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Psicol. Argum. 2013 jul./set., 31(74), 495-505 doi: 10.7213/psicol.argum.31.074.AO04 ISSN 0103-7013 Psicol. Argum., Curitiba, v. 31, n. 74, p. 495-505, jul./set. 2013 PSICOLOGIA ARGUMENTO ARTIGO [T] Epistemologia da neuropsicologia: Fundamentos científicos da relação entre cérebro e comportamento [I] Epistemology of neuropsychology: Scientific foundations of the relationship between brain and behavior [A] Abstract The advent of neuroscience has enabled the creation of models of interpretation of mental ac- tivities and knowledge achieved with the help of new technologies have redefined he concepts and ideas about being human. In this context, the study of relations between the neurological substrate and the higher psychological functions is the object of neuropsychology. The develop- ment of theoretical and practical opportunity to neuropsychology is an epistemological ap- proach, in view of the different scientific models built. In the presentation of the scientific foun- dations of this system will be defined the notion of science, epistemological reflection about the development of science and from the historical perspective, the constitution of neuropsychol- ogy as a scientific area and the contemporary demands of new technological devices. The epis- temological reflection promotes the deepening of thought neuropsychological awakening to the need for accuracy and conceptual measures, training of neuropsychological data platforms and adoption of new technologies. #] [K] Keywords: Neuropsychology. Neuropsychology epistemology. History of neuroscience. #] [R] Resumo O advento das neurociências possibilitou a criação de modelos de interpretação das atividades mentais, e os conhecimentos alcançados com o auxílio das novas tecnologias têm redefini- do conceitos e concepções sobre o ser humano. Nesse contexto, o estudo das relações entre o substrato neurológico e as funções psicológicas superiores é objeto da neuropsicologia. O desenvolvimento teórico e prático da neuropsicologia é ensejo para uma abordagem epis- temológica, tendo em vista os diferentes modelos científicos construídos. Na apresentação dos fundamentos científicos da neuropsicologia será definida a noção de ciência, a reflexão epistemológica em torno do desenvolvimento das ciências e, a partir da perspectiva histórica, a constituição da neuropsicologia como área cientifica e as demandas contemporâneas dos novos aparatos tecnológicos. A reflexão epistemológica promove o aprofundamento do pensa- mento neuropsicológico, despertando para a necessidade de precisão conceitual e de medidas, formação de plataformas de dados neuropsicológicos e adoção das novas tecnologias. [#] [P] Palavras-chave: Neuropsicologia. Epistemologia da neuropsicologia. História da neurociência. [#] [A] Davi Sidnei de Lima[a], Tatiana Izabele Jaworski de Sá Riechi[b] [a] Mestrado em Psicologia na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR - Brasil, e-mail: davisidneilima@hotmail.com [b] Doutora em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR - Brasil, e-mail: tatiriechi@hotmail.com Recebido: 28/09/2011 Received: 09/28/2011 Aprovado: 04/04/2012 Approved: 04/04/2012 Psicol. Argum. 2013 jul./set., 31(74), 495-505 Lima, D. S., & Riechi, T. I. J. S.496 Introdução Aristóteles (1977) afirmou no inicio da obra A Metafísica a relação do conhecimento com a ca- pacidade de espantar-se diante do mundo, sendo a ciência, enquanto conhecimento baseado na obser- vação e na experiência, um fenômeno humano de assombro, o qual investiga a natureza e o próprio homem, proporcionando independência diante das forças da natureza. A forma de observar a natureza foi diversa ao longo dos séculos; os objetos dessa observação e o estudo sobre o cérebro acompanha- ram esse avanço, recebendo ao longo da história diferentes ênfases de acordo com as condições de conhecimento de cada época. Mas foi por meio das neurociências que isso se tornou um desafio para a tecnologia e o espírito humano (Churchland, 2004). O florescimento das neurociências teve inicio no século passado e a década de 1990 foi eleita como a década do cérebro (Gazzaniga, Ivry & Mangun, 2006; Mader, 1996). O aprimoramento da tecno- logia permitiu acessos que pareciam impossíveis. O cérebro, enquanto objeto de estudo, deixou de ser abordado de forma teórica ou a partir de pacientes com lesões cerebrais ou após a morte dos sujeitos, pois o imageamento permitiu analisar o tecido neu- ral enquanto desenvolve suas funções (Beaumont, 2008). Os avanços das neurociências e a interface com a psicologia, por meio da neuropsicologia, pro- vocam uma fundamentação epistemológica desse modo de fazer ciência. Assim, este ensaio teórico tem o objetivo de sintetizar os aspectos científicos da neuropsicologia: constituição histórica como ci- ência, a definição do seu objeto, os diferentes méto- dos de investigação, a construção de teorias e con- ceitos e a relação com a psicologia. Esse percurso exige indagar o que é ciência (1), a epistemologia enquanto reflexão crítica da ciência (2), a psicolo- gia como área científica (3), as neurociências como campo de estudo da neuropsicologia e a constitui- ção histórica do seu objeto de estudo (4). Ciência: atividade humana A ciência nasce da necessidade de explicar a re- alidade por meio do controle e da sistematização, caracterizando a busca por um método que permi- ta a objetividade e a eliminação de interferências (Araújo, 1998; Nagel, 1968). Este ideal de explicação implica o desenvolvimento da ciência e, consequen- temente, a construção de leis e teorias (Chauí, 2003; Ferrari, 1974; Japiassu, 1977). O século XVII marca o inicio da ciência moderna (Andery, 2004), o empirismo ganha força e o conhe- cimento por meio da observação e da experimentação torna-se a base da ciência. Descartes (1596-1650) foi o principal estudioso dessa nova forma de fazer ciên- cia. Em meados do século XIX, o positivismo impregna o pensamento filosófico europeu, fundamentado por Auguste Comte (1798–1857). Seu empreendimento consistiu em uma pesquisa sistemática do conheci- mento humano e o controle dessa tarefa foi determi- nado por meio do método científico (Schultz & Schultz, 2007). A ciência mantém o ideal da experimentação, aceitando somente o conhecimento objetivo, sistemá- tico, universal e baseado no método hipotético-indu- tivo, o qual permite a construção de leis e a generali- zação a partir de teorias (Andery, 2004; Araújo, 1998; Chauí, 2003; Japiassu, 1977). A palavra grega “método” é formada por duas partes e significa através/por meio (me-ta) do ca- minho (odos), e está relacionada à sistematização de procedimentos, comuns a várias ciências, que conduzem a obtenção das explicações, descrições e compreensões (Araújo, 1998; Ferrari, 1974). O mé- todo confere objetividade á abordagem do evento, definindo-o como objeto científico capaz de ser con- trolável, verificável, interpretável e possível de ser corroborado ou corrigido em outras elaborações (Andery, 2004; Chauí, 2003; Marconi & Lakatos, 2010). A demonstração e a prova dos resultados são possíveis por meio do rigor e da sistematização proporcionadas pelo método, isso fundamenta a va- lidade do estudo. O fato estudado em particular é relacionado a um todo, sendo unificado em uma ex- plicação racional e possibilitando estabelecer uma teoria científica (indução) (Araújo, 1998; Nagel, 1968; Ruiz, 1979). A dimensão assumida pelo mé- todo supera as técnicas usadas, sendo o aparato tec- nológico resultado dos obstáculos percebidos na re- alidade, apresentando indícios dos limites teóricos. A especificidade do método científico depende dos contornos que assume, podendo ser: observação e descrição; experimentação; construção de sistemas formais e modelos explicativos; levantamento etes- te de hipóteses, com explicações através de leis e/ou teorias. Assim, o método pode adquirir um caráter dedutivo, indutivo ou ambos, conduzindo a um conhe- cimento passível de validação, seja através de teste Psicol. Argum. 2013 jul./set., 31(74), 495-505 Epistemologia da neuropsicologia 497 empírico, seja pelo confronto crítico de hipóteses e te- orias. Importante considerar que a indução contém a marca de uma teoria aceita na prática científica; sendo assim, as ciências naturais não se fundamentam apenas no empirismo puro, possuindo também uma teoria que formata a formação de hipóteses (Abbagnano, 1970; Andery, 2004; Araújo, 1998; Chauí, 2003; Japiassu, 1977; Mason, 1980). Epistemologia O método científico caracteriza as neurociências, pois o objeto material, o sistema nervoso central do ser humano, é bem determinado, assim como o mé- todo, conhecimento ob-tido a partir da observação e experimentação, tendo em vista conclusões objetivas, sistemáticas, capazes de definir conceitos, conduzir a leis e formar teorias, justificando-se, desse modo, a fundamentação epistemológica das neurociências (Almeida & Gomes, 2001; Kristensen, Almeida & Gomes, 2001; Marconi & Lakatos, 2010; Rose, 1984). Etimologicamente a palavra epistemologia remete ao “estudo da ciência” (epistheme = ciência, e logos = estudo, discurso) (Abbagnano, 1998), da sua investi- gação enquanto lógica do conhecimento. O vigor das ciências no século XIX exigiu da filosofia a abordagem do discurso científico, sendo a epistemologia uma dis- ciplina filosófica que, por meio do método crítico, pre- ocupa-se com a sintaxe e a semântica da ciência, bem como a crítica do conhecimento científico, sua história e desenvolvimento (Abbagnano, 1970; Araújo, 1998; Reale & Antiseri 1990). A ciência moderna fortaleceu o empirismo lógico, afirmando a capacidade do método indutivo em alcan- çar enunciados gerais a partir de operações lógicas. David Hume (1711–1776) questionou o indutivismo, considerando que não importa a quantidade de enun- ciados emitidos após inúmeras observações, pois ja- mais se alcançará um enunciado geral. O empirismo lógico argumentou a partir do cálculo de probabili- dade de certeza das leis ou teorias científicas. Rudolf Carnap (1897–1970) propôs princípios lógicos para calcular tais proporções e o grau de probabilidade que elas conferem a uma teoria (Kneller, 1980). Karl Popper (1902-1994) colocou-se contra o empirismo lógico, considerando que, apesar de toda probabilidade, uma teoria poderá sempre ser refu- tada pela prova que se apresentar a seguir (Popper, 1975). A falseabilidade, a possibilidade de negar os pressupostos de uma teoria, seria o melhor caminho para a sua fundamentação (Popper, 1986). Uma teoria que não pode ser refutada não é científica, é dogmáti- ca ou metafísica, sendo os principais exemplos o mar- xismo e a psicanálise (Popper, 1986). O verificacionis- mo e o refutacionismo são conditio sine qua non para a sobrevivência de uma teoria cientifica. Uma ciência elabora suas hipóteses para os problemas que se apre- sentam e as mantém até que sejam refutadas ou falsi- ficadas por algum novo evento. Desse modo as teorias são verdades peremptórias, sobrevivem até serem contestadas ou até que não sejam capazes de explicar novos problemas (Chauí, 2003; Kneller, 1980; Popper, 1986). A validade de uma teoria está na abertura que deixa para fatos novos, os quais poderão falsificar os princípios e os conceitos que a fundamentam. A veros- similhança de uma teoria é apontada a partir das suas consequências lógicas (Popper, 1975). Thomas Kuhn (1922-1996) construiu a reflexão epistemológica a partir da história da ciência e defen- deu o progresso da atividade científica através das tradições de pesquisa. Isso porque elas possibilitam o desenvolvimento de uma ciência “madura” (Kuhn, 2003), caracterizada por uma sucessão de tradições de pesquisa, cada uma com teoria e métodos pró- prios, responsáveis por uma comunidade de cientis- tas durante certo tempo e sendo, finalmente, aban- donada. Kuhn começou por chamar as ideias de uma tradição cientifica de “paradigma”, designadas mais tarde por “matriz disciplinar”, indicando, de modo geral, uma visão do mundo expressa numa teoria. O paradigma como um todo determina os problemas investigados, os dados considerados pertinentes, as técnicas de investigação usadas e os tipos de solu- ções admitidas. Kuhn divide a historia da ciência ma- dura em fases “normais” e “revolucionárias”. Durante a ciência normal, os pesquisadores desenvolvem as implicações de um paradigma ou matriz disciplinar o mais completamente possível, sendo um modo efi- ciente de solucionar problemas e ampliar uma teoria importante. As ciências “imaturas” (por exemplo, a Psicologia e a Sociologia) progridem pouco, pois ca- recem de paradigmas, divididas como estão em es- colas rivais (Kneller, 1980; Kuhn, 1979; Kuhn, 2003). Para Kuhn, todo paradigma prepara o caminho para o seu sucessor. Como qualquer teoria é uma abstração da realidade, nenhuma teoria pode pre- tender explicar todos os fenômenos em seu domí- nio. A pesquisa à sombra de um paradigma assegu- ra que o maior número possível desses fatos será Psicol. Argum. 2013 jul./set., 31(74), 495-505 Lima, D. S., & Riechi, T. I. J. S.498 cérebro. A atual configuração do conhecimento sobre o sistema nervoso central (células neurais, cérebro e comportamento) foi possível a partir de cinco impor- tantes disciplinas experimentais: anatomia, embriolo- gia, fisiologia, farmacologia e psicologia (Fiori, 2008; Kandel & Kupfermann, 1997; Kristensen et al., 2001). No final do século XIX, o tecido neural tornou-se tema de uma ciência, quando os estudos do médico italiano Camillo Golgi (1843–1926) e do histologista espanhol Santiago Ramón y Cajal (1852–1934) des- creveram os detalhes da estrutura das células neurais. O microscópio composto revelou a estrutura celular do tecido neural. Golgi desenvolveu um método de coloração por prata, que permitia a visualização das organelas celulares do neurônio, como corpo celular, dendritos e axônios. Cajal, através desse método, mar- cou células individuais demonstrando a composição do tecido neural por uma rede de células distintas; também desenvolveu conceitos que permitiram o ini- cio de uma doutrina do neurônio, seguindo o princípio de que os neurônios individuais são os elementos si- nalizadores primários do sistema nervoso (Gazzaniga et al., 2006; Kandel & Kupfermann, 1997). A investigação fisiológica do sistema nervoso teve inicio no fim do século XVIII, com a descoberta das propriedades elétricas das células musculares e neu- rais, pelo médico e físico italiano Luigi Galvani (1737- 1798). Os fisiologistas alemães Gustav Theodor Fritsch (1838–1907) e Eduard Hitzig (1838-1927) obtiveram de modelos animais a comprovação da relação entre estimulação do encéfalo e mudanças no comporta- mento. Essa descoberta levou os neuroanatomistas a desenvolver uma análise detalhada do córtex cerebral e da organização celular. Como essas regiões executa- vam diferentes funções, concluíram que deviam olhar de modo diverso o nível celular (Fiori, 2008; Gazzaniga et al., 2006; Kandel & Kupfermann, 1997; Pinel, 2005). No fim do século XIX a farmacologia ofereceu contribuição para a compreensão do sistema nervo- so e do comportamento, comprovando que substân- cias químicas interagem com receptores específicos nas células. As descobertas fundamentaram as pes- quisas em torno da comunicação química das célu- las neuronais (Kolb & Whishaw, 2003). A neuropsicologia De acordo com estudos de alguns historiado- res das neurociências, a neuropsicologia moderna encontrado o mais depressa possível. Quando um paradigma é amplamente elaborado e se defronta com as anomalias que assinalam os seus limites, os cientistas precisam procurar um sucessor, configu- rando uma revolução científica (Kuhn, 2003). Psicologia e cientificidade A constituiçãoda Psicologia como ciência natu- ral, diversa do estudo metafísico da filosofia, iniciou com a psicologia fisiológica de Wundt (1832–1920), realizada em laboratórios e enfatizando mais o mé- todo do que o objeto de estudo. A psicologia adotou o método experimental e centrou a investigação sobre o comportamento, encontrando a forma de constituir-se minimamente como ciência natural. A ampla divulgação do evolucionismo teve importân- cia na definição do objeto da psicologia e o interesse pelas relações entre funções mentais superiores e correlato neural foi assumido por médicos, os quais estudavam as afasias e a relação com áreas cerebrais (Kristensen et al., 2001; Schultz & Schultz, 2007). Na primeira metade do século XX o funcionalismo orientou a pesquisa psicológica. Thorndike (1874– 1949) considerava as discussões sobre mente e cor- po uma questão ontológica da filosofia. Titchener (1867–1927), estruturalista, ficou entre o parale- lismo, no qual a mente não depende do corpo para ser estudada, posição defendida por Wundt, e a con- cepção da experiência unitária entre mente e corpo. Watson (1878–1958) negou o problema ao descar- tar a consciência. Karl Spencer Lashley (1890–1958) investigou as implicações da localização das funções cerebrais (equipotencialidade); os psicólogos da Gestalt trabalharam conceitos de campo perceptual e isomorfismo e Donald Olding Hebb (1904–1985) de- senvolveu a teoria de montagens neurais (Kristensen et al., 2001; Pinheiro, 2005). Neurociências As neurociências nascem do interesse crescente em torno do funcionamento do cérebro. No século XX acontecem várias descobertas a respeito das células neuronais e da estrutura cerebral. A unificação das ciências biológicas permitiu a fusão da ciência neural com a biologia celular e molecular, havendo ainda a re- lação entre o estudo do comportamento e a ciência do Psicol. Argum. 2013 jul./set., 31(74), 495-505 Epistemologia da neuropsicologia 499 medicina e filosofia, assumindo uma perspectiva etio- lógica baseada na observação (Crivellato & Ribatti, 2007). Mas a questão da relação entre corpo e alma não foi abandonada, sendo a saúde considerada uma justa harmonia dessas duas dimensões. Pitágoras (580-510 a.C) delineia algumas ob- servações localizacionistas ao defender a mora- da da mente no encéfalo e no coração a região da alma e das sensações; Alcmeon (500 a.C) apresen- tou uma descrição dos nervos ópticos e estudos sobre distúrbios funcionais do encéfalo, concluin- do que nele estariam a inteligência e os sentidos; Hipócrates (460-370 a.C) estudou a epilepsia, con- siderando-a um distúrbio do encéfalo, localizando aí também a inteligência e as sensações (Reale & Antiseri, 1990); Demócrito (470-360 a.C.) também fez a relação entre funções mentais e corpo, assim o pensamento teria sede no cérebro, a ira no cora- ção e o desejo no fígado. Platão (428-347 a.C.) con- siderava o encéfalo como local de realização dos processos mentais, sendo a alma constituída por três partes bem definidas e com localizações diver- sas. O coração seria o local onde habitava a alma afetiva; no cérebro havia lugar para a alma intelec- tiva; e no ventre estaria localizada a alma concu- piscível, relacionada ao apetite sexual. Aristóteles (384–322 a.C.) defendeu o coração como o centro das sensações, das paixões e do intelecto (tese car- diocentrista), sendo função térmica a atividade do encéfalo, necessária para refrigerar o corpo e a alma (Mondin, 1997; Pinel, 2005). Os conhecimentos médicos de Galeno (203–130 a. C.), médico de gladiadores, tornaram-se dogmáticos por mais de mil anos; ele fazia analogias anatômicas sobre o funcionamento cerebral a partir da dissecação de animais. Galeno apresentava o cérebro humano formado pelo cerebrum, relacionado às sensações e memória, e o cerebellum, relacionado aos movimentos musculares. Os nervos eram dutos que conduziam os líquidos vitais ou humores, garantindo o registro das sensações e dos movimentos (Zimmer, 2004). Os estudos de anatomia foram prejudicados pelo desenvolvimento da tradição cristã católica, a qual defendia a dignidade do ser humano e a sua não profanação pelos estudos invasivos da anato- mia. Outros fatos como a invasão dos bárbaros que destruíram o Império Romano e a Biblioteca de Alexandria, colocaram a Europa numa época de in- segurança e recolhimento, cabendo aos árabes pre- servar os documentos recuperados de Alexandria. começa com Donald Oding Hebb (1904–1985), Karl Spencer Lashley (1890–1958) e Aleksandr Romanovitch Luria (1902–1977). O termo neurop- sicologia foi usado primeiramente em 1913, em uma preleção realizada por Sir William Osler, mas o desenvolvimento de fato iniciou nos anos 1940, na obra de Hebb, The Organization of Behavior: A Neuropsychological Theory (Engelhardt, Rozenthal & Lacks, 1995; Kolb & Whishaw, 2003). A neuropsi- cologia acompanhou os outros campos das neuro- ciências, trazendo contribuições no que se refere à interação entre cognição, comportamento humano e atividade do sistema nervoso cerebral. A interdis- ciplinaridade mostra-se como pilar da neuropsi- cologia, visto a utilização de saberes da anatomia, fisiologia, neurologia, psiquiatria, psicologia e ou- tras que contribuem para o avanço e mapeamento das funções cerebrais. O desenvolvimento histórico dos estudos da relação entre funções mentais, com- portamento e sua base fisiológica ajudam a enten- der a constituição do objeto e do método científico da neuropsicologia (Kristensen et al., 2001; Lezak, 1995; Mader, 1996; Toni, Romanelli & Salvo, 2005). Desenvolvimento histórico da neuropsicologia A investigação da relação do comportamento hu- mano com bases biológicas tem raízes bastante remo- tas (Eccles, 1989; Landeira-Fernandez & Castro, 2010; Pinheiro, 2005). A trepanação, prática de caráter tera- pêutico ou ritualista, que consistia na perfuração do crânio, de 7.000 a 20.000 anos atrás, deixou vestígios em vários continentes e denúncia a importância do cé- rebro para as curas ou ritos (Gordon, 1995). Durante a Idade Média a trepanação foi prática corrente, pois havia a busca pela “pedra da loucura” no cérebro de pacientes com sintomatologia psiquiátrica, e também a crença de que maus espíritos habitavam o cérebro desses pacientes, sendo possível sua retirada por meio de perfurações no crânio. O papiro de Edwin Smith (Puigbó, 2002), desco- berto no Egito em meados do século XIX, escrito por volta de 1700 a.C., apresenta considerações cirúrgi- cas sobre 48 casos, indicando a descrição clínica, os possíveis tratamentos e prognósticos, considerações sobre as meninges, líquor e medula espinhal, usando pela primeira vez o termo “encéfalo” (Bear, Connors & Paradiso, 2002; Changeux, 1991; Zimmer, 2004). A Grécia realizou no século V a.C. a distinção entre Psicol. Argum. 2013 jul./set., 31(74), 495-505 Lima, D. S., & Riechi, T. I. J. S.500 Localizacionismo e Holismo: descrições a partir da experiência. As tentativas de relacionar as funções mentais e o comportamento conforme o método científico ini- ciaram no final do século XVIII, com o conhecimento sobre afasia (Kolb & Whisaw, 2003). Franz Joseph Gall (1758–1828), anatomista, colocou a relação en- tre afasia e cérebro em primeiro plano, tornando-se um importante precursor da neuropsicologia. Gall, que seguia uma ontologia materialista, considerava o cérebro como o substrato essencial para o exercí- cio das faculdades mentais, mostrando-se evidente para ele a relação entre lesão frontal e transtornos afásicos. Com Spurzheim (1776–1832) desenvolveu a teoria da relação entre protuberâncias na calota craniana e funções mentais, chamada de frenologia (frenos em grego = mente) (Pinel, 2005). Gall inau- gurou a corrente localizacionista, afirmando que as funções mentais seriam clara e definitivamente loca- lizáveis nas circunvoluções do córtex cerebral; con- tribui com a neuroanatomia e neurofisiologia, seu mérito foi revolucionar as neurociênciascom uma concepção não dualista, o que incentivou o início das neurocirurgias que tentavam alterar o compor- tamento. Tais experimentos indicam o nascimento da neurociência experimental (Herculano-Houzel, 2001; Kolb & Whisaw, 2003; Toni et al., 2005). Florens (1794–1867) combateu a frenologia através de experimentos com animais, relacionando o cerebelo com a motricidade, o bulbo com a respi- ração e o cérebro com a inteligência e a percepção; seguiu a perspectiva cartesiana e defendeu que o funcionamento da mente dependia da totalidade da massa cerebral. Suas ideias anteciparam a noção de equipotencialidade (plasticidade neuronal) e deram início ao movimento que resultou na corrente ho- lista da função cerebral (Bear, Connors & Paradiso, 2002; Kolb & Whisaw, 2003; Pinheiro, 2005). Bouillaud (1796–1881) foi defensor das ideias de Gall e procurou comprovar, a partir de estudos anatomoclínicos, a relação entre afasias e áreas do cérebro. Seu aluno, Pierre Paul Broca (1824–1880), médico e antropólogo, demonstrou a relação entre lobo frontal esquerdo e linguagem. As pesquisas de Broca, baseadas em avaliações clínicas e estudos anatômicos, são consideradas o inicio da neurop- sicologia. Em 1865, Broca associou o hemisfério esquerdo com a produção da fala e com a ideia de dominância manual, pois lesões na porção do ter- ceiro giro frontal do hemisfério esquerdo provocam A renovação cultural renascentista, no início da Idade Moderna, contribuiu para inovações no cam- po da anatomia, destacando as figuras de Andreas Vesalius (1514-1564) e Leonardo da Vinci (1452- 1519). Da Vinci obteve os moldes dos ventrículos cerebrais a partir da introjeção de cera líquida no cérebro. Isso evidenciou a existência de quatro ventrículos e não três como se acreditava. Os de- senhos de Da Vinci ficaram na penumbra por apro- ximadamente 300 anos, período no qual fulgurou Vesalius com a publicação da obra De humani cor- poris fabrica libri septem (1543), na qual as ilus- trações tiveram como base estudos realizados em cadáveres humanos (Mason, 1980; Pinheiro, 2005; Zimmer, 2004). René Descartes (1596–1650) era conhecedor da obra de Vesalius, da descoberta da circulação do sangue por Harvey (1628) e aceitou o modelo me- cânico vigente. O pensamento cartesiano contribuiu para o avanço das novas perspectivas da ciência na Idade Moderna, não só no que se refere às pesqui- sas físicas, mas também com relação às pesquisas biológicas e fisiológicas. Descartes (2009) recusou a noção aristotélica da alma como forma do corpo ou a alma como princípio vital proposta pelos esco- lásticos e apresentou a alma como substância pen- sante (res cogitans), de natureza diversa do corpo (res extensa), marcada pela indivisibilidade em con- traste com o corpo divisível. O ponto de interação entre alma e corpo seria a glândula pineal, parte do cérebro não passível de duplicação (Brett, 1953; Damásio, 1996; Kristensen et al, 2001). David Hartley (1705–1757), Albrecht von Haller (1707–1777) e Porchaska (1749–1820) continuaram as tentativas de abordarem a relação cérebro e men- te no século XVIII; afirmações foram feitas a partir de estudos anatômicos sobre a sensação, percepção, memória e suas relações com o cérebro. Entretanto, o cérebro continuou sendo considerado uma massa homogênea, responsável por distribuir energia vital para o corpo. No século XIX a fisiologia dos sentidos tentou explicar o intelecto. Bell (1774–1842) dife- renciou nervos sensórios e motores; Muller (1801– 1858) apresentou a teoria das energias específicas dos nervos; Helmholtz (1821–1894) realizou estu- dos inovadores sobre ótica e audição; Weber (1795– 1878) trabalhou com a sensação epitelial; Fechner (1801–1887) elaborou uma formula matemática capaz de medir o limiar sensorial (Kristensen et al, 2001; Schultz & Schultz, 2007). Psicol. Argum. 2013 jul./set., 31(74), 495-505 Epistemologia da neuropsicologia 501 por alternativas às explicações localizacionistas e globalistas. Três princípios organizaram a posição sistêmica de Vygotsky quanto às funções corticais: a) interfuncionalidade; b) plasticidade; e c) modifi- cabilidade. Essa orientação de pesquisa influenciou outros estudiosos como o neurologista Alexander Romanovich Luria (1902–1977), que inaugurou uma nova fase da neuropsicologia e propôs uma ciência que mantinha o equilíbrio com a fisiologia e a neurologia, sem perder a sua especificidade e estando imbricada com uma perspectiva humanis- ta no que diz respeito às questões clínicas estuda- das. Luria contribuiu para uma inovadora aborda- gem do exame clinico, pois influenciado pela sua ampla visão das funções corticais, passou a usar técnicas modestas, mas que fundamentaram uma nova metodologia de aproximação das manifesta- ções comportamentais. A coerente compilação dos elementos envolvidos na relação entre cérebro e comportamento deu origem a um modelo teórico, até então inexistente, capaz de sustentar as inves- tigações neuropsicológicas (Kristensen et al., 2001; Luria, 1981; Toni et al., 2005). A neurociência cognitiva O inicio da década de 1950 foi marcada nos Estados Unidos pela oposição ao behaviorismo, de- senvolvendo-se a psicologia cognitiva e seu foco no processamento de informação (Witsken, Damato & Hartlage, 2008). Os processos e representações men- tais tiveram relevância para os trabalhos de George Miller em 1956, que investigou as limitações da ca- pacidade do pensamento humano, tais como as da memória de curto-prazo. Muitos outros empreen- dimentos foram colocados em prática pela psico- logia cognitiva, como a fundação de laboratórios e o questionamento das principais teses do behavio- rismo. O conceito de um organismo moldado pelo ambiente foi alterado pelo médico neurologista Karl H. Pribram, o qual se posicionou favorável aos ele- mentos de iniciativa, perspectivas e intenções dos organismos (Kristensen et al., 2001). A Inglaterra, a partir dos trabalhos da relação entre escrita e lesão cerebral de Marshall e Newcombe, em 1973, foi o palco do encontro entre a neuropsicologia e a psico- logia cognitiva (Witsken et al., 2008). O paradigma do processamento da informação divulgado pela psico- logia cognitiva logo foi usado para pesquisar também prejuízo na articulação da fala, o que designou por afemia. Broca defendeu a assimetria funcional e do- minância dos hemisférios (Gazzaniga et al., 2006; Kandel, 1997a; Toni et al., 2005). Em 1874, Carl Wernicke (1848–1905) descreveu a relação causal entre a lesão no primeiro giro tem- poral esquerdo e uma das formas clínicas de afasia, a afasia sensorial: prejuízo na compreensão da lin- guagem. Wernicke descreveu ainda o que denomi- nou de afasia de condução, na qual uma lesão afeta as fibras associativas que conectam o primeiro giro temporal ao terceiro giro frontal no hemisfério es- querdo, indicando a existência de um tipo de afasia na qual o paciente pode compreender a linguagem de outros e ter capacidade de produção, mas apre- sentar um distúrbio grave na repetição (Gazzaniga et al., 2006; Kandel, 1997a). Broca e Wernicke revi- talizam o localizacionismo e outros autores, chama- dos de associacionistas, empenharam-se no estudo dos centros relacionados à linguagem. Funções não linguísticas também tiveram áreas cerebrais deli- mitadas. Em 1855, Panizza descreveu cegueira em pacientes com lesão na região occipital. No século XIX o caso de Phineas Gage foi relatado por John M. Harlow (1848–1849). Gage passou a apresentar alterações de comportamento após lesão no lobo frontal (Damásio, 1996; Kristensen et al., 2001). John Huhlings Jackson (1834–1911) imprimiu uma grande mudança nos estudos da relação entre cé- rebro e comportamento ao destacar a hierarquia funcional do sistema nervoso, lançando as bases para o futuro desenvolvimento da Teoria do Sistema Funcional de Vygotsky e Luria, cinquenta anos mais tarde (Toni et al., 2005). Estudos neuropsicológicos na Rússia Em paralelo ao pulsarde pesquisas neuropsi- cológicas na Europa, também a Rússia destacou- -se com importantes estudos. Em 1789, L. Bolotov plantou as sementes das investigações e iniciou um intenso período de pesquisa sobre a afasia, sendo que a neurologia e a psicologia russa não apenas contribuíram com a descrição dos sintomas, como também explicaram os mecanismos psicofisiológi- cos causais inerentes aos transtornos da linguagem. A tradição fisiológica de Sechenov (1829–1905) e Ivan P. Pavlov (1849–1936) influenciou a inves- tigação de Lev Vygotsky (1896–1934) na busca Psicol. Argum. 2013 jul./set., 31(74), 495-505 Lima, D. S., & Riechi, T. I. J. S.502 experiência, mas sim a tentativa de falsificá-la, ten- tando encontrar elementos que não corroborem as suas conclusões. Uma teoria não corroborada dá es- paço para outra teoria que responde aos problemas da antiga e aos novos desafios. Popper defende o progresso da ciência a partir da constante substitui- ção das teorias, as quais avançam em suas respostas aos problemas. Seguindo essa lógica, uma teoria é herdeira da outra, isso pelo contato de conceitos e contribuições recebidas da teoria anterior. Kuhn considerou equivocada essa noção de evo- lução das ciências, pois para ele uma teoria é diver- sa da outra. Os conceitos de uma teoria não podem ser utilizados em outra, tendo em vista que os pro- blemas, as condições e vários fatores científicos são diversos. Kuhn defende que o progresso das ciên- cias se dá por meio de revoluções científicas, pois uma teoria que não responde mais aos problemas que aparecem é substituída por outra capaz de res- ponder às questões da teoria anterior e aos novos problemas que apareceram. Para ele, a nova teoria não utiliza os conceitos da anterior da mesma for- ma, ela é inovadora. Surge, assim, a ciência normal, a qual corresponde a um paradigma que dá susten- tação às varias teorias respondentes dos problemas de uma época (Chauí, 2003; Kneller, 1980; Kuhn, 1979; Popper, 1986). O diálogo entre Popper e Kuhn pode ser estimu- lado para análise da história da formação das neu- rociências e constituição da teoria neuropsicológi- ca. Seguindo o raciocínio de Popper, percebem-se as conjecturas em torno da relação entre funções mentais e sistema biológico, estabelecidas ao longo da reflexão sobre esse tema; aconteceram avanços especulativos até a adoção do método experimen- tal. No desenvolvimento dessas explicações os con- ceitos foram sendo passados de teoria para teoria e, conforme apresenta Kuhn, não foram usados da mesma forma nos diferentes sistemas teóricos, ocasionando desentendimentos e equívocos. Gall e Florens assumiram posições teóricas diversas, sen- do que Florens pesquisou a posição localizacionista de Gall e manifestou as inconsistências, realizando a falseabilidade da frenologia, conforme proposto por Popper. A frenologia não se sustentou e por isso foi substituída por novas posições localizacionistas, com conceitos herdados da frenologia, mas com no- vas configurações. Kuhn estabelece as revoluções cientificas a par- tir das mudanças de paradigma. E o surgimento outras funções cognitivas. A neuropsicologia cogni- tiva tornou-se uma disciplina mais coerente após o um conjunto de explicações sobre a cognição huma- na normal, desenvolvido por psicólogos cognitivos, principalmente em face da ênfase no desempenho de pacientes com lesão cerebral (Beaumont, 2008; Kristensen et al., 2001; Witsken et al., 2008). Discussão O avançar das ciências nos últimos decênios re- velou, a partir do aprimoramento da aquisição do conhecimento, novas perspectivas sobre a realida- de humana. Não apenas o mundo externo foi inves- tigado, mas o homem foi explorado em toda a sua interioridade na busca de entendimento dos seus aspectos biológicos e, consequentemente, também dos elementos que o tornam um gênero distinto de todos os outros seres viventes, as suas funções men- tais superiores (Boncinelli, 2005). Os avanços em várias áreas de pesquisa do sistema nervoso cen- tral, tais como fisiologia, psicofarmacologia, neuro- logia e psicologia, garantiram descobertas de diver- sos níveis de complexidade (Kandel, 1997b). A pura especulação da filosofia foi abandonada em favor da experimentação e o comportamento investigado em suas bases biológicas. A linguagem, o pensamento, a memória, a atenção, enfim, todas as chamadas fa- culdades mentais, passaram a ser observadas e o seu substrato cerebral dissecado (Gazzaniga et al., 2006, Kolb & Whisaw, 2003; Kristensen et al., 2001; Toni et al., 2005). A pergunta sobre quem é o ho- mem adquiriu diferentes contornos ao longo das transformações da investigação científica, sendo que uma das maiores revoluções advém da investi- gação sobre os aspectos neurológicos e comporta- mentais do ser humano, proporcionada pelas neu- rociências (Boncinelli, 2005). Interface epistemológica da neuropsicologia K. Popper e T. Kuhn em suas epistemologias, apesar de genéricas e com considerações reticentes quanto à psicologia, fornecem categorias e concei- tos passíveis de serem aplicados na reflexão dos fundamentos científicos da neuropsicologia. Popper argumenta que a validade de uma teoria não depen- de da afirmação dos seus pressupostos por meio da Psicol. Argum. 2013 jul./set., 31(74), 495-505 Epistemologia da neuropsicologia 503 deste entrave, mas ainda lentamente (Beaumont, 2008). O debate sobre as bases biológicas do com- portamento sempre esbarra no histórico conflito das relações entre mente e corpo, estabelecendo-se duas concepções básicas, o dualismo e o monismo. O dualismo defende a existência de dois princípios irredutíveis e o monismo reduz o conjunto das coi- sas à unidade, tanto do ponto de vista da substân- cia quanto no que se refere às leis lógicas ou físicas (Damásio, 1996; Pinheiro, 2005). Considerações finais A ciência se desenvolve na sociedade e responde aos desafios de cada época. Um trabalho científico também reflete em sua natureza, metodologia e ter- minologia os interesses externos às pesquisas, mes- mo os propósitos e preconceitos do próprio cientis- ta (Rose, 1984). A neuropsicologia historicamente testemunha os condicionamentos impostos pelos métodos de acesso às funções mentais e produz co- nhecimento com consequências científicas e sociais, sendo necessário abordar a sua importância para o conhecimento psicológico e para a sociedade. Cabe considerar que a ciência psicológica não se reduz à neuropsicologia, sendo esta um ramo científico que apresenta horizontes amplos para a psicologia, possibilitando a integração de compre- ensões, bases conceituais e muitas questões sim- bólicas (Kristensen et al., 2001). A revista Nature (Anônimo, 2009, oct. 15) alertou para as contribui- ções das neurociências à psicologia científica, pois durante os últimos 20 anos, a ciência tem feito gran- des progressos em direções que poderiam apoiar a psicologia clínica, tais como a neuroimagem, assim como a genética molecular e comportamental e neurociência cognitiva. Desse modo, a interação da psicologia com a neuropsicologia afirma o caráter interdisciplinar desta e, atualmente, contribui para o conhecimento do cérebro e suas relações com o comportamento através da neuropsicologia clínica e da reabilitação cognitiva. O pensamento humano continua a ser um desa- fio para a ciência. E a disciplina neuropsicológica mostra-se capaz de investigar cientificamente este desafio e oferecer respostas. Contudo, há de se con- siderar com parcimônia toda promessa científica. Considerar esse fato irrelevante é correr o risco de gerar falsas esperanças e criar celeumas, tendo em recente da neuropsicologia, com sua fundamenta- ção do ser humano como um todo biopsicosocial, constitui uma revolução científica, principalmente por adotar uma visão nova para uma problemática velha, por expandir os sistemas de problemas, por obter êxito onde enfoques alternativos fracassam e por promover a fusão de disciplinas anteriormenteseparadas (Riechi, 1996). Bilder (2011) propõe uma agenda para a Neuro- psicologia contemporânea, sendo uma de suas ta- refas fundamentais a formalização de conceitos e medidas de maneira ampla e bem definida, capaz de indicar com precisão o que a neuropsicologia aborda, além de agregar o conhecimento produzi- do por outras áreas neurocientíficas de interface. As transformações científicas provocadas pelas novas tecnologias exigem a clareza de conceitos e a definição de paradigmas no interior da neurop- sicologia. Outra meta seria a construção de redes colaborativas de troca de conhecimentos, pois as tecnologias da informação permitem a elaboração de plataformas de dados, capazes de servir de base para os mais diversos centros de pesquisa. Bilder (2011) também sugere a incorporação das novas tecnologias nas práticas neuropsicológicas. Assim, a avaliação neuropsicológica seria beneficiada pela utilização de técnicas computacionais, o que pode- ria trazer maior precisão na aplicação de testes. Problemas Uma teoria científica, tanto para Kuhn quan- to para Popper, tem seu valor de verdade prova- do pelos problemas que suscita, pois provocam as pesquisas e o desenvolvimento teórico. A agenda proposta por Bilder para a Neuropsicologia revela alguns dos problemas constitutivos dessa ciência contemporânea, sendo que outros dois problemas fundamentais também estão no bojo da pesquisa neuropsicológica, sendo que a solução dada é deter- minante para a construção do conhecimento. Esses problemas são a questão do método e a discussão entre monismo e dualismo. Quanto ao método, o maior problema refere-se à produção de conheci- mento baseada amplamente em inferências realiza- das após o funcionamento do cérebro, ou seja, não é um conhecimento produzido diante do cérebro em funcionamento. As novas técnicas de imagea- mento cerebral estão superando alguns elementos Psicol. Argum. 2013 jul./set., 31(74), 495-505 Lima, D. S., & Riechi, T. I. J. S.504 Boncinelli, E. (2005). Necessità e contingenza della natu- ra umana. Micromega, almanacco di filosofia, 4, 8-27. Changeux, J. P. (1991). O homem neural. Lisboa: Dom Quixote. Chauí, M. (2003). Convite à Filosofia. São Paulo: Ática. Churchland, P. M. (2004). Matéria e consciência: Uma introdução contemporânea à filosofia da mente. São Paulo: Unesp. Churchland, P. S. (1996). Neurophilosophy: Toward a uni- fied science of the mind- brain. Cambridge: MIT Press. Crivellato, E., & Ribatti, D. (2007). 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Contudo, essa investigação continua em aberto (Bennett & Hacker, 2003; Churchland, 1996; Churchland, 2004) e susci- tando o espírito científico, exigindo constantemente uma reflexão epistemológica, pois as consequências da posição tomada irão refletir na visão de homem e no modo de fazer ciência. Referências Abbagnano, N. (1970). História da Filosofia. (Vol. 1). Lisboa: Editorial Presença. Abbagnano, N. (1998). Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes. Andery, M. A. M. (2004). Para compreender a ciência. São Paulo: Educ. Anônimo (2009, oct. 15). Psychology: A reality check. Nature, 461(7266). Araújo, I. L. (1998). Introdução à Filosofia da Ciência (2. ed.). Curitiba: Editora da UFPR. Aristóteles (1977). Metafísica. (Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural. Bear, M. F., Connors, B. W., & Paradiso, M. A. (2002). Neurociências: Desvendando o sistema nervoso. Porto Alegre: Artmed. Beaumont, J. G. (2008). The discipline of neuropsycholo- gy. In J. G. Beaumont. 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