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Capítulo 17 
Autópsias, Biópsias, Citopatologia e Outros Métodos de Investigação em Patologia: O Que São e Como São Utilizados 
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“Venho analisando este caso por 2 meses, e o que 
me desaponta é que não poderei ver o exame post- 
-mortem.” Essa expressão dita por William Osler, um 
dos maiores expoentes da medicina moderna, ao seu 
amigo T. Archibald Mallock a respeito de si mesmo, 
em 1919, três semanas antes de sua morte, destaca de 
maneira objetiva e clara a relevância da autópsia para 
a medicina até os tempos atuais. 
As primeiras dissecções post-mortem de que se tem 
notícia ocorreram na Antiguidade, nas civilizações 
egípcia, persa e grega, geralmente relacionadas com 
aspectos mágico-religiosos, envolvendo a libertação 
de espíritos. Aristóteles (384-322 a.C.), com suas dis- 
secções de cadáveres de animais, contribuiu de forma 
relevante para o conhecimento anatômico, mas foi 
Erasistratus (304-250 a.C.), no Egito, quem primei- 
ro passou a buscar a origem das doenças nos órgãos 
internos. Mais tarde, as ideias de Galeno (130-200 
d.C.) sobre os quatro humores e seu papel na origem 
das doenças, associadas à proscrição das dissecções 
de cadáveres, resultaram na interrupção da avaliação 
dos cadáveres na busca da origem e explicação das 
doenças, ainda que alguns poucos relatos de dissec- 
ção da época possam ser encontrados. Da mesma 
forma, na Idade Média, infrequentes autópsias são 
descritas em situações bastante específicas, como 
epidemias e situações de necessidades médico-legais. 
Apesar de as dissecações terem seu número au- 
mentando quando liberadas pela Igreja, durante o 
Renascimento até o século XVII, a falta de correlação 
com os aspectos clínicos impedia seu uso sistemáti- 
co para fins de evolução do conhecimento científico 
das doenças. Nessa época, os estudos de Leonardo da 
Vinci (1452-1519) e Andreas Vesalius (1514-1564) 
resultaram em grande ampliação dos conhecimen- 
tos de anatomia e fisiologia humana, detalhados de 
forma sublime e talentosa nos trabalhos artísticos de 
ambos. Foi no século XVIII que Giovanni Morgagni 
(1682-1771) inaugurou a “verdadeira história da au- 
tópsia”, passando a correlacionar os aspectos clínicos 
das doenças com as alterações encontradas nos dife- 
rentes órgãos, buscando a compreensão do proces- 
so patológico e de como as alterações morfológicas 
explicavam e corroboravam as alterações funcionais 
e consequentemente as manifestações clínicas. Esse 
conceito é até hoje a maior virtude da autópsia e o 
que a colocou na vanguarda da evolução do conhe- 
cimento médico da modernidade. Os trabalhos de 
Morgagni, especialmente “Sobre os lugares e as cau- 
sas das doenças anatomicamente verificadas” (1761), 
abriram as portas para uma nova interpretação das 
doenças, suas causas e consequências, motivo pelo 
qual ele é considerado o pai da anatomia patológi- 
ca. Seguiram-se a ele Jean Nicolas Corvisart (1755- 
1821) e René-Theóphile Laennec (1781-1826), na 
França, Matthew Baillie (1761-1823), na Inglaterra, 
Carl von Rokitansky (1804-1878), na Áustria, que 
supervisionou mais de 50 mil autópsias, e Rudolf 
Virchow (1821-1902), na Alemanha. Os estudos 
aprofundaram-se, demonstrando que as alterações 
observadas nos órgãos macroscopicamente tam- 
bém apresentavam repercussões microscópicas, que 
muitas vezes justificavam ou explicavam a origem e 
as manifestações das doenças como um desarranjo 
complexo que pode ser observado por meio das alte- 
rações fisiológicas e anatômicas. 
Esses aspectos passaram a ser de interesse não 
apenas dos estudiosos de anatomia e fisiologia, mas 
também daqueles que lidavam no dia a dia com os 
pacientes, já que abriam as portas para a compreen- 
são da doença, criando a base do aprendizado. As- 
sim, era possível descobrir se o diagnóstico feito era 
o correto e tranquilizar-se, ou aprender mais para 
evitar que um erro se repetisse. Era justamente esse o 
 
 
Luiz Fernando Ferraz da Silva 
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conceito impetrado por William Osler (1849-1919), 
que, como um clínico brilhante, reconhecia desde o 
princípio a verdadeira importância da autópsia, ao 
dizer em sua tese de graduação: “Um dos mais ele- 
vados objetivos do médico é investigar as causas da 
morte, examinar cuidadosamente a condição dos ór- 
gãos e as alterações neles presentes identificando o 
que tornou impossível seu adequado funcionamento, 
e aplicar esses conhecimentos para a prevenção e o 
tratamento das doenças”. 
A maneira mais clara de compreender essa ex- 
pressão é observar como um caso que a princípio 
pode ser considerado do “dia a dia” atualmente pode 
ser visto sob outro prisma, o do exame post-mortem. 
Tome por exemplo um paciente do sexo masculino 
de 52 anos, obeso, com história de hipertensão há 
12 anos, em uso irregular de inibidor da enzima con- 
versa de angiotensina (IECA), que veio ao pronto- 
-socorro com quadro de dor em pontada na região 
retroesternal há cerca de 30 horas, ainda persistente, 
porém de menor intensidade. O eletrocardiograma 
mostrou evidências de lesão isquêmica na parede la- 
teral e posterior. Na chegada ao hospital, o paciente 
apresentava dispneia progressiva, que evoluiu rapida- 
mente com instabilidade hemodinâmica e óbito. 
Durante a autópsia, notou-se uma pequena quan- 
tidade de líquido seroso na cavidade pericárdica. 
O exame do coração mostrou órgão aumentado de 
tamanho, pesando 520 g – um normal tem 350 g para 
a idade e o tamanho do indivíduo –, com aumento 
desproporcionalmente maior do ventrículo esquer- 
do. Esse achado está de acordo com o quadro de 
hipertensão irregularmente tratada do paciente. O 
aumento da pressão arterial implica um aumento da 
pós-carga do ventrículo esquerdo, que, por sua vez, 
sofre um processo de adaptação conhecido como hi- 
pertrofia (aumento do tamanho e espessura da fibras), 
o que garante, até certo ponto, maior poder de bom- 
ba para o coração, porém essa hipertrofia tem um cus- 
to: maior consumo de energia por parte do coração e 
maior dificuldade de condução do impulso elétrico. 
Ainda examinando o coração, foram avaliados em 
sua superfície os ramos coronarianos (ramo descen- 
dente anterior da coronária direita e ramos descen- 
dente posterior e circunflexo da coronária esquerda) 
cuja secção evidenciou obstrução de cerca de 60% da 
luz do ramo descendente posterior e de 70% da luz 
do ramo circunflexo pelas placas de ateroma. Parte 
dessa luz remanescente no ramo circunflexo estava 
ocupada por um trombo aderido à parede do vaso. 
A aterosclerose pode ser descrita basicamente como 
o processo de deposição de colesterol na camada su- 
bintimal dos vasos, associada a um processo inflama- 
tório na parede, que cronicamente evolui com fibrose 
e enrijecimento da parede do vaso. O processo, que 
pode ocorrer em qualquer artéria, tende a alterar o 
fluxo sanguíneo laminar, causando turbulência, au- 
mentando as forças de estresse sobre o endotélio e 
 
favorecendo as lesões endoteliais, que podem levar 
ao desenvolvimento de trombose, observada nesse 
paciente. A trombose em um vaso já parcialmente 
ocluído pelas placas levou a uma interrupção quase 
completa do fluxo sanguíneo, resultando em isque- 
mia e necrose, que foi observada na autópsia aos 
cortes do coração, como uma área amarelada com 
halo vinhoso na parede livre do ventrículo esquer- 
do. Nesse paciente, o quadro foi agravado pela hi- 
pertrofia, uma vez que quantidades maiores de oxi- 
gênio e nutrientes eram necessárias para o adequado 
funcionamento do coração. Essa área, observada ao 
microscópio, mostrou necrose de coagulação (infarto 
de padrão isquêmico) e intenso infiltrado inflamató- 
rio polimorfonuclear, característico dos quadros de 
necrose em contraste com os quadros de apoptose 
(veja Capítulo 3), com aumento da permeabilidade 
vascular na periferia da lesão, evidenciado macrosco- 
picamente pelo halo hiperemiado e pela presença delíquido seroso na cavidade pericárdica. 
Os pulmões estavam com seu peso aumentado 
(cerca de 500 g cada, para um normal de 300 g) e, à 
compressão, houve saída de líquido espumoso pelas 
vias aéreas; aos cortes, a presença de grande quanti- 
dade de líquido intra-alveolar, caracterizando o ede- 
ma. O acúmulo desse líquido nos espaços alveolares, 
que levou o paciente a uma insuficiência respiratória 
aguda, resultou de acúmulo de sangue na circulação 
pulmonar (uma vez que a função de bomba do ven- 
trículo esquerdo foi comprometida adicionalmente 
pelo infarto), com consequente aumento da pressão 
hidrostática e extravasamento de líquido ultrafiltrado 
para a luz do alvéolo. O surfactante presente permi- 
tiu a formação de pequenas bolhas com o ar rema- 
nescente na luz alveolar, o que deu a característica de 
líquido espumoso à compressão e que pôde ser obser- 
vado em grandes quantidades na luz das vias aéreas. 
O exame dos rins mostrou superfície finamente 
granular, sem alterações de tamanho ou peso, e o 
exame microscópico evidenciou a presença de alguns 
glomérulos hialinizados (substituídos por fibrose). 
O processo aterosclerótico (nesse caso, corrobo- 
rado com a hipertensão) leva a alterações do fluxo 
sanguíneo renal, com comprometimento da irrigação 
adequada dos glomérulos. Com o tempo, os glo- 
mérulos, um a um, vão sofrendo pequenas alterações 
decorrentes de eventos isquêmicos e da própria al- 
teração de fluxo, tornam-se não funcionantes e evo- 
luem com fibrose (glomeruloesclerose). Como em 
qualquer fibrose cicatricial, há tendência de retração, 
o que explica as pequenas depressões que passam a 
surgir nos rins desses pacientes. Dessa forma, fica fácil 
compreender que, com a evolução do processo, cada 
vez mais glomérulos são perdidos, até que o rim perde 
sua capacidade de filtração e entra em insuficiência. 
As artérias do paciente, incluindo a aorta, seus 
troncos principais e até mesmo os ramos mais distais 
encontravam-se acometidos com aterosclerose em di- 
Capítulo 18 
Autópsia e Patologia 
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versas fases, desde placas baixas até áreas elevadas com 
ulceração, trombose e calcificação na parede do vaso. 
Fica claro que essas alterações favorecem o desenvolvi- 
mento de eventos isquêmicos em diversos órgãos, po- 
tencializa os efeitos da hipertensão arterial e até mesmo 
a agrava, uma vez que aumenta a rigidez dos vasos e, 
consequentemente, a resistência vascular periférica. 
No encéfalo do paciente, observou-se uma área 
de necrose de padrão liquefativo na região frontopa- 
rietal direita, caracterizando o acidente vascular ce- 
rebral isquêmico. Nesse caso, a lesão foi um achado 
de autópsia, uma vez que não havia relatos de ma- 
nifestações clínicas compatíveis com alterações no 
sistema nervoso central. 
Dessa forma, ainda que breve, observa-se que o 
“simples” caso de isquemia miocárdica permitiu não 
apenas identificar o edema pulmonar como causa ime- 
diata do óbito, mas também estudar os sítios anatô- 
micos comprometidos (hipertrofia e isquemia miocár- 
dica, ramo circunflexo da coronária, pulmão, artérias, 
região frontoparietal direita do cérebro etc.) e as alte- 
rações funcionais decorrentes ou envolvidas (resposta 
ao aumento da pré-carga, consequência da congestão 
pulmonar com aumento da pressão hidrostática, altera- 
ção de ventilação e perfusão pulmonar, base fisiopato- 
lógica da alteração da filtração glomerular nas doenças 
vasculares etc.), prever a possível evolução do quadro 
caso o paciente não fosse a óbito (insuficiência renal) 
e, finalmente, correlacionar os achados com os aspec- 
tos clínicos e laboratoriais, tendo uma visão integral 
do paciente (a alteração de condução pela isquemia e 
o eletrocardiograma, a dor e o processo inflamatório, 
a dispneia progressiva e o edema agudo de pulmão). 
Um fato interessante: por volta de 1900, Ludvig 
Hektoen realizou uma autópsia em um paciente do J. 
B. Herrick com uma doença que era comum, porém 
até então bem pouco entendida, conhecida como 
uma “miocardite crônica”. As discussões e os estu- 
dos adicionais de casos semelhantes levaram à pu- 
blicação, em 1912, do primeiro artigo mostrando o 
processo fisiopatológico do desenvolvimento do que 
passava a ser chamado, a partir daquele momento, 
infarto do miocárdio, desde o desenvolvimento da 
aterosclerose até a lesão miocárdica isquêmica e a in- 
flamação subsequente. Um caso semelhante ao que 
foi apresentado no exemplo anterior. 
Veja-se agora um exemplo, fazendo o raciocínio 
inverso, com poucas manifestações clínicas, ou com 
manifestações desconhecidas. São dados os achados 
da autópsia. O cérebro apresenta-se sem alterações 
macro e microscópicas, assim como o coração, que 
apresenta peso de 340 g (normal) sem alterações 
miocárdicas ou valvares. 
A autópsia revela pulmões com peso muito au- 
mentado (cerca de 950 g para cada pulmão); aos 
cortes, o pulmão apresenta perda da consistência es- 
ponjosa, com parênquima friável à dígito-pressão e 
áreas focais esbranquiçadas de condensação. Micros- 
 
copicamente, é possível observar áreas com espaços 
alveolares preenchidos por neutrófilos e, nas demais 
áreas, preenchimento alveolar parcial com conteúdo 
róseo finamente granular e amorfo, porém diferente 
do edema clássico, e discreto espessamento septal. 
Os aspectos são sugestivos de quadro infeccioso 
agudo e, se não fossem esses últimos componentes, 
uma análise menos criteriosa e sem correlação clínica 
poderia levar ao diagnóstico de pneumonia comum, 
caracterizada pelo preenchimento alveolar por infil- 
trado polimorfonuclear. Porém, a característica do 
conteúdo granular amorfo difere das pneumonias co- 
muns e, dessa forma, vem à mente a possibilidade de 
um agente infeccioso, mas não o pneumococo. Téc- 
nicas adicionais, como a coloração de Brown-Hopps 
(para bactérias) e histoquímica de Grocott (para fun- 
gos), permitiram identificar nesse material espumoso 
inúmeros microrganismos com parede celular corada 
pela prata, caracterizando a infecção pelo Pneumocys- 
tis jiroveci (antigamente Pneumocystis carinii). 
O esôfago apresentava placas esbranquiçadas em 
sua superfície. Ao exame microscópico, a coloração 
pelo Grocott evidenciou inúmeras hifas de fungos 
compatíveis morfologicamente com Candida sp. 
Os linfonodos torácicos e abdominais apresen- 
tavam-se em coloração esbranquiçada (em vez do 
acastanhado normal) e o fígado e o baço, inúmeras 
estruturas nodulares esbranquiçadas em sua superfí- 
cie. O exame microscópico evidenciou a presença 
de inúmeros granulomas malformados com inúmeros 
macrófagos e coroa linfocitária escassa. A coloração 
para bacilos álcool-acidorresistentes para Ziehl-Neel- 
sen mostrou-se positiva, caracterizando a infecção 
concomitante por microrganismos do gênero Myco- 
bacterium. Avaliação molecular posterior do tecido 
mostrou tratar-se do Mycobacterium avium-intracelullare. 
Na pele, foram encontradas inúmeras lesões ele- 
vadas e vinhosas cujo exame microscópico eviden- 
ciou tratar-se de proliferação de padrão vascular. A 
identificação de proteínas específicas mediante rea- 
ções in situ com anticorpos associados a cromógenos, 
conhecidas como imuno-histoquímica, confirmou o 
diagnóstico de uma neoplasia vascular rara denomi- 
nada sarcoma de Kaposi. 
A aorta e os demais vasos apresentavam-se prati- 
camente normais, apenas com algumas estrias lipoí- 
dicas, resultante do processo inicial de aterosclerose, 
porém sem sinais de enrijecimento da parede vascu- 
lar nem complicações como calcificação, ulcerações 
e tromboses. Os demais órgãos não apresentavam 
alterações macro ou microscópicas evidentes. 
Com base nos achados de autópsia, ainda que não 
se conheça a doença ou o conjunto dela, a observa- 
ção atenta permite algumas conclusões: 
1. trata-se de um paciente jovem (o que pode ser 
observado ao exame externo e também é corro- 
borado pelo fato de apresentar uma aorta quase 
sem aterosclerose); 
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2. o paciente apresenta um conjunto de doenças 
oportunistas (Candida sp, Pneumocystis e Myco- 
bacterium) que têm em comum o fato de terem a 
resposta imune celular como o mecanismo mais 
eficiente de defesa do hospedeiro, o que nos leva 
a pensar em um quadro de imunodeficiência que 
afete a imunidade celular; 
3. o quadro esofágico pode evidenciar alterações 
na endoscopia, bem como levar o paciente à dis- 
fagia. O quadro pulmonar com preenchimento 
alveolar difuso pelo material granuloso deve ser 
evidenciado na radiografia como um processo di- 
fuso, até mesmo com comprometimento intersti- 
cial, diferentemente das típicas pneumonias loba- 
res. Esse mesmo padrão de acometimento difuso 
deveria levar a um quadro de dispneia progressiva 
e o fato de a resposta neutrofílica ser apenas focal 
faria com que esse paciente não tivesse febre (já 
que há pouco TNF sendo liberado na região); 
4. a presença do sarcoma de Kaposi, que poderia ser 
considerado inicialmente uma doença isolada, ga- 
nha muita relevância nesse contexto, por compor 
também a síndrome. 
Assim, é possível, de forma objetiva e substancia- 
da, remontar a história de um paciente de cerca de 
30 a 40 anos que chega ao hospital com quadro de 
dispneia progressiva há um ou dois dias e tem tam- 
bém um quadro de disfagia e lesões vinhosas na pele. 
O exame físico deve mostrar raros estertores, sem ou 
com pouca febre. A radiografia pode mostrar proces- 
so intersticial difuso, com algumas áreas de conden- 
sação. A tomografia de tórax pode evidenciar melhor 
o processo difuso com áreas condensadas. Um lavado 
broncoalveolar poderia mostrar a presença do Pneu- 
mocystis jiroveci. O paciente evoluiu rapidamente com 
quadro de insuficiência respiratória aguda e óbito. 
Quadros semelhantes foram pela primeira vez 
identificados no final dos anos de 1970 e início de 
1980 nos Estados Unidos. A particularidade dos ca- 
sos, considerando os achados clínicos e patológicos e 
sua observação em diferentes indivíduos, levantou a 
suspeita de uma possível nova doença, que em pouco 
tempo se tornaria uma das mais importantes epide- 
mias da história da humanidade e que permanece até 
hoje sem tratamento, a síndrome da imunodeficiên- 
cia adquirida. O estudo dessas autópsias em conjun- 
to a todas as ferramentas auxiliares, bem como sua 
correlação com aspectos clínicos e laboratoriais, per- 
mitiu grande compreensão da doença, da correlação 
entre sua intensidade e o aparecimento das chamadas 
doenças oportunistas associadas e até mesmo do tipo 
de agente etiológico. Mais de 30 anos depois, essas 
autópsias continuam representando um desafio em 
virtude das diferentes manifestações possíveis e uma 
importante ferramenta na avaliação do real impacto 
dos tratamentos disponíveis para controle da doença 
do ponto de vista fisiopatológico. 
 
É possível citar incontáveis exemplos das mais de 
80 doenças ou grupos de doenças descritas e com- 
preendidas na segunda metade do século XX graças 
às autópsias realizadas. De grandes síndromes a pe- 
quenos “achados”, nada escapava aos olhares atentos 
de patologistas e clínicos. Todos esses aspectos mos- 
tram a veracidade da expressão de um dos patologis- 
tas do nosso país, que ressalta que, a despeito de ha- 
ver médicos (sejam eles clínicos, cirurgiões ou pato- 
logistas) desinteressados pela autópsia, não existem 
autópsias desinteressantes, já que todas elas trazem 
sua lição, contribuem para o aprendizado e enrique- 
cimento do conhecimento. Dessa forma, um achado 
desconhecido em uma autópsia para um desinteressa- 
do é só um achado, mas para um observador atento é 
uma hipótese diagnóstica, apenas o princípio de todo 
um raciocínio. 
Nos dizeres de George Lundberg, a autópsia: (1) 
estabelece a verdade, ao permitir avaliar exatamente 
o que aconteceu ao paciente, o que desencadeou a 
sua morte e qual foi sua causa imediata de fato; (2) de- 
tecta as mudanças, ao revelar particularidades da al- 
teração de órgãos específicos ou do organismo como 
um todo, que pode melhor explicar ou caracterizar as 
doenças; (3) provê dados e informações, base não só 
do conhecimento científico, como também da expe- 
riência médica; (4) instrui, ao permitir o aprendizado 
sistemático da medicina, de forma integral e indivisí- 
vel, como se apresenta diariamente ao médico, atre- 
lando e correlacionado os aspectos básicos de anato- 
mia e fisiologia com as alterações patológicas e sua 
repercussão do ponto de vista clínico, imagenológico 
e laboratorial; e (5) promove a justiça para com o pa- 
ciente – que tem seu quadro desvendado –, o médico 
– que se torna ciente de seus acertos e erros –, e a 
sociedade – por permitir a compreensão do processo 
de doença e possibilitar a tomada de decisões. 
Esses preceitos foram ainda mais tonificados com 
as mais modernas técnicas anatomopatológicas, imu- 
nológicas e moleculares. Atualmente, em uma autóp- 
sia, é possível partir do indivíduo de forma integral 
e mergulhar na doença, passando pelos aspectos clí- 
nicos, exames laboratoriais, exames de imagem, exa- 
me macroscópico dos órgãos e seu correspondente 
microscópico, técnicas histoquímicas para a identi- 
ficação de microrganismos e subprodutos, técnicas 
imuno-histoquímicas, hibridizações in situ, imunofluo- 
rescência, e chegar até a molécula mediante estudos 
de DNA e RNA, por meio das ferramentas de biolo- 
gia molecular disponíveis. Nunca a medicina teve a 
oportunidade de se aprofundar tanto nos males que 
acometem o ser humano. 
Com todas essas virtudes, era de se esperar que 
praticamente todos os pacientes falecidos nos hospi- 
tais fossem submetidos à autópsia, e era assim no tem- 
po de Osler e Virchow. Porém, atualmente esse per- 
centual tem diminuído drasticamente. Estudo recente 
mostrou uma queda destes de 80% na década de 1950 
Capítulo 18 
Autópsia e Patologia 
329 
 
 
 
 
para cerca de 20% atualmente nos Estados Unidos. 
No Brasil, não tem sido diferente. No Hospital das 
Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade 
de São Paulo, o índice de autópsias realizadas nas dé- 
cadas de 1970 e 1980 era de 80 a 90% dos óbitos. Esse 
índice caiu para cerca de 60% no final da década de 
1990 e, atualmente, encontra-se em torno de 25%. É 
uma queda relevante para um período curto de tempo 
e o mesmo ocorre em todas as partes do mundo. Re- 
velam-se como os principais motivos dessas quedas: 
a. muitos médicos acreditam, sem base científica, 
que os modernos exames de imagem melhoram a 
acurácia diagnóstica a ponto de tornarem a autóp- 
sia desnecessária. O fato é que diversos trabalhos 
evidenciam que os índices de discordância diag- 
nóstica (entre o diagnóstico pre-mortem e post-mor- 
tem) permanecem na casa dos 20%, mesmo valor 
dos obtidos nas décadas de 1950 e 1980, anterior 
ao desenvolvimento dessas técnicas de imagem; 
b. a diminuição do uso de autópsias nos cursos de 
graduação, por determinações curriculares ou le- 
gais, priva o aluno do conhecimento dessa mag- 
nífica ferramenta educacional, e ele, depois de 
formado, não vê a necessidade e a importância 
dela para seu crescimento técnico e profissional; 
c. é cada vez maior a recusa dos familiares em con- 
sentir a realização do exame. Essa recusa é nor- 
malmente baseada em alguns conceitos errados 
ou mal interpretados, como: (1) após a morte do 
paciente, o exame não traz nenhum benefício; (2) 
pode haver mutilação corporal; (3) atrasa os even- 
tos fúnebres; (4) os resultados não são adequada- 
mente comunicados; e (5) a retirada de fragmen- 
tos resultará em um corpo incompleto, não acei- 
tável para alguns conceitos de vida após a morte. 
Esses aspectos devem sempre ser trabalhados de 
forma consciente e respeitosa com os familiares, o 
que começa por um bom conhecimento do médi- 
co de como defender a realização do exame; 
d. a pressão pela perfeição do médico, inclusive em 
termos judiciais, tem amedrontado esses profis- 
sionais, evitando que estes solicitem o exame de 
autópsia que pode evidenciaralguma discordân- 
cia diagnóstica que pode ser interpretada poste- 
riormente como erro médico. 
 
 
 
 
 
 
 
 A 
 
 
 
 
 
 
 B 
 
 
 
 
 
 
 C 
Figura 18.1 Exemplo de angiotomografia post-mortem mos- 
trando (A e B) a fase arterial e (C) fase venosa. (Crédito da ima- 
gem: NUPAI-PISA/Departamento de Patologia/FMUSP.) 
 
Apesar desses aspectos, novos horizontes têm se 
aberto para a autópsia. Desde meados da década de 
1990, técnicas de imagem (radiografia, tomografia 
computadorizada e ressonância magnética) têm sido 
utilizadas em alguns centros para apoio ao diagnóstico 
em casos de autópsias por morte violenta – especial- 
mente para identificação de fraturas e trajetos de pro- 
jéteis de armas de fogo –, em alguns casos até mesmo 
substituindo a realização da autópsia – a chamada au- 
tópsia virtual ou “Virtopsy®”, como descrito pelos auto- 
res. Para os casos não forenses, objetos deste capítulo, 
o potencial das técnicas de imagem para complemen- 
tar a autópsia convencional ainda não está claro. São 
atualmente poucos os estudos que abrangem o tema, 
mostrando, ainda, incapacidade da tomografia compu- 
tadorizada e ressonância magnética, isoladamente ou 
em conjunto, para substituir a autópsia convencional. 
O uso adicional de angiotomografia post-mortem (Figu- 
ras 18.1 e 18.2) em um estudo recente de Wichmann e 
colaboradores mostrou que houve 88% de concordân- 
cia entre os diagnósticos clínicos e o da autópsia virtual 
(tomografia e angiotomografia), porém esta falhou em 
diagnósticos importantes, como de infarto do mio- 
cárdio, embolia pulmonar, câncer e trombose venosa 
profunda, causas muito comuns de serem encontradas 
nos diferentes serviços de autópsias pelo país. Em con- 
traste, neste mesmo estudo, as autópsias convencionais 
tiveram sensibilidade menor para o diagnóstico de der- 
rames pleurais e pericárdicos, além de pneumotórax. 
 
 
 
 
 
 
 
 A 
 
 
 
 
 
 B 
 
 
 
 
 
 C 
Figura 18.2 Correlação entre (A) angiotomografia coronariana post-mortem e (B e C) achados macroscópicos na autópsia em 
duas regiões distintas da artéria coronária. (Crédito da imagem: NUPAI-PISA/Departamento de Patologia/FMUSP.) 
P A T O L O G I A 
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O uso adicional e complementar de biópsias por agu- 
lha foi testado em alguns estudos de viabilidade mos- 
trando que a adição dessa técnica tem alta performance 
de diagnóstico para a detecção das causas mais comuns 
de morte, como pneumonia e septicemia, mas não 
consegue demonstrar doenças cardíacas agudas. 
Embora os estudos ainda sejam escassos, as pos- 
sibilidades de integração são promissoras e, na ex- 
periência do autor, os exames de imagem podem ser 
uma ferramenta complementar extremamente valiosa 
e que pode auxiliar e guiar o patologista para a rea- 
lização de uma autópsia mais completa e detalhada, 
além de possibilitar a realização de reconstruções de 
imagens para fins didáticos. 
Assim como Morgagni, Virchow, Osler, Lundberg 
e tantos outros pensavam, está claro que a autópsia 
tem importância capital não apenas para o paciente e 
seus familiares, mas também para a formação médica, 
desde os primeiros anos da graduação até a lapidação 
do profissional experiente, para a evolução do conhe- 
cimento científico e técnico sobre as doenças e, em úl- 
tima instância, para a melhoria da qualidade de vida da 
sociedade, na medida em que abre portas para o desen- 
volvimento de estratégias preventivas e terapêuticas. 
Sua realização deve ser não apenas estimulada, mas 
compreendida, potencializada com métodos comple- 
mentares disponíveis e valorizada como um dos mais 
sublimes atos do médico para com o paciente e como 
uma das maiores lições do paciente para o médico. 
 
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