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Capítulo 17 Autópsias, Biópsias, Citopatologia e Outros Métodos de Investigação em Patologia: O Que São e Como São Utilizados 325 “Venho analisando este caso por 2 meses, e o que me desaponta é que não poderei ver o exame post- -mortem.” Essa expressão dita por William Osler, um dos maiores expoentes da medicina moderna, ao seu amigo T. Archibald Mallock a respeito de si mesmo, em 1919, três semanas antes de sua morte, destaca de maneira objetiva e clara a relevância da autópsia para a medicina até os tempos atuais. As primeiras dissecções post-mortem de que se tem notícia ocorreram na Antiguidade, nas civilizações egípcia, persa e grega, geralmente relacionadas com aspectos mágico-religiosos, envolvendo a libertação de espíritos. Aristóteles (384-322 a.C.), com suas dis- secções de cadáveres de animais, contribuiu de forma relevante para o conhecimento anatômico, mas foi Erasistratus (304-250 a.C.), no Egito, quem primei- ro passou a buscar a origem das doenças nos órgãos internos. Mais tarde, as ideias de Galeno (130-200 d.C.) sobre os quatro humores e seu papel na origem das doenças, associadas à proscrição das dissecções de cadáveres, resultaram na interrupção da avaliação dos cadáveres na busca da origem e explicação das doenças, ainda que alguns poucos relatos de dissec- ção da época possam ser encontrados. Da mesma forma, na Idade Média, infrequentes autópsias são descritas em situações bastante específicas, como epidemias e situações de necessidades médico-legais. Apesar de as dissecações terem seu número au- mentando quando liberadas pela Igreja, durante o Renascimento até o século XVII, a falta de correlação com os aspectos clínicos impedia seu uso sistemáti- co para fins de evolução do conhecimento científico das doenças. Nessa época, os estudos de Leonardo da Vinci (1452-1519) e Andreas Vesalius (1514-1564) resultaram em grande ampliação dos conhecimen- tos de anatomia e fisiologia humana, detalhados de forma sublime e talentosa nos trabalhos artísticos de ambos. Foi no século XVIII que Giovanni Morgagni (1682-1771) inaugurou a “verdadeira história da au- tópsia”, passando a correlacionar os aspectos clínicos das doenças com as alterações encontradas nos dife- rentes órgãos, buscando a compreensão do proces- so patológico e de como as alterações morfológicas explicavam e corroboravam as alterações funcionais e consequentemente as manifestações clínicas. Esse conceito é até hoje a maior virtude da autópsia e o que a colocou na vanguarda da evolução do conhe- cimento médico da modernidade. Os trabalhos de Morgagni, especialmente “Sobre os lugares e as cau- sas das doenças anatomicamente verificadas” (1761), abriram as portas para uma nova interpretação das doenças, suas causas e consequências, motivo pelo qual ele é considerado o pai da anatomia patológi- ca. Seguiram-se a ele Jean Nicolas Corvisart (1755- 1821) e René-Theóphile Laennec (1781-1826), na França, Matthew Baillie (1761-1823), na Inglaterra, Carl von Rokitansky (1804-1878), na Áustria, que supervisionou mais de 50 mil autópsias, e Rudolf Virchow (1821-1902), na Alemanha. Os estudos aprofundaram-se, demonstrando que as alterações observadas nos órgãos macroscopicamente tam- bém apresentavam repercussões microscópicas, que muitas vezes justificavam ou explicavam a origem e as manifestações das doenças como um desarranjo complexo que pode ser observado por meio das alte- rações fisiológicas e anatômicas. Esses aspectos passaram a ser de interesse não apenas dos estudiosos de anatomia e fisiologia, mas também daqueles que lidavam no dia a dia com os pacientes, já que abriam as portas para a compreen- são da doença, criando a base do aprendizado. As- sim, era possível descobrir se o diagnóstico feito era o correto e tranquilizar-se, ou aprender mais para evitar que um erro se repetisse. Era justamente esse o Luiz Fernando Ferraz da Silva P A T O L O G I A p r o c e s s o s g e r a i s 326 conceito impetrado por William Osler (1849-1919), que, como um clínico brilhante, reconhecia desde o princípio a verdadeira importância da autópsia, ao dizer em sua tese de graduação: “Um dos mais ele- vados objetivos do médico é investigar as causas da morte, examinar cuidadosamente a condição dos ór- gãos e as alterações neles presentes identificando o que tornou impossível seu adequado funcionamento, e aplicar esses conhecimentos para a prevenção e o tratamento das doenças”. A maneira mais clara de compreender essa ex- pressão é observar como um caso que a princípio pode ser considerado do “dia a dia” atualmente pode ser visto sob outro prisma, o do exame post-mortem. Tome por exemplo um paciente do sexo masculino de 52 anos, obeso, com história de hipertensão há 12 anos, em uso irregular de inibidor da enzima con- versa de angiotensina (IECA), que veio ao pronto- -socorro com quadro de dor em pontada na região retroesternal há cerca de 30 horas, ainda persistente, porém de menor intensidade. O eletrocardiograma mostrou evidências de lesão isquêmica na parede la- teral e posterior. Na chegada ao hospital, o paciente apresentava dispneia progressiva, que evoluiu rapida- mente com instabilidade hemodinâmica e óbito. Durante a autópsia, notou-se uma pequena quan- tidade de líquido seroso na cavidade pericárdica. O exame do coração mostrou órgão aumentado de tamanho, pesando 520 g – um normal tem 350 g para a idade e o tamanho do indivíduo –, com aumento desproporcionalmente maior do ventrículo esquer- do. Esse achado está de acordo com o quadro de hipertensão irregularmente tratada do paciente. O aumento da pressão arterial implica um aumento da pós-carga do ventrículo esquerdo, que, por sua vez, sofre um processo de adaptação conhecido como hi- pertrofia (aumento do tamanho e espessura da fibras), o que garante, até certo ponto, maior poder de bom- ba para o coração, porém essa hipertrofia tem um cus- to: maior consumo de energia por parte do coração e maior dificuldade de condução do impulso elétrico. Ainda examinando o coração, foram avaliados em sua superfície os ramos coronarianos (ramo descen- dente anterior da coronária direita e ramos descen- dente posterior e circunflexo da coronária esquerda) cuja secção evidenciou obstrução de cerca de 60% da luz do ramo descendente posterior e de 70% da luz do ramo circunflexo pelas placas de ateroma. Parte dessa luz remanescente no ramo circunflexo estava ocupada por um trombo aderido à parede do vaso. A aterosclerose pode ser descrita basicamente como o processo de deposição de colesterol na camada su- bintimal dos vasos, associada a um processo inflama- tório na parede, que cronicamente evolui com fibrose e enrijecimento da parede do vaso. O processo, que pode ocorrer em qualquer artéria, tende a alterar o fluxo sanguíneo laminar, causando turbulência, au- mentando as forças de estresse sobre o endotélio e favorecendo as lesões endoteliais, que podem levar ao desenvolvimento de trombose, observada nesse paciente. A trombose em um vaso já parcialmente ocluído pelas placas levou a uma interrupção quase completa do fluxo sanguíneo, resultando em isque- mia e necrose, que foi observada na autópsia aos cortes do coração, como uma área amarelada com halo vinhoso na parede livre do ventrículo esquer- do. Nesse paciente, o quadro foi agravado pela hi- pertrofia, uma vez que quantidades maiores de oxi- gênio e nutrientes eram necessárias para o adequado funcionamento do coração. Essa área, observada ao microscópio, mostrou necrose de coagulação (infarto de padrão isquêmico) e intenso infiltrado inflamató- rio polimorfonuclear, característico dos quadros de necrose em contraste com os quadros de apoptose (veja Capítulo 3), com aumento da permeabilidade vascular na periferia da lesão, evidenciado macrosco- picamente pelo halo hiperemiado e pela presença delíquido seroso na cavidade pericárdica. Os pulmões estavam com seu peso aumentado (cerca de 500 g cada, para um normal de 300 g) e, à compressão, houve saída de líquido espumoso pelas vias aéreas; aos cortes, a presença de grande quanti- dade de líquido intra-alveolar, caracterizando o ede- ma. O acúmulo desse líquido nos espaços alveolares, que levou o paciente a uma insuficiência respiratória aguda, resultou de acúmulo de sangue na circulação pulmonar (uma vez que a função de bomba do ven- trículo esquerdo foi comprometida adicionalmente pelo infarto), com consequente aumento da pressão hidrostática e extravasamento de líquido ultrafiltrado para a luz do alvéolo. O surfactante presente permi- tiu a formação de pequenas bolhas com o ar rema- nescente na luz alveolar, o que deu a característica de líquido espumoso à compressão e que pôde ser obser- vado em grandes quantidades na luz das vias aéreas. O exame dos rins mostrou superfície finamente granular, sem alterações de tamanho ou peso, e o exame microscópico evidenciou a presença de alguns glomérulos hialinizados (substituídos por fibrose). O processo aterosclerótico (nesse caso, corrobo- rado com a hipertensão) leva a alterações do fluxo sanguíneo renal, com comprometimento da irrigação adequada dos glomérulos. Com o tempo, os glo- mérulos, um a um, vão sofrendo pequenas alterações decorrentes de eventos isquêmicos e da própria al- teração de fluxo, tornam-se não funcionantes e evo- luem com fibrose (glomeruloesclerose). Como em qualquer fibrose cicatricial, há tendência de retração, o que explica as pequenas depressões que passam a surgir nos rins desses pacientes. Dessa forma, fica fácil compreender que, com a evolução do processo, cada vez mais glomérulos são perdidos, até que o rim perde sua capacidade de filtração e entra em insuficiência. As artérias do paciente, incluindo a aorta, seus troncos principais e até mesmo os ramos mais distais encontravam-se acometidos com aterosclerose em di- Capítulo 18 Autópsia e Patologia 327 versas fases, desde placas baixas até áreas elevadas com ulceração, trombose e calcificação na parede do vaso. Fica claro que essas alterações favorecem o desenvolvi- mento de eventos isquêmicos em diversos órgãos, po- tencializa os efeitos da hipertensão arterial e até mesmo a agrava, uma vez que aumenta a rigidez dos vasos e, consequentemente, a resistência vascular periférica. No encéfalo do paciente, observou-se uma área de necrose de padrão liquefativo na região frontopa- rietal direita, caracterizando o acidente vascular ce- rebral isquêmico. Nesse caso, a lesão foi um achado de autópsia, uma vez que não havia relatos de ma- nifestações clínicas compatíveis com alterações no sistema nervoso central. Dessa forma, ainda que breve, observa-se que o “simples” caso de isquemia miocárdica permitiu não apenas identificar o edema pulmonar como causa ime- diata do óbito, mas também estudar os sítios anatô- micos comprometidos (hipertrofia e isquemia miocár- dica, ramo circunflexo da coronária, pulmão, artérias, região frontoparietal direita do cérebro etc.) e as alte- rações funcionais decorrentes ou envolvidas (resposta ao aumento da pré-carga, consequência da congestão pulmonar com aumento da pressão hidrostática, altera- ção de ventilação e perfusão pulmonar, base fisiopato- lógica da alteração da filtração glomerular nas doenças vasculares etc.), prever a possível evolução do quadro caso o paciente não fosse a óbito (insuficiência renal) e, finalmente, correlacionar os achados com os aspec- tos clínicos e laboratoriais, tendo uma visão integral do paciente (a alteração de condução pela isquemia e o eletrocardiograma, a dor e o processo inflamatório, a dispneia progressiva e o edema agudo de pulmão). Um fato interessante: por volta de 1900, Ludvig Hektoen realizou uma autópsia em um paciente do J. B. Herrick com uma doença que era comum, porém até então bem pouco entendida, conhecida como uma “miocardite crônica”. As discussões e os estu- dos adicionais de casos semelhantes levaram à pu- blicação, em 1912, do primeiro artigo mostrando o processo fisiopatológico do desenvolvimento do que passava a ser chamado, a partir daquele momento, infarto do miocárdio, desde o desenvolvimento da aterosclerose até a lesão miocárdica isquêmica e a in- flamação subsequente. Um caso semelhante ao que foi apresentado no exemplo anterior. Veja-se agora um exemplo, fazendo o raciocínio inverso, com poucas manifestações clínicas, ou com manifestações desconhecidas. São dados os achados da autópsia. O cérebro apresenta-se sem alterações macro e microscópicas, assim como o coração, que apresenta peso de 340 g (normal) sem alterações miocárdicas ou valvares. A autópsia revela pulmões com peso muito au- mentado (cerca de 950 g para cada pulmão); aos cortes, o pulmão apresenta perda da consistência es- ponjosa, com parênquima friável à dígito-pressão e áreas focais esbranquiçadas de condensação. Micros- copicamente, é possível observar áreas com espaços alveolares preenchidos por neutrófilos e, nas demais áreas, preenchimento alveolar parcial com conteúdo róseo finamente granular e amorfo, porém diferente do edema clássico, e discreto espessamento septal. Os aspectos são sugestivos de quadro infeccioso agudo e, se não fossem esses últimos componentes, uma análise menos criteriosa e sem correlação clínica poderia levar ao diagnóstico de pneumonia comum, caracterizada pelo preenchimento alveolar por infil- trado polimorfonuclear. Porém, a característica do conteúdo granular amorfo difere das pneumonias co- muns e, dessa forma, vem à mente a possibilidade de um agente infeccioso, mas não o pneumococo. Téc- nicas adicionais, como a coloração de Brown-Hopps (para bactérias) e histoquímica de Grocott (para fun- gos), permitiram identificar nesse material espumoso inúmeros microrganismos com parede celular corada pela prata, caracterizando a infecção pelo Pneumocys- tis jiroveci (antigamente Pneumocystis carinii). O esôfago apresentava placas esbranquiçadas em sua superfície. Ao exame microscópico, a coloração pelo Grocott evidenciou inúmeras hifas de fungos compatíveis morfologicamente com Candida sp. Os linfonodos torácicos e abdominais apresen- tavam-se em coloração esbranquiçada (em vez do acastanhado normal) e o fígado e o baço, inúmeras estruturas nodulares esbranquiçadas em sua superfí- cie. O exame microscópico evidenciou a presença de inúmeros granulomas malformados com inúmeros macrófagos e coroa linfocitária escassa. A coloração para bacilos álcool-acidorresistentes para Ziehl-Neel- sen mostrou-se positiva, caracterizando a infecção concomitante por microrganismos do gênero Myco- bacterium. Avaliação molecular posterior do tecido mostrou tratar-se do Mycobacterium avium-intracelullare. Na pele, foram encontradas inúmeras lesões ele- vadas e vinhosas cujo exame microscópico eviden- ciou tratar-se de proliferação de padrão vascular. A identificação de proteínas específicas mediante rea- ções in situ com anticorpos associados a cromógenos, conhecidas como imuno-histoquímica, confirmou o diagnóstico de uma neoplasia vascular rara denomi- nada sarcoma de Kaposi. A aorta e os demais vasos apresentavam-se prati- camente normais, apenas com algumas estrias lipoí- dicas, resultante do processo inicial de aterosclerose, porém sem sinais de enrijecimento da parede vascu- lar nem complicações como calcificação, ulcerações e tromboses. Os demais órgãos não apresentavam alterações macro ou microscópicas evidentes. Com base nos achados de autópsia, ainda que não se conheça a doença ou o conjunto dela, a observa- ção atenta permite algumas conclusões: 1. trata-se de um paciente jovem (o que pode ser observado ao exame externo e também é corro- borado pelo fato de apresentar uma aorta quase sem aterosclerose); P A T O L O G I A p r o c e s s o s g e r a i s328 2. o paciente apresenta um conjunto de doenças oportunistas (Candida sp, Pneumocystis e Myco- bacterium) que têm em comum o fato de terem a resposta imune celular como o mecanismo mais eficiente de defesa do hospedeiro, o que nos leva a pensar em um quadro de imunodeficiência que afete a imunidade celular; 3. o quadro esofágico pode evidenciar alterações na endoscopia, bem como levar o paciente à dis- fagia. O quadro pulmonar com preenchimento alveolar difuso pelo material granuloso deve ser evidenciado na radiografia como um processo di- fuso, até mesmo com comprometimento intersti- cial, diferentemente das típicas pneumonias loba- res. Esse mesmo padrão de acometimento difuso deveria levar a um quadro de dispneia progressiva e o fato de a resposta neutrofílica ser apenas focal faria com que esse paciente não tivesse febre (já que há pouco TNF sendo liberado na região); 4. a presença do sarcoma de Kaposi, que poderia ser considerado inicialmente uma doença isolada, ga- nha muita relevância nesse contexto, por compor também a síndrome. Assim, é possível, de forma objetiva e substancia- da, remontar a história de um paciente de cerca de 30 a 40 anos que chega ao hospital com quadro de dispneia progressiva há um ou dois dias e tem tam- bém um quadro de disfagia e lesões vinhosas na pele. O exame físico deve mostrar raros estertores, sem ou com pouca febre. A radiografia pode mostrar proces- so intersticial difuso, com algumas áreas de conden- sação. A tomografia de tórax pode evidenciar melhor o processo difuso com áreas condensadas. Um lavado broncoalveolar poderia mostrar a presença do Pneu- mocystis jiroveci. O paciente evoluiu rapidamente com quadro de insuficiência respiratória aguda e óbito. Quadros semelhantes foram pela primeira vez identificados no final dos anos de 1970 e início de 1980 nos Estados Unidos. A particularidade dos ca- sos, considerando os achados clínicos e patológicos e sua observação em diferentes indivíduos, levantou a suspeita de uma possível nova doença, que em pouco tempo se tornaria uma das mais importantes epide- mias da história da humanidade e que permanece até hoje sem tratamento, a síndrome da imunodeficiên- cia adquirida. O estudo dessas autópsias em conjun- to a todas as ferramentas auxiliares, bem como sua correlação com aspectos clínicos e laboratoriais, per- mitiu grande compreensão da doença, da correlação entre sua intensidade e o aparecimento das chamadas doenças oportunistas associadas e até mesmo do tipo de agente etiológico. Mais de 30 anos depois, essas autópsias continuam representando um desafio em virtude das diferentes manifestações possíveis e uma importante ferramenta na avaliação do real impacto dos tratamentos disponíveis para controle da doença do ponto de vista fisiopatológico. É possível citar incontáveis exemplos das mais de 80 doenças ou grupos de doenças descritas e com- preendidas na segunda metade do século XX graças às autópsias realizadas. De grandes síndromes a pe- quenos “achados”, nada escapava aos olhares atentos de patologistas e clínicos. Todos esses aspectos mos- tram a veracidade da expressão de um dos patologis- tas do nosso país, que ressalta que, a despeito de ha- ver médicos (sejam eles clínicos, cirurgiões ou pato- logistas) desinteressados pela autópsia, não existem autópsias desinteressantes, já que todas elas trazem sua lição, contribuem para o aprendizado e enrique- cimento do conhecimento. Dessa forma, um achado desconhecido em uma autópsia para um desinteressa- do é só um achado, mas para um observador atento é uma hipótese diagnóstica, apenas o princípio de todo um raciocínio. Nos dizeres de George Lundberg, a autópsia: (1) estabelece a verdade, ao permitir avaliar exatamente o que aconteceu ao paciente, o que desencadeou a sua morte e qual foi sua causa imediata de fato; (2) de- tecta as mudanças, ao revelar particularidades da al- teração de órgãos específicos ou do organismo como um todo, que pode melhor explicar ou caracterizar as doenças; (3) provê dados e informações, base não só do conhecimento científico, como também da expe- riência médica; (4) instrui, ao permitir o aprendizado sistemático da medicina, de forma integral e indivisí- vel, como se apresenta diariamente ao médico, atre- lando e correlacionado os aspectos básicos de anato- mia e fisiologia com as alterações patológicas e sua repercussão do ponto de vista clínico, imagenológico e laboratorial; e (5) promove a justiça para com o pa- ciente – que tem seu quadro desvendado –, o médico – que se torna ciente de seus acertos e erros –, e a sociedade – por permitir a compreensão do processo de doença e possibilitar a tomada de decisões. Esses preceitos foram ainda mais tonificados com as mais modernas técnicas anatomopatológicas, imu- nológicas e moleculares. Atualmente, em uma autóp- sia, é possível partir do indivíduo de forma integral e mergulhar na doença, passando pelos aspectos clí- nicos, exames laboratoriais, exames de imagem, exa- me macroscópico dos órgãos e seu correspondente microscópico, técnicas histoquímicas para a identi- ficação de microrganismos e subprodutos, técnicas imuno-histoquímicas, hibridizações in situ, imunofluo- rescência, e chegar até a molécula mediante estudos de DNA e RNA, por meio das ferramentas de biolo- gia molecular disponíveis. Nunca a medicina teve a oportunidade de se aprofundar tanto nos males que acometem o ser humano. Com todas essas virtudes, era de se esperar que praticamente todos os pacientes falecidos nos hospi- tais fossem submetidos à autópsia, e era assim no tem- po de Osler e Virchow. Porém, atualmente esse per- centual tem diminuído drasticamente. Estudo recente mostrou uma queda destes de 80% na década de 1950 Capítulo 18 Autópsia e Patologia 329 para cerca de 20% atualmente nos Estados Unidos. No Brasil, não tem sido diferente. No Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o índice de autópsias realizadas nas dé- cadas de 1970 e 1980 era de 80 a 90% dos óbitos. Esse índice caiu para cerca de 60% no final da década de 1990 e, atualmente, encontra-se em torno de 25%. É uma queda relevante para um período curto de tempo e o mesmo ocorre em todas as partes do mundo. Re- velam-se como os principais motivos dessas quedas: a. muitos médicos acreditam, sem base científica, que os modernos exames de imagem melhoram a acurácia diagnóstica a ponto de tornarem a autóp- sia desnecessária. O fato é que diversos trabalhos evidenciam que os índices de discordância diag- nóstica (entre o diagnóstico pre-mortem e post-mor- tem) permanecem na casa dos 20%, mesmo valor dos obtidos nas décadas de 1950 e 1980, anterior ao desenvolvimento dessas técnicas de imagem; b. a diminuição do uso de autópsias nos cursos de graduação, por determinações curriculares ou le- gais, priva o aluno do conhecimento dessa mag- nífica ferramenta educacional, e ele, depois de formado, não vê a necessidade e a importância dela para seu crescimento técnico e profissional; c. é cada vez maior a recusa dos familiares em con- sentir a realização do exame. Essa recusa é nor- malmente baseada em alguns conceitos errados ou mal interpretados, como: (1) após a morte do paciente, o exame não traz nenhum benefício; (2) pode haver mutilação corporal; (3) atrasa os even- tos fúnebres; (4) os resultados não são adequada- mente comunicados; e (5) a retirada de fragmen- tos resultará em um corpo incompleto, não acei- tável para alguns conceitos de vida após a morte. Esses aspectos devem sempre ser trabalhados de forma consciente e respeitosa com os familiares, o que começa por um bom conhecimento do médi- co de como defender a realização do exame; d. a pressão pela perfeição do médico, inclusive em termos judiciais, tem amedrontado esses profis- sionais, evitando que estes solicitem o exame de autópsia que pode evidenciaralguma discordân- cia diagnóstica que pode ser interpretada poste- riormente como erro médico. A B C Figura 18.1 Exemplo de angiotomografia post-mortem mos- trando (A e B) a fase arterial e (C) fase venosa. (Crédito da ima- gem: NUPAI-PISA/Departamento de Patologia/FMUSP.) Apesar desses aspectos, novos horizontes têm se aberto para a autópsia. Desde meados da década de 1990, técnicas de imagem (radiografia, tomografia computadorizada e ressonância magnética) têm sido utilizadas em alguns centros para apoio ao diagnóstico em casos de autópsias por morte violenta – especial- mente para identificação de fraturas e trajetos de pro- jéteis de armas de fogo –, em alguns casos até mesmo substituindo a realização da autópsia – a chamada au- tópsia virtual ou “Virtopsy®”, como descrito pelos auto- res. Para os casos não forenses, objetos deste capítulo, o potencial das técnicas de imagem para complemen- tar a autópsia convencional ainda não está claro. São atualmente poucos os estudos que abrangem o tema, mostrando, ainda, incapacidade da tomografia compu- tadorizada e ressonância magnética, isoladamente ou em conjunto, para substituir a autópsia convencional. O uso adicional de angiotomografia post-mortem (Figu- ras 18.1 e 18.2) em um estudo recente de Wichmann e colaboradores mostrou que houve 88% de concordân- cia entre os diagnósticos clínicos e o da autópsia virtual (tomografia e angiotomografia), porém esta falhou em diagnósticos importantes, como de infarto do mio- cárdio, embolia pulmonar, câncer e trombose venosa profunda, causas muito comuns de serem encontradas nos diferentes serviços de autópsias pelo país. Em con- traste, neste mesmo estudo, as autópsias convencionais tiveram sensibilidade menor para o diagnóstico de der- rames pleurais e pericárdicos, além de pneumotórax. A B C Figura 18.2 Correlação entre (A) angiotomografia coronariana post-mortem e (B e C) achados macroscópicos na autópsia em duas regiões distintas da artéria coronária. (Crédito da imagem: NUPAI-PISA/Departamento de Patologia/FMUSP.) P A T O L O G I A p r o c e s s o s g e r a i s 330 O uso adicional e complementar de biópsias por agu- lha foi testado em alguns estudos de viabilidade mos- trando que a adição dessa técnica tem alta performance de diagnóstico para a detecção das causas mais comuns de morte, como pneumonia e septicemia, mas não consegue demonstrar doenças cardíacas agudas. Embora os estudos ainda sejam escassos, as pos- sibilidades de integração são promissoras e, na ex- periência do autor, os exames de imagem podem ser uma ferramenta complementar extremamente valiosa e que pode auxiliar e guiar o patologista para a rea- lização de uma autópsia mais completa e detalhada, além de possibilitar a realização de reconstruções de imagens para fins didáticos. Assim como Morgagni, Virchow, Osler, Lundberg e tantos outros pensavam, está claro que a autópsia tem importância capital não apenas para o paciente e seus familiares, mas também para a formação médica, desde os primeiros anos da graduação até a lapidação do profissional experiente, para a evolução do conhe- cimento científico e técnico sobre as doenças e, em úl- tima instância, para a melhoria da qualidade de vida da sociedade, na medida em que abre portas para o desen- volvimento de estratégias preventivas e terapêuticas. Sua realização deve ser não apenas estimulada, mas compreendida, potencializada com métodos comple- mentares disponíveis e valorizada como um dos mais sublimes atos do médico para com o paciente e como uma das maiores lições do paciente para o médico. BIBLIOGRAFIA Garcia JH, Wilmes FJ. Autopsy: the path to progress. Pathologist. 1983;37:793-7. Grinberg LT, Ferraz da Silva LF, Galtarossa Xavier AC, Saldiva PHN, Mauad T. 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