ataques esses que transportam o sujeito, de forma repetitiva, para a situação do trauma. Sendo assim, não seria mais uma questão de se impedir o aparelho psíquico de ser tomado por grandes somas de excitação; há uma outra tarefa que se faz mais importante: dominar a excitação e ser capaz de 5 estabelecer ligações psíquicas nas somas de excitação que penetraram de maneira abrupta no indivíduo, para levá-las, em seguida, à liquidação. [...] o desprazer do neurótico não passa de um prazer que não pode ser sentido como tal. A transformação de uma situação prazerosa em desprazer perceptivo seria de responsabilidade do princípio da realidade. Resta esclarecer o que confere benefício à atualização do evento traumático sob a forma de sintoma.O que faz um sujeito recordar o que, em princípio, é um acontecimento doloroso, se o aparelho psíquico é orientado, em seu funcionamento, pelo princípio do prazer, que supõe a evitação do desprazer? (Favero, 2009, p. 322) A questão principal, aqui, seria: por que revivemos experiências claramente desprazerosas se o psiquismo funciona regido pelo princípio do prazer? Por que o conteúdo traumático volta através dos sonhos, dos sintomas e da repetição? Como isso deve ser conduzido e compreendido, clinicamente? Seja essa repetição a repetição de um ato, de um sonho ou do próprio sintoma, é como se o trauma não cessasse de tentar se inscrever no psiquismo, de alguma forma. Com esses questionamentos e a importante passagem anterior de Favero (2009), seguimos para o próximo item de nossa etapa. TEMA 2 – A IMPORTÂNCIA DA COMPULSÃO À REPETIÇÃO De acordo com Presa (2016), até o momento em que Freud postula a existência da pulsão de morte, o que importa, em sua visão a respeito do psiquismo, é o equilíbrio das pressões pulsionais que existem nele, e esse equilíbrio se daria por intermédio de ações que protegessem o aparelho psíquico dos excessos energéticos. A autora (Presa, 2016) ainda pontua que o princípio do prazer é a busca de satisfação com base numa descarga energética imediata e funciona nos moldes do processo primário (inconsciente); já o princípio da realidade funciona nos moldes do processo secundário (consciente) e retém essa livre descarga transformando a energia livre em energia ligada, sob o domínio das representações. Ela afirma que não se pode dizer que “[...] o princípio do prazer não se opõe definitivamente ao princípio de realidade, já que ambos buscam a satisfação e se prestam a lidar com esse acúmulo energético que se tornou insuportável.” (Presa, 2016, p. 72). Ainda nesse primeiro momento, antes que Freud postulasse a existência da pulsão de morte, entendia-se que: [...] para o bom funcionamento do aparelho psíquico [...]: i) o princípio do prazer fosse modificado pelo princípio de realidade; ii) o recalque agiria sobre as pulsões que comprometeriam a integridade egoica; iii) 6 as pulsões recalcadas buscariam atingir suas metas de satisfação por vias substitutivas e, consequentemente, a satisfação seria vivenciada como desprazer, graças à ação do recalque. (Presa, 2017, p. 73) Nesse momento, Freud se atenta para o fato de que tal explicação dada para a dinâmica psíquica não era suficiente para explicar o que acontecia com alguns dos pacientes, que pareciam manifestar sofrimentos de outra ordem e extrapolavam essas variações do eixo prazer-desprazer em tais manifestações. Em Além do princípio de prazer, de 1920, Freud (2010a) escreve sobre suas observações e dificuldades no atendimento dos quadros das neuroses traumáticas de guerra. O manejo/condução e a compreensão clínica desses casos de trauma pós-guerra extrapolavam a compreensão de neurose da psicanálise, até então. Sobre essa questão, Presa (2017, p. 73) ainda contribui afirmando que: Essas patologias, assim como as manifestações masoquistas, autoataques e reações terapêuticas negativas sobre as quais o autor discorre, constituíam verdadeiros obstáculos à efetividade do tratamento analítico e confrontavam o autor com seu postulado de que ‘o que é prazer para um sistema é desprazeroso para o outro’. Nesses casos, ficava cada vez mais evidente que se tratava de algum tipo de determinação no aparelho psíquico que condenava o sujeito a repetir um sofrimento que nunca trouxera satisfação e, que, portanto, estava além da repetição dos desejos inconscientes recalcados orquestrados pelo princípio de prazer. Como explicar, então, o caráter “demoníaco”, bizarro, representado na compulsão à repetição, se o próprio princípio de prazer não promovia tal inteligibilidade? Com base nisso, podemos focar nesse outro aspecto importante que leva Freud a repensar a dinâmica do princípio do prazer e a teoria da libido, que é o fenômeno da compulsão à repetição. Com a observação da brincadeira infantil do fort-da, ele se atenta a que, no psiquismo, nem tudo o que acontece vai pela via da evitação do desprazer. O jogo do fort-da baseou-se na observação de Freud de uma brincadeira de seu neto, constatando que o menino realizava, por meio da brincadeira, a repetição de uma experiência vivida como desprazer, que era a ausência de sua mãe. O menino jogava o carretel e emitia o som de ôôô..., identificado por Freud como a palavra alemã fort (longe, ausente); e, quando o puxava de volta, alegremente dizia aaa..., identificado como da (cá, aqui). Esse jogo evidencia uma brincadeira de desaparecimento e retorno, que faz referência à ausência e à presença materna. Ainda com relação à questão da compulsão à repetição, Barbosa Neto (2010) nos situa que, na primeira tópica, Freud se volta para a interpretação do inconsciente e a revelação do conteúdo recalcado, e é assim que a repetição Highlight Primeira tópica : Qual foi o momento traumatizante. 7 adquire sua relevância clínica. A preocupação, ali, era desvelar o momento do trauma e como se construiu o sintoma. É a partir da segunda tópica – com a introdução do conceito de pulsão de morte – que a repetição adquire caráter compulsivo e entra em cena uma dimensão irrepresentável da pulsão. Agora o interesse de Freud é no sentido de um trabalho psíquico com fins de ligação de representações: diante da impossibilidade da recordação e/ou “localização” da cena traumática, a atenção se dá em relação a todos os eventos psíquicos que possam minimizar o caos gerado por afetos sem representação, e que ameaçam a estabilidade da vida psíquica, gerando sofrimento. (Barbosa Neto, 2010, p. 9) Podemos associar a pulsão de morte àquilo que não possui representação psíquica, àquilo que se expressa somente por ação e impulso. Fica evidente, aqui, a importância, portanto, da questão da pulsão de morte para o trauma: ela nos traz à tona o que há de irrepresentável, no psiquismo. E a falta de recursos simbólicos e de representação psíquica é o que define se o trauma ocorrerá ou não. Outro tema bastante importante para a compreensão da teoria do trauma em Freud é a angústia, cuja compreensão também é reformulada por Freud após a virada de 1920 e a formalização da existência da pulsão de morte. Seguimos com o que Freud falou sobre a angústia e as suas relações com o trauma, nos itens a seguir. TEMA 3 – A ANGÚSTIA COMO EXCESSO DE AFETO NÃO ELABORADO PSIQUICAMENTE Segundo Pisetta (2008), o afeto pode ser caracterizado e definido como algo que vem à consciência e provoca uma sensação; logo, algo que se sente. Entender a angústia, sobretudo, como um afeto nos revela a importância de que, como clínicos, não a consideremos apenas como algo que surge como consequência do processo de recalcamento que gera o sintoma; mas como algo que, acima de tudo, nos afeta. Essas ideias ficarão mais claras no decorrer de nosso conteúdo; mas, o que precisamos saber, primeiramente, é que a angústia é difícil de ser definida. Num primeiro momento de suas construções teóricas – na obra freudiana, partindo dos rascunhos e incluindo os artigos em que Freud discute a questão das neuroses atuais (melancolia, neurose de angústia e neurastenia) e as psiconeuroses de defesa –, Freud entende inicialmente que a angústia é uma Segunda tópica: Entender como que opera a dinâmica do trauma Angústia = afeta. - Algo que se sente. 8 tensão sexual que não encontra as condições suficientes nem as vias satisfatórias para que haja a inscrição psíquica/ligações psíquicas desse afeto. Essas explicações são provenientes das tentativas de Freud de formalizar e sistematizar aquilo que conhecia do fenômeno da histeria, mas sempre levando em conta que outros fenômenos (os citados anteriormente, por exemplo) também se apresentavam em termos de adoecimentopsíquico. Pisetta (2008) nos diz que, para Freud, além da produção clara da sensação de desprazer, a angústia vem acompanhada quase sempre de sensações físicas (dificuldades de respirar e coração acelerado, por exemplo, típicos sintomas da crise de pânico). A autora ainda nos afirma que Freud – devido às observações da ligação profunda entre angústia e corpo – considera também um ponto de vista filogenético para a compreensão da angústia, ou melhor, uma explicação que leve em conta os aspectos evolutivos da espécie. O protótipo (ou modelo) de situação em que isso ocorreria seria o trauma do nascimento. Ou seja, a primeira experiência de angústia com potencial traumático para o ser humano é o nascer. Os estados de angústia seriam, por esse prisma, uma reprodução de tal evento traumático. Por este último, ganha importância a apreciação do caráter econômico na teorização da angústia, já que há uma intrínseca relação entre a descarga afetiva (que caracteriza a angústia) e a inervação motora a fisiologia da angústia, encontraremos um aumento de excitação que encontra seu alívio em uma descarga motora. Em última instância, é na angústia que o ato encontra sua força energética. (Pisetta, 2008, p. 407) De acordo com Caropreso e Aguiar (2015), por outro lado, Freud aponta também, nesse momento inicial da teoria, que se fazia presente a hipótese de que a angústia consistiria em uma carga libidinal desligada de suas representações por meio da repressão, fenômeno esse que ele pode observar com alguma clareza nas neuroses de transferência. O que fica evidente para Freud, nesse momento, é que o afeto de angústia trata-se de uma reação à sensação de incapacidade de lidar com um perigo externo. “A neurose de angústia, por sua vez, surgiria como uma reação a uma excitação endógena. Diante da incapacidade de equilibrar essa excitação sexual vinda de dentro, ela seria projetada para fora.” (Caropreso; Aguiar, 2015, p. 6). Essa excitação endógena, que produz a angústia, seria a excitação sexual que não pôde ser adequadamente descarregada ou que não encontrou descarga no campo psíquico do indivíduo. 9 Nesse ponto, podemos perceber uma grande aproximação com a questão do trauma, pois, se a angústia é aquele afeto que não conseguiu encontrar nenhum tipo de representação psíquica, ela é, por si só, a expressão psíquica principal, no campo do trauma. Fica também evidente a sua relação com a questão da pulsão de morte: o trauma é aquilo que está na ordem do irrepresentável. Se, justamente, o trauma é aquilo que não encontra meios para a representação psíquica, a angústia é seu afeto por excelência. Retornemos a como Freud concebeu a angústia em dois momentos: antes e depois de 1926. TEMA 4 – A PRIMEIRA FORMA DE ENTENDER A ANGÚSTIA: A ANGÚSTIA COMO POSTERIOR AO RECALQUE Como vimos no item anterior, de acordo com o que foi postulado por Freud, inicialmente a angústia era entendida como um excesso de afeto não elaborado psiquicamente. O excesso de afeto tornar-se-ia, portanto, angústia. Ao estabelecer uma relação entre os afetos e os sintomas, Freud entendeu que a angústia pode funcionar como a moeda de troca para os afetos: paga-se o afeto indesejável com angústia. Traçando um retorno histórico sobre a questão, Pisetta (2008) nos afirma que, para Freud, desde seus primeiros artigos e suas primeiras investigações sobre o fenômeno da histeria, a angústia aparece vinculada ao recalque. A compreensão desse primeiro momento é de que a angústia equivale à emergência do recalcado. Ela apareceria para o sujeito como decorrente de um processo anterior, bastante elaborado, alicerçado na sensação de desprazer (entende-se aqui a sensação de desprazer como base do recalque). Freud buscava um lugar para a angústia. Esse lugar, como entendemos, na primeira tópica, restringe-se à sua manifestação fenomenológica, já que ela se mostra, na clínica, posterior ao recalque, incidente no momento mesmo do recalque secundário. Freud a postula, assim, como um dos destinos do afeto, atravessado pelo recalque. (Pisetta, 2008) O que temos até aqui, portanto? Que a angústia é entendida como muito próxima dos sintomas. Para esclarecer e tornar essa concepção mais compreensível, o que temos nos escritos e formalizações iniciais de Freud é que, para ele, a angústia era uma consequência da formação sintomática e era também sinal de desprazer, no psiquismo. Highlight 10 O conteúdo indesejável do eu (vinculado a um afeto, sempre), antes recalcado, quando não é vivido como o afeto original, transforma-se em angústia (a moeda de troca do psiquismo). Ou seja, a angústia, nesse primeiro momento, era uma consequência do recalque e do sintoma. A questão da angústia também se encontra sempre muito atrelada às noções de Freud sobre as defesas, que nos remetem ao trauma. A angústia também pode ser um sinal, um sinal de perigo para que o ego não seja inundado por uma excitação. Considere a passagem a seguir: Para Freud, uma vez ocorrida tal vivência de dor, quando a representação do objeto hostil fosse ocupada novamente, a partir de uma percepção ou associação com outras representações, ocorreria uma liberação de quantidade no aparelho que geraria desprazer. Esse processo foi denominado de “afeto”. A inclinação à desocupação da representação do objeto hostil pela via reflexa foi chamada de “defesa primária”. No entanto, Freud observa que a produção de afeto pela ocupação do objeto hostil seria prejudicial nos casos em que tal ocupação não fosse estimulada a partir do mundo externo, mas a partir do interior do aparelho, ou seja, apenas a partir de uma recordação. Nas primeiras repetições da vivência de dor, seria produzido um afeto intenso e uma defesa primária excessiva, de acordo com o modo de funcionamento chamado de processo primário. Essa descarga afetiva seria, com o tempo, inibida, de modo que a produção do afeto passasse a se limitar a um sinal. No entanto, a inibição da ocupação intensa da representação do objeto hostil seria um processo gradual que pressuporia o estabelecimento da excitação em estado ligado. (Caropreso; Aguiar, 2015, p. 10) Caropreso e Aguiar (2015) situam ainda que a angústia surgiria diante do que Freud (2006a) chama, no Projeto para uma psicologia científica, de vivência de dor e, em Inibição, sintoma e angústia, Freud (2010b) vai tratar como a possibilidade de se reviver uma situação traumática anterior, não apenas diante do sinal de um perigo atual. Assim, a angústia surgiria também de um processo de rememoração. Ao modificar algumas de suas concepções sobre a questão da angústia, Freud também repensa algumas questões sobre como funciona o trauma. Passemos, então, ao nosso item seguinte. TEMA 5 – A ANGÚSTIA EM INIBIÇÃO, SINTOMA E ANGÚSTIA, DE 1926: ANGÚSTIA E TRAUMA Como pudemos estudar nos itens anteriores, num primeiro momento, Freud entende a angústia como resultado de uma energia flutuante, sentida como desprazer, em consequência do recalque. Entretanto, ele, de acordo com Klein e Herzog (2017), num segundo momento, percebe a importância do ego e Highlight 11 de seus mecanismos de defesa no que diz respeito à angústia. Essa percepção nos coloca diante do fato de que o recalque não seria mais o motor da angústia, mas sua consequência. O que isso quer dizer? Quer dizer que a angústia é que é o motor da formação do sintoma e da compulsão à repetição, ou melhor, a angústia é o representante afetivo do conteúdo traumático. O trauma seria, também, decorrente da angústia. Devido ao fato de o psiquismo ser invadido pela angústia é que o eu se defende e se utiliza do mecanismo de defesa do recalque (Freud, 2010c). Essa visão que Freud nos proporciona, de suas reflexões sobre a formação sintomática da fobia (principalmente no caso do pequeno Hans), nos traz a ideia de que há mecanismos de defesa diante desse afetoe de como é importante o eu, nesse processo todo. [...] o interesse de Freud em relação à angústia, na segunda teoria, deixa de ser a sua origem e passa a ser a sua função. O nascimento torna-se o paradigma desse afeto e o protótipo dos efeitos de um perigo real que vem se repetindo na filogênese. A função que Freud circunscreve para a angústia é a de impedir que esse trauma se repita em toda a sua intensidade; logo, de caráter defensivo. Sua função de sinal está inscrita neste sentido: esse afeto é ativado como prevenção contra uma experiência de invasão pulsional traumática que se remete à filogênese. (Klein; Herzog, 2017, p. 92) Levy e Ceccarelli (2020) destacam que, quando esse sinal defensivo emitido pelo eu falha, vem à cena uma dimensão de angústia automática, de ordem traumática e marcada por uma invasão pulsional. Freud (2010c) afirma que a angústia é a reação original ao desamparo no trauma, e que ela é reproduzida, depois da situação de perigo, como um sinal em busca de ajuda. O eu que experimentou o trauma agora o repete ativamente/compulsivamente em uma versão enfraquecida, como forma de conseguir adquirir algum controle e elaborar aquilo que está na ordem do irrepresentável psiquicamente. A situação traumática e a situação de perigo se distinguem na medida em que o Eu aprende a tomar a angústia como um sinal. A angústia que, originalmente, foi automaticamente deslanchada na situação de desamparo, será depois reproduzida como sinal de perigo, graças ao que o Eu passa, tal como a criança em suas brincadeiras, da passividade para atividade, buscando dominar psiquicamente suas experiências. (Levy; Ceccarelli, 2015, p. 145) Com essa passagem, fica nítida a importância de o eu ter forças e integridade o suficiente para administrar os excessos energéticos do psiquismo. O trauma ocorreria quando o eu não tivesse a integridade suficiente para administrar tais excessos. Os autores ainda nos situam que, devido ao fato de o 12 psiquismo ser inundado por esse excesso energético da angústia na cena traumática, o trauma obriga o psiquismo a encontrar outras formas para dar vazão ao excesso produzido. “Este excesso só pode ser descarregado através do representante psíquico da pulsão. Caso a ligação pulsão-representante não ocorra, a integridade do sujeito se vê ameaçada” (Levy; Ceccarelli, 2015, p. 146). Em outras palavras: o entendimento da angústia, na segunda teoria da angústia de Freud, nos coloca diante da questão de que a angústia é anterior à formação sintomática e à compulsão à repetição. A angústia é um sinal, emitido pelo eu, que funciona como protetor do psiquismo. Quando o eu não tem integridade suficiente para lidar com os excessos energéticos da angústia (por diversos motivos), ocorre o trauma. Na etapa seguinte, trabalharemos novamente essa concepção, para, então, podermos adentrar o terreno das contribuições de Sàndor Ferenczi à teoria do trauma. NA PRÁTICA Em nosso conteúdo, pudemos discutir uma questão clínica bastante importante: como conduzir clinicamente aquilo que parece que não tem elaboração e se repete incessantemente (compulsão à repetição)? Pudemos perceber que, no psiquismo, há uma força/impulso – ou melhor, uma pulsão – que se manifesta, e que essa pulsão estaria mais interessada na aniquilação e na destruição do que na sobrevivência. Pode parecer um tanto incoerente, mas, sabendo que na vida mental nem tudo é consciente, a existência de uma força psíquica que se manifesta dessa forma não é de se estranhar. A noção de que há no psiquismo duas forças pulsionais, a pulsão de vida e a pulsão de morte, bem como a noção de que o psiquismo tem um funcionamento também econômico, e não somente topológico, são de extrema importância quando falamos em abordagem clínica do trauma (mas não só do trauma). A pulsão de morte, no que diz respeito ao trauma, nos coloca diante daquilo que é o irrepresentável. Logo, quando se tratam de questões relativas ao trauma e às patologias da ação e da impulsividade, não basta e muitas vezes nem conseguimos pedir que o paciente associe livremente ou mesmo fale de lembranças da infância. Os recursos simbólicos estão escassos e precisam ser “desenvolvidos”. Na condução clínica das questões relativas ao trauma, como veremos num momento seguinte, no material sobre Sàndor Ferenczi, muitas vezes só a 13 presença sensível do analista é o que importa. O fato de alguém o testemunhar já fornece uma organização pulsional importante para o indivíduo. Um exemplo: quando estávamos na graduação, participamos de um grupo de apoio a pessoas em luto. Esse grupo de apoio funcionava com as pessoas (principalmente mães que perderam seus filhos) testemunhando o que haviam sofrido e, com isso, essas pessoas se sentiam amparadas/acolhidas e podiam formular uma narrativa sobre a experiência vivida. Esse testemunho (que pode ser repetitivo) tem uma função, a de poder angariar recursos simbólicos para inscrever a perda (ou o trauma sofrido) no psiquismo. Se o irrepresentável da pulsão de morte não cessa de se repetir, é importante termos em mente que a repetição também tem um caráter criativo. Outra questão bastante importante, até aqui, é a ideia da força do eu. Ela é bastante importante para o entendimento da clínica da contemporaneidade. Quando o eu não se desenvolve com força narcísica suficiente, adentramos o terreno que extrapola a neurose, entramos na clínica dos estados-limite e do trauma. Essa ideia ficará mais clara no decorrer do curso. Retornando à questão da condução clínica da compulsão à repetição, temos que ter em mente que, mesmo que a pulsão de morte pareça uma grande vilã, é somente com base naquilo que se repete que podemos fazer um trabalho clínico de elaboração e criação. A compulsão à repetição tem esse aspecto criativo de que, com base nela, seja possível criar e elaborar o conteúdo patogênico. Tendo em mente as concepções econômicas do psiquismo e essa noção de que daquilo que se repete é possível dar um novo sentido àquilo que gera o sofrimento, tem-se um bom atendimento clínico do trauma, empático e espontâneo. FINALIZANDO Quais conteúdos foram mais importantes para serem absorvidos desta etapa? Seguem os principais itens: a. A partir dos anos 1920, a noção de economia psíquica se altera. Freud, a partir do atendimento prestado a pacientes que apresentavam neurose traumática de guerra e interrogando o fenômeno da compulsão à repetição (por meio também da observação da brincadeira infantil do fort- da), passa a entender que há no psiquismo uma força que extrapola a 14 noção de princípio de prazer. Com isso, postula a existência da pulsão de morte. b. A pulsão de morte não visaria à sobrevivência psíquica e nem iria ao encontro da evitação de desprazer. Ela seria uma força que levaria ao estado de excitação zero e à aniquilação psíquica. Entretanto, para a teoria das pulsões, estas não se manifestariam sozinhas mas sim, sempre, de forma híbrida. Não haveria nem pulsão de vida e nem pulsão de morte totalmente puras. c. A pulsão de morte nos evidencia algo da ordem do irrepresentável, no psiquismo. Sua existência também faz com que Freud repense a questão da angústia. d. Inicialmente, Freud concebia a angústia como um montante de excitação que o psiquismo não dava conta de inscrever simbolicamente no psiquismo. Num primeiro momento, a excitação ainda era tratada como algo de ordem apenas sexual. Com a evolução de sua concepção sobre o trauma, muda também a concepção sobre a angústia. e. Primeiramente, também, Freud entendeu a angústia como consequência da formação do sintoma e do recalque. O trauma, aqui, geraria a angústia. A angústia é entendida como o representante afetivo do conteúdo traumático. f. Com a revisão acerca da questão da angústia, Freud entende que a angústia viria antes da formação dosintoma, seria decorrente dela. Isso significa que a angústia funcionaria como motor para o trauma. O excesso energético da angústia faria com que o psiquismo tivesse que administrar os excessos energéticos e, quando não houvesse recursos suficientes/necessários para tal, ocorreria o trauma. O trauma seria decorrente daquilo que não encontra nenhum tipo de representação psíquica. g. Os recursos necessários para lidar com os excessos energéticos são provenientes da força narcísica do eu. Se o eu não tem integridade e força suficientes, mais propenso estará o sujeito a que as suas vivências sejam traumatizantes. 15 REFERÊNCIAS BARBOSA NETO, E. O conceito de repetição na psicanálise freudiana: ressonâncias clínicas na reelaboração simbólica do repetido. 86 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2010. CAROPRESO, F.; AGUIAR, M. B. de. O conceito de angústia na teoria freudiana inicial. Natureza Humana, v. 17, n. 1, p. 1-14, 2015. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517- 24302015000100001&lng=pt&tlng=pt>. Acesso em: 11 mar. 2023. FAVERO, A. B. A noção de trauma em psicanálise. 207 f. 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