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Dr. James R. Doty 
DENTRO DA LOJA MÁGICA
Um neurocirurgião à descoberta dos caminhos secretos para a alma
Into the Magic Shop
Traduzido do inglês por 
Marta Neves Cruz
CONTEÚDOS
INTRODUÇÃO: COISAS MARAVILHOSAS 19
PARTE UM :: NA LOJA DE MAGIA 27
UM > Verdadeira Magia 29
DOIS > Um Corpo em Descanso 38
TRÊS > Pensar em Pensar 61
QUATRO > Dores Crescentes 78
CINCO > Três Desejos 97
PARTE DOIS :: OS MISTÉRIOS DO CÉREBRO 115
SEIS > Aplique -se 117
SETE > Inaceitável 132
OITO > Não É Uma Cirurgia ao Cérebro 152
NOVE > O Sultão de Coisa Nenhuma 174
PARTE TRÊS :: OS SEGREDOS DO CORAÇÃO 187
DEZ > Desistir 189
ONZE > O Alfabeto do Coração 199
DOZE > Mostrar Compaixão 211
TREZE > O Rosto de Deus 223
AGRADECIMENTOS 229
19
INTRODUÇÃO: 
COISAS MARAVILHOSAS
O som do couro cabeludo ao ser separado do crânio assemelha -se 
ao de um grande pedaço de velcro a ser puxado. O som é alto e 
irado e um pouco triste. Na Faculdade de Medicina não existe uma 
aula que ensine os sons e os cheiros da cirurgia ao cérebro. E devia. 
O som da broca pesada a furar o crânio. A serra de ossos que enche 
a sala de operações com o cheiro da poalha no verão, enquanto corta 
a linha que liga os orifícios feitos pela broca. O estalido relutante 
que o crânio faz ao separar -se da dura -máter, a camada espessa 
que cobre o cérebro e constitui a última linha de defesa contra o 
mundo exterior. As tesouras cortando lentamente, através da dura-
-máter. Quando o cérebro fica exposto, pode -se vê -lo a mover -se 
ao ritmo de cada batida do coração e, por vezes, parece até gemer 
em protesto pela sua nudez e vulnerabilidade – os seus segredos 
expostos perante todos, sob as luzes intensas da sala de operações.
O rapaz parece pequeno na bata do hospital e é quase engo-
lido pela cama, enquanto espera para entrar para a cirurgia.
– A minha vovó rezou por mim. E por si também.
Ouço a mãe do rapaz inspirar e expirar, audivelmente, com 
esta informação, e sei que está a tentar ser corajosa pelo filho. 
Por si mesma. Talvez até por mim. Passo a mão pelo cabelo dele. 
É castanho, comprido e fino – ainda é mais bebé do que rapaz. 
Diz -me que fez anos. 
– Queres que explique novamente o que vai acontecer, Cam-
peão, ou já estás pronto? – Ele gosta quando lhe chamo campeão 
ou amigo.
20
DENTRO DA LOJA MÁGICA
– Vou dormir. Vai tirar a Coisa Horrível da minha cabeça, para 
não me doer mais. Depois vou ver a minha mamã e a minha vovó.
A «Coisa Horrível» é um meduloblastoma, o tumor cere-
bral maligno mais comum nas crianças, que está localizado na 
fossa posterior (a base do crânio). Meduloblastoma não é uma 
palavra fácil de pronunciar para um adulto e muito menos 
para uma criança de quatro anos, por muito precoce que seja. 
Os tumores cerebrais na infância são realmente coisas horríveis, 
por isso acho o termo bem empregue. São invasores deforma-
dos e muitas vezes grotescos na primorosa simetria do cérebro. 
Começam entre os dois lobos do cerebelo e crescem, acabando 
por comprimi -lo, tal como também ao tronco encefálico, até blo-
quearem os caminhos que permitem que o fluido no cérebro 
circule. O cérebro é uma das coisas mais maravilhosas que vi e 
explorar os seus mistérios e descobrir formas de o curar é um 
privilégio que nunca assumi como garantido.
– Pareces -me pronto. Vou colocar a minha máscara de super-
-herói e encontramo -nos na sala luminosa.
Sorriu -me. As máscaras cirúrgicas e as salas de operações 
podem ser assustadoras. Hoje chamar -lhes -ei máscaras de 
super -herói e salas luminosas para que ele não tenha tanto 
medo. A mente é uma coisa estranha, mas não me vou pôr a 
explicar semântica a uma criança de quatro anos. Alguns dos 
pacientes e pessoas mais sábias que conheci foram crianças. 
Têm um coração aberto. Dir -nos -ão o que as assusta, o que as 
deixa felizes e o que gostam e não gostam em nós. Não existe 
um plano secreto e nunca temos de imaginar como se senti-
rão realmente.
Virei -me para a sua mãe e avó. – Alguém da equipa irá manter-
-vos informadas, à medida que formos avançando. Calculo que 
seja uma ressecção total. Creio que não haverá complicações. 
– Isto não é apenas conversa de cirurgião para lhes dizer aquilo 
que querem ouvir. O meu plano é uma cirurgia limpa e efi-
caz para remover a totalidade do tumor, enviando depois uma 
21
INTRODUÇÃO: COISAS MARAVILHOSAS
pequena porção para o laboratório, para ver até que ponto é hor-
rível esta Coisa Horrível.
Sei que a mãe e a avó estão assustadas. Agarro nas mãos de 
cada uma, tentando tranquilizá -las e transmitir -lhes força. Nunca 
é fácil. As dores de cabeça matinais do menino transformaram-
-se no pior pesadelo dos pais. A mãe confia em mim. A avó con-
fia em Deus. Eu confio na minha equipa.
Juntos, tentaremos salvar a vida desta criança.
DEPOIS de o anestesista a adormecer, coloco -lhe a cabeça numa 
armação metálica que aparafuso ao crânio e posiciono -a em decú-
bito ventral. Pego no aparador de cabelo. Embora geralmente 
seja uma enfermeira quem prepara a cirurgia, prefiro ser eu 
próprio a rapar -lhe a cabeça. É um ritual meu. E enquanto a vou 
rapando lentamente, penso neste precioso pequenino e passo 
mentalmente em revista cada pormenor da cirurgia. Corto a pri-
meira madeixa de cabelo e entrego -a ao enfermeiro circulante, 
para que a coloque num pequeno saco, para a mãe do menino. 
É o seu primeiro corte de cabelo e, muito embora neste momento 
esta seja a menor das preocupações para a mãe, sei que mais 
tarde será importante. É um marco que gostamos de recordar. 
Primeiro corte de cabelo. Primeiro dente que cai. Primeiro dia 
de escola. Primeiro dia em que anda de bicicleta. A primeira 
cirurgia ao cérebro nunca vem na lista.
Corto cuidadosamente as madeixas finas de cabelo casta-
nho claro, esperando que o meu jovem paciente consiga expe-
rimentar cada uma destas etapas. Na minha mente consigo 
vê -lo sorrir, com um grande espaço no sítio onde deveriam 
estar os dentes da frente. Vejo -o a ir para a creche com uma 
mochila quase do seu tamanho pendurada no ombro. Vejo -o a 
andar de bicicleta pela primeira vez – aquela primeira sensa-
ção de liberdade, a pedalar ansiosamente, com o vento no rosto. 
Penso nos meus próprios filhos, enquanto lhe corto o cabelo. 
22
DENTRO DA LOJA MÁGICA
As imagens de todas estas primeiras experiências estão tão 
nítidas na minha mente que não consigo imaginar qualquer 
outro desfecho. Não quero imaginar um futuro de visitas ao 
hospital, tratamentos ao cancro e cirurgias adicionais. Como 
sobrevivente de um tumor cerebral na infância, terá sempre 
de continuar a ser acompanhado, mas recuso -me a vê -lo no 
futuro nas condições em que o vi no passado. As náuseas e os 
vómitos. As quedas. O acordar às primeiras horas da manhã a 
gritar pela mãe porque a Coisa Horrível lhe está a pressionar o 
cérebro e dói. A vida já tem problemas suficientes sem precisar 
de mais este. Continuo a cortar -lhe o cabelo suavemente, ape-
nas o necessário para poder fazer o meu trabalho. Marco dois 
pontos na base do seu crânio, onde será feita a incisão, e traço 
uma linha direita.
Uma cirurgia ao cérebro é difícil, mas na fossa posterior é 
ainda mais e numa criança pequena é dolorosamente difícil. 
O tumor é grande e o trabalho, meticulosamente lento e pre-
ciso. Através do microscópio, os olhos fixam -se numa só coisa, 
durante horas. Como cirurgiões, somos treinados para bloquear 
as nossas próprias reações corporais, enquanto operamos. Não 
fazemos uma pausa para ir à casa de banho. Não comemos. 
Fomos preparados para ignorar as nossas dores de costas ou 
as cãibras nos músculos. Recordo -me da minha primeira vez 
numa sala de operações, a assistir um famoso cirurgião, conhe-
cido não só por ser brilhante, mas também por ser uma prima 
donna beligerante e arrogante quando operava. Sentia -me intimi-
dado e nervoso e, quando estava junto dele na sala de operações, 
o suor começou a pingar da minha cara. Por trás da máscara, 
a minha respiração era pesada e os óculosforam ficando emba-
ciados. Não conseguia ver os instrumentos, nem sequer a mesa 
de operações. Trabalhara tanto, ultrapassara tantos obstáculos 
e agora ali estava, a fazer cirurgia como sempre imaginara, 
mas sem conseguir ver nada. Então, o impensável aconteceu. 
Uma enorme gota de suor rolou do meu rosto e foi cair na zona 
23
INTRODUÇÃO: COISAS MARAVILHOSAS
esterilizada. Ele ficou possesso. Deveria ter sido um ponto alto 
na minha vida, a primeira cirurgia, mas em vez disso conta-
minei a área de operação e fui sumariamente expulso da sala. 
Nunca esqueci essa experiência.
Hoje, a minha testa está fria e a minha visão é nítida. A minha 
pulsação está calma e regular. A experiência faz a diferença e na 
minha sala de operações não sou um ditador nem uma prima 
donna agressiva. Cada membro da equipa é valioso e necessá-
rio. Cada um está focado na sua tarefa. O anestesista controla a 
pressão sanguínea da criança e o oxigénio, o seu nível de cons-
ciência e o ritmo cardíaco. A enfermeira instrumentista verifica 
constantemente os instrumentos e os materiais, assegurando-
-se de que tudo o que é necessário fica à minha mão. Preso aos 
lençóis está um saco grande, por baixo da cabeça do rapaz, para 
recolher o sangue e o fluido de irrigação. O saco está ainda preso 
a um tubo ligado a um aspirador grande, que mede constante-
mente os fluidos, para que possamos saber o sangue que se per-
deu a cada momento.
O cirurgião que me assiste é um residente sénior em formação 
e é novo na equipa, mas está tão focado nos vasos sanguíneos, 
no tecido cerebral e nos pormenores da remoção deste tumor 
como eu. Não podemos pensar nos nossos planos para o dia 
seguinte, na política hospitalar, nos nossos filhos ou em algum 
problema no nosso relacionamento em casa. É uma forma de 
hipervigilância, de concentração em determinado ponto, quase 
meditação. Treinamos a mente e esta treina o corpo. Quando se 
tem uma boa equipa, o ritmo e a fluidez são espantosos – todos 
estão sincronizados. As nossas mentes e corpos trabalham em 
conjunto como uma inteligência coordenada.
Estou a remover a última porção do tumor, que está presa a 
uma das principais veias drenantes, nas profundezas do cére-
bro. O sistema venoso da fossa posterior é incrivelmente com-
plexo e o meu assistente está a aspirar os fluidos, enquanto 
eu removo o resto do tumor. Por um segundo, ele deixa a sua 
24
DENTRO DA LOJA MÁGICA
atenção vaguear e, nesse preciso instante, a sucção rasga a veia. 
Por um brevíssimo momento, tudo para.
De repente, instala -se o caos.
O sangue da veia rasgada enche a cavidade da ressecção e o 
sangue começa a escorrer da abertura na cabeça do menino. 
O anestesista começa a gritar que a pressão sanguínea da criança 
está a cair rapidamente e que não consegue acompanhar a perda 
de sangue. Preciso de prender a veia e estancar a hemorragia, mas 
ela escondeu -se numa poça de sangue e não consigo encontrá -la. 
Por si só, a minha sucção não consegue controlar o sangramento 
e a mão do meu assistente está a tremer demasiado para poder 
ser uma ajuda.
– Está em paragem total! – grita o anestesista. Tem de se arras-
tar por baixo da mesa, porque a cabeça do rapazinho está presa 
na armação própria, pronta, a parte de trás aberta. O anestesista 
começa a comprimir o peito da criança enquanto coloca a outra 
mão nas suas costas, tentando desesperadamente que o cora-
ção volte a bater. Os fluidos são despejados para as intraveno-
sas. A principal e mais importante tarefa do coração é bombear 
sangue e esta bomba mágica que torna tudo possível no corpo 
parou. Este menino de quatro anos está a esvair -se em sangue 
na mesa à minha frente. Enquanto o anestesista lhe pressiona o 
peito, a abertura continua a encher -se de sangue. Temos de parar 
a hemorragia, caso contrário a criança morre. O cérebro con-
some 15 por cento do fluxo do coração e, depois de este parar, só 
consegue sobreviver alguns minutos. Precisa de sangue e, mais 
importante, do oxigénio que nele se encontra. Estamos a ficar 
sem tempo antes que o cérebro morra – o cérebro e o coração 
precisam um do outro.
Tento freneticamente agarrar a veia, mas não há forma de a 
encontrar no meio de todo aquele sangue. Apesar da cabeça do 
menino estar fixa na mesma posição, as compressões sobre o 
peito fazem -na mover -se, ainda que muito ligeiramente. Tal como 
eu, a equipa sabe que estamos a ficar sem tempo. O anestesista 
25
INTRODUÇÃO: COISAS MARAVILHOSAS
levanta os olhos para mim e vejo -lhe uma expressão de medo… 
Podemos perder esta criança. Uma ressuscitação cardiopulmonar 
(RCP) é como arrancar com um automóvel em segunda – não 
é fiável, especialmente quando continuamos a perder sangue. 
Estou a trabalhar às cegas e então abro o coração a uma possibi-
lidade para lá da razão e começo a fazer o que aprendi há déca-
das, não no internato, não na faculdade, mas no quarto traseiro 
de uma pequena loja de magia, no deserto da Califórnia.
Acalmo a mente.
Relaxo o corpo.
Visualizo a veia recolhida. Vejo -a com o olho da mente, oculta 
no percurso neurovascular do rapazinho. Prossigo sem ver, mas 
sabendo que esta vida tem mais do que conseguimos vislumbrar 
e que cada um de nós é capaz de fazer coisas extraordinárias, que 
nunca pensaríamos ser possível. Controlamos os nossos desti-
nos e não posso aceitar que este menino de quatro anos esteja 
destinado a morrer hoje, na mesa de operações.
Debruço -me sobre a poça de sangue com o grampo aberto, 
prendo -o e, lentamente, afasto a mão.
A hemorragia para e, de repente, como se viesse de muito longe, 
ouço o bip do monitor cardíaco. A princípio é fraco, irregular. 
Mas depressa se vai tornando forte e constante, como qualquer 
coração quando começa a regressar à vida.
Sinto o meu próprio ritmo cardíaco a acompanhar o do monitor.
Mais tarde, no pós -operatório, darei à sua mãe as madeixas do 
seu primeiro corte de cabelo e o meu amiguinho sairá da anes-
tesia como um sobrevivente. Estará completamente normal. Em 
quarenta e oito horas estará a falar, e até mesmo a rir, e eu pode-
rei dizer -lhe que a Coisa Horrível se foi embora.
27
PARTE UM
�
Na Loja de Magia
29
UM
�
Verdadeira Magia
LANCASTER, CALIFÓRNIA, 1968
O dia em que reparei que me faltava o polegar começou como 
qualquer outro dia de verão, antes de iniciar o oitavo ano. Passava 
os dias a andar de bicicleta pela cidade, ainda que por vezes 
estivesse tão quente que o metal do guiador parecia o bico de 
um fogão. Sentia sempre o sabor a terra na minha boca – seco 
e arenoso, tal como as plantas e catos que enfrentam o sol e o 
calor do deserto para sobreviver. A minha família tinha pouco 
dinheiro e muitas vezes eu tinha fome. Eu não gostava de sen-
tir fome. Não gostava de ser pobre.
O maior motivo de orgulho de Lancaster era a proeza de 
Chuck Yeager1, ao quebrar a barreira do som na base da Força 
Aérea de Edwards, vinte anos antes. Os aviões sobrevoavam -na 
durante todo o dia, os pilotos treinando e testando as aeronaves. 
Perguntava -me como seria ser o Chuck Yeager a pilotar o Bell 
X -1 em Match 1, concretizando aquilo que humano algum conse-
guira fazer antes. Como Lancaster lhe deve ter parecido pequena 
e desolada a 14.000 metros de altitude e a uma velocidade que 
1. Charles Elwood «Chuck» Yeager, piloto de testes norte -americano, ficou conhe-
cido por ser a primeira pessoa a ultrapassar a barreira do som. (N. da T.)
30
DENTRO DA LOJA MÁGICA
nunca ninguém achara possível. A mim parecia -me pequena 
e desolada e eu estava apenas a meio metro do chão, enquanto 
pedalava na minha bicicleta.
Reparei nessa manhã que me faltava o polegar. Debaixo da 
cama conservava uma caixa de madeira que tinha os meus per-
tences mais valiosos. Um pequeno caderno com os meus dese-
nhos, alguma poesia secreta e factos malucos ao acaso, que ficara 
a conhecer – como o de todos os dias 20, bancos serem assal-
tados em todo o mundo, os caracóis poderem dormir durante 
três anos e no estado de Indiana ser ilegal dar um cigarroa um 
macaco. A caixa tinha ainda um exemplar usado do livro de 
Dale Carnegie Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, mar-
cado nas páginas que listavam as seis maneiras de fazer com 
que as pessoas gostem de nós. Consigo reproduzir de memó-
ria os seis tópicos:
1. Interessar -se verdadeiramente pelas outras pessoas.
2. Sorrir.
3. Lembrar -se de que o nome de uma pessoa é, para ela, o som 
mais agradável e mais importante, qualquer que seja a língua.
4. Ser um bom ouvinte. Encorajar os outros a falarem de si 
mesmos.
5. Falar de temas que interessem às outras pessoas.
6. Fazer com que a outra pessoa se sinta importante – e fazê -lo 
com sinceridade.
Tentava aplicar cada uma destas indicações quando falava com 
alguém, mas sorria sempre com a boca fechada, porque quando 
era pequeno caíra e batera com o lábio superior na mesa do café, 
partindo os dentes de leite da frente. Por causa dessa queda, os 
novos dentes cresceram tortos e acastanhados. Os meus pais 
não tinham dinheiro para os mandar arranjar. Tinha vergonha 
de sorrir e de mostrar os dentes tortos e escuros e por isso ten-
tava manter a boca sempre fechada.
31
PARTE UM :: NA LOJA DE MAGIA
Para além do livro, a caixa de madeira continha todos os meus 
truques de magia: um baralho de cartas marcadas, umas moe-
das especiais – que eu podia transformar de níqueis em cen-
tavos – e, o mais importante de todos, a extremidade de um 
polegar de plástico, onde se podia esconder um lenço de seda 
ou um cigarro. O livro e os truques de magia tinham -me sido 
oferecidos pelo meu pai e eram muito importantes para mim. 
Passara horas e horas a praticar com aquele polegar. A aprender 
como colocar as mãos para que ele não ficasse percetível e como 
enfiar discretamente o lenço ou o cigarro no seu interior, para 
que parecesse que tinham desaparecido por magia. Conseguira 
iludir os meus amigos e vizinhos dos prédios de apartamentos. 
Mas hoje o polegar não estava ali. Desaparecera. Sumira. E eu 
não estava nada feliz com isso.
Como de costume, o meu irmão não estava em casa, mas pen-
sei que talvez ele o tivesse levado ou, pelo menos, que soubesse 
onde estava. Não sabia para onde ia ele todos os dias, mas decidi 
montar na minha bicicleta e ir procurá -lo. Aquela extremidade 
de polegar era o meu bem mais precioso. Sem ele, eu não era 
nada. Precisava de o recuperar.
PASSEI A PEDALAR por um pequeno centro comercial solitá-
rio na Avenida I – uma zona que não ficava no meu habitual 
circuito de bicicleta porque, para além desse centro, e ao longo 
de mais de um quilómetro, havia apenas campos vazios, ervas 
daninhas e cercas de arame de ambos os lados. Vi um grupo 
de rapazes mais velhos em frente do pequeno mercado, mas 
o meu irmão não estava entre eles. Senti -me aliviado porque, 
geralmente, quando ele estava com um bando de rapazes, isso 
significava que se estavam a meter com ele e que eu teria de me 
envolver numa luta, para o defender. Era um ano e meio mais 
velho do que eu, mas mais pequeno, e os arruaceiros gostam de 
provocar aqueles que não se sabem defender. Ao lado do mercado 
32
DENTRO DA LOJA MÁGICA
havia um optometrista e, ao lado deste, uma loja que eu nunca 
vira antes: a loja de magia Cactus Rabbit. Parei no passeio em 
frente ao pequeno centro comercial e olhei através do parque de 
estacionamento. A montra era formada por cinco vidraças verti-
cais, com uma porta, também de vidro, à esquerda. O sol refletia-
-se nos vidros sujos e eu não conseguia ver se estava alguém no 
interior, mas levei a bicicleta até à porta da frente, esperando 
que estivesse aberta. Perguntei -me se venderiam polegares de 
plástico e a que preço. Não levava dinheiro, mas perguntar não 
custava nada. Encostei a bicicleta a um poste em frente da loja, 
após deitar uma olhadela ao grupo de rapazes em frente ao mer-
cado. Parecia que não tinham reparado em mim nem na minha 
bicicleta e por isso deixei -a ficar ali e empurrei a porta da frente. 
A princípio não se moveu, mas depois, como por efeito de uma 
varinha mágica, cedeu e abriu -se suavemente. Quando entrei, 
um sininho tocou por cima da minha cabeça.
A primeira coisa que vi foi um longo balcão de vidro, cheio 
de baralhos de cartas, varinhas, copos de plástico e moedas de 
ouro. Encostadas às paredes, via -se caixas pretas pesadas, que 
eu sabia serem usadas para fazer magia em palcos, e também 
grandes estantes com livros sobre magia e ilusão. Ao canto, havia 
até uma mini -guilhotina e duas caixas verdes, usadas para ser-
rar uma pessoa ao meio. Uma mulher de idade, de cabelo cas-
tanho ondulado, lia um livro, com os óculos encavalitados na 
ponta do nariz. Sorriu, com os olhos ainda sobre o livro, e então 
retirou os óculos, levantou a cabeça e olhou -me diretamente 
nos olhos, de uma maneira que adulto algum jamais fizera.
– Sou a Ruth – disse. – Como te chamas?
O seu sorriso era tão grande e os olhos tão castanhos e gen-
tis que não consegui evitar sorrir -lhe também, esquecendo -me 
por completo dos meus dentes tortos.
– Sou o Jim – respondi. Até àquele momento, eu chamara -me 
Bob. O meu segundo nome era Robert. Não me lembrava por 
que razão me chamavam Bob. No entanto, por qualquer razão, 
33
PARTE UM :: NA LOJA DE MAGIA
quando ela perguntou, eu respondi «Jim». E esse foi o nome 
que passei a usar para o resto da vida.
– Bem, Jim, ainda bem que entraste.
Não sabia o que dizer e ela continuava a olhar -me nos olhos. 
Finalmente suspirou, mas foi mais um suspiro feliz do que triste.
– Em que posso ajudar -te?
Tive uma branca. Não me lembrava por que razão tinha entrado 
na loja e tive a mesma sensação de quando nos recostamos com 
demasiada força na cadeira e de repente nos endireitamos, mesmo 
antes de ela cair. A senhora esperava pacientemente, ainda a sor-
rir, até que encontrei palavras para responder.
– O meu polegar – disse.
– O teu polegar?
– Perdi a ponta do meu polegar de plástico. Tem algum?
Olhou para mim e fez um ligeiro encolher de ombros, como 
se não fizesse a mínima ideia do que eu estava a falar. 
– Para a minha magia. É um truque. Sabe, aquele polegar 
falso, de plástico…?
– Vou contar -te um segredo – disse ela. – Não sei nada de tru-
ques de magia. – Olhei em volta, para a enorme quantidade de 
artigos e truques de todo o género que estava exposta, e voltei 
a olhar para ela, surpreendido. – A loja é do meu filho, mas de 
momento ele não está. Estou apenas aqui sentada a ler, enquanto 
ele foi fazer um recado. Lamento, mas não sei absolutamente 
nada de magia ou de truques com pontas de polegares.
– Está bem. De qualquer forma, vou dar uma vista de olhos.
– Claro. Fica à vontade. E depois diz -me se encontraste aquilo 
que procuravas. – Riu -se e, embora eu não compreendesse a 
razão, era um riso agradável, que me fez sentir bem interior-
mente, sem perceber o motivo.
Deambulei pela loja, olhando para as infindáveis filas de car-
tas mágicas, apetrechos e livros. Sentia os seus olhos pousados 
em mim, enquanto eu ia explorando a loja, mas ainda assim 
não me sentia como quando ia ao mercado ao lado do nosso 
34
DENTRO DA LOJA MÁGICA
apartamento e o dono olhava para mim. Tenho a certeza que ele 
achava que eu ia roubar alguma coisa e sempre que lá entrava 
sentia o seu olhar desconfiado a seguir todos os meus passos.
– Vives em Lancaster? – perguntou Ruth.
– Sim – respondi –, mas do outro lado da cidade. Vinha de 
bicicleta à procura do meu irmão quando vi a sua loja e decidi 
entrar.
– Gostas de magia?
– Adoro – declarei.
– Porque é que adoras?
Queria dizer que era por ser fixe e divertido, mas da minha boca 
saiu uma resposta diferente. – Gosto de praticar uma coisa e ser 
mesmo bom a fazê -la. Gosto de ser eu a controlar. Só depende 
de mim o truque resultar ou não. Não importa o que outra pes-
soa possa dizer, fazer ou pensar.
Ela ficou em silêncio durante uns segundos e eu senti -me ime-
diatamente envergonhado por ter dito tudo aquilo.
– Percebo o que queres dizer – respondeu. – Explica -me lá 
isso do truque do polegar.– Bem, coloca -se a extremidade do polegar falso no nosso pole-
gar e o público pensa que é o verdadeiro. Não pode ficar muito à 
vista porque, quando se olha com atenção, percebe -se que é falso. 
É oco por dentro e pode passar -se do polegar para a palma da 
outra mão, assim. – Fiz um gesto clássico de magia, segurando 
uma mão com a outra e deslizando os dedos uns pelos outros. 
– Passa -se disfarçadamente a ponta do polegar para a outra mão 
e pode enfiar -se lá dentro um pequeno lenço de seda ou um 
cigarro. Depois, repetem -se os mesmos gestos e volta -se a colocar 
o polegar no nosso dedo. Mas agora já temos lá dentro o objeto 
escondido. Parece que fizemos desaparecer alguma coisa por 
magia ou, ao contrário, que fizemos aparecer alguma coisa do 
nada.
– Estou a perceber – disse Ruth. – Há quanto tempo praticas 
esses truques?
35
PARTE UM :: NA LOJA DE MAGIA
– Há alguns meses. Pratico todos os dias, por vezes durante 
alguns minutos, outras vezes durante uma hora. Mas faço -o todos 
os dias. A princípio é bastante difícil, mesmo com o livro de ins-
truções, mas depois vai ficando cada vez mais fácil. Qualquer 
pessoa consegue fazê -lo.
– Parece um bom truque e é ótimo que pratiques, mas sabes 
porque é que funciona?
– O que quer dizer? – perguntei.
– Porque é que achas que esse truque funciona? Disseste que 
o polegar tem um ar mesmo falso. Então como é que as pes-
soas são enganadas?
De repente ficara muito séria e parecia querer que eu lhe ensi-
nasse alguma coisa. Não estava habituado a que alguém, especial-
mente um adulto, me pedisse para explicar ou ensinar alguma 
coisa. Pensei nisso durante um minuto.
– Acho que funciona porque o mágico é tão bom que conse-
gue enganar as pessoas. Não se apercebem do truque. Quando 
se faz magia é preciso manter as pessoas distraídas.
Ela riu -se. – Distraídas. Perfeito. És inteligente. Queres que te 
diga porque acho que a magia funciona? – Esperou que eu res-
pondesse e achei de novo estranho que um adulto me pedisse 
autorização para me dizer algo.
– Claro.
– Acho que o truque de magia funciona porque as pessoas 
só veem aquilo que pensam que está ali e não o que está real-
mente. Esse truque do polegar funciona porque a mente é uma 
coisa engraçada. Vê o que se espera que ela veja. Espera -se que 
veja um verdadeiro polegar e é isso que vê. O cérebro, sempre 
tão ativo é, na verdade, muito preguiçoso. Claro que o truque 
também funciona porque, tal como disseste, as pessoas se dis-
traem facilmente. Mas não se distraem com os gestos de mãos. 
A maior parte das pessoas que está a assistir a um espetáculo 
de magia não está propriamente a prestar -lhe atenção. Está sim 
a lamentar algo que fez no dia anterior ou a preocupar -se com 
36
DENTRO DA LOJA MÁGICA
alguma coisa que terá de fazer no dia seguinte, portanto nem 
sequer está propriamente presente e, assim sendo, como poderá 
reparar no polegar de plástico?
Eu não estava a perceber bem o que ela queria dizer, mas ace-
nei com a cabeça. Pensaria nisso mais tarde. Reproduziria as 
suas palavras na minha cabeça e descobriria o sentido.
– Não me entendas mal. Eu acredito em magia, mas não naquela 
que implica o uso de artefactos ou truques de prestidigitação. 
Sabes de que tipo de magia estou a falar?
– Não, mas parece fixe – respondi. Queria que ela continuasse 
a falar. Gostava que estivéssemos a ter uma conversa a sério, 
sentia -me importante.
– Já alguma vez fizeste truques com fogo?
– Bem, também se pode fazer o truque do polegar com um 
cigarro aceso, mas eu nunca experimentei. É preciso lume para 
acender o cigarro.
– Então imagina que tinhas uma luzinha cintilante e que 
tinhas poder para a transformar numa chama gigante, como 
uma bola de fogo.
– Parece muito giro. Como é que se faz?
– É essa a magia. Podes transformar a chama pequenina numa 
enorme bola de fogo apenas com uma coisa: a tua mente.
Não percebi o que ela queria dizer, mas a ideia agradava -me. 
Gostava dos mágicos que conseguiam hipnotizar as pessoas. 
Que dobravam colheres com a força da mente. Que levitavam.
Ruth bateu as palmas.
– Gosto de ti, Jim. Gosto muito.
– Obrigado. – Era agradável ouvi -la dizê -lo.
– Vou ficar apenas seis semanas nesta cidade, mas se con-
cordares em vir visitar -me todos os dias durante esse período, 
ensino -te alguma magia. O tipo de magia que não se compra 
numa loja e que te ajudará a conseguires o que queres. A sério. 
Sem truques. Sem polegares de plástico. Sem prestidigitação. 
Que te parece?

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