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TEORIA DA NORMA 1. CARACTeRÍsTICAs DAs NoRMAs PeNAIs As normas penais possuem como características a generalidade, a abstração, a bila- teralidade. Uma vez que estabelecem direitos e obrigações, possuem, portanto, coercibi- lidade e imperatividade. Para Luís Regis Prado (2012), há duas funções nas normas penais, quais sejam: fun- ção valorativa (seleção dos bens que serão objetos de proteção penal) e função determi- nativa (imposição de “dever-ser”, seja como normas proibitivas, seja como normas man- damentais). O “dever-ser” representa um conteúdo deôntico das normas jurídicas, visa a “com- portamento humano passível de ser realizado pela generalidade das pessoas” (GUEIROS; JAPIASSÚ, 2020, p. 56). Dito de outro modo, a exigência da norma não pode ir além da capacidade humana para o seu efetivo cumprimento. Neste momento, é importante salientar o conceito de Direito Penal. Segundo o maior penalista português, Jorge Figueiredo Dias, Chama-se Direito Penal ao conjunto das normas jurídicas que ligam a certos comportamentos humanos, os crimes, determinadas consequências jurídicas privativas deste ramo de direito. A mais importante destas consequências– tanto do ponto de vista quantitativo, como qualita- tivo (social)– é a pena, a qual só pode ser aplicada ao agente do crime que tenha actuado com culpa. Ao lado da pena, prevê, porém, o Direito Penal, consequências jurídicas de outro tipo: são as medidas de segurança, as quais não supõem a culpa do agente, mas a sua periculosidade (DIAS, 2007, p. 03). 10 de 128 Dermeval Farias Quanto às prescrições normativas que formam o Direito e a ciência jurídica, é importante destacar que não são iguais. Direito e ciência jurídica não são a mesma coisa. A ciência jurí- dica descreve o Direito, não o prescreve. O Direito, por sua vez, por meio de normas gerais ou individuais, prescreve. Exemplo: um Tratado de Direito Penal (ciência jurídica) é diferente de um Código Penal (con- junto de normas prescritivas) (KELSEN, 2019). A ciência jurídica (doutrina penal, por exemplo), como conhecimento do Direito, possui ca- ráter constitutivo e, dessa forma, produz o seu objeto. As proposições normativas podem ser descritas e formuladas pela ciência jurídica, podendo ser verdadeiras ou falsas, enquanto as normas, estabelecidas pela autoridade jurídica, são válidas ou inválidas. Não se pode falar, por- tanto, em norma verdadeira ou falsa, mas somente em norma válida ou inválida (KELSEN, 2019). A ciência jurídica não prescreve as normas, apenas descreve as suas proposições. Tais proposições normativas descrevem normas de “dever-ser”. Este (da proposição jurídica) não tem um sentido prescritivo (como o da norma jurídica), mas um sentido descritivo (KELSEN, 2019). 2. FoNTes Do DIReITo PeNAL Fonte corresponde ao lugar onde nasce água, mas, no sentido figurado, significa “origem”, “causa” ou “princípio”. A “fonte do Direito Penal é, pois, aquilo de que ele se origina ou promana” (DIAS, 2007, p. 03). Em outras palavras, fonte do Direito Penal corresponde ao fato ou ato do qual se originam as normas incriminadoras e não incriminadoras. Segundo Kelsen: Fonte de Direito, é uma expressão figurativa que tem mais do que uma significação. Esta designação cabe não aos métodos acima referidos, mas a todos os métodos de criação jurídica em geral, ou a toda norma superior em relação à norma inferior cuja produção ela regula. Por isso, por fonte de Di- reito entender-se também o fundamento de validade de uma ordem jurídica, especialmente o último fundamento de validade, a norma fundamental. No entanto, efetivamente, só costuma designar-se como fonte o fundamento de validade jurídico-positivo de uma norma jurídica, que dizer, a norma jurídica positiva do escalão superior que regula a sua produção. Neste sentido, a Constituição é fonte das normas gerais produzidas por via legislativa ou consuetudinária (KELSEN, 2019, p. 259). Dermeval Farias No caso brasileiro, vale a informação do parágrafo anterior, principalmente no que diz res- peito ao Direito Penal até a expressão via legislativa, uma vez que o costume, no modelo legal brasileiro, não exerce o papel criador. De forma mais clara, para a generalidade das normas jurídicas, são fontes de produção normativa: constituição, convenções, tratados, leis, analogia, costume, jurisprudência e princípios gerais do direito. Para o Direito Penal, somente a lei é fonte primária (direta) de produção, em razão do prin- cípio da legalidade. De forma indireta, secundária, mitigada, são fontes de normas penais a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito. 2.1. FoNTe De PRoDUçÃo oU sUbsTANCIAL (MATeRIAL) A pergunta que se almeja responder no presente tópico é a seguinte: quem pode legislar sobre Direito Penal no Brasil? A lei penal no Brasil é produzida pela União, nos termos do artigo 22, inciso I, da CRFB. O referido dispositivo disciplina a competência da União para legislar so- bre diversas matérias, não somente Direito Penal. Portanto, a União é fonte de produção (fonte material) da norma penal incriminadora e não incriminadora. No parágrafo único do referido artigo 22 da CRFB, consta a possibilidade de a União dele- gar, por meio de Lei Complementar, matérias ali contidas para que o Estado da Federação e/ou o Distrito Federal possa legislar sobre elas. QUesTÃo 1 (INÉDITA/2020) O Estado-membro ou o Distrito Federal pode legislar sobre Direito Penal com autorização de Lei Complementar da União? Com uma interpretação literal do dispositivo, poderia se chegar a uma conclusão de que seria possível o Estado-membro legislar sobre Direito Penal desde que autorizado por lei comple- mentar da União. Dermeval Farias Parte da doutrina afirma que essas matérias específicas (parágrafo único do art. 22) são aquelas de interesse meramente local. Desse modo, entende-se que, pela doutrina penal brasi- leira, os Estados e o Distrito Federal não podem legislar sobre Direito Penal fundamental. Segundo Nucci (2008, p. 54), “o Estado jamais poderia legislar em matéria de Direito Pe- nal Fundamental (normas inseridas na Parte Geral do Código Penal, que devem ter alcance nacional, a fim de manter a integridade do sistema)”. O referido autor ainda afirma que o Esta- do-membro, na atividade legislativa, poderia compor lacunas existentes na legislação federal. Entretanto, o tema envolve muitos debates jurídicos, como posições opostas. Para Luiz Vicente Cernicchiaro (1991, p. 30), poderá ocorrer a delegação por lei complementar da União para o Estado-membro legislar sobre matéria de interesse específico, como, por exemplo, a proteção da vitória-régia na Amazônia, ou, como ensina Luiz Flávio Gomes (2003, p. 122), ao tratar de matéria específica, “uma regra penal sobre o trânsito de determinada localidade”. Há dois requisitos importantes apresentados no âmbito da doutrina do Direito Constitu- cional que merecem destaque, no que diz respeito ao parágrafo único do artigo 22 da CRFB. O primeiro é um requisito formal no sentido de que a União só pode delegar competência por meio de Lei Complementar “Federal”; o segundo requisito é material no sentido de que a ma- téria objeto da delegação deve tratar de pontos específicos do artigo 22. Com isso, não pode haver delegação genérica de competência de matérias relacionadas no referido dispositivo. Isto é, não pode a União delegar competência genérica de Direito do Trabalho para Esta- do-membro, apenas pode haver delegação de pontos específicos que deverão ser tratados no âmbito regional. Existe um terceiro requisito implícito da delegação apontado por Alexandre de Moraes (concordam com essa tese Pedro Lensa e Bernardo Gonçalves), qual seja, que deve existir correspondência entre a delegação referida no parágrafo único do artigo 22 e o inciso III do artigo 19, ambos da CRFB, ou seja, deve-se fazer uma interpretação sistemática entre esses dois dispositivos. O inciso III do artigo 19 da CRFB (grifos nossos) expressa: Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: III – criar distinçõesentre brasileiros ou preferências entre si. Dermeval Farias Segundo Alexandre de Moraes, como a União não pode instituir distinções entre um Estado e outro, entre um Estado e o Distrito Federal, se decidir concretizar a norma do parágrafo único do artigo 22, deverá fazê-lo para todos os Estados e para o Distrito Federal e, portanto, não poderá delegar para um ente e não delegar para outro ente federado. Dito de outro modo, certa vez, um governador do Rio Janeiro quis implementar um Direito Penal mais severo com o fim de combater “melhor” a criminalidade (Revista Exame, abril de 2014). Tal proposta não avançou, mas houve debates no âmbito doutrinário. Importa dizer que, por ora, o STF nada decidiu sobre delegação de matéria penal para Estado-membro ou para o Distrito Federal, conforme o artigo 22 da CRFB. No cenário ainda da doutrina constitucional, Pedro Lenza ensina que uma Emenda Cons- titucional poderia autorizar o Estado-membro a legislar sobre crimes e penas semelhante ao sistema nos EUA. Uma lei que fizesse isso seria inconstitucional. A única maneira de autorizar o Estado a estabelecer crime e pena seria por meio de uma Emenda Constitucional que não estaria ferindo a Federação, nem abolindo-a, mas reforçando-a (LENZA, 2008, p. 363-364). Quanto a uma nova divisão de competência por meio de uma emenda constitucional, não haveria óbice. O STF possui entendimento no sentido de que alterações pontuais podem ser feitas. O que não pode ser implemento é um rearranjo geral de todo o sistema constitucional de repartição de competências que desvirtue o modelo federativo de Estado. Sob esse aspecto, poderia existir uma nova divisão de competência penal por meio de emenda constitucional, possibilitando a referida atribuição a Estado-membro. Vamos um pouco além. O parágrafo único do artigo 22 da CRFB deve ser interpretado de forma restritiva, para abranger a possibilidade de delegação de matéria de exclusivo interesse local, do qual estaria fora o Direito Penal. Dito de outro modo, o Direito Penal, principalmente, em razão da peculiaridade de sua san- ção privativa de liberdade e da finalidade específica de proteção de bens jurídicos de maneira subsidiária e fragmentária, constitui um ramo do direito de interesse nacional, que não pode compreender como crime uma determinada conduta em um Estado da Federação e não fazê-lo em outro. Dermeval Farias Não acreditamos que o modelo diluído de competência penal, semelhante ao existente nos EUA, que possui uma formação história federativa centrípeta, diferente da brasileira, que é centrífuga, seja o melhor para um país que ainda possui relevantes desigualdades econômi- cas verificadas em todas as suas unidades federativas e muita desorganização no sistema de justiça criminal. A competência individual de cada Estado ou de alguns, em matéria penal, ge- raria maior desarranjo institucional, mais discussões sobre competência, uma vez que são 27 Unidades da Federação, e, por sua vez, maior morosidade e maior ausência de resposta penal. No Brasil, em matéria de execução penal, o Estado-membro pode criar faltas leve e média, entretanto não pode instituir falta grave, conforme redação contida no artigo 49 da Lei de Exe- cução Penal (Lei n. 7210/1984- LEP, grifo nosso): As faltas disciplinares classificam-se em leves, médias e graves. A legislação local especificará as leves e médias, bem assim as respectivas sanções. Parágrafo único. Pune-se a tentativa com a sanção correspondente à falta consumada. Sobre o tema, já decidiu o STJ: HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. PROGRESSÃO PARA REGIME SEMIABERTO. PEDIDO PREJUDICADO. FALTA GRAVE. PERDA DOS DIAS REMIDOS. POSSE DE APARE- LHO CELULAR ANTES DA LEI N. 11.466/2007. CONDUTA NÃO TIPIFICADA. PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS RIGOROSA. INCOMPETÊN- CIA ESTADUAL PARA LEGISLAR SOBRE FALTAS GRAVES. ORDEM PREJUDICADA EM PARTE E CONCEDIDA. 1. Antes do advento da Lei n. 11.466 de 29 de março de 2007, a posse de aparelho telefônico não constava do rol taxativo previsto no art. 50 da Lei de Execuções Penais, onde estão previstas as condutas caracterizadoras de falta disciplinar de natureza grave, razão pela qual não está autorizado o reconhecimento da falta por este motivo, sob pena de violação do princípio da legalidade e da irretroatividade da lei penal mais rigorosa. 2. Resolução da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo tipificando a conduta como falta grave não é suficiente para legitimar a decisão, pois nos termos do art. 49 da Lei n. 7.210/1984, a legislação local somente está autori- zada a especificar as condutas que caracterizem faltas leves ou médias e suas res- pectivas sanções. 3. Habeas corpus prejudicado em parte e, na parte remanescente, concedido para retirar a anotação da falta disciplinar ocorrida em 21/9/2005 e todos os efeitos dela decorrentes. (HC 155.372/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 02/08/2012, DJe 15/08/2012, grifo nosso). Ao tratar de crimes de responsabilidade, o STF, por meio da súmula 722, estabelece: “São de competência legislativa da União a definição dos crimes de responsabilidade e o estabele- cimento das respectivas normas de processo de julgamento”. Em síntese, por ora, fonte de produção do Direito Penal no Brasil é a União, ou seja, so- mente o Estado (União) é fonte material ou substancial do Direito Penal (NORONHA, 2000, p. 45). O Estado-membro e o Distrito Federal, exceto os Municípios, não possuem leis penais (lei incriminadora com preceito primário e secundário) em suas localidades. Tais entes podem, todavia, complementar normas penais em branco, em matérias, por exemplo, de saúde e de meio ambiente. 2.2. FoNTe FoRMAL oU De CoNheCIMeNTo oU De CogNIçÃo A fonte formal ou de conhecimento (cognição) é o meio pelo qual o Direito Penal se apre- senta à sociedade. É a que permite o conhecimento do direito. A fonte formal se classifica em fonte podendo ser mediata e em fonte imediata. 2.2.1. Fonte Direta (Imediata) No Brasil, a norma penal se apresenta pela lei. A lei penal, como regra, é a Lei Ordinária da União. Desse modo, a lei estrita da União é a fonte formal imediata. Tal afirmação dialoga com o princípio da legalidade, na dimensão da reserva legal, que foi visto no capítulo sobre princí- pios penais constitucionais. Admite-se, ainda, a previsão de crime em Lei Complementar da União. É certo que a Consti- tuição não autoriza a edição de Lei Complementar para tratar especificamente de Direito Penal, mas permite que, ao tratar de tema que lhe seja destinado pelo texto constitucional (exemplo: responsabilidade fiscal), possa trazer no seu bojo uma norma penal incriminadora. DIREITO PENAL - PARTE GERAL Teoria da Norma e Lei Penal no Tempo e no Espaço Dermeval Farias O conteúdo deste livro eletrônico é licenciado para Daniel Reis - 03585228461, vedada, por quaisquer meios e a qualquer título, a sua reprodução, cópia, divulgação ou distribuição, sujeitando-se aos infratores à responsabilização civil e criminal. www.grancursosonline.com.br 11 de 128 QUesTÃo 2 (INÉDITA/2020) Os Tratados ratificados também constituem fonte formal ime- diata do Direito Penal no Brasil? Para Luís Flávio Gomes, é pré-requisito de que o Decreto, que aprova o Tratado, seja publicado. Desse modo, além da lei, crime e pena podem ser definidos em um Tratado, ratificado pelo Brasil e publicado internamente (GOMES, 2003, p. 123). Por outro lado, André Estefan argumenta que a ratificação de Tratados pelo Brasil, com a con- sequente publicação interna da norma, não tem o condão de inserir tipos penais no ordena- mento nacional. Tal norma pode apenas trazer definições legais e recomendações de incrimi- nação, as quais devem ser analisadas pelo Congresso Nacional para eventual aprovação de leis (ATEFAM, 2010, p. 113). Sobre o tema, em decisão do STJ, observou-se a seguinte posição: STJ- INFO 659. Terceira Seção. TEMA: Crime contra a humanidade. Art. 7º do Estatuto de Roma. Tratado internacional internalizado pelo Decreto n.4.388/2002. Ausência de lei em sentido formal. Princípio da Legalidade. Art. 5º, XXXIX, da CF. Ofensa. É necessária a edição de lei em sentido formal para a tipificação do crime contra a huma- nidade trazida pelo Estatuto de Roma, mesmo se cuidando de Tratado internalizado. O conceito de crime contra a humanidade se encontra positivado no art. 7º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, o qual foi adotado em 17/07/1998, porém apenas passou a vigorar em 01/07/2002, quando conseguiu o quórum de 60 países ratificando a convenção, sendo internalizado por meio do Decreto n. 4.388/2002. No Brasil, no entanto, ainda não há lei que tipifique os crimes contra a humanidade, embora esteja em tramita- ção o Projeto de Lei n. 4.038/2008, que “dispõe sobre o crime de genocídio, define os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e os crimes contra a administração da justiça do Tribunal Penal Internacional, institui normas processuais específicas, dispõe sobre a cooperação com o Tribunal Penal Internacional, e dá outras providências”. Nesse con- texto, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se manifestar no sentido de que não é possível utilizar tipo penal descrito em tratado internacional para tipificar condutas internamente, sob pena de se violar o princípio da legalidade - art. 5º, XXXIX, da CF/1988 segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” - art. 5º, XXXIX, da CF/1988. Assim, tanto no Supremo Tribu- nal Federal como também no Superior Tribunal de Justiça, não obstante a tendência em se admitir a configuração do crime antecedente de organização criminosa - antes da entrada em vigor da Lei n. 12.850/2013 - para configuração do crime de lavagem de dinheiro, em virtude da internalização da Convenção de Palermo, por meio Decreto n. 5.015/2004, prevaleceu o entendimento no sentido de que a definição de organiza- ção criminosa contida na referida convenção não vale para tipificar o art. 1º, inciso VII, da Lei n. 9.613/1998 - com redação anterior à Lei n. 12.683/2012. De igual modo, não se mostra possível internalizar a tipificação do crime contra a humanidade trazida pelo Estatuto de Roma, mesmo se cuidando de Tratado internalizado por meio do Decreto n. 4.388/2002, porquanto não há lei em sentido formal tipificando referida conduta. REsp 1.798.903-RJ, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, por maioria, julgado em 25/09/2019, DJe 30/10/2019, grifos nossos. Portanto, as demais espécies normativas, quais sejam: Decreto, Resolução, Portaria, Me- dida Provisória e qualquer outra, que não seja lei em sentido estrito, não podem estabelecer tipo penal. Os tipos penais, anteriores à CRFB de 1988, instituídos por Decreto-Lei, são vá- lidos desde que não contrariem à Constituição. Os que não apresentaram incompatibilidade com a CRFB, em 1988, foram recepcionados. Se somente a Lei pode apresentar a conduta criminosa (constituir a norma penal incrimina- dora), se somente a União, por meio do Congresso Nacional, pode aprovar uma Lei penal in- criminadora (artigo 22 I da CRFB), por que o STF decidiu que a homofobia constitui crime de racismo (racismo social)? Dermeval Farias Entendemos que o STF violou a exigência de reserva legal contida no texto constitucional. Para compreender o sentido do princípio da legalidade penal, remetemos o leito ao PDF sobre prin- cípios penais e jurisprudência do STF e do STJ ao item legalidade e reserva legal. 2.2.2. Fonte Indireta (Mediata ou Secundária) São fontes indiretas do Direito Penal os costumes, os princípios gerais do direito e a juris- prudência. Essas fontes não prescrevem a norma incriminadora nem possuem o poder de criar ou de revogar a norma incriminadora. Na verdade, constituem fonte de interpretação do Direito Penal. Sobre as fontes mediatas ou indiretas, Noronha descreve: [...] como fonte imediata, grande número de autores aponta os costumes. Outros há, ainda, que colo- cam nessa espécie também a doutrina, a equidade e os princípios gerais do direito, a jurisprudência, a analogia e os tratados, havendo ainda os que incluem as providências administrativas, os regula- mentos, as instruções, circulares, posturas, recomendações, advertências da autoridade policial etc. (NORONHA, 2000, p.45-46). Do emprego dos costumes, não pode surgir um crime não previsto em lei. Os costumes, como fonte, segundo Estefam, somente incidem para ampliar a licitude penal: Os trotes acadêmicos, por exemplo, traduzem uma prática reconhecida e costumeira, de modo que possíveis infrações, como injúria (ex. referir-se ao calouro como bicho) ou constrangimento ilegal (ex. obrigar o novato a repetir cânticos satíricos contra a sua vontade), são consideradas permitidas à luz do art. 23, III, do CP (exercício regular de um direito)1. O exemplo anterior pode ser contestado. A liberdade de alguém no sentido de não querer participar do trote deve ser respeitada. Ademais, dependendo da intensidade do constrangi- mento e dos meios utilizados, referida conduta pode estar adequada a algum dos tipos penais previstos no Código Penal, como o constrangimento ilegal, a lesão corporal e outros. No tocante à jurisprudência, é importante observar que, por força da inovação decorrente da Emenda Constitucional 45 de 2004, com a introdução do artigo 103 A na CRFB, que permitiu a elaboração de súmulas vinculantes pelo STF, regulamentada pela Lei n. 11.417/2006, pode- 1 ESTEFAM, André. Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 71. DIREITO PENAL - PARTE GERAL Teoria da Norma e Lei Penal no Tempo e no Espaço O conteúdo deste livro eletrônico é licenciado para Daniel Reis - 03585228461, vedada, por quaisquer meios e a qualquer título, a sua reprodução, cópia, divulgação ou distribuição, sujeitando-se aos infratores à responsabilização civil e criminal. www.grancursosonline.com.br 14 de 128 Dermeval Farias -se dizer que existe hoje a interpretação jurisprudencial não vinculante e a interpretação judi- cial vinculante. Essa última é a que decorre de súmulas vinculantes do STF, as quais deverão ser obedecidas pelos juízes e tribunais de todo o país. A súmula vinculante terá eficácia imediata, mas razões de segurança jurídica ou de excep- cional interesse público autorizam o STF a restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenham eficácia a partir de outro momento, conforme art. 4º da Lei n. 11.417/2006. A Lei n. 11.417/2006 não veda a criação de súmula vinculante em matéria penal. Entretan- to, é importante advertir que a súmula não pode criar tipo penal, não pode constituir uma nor- ma penal incriminadora por força do princípio da reserva legal contido no art. 5º inciso XXXIX da CRFB. A súmula vinculante somente poderá interpretar o Direito Penal para afastar celeuma exis- tente. Tal interpretação poderá ocorrer no sentido agravador ou favorável ao agente. O intuito reside na uniformidade das decisões a partir da súmula vinculante, afastando, desse modo, a insegurança jurídica em muitos temas reinantes em matéria penal ou em outros ramos do direito. Ao tratar da súmula vinculante em matéria penal, Alberto Silva Franco adverte: Se tal conteúdo vier a agravar a situação do acusado, é evidente que não poderá atingir fatos ocorri- dos antes de sua publicação. No entanto, se se tratar de súmula de caráter penal, mais favorecedora do réu, sua retroatividade será inquestionável (FRANCO et al., 2007, p. 72). Não concordamos com a posição anterior defendida por Alberto Silva Franco. Isso porque a interpretação penal pode ser modificada ao longo do tempo, com a possibilidade de surgir um entendimento mais gravoso em matéria penal, que poderá ser aplicado a casos passados ainda não julgados e casos futuros. Não se trata de lei nova mais gravosa, mas de interpreta- ção da lei existente, que pode surgir via súmula vinculante ou não vinculante, ou mesmo em uma jurisprudência nova, decorrente de várias decisões em um mesmo sentido. Anota-se ainda que, por força do sistema de controle de constitucionalidade,é possível uma decisão do STF anular uma lei penal, bem como modular os seus efeitos. Logo, a afirma- ção de que a jurisprudência não revoga lei deve ser vista com reserva quando se pensa no sis- tema de controle de constitucionalidade de leis e atos normativos previsto na CRFB de 1988. Esse tema voltará a ser discutido nos pontos de discussão no final deste capítulo. 3. NoRMA PeNAL e LeI PeNAL Dermeval Farias Embora não seja costume de toda a doutrina apontar a diferença entre norma penal e lei penal, é certo que não se trata, do ponto de vista técnico, de expressões sinônimas. A lei é a forma de exteriorização da norma, ou seja, a norma precede à lei. A lei é a forma como a norma se apresenta à sociedade. Exemplo: a norma “não matarás” se apresenta no art. 121 do CP na forma “matar alguém”, pena-reclusão de 6 a 20 no homicídio simples, de 12 a 30 no homicídio qualificado. Desde já, é importante ressaltar que norma penal é diferente de lei penal. A norma apre- senta um comando, mandamental ou proibitivo, anterior à lei. A lei é a forma como a norma se apresenta à sociedade. Para o Luís Regis Prado, a norma constitui: [...] pressuposto ou prius lógico da lei, sendo esta o revestimento formal daquela daquela. A norma jurídica, quando elaborada pelo órgão legislativo competente, segundo os ditames constitucionais, apresenta-se sob a forma, por exemplo, de lei ordinária. [...] a lei, em sentido técnico jurídico, deve ser entendida como uma fonte do Direito positivo, um meio ou instrumento, com caracteres especí- ficos, de produção de norma jurídica. É ela um modo de revelação ou de exteriorização racional da norma” (PRADO, 2012, p. 208, grifos nossos). É importante destacar uma peculiaridade da lei penal, qual seja: quando uma pessoa, ao re- alizar uma conduta criminosa, não contraria a lei, ou seja, a conduta não é contrária à lei, exem- plo: artigo 121, caput do CP, matar alguém. Caio, com animus necandi (vontade de matar), fa- zendo uso de uma arma de fogo, efetuou disparos e matou Maria. Caio, com sua conduta, não contrariou a lei, mas contrariou a norma, o pressuposto lógico da lei, qual seja “não matarás” (OLIVÉ et al., p. 79). Na linguagem usual dos manuais de Direito Penal no Brasil, nem sempre é dada a devida aten- ção ao sentido exato de tais palavras. Não raro, a lei é usada com o sentido de norma, e a nor- ma é usada com o sentido de lei. O uso mais corrente se revela no uso de norma para se referir à lei. Por isso, nesse material, em razão de sua finalidade, não vamos precisar sempre o que é lei e o que é norma. Dermeval Farias Dito de outro modo, nas linhas abaixo, também vamos nos referir em alguns momentos à lei com o uso do termo “norma”, buscando uma melhor comunicação com o leitor. De antemão, já colocamos o sentido estrito de lei e norma nos parágrafos anteriores. 3.1. ANoMIA O termo “anomia” significa “ausência de lei”, bem como a situação caracterizada pela exis- tência de leis que não são cumpridas, ou seja, no segundo caso, quando ocorrem fatos que ofendem as normas, mas não há resposta estatal. Em síntese, a anomia corresponde a um quadro de inexistência de normas ou a um quadro de descumprimento das normas existentes pela sociedade. Segundo Sérgio Salomão Shecaira: Haverá anomia, compreendida como ausência ou desintegração das normas sociais, sempre que os mecanismos institucionais reguladores do bom gerenciamento da sociedade não estiverem cum- prindo seu papel funcional [...]. O crime, por sua vez, é um fenômeno normal de toda estrutura social (SHECAIRA, 2004, p. 219). Assim, segundo determinado setor da doutrina, a inflação legislativa penal provoca ano- mia, já que muitas normas não são conhecidas da sociedade, e outras são desnecessárias, uma vez que a solução do conflito, nesses casos, poderia ser obtida com eficácia em outros ramos do direito. Esse quadro gera a sensação de impunidade e enfraquece o Direito Penal, o qual deveria atuar de forma célere somente na tutela dos bens jurídicos principais. 3.2. ANTINoMIA A antinomia corresponde à relação de incompatibilidade entre duas normas situadas no mesmo ordenamento jurídico, que possuam o mesmo âmbito de validade. Na classificação de Noberto Bobbio, se as duas normas incompatíveis possuem o mesmo âmbito de validade, pode-se falar, com apoio em Alf Ross, em antinomia total-total; se tem o âmbito de validade em parte igual e em parte diferente, pode-se falar em antinomia parcial- -parcial; se tem o âmbito de validade igual ao da outra, no entanto mais restrito, denomina-se antinomia total-parcial (BOBBIO, 2014, p. 91). Dermeval Farias Noberto Bobbio (2014, p. 98-99) ensina que a relação de contrariedade entre essas normas deve ser solucionada com os critérios: · cronológico - a norma posterior revoga a anterior; · hierárquico - chamado de Lei Superior, segundo o qual, entre duas normas incompatí- veis, prevalece a de hierarquia superior; · especialidade - norma especial prevalece sobre norma geral, aplica-se, portanto, a uma situação de antinomia total-parcial, devendo ser aplicado quando os critérios anteriores não forem suficientes, por exemplo, quando duas leis ordinárias são editadas ao mesmo tempo, a segunda prevalece sobre a primeira. O referido autor ainda acentua que os critérios anteriores são insuficientes quando as nor- mas incompatíveis são contemporâneas, do mesmo nível e gerais. Nessa situação, os critérios cronológico, hierárquico e da especialidade não resolvem a antinomia (BOBBIO, 2014, p. 98). Importa observar que esses critérios propostos por Bobbio são compatíveis com nosso ordenamento jurídico, seja do ponto de vista constitucional, seja sobre o enfoque da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Em todo o caso, não se pode esquecer do princípio constitucional insculpido no art. 5º inciso XL da CRFB (irretroatividade maléfica e retroatividade benéfica) quando se tratar de aplicação do critério cronológico às normas penais contraditórias. Esse tema será tratado com mais detalhes no item “Sucessão de leis no tempo”. É importante acrescentar que o tema ainda é desenvolvido dentro do estudo denominado conflito aparente de normas descrito pela doutrina penal, quando se analisam os princípios da especialidade, subsidiariedade, consunção e alternatividade, os quais serão vistos adiante. Dermeval Farias 4. CLAssIFICAÇÃo DAs NoRMAs PeNAIs (INCRIMINADoRAs, NÃo INCRIMINADoRAs, PeRMIssIvAs, CoMPLeTAs, INCoMPLeTAs, ReMeTIDAs) De forma usual, a doutrina nacional classifica as normas penais em duas espécies: incrimi- nadoras e não incriminadoras. As normas penais incriminadoras, denominadas “normas penais em sentido estrito” ou “completas”, são aquelas que tipificam determinadas condutas e estabelecem penas (PRADO, 2012). Em outras palavras, são as que possuem preceito primário e preceito secundário, ou, conforme leciona Regis Prado (2012, p. 177): “prótase (hipótese legal); e apódose (consequ- ência jurídica)”. As normas não incriminadoras não possuem preceitos primário (conduta) e secundário (pena). Elas constituem normas gerais do Direito Penal e se classificam em: permissivas (jus- tificantes e exculpantes), finais, complementares ou explicativas. Para determinado setor da doutrina, as normas permissivas são somente as excludentes de ilicitude que autorizam, portanto, a lesão ao bem jurídico em determinadas situações, nos termos dos arts. 23, 24 e 25 do CP. Importa alertar que, na parte especial, o legislador também estipulou excludentes, como no art. 128, I etc. Essa é posição de Fernando Capez (2007, p. 30), o qual, ao tratar das normas permissi- vas, afirma que elas “tornam lícitas determinadas condutas tipificadas”. No mesmo sentido, Luiz Flávio Gomes se refere às normas permissivas ao dizer que “são as que descrevem uma causa de exclusão da ilicitude” (GOMES, 2003, p. 140). Esse autor tem nova opinião no livro em parceria com o Molina, diferenciando normas permissivas (afastam a tipicidade) de normas justificantes (afastam a ilicitude), posição diversa da doutrina brasileira.Portanto, tais autores não consideram que os artigos que excluem a culpabilidade façam parte das normas permissivas. Não concordamos com a posição anterior. Tanto os artigos que excluem a ilicitude da conduta quanto os dispositivos que afastam a culpabilidade são normas permissivas. Ou seja, a norma exculpante do art. 22 que trata da coação moral irresistível e da obediência à ordem Dermeval Farias não manifestamente ilegal é permissiva. No mesmo sentido, citando os arts. 26 caput e 28 §1º, Rogério Greco (2010, p. 24), É possível dizer que as normas permissivas trazem exceções à obrigatoriedade de outras nor- mas que estabelecem obrigações ou proibições. Em sentido semelhante, Regis Prado e Nober- to Bobbio. QUesTÃo 3 (INÉDITA/2020) Como se dividem as normas permissivas? As normas permissivas podem ser classificadas em: justificantes – afastam a ilicitude da con- duta (ex.: arts. 23 a 25; e 128, I); e exculpantes – afastam a culpabilidade da conduta (ex.: arts. 26, caput, e 22). Para determinado setor da doutrina, as normas permissivas são somente as excludentes de ilicitude que autorizam, portanto, a lesão ao bem jurídico em determinadas situações, nos termos dos arts. 23, 24 e 25 do CP. Essa é posição de Fernando Capez, que, ao tratar das nor- mas permissivas, afirma que elas “tornam lícitas determinadas condutas tipificadas em leis incriminadoras. Exemplo: legítima defesa” (2011, p. 49). No mesmo sentido, em uma de suas obras, Luiz Flávio Gomes, ao se referir às normas permissivas, diz que “são as que descrevem uma causa de exclusão da ilicitude” (GOMES, 2003, p. 140). Por outro lado, é possível sustentar que tanto os artigos que excluem a ilicitude da conduta quanto os dispositivos que afastam a culpabilidade são espécies de normas permissivas. Des- se modo, a norma exculpante do art. 22, que trata da coação moral irresistível e da obediência à ordem não manifestamente ilegal, é permissiva. Possui raciocínio semelhante Rogério Greco, citando como normas permissivas exculpantes os arts. 26, caput, e 28, §1º (GRECO, 2011, p. 20). Importa ressaltar que há muita divergência sobre a classificação das normas permissivas. Há quem se limite a dizer que as normas finais, complementares ou explicativas são as que “esclarecem o conteúdo de outras normas e delimitam o âmbito de sua aplicação. Exem- Dermeval Farias plo: arts. 1º, 2º e todos os demais da Parte Geral, à exceção dos que tratam das causas de exclusão da ilicitude” (CAPEZ, 2007, p. 30). É importante ressalvar que, na Parte Especial do Código Penal também existem normas explicativas, conforme artigos 127 (conceito de funcionário público) e 150 § 4º (conceito de casa). Outra classificação das normas penais as divide em completas e incompletas. Completas são aquelas normas incriminadoras que não necessitam de complemento no preceito primário nem no preceito secundário. Já as normas incompletas se classificam de duas formas: incompletas no preceito se- cundário (normas penais remetidas ou normas penais em branco ao avesso); incompleta no preceito primário (normas penais em branco). Incompletas ou imperfeitas no preceito secundário são as normas que possuem a pena remetida para outra norma (exemplos: art. 1º da Lei n. 2.889/1956; inciso II do art. 4º da Lei n. 1579/1952; artigo 304 do Código Penal). Possuem a conduta narrada, mas não possuem a pena na sua descrição. A sanção é prevista em outra norma que se faz referência na norma incompleta. Mas é possível afirmar que as normas penais em branco também são incompletas. Não são incompletas no preceito secundário, mas no preceito primário, o qual é indeterminado e, portanto, necessita de complementação. As normas penais em branco podem ser homogêneas ou impróprias ou em sentido amplo (complemento na mesma fonte legal) e heterogêneas ou próprias ou sentido estrito (comple- mento em fonte diversa da lei). As normas penais em branco homogêneas são complementadas por norma da mesma fonte legislativa, ou seja, Lei que complementa Lei. Exemplo: o artigo 237 do Código Penal é complementado pelo artigo 1521 do Código Civil. As normas penais em branco homogênea podem ser divididas ainda em homovitelínea (com- plemento na mesma lei) e heterovotelínea (complemento em leis diferentes). As normas penais em branco heterogêneas são complementadas por fonte diversa da lei. Dermeval Farias Exemplo: Portaria 344 da ANVISA que complementa o termo “droga” dos artigos 33, 28 e outros da Lei n. 11343/2006. Essa norma penal em branco decorre da dinâmica da sociedade, que necessita em situações específicas de complemento normativo avindo de fonte diferente do Congresso Nacional. Isso ocorre também em preceito da lei n. 9605/1998 (Meio Ambiente) que é complementada, em determinados tipos penais, por Portaria do Ibama. Vale destacar que o complemento normal de uma norma penal em branco retroage se for benéfico e, por outro lado, não terá retroatividade se for maléfico. Exemplo disso é Info 578 do STF, quando a Corte decidiu pela retroatividade de modifica- ção na Portaria da Anvisa em relação ao lança perfume: INFO 578 STF Abolitio Criminis e Cloreto de Etila – 1 e 2 A Turma deferiu habeas corpus para declarar extinta a punibilidade de denunciado pela suposta prática do delito de tráfico ilícito de substância entorpecente (Lei n. 6.368/1976, art. 12) em razão de ter sido flagrado, em 18.2.98, comercializando frascos de cloreto de etila (lança-perfume). Tratava-se de writ em que se discutia a ocorrência, ou não, de abolitio criminis quanto ao cloreto de etila ante a edição de resolução da Agência Nacio- nal de Vigilância Sanitária - ANVISA que, 8 dias após o haver excluído da lista de subs- tâncias entorpecentes, novamente o incluíra em tal listagem. Inicialmente, assinalou-se que o Brasil adota o sistema de enumeração legal das substâncias entorpecentes para a complementação do tipo penal em branco relativo ao tráfico de entorpecentes. [...] Em suma, assentou-se que, a partir de 7.12.2000 até 15.12.2000, o consumo, o porte ou o tráfico da aludida substância já não seriam alcançados pela Lei de Drogas e, tendo em conta a disposição da lei constitucional mais benéfica, que se deveria julgar extinta a punibilidade dos agentes que praticaram quaisquer daquelas condutas antes de 7.12.2000. HC 94397/BA, rel. Min. Cezar Peluso, 9.3.2010 (HC-94397), grifos nossos. Todavia, caso o complemento de uma norma penal em branco seja anormal, isto é, guarde semelhança com a norma excepcional ou temporária, seja um complemento para regular uma situação específica, temporária ou excepcional, haverá a mesma interpretação dada às nor- mas excepcionais e temporárias, ou seja, o complemento terá ultratividade. Dermeval Farias Exemplo: tabela de preço para controlar a inflação, caso o comerciante venda a mercadoria acima do preço tabelado, será julgado com base na norma da época do fato, a qual terá ultrativi- dade. Isso vale ainda para situações específicas, como, por exemplo, complemento excepcional (se vincula à cessação das circunstâncias) ou temporário (tem prazo de vigência no bojo) nos casos do artigo 268 do CP, para conter o COVID-19. A pessoa que descumpre a medida especifi- cada no complemento, responderá pelo fato. O referido complemento tem ultratividade. Vale ainda ressaltar, que dentro de suas competências, Estados e Municípios podem com- plementar normas penais em branco. Exemplos: áreas de saúde e de meio ambiente. 5. INTeRPReTAÇÃo, APLICAÇÃo e INTegRAÇÃo DA NoRMA No estudo da interpretação, a doutrina brasileira menciona a metodologia tradicional, a in- terpretação analógica, o brocardo in dubio pro reu e a interpretação moderna guiada pelos prin- cípios, influenciada por uma visão neoconstitucionalista, bem como o critério de integração caracterizado pelo uso da analogia em favor do réu. É certo ainda que as construções da dogmática penal exercem grande influência na ati- vidade de interpretação ou, pelo menos, deveriam exercer. Nessa perspectiva, são relevantes funções da dogmática penal: função argumentativa,que possui relação com a necessidade de uso dos institutos dogmáticos na construção de decisões penais; e função de segurança jurídica, tanto na tutela de bens jurídicos penais individuais quanto no cenário da proteção de bens jurídicos supraindividuais (GOMES FILHO, 2019). 5.1. MoDeLo TRADICIoNAL Quando se fala do modelo tradicional de interpretação, nos diferentes ramos que compõem o ordenamento jurídico, é comum a apresentação da classificação que envolve a interpretação quanto à fonte, ao meio e ao resultado. A interpretação quanto à fonte se divide em: Dermeval Farias · Doutrinária, a qual feita pelos juristas, por exemplo, nos manuais de Direito Penal, civil, empresarial, constitucional etc.; · Judicial, que é realizada pelos juízes e tribunais em suas decisões; · Autêntica, que é aquela produzida pelo próprio legislador no bojo da norma legal que fora aprovada. A intepretação quanto ao meio se divide em: · Histórica, a qual leva em conta os acontecimentos da época em que foi produzida a lei; · Sistemática, que indica uma comunicação ou um diálogo entre dispositivos legais, de modo a alcançar toda a abrangência de um texto legal, evitando o uso de artigos iso- lados quando tal escolha puder impedir o alcance do verdadeiro sentido do texto legal; · Teleológica, ou seja, leva em conta a finalidade da lei; · Literal ou gramatical, isto é, examina o texto apenas com o sentido expresso de sua lin- guagem, caracteriza-se pela “busca do sentido das palavras utilizadas pelo legislador” (GOMES; MOLINA, 2007, p. 75). Quanto ao resultado, a interpretação pode ser: · Declarativa, no sentido escrito no texto legal, sem alargar ou diminuir o seu alcance; · Restritiva, a qual é usada quando a lei disse mais do que queria, de modo que compete ao intérprete reduzir o seu significado; · Extensiva, usada quando a lei disse menos do que deveria, de forma que o intérprete estenda o seu alcance. Todo o modelo tradicional de classificação tem aplicação ao Direito Penal, entretanto não abriga todos os problemas penais. A doutrina penal, dessa forma, propõe outras alternativas, as quais devem ser conjugadas com a classificação tradicional, com a finalidade de extrair o melhor sentido da legislação, com respeito aos princípios estruturantes, garantidores da corre- ta aplicação do Direito Penal, vistos em outro capítulo. 5.2. MoDeLo Novo No modelo tradicional, os livros clássicos costumam falar em interpretar para extrair a res- posta correta, como se, segundo Queiroz (2006), houvesse um único sentido possível ao texto legal, ou seja, a tarefa compreendia a missão de extrair o espírito da lei. Hoje, em um denominado modelo mais recente de interpretação, desvinculado da Escola da Exegese, separado de um raciocínio unicamente silogista, observa-se, com variadas linhas filosóficas, o uso da ferramenta axiológica e a abertura do sistema jurídico, que permitem ao intérprete construir a solução jurídica adequada para o caso concreto, diante de várias possibi- lidades, de várias alternativas possíveis. Nesse novo ambiente, no âmbito do Direito Penal, diante de novas classes de bens jurídi- cos, que exigem novos institutos jurídicos, inexistentes nos séculos XVIII e XIX, para concreti- zar a sua aplicação, a ciência jurídico-penal se debruça para descrever proposições capazes de solucionar as querelas jurídicas. Diante disso, surgiram novos princípios para auxiliar os operadores do Direito Penal na interpretação de casos concretos, conforme visto no capítulo sobre princípios penais e juris- prudência do STF e do STJ (PDF), bem como novas técnicas de interpretação, como a interpre- tação progressiva, a qual, segundo Molina e Luís Flávio Gomes, significa o seguinte: Interpretação progressiva: a lei deve ser interpretada de acordo com os progressos da cultura, da sociedade, dos recursos tecnológicos, das ciências, da medicina, da computação etc. O fundamen- to da interpretação progressiva ou evolutiva ou adaptativa, como se vê, é o princípio dinâmico. Também são levadas em conta as evoluções econômicas, fiscais, monetárias etc. Por exemplo: diz o artigo 11 do Código Penal que não são computáveis na pena as frações de cruzeiro. Em razão da mudança do padrão monetário brasileiro, hoje devemos interpretar (progressivamente) essa locu- ção como frações de um real (que são os centavos) (GOMES; MOLINA, 2007, p. 76, grifos nossos). Novos institutos, novos princípios implícitos e novas ferramentas de linguagem também são observados atualmente na busca de soluções para os problemas penais no que diz respei- to à interpretação, tanto das normas incriminadoras, quanto das normas não incriminadoras, ou seja, a título de exemplo: princípio da insignificância, princípio da proibição da tutela penal deficiente, tipicidade conglobante e teoria da imputação objetiva. DIREITO PENAL - PARTE GERAL Teoria da Norma e Lei Penal no Tempo e no Espaço Dermeval Farias O conteúdo deste livro eletrônico é licenciado para Daniel Reis - 03585228461, vedada, por quaisquer meios e a qualquer título, a sua reprodução, cópia, divulgação ou distribuição, sujeitando-se aos infratores à responsabilização civil e criminal. www.grancursosonline.com.br 25 de 128 QUesTÃo 4 (QUESTÃO INÉDITA/2020) Qual seria, em breves linhas, a proposta metodológi- ca para um padrão equilibrado de interpretação do Direito Penal? A interpretação do Direito Penal clássico seguiu o modelo quanto à fonte (doutrinária, judicial e legal), aos meios (histórico, gramatical/literal, sistemático, teleológico) e ao resultado (decla- rativo, extensivo, restritivo). Com os acréscimos do uso da analogia somente em favor do réu e do princípio in dubio pro reu quando houvesse dúvida sobre as opções existentes. Com o advento do neoconstitucionalismo e das contribuições funcionalistas teleológicas com suas abordagens de política criminal, observou-se o surgimento da interpretação penal constitucional sedimentada em princípios constitucionais explícitos e implícitos com dupla função, quais sejam: orientar a produção legislativa e a aplicação do Direito Penal. De todo modo, não se pode esquecer a vinculação à legalidade, reserva legal, irretroativida- de (salvo retroatividade benéfica), como princípios clássicos do Direito Penal, acompanhados atualmente da dignidade da pessoa humana, humanidade das penas, proporcionalidade, insig- nificância e outros. Deve-se buscar ainda evitar valorações subjetivas que fujam por completo da realidade apresentada, bem como o casuísmo sem pacificação dos conflitos nos Tribunais Superiores, gerador de insegurança jurídica. 5.3. ANALoGIA A analogia constitui um recurso de integração diante de lacuna legislativa, que se carac- teriza pelo uso, para um caso não regulado pelo ordenamento, de norma legal que rege caso semelhante. No Direito Penal, é possível o uso da analogia em benefício do processado, ou do réu, como se diz na doutrina penal. Já decidiu o STJ: [...] 4. O delito previsto no art. 293, § 1º, III, “b”, do Código Penal - em que incorreram os pacientes, em razão da conduta de manter em depósito, no exercício de atividade comer- cial, garrafas de bebida alcoólica sem o selo obrigatório do IPI - está inserido no Capítulo II do Título X do Código Penal, que trata dos crimes contra a fé pública. Apesar disso, observa-se que o bem jurídico tutelado por esse crime não é a fé pública. Trata-se, na verdade, de crime praticado em detrimento apenas da ordem tributária, direcionado tão somente ao combate à sonegação. 5. Mesmo se tratando de crime exclusivamente praticado em detrimento da ordem tributá- ria, o delito previsto no art. 293, § 1º, III, “b”, do Código Penal não está previsto nas hipóte- ses de extinção da punibilidade, em razão do pagamento do tributo, trazidas pelos arts. 34 da Lei n. 9.249/1995 e 9º, § 2º, da Lei n. 10.684/2003. Aliás, não poderia ser diferente, já que o crime em apreço foi incluído no Código Penal pela Lei n. 11.035, de 22/12/2004, ou seja, em data posterior à vigência dos dispositivos anteriormente indicados. 6. Nadaobstante, não é justo tratar situações semelhantes de modo distinto sem que exista motivo plausível para tanto. É que onde existir a mesma razão haverá o mesmo direito (ubi eadem ratio ibi idem jus). Assim, faz-se necessária a aplicação, ao caso em apreço, de analogia em favor do réu (in bonam partem). 7. Por um lado, quem, por suprimir ou reduzir tributo, incorre em pena prevista no art. 1º da Lei n. 8.137/1990, mas, a qualquer tempo, paga o tributo sonegado tem sua punibi- lidade extinta, por aplicação do art. 34 da Lei n. 9.249/1995 ou do art. 9º, § 2º, da Lei n. 10.684/2003. Precedente. 8. Por outro lado, quem, por manter em depósito, no exercício de atividade comercial, garrafas de bebida alcoólica sem o selo obrigatório, responde pelo crime descrito no art. 293, § 1º, III, “b”, do CP, mas, em seguida, paga o tributo que deveria ter sido reco- lhido - como ocorreu no caso aqui analisado - também deverá ter, por interpretação ana- lógica, sua punibilidade extinta. 9. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para declarar extinta a punibilidade dos pacientes em relação ao delito previsto no art. 293, § 1º, III, “b”, do Código Penal. Dermeval Farias (HC 414.879/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 24/05/2018, DJe 30/05/2018, grifo nosso). 5.4. INTeRPReTAÇÃo ANALÓGICA A interpretação analógica constitui um recuso de interpretação utilizado para determinar o sentido de uma hipótese geral, exarada pelo legislador após uma sequência casuística, como acontece em diversos dispositivos do Código Penal: Artigo 121 §2º, I, III e IV do Código Penal, onde o legislador, após uma sequência de especificação, fez uso, em seguida, de hipóteses genéricas. Destaca-se o inciso IV “traição, emboscada, dissimulação, ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido”. A interpretação da hipótese genérica feita nos casos concretos deve obedecer a uma rela- ção de semelhança com as hipóteses casuísticas, sob pena de não configurar a qualificadora. Já decidiu, por exemplo, o STJ em relação ao inciso I e ao inciso IV do artigo 121 §2º: PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PRO- NÚNCIA. HOMICÍDIO QUALIFICADO. MOTIVO TORPE E RECURSO QUE IMPOSSIBILITOU A DEFESA DA VÍTIMA. QUALIFICADORAS MANIFESTAMENTE IMPROCEDENTES. EXCLU- SÃO. POSSIBILIDADE. MODIFICAÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA 7/STJ. 1. É firme o entendimento desta Corte de que a exclusão de qualificadoras da pronúncia, quando manifestamente improcedentes, não constitui usurpação da competência do Tri- bunal do Júri. 2. Na hipótese, o Tribunal a quo justificou devidamente a exclusão das qualificadoras do motivo torpe e de emprego de recurso que impossibilitou a defesa da vítima, por serem manifestamente improcedentes, mantendo apenas a qualificadora do meio que resulte perigo comum. 3. O gosto por aventuras, embora injusto, não pode ser considerado torpe, conceito em que se incluem as condutas abjetas, desprezíveis, a exemplo do homicídio mediante paga, do qual se extrai a interpretação analógica. DIREITO PENAL - PARTE GERAL Teoria da Norma e Lei Penal no Tempo e no Espaço O conteúdo deste livro eletrônico é licenciado para Daniel Reis - 03585228461, vedada, por quaisquer meios e a qualquer título, a sua reprodução, cópia, divulgação ou distribuição, sujeitando-se aos infratores à responsabilização civil e criminal. www.grancursosonline.com.br 28 de 128 Dermeval Farias 4. O agente, ao assumir o risco de produzir o resultado lesivo, mediante embriaguez ao volante e direção na contramão, não praticou conduta que, por analogia, se assemelhe à traição, emboscada ou dissimulação. 5. A revisão do conjunto fático probatório assentado no acórdão para concluir de forma diversa, incluindo-se as qualificadoras do motivo torpe e do emprego de recurso que impossibilitou a defesa da vítima na pronúncia, é vedada em recurso especial, nos termos da Súmula 7 do STJ. 6. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 1125714/DF, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 13/10/2015, DJe 03/11/2015, grifo nosso). 5.5. INTeRPReTAÇÃo exTeNsIvA A interpretação extensiva, conforme já anunciado, é utilizada para estender o alcance de uma disposição legislativa que, aparentemente, disse menos do que queria dizer. No Direito Penal, é possível o uso da interpretação extensiva, inclusive para se chegar a um resultado prejudicial ao réu. Crime de bigamia, previsto no artigo 235 do Código Penal; aceita-se também o terceiro casa- mento do agente ou o quarto ou quinto e assim por diante, ou seja, a lei pune casar mais de uma vez e não somente casar duas vezes, com ofensa aos impedimentos legais; crime de perigo de contágio, quando se aceita o próprio contágio, para efeito de tipificação da conduta, nos termos do artigo 130 do Código Penal (GOMES; MOLINA, 2007, p. 75). Dermeval Farias 5.6. INTeRPReTAÇÃoDo DIReITo PeNALNo BRAsILNo CeNÁRIo DAJURIsPRUDêNCIA Do sTF e Do sTJ O uso dos princípios como principal ferramenta de decisão, não somente com ponderação, mas também o uso isolado de princípios para solucionar toda e qualquer questão que seja submetida ao Judiciário, constitui um reflexo neoconstitucional e tem influenciado a forma de decidir das Cortes Superiores no Brasil e de todos os demais órgãos do Poder Judiciário, bem como a atividade dos demais operadores do Direito. O pontapé inicial para o surgimento do neoconstitucionalismo foi a Constituição alemã de 1949, com a instalação do Tribunal Constitucional aAemão em 1951 e o início de uma produção jurisprudencial que contribuiu sobremaneira para o crescimento científico do direito constitucional, com reflexo nos países de tradição romano-germânica. É certo que também contribuíram para o neoconstitucionalismo a Constituição da Itália de 1947, com a instalação da Corte Constitucional em 1956, bem como a redemocratização de Portugal, em 1976, e a da Espanha em 1978 (GOMES FILHO, 2019). Enquanto isso, no Brasil, somente após a vigência da Constituição de 1988, o neoconsti- tucionalismo passou a constituir “um dos fenômenos mais visíveis da teorização e aplicação do direito constitucional” (ÁVILA, 2017, p. 1). Esse período tem sido marcado pela adoção de métodos flexíveis na hermenêutica constitucional pelo uso da ponderação, bem como pela di- minuição das fronteiras entre o direito e a moral. Em outras palavras, a argumentação jurídica moral se faz presente no modelo neoconstitucional. Com uma visão moderada, mas confiante na proposta, Daniel Sarmento afirma que uma das principais características do neoconstitucionalimo é a constitucionalização do direito, não com uma premissa analítica do texto constitucional, mas com uma “interpretação extensiva e irradiante dos direitos fundamentais e dos princípios mais importantes da ordem constitucio- nal” (SARMENTO, 2009, p. 140). Dermeval Farias De modo reverso, sob uma perspectiva crítica da doutrina neoconstitucional, Humberto Ávila afirma que o neoconstitucionalismo, conquanto não constitua uma única proposta, mas um conjunto variado de ideias, pode ser apresentado como um modelo com as seguintes ca- raterísticas (2017, p. 1): · Os princípios são aplicados em detrimento das regras ou mais que as regras; · A ponderação de princípios ocupa o lugar da subsunção, ou mais ponderação e menos subsunção; · Uma justiça particular no lugar de uma justiça geral, ou seja, a análise individual, concre- ta e casuística prepondera sobre a geral e a abstrata; · Mais destaque para o Poder Judiciário, com a diminuição dos espaços típicos dos Po- deres Legislativo e Executivo; · A Constituição substitui a lei, ou mais aplicação da Constituição com um menor uso da lei. Desse modo, a abertura na interpretação constitucional, com o uso de princípios para so- lucionar casos concretos, constitui um dos pontos mais relevantes da proposta neoconsti- tucional, com ênfase no papel do intérprete, principalmente do juiz, que não se limita mais a subsumir a lei formal ao caso concreto. Dentre as propostas neoconstitucionais, aponderação de princípios como técnica de solu- ção de conflitos e também de construção de solução jurídica (CARBONELL, 2005, p. 12), tanto no caso de existência de regras legais como no caso de inexistência de regras, abriu espaço para um modelo de justiça do caso concreto e, com isso, ampliou o poder do Judiciário, em detrimento das competências do Legislativo e do Executivo nas mais diversas matérias. Portanto, não se pode negar que o uso de princípios na solução de casos concretos e o destaque ao papel do julgador, que tem sua margem de “poder de decidir” ampliada, consti- tuem contribuições neoconstitucionais que dialogam com a proposta funcionalista penal tele- ológica, vista no capítulo anterior. Isso porque o funcionalismo teleológico propõe a solução de Dermeval Farias casos penais com suporte em princípios político-criminais extraídos do texto constitucional, em detrimento, caso necessário, da subsunção dogmática. A referida forma de decidir questões penais, presente no atual do contexto do Supremo Tribunal Federal, tem permitido uma amplitude desordenada no exame dos casos penais, com soluções subjetivistas e voluntariosas, sem deferência ao legislador, sem respeito à dogmática penal, sem seguir a própria orientação jurisprudencial da Corte ante às mudanças inconstan- tes de posicionamentos, bem como a presença de muitas decisões monocráticas, que contri- buem para a imprecisão na solução de temas. 5.7. BRoCARDo IN DUBIO PRO REO É comum no Direito Penal o uso do brocardo in dubio pro reo, o qual significa que, na dúvida, deve-se decidir em favor do processado criminalmente. Tal orientação chamada por alguns de princípios, faz-se presente, em alguns momentos, em Regimento de Tribunal (exemplo do STF, grifos nossos): Art. 151 — O Presidente do Plenário não proferirá voto, salvo: I – — Nas arguições de inconstitucionalidade (arts. 174 e 181); II – — Em matéria administrativa; III – — Nos demais casos, quando ocorrer empate, salvo o disposto no parágrafo único deste artigo. Parágrafo único — No julgamento do habeas corpus, pelo Plenário, o Presidente não terá voto, salvo em matéria constitucional, proclamando-se, na hipótese de empate, a decisão mais favorável ao paciente. Art. 155 — O Presidente da Turma terá sempre direito a voto. § 1º — Se ocorrer empate, será adiada a decisão até tomar-se o voto do Ministro ausente. § 2º — Persistindo a ausência, ou havendo vaga, impedimento ou licença de Ministro da Turma por mais de um mês, convocar-se-á Ministro de outra, na ordem decrescente de antiguidade. § 3º — Nos habeas corpus e recursos em matéria criminal, exceto o extraordinário, havendo empa- te, prevalecerá decisão mais favorável ao paciente ou réu. 6. TeMPo Do CRIMe Dermeval Farias No que diz respeito ao tempo do crime, a teoria da atividade consta no art. 4º do Código Penal: “Art. 4º - Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”. 7. LeI PeNAL No TeMPo Quanto ao âmbito da Lei Penal no Tempo, trata-se de espaço no qual se analisam todas as hipóteses que dizem respeito aos princípios penais da retroatividade benéfica e da irretroati- vidade maléfica, as características e a ultratividade das leis temporárias e excepcionais, bem como a sucessão de leis penais no tempo com as suas diversas situações. 7.1. PRINCÍPIos Quando se trata do tempo do crime e da lei penal no tempo, é importante compreender a teoria da atividade mencionada no tópico anterior, bem como os princípios da retroatividade benéfica e da e da irretroatividade maléfica. Referidos princípios foram destacados no capítulo sobre princípios penais e jurisprudência do STF e do STJ (PDF). Segundo o princípio da irretroatividade da lei penal, a lei penal mais gravosa não pode retroagir para alcançar fatos passados. Representa uma conquista histórica do final do sécu- lo XVIII, que surgiu atrelada ao princípio da legalidade penal, tendo previsão no inciso XL do art. 5º da CRFB. Pode ser compreendido, ainda, como já caiu em provas de concursos, no sentido de irre- troatividade que possui como corolários a irretroatividade maléfica e a retroatividade benéfica. O referido princípio não é contrariado pela súmula 711 do STF, a qual diz que a lei mais gra- ve é aplicada se surgir durante a prática de um crime permanente ou de um crime continuado. Isso porque o crime permanente está se consumando, enquanto a continuidade delitiva estará ocorrendo com o cometimento de vários crimes, presentes os requisitos do art. 71 do Código Penal. Dermeval Farias Do mesmo modo, não há ofensa à retroatividade benéfica com a previsão de ultratividade de lei temporária e excepcional (art. 3º do Código Penal), que costumam ser leis mais severas. Pode-se falar em uma mitigação ao referido princípio. Parcela pequena da doutrina afirma a inconstitucionalidade, ou seja, a não recepção do art. 3º pela ordem constitucional, uma vez que que a referida previsão/ressalva deveria constar do próprio texto da CRFB. QUesTÃo 5 (QUESTÃO INÉDITA/2020) Jorge sequestrou Ana e, quatro dias depois, exigiu o resgate em dinheiro para a liberação da vítima. Após dois meses do sequestro, sem a libera- ção da vítima, entrou em vigor uma lei mais grave que aumentou a pena da extorsão mediante sequestro (art. 159 do CP). Essa lei mais grave pode ser aplicada ao presente caso? Justifique (no máximo 5 linhas). Sim. A lei mais grave deverá ser aplicada no caso apresentado. A extorsão mediante sequestro, prevista no art. 159 do CP, é crime permanente, cuja consumação se prolonga no tempo. Enquanto a vítima não for libertada, o crime estará acontecendo. Desse modo, a lei mais grave, que surge duran- te a consumação do crime permanente, será aplicada. Não há, se falar em retroatividade da lei mais grave nessa situação, uma vez que o crime está acontecendo, ou seja, começou a ser praticado na vigência da lei menos grave e continuou sendo praticado na vigência da lei mais grave. Nesse sen- tido, o STF editou a Súmula 711: “A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência”. 7.2. exCeÇões (LeIs exCePCIoNAIs e TeMPoRÁRIAs) A lei temporária regulada pelo artigo 3º do Código Penal é aquela que regula situação específica e que possui prazo de vigência no seu bojo, no seu texto. Difere da lei excepcional, a qual também regula situação específica, mas se vincula à cessação das circunstâncias ex- cepcionais, como condição para perder a sua vigência. Ambas as leis possuem ultratividade. Essa ultratividade, que garante a sua eficácia, pode ser afastada de forma expressa por uma lei posterior, mas isso não é comum, constitui apenas uma possibilidade dogmática. 7.3. CoNFLITo oU sUCessÃo De LeIs PeNAIs No TeMPo Dermeval Farias No estudo da sucessão de leis no tempo, analisam-se as consequências da substituição legislativa em matéria penal, ou seja, os efeitos gerados quando uma lei penal substitui outra lei penal. 7.3.1. Abolitio Criminis A abolitio criminis significa a descriminalização de uma conduta efetuada por uma Lei, a qual terá retroatividade benéfica. Na história não muito distante do Direito Penal brasilei- ro, ocorreu abolitio criminis dos crimes de adultério, sedução, rapto consensual. Se já houver condenação transitada em julgado, o juiz da execução aplicará a lei penal melhor, na forma do artigo 66 da Lei da Execução Penal (n. 7.210/1984). Se a lei descriminalizadora surgir na fase do inquérito policial já instaurado, os autos serão relatados encaminhados ao Ministério Público (nos locais onde se faz a distribuição direta) ou ao judiciário (para envio ao Ministério Público). Após a promoção de arquivamento do Mi- nistério Público, o juiz homologará o arquivamento. Se não concordar com o arquivamento do Ministério Público, o juiz deverá aplicar o artigo 28 do CPP. Essa sistemática foi alterada pela Lei n. 13964/2019 (pacote anticrime), mas está com a eficá- cia suspensa em razão de decisão do STF. É importanteacompanhar. A abolitio criminis também pode acontecer por força de decisão do STF no controle de constitucionalidade. Veja os temas em debates no final do presente capítulo. 7.3.2. Lex Mitior Após o trânsito em julgado, se surgir uma lei melhor, a sua aplicação competirá ao juiz da execução penal, nos termos do artigo 66, inciso I, da Lei de execuções Penais (LEP n. 7.210/1984): “Art. 66. Compete ao Juiz da execução: I - aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado”. Dermeval Farias Tal contexto se apresentou, por exemplo, quando entrou em vigor a Lei n. 12015/2009, que uniu as condutas de estupro e de atentado violento ao pudor em um único dispositivo, ou seja, a conduta do artigo 214 foi transportada para o artigo 213, gerando aquilo que se denomina: princípio da continuidade normativa típica. Desapareceu a rubrica atentado violento ao pudor, no entanto, as elementares foram mantidas, não havendo abolitio criminis. Tal modificação legislativa gerou a possibilidade, no mesmo contexto fático, de crime úni- co nas condutas. A título de ilustração, as condutas de violência sexual caracterizadas por sexo anal e por conjunção carnal, antes da Lei n. 12015, configuravam concurso material de crimes porque estavam em tipos penais diferentes. Após a mudança legislativa, se praticadas no mesmo contexto fático, as referidas condu- tas caracterizam crime único (princípio da alternatividade do conflito aparente de normas); se praticadas em contexto fático diverso, preenchidos os requisitos do 71 mais a unidade de de- sígnios, configuram crime continuado; praticados em contextos e, se faltar um dos requisitos para a continuidade delitiva, configuram concurso material de crimes. Portanto, a mudança legislativa significou lex mitior em duas situações explicadas no pa- rágrafo anterior. 7.3.3. Lex Tertia A lex tertia constitui um tema polêmico em matéria penal, se caracteriza pela combinação de parte (benéfica) de uma lei revogada com parte (benéfica) de uma lei em vigor, formando, deste modo, uma terceira solução, denominada “terceira lei”, para ser aplicada em favor do réu. Há muita discussão doutrinária sobre a possibilidade de se combinar parte benéfica de uma lei revogada com parte benéfica de uma lei que está em vigor, afastando as partes preju- diciais ao agente, criando assim uma terceira solução. A primeira corrente doutrinária afirma que a combinação de leis é possível, pois visa a atender aos princípios constitucionais da ultratividade e retroatividade benéficas. Não se pode vedar a combinação de leis como se fosse um dogma (TOLEDO, 1994, p. 38). Isso não é cria- ção de leis, mas combinação (GOMES, 2003, p. 176-177). Dermeval Farias De outro lado, contra a tese da combinação de leis, pois seria permitir ao juiz exercer fun- ção típica do poder legislativo, legislar no sentido literal, estão Nélson Hungria, Jair Leonardo Lopes, Paulo José da Costa Júnior. A título de ilustração, o STF já combinou leis para prejudicar o réu quando afirmou que prevalecia o preceito primário do art. 14 da antiga Lei n. 6368/1976 e o preceito secundário do art. 8º da Lei n. 8072/1990. Todavia, em sua jurisprudência, o STF resistia à tese da combinação de leis. Adotava a po- sição de Hungria, para o qual a combinação de leis seria uma ofensa ao princípio da separação de poderes, uma vez que o juiz estaria, esse modo, criando uma lei diferente. Pode-se dizer que a posição antiga do STF pela impossibilidade de combinação de leis penais, na esteira de Nelson Hungria, foi mitigada por decisões de alguns anos atrás, após a entrada em vigor da Lei n. 11343/2006, que possibilitava combinar partes da Lei nova de dro- gas com parte da Lei revogada (n. 6368/1976). Isso consta nos Informativos 525 e 574 do STF. O STJ também decidiu neste sentido. Tudo isso foi superado mais adiante com a entrada em vigor da Súmula 501 do STJ, que proibiu a combinação das leis n. 11343 e n. 6368/1976, ou seja, afirmou-se que a lei deveria ser aplicada no seu todo, na íntegra, sem possibilidade de combinação de parte de uma lei com parte de outra lei: É cabível a aplicação retroativa da Lei n. 11.343/2006, desde que o resultado da incidência das suas disposições, na íntegra, seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei n. 6.368/1976, sendo vedada a combinação de leis. Não se pode deixar de salientar que o STJ tem combinado, em decisões penais, parte do artigo 273 do Código Penal com o artigo 33 da Lei n. 11343/2006, ou seja, o preceito secundário do artigo 273, com alicerce no princípio da proporcionalidade, tem sido substituído pelo preceito secundário do artigo 33 da lei n. 11343/2006. Referido tema foi abordado no PDF e em princí- pios penais, quando se tratou do princípio da proporcionalidade. PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARA- ÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. IMPORTAÇÃO DE MEDICAMENTOS SEM REGISTRO NO ÓRGÃO COMPETENTE. ART. 273, § 1º-B, I, DO CP. PRECEITO SECUNDÁRIO. INCONSTI- TUCIONALIDADE. UTILIZAÇÃO DA PENA PREVISTA PARA O TRÁFICO DE DROGAS. POSSIBILIDADE. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade no HC 239.363/PR, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, declarou a inconstitucionalidade do preceito secundário do art. 273, § 1º-B, do Código Penal, em atendimento aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, autorizando a aplicação analógica das penas previstas para o crime de tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11.343/2006) àquele delito. 2. Agravo regimental não provido. (AgRg nos EDcl no REsp 1662629/PR, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 03/05/2018, DJe 09/05/2018, grifo nosso). AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ART. 273, § 1º-B, DO CP. INCONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA PELO TRIBUNAL A QUO. APLICAÇÃO DO PRECEITO SECUNDÁRIO DO ART. 33 DA LEI DE DROGAS. ENTENDIMENTO EM CON- FORMIDADE COM OS PRECEDENTES DESTA CORTE SUPERIOR. DESCLASSIFICAÇÃO. PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. O Tribunal de segundo grau reconheceu, no caso concreto, a inconstitucionali- dade do preceito secundário do art. 273, § 1º-B, I, do CP, por ofensa ao princípio da proporcionalidade, e definiu, por analogia, que a pena a ser aplicada em substitui- ção ao tipo penal seria a do crime de tráfico de drogas, consideradas a natureza e a quantidade de produtos apreendidos. O entendimento está em conformidade com a jurisprudência desta Corte Superior, o que justificou a incidência da Súmula n. 568 do STJ. 2. O recorrente importou medicamentos com princípio ativo sem registro no órgão competente e anabolizantes com substância prevista em portaria da Anvisa, sujeita a controle especial. Não há falar em atipicidade dos fatos e, de acordo com o princípio da especialidade, está correta a incursão no art. 273, §§ 1º, 1º-B, I, do Código Penal, que contém todas as elementares do art. 334 e mais algumas. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1509051/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 03/09/2019, DJe 10/09/2019, grifo nosso). DIREITO PENAL - PARTE GERAL Teoria da Norma e Lei Penal no Tempo e no Espaço Dermeval Farias O conteúdo deste livro eletrônico é licenciado para Daniel Reis - 03585228461, vedada, por quaisquer meios e a qualquer título, a sua reprodução, cópia, divulgação ou distribuição, sujeitando-se aos infratores à responsabilização civil e criminal. www.grancursosonline.com.br 38 de 128 QUesTÃo 6 (QUESTÃO INÉDITA/2020) Quais são os argumentos favoráveis e contrários à combinação de leis penais, ou seja, combinação de aspectos favoráveis ao réu constantes em duas leis – uma lei revogada e uma lei em vigor –, afastando os aspectos prejudiciais, criando assim o terceiro gênero (lex tertia)? A primeira corrente doutrinária afirma que a combinação de leis é possível, pois visa a atender aos princípios constitucionais da ultratividade e retroatividade benéficas.2 Há uma alquimia,“no mundo da realidade, alguma forma de combinação de leis pode ocorrer, sem nenhum pre- juízo para a ordem e segurança jurídica”3. Não se trata de criação de leis, mas de combinação (GOMES, 2003, p. 176-177). É apenas um processo de integração que busca a aplicação mais benéfica. De outro lado, posiciona-se outra parcela da doutrina, com a afirmação de que a combinação de leis seria permitir ao juiz exercer função típica do poder legislativo, legislar no sentido literal (NUCCI, 2008, p. 63). Nucci, com apoio em Roxin, ensina que o juiz não pode combinar leis, mas escolher a mais fa- vorável ao réu. E, se este não concordar, que apresente o recurso. Afirma o renomado autor que a sua posição seria intermediária entre as anteriores (NUCCI, 2008, p. 63). Entretanto, a sua posição consiste em não aceitar a combinação de leis, porque escolher a mais favorável não é combinar, mas aplicar a previsão constitucional do art. 5º, XL, da CRFB. O tema foi pacificado, em tese, com a edição da Súmula 501 do STJ, que proibiu a combinação das leis n. 11343 e n. 6368/1976, ou seja, afirmou-se que a lei deve ser aplicada no seu todo, na íntegra, sem possibilidade de combinação de parte de uma lei com parte de outra lei. 2 Nesse sentido: GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 13. ed. Rio de Janeiro, Impetus, 2011, p. 115. 3 TOLEDO, Francisco Assis de. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 38. 7.3.4. Novatio Legis Uma nova lei penal que tipifica uma conduta que até então não constituía crime não retro- age, só terá aplicabilidade para os fatos cometidos a partir de sua vigência. Esse raciocínio também é válido para lei nova prejudicial ou mais gravosa do que a anterior que, por exemplo, introduza no ordenamento jurídico uma causa de aumento de pena para determinada conduta criminosa. 7.3.5. Lei Intermediária A lei intermediária é aquela que é melhor do que a anterior e melhor do que a posterior. Des- se modo, aplica-se ao fato cometido antes de sua vigência e ao fato cometido durante e julga- do depois de sua vigência. A título de exemplo, para o fato cometido antes e julgado depois de sua vigência, a lei intermediária possui extra-atividade, ou seja, retroage e exerce ultratividade ao mesmo tempo. QUesTÃo 7 (QUESTÃO INÉDITA/2020) Caio praticou um crime em janeiro de 2020, quando a pena cominada de forma abstrata era de 2 a 5 anos. Em fevereiro de 2020, o legislador di- minuiu a pena do crime, que foi fixada de forma abstrata no mínimo de 1 e, no máximo, de 3 anos. Em abril de 2020, o legislador novamente alterou a pena do referido crime, aumentando-a para o mínimo de 3 e, para o máximo, de 6 anos. Salvo as hipóteses citadas, não houve outra alteração da lei. Caio só foi julgado em maio de 2020, quando foi condenado. Nesse caso, Caio será apenado com a pena em vigor no mês de janeiro, no mês de fevereiro ou no mês de abril? Aplica-se a lei que entrou em vigor no mês de fevereiro, com previsão de pena mínima de 1 ano e máxima de 3 anos. Isso porque a tal lei possui extra-atividade, uma vez que é me- lhor do que a anterior e melhor do que a posterior, sendo que o fato ocorreu antes dela. Há no caso em apreço retroatividade e ultratividade benéficas da lei intermediária, uma das Dermeval Farias hipóteses encontradas na sucessão de leis. A lei intermediária que surgiu em fevereiro é também denominada de lei bipolar. Alberto Silva Franco, com precisão, trata da lei intermediária como sendo a norma mais favo- rável que surge após o fato criminoso e finda antes do trânsito em julgado. Ela tem caráter bipolar (expressão de Aníbal Bruno) porque é retroativa e ultrativa ao mesmo tempo. Para nós, nada mais e nada menos do que uma hipótese de aplicação do princípio da extra-atividade da lei penal. QUesTÃo 8 (QUESTÃO INÉDITA/2020) Caio praticou um crime em julho de 2017, quando a pena cominada de forma abstrata era de 02 a 05 anos. Em 2018, o Legislador diminuiu a pena do crime, a qual restou fixada de forma abstrata no mínimo de 01 e, no máximo, de 03 anos. Em 2019, o Legislador novamente alterou a pena do referido crime, aumentando-a para o mínimo de 03 e para o máximo de 06 anos. Salvo as hipóteses citadas, não houve outra alteração da lei. Caio só foi julgado em 2020, quando foi condenado. Nesse caso, Caio será apenado com a pena em vigor na lei do ano de 2017, do ano de 2018 ou do ano de 2019? Justifique. Aplica-se a lei do ano de 2018, com previsão de pena mínima de 01 ano e máxima de 03 anos. Isso porque a lei de 2018 possui extra-atividade, uma vez que é melhor do que a anterior e melhor do que a posterior, sendo que o fato ocorreu antes dela. Há no caso em apreço retroati- vidade e ultratividade benéficas da lei intermediária, uma das hipóteses encontradas na suces- são de leis. A lei intermediária de 2018 é também denominada de lei bipolar. 7.3.6. Vacatio Legis A vacatio legis constitui o intervalo temporal entre a publicação e a entrada em vigor de uma lei. Segundo o artigo 1º do Decreto-Lei n. 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro): “salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada”. DIREITO PENAL - PARTE GERAL Teoria da Norma e Lei Penal no Tempo e no Espaço O conteúdo deste livro eletrônico é licenciado para Daniel Reis - 03585228461, vedada, por quaisquer meios e a qualquer título, a sua reprodução, cópia, divulgação ou distribuição, sujeitando-se aos infratores à responsabilização civil e criminal. www.grancursosonline.com.br 41 de 128 Dermeval Farias Mas o objeto do presente tópico é saber se uma lei penal melhor pode ser aplicada na va- catio legis, sem aguardar a entrada em vigor da Lei. Isso porque, como regra, a lei é aplicada a partir de sua entrada em vigor a partir de sua vigência. Para Luís Flávio Gomes (2003), leis penais benéficas na vacatio não podem ser aplicadas porque não possuem vigência. Rogério Greco (2008) defende a aplicação da lei benéfica na vacatio e diz que é a posição majoritária na doutrina. Essa também é a posição de Alberto S. Franco (2007), para quem a retroatividade benéfica é um princípio constitucional jurídico-positivo e, portanto, não pode ser limitado pela vacatio legis infraconstitucional do legislador ordinário. A norma do art. 1º da Lei de Introdução ao Có- digo Civil é anterior à disposição constitucional e não pode limitar o princípio da Carta Magna. Logo, a lei benéfica pode ser aplicada ainda na vacatio legis. Ainda exemplifica com leis hipo- téticas que deixou de considerar o fato como criminoso e estabeleceu vacatio (FRANCO et al., 2007, p. 67-68). Com apoio na doutrina nacional de Paulo José da Costa Junior, Luiz Vicente Cernicchiaro, René Ariel Dotti, Alberto Silva Franco (2007) afirma que norma favorável que for revogada na vacatio legis terá ultratividade benéfica com relação aos fatos praticados na sua vigência. Cita posição oposta na doutrina estrangeira de Cerezo Mir, Antônio Garcia-Pablos de Molina e ou- tros, afirmando que seria intromissão do poder judicial nas faculdades do legislativo (FRANCO et al., 2007, p.67-68). Nucci (2008) discorda da posição anterior e defende que a Lei penal deve esperar a entra- da em vigor para ser aplicada, sob pena de ofensa à segurança jurídica, uma vez que poderia acontecer, por exemplo, a revogação de uma lei melhor no prazo da vacatio legis. Desse modo, se ela já havia sido aplicada para determinados casos, mas ainda não aplicada para outros semelhantes, haveria desigualdade e insegurança jurídicas. STF e STJ já se manifestaram contra a aplicação da lei Penal na vacatio legis: STF INFO 056 1 TURMA Lex Mitior e Vacatio Legis Ressalvando a competência do juiz da execução para apreciar originalmente o pedido nos termos da Súmula 611 do STF (“Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao Juízo das execuções a aplicação da lei mais benigna”), a Turma indeferiu Dermeval Farias habeas corpus que imputava ao Tribunal de Alçada de Minas Gerais oconstrangimento de não haver adotado, no julgamento da apelação interposta pelo paciente - ocorrido no período de vacatio da Lei n. 9099/1995 -, o procedimento previsto nos arts. 76 e 89 dessa lei (vista ao ofendido e ao MP para oferecimento de representação e de proposta de sus- pensão do processo, respectivamente). Considerou-se que as normas invocadas pelo impetrante ainda não estavam em vigor na data do julgamento da apelação, motivo pelo qual a decisão impugnada, ao deixar de aplicá-las, não incorrera na pretendida ilegali- dade. HC 74.498-MG, rel. Min. Octavio Gallotti, 03.12.96, grifo nosso. STJ VACATIO LEGIS O STJ se recusou a aplicar lei penal melhor no interregno da vacatio legis, conforme jul- gado abaixo: […] JULGAMENTO DO RECURSO EM PERÍODO DA VACATIO LEGIS. RETROAÇÃO PARCIAL DE ARTIGO DE LEI PENAL NOVA MAIS BENÉFICA. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA. [...] 4. Não poderia o Tribunal de origem aplicar a minorante do art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006, de 23/8/06, uma vez que a norma não estava em vigor quando do julga- mento do recurso acusatório, que se deu em dentro do prazo da vacatio legis. [...] 7. Ordem denegada. (HC 100.692/PR, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 15/06/2010, DJe 02/08/2010, grifo nosso). 8. LeI PeNAL No esPAÇo Com relação à Lei Penal no espaço, o que se discute aqui é o lugar de incidência da legis- lação penal brasileira. Não se discute competência nos artigos 5º a 8º do Código Penal, mas o espaço de aplicação da Lei Penal brasileira. Competência é outro tema desenvolvido nos artigos 70 e seguintes do Código de Processo Penal brasileiro. 8.1. PRINCÍPIos Territorialidade é o princípio adotado no caput do artigo 5º do Código Penal ao tratar do âmbito de aplicação da Lei penal brasileira. O princípio foi adotado de forma temperada, relati- vizada ou mitigada. Isso porque, conforme ressalva do próprio texto legal, o Brasil observa os tratados internacionais que tratam, por exemplo, da imunidade diplomática. Dermeval Farias O princípio da territorialidade é mitigado não somente em razão da imunidade diplomática. Por outro lado, a Lei penal brasileira também pode ser aplicada fora do território nacional pro- priamente dito, nas hipóteses de território por extensão e nas hipóteses de extraterritorialidade. Sobre a imunidade diplomática, vale dizer que se trata de um conjunto de prerrogativas concedidas ao representante diplomático para o exercício de sua função na representação de seu país. Não se cuida de privilégio. O Brasil é signatário da Convenção de Viena e respeita as imunidades diplomáticas. Dis- cute-se na doutrina a natureza jurídica, na seara penal da imunidade diplomática. Alguns de- fendem que se trata de isenção de pena, outro afirmam que se trata de exclusão de jurisdição. O diplomata que praticar um crime no território brasileiro, estando ou não no exercício da função, possui imunidade e será julgado no seu país. O diplomata não pode renunciar à imuni- dade que lhe for concedida, manifestando, por exemplo, o desejo de ser julgado no Brasil. Isso porque a imunidade é de ordem pública e deve ser reconhecida de ofício. Apenas o país do diplomata pode abrir mão dessa imunidade. Ressalta-se que o agente consular possui imunidade apenas para os fatos penais cometi- dos no exercício de sua função. Se cometer crime não relacionado com a sua função, não terá imunidade e será alcançado pela legislação penal brasileira. A embaixada estrangeira, localizada no Brasil, constitui território penal brasileiro para efeito de incidência da Lei penal brasileira. Por isso, o motorista ou qualquer outra pessoa, sem imunidade diplomática, que praticar crime dentro da embaixada ou fora da embaixada, nos limites do território brasileiro, será julgado conforme a Lei penal brasileira. Não se pode es- quecer de que a imunidade diplomática, vista no tópico acima sobre o princípio da territoria- lidade, impede que a Lei penal brasileira seja aplicada aos crimes cometidos, pelos agentes diplomáticos, no exercício ou fora do exercício da função. Ressalte-se que os cônsules de outros países que trabalham no Brasil só possuem imunidade para os crimes cometidos no exercício da função. 8.2. CoNCeITo De TeRRITÓRIo NACIoNAL Dermeval Farias Como regra, a Lei Penal brasileira se aplica aos fatos cometidos no território nacional. Cer- to que há exceções abordadas em outros tópicos deste capítulo, o que almeja agora é buscar o conceito de território nacional. Em síntese, o território brasileiro para efeito de incidência do Direito Penal abrange o solo, o subsolo, o espaço aéreo correspondente, os cursos d’água internos, bem como as 12 milhas marítimas (artigo 1º da lei n. 8.617/1993), medidas a partir da linha do baixa-mar do litoral con- tinental e insular brasileiro, conforme as referências contidas nas cartas náuticas brasileiras. Em relação aos rios internacionais que cortam mais de país, o território costuma ser esta- belecido por tratados entre as partes interessadas. “Se o rio pertence a ambos os países, o li- mite é fixado como regra pela equidistância das margens ou pela linha de maior profundidade (talweg)” (GUEIROS, 2020). Vale ressaltar que o Brasil possui uma parte do território da Antártica ou Antártida (ambas expressões são aceitas), conforme Decreto n. 75.963/1975, que regulamentou dentro do Brasil o Tratado da Antártica. Essa parte mencionada também integra o território brasileiro. QUesTÃo 9 (QUESTÃO INÉDITA/2020) Silvinha, brasileira, grávida de gêmeos, embarcou em um navio privado holandês que estava ancorado no Estado da Bahia. Em seguida, quando o navio já se encontrava em alto-mar, Silvinha, de forma livre e consciente, fazendo uso de um método abortivo, interrompeu a gestação dos dois fetos. Levando-se em conta que a referida conduta não é tipificada na Holanda, haverá a aplicação da lei penal brasileira? Por quê? (no máximo 10 linhas). No caso apresentado, não haverá a incidência da lei penal brasileira. O fato ocorreu fora do território nacional (art. 5º, caput) e, ainda, está fora da abrangência do conceito de território por extensão (art. 5º, § 1º). Dermeval Farias Territorialidade Art. 5º Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacio- nal, ao crime cometido no território nacional. (Redação dada pela Lei n. 7.209, de 1984) § 1º Para os efeitos penais, consideram-se como extensão do território nacional as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar. (Redação dada pela Lei n. 7.209, de 1984). O caso dado também não se encaixa em qualquer hipótese de extraterritorialidade incondicio- nada prevista no art. 7º, I, alíneas ‘a’, ‘b’, ‘c’ e ‘d’ do CP. Por fim, na situação apresentada, não há que se falar em extraterritorialidade condicionada da lei penal brasileira, uma vez que o fato não constitui crime, segundo a questão, no país da bandeira do navio. Por isso não preenche uma das condições da extraterritorialidade condicio- nada, qual seja o fato punido no país onde foi praticado o crime. Art. 7º Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: II – Os crimes: b) praticados por brasileiro; § 2º Nos casos do inciso II, a aplicação da lei brasileira depende do concurso das seguintes condições: a) entrar o agente no território nacional; b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; 8.3. TeRRITÓRIo PoR exTeNsÃo O conceito de território por extensão consta no §1º do artigo 5º do Código Penal: Para os efeitos penais, consideram-se como extensão do território nacional as embarcações e ae- ronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encon- trem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente,no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar. Exemplos de embarcações e aeronaves de natureza pública (navio ou avião a serviço do gover- no transportando o Presidente da República etc., primeira parte do §1º do art. 5º do CP; embar- cações ou aeronaves brasileiras de natureza privada (mercantes, de turismo) que estejam em alto-mar ou no espaço aéreo correspondente, segunda parte do §1º do art. 5º do CP. 9.4. LugAr do Crime Lugar do crime tem importância para efeito de incidência ou não da Lei penal brasileira. Não se trata aqui do estudo de competência, medida de jurisdição, que é abordado nos artigos 70 e seguintes do Código de Processo Penal. O artigo 6º do Código Penal, ao cuidar do lugar do crime, destina-se aos crimes à distância, que são aqueles em que a ação ou a omissão ocorre em um país e o resultado, em outro. Para resolver essa questão, adotou-se a teoria da ubiquidade, ou seja, se o crime (na fase de execu- ção ou de consumação) tocar o território nacional, aplica-se a Lei penal brasileira. Adotou-se ainda a teoria mista ou da ubiquidade para explicar o lugar do crime no que diz respeito à incidência da Lei penal brasileira. Vale destacar que o referido dispositivo diz respei- to à fase executória ou de consumação do crime. Não se aplica, portanto, a outras etapas do iter criminis, como a cogitação, os atos preparatórios ou mesmo o exaurimento). O exaurimento é tratado por parcela da doutrina como etapa do iter criminis. Tema de estudo do fato típico, sem relação direta com o estudo da teoria da norma. Entendemos que o exauri- mento não faz parte do iter criminis. QUesTÃo 10 (QUESTÃO INÉDITA/2020) Marcos, com o objetivo de lesionar Francisco, atin- giu-o com uma pedra no Uruguai. Francisco, lesionado, correu ferido por uma distância de dez metros e caiu no Brasil, já no Estado do Rio Grande do Sul. Socorrido por um caminhoneiro, Francisco foi levado ao hospital mais próximo, localizado em uma pequena cidade gaúcha, mas não sobreviveu ao ferimento, vindo a óbito dois dias após a internação. Aplica-se a lei brasileira nessa situação? Justifique (no máximo 6 linhas). DIREITO PENAL - PARTE GERAL Teoria da Norma e Lei Penal no Tempo e no Espaço Dermeval Farias O conteúdo deste livro eletrônico é licenciado para Daniel Reis - 03585228461, vedada, por quaisquer meios e a qualquer título, a sua reprodução, cópia, divulgação ou distribuição, sujeitando-se aos infratores à responsabilização civil e criminal. www.grancursosonline.com.br 47 de 128 Aplica-se a lei brasileira com base na teoria da ubiquidade para os crimes praticados à dis- tância, ou seja, que envolvem territórios de mais de um país. “Art. 6º Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado”. 9.5. exTRATeRRIToRIALIDADe DA LeI PeNAL Sobre a extraterritorialidade da Lei penal brasileira, vale destacar o artigo 7º e o artigo 8º do Código Penal. Em razão da necessidade de proteção de alguns bens jurídicos específicos, bem como de se impedir que fatos criminosos não tenham resposta penal, existe, em algumas situações descritas pela legislação penal, a possibilidade de extraterritorialidade. Frisa-se que não se aplica a lei brasileira às contravenções ocorridas fora do território na- cional (art. 2º da LCP). Não há extraterritorialidade em contravenção penal. Com relação aos crimes, a Lei brasileira estabelece a extraterritorialidade incondicionada e a extraterritorialidade condicionada: · Extraterritorialidade incondicionada - art. 7, I, do CP: aplica-se mesmo que o crime te- nha sido julgado no estrangeiro e independentemente de o agente entrar no Brasil. · Extraterritorialidade condicionada - art. 7, II, do CP: · art. 7º, II, ‘a’ e ‘b’ + requisitos do art. 7º, §2º; · art. 7º, II, ‘c’, do CP + requisitos do art. 7º, §2º+ 7º, II, ‘c’ in fine (não ter sido julgado no estrangeiro); · art. 7º, §3º, do CP + requisitos do art. 7º, §2º+ requisitos do §3º (não ter sido pedida ou ter sido negada a extradição) + requisição do Ministro da Justiça. Princípios da Extraterritorialidade: · Defesa - (proteção real) - art. 7º, I, ‘a’, ‘b’ e ‘c’, do CP. Tem em vista a nacionalidade da pessoa titular do bem jurídico lesado e a necessidade de os Estados reprimirem as con- dutas que atentam contra seus interesses primordiais; · Representação (pavilhão ou bandeira) - art. 7º, II, ‘c’, do CP. Atribui ao Estado no qual está registrada a embarcação ou a aeronave o poder de submeter à sua jurisdição os crimes nestes praticados, de forma subsidiária, ou seja, desde que o país onde a embarcação estava ancorada não se interesse pela aplicação da lei; · Personalidade (nacionalidade) - art.7º, I, ‘d’; II, ‘b’ e §3º, do CP. Atribui aos Estados o po- der de sujeitar os seus nacionais, que pratiquem crimes no estrangeiro, ou aqueles que praticarem crimes contra os seus nacionais no estrangeiro; · Justiça Universal (cosmopolita, universalidade) - art. 7º, II, ‘a’, do CP. Representa a puni- ção pela prática de crimes, cuja repressão interessa a todos os países. Ressalta-se que o art. 2º da Lei n. 9.455/1997 prevê aplicação incondicionada da lei brasileira se a vítima de crime de tortura é brasileira ou se o delito é praticado em local sujeito à jurisdi- ção brasileira. Crimes praticados no estrangeiro que o Brasil se obrigou a reprimir por força de tratado ou convenção são de competência da Justiça Federal, conforme já decidiu O STJ: [...] 6. A competência da Justiça Federal, na presente hipótese, encontra-se justificada no inciso V do art. 109 da Constituição Federal, o qual dispõe que, “aos juízes federais compete processar e julgar os crimes previstos em tratado ou convenção internacio- nal, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente”. 7. Imputa-se ao recorrente o crime de corrupção passiva, o qual efetivamente encontra previsão em tratado ou convenção internacional (Decreto n. 5.687 de 31/1/2006). É irre- levante o fato de a convenção ter entrado em vigor no ordenamento pátrio após a prática dos fatos, porquanto, diversamente da alegação do recorrente, a competência criminal, por ser norma processual, é regida pelo princípio do tempus regit actum. Assim, devida- mente preenchido o primeiro requisito trazido no inciso V do art. 109 da CF, haja vista a efetiva existência de convenção internacional, assinada pelo Brasil, visando o combate do crime de corrupção. 8. Quanto ao requisito da transnacionalidade do delito, consta que “toda a denúncia está embasada na premissa da existência de um esquema de corrupção idealizado e reali- zado, em grande parte, a partir da matriz francesa da empresa ALSTON” e que as con- dutas imputadas “ostentam claro caráter transnacional, com remessas de recursos por meio de teias de offshores sediadas em paraísos fiscais, e destino final a agentes públi- cos em tese corrompidos”. Constato, assim, estar concretamente delineada também a transnacionalidade do delito. 9. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no RHC 85.990/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 13/08/2019, DJe 30/08/2019, grifo nosso). Pena – Cumprida no estrangeiro - art. 8º do CP a) se foi cumprida integralmente e for hipótese de extraterritorialidade condicionada, impe- de a aplicação da lei penal brasileira (art. 7º, §2º, ‘d’, do CP); b) se foi cumprida parcialmente ou for hipótese de extraterritorialidade incondicionada: atenua a pena imposta no Brasil, se for pena de natureza diversa; será computada na pena a ser imposta no Brasil (art. 42 do CP - detração) se for da mesma natureza. Efeitos da Sentença Penal Estrangeira Somente pode ser homologada para produzir os seguintes efeitos: · obrigar o condenado à reparação do dano (restituir coisas ou produzir outros efeitos civis); · sujeitar o condenado à medida de segurança (arts. 96-99 do CP); · Os efeitos mencionados dependem da homologação da sentença pelo STJ (art. 105, I, ‘i’,da CF - EM 45). Na primeira hipótese ‘a’, depende de pedido da parte interessada (art. 9º, parágrafo único, ‘a’, do CP). Na segunda hipótese ‘b’, para aplicação de medida de segu- rança, depende da existência de tratado de extradição com o país respectivo ou, se não houver tratado, de requisição do Ministro da Justiça. DIREITO PENAL - PARTE GERAL Teoria da Norma e Lei Penal no Tempo e no Espaço Dermeval Farias O conteúdo deste livro eletrônico é licenciado para Daniel Reis - 03585228461, vedada, por quaisquer meios e a qualquer título, a sua reprodução, cópia, divulgação ou distribuição, sujeitando-se aos infratores à responsabilização civil e criminal. www.grancursosonline.com.br 50 de 128 Crime cometido em embaixada brasileira está sujeito à incidência da lei penal brasileira (Extra- dição 579-1, STF). 9. CoNFLITo oU CoNCURso APAReNTe De NoRMAs No conflito aparente de normas, há um fato regido aparentemente por duas ou mais nor- mas. Para evitar o bis in idem e garantir a integridade do ordenamento jurídico, deve-se esco- lher uma só norma, uma vez que não se trata de pluralidade delitiva, mas de aparente conflito. “No concurso aparente de leis, a ação só corresponde realmente a um tipo penal; há um crime só e somente uma lei aplicável ao caso” (BRUNO, 1959, p. 260). Para resolver o concurso apa- rente de normas, a doutrina menciona os seguintes princípios: especialidade, subsidiariedade, consunção (absorção) e alternatividade. Pelo princípio da especialidade, a norma especial prevalece sobre a norma geral, não importa se a sanção prevista é menor ou maior. Há aqui uma relação de gênero e espécie, e a análise pode ser feita em abstrato, dispensando o exame do caso concreto. Desse modo, o art. 122 (in- fanticídio) é especial em relação ao art. 121 (homicídio), ambos do CP. O art. 290 do CPM (Códi- go Penal Militar) é especial em relação aos artigos 28 e 33 da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas). O princípio da subsidiariedade (soldado de reserva) indica que um fato menor pode estar contido dentro de um fato maior (elementares do art. 155 estão dentro do art. 157, caput), reve- lando uma hipótese de subsidiariedade tácita. Há também a subsidiariedade expressa quando o tipo penal menciona a ressalva por uma punição mais grave. É o que ocorre no art. 307 do CP (grifo nosso): Falsa identidade Art. 307. Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem: Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa, se o fato não constitui elemento de crime mais grave. Já o princípio da consunção ou absorção revela uma relação de parte e todo, de fração e inteiro, de conteúdo e continente, de minus e plus, de crime-meio e de crime-fim. É necessário o exame do caso concreto para a aplicação do princípio da consunção, não sendo suficiente o exame em abstrato. Nessa linha de argumentação, no mesmo contexto fático, a tentativa é absorvida pela con- sumação, a participação pela coautoria. O porte de arma é absorvido pelo homicídio quando a arma é comprada e portada para matar a vítima. Tal absorção não alcança outros empregos da arma fora do contexto do homicídio. Em tais hipóteses, haverá concurso de crimes. Há consunção no caso de falso que se esgota no estelionato, respondendo o agente so- mente por estelionato, conforme Súmula 17 do STJ. O referido raciocínio, segundo a jurispru- dência do STF e do STJ, aplica-se ainda no caso de falso que se esgota na sonegação fiscal. A orientação sumular merece críticas, pois há ofensas a bens jurídicos diversos em situações distintas, já que o crime de falso é formal, enquanto o estelionato é material. Portanto, a solu- ção adequada, contrária à jurisprudência atual, indica a existência de um concurso de crimes. A consunção também é aplicada no crime progressivo, ou seja, situação na qual o agente possui um só desígnio, mas, para chegar ao resultado mais grave, passa pelo menos grave. Exemplo: o ato de matar passando antes pelas lesões cortando partes da vítima estando ela ainda viva. O agente responde por um único crime de homicídio, embora qualificado pela crueldade. Ainda se pode falar em consunção na progressão criminosa, isto é, quando o agente atua com mais de um desígnio no mesmo contexto fático (caso de substituição do dolo). Ocorre, a título de ilustração, quando o agente, desejando lesionar a vítima, corta as suas pernas. En- tretanto, no mesmo instante, muda de ideia e resolve matar o ofendido efetuando um disparo fatal contra a sua cabeça. Com suporte na consunção, o agente responde por um único crime de homicídio. Se os atos citados fossem praticados em contextos fáticos diversos (exemplo: um ano após lesionar a vítima, o agente a matou), haveria concurso de crimes. Fala-se também em consunção no ante factum impunível: Exemplo: o agente pratica toques corporais antes de praticar a conjunção carnal contra a vítima. Os referidos toques devem estar na mesma linha de desdobramento, de modo a não configurarem delito autônomo. Dermeval Farias No post factum impunível (ex.: quem furta e destrói a coisa subtraída responde somente por furto). Há discussão com relação à conduta de quem furta e vende a coisa, se respon- derá por furto ou por furto e estelionato. Prevalece que a venda, nesse caso, é post factum impunível, e o agente responde somente por furto etc. (GOMES, 2003, p. 198), desde que não tenha, no ato da venda, cometido um novo crime. Se após furtar o objeto, o agente engana uma determinada vítima, no momento da venda da res furtiva, ao afirmar que se tratava de produto lícito, que tinha a nota fiscal de compra, haverá concurso de crimes entre o furto e o estelionato. Por fim, com base no princípio da alternatividade, a prática, no mesmo contexto fático, nos crimes de conteúdo múltiplo ou variado (exemplos: art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006, art. 213, caput, do CP), se o agente pratica mais de um verbo, implicará a responsabilidade por um único crime. Nesse caso, deverá o juiz majorar a pena base (art. 59 do CP), em razão de o agente ter incidido em mais de um verbo no mesmo contexto fático. 10. PoNTos PARA DIsCUssÃo 10.1. MeDIDA PRovIsÓRIA e MATéRIA PeNAL A medida provisória, conforme narração do texto constitucional (art. 62, §1º, I, b, da CRFB), não pode tratar de matéria penal. Entretanto, o STF e o STJ não se manifestaram contrariamen- te à possibilidade de medida provisória com conteúdo penal benéfico (ex.: medidas provisórias que prorrogaram o prazo para devolução da arma de fogo gerando atipicidade temporária do art. 12 da Lei n. 10.826/2003). Atualmente, a jurisprudência aceita as medidas provisórias com conteúdo benéfico. O STF, antes da alteração promovida no art. 62 da CRFB pela Emenda 32, havia se manifestado no seguinte sentido: EMENTA: I. Medida provisória: sua inadmissibilidade em matéria penal – extraída pela doutrina consensual – da interpretação sistemática da Constituição –, não com- preende a de normas penais benéficas, assim, as que abolem crimes ou lhes restrin- gem o alcance, extingam ou abrandem penas ou ampliam os casos de isenção de pena DIREITO PENAL - PARTE GERAL Teoria da Norma e Lei Penal no Tempo e no Espaço O conteúdo deste livro eletrônico é licenciado para Daniel Reis - 03585228461, vedada, por quaisquer meios e a qualquer título, a sua reprodução, cópia, divulgação ou distribuição, sujeitando-se aos infratores à responsabilização civil e criminal. www.grancursosonline.com.br 100 de 128 Dermeval Farias ou de extinção de punibilidade. II. Medida provisória: conversão em lei após suces- sivas reedições, com cláusula de “convalidação” dos efeitos produzidos anterior- mente: alcance por esta de normas não reproduzidas a partir de uma das sucessivas reedições. III. MPr 1571-6/97, art. 7º, § 7º, reiterado na reedição subsequente (MPr 1571-7, art. 7º, § 6º), mas não reproduzido a partir da reedição seguinte (MPr 1571-8 /97): sua aplicação aos fatos ocorridos na vigência das edições que o continham, por força da cláusula de “convalidação”inserida na lei de conversão, com eficácia de decreto-legislativo. (RE 254.818, Relator(a): Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 08/11/2000, DJ 19-12-2002 PP-00081 EMENT VOL-02096-07 PP-01480 RTJ VOL-00184-01 PP-00301) Pode-se concluir, apesar da posição do STF, que o uso da medida provisória em matéria pe- nal, com ou sem conteúdo benéfico, contraria o art. 62 da CRFB e viola a prerrogativa do Poder Legislativo de legislar sobre a matéria penal. 10.2. DeCLARAÇÃo De INCoNsTITUCIoNALIDADe De LeI PeNAL BeNéFICA e eFeITos Divergência na doutrina. A primeira corrente entende que lei Benigna, declarada inconstitu- cional pelo STF, continua regulando os fatos perpetrados durante a sua vigência. É a opinião de Alberto Silva Franco (2007). Por outro lado, segundo Nucci, se o STF declarar inconstitucional uma norma penal bené- fica, o efeito deve ser ex nunc, “sob pena de gerar prejuízos incalculáveis à segurança jurídica e ao indivíduo, que culpa não teve quando o Estado gerou uma norma em desacordo com a Constituição” (NUCCI, 2008, p. 62). As opiniões anteriores devem ser submetidas ao modelo atual de controle de constitucio- nalidade, que permite ao STF decidir sobre o momento dos efeitos decorrentes da declaração de inconstitucionalidade: modular os efeitos, inclusive em matéria penal. 10.3. JURIsPRUDêNCIA e ReTRoATIvIDADe oU IRReTRoATIvIDADe Dermeval Farias QUesTÃo 11 (QUESTÃO INÉDITA/2020) A alteração jurisprudencial para mudança benéfica em matéria penal nas Cortes Superiores (STJ e STF), sem alteração legislativa (sucessão de leis), pode ser usada para a revisão benéfica de fato passado já transitado em julgado? Justifi- que (no máximo 40 linhas). Busca-se compreender aqui se uma mudança jurisprudencial pode provocar a retroatividade. Não se trata de jurisprudência vacilante ou mutante (FRANCO et al., 2007), mas de posição sólida da jurisprudência. Com o devido respeito, parece difícil nos tempos atuais falar em juris- prudência consistente. A Lei modificada para melhor retroage nos termos do inciso XL do art. 5º da CRFB, salvo as hipóteses de leis temporárias e excepcionais que possuem ultratividade. Discute-se se a juris- prudência deve ser interpretada com o mesmo princípio contido no inciso XI da CRFB. A ques- tão não é pacífica. Se a mudança jurisprudencial for para pior, ela só pode valer dali para frente, com efeitos ex nunc, em consonância com inciso LX do art. 5º da CRFB. Se a lei pior não pode retroagir, muito menos uma decisão judicial. Todavia, se a mudança jurisprudencial for para melhor, ela deverá provocar efeitos retroativos nos casos julgados ou praticados antes da nova decisão? Deverá ser retroativa para beneficiar o réu, porque o inciso XL do art. 5º deve ser compreendido não somente no sentido da “lei”, mas também da “aplicação da lei”, segundo Alberto Silva Franco, com apoio em Nuno Brandão e em Andrei Zenkner Schmidt (FRANCO, 2007, p. 71-72). Também é a posição de Rogério Greco (2011, p. 121), Nilo Batista, Zaffaroni, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar (ZAFFARONI et al., 2003, p. 224). Dermeval Farias Essa foi a solução em parte, após o julgamento do STF no HC 82.959/SP, de fevereiro de 2006, que declarou a inconstitucionalidade do regime integralmente fechado. O julgado referiu-se a um caso concreto. Quando surgiu a Lei n. 11.464, em 29 de março de 2007, com o estabelecimento de progres- são para o crime hediondo e equiparado, após 2/5 de cumprimento de pena para o primário e 3/5 para o reincidente, sem dispensar o bom comportamento, divergências surgiram sobre os fatos praticados antes da lei, se deveriam ser regulados com a nova lei ou com o critério dos crimes comuns estabelecido no art. 112 da LEP, qual seja: 1/6 mais bom comportamento. Em seguida, ainda no ano de 2007, em julgados de casos concretos, o STF (HC 91.631/SP) e o STJ (HC 83.799) afastaram as contradições sobre o tema, delimitando-o na forma seguinte: crime hediondo ou equiparado praticado (data do fato) antes de 29/03/07, progressão com 1/6 mais o re- quisito do bom comportamento; crime hediondo ou equiparado perpetrado a partir de 29/03/07, pro- gressão com 2/5 (primário) e 3/5 (reincidente), mais o requisito subjetivo do bom comportamento. É certo dizer que a decisão do STF, proferida no HC 82.959, no caso concreto, mesmo sem resolução do Senado, gerou retroatividade benéfica e ultratividade benéfica, consagrada na Súmula Vinculante 26: Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o ju- ízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do bene- fício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico. Essa foi a solução em parte após o julgamento do HC 82959/SP, de fevereiro de 2006, pelo STF, que declarou a inconstitucionalidade do regime integralmente fechado. O julgado referiu- -se a um caso concreto e, posteriormente, foi objeto da súmula vinculante 26. De todo modo, parece que admitir de forma genérica essa possibilidade de retroatividade da jurisprudência modificada para melhor pode significar insegurança jurídica e paralisação do desenvolvimento da própria jurisprudência. Ademais, o agente que pratica um fato criminoso sabe que a interpretação jurídica pode ser alterada durante o desenrolar do proce- dimento, para melhor ou para pior. O tema, portanto, deve ser tratado dentro do controle de constitucionalidade com a possibilidade de modulação de efeitos pelo STF. Dermeval Farias 10.4. NoRMA PeNAL eM BRANCo e o CoMPLeMeNTo De NATURezA INTeRMITeNTe QUesTÃo 12 (QUESTÃO INÉDITA/2020) Com relação à norma penal em branco heterogênea que sofrera modificação benéfica, há diferença na interpretação concreta entre um comple- mento excepcional (ex.: tabela de preço) e um complemento normal (ex.: especificação das drogas proibidas em portaria)? Explique (no máximo 6 linhas). Sim, há diferença. O complemento anormal da norma penal em branco heterogênea, por es- tar vinculado a circunstâncias excepcionais, possuirá ultratividade na forma do art. 3º do CP, o qual cuida das leis temporárias e excepcionais (ex.: tabelas de preços). Enquanto o comple- mento normal, por não se vincular a circunstâncias excepcionais, segue o art. 5º, XL, da CRFB de 1988, possuindo retroatividade benéfica e irretroatividade maléfica (ex.: especificação de drogas proibidas em portaria da Anvisa). Nesse sentido, já decidiu o STF: EMENTA: “Habeas corpus”. - Em princípio, o artigo 3º do Código Penal se aplica à norma penal em branco, na hipótese de o ato normativo que a integra ser revogado ou substi- tuído por outro mais benéfico ao infrator, não se dando, portanto, a retroatividade. - Essa aplicação só não se faz quando a norma, que complementa o preceito penal em branco, importa real modificação da figura abstrata nele prevista ou se assenta em motivo per- manente, insusceptível de modificar-se por circunstâncias temporárias ou excepcionais, como sucede quando do elenco de doenças contagiosas se retira uma por se haver demonstrado que não tem ela tal característica. “Habeas corpus” indeferido. Dermeval Farias (HC 73.168, Relator(a): Min. Moreira Alves, Primeira Turma, julgado em 21/11/1995, DJ 15-03-1996 PP-07204 EMENT VOL-01820-02 PP-00316) image2.png image1.png image3.png