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<p>Curso de Direito Penal</p><p>Parte Geral</p><p>Re*r**te o í i r l c aitcra*</p><p>Procurar</p><p>C l á u d io B r a n d ã o</p><p>Pós-Doutor cm Direito. Professor dos Cursos de Graduação, Mestrado c Doutorado cm</p><p>Direito da UFPE. Coordenador do Curso de Direito da Faculdade</p><p>Damas da Instrução Cristã.</p><p>Curso de Direito Penal</p><p>Parte Geral</p><p>2.a edição</p><p>Rio d e Janeiro</p><p>2010</p><p>Procurar</p><p>1" edição - 2008</p><p>l1 edição - 2008 - 2* tiragem</p><p>2* edição-2010</p><p>© Copyright</p><p>Cláudio Brandão</p><p>CIP-Brasil. Catalogação-na-fontc.</p><p>Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.</p><p>B817c</p><p>Brandão, Cláudio, 1974 -</p><p>Curso de direito penal: parte geral - 2. ed. / Cláudio Brandão - Rio de Janeiro: Forense, 2010.</p><p>ISBN 978-85-309-3203-9</p><p>1. Direito penal - Brasil. I. Título.</p><p>08-0897 CDU: 343(81)</p><p>O titular cuja obra seja fraudulcntamcntc reproduzida, divulgada ou de qualquer forma utili­</p><p>zada poderá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação, sem</p><p>prejuízo da indenização (art. 102 da Lei n. 9.610, de 19.02.1998).</p><p>Quem vender, expuser à venda, ocultar, adquirir, distribuir, tiver cm depósito ou utilizar obra</p><p>ou fonograma reproduzidos com fraude, com a finalidade de vender, obter ganho, vantagem, provei­</p><p>to, lucro direto ou indireto, para si ou para outrem, será solidariamente responsável com o contrafator,</p><p>nos termos dos artigos precedentes, respondendo como contrafatorcs o importador c o distribuidor</p><p>cm caso de reprodução no exterior (art. 104 da Lei n. 9.610/98).</p><p>A EDITORA FORENSE se responsabiliza pelos vícios do produto no que conccmc à sua</p><p>edição, aí compreendidas a impressão c a apresentação, a fim de possibilitar ao consumidor bem</p><p>manuseá-lo c lc-lo. Os vícios relacionados à atualização da obra, aos conceitos doutrinários, às con­</p><p>cepções ideológicas c referencias indevidas são de responsabilidade do autor c/ou atualizador.</p><p>As reclamações devem ser feitas até noventa dias a partir da compra c venda com nota fiscal</p><p>(interpretação do art. 26 da Lei n. 8.078, de 11.09.1990).</p><p>Reservados os direitos de propriedade desta edição pela</p><p>EDITORA FORENSE LTDA.</p><p>Uma editora integrante do GEN | Grupo Editorial Nacional</p><p>Endereço na Internet: http://www.forcnsc.com.br - e-mail: forensc@grupogcn.com.br</p><p>Travessa do Ouvidor, 11 - Térreo c 6o andar 20040-040 - Rio de Janeiro - RJ</p><p>Tel.: (0XX21) 3543-0770 - Fax: (0XX21) 3543-0896</p><p>Impresso no Brasil</p><p>Printed in Brazil</p><p>Procurar</p><p>http://www.forcnsc.com.br</p><p>mailto:forensc@grupogcn.com.br</p><p>Ao Deus Pai, ao Deus Filho c ao Deus Espirito Santo.</p><p>A Santíssima Trindade seja dada toda Glória,</p><p>para sempre, ató a consumação dos séculos.</p><p>Agradeço pelo apoio que jamais mc foi negado. Por isso dedico esta obra a todos vocês:</p><p>A Eurico Brandão c a Dilena Brandão.</p><p>A Jurandir c Ciccra Cintra, in memoriam.</p><p>A Julicta Cintra c Carlos Brandão.</p><p>A Danicllc, Mirclla c demais irmãos.</p><p>A Ir. Miriam Vieira, DIC, Ir. Alcilcnc Fenandes, DIC c Ir. Maria Ângela, OCD.</p><p>Ao Padre Pedro Rubens, SJ.</p><p>A D. Manoel Martins, OSB.</p><p>A Ricardo de Brito, João Maurício Adeodato,</p><p>Francisco Cavalcanti, Anamaria Torres,</p><p>Teodomiro Cardoso, Ruth Gaucr,</p><p>Aury Lopes Jr., Jacinto Coutinho,</p><p>Aldacy Coutinho, Auxiliadora Minahim,</p><p>Alberi Petersen, Rui da Cunha Martins.</p><p>Aos meus alunos da UFPE c da Faculdade Damas.</p><p>Procurar</p><p>ÍN D IC E S IS T E M Á T IC O</p><p>Prefácio do Prof. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho - O Drama, Hoje,</p><p>do Direito Penal....................................................................................................... XVII</p><p>Prefácio do Prof Rui Cunha Martins........................................................................... XXXIII</p><p>Apresentação da P ro f Maria Auxiliadora Minahim................................................. XXXIX</p><p>T ÍT U L O I - P R O P E D Ê U T IC A E T E O R IA D A LEI P E N A L</p><p>Capítulo I - Conceito, Objeto e Método do Direito Penal...................................... 3</p><p>1.1. Delimitação do Estudo c Objeto da Investigação.......................................... 3</p><p>1.2. Conceito de Direito Penal............................................................................... 3</p><p>1.2.1. Construção de uma Definição Normativa............................................. 3</p><p>1.2.2. Significado Politico da Definição de Direito Penal.............................. 8</p><p>1.3. Direito Penal Objetivo c Subjetivo. Critica da Viabilidade da Distinção..... 10</p><p>1.4. Objeto do Direito Penal................................................................................... 13</p><p>1.5. Método do Direito Penal................................................................................. 15</p><p>1.5.1. Escorço Histórico sobre o Método Penal............................................. 15</p><p>1.5.2. O Método Atual: o Pós-Positivismo..................................................... 19</p><p>1.6. Síntese Conclusiva........................................................................................... 20</p><p>Capítulo II - Escorço Histórico do Direito Penal..................................................... 23</p><p>2.1. Introdução à Notícia Histórica da Formação do Direito Penal..................... 23</p><p>2.2. Direito Penal da Sociedade Primitiva............................................................. 24</p><p>2.3. Direito Penal cm Roma................................................................................... 27</p><p>2.4. Direito Penal na Idade Média......................................................................... 28</p><p>2.5. Idade Moderna................................................................................................. 33</p><p>2.6. Direito Penal Liberal: Consolidação da Legalidade......................................... 36</p><p>Capítulo III - Direito Penal e Estado......................................................................... 41</p><p>3.1. Apresentação do Tema..................................................................................... 41</p><p>3.2. Direito Penal c Estado Tcocrático................................................................... 42</p><p>Procurar</p><p>X Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>3.3. Direito Penal c Estado Totalitário................................................................... 48</p><p>3.4. Direito Penal c Estado de Direito................................................................... 53</p><p>Capítulo IV - Princípio da Legalidade Penal........................................................... 57</p><p>4.1. Considerações Iniciais...................................................................................... 57</p><p>4.2. Proibição de Analogia (Nullum Crímen, Nulla Poena Sine Lege Stricta)... 58</p><p>4.3. Exigência de Lei Certa (Nullum Crímen, Nulla Poena Sine Lege Certa).... 61</p><p>4.4. Exigência de Lei Escrita (Nullum Crímen, Nulla Poena Sine Lege Scripta) ... 64</p><p>4.5. Exigência de Lei Prévia (Nullum Crímen, Nulla Poena Sine Lege Praevia)... 67</p><p>Capítulo V - Lei Penal no Tempo............................................................................... 69</p><p>5.1. Objeto do Estudo............................................................................................. 69</p><p>5.2. Abolição do Crime (Abolitio Criminis) .......................................................... 71</p><p>5.3. Rctroatividadc da Lei mais Benigna (Lex M itior)......................................... 73</p><p>5.4. Combinação de Leis (Lex Tertia).................................................................... 77</p><p>5.5. Ultra-Atividadc da Lei Penal (Lei Penal Excepcional ou Temporária)........... 79</p><p>5.6. Questões Pontuais da Aplicação da Lei Penal no Tempo............................. 81</p><p>5.6.1. Medidas de Segurança........................................................................... 81</p><p>5.6.2. Norma Penal cm Branco....................................................................... 82</p><p>5.7. Tempo do Crime.............................................................................................. 83</p><p>Capítulo VI - Lei Penal no Espaço............................................................................</p><p>Penal, fazendo com que os mesmos tenham uma relação</p><p>substancial com os Princípios Constitucionais.”</p><p>A partir de tal base, deve-se ter presente que se trata de um Cur­</p><p>so, por sinal humildemente dedicado “aos meus alunos da UFPE e da</p><p>Faculdade Damas", mas podería (por exemplo, em um ato falho) ser</p><p>dedicado aos “maus alunos"-, e seria muito interessante. Sabe-se como</p><p>Cláudio Brandão chegou no atual texto, isto é, fazendo experiências as</p><p>mais variadas com seus “bons" e “maus" alunos, nas duas Faculdades,</p><p>justo para sentir quais seriam as melhores condições de linguagem para</p><p>dizer a todos. Desse modo, se a dedicatória fosse aos “maus” alunos,</p><p>poder-se-ia pensar que a atitude evocaria, pelo avesso, o fato de os “bons</p><p>alunos" estudarem outros livros, talvez para eles (os “maus alunos”) in­</p><p>compreensíveis. E o ato daria, como de fato dá mesmo assim como está,</p><p>um limite e, por ele, a dimensão do próprio Cláudio Brandão: escrever</p><p>um Curso de forma tal a ser lido e compreendido por todos. Eis um</p><p>engajamento, antes de tudo, ético; mas sem perder a qualidade, alcançada</p><p>no ponto quase sempre exato de equilíbrio exigido pela demanda.</p><p>Procurar</p><p>X X X II , Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>Pela aposta nessa figura excepcional, com defeitos e qualidades</p><p>como qualquer vivente, mas impregnado daquilo que o espírito cristão</p><p>tem de melhor (o estender a mão aos necessitados e respeitá-los como</p><p>tais), está de parabéns a Editora Forense. Neste campo - do editorial -</p><p>um dos grandes segredos é saber apostar no futuro e, no caso específico,</p><p>escolhendo os autores certos. Cláudio Brandão é um deles e, destarte,</p><p>só se pode pensar e desejar vida longa à Forense.</p><p>Por fim, nos trinta e dois capítulos desfilam a facilidade da leitura</p><p>e o prazer do aprender: o autor não quer isso só para os bons alunos -</p><p>veja-se bem porque crê na sua gente e na capacidade que ela tem. Por</p><p>evidente, seria mais fácil uma postura marcada por aquilo que os italianos</p><p>chamam de menefreghismo, ou seja, não estar nem aí... Cláudio Brandão</p><p>não nasceu - e nem se formou - para ser assim. Pensa - e age - para</p><p>além (muito além) do lugar-comum, como Brecht:</p><p>“Quem se defende porque lhe tiram o ar</p><p>Ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo</p><p>Que diz: ele agiu em legítima defesa. Mas</p><p>O mesmo parágrafo silencia</p><p>Quando vocês se defendem porque lhes tiram o pão</p><p>E no entanto morre quem não come, e quem não come o suficiente</p><p>Morre lentamente. Durante os anos todos em que morre</p><p>Não lhe é permitido se defender.”</p><p>(BRECHT, Bertold. Quem se defende. In: Poemas 1913/1956. Seleção e</p><p>tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 73.</p><p>Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho</p><p>Professor Titular dc Direito Processual Penal da UFPR.</p><p>Chefe do Departamento de Direito Penal c Processual Penal da UFPR.</p><p>Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pelo Paraná.</p><p>Procurar</p><p>P R E FÁ C IO D O PR O F. R U I C U N H A M A R T IN S</p><p>É conhecida a precisão cirúrgica com que o Professor Cláudio Bran­</p><p>dão trata os assuntos de que se ocupa. Pois lhe garanto, caro leitor,</p><p>que encontrará de novo, nesta obra, esse mesmo rigor, só ao alcance</p><p>de quem sabe extrair da palavra a função de bisturi. Cortante, quando</p><p>se trata disso, como suave e prudente, em outras tantas ocasiões; mas</p><p>invariavelmente direccionado. Parece simples, mas não é; essa sabedoria</p><p>consiste em manter o patamar reflexivo em uma alternância equilibrada</p><p>entre violência doce e erudição disponível. Tudo, no labor de Cláudio</p><p>Brandão, remete a essa busca de equilíbrio - pressente-se, de resto, que</p><p>a proximidade desse equilíbrio anuncia, e só ela o faz, a proximidade da</p><p>luz, entendida aqui como fonte de sentido. Mas será esta necessária? E</p><p>possível? No seu conjunto, a obra responde que sim; daí a sensação de</p><p>que ela remete a um fundo epistemológico e um horizonte compreensi­</p><p>vo, onde se acredita na possibilidade de um discurso afirmativo, o que</p><p>quer dizer, no âmbito do pensamento contemporâneo, um discurso mais</p><p>vocacionado para a atribuição de sentido do que para a celebração da</p><p>ideia de crise. Ora, essa opção é uma marca referencial da produção do</p><p>autor. Importa, por isso, contextualizá-la.</p><p>Há pouco tempo, no âmbito de um evento universitário envolvendo</p><p>a participação de notáveis acadêmicos, dos quais me orgulho de ser ami­</p><p>go - Ruth Gauer, Jacinto Coutinho, Geraldo Prado e o próprio Cláudio</p><p>Brandão - , coube-me a tarefa estimulante de me situar na qualidade de</p><p>investigador “exterior” ao Direito e de, uma vez instalado nas fronteiras</p><p>do mundo jurídico, lançar um olhar crítico sobre a metadiscursividade aí</p><p>produzida, visando, fundamentalmente, a surpreender os lugares tópicos</p><p>dessa produção discursiva e do olhar do Direito sobre si próprio. Isolei</p><p>então quatro ou cinco tendências maiores. Destas, há duas, em especial,</p><p>que aqui me interessa recuperar: a que então designei como o acolhí-</p><p>Procurar</p><p>X X X IV | Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>mento performativo da noção de crise; e aquilo que caracterizei como a</p><p>dificuldade em localizar, em cada momento, a "casa do inimigo".</p><p>Vejamos a primeira. Remeto, com aquela designação, às recorren­</p><p>tes menções dos discursos jurídicos a um cenário de crise no Direito</p><p>contemporâneo, crise dada por adquirida a vários níveis (ainda que com</p><p>particular incidência nalguns domínios, caso do penal) e cuja perma­</p><p>nente mobilização e correspondente banalização discursiva acabam por</p><p>constituir menos a modalidade de lhe dar resposta, ou de a encarar</p><p>como problema a resolver, do que um modo distraído de lhe prolongar</p><p>a vigência, estabilizando-a por condenação e alargando-lhe, inclusive, as</p><p>competências, ao ponto de conferir à crise um estatuto de lugar fundante</p><p>da construção analítica, ou, logo após, um estatuto de tribunal censório</p><p>da construção dogmática, sendo que, em um caso como em outro, e isso</p><p>é sintomático, a crise parece exceder em muito aquele que pode ser,</p><p>tecnicamente falando, o seu papel.</p><p>Porque a crise tem, de facto, um papel. Estudou-o, em profundidade,</p><p>Reinhart Koselleck, o qual, mesmo reconhecendo a ambiguidade que a</p><p>plurisignificação do conceito desde sempre emprestou ao seu uso, não</p><p>deixou de assinalar a originária associação da ideia de “crise” à noção de</p><p>“decisão”, ou “julgamento” (de matriz médica ou jurídica). Mais ainda,</p><p>ter-se-ia tomado gradualmente claro que esse momento de “decisão”, ou</p><p>de “escolha”, operaria uma qualquer incidência decisiva, um qualquer</p><p>corte, sobre o tempo histórico, fazendo da crise, por essa via, a expressão</p><p>de um momento de notória interferência sobre o curso das coisas. Por</p><p>isso se pode dizer (di-lo, no decurso da sua lúcida investigação, Francis­</p><p>co Azevedo Mendes) que o uso do conceito de crise traduz, em muitos</p><p>contextos, a vontade de marcar uma interpretação forte e produzir como</p><p>que uma incisão vertical na massa dos factos com efeitos no horizonte</p><p>da realidade. Isto é, o enunciado da crise deteria, ao mesmo tempo, um</p><p>potencial ordenador da realidade e a capacidade de colocar essa mesma</p><p>ordem em causa. Como explicar, então, que esta crise instalada no campo</p><p>do Direito, ainda que se reclamando de uma saudável ambição de corte e</p><p>de ruptura, nomeadamente nos termos de uma postura de resistência em</p><p>face do galope desenfreado dos novos fascismos punitivos, não pareça</p><p>produzir nem um nem outro daqueles efeitos?</p><p>A resposta não é óbvia. Mas é possível que a equação do problema</p><p>deva situar-se, de alguma maneira, no nível da segunda tendência a que</p><p>acima aludi (recorde-se: a dificuldade em localizar, em cada momento, a</p><p>“casa do inimigo”). Remeto agora, com essa designação, ao que pressinto</p><p>ser, no campo jurídico, alguma perplexidade perante a actual dinâmica</p><p>Procurar</p><p>dos regimes de oposição e do modo de realização e expressão de antago­</p><p>nismos, estranheza que pode entender-se como a consequência da demora</p><p>em perceber a complexidade hoje inerente ao</p><p>exercício da diferença e à</p><p>definição dos contrários, bem como a fugacidade ou a obsolescência dos</p><p>alinhamentos outrora canônicos e hoje mais voláteis; quer dizer, alguma</p><p>dificuldade em descortinar - e em produzir - as fissuras pertinentes.</p><p>Sucede, com efeito, que, no quadro da actualidade, em que o perfil</p><p>policêntrico do exercício do poder é metáfora do próprio policentrismo</p><p>das razões em confronto e de uma perturbante dificuldade em discernir, a</p><p>cada momento, os limites que oprimem dos limites que dignificam, nesse</p><p>quadro, dizia, as modalidades de oposição e de produção da diferença</p><p>tendem a expressar-se, preferencialmente, sob a forma de “desajustes”,</p><p>“deslocamentos”, “crispações” ou “alucinações” de sentido, e menos nos</p><p>termos de uma explicitação radical das divergências e dos antagonismos.</p><p>Um cenário perigoso, não haja dúvidas: por ele se insinua todo o gênero</p><p>de apetências niveladoras que, na ausência de competências demarcatórias</p><p>e de mapeamentos da diferença, costumam prenunciar o pensamento único</p><p>e a estética populista. Ou, no mínimo, para o dizer em uma versão mais</p><p>caridosa, costumam prenunciar o apascentamento da política: por isso,</p><p>a crise, quando alarvemente mobilizada, corre o risco de, com algum</p><p>cinismo, congregar em tomo de si os mais diversos agentes e as mais</p><p>diversas (e até antagônicas) leituras e interpretações, as quais, dada a</p><p>comum atracção pela ideia de crise, gradualmente feita “casa comum”</p><p>neutralizadora das diferenças, acabam por gerar, nessa celebração de uma</p><p>súbita proximidade, um simulacro de consenso que anda próximo da apatia</p><p>crítica e inibe a possibilidade de diferimentos. Em circunstâncias que tais,</p><p>a morte da crítica (essa alma gêmea da noção de crise) não anda longe.</p><p>A da política também não. E isso, sim, é verdadeiramente temível.</p><p>Cláudio Brandão sabe-o bem. Por isso, ao explicar, no decurso deste</p><p>livro, que “o conceito de Direito Penal tem um duplo viés, um dogmá­</p><p>tico e outro político”, não se coíbe de afirmar que, se, “atualmente, é</p><p>recorrente falar-se da crise do Direito Penal”, bom será entender que “a</p><p>pretensa crise decorre da separação destes dois aspectos [o dogmático e</p><p>o político], isto é, a dogmática nua, despida de sua significação traduzida</p><p>no poder violento do Estado, conduz a um autismo jurídico, que a encerra</p><p>em um mundo próprio, alheio à realidade dos fatos”. Para logo rematar,</p><p>em alinhamento com Eugênio Raúl Zaffaroni, que “as mais perigosas</p><p>combinações têm lugar entre fenômenos de alienação técnica dos políticos</p><p>com outros de alienação política dos técnicos, pois geram um vazio que</p><p>permite dar forma técnica a qualquer discurso político”.</p><p>P refácio d o Prof. Rui C u n h a M a rtin s X X X V</p><p>Procurar</p><p>X X X V I Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>Se, nesta perspectiva, a omissão do factor político deve ser entendida</p><p>como porta escancarada à entrada do camartelo discursivo da “lei e ordem”,</p><p>com o seu leviano cortejo de panaceias punitivas, e se, assim sendo, a</p><p>resposta à crise deverá passar, em algum momento, pela recuperação da</p><p>esfera do político, isso quer dizer que não podemos desbaratar uma das</p><p>suas mais nobres e férteis íimções, qual seja a designação das fracturas,</p><p>das pontes, dos saltos e dos necruzamentos - das “passagens”, em suma - ,</p><p>capazes de direccionar o debate. Ora, deste ponto de vista, em um cenário,</p><p>como é, hoje, o nosso, marcado por desafios paradigmáticos recortados</p><p>em moldes novos, deverá começar por reconhecer-se a inevitabilidade</p><p>de corporizar aquelas designações, fracturas e passagens em moldes,</p><p>também eles, obrigatoriamente novos, ou, no mínimo, dispostos a traba­</p><p>lhar em adequação aos desafios emergentes na contemporaneidade, em</p><p>particular aos actuais modos de processamento do novo e do divergente.</p><p>Dispensável se toma, pois, o recurso a soluções mecânicas mais ou menos</p><p>ancoradas em antagonismos antigos. Melhor fará a análise em aprender</p><p>a convivência dos contrários, a sobreposição do racional e do irracional,</p><p>a simultaneidade do positivo e do negativo, e, sobretudo, em abdicar de</p><p>disputar soluções abrangentes e vagamente salvíficas, raciocinando, de</p><p>preferência, em moldes ou em horizontes que respondam parcialmente</p><p>a problemas parciais.</p><p>Porque parece de todo evidente que as teorias da crise já não podem</p><p>limitar-se a manejar, burocraticamente, as categorias de “revolução”,</p><p>“decadência”, ou sequer “coerência” e “contradição”, na hora de pensar</p><p>em modelos alternativos. É que é a própria ideia de substituição de um</p><p>modelo por outro que não procede. Tenho-o dito, volto a dizê-lo: tudo</p><p>se passa no nível do “modo da mudança”. A ideia de “superação”, se</p><p>radicalmente entendida, afigura-se hoje pouco menos que imprestável para</p><p>efeitos de produzir pensamentos e práticas de efectivo recorte alternati­</p><p>vo. O que chega reporta-se ao que segue vigente; é na gestão negociada</p><p>da respectiva articulação que podem ocorrer os deslocamentos ou as</p><p>alterações verdadeiramente significativas. Ou teremos esquecido que o</p><p>enfrentamento entre o Estado de direito e o Estado de polícia não cor­</p><p>responde à oposição de dois campos demarcados à maneira clássica da</p><p>batalha campal (o que, para todos os efeitos, tomaria mais clara a nossa</p><p>tarefa), mas antes ao enfrentamento irrequieto e geometricamente instável</p><p>de campos sobrepostos c dramaticamente porosos?</p><p>Tudo somado, parece sustentável a ideia de que as duas tendências que</p><p>isolei (a relativa à estética da crise e a respeitante à estética da oposição)</p><p>participam, por conseguinte, de uma mesma província de significado. Em</p><p>Procurar</p><p>ambas, ecoa o ruído de um pensamento de resistência irrecusável, reconhe­</p><p>cidamente urgente e indeclinável para os cultores desse bem frágil que é a</p><p>dignidade do indivíduo, mas cuja dimensão estratégica parece apresentar-</p><p>-se, hoje, em termos de eficácia crítica, talvez demasiado autorreferencial,</p><p>talvez em perda de agilidade hermenêutica, ou talvez, pura e simplesmente,</p><p>mal direccionada. É neste ponto que necessitamos do bisturi. Necessitamos,</p><p>com urgência, de obras como a de Cláudio Brandão.</p><p>Não me anteciparei a si, caro leitor, na enumeração dos aspectos</p><p>mais específicos que compõem a estrutura deste livro e ao longo dos</p><p>quais, estou em crer, perceberá melhor o sentido e a justeza deste pre­</p><p>fácio. Deixá-lo-ei, então, comprovar por si mesmo de que modo o autor</p><p>consegue manter a fasquia do rigor no mesmo patamar elevado a que nos</p><p>habituou em obras anteriores - designadamente em Teoria Jurídica do</p><p>Crime (Editora Forense: 1. ed., 2001) e Introdução ao Direito Penal.</p><p>Análise do sistema penal à luz do Princípio da Legalidade (Editora</p><p>Forense: 1. ed., 2002) - , em relação às quais, de resto, o presente traba­</p><p>lho apresenta várias precisões e desenvolvimentos (por exemplo, quanto</p><p>à matéria da tipicidade, tão cara ao autor), ou perspectivas de vincada</p><p>novidade (vejam-se os capítulos dedicados à questão da pena), em uma</p><p>evidente manifestação daquelas preocupações de actualização e de revi-</p><p>goramento discursivo que não deixam dúvidas sobre o porte de todo o</p><p>acadêmico que se preza de o ser. De igual modo, deixarei a cargo do</p><p>leitor a descoberta fascinante do sólido substrato erudito que suporta o</p><p>edifício teórico composto pelo autor.</p><p>Mas não prescindo, caro leitor, de lhe chamar a atenção para o se­</p><p>guinte: a grandeza e, sobretudo, a eficácia desse potencial de erudição está</p><p>na forma como ele se conjuga (ousaria dizer, como ele “faz sistema”) com</p><p>dimensões igualmente caras ao autor e que, a todo o momento, ele sugere</p><p>acolher de bom grado no referido substrato: uma, é a convicção de que</p><p>a melhor segurança - a única viável e aceitável - é aquela que se obtém</p><p>no frágil marco de uma sociedade democrática, com todo o seu lastro de</p><p>abertura e indeterminação; outra, é a de que o direito à segurança deverá</p><p>passar também pela segurança dos direitos, ou seja, como diria Daniel</p><p>Innerarity, que as pessoas têm o direito de estar a salvo, também,</p><p>dos seus</p><p>protectores.</p><p>P refácio d o Prof. Rui C u n h a M a rtin s X X X V II</p><p>Rui Cunha Martins</p><p>Professor da Universidade dc Coimbra. Ex-diretor do</p><p>Instituto dc História c Teoria das Idéias da Universidade dc</p><p>Coimbra. Membro da Comissão dc Supervisão do Doutoramento cm</p><p>Altos Estudos Contemporâneos da Universidade dc Coimbra.</p><p>Procurar</p><p>Procurar</p><p>A P R E S E N T A Ç Ã O</p><p>Uma obra é a expressão de seu autor e, por isso mesmo, ela contém</p><p>suas qualidades e permite conhecer seu talento. Cláudio Brandão, autor desta</p><p>coleção oportunamente publicada pela Forense, é jovem e sólido, consistente</p><p>e incitante, responsável e destemido, denso e claro, a um só tempo. Essas</p><p>qualidades são inestimáveis, sobretudo quando o discurso jurídico penal está</p><p>centrado, basicamente, ou em sua deslegitimação ou em justificar seu cresci­</p><p>mento com base em idéias quase sempre parciais.</p><p>São poucos os que propugnam pela limitação do poder punitivo do Es­</p><p>tado e asseguramento das garantias do cidadão sem recorrer a uma retórica</p><p>puramente política. Dentre estes, Cláudio Brandão, que realça os princípios</p><p>e institutos que devem ser tomados efetivos, para que o direito penal realize</p><p>os valores conquistados pelo Iluminismo, sem perder de perspectiva as dis­</p><p>cussões sobre o direito penal contemporâneo e seus desafios em um mundo</p><p>globalizado e desigual. Compreendendo que o ser humano é a única razão de</p><p>ser desse sistema, percorre os caminhos de seu conterrâneo Aníbal Bruno, o</p><p>maior penalista brasileiro, com os pés no chão, as idéias na boa filosofia e os</p><p>afetos mergulhados no respeito à dignidade de cada pessoa. Por isso mesmo,</p><p>afirma que “a interpretação e aplicação do direito penal não devem ser feitas</p><p>de forma autista, isso é, encerradas exclusivamente na dogmática daquele</p><p>direito”, mas sim considerando o viés político, necessariamente presente na</p><p>criação, interpretação e aplicação da norma penal.</p><p>É, portanto, um penalista, um estudioso que propugna pela realização do</p><p>direito penal como instrumento que pode e deve ser recrutado para solução de</p><p>conflitos, desde que atendido o conjunto de princípios e políticas que situam</p><p>o homem como razão de ser do ordenamento.</p><p>É nessa perspectiva política, todavia, que a validade do direito pe­</p><p>nal sofre maior reprovação, uma vez que é impossível negar a seletividade</p><p>operacional do sistema que acaba por funcionar como mecanismo capaz de</p><p>Procurar</p><p>X L Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>reforçar as diferenças sociais. A impotência dos miseráveis para safarem-</p><p>-se do cárcere permite que autores afirmem que sistema penal destina-se</p><p>à “regulação da miséria e ao armazenamento dos refugos do mercado”.* 1</p><p>Além dessa posição, de natureza, essencialmente político-econômica, há</p><p>outras que invalidam a sanção penal em razão do sofrimento que lhe é</p><p>ínsito. De fato, não há, mesmo que assim proponham algumas correntes</p><p>de pensamento sobre as funções da pena, a possibilidade de dissociá-la</p><p>de sofrimento. Pena é dor, aflição, agonia, e sua imposição deliberada a</p><p>um ser humano reclama ponderação. Não é por outra razão que pode ter</p><p>um papel preventivo: ninguém a deseja, não se trata de buscar um gozo,</p><p>mas de evitar uma experiência desagradável. A ameaça de sua imposição</p><p>assusta a uma espécie que padece física e moralmente quando lhe são</p><p>suprimidas necessidades fundamentais.</p><p>A Roxin,2 não escapou esse predicado da sanção penal quando reco­</p><p>nheceu que nela “se inclui também um elemento de prevenção especial</p><p>que intimidará o delinqüente”. Por isso mesmo, a culpabilidade, noção</p><p>da qual não pode se desvencilhar o autor, permanece como elemento</p><p>fundamental na aplicação da pena, funcionando como limite desta. A</p><p>sanção, que também é uma resposta à culpabilidade, não pode ter outra</p><p>natureza que não seja aflitiva. Tal sofrimento, a não ser cm uma pers­</p><p>pectiva puramente moral, não seria objeto de tanta reprovação, não fora</p><p>o uso disfuncional da sanção penal.</p><p>As chamadas tendências re (reeducadoras, ressocializadoras, reeduca-</p><p>tivas) por sua vez, que, durante sete décadas do século XX, constituíram</p><p>o ideal dominante de importantes autores do direito penal, assistiram a</p><p>uma derrocada quando os trabalhos de Martinson3 concluíram que nenhu­</p><p>ma das atividades levadas a cabo, com tais propósitos, funcionava. Os</p><p>projetos, ao final, não apresentavam resultados distintos daqueles que os</p><p>estabelecimentos tradicionais desenvolviam e que não atendiam a qualquer</p><p>orientação específica. Além disso, tem-se reafirmado o direito do criminoso</p><p>de ser mal, se assim o desejar, desde que se abstenha de lesionar os bens</p><p>1 WACQUANT, Loíc. Punir os pobres - A onda punitiva. Coleção Pensamento Crimino-</p><p>lógico. Rio dc Janeiro: Rcvan, n. 6. 3. ed. Cocdição: Instituto Carioca dc Criminologia.</p><p>p. 87.</p><p>: ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. 2. ed. Belo Horizonte: Vega.</p><p>1993. p. 35.</p><p>1 MARTINSON, Robcrt. What works? - Questions and answers about prison reform.</p><p>The Public-Intcrcst 35 (Primavera). 1974. p. 22-54.</p><p>Procurar</p><p>jurídicos tutelados pela norma. Por isso mesmo, Ferrajoli4 adverte que as</p><p>penas não devem pretender alcançar fins preventivos.</p><p>As diversas tendências abolicionistas, por seu tumo, não conseguem</p><p>superar, mas apenas apontar os problemas do sistema penal que insiste</p><p>no recurso às sanções tradicionais, ignorando as diversidades na vida</p><p>social que poderíam permitir, teoricamente, respostas distintas daquelas</p><p>oferecidas pela sanção criminal.</p><p>O certo é que é impossível negar o conteúdo aflitivo da pena, mesmo</p><p>além das fronteiras das teorias retributivas. Qualquer que seja o discurso</p><p>e a pretensão com relação ao direito penal, não é possível dissimular o</p><p>sofrimento presente na pena. Tão pouco se têm apresentado alternativas</p><p>positivas capazes de superá-las, apresentando-se um sistema logicamente</p><p>estruturado. Daí Ferrajoli5 dizer que a alternativa mais adequada ao direito</p><p>penal ainda é ele próprio, mesmo com suas reconhecidas imperfeições,</p><p>desde que acompanhado das necessárias garantias individuais.</p><p>Reconhecer a necessidade do direito penal em uma sociedade defei­</p><p>tuosa e injusta não significa, todavia, aplaudir ou legitimar a crueldade e</p><p>a desumanização presentes, muitas vezes, em sua aplicação. Ao contrário,</p><p>é preciso destacar os caminhos justos, realçar as conquistas garantidoras</p><p>e ensinar os rumos politicamente adequados à realização dos valores</p><p>constitucionais. Isso o autor faz com maestria, clareza e segurança, sem</p><p>recorrer a complicações desnecessárias, prática que, como diz Mir Puig,6</p><p>acaba por tomar ininteligíveis os conceitos e institutos. Para o mesmo</p><p>autor, esse é um fenômeno que resultaria de pouca consistência intelectual</p><p>de alguns doutrinadores, que procuram compensá-la com uma forma de</p><p>escrever muito complicada, difícil de entender. A reunião desses dois</p><p>atributos, conclui, produz resultados profundamente insatisfatórios.</p><p>Cláudio Brandão é claro e preciso sem perder a densidade necessária</p><p>para o enfrentamento de temas complexos.</p><p>Um exemplo precioso de clareza e concretude é o capítulo referente</p><p>ao concurso de pessoas, no qual, sem se furtar à apreciação das diversas</p><p>teorias em tomo do tema, o autor conclui de forma precisa e segura</p><p>____________________ A p re s e n ta ç ã o ̂ X L I</p><p>4 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoria dcl garantismo penal. Madrid: Trotta,</p><p>1995. p. 223.</p><p>s Op. cit. p. 342.</p><p>6 Revista Electrónica de Ciência Penal y Criminologia Conversaciones: Dr. Santiago</p><p>Mir Puig. Por Jcsús Barquín Sanz. RECPC 01-cl (1999). Disponível cm: http://criminct.</p><p>ugr.es. Acessado cm 15 fcv. 2008.</p><p>Procurar</p><p>http://criminct</p><p>X L II Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>sobre a adequação da teoria restritiva para distinguir a figura do autor</p><p>da do coautor. Outro capítulo significativo do talento do autor, dentre</p><p>tantos mais, é aquele que trata da consciência da antijuridicidade, como</p><p>elemento da culpabilidade, e no qual ele empresta</p><p>seus conhecimentos</p><p>de filosofia para guiar o leitor de forma segura e transparente ao conhe­</p><p>cimento do tema.</p><p>De muitas formas, revela-se a inteligência e o compromisso acadê­</p><p>mico que Cláudio Brandão registra nesta obra, seja na apresentação de</p><p>uma bibliografia impecável que tanto registra os autores clássicos como</p><p>os mais contemporâneos, seja na competência para ensinar de forma in­</p><p>teligível e séria a matéria à qual vem dedicando sua vida e sua paixão,</p><p>o direito penal. Isso toma sua trajetória e seu trabalho merecedores do</p><p>reconhecimento e elogio de todos que trafegam, com ele, os caminhos</p><p>instigantes do estudo do crime.</p><p>Maria Auxiliadora Minahim</p><p>Professora da Universidade Federal da Bahia. Doutora cm Direito Penal pela</p><p>Universidade Federal do Paraná c pela Universidade Federal do Rio dc Janeiro.</p><p>Presidente da Associação Brasileira dc Professores dc Ciências Penais.</p><p>Procurar</p><p>Título I</p><p>Propedêutica e</p><p>Teoria da Lei Penal</p><p>Procurar</p><p>Procurar</p><p>I I I</p><p>C O N C E IT O , O B JE TO E M É T O D O</p><p>D O D IR E IT O P E N A L</p><p>1 .1 . D E L IM IT A Ç Ã O D O E S T U D O E O B JE TO D A IN V E S T IG A Ç Ã O</p><p>O Direito Penal é a mais gravosa forma de intervenção estatal. Isso</p><p>se dá porque, através dele, se retiram, da pessoa humana, direitos cons­</p><p>titucionalmente assegurados, quais sejam: vida, liberdade e patrimônio.</p><p>Ressalte-se, inclusive, que ditos direitos retirados são cláusulas pétreas</p><p>da Constituição.</p><p>Isto posto, a interpretação e a aplicação do Direito Penal não devem</p><p>ser feitas de forma autista, isto é, encerradas exclusivamente na dogmática</p><p>daquele direito. Se o que se atinge no Direito Penal são bens assegurados</p><p>pela Carta Política, sua aplicação e interpretação devem ser feitas em</p><p>consonância com os Princípios Constitucionais.</p><p>Isso importa reconhecer que, além do caráter técnico-dogmático, o</p><p>Direito Penal tem um caráter político. Ocorre que o caráter político não</p><p>é inócuo, ao contrário, ele condicionará o objeto e o método do Direito</p><p>Penal, fazendo com que os mesmos tenham uma relação substancial com</p><p>os Princípios Constitucionais.</p><p>Dita análise constitui o objetivo desta investigação.</p><p>1 .2 . C O N C E IT O D E D IR E IT O P E N A L</p><p>1 .2 .1 . C o n s tru ç ã o d e u m a D e f in iç ã o N o r m a t iv a</p><p>Para se conceituar o Direito Penal é imprescindível ter-se em menção</p><p>dois pontos: em primeiro lugar, os institutos que estruturam esse ramo</p><p>Procurar</p><p>4 C urso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>do Direito; em segundo lugar, a significação desses referidos institutos</p><p>no contexto do Direito.</p><p>Como sabido, o Direito Penal - como qualquer outro ramo do Di­</p><p>reito - é estruturado em normas. Destarte, o referido Direito Penal regula</p><p>condutas através de enunciados gerais, os quais prescrevem abstratamente</p><p>modelos de comportamentos que devem ser seguidos, porque, no caso</p><p>de o comportamento prescrito não ser seguido, será imputada, como</p><p>consequência, uma sanção ao sujeito.</p><p>Pois bem, é das normas que se extraem os institutos do Direito</p><p>Penal.</p><p>O primeiro instituto que conforma o Direito Penal é a Infração.</p><p>Consoante foi dito, a norma prescreve um modelo abstrato de compor­</p><p>tamento proibido e esse modelo poderá ser qualificado pelo legislador</p><p>como crime ou como contravenção. Isto posto, pode-se afirmar que</p><p>infração é o gênero do qual crime e contravenção são espécies. Todavia</p><p>- é imperioso se ressaltar - não existe, na essência, uma diferença subs­</p><p>tancial entre o crime e a contravenção, sendo as infrações classificadas</p><p>de acordo com o primeiro ou com a segunda, em conformidade com o</p><p>arbítrio do legislador. De modo geral, pode-se afirmar que o conceito de</p><p>crime é imputado às infrações consideradas mais graves pelo legislador,</p><p>enquanto o conceito de contravenção é imputado às infrações conside­</p><p>radas como menos graves.</p><p>Registre-se que é comum na doutrina penal substituir-se o termo</p><p>infração (que é o gênero) pelo termo crime (que, enfatize-se, é uma das</p><p>espécies de infração). Isso se dá por dois motivos: primeiramente, em</p><p>termos quantitativos, o número de crimes é muito superior ao número de</p><p>contravenções; em segundo lugar, os elementos que foram construídos</p><p>ao longo de mais de duzentos anos, desde o século XIX, para o aperfei­</p><p>çoamento conceituai do crime (quais sejam: tipicidade, antijuridicidade e</p><p>culpabilidade), aplicam-se também ao conceito de contravenção. Destar­</p><p>te, no âmbito deste trabalho, o termo infração doravante será substituído</p><p>pelo termo crime.</p><p>O segundo instituto que conforma o Direito Penal é a Pena. Consoante</p><p>foi consignado acima, a realização da conduta proibida tem como conse­</p><p>quência a sanção. Pois bem, é propriedade exclusiva do Direito Penal a</p><p>mais grave sanção de todo o Ordenamento Jurídico: a Pena. Isto posto, se</p><p>a norma define o crime como conduta proibida e traz como consequência</p><p>da realização dessa conduta a pena, é imperioso afirmar-se que a pena é</p><p>a consequência jurídica do crime. Neste sentido, o extraordinário Tobias</p><p>Procurar</p><p>Amanda Andrade</p><p>Amanda Andrade</p><p>Amanda Andrade</p><p>Amanda Andrade</p><p>Amanda Andrade</p><p>Amanda Andrade</p><p>Amanda Andrade</p><p>Amanda Andrade</p><p>C o n ceito , O b je to e M é to d o d o D ire ito Penal 5</p><p>Barreto afirmava que “a razão da pena está no crime”.1 Essa consequência</p><p>é, inclusive, apontada como o marco diferencial desse ramo do Direito,</p><p>pois quando ela está presente a norma obrigatoriamente pertencerá ao Jus</p><p>Poenale.</p><p>O terceiro instituto que conforma o Direito Penal é a Medida de</p><p>Segurança. De acordo com o que foi explicado, a pena somente poderá</p><p>ser aplicada se sua causa estiver realizada, isto é, se houver a realização</p><p>de um crime. Todavia, existem pessoas que não podem cometer crimes</p><p>em virtude de não poderem compreender o significado de seu ato ou de</p><p>não terem capacidade de autodeterminação, em face de serem acometidas</p><p>de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado.</p><p>Nesse caso, o que se imputa a essas pessoas não é uma pena, mas uma</p><p>medida de segurança, que se traduz em tratamento psiquiátrico ambula-</p><p>torial obrigatório ou, nos casos mais graves, em internação compulsória</p><p>em hospitais psiquiátricos.</p><p>Deve-se salientar, desde logo, que nos sistemas jurídicos dos Estados</p><p>Democráticos de Direito todos esses institutos somente podem ser criados</p><p>por uma Lei, já que o Princípio da Legalidade é condição necessária para</p><p>que se constitua o Direito Penal.</p><p>A definição de Direito Penal é feita, inicialmente, com base nos três</p><p>institutos que foram elencados: Crime, Pena e Medida de Segurança.</p><p>Deste modo, o Direito Penal é um conjunto de normas que deter­</p><p>minam quais ações são consideradas como crimes e lhes imputa a pena</p><p>- esta como consequência do crime ou a medida de segurança.</p><p>Quer no Direito Penal estrangeiro, quer no Direito Penal brasileiro,</p><p>encontra-se certo consenso nessa definição, que formalmente se conserva</p><p>através dos tempos.</p><p>No tocante ao Direito estrangeiro, não se pode fechar os olhos à</p><p>contribuição vinda da Alemanha, que influenciou grandemente boa parte</p><p>dos sistemas jurídico-pcnais do ocidente, aí incluído o sistema brasilei­</p><p>ro. Para Franz von Liszt, autor de obras de referência datadas do final</p><p>do século XIX e início do século XX, o Direito Penal é “o conjunto de</p><p>normas estatais que associam ao crime enquanto tipo penal a pena como</p><p>1 BARRETO, Tobias. Prolcgômcnos do Estudo do Direito Criminal. Estudos de Direito</p><p>II. Rccord - Governo dc Sergipe, 1991. p. 102.</p><p>Procurar</p><p>Amanda Andrade</p><p>Amanda Andrade</p><p>6 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>sua consequência legítima”.1 2 Na explicação de sua definição, Von Liszt</p><p>integra a esse conceito a medida de segurança.3</p><p>No fim da primeira metade do século XX, Edmund Mezger, outro</p><p>autor de referência na construção do conceito de Direito Penal, definia-o</p><p>nesse mesmo espeque. Para ele, o “Direito Penal é o conjunto de normas</p><p>jurídicas que regulam o exercício do poder punitivo do Estado,</p><p>associando</p><p>ao delito, como requisito, a pena como consequência jurídica”.4 Comple­</p><p>tando sua definição, diz Mezger que também é Direito Penal o conjunto</p><p>de normas que associam ao delito outras medidas de índole diversa da</p><p>pena, que tem por objeto a prevenção de delitos.5</p><p>Não se apresentam conceitos que destoem muito desse padrão dentro</p><p>dos autores contemporâneos. Veja-se, a título de exemplo, o conceito de</p><p>Direito Penal dado por Hans-Heinrich Jescheck: “O Direito Penal deter­</p><p>mina que ações contrárias à ordem social são crimes e como consequência</p><p>jurídica dos crimes impõe penas. Relacionado ao crime prevê também</p><p>medidas de correção e segurança”.6</p><p>Na doutrina brasileira, também não existe muito distanciamento</p><p>da definição acima exposta. Por exemplo, Francisco de Assis Toledo,</p><p>coordenador da reforma penal de 1984, definiu o Direito Penal como a</p><p>“parte do Ordenamento Jurídico que estabelece e define o fato-crime,</p><p>dispõe sobre quem deva por ele responder e, por fim, fixa as penas e as</p><p>medidas de segurança que devam ser aplicadas”.7</p><p>1 Tradução livre dc: “Strafrecht ist der Ingbegriffs derjening staatlichen Rechtgeleln, durch</p><p>die an das Verbrechen ais Talbestand die Stra/e ais Rechlfolge genküpft w inf’. LISZT,</p><p>Fraru von. Lehrbuch des Strafrecht. Berlim und Lipzig: VWV, 1922. p. 1.</p><p>’ Idem. Ibidem. p. 1.</p><p>4 Tradução livre dc: "Strafrecht ist der Inbegrijf der Rechtnormen, welche die Ausübung</p><p>der staatlichen Strafgewalt reglen, idem sie an das Verbrechen ais Vorausselzung die</p><p>Strafe ais Rechtsfolge kniipfen". MEZGER, Edmund. Strafrecht. Ein Lehrbuch. Bcrlin</p><p>und Munich: Dunckcr und Humblot, 1949. p. 3.</p><p>3 Idem. Ibidem. p. 3.</p><p>6 Tradução livre dc: "Das Strafrecht bestimmt welche Zuwiderhandlungen gegen die soziale</p><p>Ordnung Verbrechen sind, es droht ais Rechlfolge des Verbrechens die Strafe an. Aus</p><p>Anlaf) eines Verbrechens sieht es fem er Maftreglen der Besserung und Sicherung und</p><p>andere Mafinahmen vor.” JESCHECK, Hans-Hcinrich. Lehrbuch des Strafrecht. Bcrlin:</p><p>Dunckcr u. Humblot, 1988. p. 8.</p><p>7 TOLEDO, Francisco dc Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva,</p><p>1994. p. 1.</p><p>Procurar</p><p>C o n ceito , O b je to e M é to d o d o D ire ito Penal</p><p>i</p><p>7</p><p>A substância dessa definição desvela o primeiro aspecto mencionado</p><p>no início do presente texto, qual seja: a necessidade de conceituar-se o</p><p>Direito Penal a partir dos institutos que formam sua essência.</p><p>A partir da definição de Direito Penal chega-se à definição de Dog­</p><p>mática Penal. Esta última é o discurso e a argumentação que se fazem a</p><p>partir do próprio Direito Penal e dos seus elementos constitutivos. Não</p><p>é incorreto afirmar-se que a Dogmática Penal é um método. Explique-se:</p><p>o método é o caminho para a investigação de um objeto, constituído de</p><p>cânones para a investigação, conhecimento, interpretação e crítica sobre</p><p>o dito objeto. Pois bem, como os institutos essenciais do próprio Direito</p><p>Penal e de sua Dogmática (crime, pena e medida de segurança) são câ­</p><p>nones para o conhecimento da criminalidade, a citada Dogmática Penal</p><p>pode também ser encarada como um método de conhecimento daquela.*</p><p>Assim, a dogmática “é uma elaboração intelectual que se oferece ao Po­</p><p>der Judiciário (e a todos os operadores do Direito) como um projeto de</p><p>jurisprudência coerente e não contraditória, adequada às leis vigentes”.9</p><p>Enquanto método, no dizer de Zaffaroni, a dogmática procura fazer pre­</p><p>visíveis as decisões judiciais.</p><p>A dogmática penal, diferentemente do Direito Penal, não se restringe</p><p>a um Estado determinado, mas tem um caráter universal. Recorde-se,</p><p>ainda, que as leis penais estatais somente começaram a existir a partir</p><p>do século XIX, porque o Princípio da Legalidade penal somente foi</p><p>formulado no fim da Idade Moderna. Os institutos da dogmática penal</p><p>(antijuridicidade, legítima defesa, erro etc.) estão presentes em todos os</p><p>sistemas jurídicos ocidentais; o que difere entre os sistemas, portanto,</p><p>não são os institutos, mas a solução jurídica para a sua aplicação, que é</p><p>variável segundo a lei de cada país. Com efeito, uma situação reconhecida</p><p>como legítima defesa no Brasil, por exemplo, pode não ser reconhecida</p><p>como tal na Argentina; se em ambos os países há a dita legítima defesa,</p><p>a aplicação dela poderá variar, pois dependerá dos requisitos das suas</p><p>respectivas leis penais.</p><p>Entretanto, a aplicação da dogmática penal comparada não pode</p><p>ser feita de forma acrítica, através do simples encaixe de um conceito</p><p>estrangeiro em um determinado ordenamento. Ao contrário, a dogmática</p><p>comparada deve sempre ser invocada com a devida atenção acerca da</p><p>* Neste sentido veja-se a obra dc ZAFFARONI, Eugênio Raul. En torno de la cuestión</p><p>penal. Montcvidco - Buenos Aires: BdcF, 2005. p. 72-73. 77 e ss.</p><p>9 Idem. Ibidem. p. 74.</p><p>Procurar</p><p>8 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>sua pertinência com o ordenamento normativo-penal, como também em</p><p>harmonia com a realidade histórico-sociocultural do local que a recebe.</p><p>Quando ocorre essa dupla relação de pertinência, dá-se a utilização crítica</p><p>da dogmática comparada.</p><p>Conforme dito, não se pode chegar à correta ideia do que é o Direito</p><p>Penal nem da dogmática penal sem a análise da significação dos institu­</p><p>tos adiante mencionados (crime, pena e medida de segurança) perante o</p><p>próprio Direito. Isso significa que a definição anteriormente dada, por si</p><p>só, muito pouco diz sobre a substância do conceito de Direito Penal. Os</p><p>elementos que formam o conceito dado, portanto, somente podem revelar</p><p>a verdadeira face do Direito Penal se compreendidos sob uma ótica que</p><p>transcende o formalismo da norma, que - conforme se demonstrou - cria</p><p>aqueles institutos. Dita ótica transcendente é a perspectiva política.10</p><p>1 .2 .2 . S ig n if ic a d o P o lít ic o d a D e f in iç ã o d e D ir e ito P e n a l</p><p>É subjacente à ideia de Direito Penal a ideia de violência. Registre-se,</p><p>inicialmente, que o próprio senso comum já associa a ação criminosa à</p><p>ideia de violência, que se realiza de várias formas, tais como em homi­</p><p>cídios, lesões corporais, estupros, roubos.</p><p>Na seara penal propriamente dita, vê-se que na elaboração concei­</p><p>tuai de muitos crimes está presente o conceito de violência física, que</p><p>traduz a mais grave forma de apresentação da referenciada violência.</p><p>Veja-se, por exemplo, o crime de constrangimento ilegal, capitulado no</p><p>art. 146 do Código Penal: “Constranger alguém, mediante violência ou</p><p>grave ameaça, ou depois de haver reduzido, por qualquer outro meio, a</p><p>capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o</p><p>que ela não manda” (grifei).</p><p>Em outros delitos, ainda, a ideia de violência está implícita, como,</p><p>v.g., no homicídio.</p><p>Deste modo, o uso de uma energia física contra um ser humano,</p><p>capaz de alterar a sua conformação anatômica, capaz de danificar sua</p><p>10 BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao Direito Penal. Rio dc Janeiro: Forense, 2002. p. 43.</p><p>No mesmo sentido veja-se a afirmação dc Tobias Barreto, o qual modera seu pensamento</p><p>positivista ao escrever que: “A aplicação legislativa na penalidade ó uma pura questão</p><p>dc política social”. Prolcgômcnos do Estudo do Direito Criminal. Estudos de Direito II.</p><p>Rccord - Governo dc Sergipe, 1991. p. 116.</p><p>Procurar</p><p>C o n ceito , O b je to e M é to d o d o D ire ito Penal</p><p>i</p><p>9</p><p>saúde ou, até mesmo, hábil para lhe ceifar a vida, é presente em muitos</p><p>dos crimes previstos pelo Direito Penal.</p><p>Mas a presença da violência no nosso ramo do Direito vai muito</p><p>além do crime. A pena, que é a consequência do crime, também é uma</p><p>manifestação de violência. No ordenamento jurídico brasileiro, existem</p><p>as penas de morte (somente para os crimes militares próprios em tem­</p><p>po de guerra), de privação de liberdade, de restrição de direitos e de</p><p>multa. O fato é que quaisquer dessas penas atingem os bens jurídicos</p><p>protegidos pelo Direito Penal. Se pelo crime de homicídio (art. 121 do</p><p>Código Penal) incrimina-se pela produção da morte de alguém, pela</p><p>pena de morte também</p><p>se mata alguém; se pelo crime de sequestro</p><p>(art. 148 do Código Penal) incrimina-se pela violação da liberdade de</p><p>locomoção de uma pessoa, pela pena de privação de liberdade se vio­</p><p>la essa mesma liberdade; se pelo crime de furto (art. 155 do Código</p><p>Penal) incrimina-se pela violação do patrimônio de alguém, pela pena</p><p>de multa também se viola o patrimônio de uma pessoa. É por isso que</p><p>Camelutti já afirmava que, na relação de custo e benefício, crime e</p><p>pena são a mesma coisa, são formas de produzir um dano.11 Portanto,</p><p>a pena, assim como o crime, também é uma forma de manifestação da</p><p>violência. Todavia, a pena é uma reação, que somente se imputa em face</p><p>da realização prévia de um crime; por isso o Estado, através do Direito</p><p>Penal, a qualifica como legítima, já que ela será uma consequência em</p><p>face do cometimento de uma violência prévia - que é o crime - por</p><p>parte do agente que a sofre.</p><p>Neste sentido, o Direito Penal concretiza a face violenta do Estado,</p><p>porque ele monopoliza a aplicação da violência da pena. Mas a sanção</p><p>própria do Direito Penal (Pena) não será somente a mais gravosa sanção</p><p>que o Estado pode impor, o seu significado vai muito além. Na verdade,</p><p>a possibilidade de aplicar a pena é condição de vigência do próprio Di­</p><p>reito, porque Direito sem pena é Direito sem coercitividade, é um Direito</p><p>que não pode se utilizar de força em face de seus súditos, para efetivar</p><p>os seus comandos. Sem pena, portanto, o Direito se transforma em um</p><p>mero conselho. Consoante mostra a experiência, o Direito é, por sua vez,</p><p>condição de existência do próprio Estado; assim é também a pena uma</p><p>condição para a existência do próprio Estado, “por isso mesmo existe</p><p>entre pena e Estado, histórica e juridicamente, a mais íntima ligação.</p><p>11 CARNELUTTI, Franccsco. El Problema de la Pena. Buenos Aires: Europa-América,</p><p>1947. p. 14.</p><p>Procurar</p><p>10 Curso d e D ire ito Penai - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>Ou antes (...), Estado, Direito e pena são completamente inseparáveis</p><p>um do outro”.12</p><p>À luz do exposto, o Direito Penal tem uma inegável face política,</p><p>porque ele concretiza o uso estatal da violência. É o multirreferido Direito</p><p>Penal o mais sensível termômetro para aferir a feição liberal ou totalitária</p><p>de um Estado,13 a saber: caso a violência da pena seja utilizada pelo Es­</p><p>tado sem limites, sem respeito à dignidade da pessoa humana, estaremos</p><p>diante de um Estado totalitário; ou, ao invés, se a violência estatal for</p><p>exercida dentro de limites determinados pelo Direito, aí se guardando o</p><p>respeito à dignidade da pessoa humana, estaremos diante de um Estado</p><p>Democrático de Direito. Por isso, já asseverou Bustos Ramírez que “a</p><p>justiça criminal, por ser a concreção da essência opressiva do Estado, é</p><p>um indicador sumamente sensível no reflexo das características do sistema</p><p>político-social imperante”.14</p><p>Isto posto, o conceito de Direito Penal tem um duplo viés: um</p><p>dogmático e outro político. Atualmente, é recorrente falar-se da crise do</p><p>Direito Penal. A pretensa crise decorre da separação desses dois aspectos,</p><p>isto é, a dogmática nua, despida de sua significação traduzida no poder</p><p>violento do Estado, conduz a um autismo jurídico, que a encerra num</p><p>mundo próprio, alheio à realidade dos fatos. Neste sentido, diz Zaífaro-</p><p>ni que “as mais perigosas combinações têm lugar entre fenômenos de</p><p>alienação técnica dos políticos com outros de alienação política dos</p><p>técnicos, pois geram um vazio que permitem dar forma técnica a qualquer</p><p>discurso político”.15</p><p>1 .3 . D IR E IT O P E N A L O B J E T IV O E S U B J E T IV O . C R ÍT IC A D A</p><p>V IA B IL ID A D E D A D IS T IN Ç Ã O</p><p>A divisão do Direito em Direito Objetivo e Direito Subjetivo foi</p><p>cunhada pelo Positivismo Jurídico. Sua origem se dá, mais precisamente,</p><p>na Alemanha, no decorrer do século XIX. Naquela época, o Direito na­</p><p>12 BARRETO, Tobias. Prolcgômcnos do Estudo do Direito Criminal. Estudos de Direito</p><p>II. Rccord - Governo dc Sergipe, 1991. p. 102.</p><p>15 OUVIS A, Guillcrmo. Estado Constitucional dc Dcrccho y Dcrccho Penal. Teorias Actualcs</p><p>cn Dcrccho Penal. Buenos Aires: Ad-hoc, 1998. p. 56-57.</p><p>14 BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Control Social y Derecho Penal. Barcelona: PPU, 1987. p.</p><p>584-585.</p><p>15 ZAFFARONI, Eugcnio Raúl. En torno de la cuestión penal. Montcvidco - Buenos Aires:</p><p>BdcF, 2005. p. 77.</p><p>Procurar</p><p>C o n ceito , O b je to e M é to d o d o D ire ito Penal</p><p>i</p><p>11</p><p>quele país gravitava em tomo do Direito Romano. Com efeito, o Digesto,</p><p>também chamado de Pandectas, originou a Escola dos Pandectistas e nela,</p><p>pelas mãos de Windscheid, se encetou a dicotomia Direito Objetivo e</p><p>Direito Subjetivo. Não é sem razão que a dicotomia em análise começou</p><p>pelas mãos dos pandectistas. O Digesto romano recorreu com frequência</p><p>ao conceito de facultas agendi, isto é, a faculdade de agir, que norteava a</p><p>regulação das relações privadas. Foi a partir desse conceito que Windscheid</p><p>definiu o Direito Objetivo, que seria a norma, e o Direito Subjetivo, que</p><p>seria o poder da vontade de realizar o comando da norma. Outro pandec-</p><p>tista a procurar precisar o conteúdo dos conceitos de Direito Objetivo e</p><p>de Direito Subjetivo foi Jhering, para quem enquanto o Direito Objetivo</p><p>é a norma, o Direito Subjetivo é o interesse juridicamente protegido.</p><p>No século XX, o positivismo normativo de Kelsen identificou o Direito</p><p>Objetivo e o Direito Subjetivo como duas faces de uma mesma moeda,</p><p>sendo apenas pontos de vista oriundos do mesmo fenômeno.</p><p>Na seara penal, a distinção entre Direito Objetivo e Direito Subjetivo</p><p>ressoou de uma forma muito premente, iniciando-se já no século XIX.</p><p>Identificava-se o Direito Penal em sentido objetivo como a norma penal,</p><p>e o Direito Penal, em sentido subjetivo, como o Direito do Estado de</p><p>punir, chamado de Jus Puniendi.</p><p>Como dito, o Direito Penal em sentido objetivo seria conceituado a</p><p>partir da norma. É definido como “um conjunto de normas jurídicas que</p><p>têm por objeto a determinação das infrações de natureza penal e suas</p><p>respectivas sanções - penas e medidas de segurança”.14 * 16</p><p>É correto afirmar-se que, desde o início do século XIX, se encontra</p><p>na Dogmática Penal referência à ideia de Direito Subjetivo. Tal afirmativa</p><p>pode ser comprovada pela obra de Anselm von Feuerbach, que definia</p><p>o crime como uma injúria prevista por uma lei penal, que se consubs­</p><p>tanciava numa ação violadora do direito alheio, proibida mediante uma</p><p>lei penal.17</p><p>Segundo Feuerbach, o “crime é, no mais amplo sentido, uma injúria</p><p>contida em uma lei penal, ou uma ação contrária ao Direito de outro,</p><p>14 HERNANDEZ, Ccsar Camargo. Introducción al estúdio dei derecho penal. Barcelona:</p><p>Bosch,1960. p. 9.</p><p>17 Neste sentido: ROCCO, Arturo. El objeto dei delito y de la tutela jurídica penal. Con-</p><p>tribución a las teorias generales dei delito y de la pena. Montcvidco - Buenos Aires:</p><p>BdcF, 2001. p. 29-30.</p><p>Procurar</p><p>12 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>cominada numa lei penal”.18 Os crimes são sempre lesões ao Direito; por</p><p>exemplo, “a lesão do direito à vida constitui o homicídio”.19</p><p>Deste modo, o crime não é somente conceituado a partir de uma</p><p>ofensa à lei penal, já que para a sua existência será necessária também a</p><p>violação de um direito alheio, isto é, a violação do Direito Subjetivo.</p><p>Todavia, apesar de Feuerbach vincular o conceito de crime ao conceito</p><p>de violação do Direito Subjetivo, não podemos afirmar que ele criou o</p><p>conceito de Direito Penal Subjetivo. Isso se dá porque o conceito de Direito</p><p>Penal Subjetivo é muito mais amplo que o próprio conceito de crime. Este</p><p>último é o “direito que tem, o Estado, a castigar - jus puniendi - , impondo</p><p>as sanções estabelecidas pela norma penal, àqueles que tenham infringido</p><p>os preceitos da mesma”.20</p><p>O conceito de Direito Penal Subjetivo foi desenvolvido por Karl</p><p>Binding, que se utiliza do conceito de norma como comando de conduta</p><p>extraído da lei para formular um sistema geral acerca das mesmas e suas</p><p>violações. É das normas</p><p>que surge o Direito de Punir do Estado, isto é,</p><p>o Direito Penal subjetivo.</p><p>No panorama atual, alguns penalistas ainda recorrem à dicotomia</p><p>Direito Penal Objetivo e Direito Penal Subjetivo. Mir Puig, grande jurista</p><p>espanhol, por exemplo, utiliza-se da noção de Direito Penal Objetivo para</p><p>o estudo da norma penal, e do Direito Penal Subjetivo para a análise</p><p>do Direito de castigar, do Estado (Jus Puniendi), que seria o Direito de</p><p>criar e aplicar o Direito Penal objetivo.21 Neste último conceito, Mir Puig</p><p>enfrenta o escorço doutrinário acerca dos limites ao poder de punir do</p><p>Estado e seus limites.22 Tais limites são de várias ordens e têm sempre,</p><p>na substância, um fimdamento constitucional, traduzindo-se nos Princípios</p><p>que limitam a atividade punitiva.23 Todavia, os princípios constitucionais</p><p>18 FEUERBACH, Ansclm von. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Hammurabi,</p><p>1989. p. 64.</p><p>19 Idem. Ibidem. p. 164.</p><p>20 HERNANDEZ, Ccsar Camargo. Introducción al estúdio dei derecho penal. Barcelona:</p><p>Bosch, 1960. p. 45.</p><p>21 MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte Geral. Barcelona: Edição do Autor, 1998.</p><p>p. 7-8.</p><p>22 Segundo Mir Puig, o estudo dos limites ao poder de punir são feitos no âmbito do Direito</p><p>Penal Subjetivo, verbis: “La alusión al Derecho penal en sentido subjetivo será oportuna</p><p>más adelanle, cuando se trate de Jijar los limites que ha de encontrar el derecho dei</p><p>Estado a intervenir mediante normas penal es". Op. cit. p. 8.</p><p>u MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte General. Op. cit. p. 71 c ss.</p><p>Procurar</p><p>C o n ceito , O b je to e M é to d o d o D ire ito Penal 1 13</p><p>limitadores da atividade punitiva, deve-se consignar aqui, são de extraor­</p><p>dinária importância no sistema de dogmática penal, devendo os mesmos</p><p>ser cuidadosamente tratados no estudo desta disciplina, mas eles não se</p><p>situam no campo do Direito Penal Subjetivo.</p><p>Não é viável, em uma interpretação constitucional do Direito Pe­</p><p>nal, a recorrência à dicotomia Direito Objetivo versus Direito Subjetivo.</p><p>De início, registre-se que, no panorama hodiemo, do pós-positivismo, a</p><p>própria distinção entre eles é bastante criticada, por conta da constatação</p><p>de manifestações do Direito fora do Estado. Refere-se o pós-positivismo,</p><p>para efetuar essa crítica, aos estudos que envolvem o chamado Direito</p><p>Alternativo.</p><p>Mas não é esse o fundamento da inexistência dessa dicotomia no</p><p>Direito Penal.</p><p>Na verdade, não se pode falar em Direito Penal em sentido Subje­</p><p>tivo porque não há o direito do Estado de punir ninguém com a retirada</p><p>dos direitos fundamentais à vida, à liberdade e ao patrimônio. Seria uma</p><p>contradição reconhecer o direito subjetivo do Estado de violar direitos</p><p>subjetivos constitucionais do sujeito. O que existe é, isto sim, um dever de</p><p>punir em face do cometimento de um crime, e todo dever supõe requisitos</p><p>que tomam obrigatória alguma prestação. O conceito de Direito Subjetivo</p><p>tem como elemento essencial a faculdade de dispor desse direito, que é</p><p>precisamente o que os romanos falavam: a facultas agendi, a faculdade</p><p>de agir. Por ter o Estado o dever de aplicar a pena quando os seus pres­</p><p>supostos estiverem configurados, não há que se falar em Direito Penal</p><p>Subjetivo. Com efeito, o dever de agir é conceitualmente incompatível</p><p>com a essência do multirreferido conceito de Direito Subjetivo.</p><p>Outrossim, conclua-se afirmando que não existe uma utilidade prá­</p><p>tica dessa distinção, burilada no século XIX, no estágio atual da ciência</p><p>penal. Isto se dá porque o estudo dos limites à aplicação da pena por</p><p>parte do Estado se faz na seara dos Princípios do Direito Penal e não no</p><p>pretenso Direito Penal Subjetivo. Aceitar-se a continuidade hodiema dessa</p><p>dicotomia é assimilar de modo acrítico o panorama penal de dois séculos</p><p>atrás, que possuem pontos de partida diferentes daqueles utilizados na</p><p>dogmática contemporânea.</p><p>1 .4 . O B JE T O D O D IR E IT O P E N A L</p><p>Segundo José Cerezo Mir, “o Direito Penal é um setor do ordena­</p><p>mento jurídico, segundo a opinião dominante na dogmática moderna, ao</p><p>Procurar</p><p>14 1 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>qual se lhe incumbe a tarefa de proteger os bens vitais fundamentais do</p><p>indivíduo e da comunidade. Esses bens são elevados, pela proteção das</p><p>normas do Direito Penal, à categoria de bens jurídicos. (...) O substrato</p><p>desses bens jurídicos pode ser muito diverso. Pode ser, como assinala</p><p>Welzel, um objeto psíquico-físico (a vida, a integridade corporal), um</p><p>objeto espiritual-ideal (a honra), uma situação real (a paz do domicílio),</p><p>uma relação social (o matrimônio, o parentesco) ou uma relação jurídica</p><p>(a propriedade). Bem jurídico é todo bem, situação ou relação desejado</p><p>e protegido pelo Direito”.24</p><p>Ao conceituar o Direito Penal a partir de sua missão, Cerezo Mir</p><p>revela o próprio objeto do referido Direito Penal.</p><p>Quando se procura precisar o objeto do Direito punitivo, devemos</p><p>aqui consignar, coloca-se o alicerce que permite justificar racionalmente</p><p>o poder de punir e, em consequência dessa justificação, o Direito Penal</p><p>tem condições de se legitimar.</p><p>Toda norma penal que institui um crime tutela um bem. Se observar­</p><p>mos a estrutura do nosso Código Penal, veremos que todos os crimes estão</p><p>gravitando em tomo de um bem, por exemplo: o homicídio (art. 121), o</p><p>induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (art. 122), o infanticídio</p><p>(art. 123) e o aborto (art. 124 usque 128) estão reunidos em função do</p><p>bem vida. Com efeito, o título que os agrupa (Título I do Código Penal)</p><p>é o dos “Crimes contra a Vida”. No mesmo espeque do exemplo dado,</p><p>os demais crimes vigentes no nosso ordenamento também se agrupam</p><p>em tomo de bens, descritos nos títulos e/ou capítulos do Código ou das</p><p>leis penais esparsas. Sendo assim, bem jurídico é o nome técnico dado a</p><p>esses ditos bens, protegidos através da lei penal, que comina uma pena</p><p>em face de sua violação.</p><p>O objeto do Direito Penal é, pois, a tutela de bens jurídicos.</p><p>Todo bem ou valor que existe no mundo fático-social, cabe aqui</p><p>ressaltar, somente se converte em bem jurídico a partir de uma lei pe­</p><p>nal, que define a sua violação e comina a respectiva pena. Isto posto,</p><p>somente o legislador pode constituir um bem jurídico, daí se infere que o</p><p>surgimento ou a manutenção de um bem jurídico no Direito Penal é uma</p><p>eleição política do citado legislador. O bem jurídico, assim, corrobora a</p><p>face política do Direito Penal.</p><p>Todavia, deve-se concluir com esse alerta: a tutela de bens jurídi­</p><p>cos não pode ser realizada de qualquer modo e a qualquer preço. Em</p><p>24 CEREZO MIR, Josó. Curso de Derecho Penal Espanol. Madrid: Tccnos, 1993. p. 15.</p><p>Procurar</p><p>C o n ceito , O b je to e M é to d o d o D ire ito Penal 1 15</p><p>primeiro lugar, essa tutela somente poderá ser realizada e considerada</p><p>como legítima se forem observados os requisitos impostos pelo Estado</p><p>de Direito (v.g., Legalidade, Culpabilidade, Intervenção Minima). Em</p><p>segundo lugar, porque a pena retira direitos constitucionais da pessoa hu­</p><p>mana, somente haverá proporcionalidade se o bem jurídico tutelado tiver</p><p>guarida constitucional, isto é, se se situar entre aqueles bens protegidos</p><p>pela Carta Magna, quer sejam de natureza individual (vida, patrimônio</p><p>etc.) ou supraindividual (meio ambiente, ordem econômica etc.)</p><p>1 .5 . M É T O D O D O D IR E IT O P E N A L</p><p>1 .5 .1 . Escorço H is tó r ic o s o b re o M é to d o P e n a l</p><p>De pronto, ressalte-se que a temática do método penal é diretamente</p><p>vinculada à história do Direito</p><p>Penal. Assim, iniciamos com o alerta de que, para um aprofundamento</p><p>dos conceitos introduzidos neste tópico, são indispensáveis as lições do</p><p>capítulo posterior.</p><p>Por método entende-se o caminho para a investigação de um objeto.</p><p>É, pois, o método, o instrumental que se traduz nos cânones para pos­</p><p>sibilitar as investigações das evidências apreendidas sobre algum objeto</p><p>e a consequente formulação de enunciados que tomem o referido objeto</p><p>conhecido.</p><p>O Direito Penal que rompe com o arbítrio e se preocupa</p><p>com a pessoa</p><p>humana é relativamente recente. Foi somente com o Iluminismo, mais</p><p>precisamente a partir da obra de Beccaria, na segunda metade do século</p><p>XVIII, que foi aventada de forma sistemática a necessidade de limitar</p><p>o jus puniendi do Estado; o primeiro instituto que o milanês apresentou</p><p>para que tal desiderato fosse alcançado foi o Princípio da Legalidade.2S</p><p>No início do século XIX, em 1801, Anselm von Feuerbach sistematizou</p><p>o Princípio da Legalidade, com a formulação da teoria da coação psicoló­</p><p>gica, segundo a qual a tutela de interesses, que é o fim do Direito Penal,</p><p>deve ser realizada a partir de uma coação psicológica, feita a partir da</p><p>publicização da pena que será imputada a cada crime, o que acarretaria a</p><p>retração das condutas que violassem os interesses protegidos pelo Direito</p><p>25 BONESANA, Ccsar (Marques dc Beccaria). Tratado de los Delitos y de las Penas.</p><p>Buenos Aires: Arcngrccn, 1945. p. 47.</p><p>Procurar</p><p>16 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>Penal. Como o instrumento adequado para dispensar tal conhecimento é</p><p>a lei, esta última ocupará um papel exponencial nesse ramo do Direito,</p><p>pois não haverá crime sem lei (nullum crimen sine lege), pena sem crime</p><p>(nulla poena sine crime), e nem haverá crime sem a tutela legal de um</p><p>interesse {nullum crimen sine poena legali).26 Tais máximas foram con­</p><p>substanciadas no brocardo Nullum Crimen, Nulla Poena Sine Lege.</p><p>Nesse panorama pode-se compreender o método inicialmente apre­</p><p>goado pelo Iluminismo, onde a lei e a legalidade tinham uma particular</p><p>significação. Segundo Engisch:</p><p>“Houve um tempo em que tranqüilamente se assentou na idéia de que</p><p>deveria ser possível uma clareza e segurança jurídicas absolutas através de</p><p>normas rigorosamente elaboradas, e especialmente garantir uma absoluta</p><p>univocidade a todas as decisões judiciais e a todos os atos administrativos.</p><p>Esse tempo foi o do Iluminismo.”27</p><p>Com efeito, a legalidade era e ainda é a mais importante limitação</p><p>ao poder de punir do Estado. Ela evita que o Direito Penal seja aplicado</p><p>retroativamente para acomodar situações desagradáveis aos detentores do</p><p>poder político, protegendo o homem do próprio Direito Penal.</p><p>Como dito, a legalidade foi formulada à época do Iluminismo do</p><p>século XVIII, sendo o método defendido àquela época, para o Direito</p><p>Penal, o silogistico. Este era traduzido num processo de subsunção ló­</p><p>gica onde a lei era a premissa maior, o caso era a premissa menor e a</p><p>conclusão do processo seria a adequação do caso à lei.</p><p>Tal método, que, por força do positivismo jurídico, foi muito pre­</p><p>sente no século XIX, e na primeira metade do século XX apresentou</p><p>uma significação altamente benéfica no início de sua aplicação. A his­</p><p>tória mostra inúmeros exemplos através dos quais se pode comprovar</p><p>a aplicação do Direito Penal como um instrumento para acomodar as</p><p>situações desagradáveis aos detentores do poder politico, traduzindo-se</p><p>num instrumento de arbítrio estatal. Com o silogismo, o que não estivesse</p><p>previsto como crime na lei seria penalmente indiferente, não se podendo,</p><p>26 FEUERBACH, Ansclm von. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Hammurabi,</p><p>1989. p. 63.</p><p>37 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Lisboa: Caloustc Gulbcnkian,</p><p>2001. p. 206.</p><p>Procurar</p><p>C o n ceito , O b je to e M é to d o d o D ire ito Penal</p><p>i</p><p>17</p><p>destarte, aplicar-se retroativamente o Direito Penal, nem a analogia para</p><p>incriminar condutas.</p><p>Isto posto, a ideologia da lei e o método silogístico representaram</p><p>a primeira garantia do homem em face do poder de punir. Dita garantia</p><p>constitui-se, até hoje, na base do Direito Penal liberal.</p><p>Deve-se aqui, antes de tudo, trazer à colação a advertência de Bettiol</p><p>e Mantovani sobre a conceituação anteriormente posta. Sob a denominação</p><p>Direito Penal liberal não se encontra um conjunto homogêneo de doutrinas,</p><p>mas sob um certo aspecto se encontram mesmo doutrinas contrastantes</p><p>entre si, que são reunidas por possuírem um ponto em comum: a limitação</p><p>ao poder de punir do Estado. Em contraposição ao Direito Penal liberal,</p><p>encontra-se o Direito Penal do terror, que tem por característica a não</p><p>limitação do ju s puniendi estatal e a não garantia, via de consequência,</p><p>do homem em face do poder de punir.28</p><p>Como sabido, desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem</p><p>e do Cidadão, a legalidade dos crimes e das penas é uma garantia funda­</p><p>mental, inserida em quase todas as constituições democráticas ocidentais,</p><p>donde se encontra a Constituição Federal brasileira de 1988. Essa garantia</p><p>fundamental traduzida na multirreferida legalidade é a maior característica</p><p>do Direito Penal liberal.</p><p>Por conseguinte, infere-se que o silogismo legal integra o método</p><p>do Direito Penal liberal, posto que é através dele que se realiza a princi­</p><p>pal limitação do poder de punir, assegurando-se ao homem um anteparo</p><p>frente ao poder do Estado.</p><p>Todavia, a compreensão silogística, desde a crise do positivismo,</p><p>mostrou-se como um elemento necessário, mas não suficiente, para se</p><p>apreender o método do Direito Penal.</p><p>É que no Direito Penal muitos casos se resolvem até mesmo contra</p><p>a lei, o que comprova a insuficiência do método proposto. Por exemplo,</p><p>traga-se à colação o crime do art. 229 do Código Penal. Dito crime - casa</p><p>de prostituição - tipifica a conduta de manter por conta própria ou de</p><p>terceiro local especialmente destinado à manutenção de atos libidinosos,</p><p>haja ou não intuito de lucro, haja ou não mediação direta de proprietá­</p><p>rio ou gerente. Ninguém que viva na nossa sociedade questiona sobre o</p><p>fato de que os estabelecimentos conhecidos como motéis existem para</p><p>BETTIOL, Guisscpc; MANTOVANNI, Luciano Pctoclo. Diritto Penale. Padua: CEDAM,</p><p>1986. p. 20.</p><p>Procurar</p><p>18 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>proporcionar a realização de atos de natureza sexual, e que nesses locais</p><p>existe, ademais, tanto o intuito de lucro quanto a mediação de proprietário</p><p>ou gerente. Se, na década de 70 do século passado, o Supremo Tribu­</p><p>nal Federal decidiu, pelo método da subsunção lógica, que as pessoas</p><p>que mantinham os motéis deveríam responder por casa de prostituição,</p><p>diferente é a aplicação hodiema do direito penal. O Tribunal de Justiça</p><p>de São Paulo, por exemplo, tem decisão que não reconhece o crime em</p><p>tela - no caso dos motéis - dentre outras coisas porque não se pode fe­</p><p>char os olhos para a drástica modificação dos costumes por que passou a</p><p>sociedade de 1940, época da lei, até os dias atuais.29 Por óbvio, para dar</p><p>tal decisão, não se utilizou o silogismo, que conduziría inevitavelmente</p><p>à condenação.Com efeito. Com a crise do positivismo, o seu método</p><p>também entrou em crise por revelar-se insuficiente.</p><p>Foi nos anos 50 do século XX que um jusfilósofo alemão, chamado</p><p>Teodore Viehweg, chamou-nos atenção para a tópica. Tópica é a com­</p><p>preensão dos fatos. Segundo a tópica, a decisão tem que ser tomada a</p><p>partir de uma interpretação universal da totalidade do acontecer, ou seja,</p><p>de uma história compreendida.</p><p>Para o método tópico, deve-se fazer um processo semelhante ao dos</p><p>romanos para chegar-se à decisão jurídica: os romanos consideravam o</p><p>Direito uma arte, porque o pretor em caso concreto construiría a decisão</p><p>boa e justa. É essa a definição de Celso: Ius ars boni et aequi. A tópica</p><p>defende, pois, que a decisão deve brotar sempre do caso em si.</p><p>No último capítulo de sua obra, Viehweg aponta o papel fundamental</p><p>da retórica para a sua teoria. É a retórica que desenvolve a tópica, na</p><p>medida em que ela justifica a decisão. Por óbvio, os sinais linguísticos</p><p>são fundamentais para a argumentação em face do caso, mas a retórica</p><p>não é formada somente por eles, já que ela também leva em conta a</p><p>semântica e a pragmática. Por conseguinte, a retórica que constrói a de­</p><p>cisão a partir do caso se assentará em três pilares: a sintaxe, a semântica</p><p>e a pragmática.</p><p>“Na sintaxe: diz-se a relação dos sinais com os outros sinais; semântica:</p><p>a relação dos sinais</p><p>com os objetos, onde sua designação é afirmada; e</p><p>w AC n. 98.873. Rcl. Des. Luiz Betanho. In: FRANCO, Alberto Silva et al. Código Penal</p><p>e sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo: RT, 1993. p. 2.595.</p><p>Procurar</p><p>C o n ceito , O b je to e M é to d o d o D ire ito Penal</p><p>X</p><p>19</p><p>a pragmática: a relação situacional {der situativ Zusammenhang) onde os</p><p>sinais são usados entre os interessados.”30</p><p>1 .5 .2 . O M é to d o A tu a l: o P ó s -P o s itiv is m o</p><p>Entretanto, a tópica em si mesma é tão radical quanto o positivismo.</p><p>A ideologia da lei trouxe um grande benefício à aplicação do direito,</p><p>conforme declinado acima, e não pode ser simplesmente afastada em</p><p>favor da análise do caso concreto.</p><p>Nesse sentido, a filosofia pós-positivista busca um equilíbrio entre o</p><p>silogismo e a tópica, reconhecendo que o Direito admite uma superposi­</p><p>ção entre duas esferas: a esfera da compreensão da norma, de um lado,</p><p>e a esfera da compreensão do fato, de outro, levadas a cabo pelo ser</p><p>historicamente presente, pelo procedimento argumentativo. Esse método</p><p>é chamado de tópico-hermenêutico.</p><p>Usa-se, portanto, no método penal, a lei e a compreensão do caso.</p><p>A lei é o limite negativo, isto é, não se admite a incriminação do que</p><p>está fora dela, já que a mesma tem por função dar a garantia do homem</p><p>em face do poder de punir, conforme se apregoava desde o Iluminismo.</p><p>O limite negativo do método penal o harmoniza com o Princípio Cons­</p><p>titucional da Legalidade.</p><p>O caso dá o limite positivo, podendo ser utilizado como um meio</p><p>para justificar uma decisão que aumente o âmbito da liberdade, isto é,</p><p>que seja pro libertate. Como a finalidade da legalidade foi garantir a</p><p>liberdade do homem em face do poder de punir, conforme discorrido</p><p>acima, a tópica é teleologicamente conforme a legalidade, não havendo</p><p>nenhuma incompatibilidade entre elas. Com efeito, são possíveis decisões</p><p>não baseadas no silogismo, pela importância que deve ser dispensada</p><p>ao Homem. Isso, em verdade, representa o cumprimento do Princípio</p><p>Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, porque só se valoriza o</p><p>homem a partir da compreensão do caso, que traduz a sua história real,</p><p>que é única e irrepetível.</p><p>30 Tradução livre dc: “Syntax soll also heifien: der Zusammenhang von Zeichen mit anderen</p><p>Zeichen, Semantik: der Zusammenhang von Zeichen mit Gegenstãnden, deren Bezeichnung</p><p>behaupelet wird, und Pragmatik: der situativ Zusammenhang, in dem die Ziechen von</p><p>den Beteiligten jeweils benutzt werden". VIEHWEG, Teodor. Topik und Jurlsprudenz.</p><p>Münchcn: Bcck, 1974. p. 111.</p><p>Procurar</p><p>20</p><p>i</p><p>Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>Vejamos um exemplo da decisão a partir do caso, isto é, da tópica,</p><p>que serve para aumentar o âmbito de liberdade. Como sabido, a lei so­</p><p>mente prevê duas causas legais de exclusão da culpabilidade: obediência</p><p>hierárquica e coação moral irresistível (art. 22 do Código Penal). Entre­</p><p>tanto, não se nega a existência das causas supralegais de inexigibilidade</p><p>de outra conduta, que, por óbvio, não estão baseadas na lei, para afastar</p><p>a culpabilidade do agente. Essa referida exclusão se realiza com base</p><p>em um julgamento das circunstâncias do caso concreto que excluem a</p><p>censurabilidade do autor da conduta, reconhecendo-se que elas afetaram a</p><p>liberdade do agente entre se comportar conforme ou contrário ao Direito.</p><p>É o caso da jurisprudência abaixo transcrita:</p><p>“PENAL E CONSTITUCIONAL. NÃO RECOLHIMENTO DE CONTRI­</p><p>BUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. ART. 95, ‘D’, § Io, DA LEI N. 8.212/91.</p><p>MATERIALIDADE COMPROVADA. FALÊNCIA DA EMPRESA. INE-</p><p>XIGIBILIDADE DE OUTRA CONDUTA.</p><p>I - Pratica o delito previsto no art. 95, ‘d’, da Lei n. 8.212/91 (hoje com</p><p>redação dada pela Lei n. 9.983/00, que inseriu o art. 168-Ano Código Penal</p><p>Brasileiro), o empregador que desconta contribuição previdenciária de seus</p><p>empregados e deixa de recolhê-la aos cofres da Previdência.</p><p>II - Dolo manifestado na vontade livre e consciente de não repassar as</p><p>contribuições recolhidas dos contribuintes à Previdência Social. Desne­</p><p>cessária a demonstração de dolo especifico. O animus rem sibi habendi</p><p>é exigido na apropriação indébita comum, mas não o é na apropriação</p><p>indébita previdenciária.</p><p>III - A existência de provas cabais quanto à alegada dificuldade econômica</p><p>da empresa administrada pelos acusados, culminando com a decretação de</p><p>falência, possibilita o reconhecimento de inexigibilidade de conduta diversa</p><p>e justifica a exclusão da culpabilidade.</p><p>IV - Apelação do Ministério Público Federal desprovida.”</p><p>Relator: Des. Fed. CÂNDIDO RIBEIRO. TRF, Ia Reg., Ap. Crim. n.</p><p>199838000079575. Terceira Turma. DJ, 18.03.2005, p. 18.</p><p>Assim, o método do Direito Penal reside na síntese entre os Princí­</p><p>pios Constitucionais da Legalidade, o qual norteia seu limite negativo, e</p><p>da Dignidade da Pessoa Humana, que norteia seu limite positivo.</p><p>1 .6 . S ÍN T E S E C O N C L U S IV A</p><p>Porque o Direito Penal encerra em si o uso estatal da violência, sua</p><p>compreensão somente pode ser efetuada através da união de seus ele­</p><p>Procurar</p><p>C o n ceito , O b je to e M é to d o d o D ire ito Penal 1 21</p><p>mentos técnico-dogmáticos com o seu significado político. Com efeito,</p><p>a face política do Direito Penal aflora tão fortemente que ele é apontado</p><p>como o mais sensível termômetro da feição política do próprio Estado,</p><p>isto é, se a violência da pena for aplicada de forma ilimitada, sem res­</p><p>guardar a Dignidade da Pessoa Humana, estaremos diante de um Estado</p><p>arbitrário; de outro lado, se a violência da pena for aplicada dentro de</p><p>parâmetros de proporcionalidade (legalidade, culpabilidade etc.), de modo</p><p>que se respeite a dita Dignidade da Pessoa Humana, estar-se-á ante um</p><p>Estado democrático.</p><p>Deste modo, não se pode desvincular o Direito Penal de um duplo</p><p>viés: a aplicação e a de interpretação constitucional. O primeiro viés -</p><p>aplicação constitucional - condiciona o objeto do Direito Penal; o segundo</p><p>- interpretação consti-tucional, o método.</p><p>O objeto do Direito Penal é a proteção de bens jurídicos. Toda lei</p><p>penal tutela um bem, que ela própria aponta. Os crimes no nosso orde­</p><p>namento jurídico estão reunidos e sistematizados sob epígrafes, as quais</p><p>constituem os títulos e os capítulos tanto do Código Penal quanto das</p><p>leis especiais. (Por exemplo, na epígrafe: “Crimes contra a honra”, que</p><p>está no capítulo V do Código Penal, reúnem-se os delitos de calúnia, di­</p><p>famação e injúria; todos eles representam uma violação ao bem jurídico</p><p>honra, expresso na epígrafe.) Pois bem, quando o legislador (leia-se, o</p><p>político) elege um bem jurídico, ele efetua uma atividade de natureza</p><p>política, mas essa referida atividade política precisa ter também um lado</p><p>técnico: a coerência finalística e sistemática com o texto constitucional.</p><p>Isso se dá porque, se a pena atinge bens jurídicos constitucionalmente</p><p>assegurados (vida, liberdade e patrimônio), os bens jurídicos protegidos</p><p>através da definição legal do crime também precisarão ter um substrato</p><p>constitucional. Caso contrário, a lei penal violará os ditames da Carta</p><p>Política, mormente o Princípio da Proporcionalidade.</p><p>De outro lado, o método do Direito Penal conformará a aplicação das</p><p>normas daquele Direito no caso concreto. Com efeito, quando o aplica-</p><p>dor das normas, o juiz (leia-se, o técnico), realiza a decisão do caso, ele</p><p>também realiza uma atividade política. Por isso o método de aplicação</p><p>da norma penal não pode ser resumido em um silogismo, onde a lei é a</p><p>premissa maior, o caso é a premissa menor e a sentença é a subsunção</p><p>do caso à lei. Tal assertiva pode ser comprovada com relativa facilida­</p><p>de: quem poderá sustentar serem as causas supralegais inexigibilidade</p><p>de outra conduta, ou do reconhecimento da exclusão da antijuridicidade</p><p>pelo consentimento do ofendido, baseadas em silogismos? Muito ao</p><p>contrário, esses exemplos afastam a lei - que fatalmente conduziría à</p><p>Procurar</p><p>22 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>conclusão do caso a</p><p>aplicação da pena - e decidem o caso pela tópica.</p><p>Esta última (a tópica) encontra sua legitimidade positiva nos princípios</p><p>constitucionais. O método penal, assim, encontra na lei o seu sentido</p><p>negativo (não se pode punir fora da lei) e no caso seu limite positivo (o</p><p>caso pode ensejar uma argumentação racional para o afastamento da lei,</p><p>através de fundamentação constitucional). Esse método representa, pois,</p><p>a síntese dos Princípios Constitucionais da Legalidade e da Dignidade</p><p>da Pessoa Humana.</p><p>O fenômeno da alienação técnica dos políticos somado à alienação</p><p>política dos técnicos conduz à falta de norte do Direito Penal. Com esse</p><p>fenômeno, o Direito Penal se assemelha a um traje de arlequim, já que</p><p>suas normas nunca guardam harmonia, ora existindo leis extremamente</p><p>severas, ora extremamente brandas, sem que se atinja um ponto de equi­</p><p>líbrio. A sua aplicação concreta, por outra parte, fica assemelhada a um</p><p>lance de sorte, porque os julgamentos variarão sempre entre a técnica</p><p>autista do silogismo nu, vinculada que está à ideologia do século XVIII,</p><p>de que a lei pode encerrar em si toda a complexidade humana na regu­</p><p>lação de condutas, ou estarão em conformidade com um raciocínio mais</p><p>elaborado e trabalhoso, que se utiliza da tópica e da hermenêutica, tendo</p><p>a Constituição como baliza entre a lei e o caso.</p><p>Procurar</p><p>121</p><p>ESC O R Ç O H IS T Ó R IC O D O D IR E IT O P E N A L</p><p>2 .1 . IN T R O D U Ç Ã O À N O T ÍC IA H IS T Ó R IC A D A F O R M A Ç Ã O D O</p><p>D IR E IT O P E N A L</p><p>Podemos dividir o Direito Penal em dois grandes períodos: o período</p><p>do terror e o período liberal. O período do terror é aquele onde não existe</p><p>preocupação com a humanização da repressão penal, há nele o emprego</p><p>de uma violência desmedida e ilimitada, não se oferecendo nenhuma ga­</p><p>rantia ao ser humano em face do direito de punir do Estado. O segundo</p><p>período, o período liberal, inaugura a fase científica do Direito Penal, ele</p><p>começa com a formulação do Princípio da Legalidade e, portanto, começa</p><p>tardiamente. Pode-se afirmar, dessarte, que o Direito Penal cientifico é</p><p>pós-iluminista.! Ele é chamado liberal porque põe como centro a pessoa</p><p>humana, preocupando-se com o fundamento do direito de punir e com a</p><p>legitimidade da pena.1 2</p><p>Deste modo, conclui-se que a construção atual do Direito Penal não</p><p>pode ser dissociada da busca pela legalidade, que - conforme será visto</p><p>- será encarada como uma proteção dispensada ao homem frente ao jus</p><p>puniendi do Estado.</p><p>1 NUVOLONE, Pictro. II Sistema dei Diritto Penale. 2. cd. Padua: CEDAM, 1982. p. 1.</p><p>2 Em um sentido semelhante à nossa conclusão pronuncia-sc Bettiol, in verbis: "Quando</p><p>si parla, dunque, di liberalismo nel campo penalistico non si può fare riferimento ad um</p><p>insieme chiaro, ordinalo, omogeneo di dollrine, ma ad um complesso de concezione tra</p><p>lom diverse e spesso, sotto certo aspetti, contrastanti, le quali hanno in comune l 'esigenza</p><p>di garantirc 1’individuo nci suoi diritti di libertà contro ogni arbitrário intervento statualc.”</p><p>BETTIOL, Guiscpc; PETOELO MANTOVANI, Luciano. Diritto Penale. Padua: CEDAM,</p><p>1986. p. 20.</p><p>Procurar</p><p>2 4 , Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>2 .2 . D IR E IT O P E N A L D A S O C IE D A D E P R IM IT IV A</p><p>O Direito Penal sempre esteve presente na vida humana em socie­</p><p>dade. Deste modo, o Direito Penal fez-se presente na sociedade primitiva</p><p>e a prova da sua existência é apresentada através de muitos testemunhos</p><p>corporais que puderam conservar-se através dos tempos.3 Quando proje­</p><p>tamos a nossa reflexão sobre a norma penal, podemos constatar que nem</p><p>sempre ela teve o conteúdo e a forma que assinalamos atualmente para</p><p>a mesma. Parafraseando Zaffaroni, deve-se fazer notar que a história da</p><p>norma penal primitiva nos mostra um dos períodos mais sangrentos da</p><p>história, que provavelmente custou mais vidas, à humanidade, que todas as</p><p>guerras juntas, devendo salientar-se também que aqueles castigos, de tão</p><p>aberrantes e cruéis, são mais susceptíveis de ferir a sensibilidade humana</p><p>do que a própria guerra.4 Assim, o Direito Penal primitivo é sinônimo de</p><p>inflição de penas por demais cruéis, que em nada respeitam a dignidade</p><p>dos homens que as sofrem, vinculadas a especialíssimas superstições e</p><p>odiosas práticas. É digno de menção se notar que a evolução da norma</p><p>penal se deu com o distanciamento desta realidade: a norma penal procurou</p><p>com o seu desenvolvimento valorizar a dignidade humana e romper com</p><p>esse período de terror. Somente com a valorização da dignidade humana</p><p>o Direito Penal passa a ser regido por um componente: a humanização.</p><p>Antes de qualquer explicação, é necessária uma advertência sobre</p><p>a sociedade primitiva: o que caracteriza a sociedade primitiva não é a</p><p>carência de normas, mas a hipertrofia normativa. As normas, por mais</p><p>duras e desagradáveis que fossem, eram normalmente obedecidas pelos</p><p>integrantes da sociedade primitiva.5 Por isso se diz que “o selvagem se</p><p>converteu não só em um modelo de cidadão cumpridor da lei, mas também</p><p>se tomou como axioma que, ao submeter-se a todas as regras e limitações</p><p>de sua tribo, o selvagem não faz mais do que seguir a limitação natural</p><p>3 Neste mesmo sentido, Radbruch descreve a pena primitiva entre os germânicos através</p><p>dc testemunhos corporais que puderam conscrvar-sc. Nas regiões pantanosas dc Holstcin</p><p>c dc Schclcswing, dentre outras, foram encontrados muitos cadáveres: corpos dc homens</p><p>c mulheres que, segundo as evidencias, foram sepultados vivos nos pântanos; segundo o</p><p>autor, essas pessoas eram réus executados dessa maneira c, pelo grande número dc cadá­</p><p>veres, cvidcncia-sc que essa pena (scpultamcnto cm vida) foi executada com frequência.</p><p>Cf. RADBRUCH, Gustav; GWINNER, Enrique. Historia de la Criminalidad. Barcelona:</p><p>Bosch, 1955. p. 20.</p><p>4 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar, 1995. t.</p><p>I, p. 318.</p><p>5 MALINOWSK., Bronislaw. Crimen y Costumbre en la Sociedad Salvaje. Barcelona:</p><p>Aricl, 1956. p. 27.</p><p>Procurar</p><p>Escorço H is tórico d o D ire ito Penal 1 25</p><p>de seus próprios impulsos. (...) O selvagem (...) sente uma reverência</p><p>profunda pela tradição e os costumes, assim mostra uma submissão au­</p><p>tomática a seus mandatos. Os obedece ‘como um escravo’, ‘cegamente’,</p><p>‘espontaneamente’, devido a sua ‘inércia mental’, combinada com o medo</p><p>da opinião pública ou de um castigo sobrenatural”.6</p><p>Na sociedade primitiva, o Direito Penal tinha um caráter sacerdotal</p><p>e teocrático. Essa confusão entre Direito Penal e religião é própria da</p><p>cultura da época, na qual todos os valores, quer políticos quer religiosos,</p><p>bem como todas as normas da ética e da honorabilidade popular formavam</p><p>um conjunto entrelaçado.7 Isto posto, a aplicação da pena era feita pelos</p><p>sacerdotes, visto que o crime era sempre a violação das normas sagradas.</p><p>Deve-se salientar que o sacerdote gozava de ampla competência penal,</p><p>porque funcionava como intermediário entre os homens e a divindade;</p><p>ao aplicar a pena o sacerdote evitaria a ira desta, elidindo o seu castigo</p><p>sobre o grupo humano.</p><p>A pena primitiva era ligada à violação do tabu. Essa palavra, de</p><p>origem polinésia, significava a um só tempo o sagrado e o proibido. Os</p><p>tabus, enquanto proibições de caráter mágico ou religioso, eram leis dos</p><p>deuses, que não deveríam ser infringidas para não retirar o poder pro­</p><p>tetor da divindade.8 A sociedade primitiva acreditava que a violação do</p><p>tabu deveria ser punida neste mundo, e não no mundo existente “após</p><p>a morte”. Quando um tabu era violado a ira da divindade podería recair</p><p>sobre a tribo, causando malefícios a todos os seus membros. A pena pri­</p><p>mitiva, portanto, tinha por função afastar a ira da divindade e garantir a</p><p>continuidade do bem-estar dos habitantes da tribo que se abstinham de</p><p>violar o tabu. Neste sentido, é relevante trazer à colação a lição de Hans</p><p>von Henting, para quem em todos os ritos que acompanham a execução</p><p>de uma condenação a morte na sociedade primitiva pode-se encontrar</p><p>87</p><p>6.1. Objeto do Estudo............................................................................................. 87</p><p>6.2. Principio da Territorialidade............................................................................ 88</p><p>6.3. Lugar do Crime................................................................................................ 92</p><p>6.4. Aplicação Extraterritorial da Lei Penal........................................................... 93</p><p>6.4.1. Hipóteses de Extratcrritorialidadc Incondicionada................................. 94</p><p>6.4.1.1. Princípio da Defesa ou Real.................................................... 94</p><p>6.4.1.2. Principio da Justiça Penal Universal Aplicado ao Genocídio..... 95</p><p>6.4.2. Hipóteses de Extratcrritorialidadc Condicionada.................................... 97</p><p>6.4.2.1. Princípio da Justiça Penal Universal....................................... 97</p><p>6.4.2.2. Princípio da Nacionalidade...................................................... 98</p><p>6.4.2.3. Princípio do Pavilhão ou da Bandeira.................................... 99</p><p>Capítulo VII - Lei Penal com Relação às Pessoas................................................... 101</p><p>7.1. Introdução......................................................................................................... 101</p><p>7.2. Imunidadcs Substanciais.................................................................................. 103</p><p>7.3. Imunidadcs Formais......................................................................................... 105</p><p>7.3.1. Imunidadcs Diplomáticas....................................................................... 106</p><p>7.3.2. Imunidadcs Consulares.......................................................................... 110</p><p>7.3.3. Imunidadcs Parlamentares Formais....................................................... 111</p><p>7.4. Extradição......................................................................................................... 111</p><p>7.4.1. Conceito c Classificação........................................................................ 111</p><p>7.4.2. Casos de Impossibilidade de Extradição.............................................. 113</p><p>7.4.3. Requisitos da Extradição....................................................................... 116</p><p>Procurar</p><p>ín d ice S is tem ático X I</p><p>T ÍT U L O II - T E O R IA D O C R IM E</p><p>Capítulo VIII - Conceito de Crime............................................................................ 123</p><p>8.1. Conceito Criminológico c Jurídico dc Crime................................................. 123</p><p>8.2. Conceito Material dc Crime............................................................................ 125</p><p>8.3. Conceito Formal dc Crime.............................................................................. 128</p><p>8.4. Classificações do Crime................................................................................... 131</p><p>Capítulo IX - A Conduta Humana............................................................................. 135</p><p>9.1. A Conduta na Teoria do Crime...................................................................... 135</p><p>9.2. Evolução Dogmática do Conceito dc Ação................................................... 136</p><p>9.2.1. Teoria Causalista da Ação..................................................................... 136</p><p>9.2.2. Teoria Finalista da Ação........................................................................ 138</p><p>9.3. Teoria Social da Ação...................................................................................... 142</p><p>9.4. Considerações Criticas sobre as Teorias da Ação.......................................... 143</p><p>9.5. Omissão............................................................................................................ 144</p><p>9.6. Comissão por Omissão (Omissão Imprópria)................................................. 146</p><p>9.7. Ausência dc Conduta....................................................................................... 148</p><p>Capítulo X - Nexo de Causalidade............................................................................. 151</p><p>10.1. Apresentação do Tema................................................................................... 151</p><p>10.2. Teorias sobre o Nexo dc Causalidade........................................................... 152</p><p>10.2.1. Teoria da Equivalência das Condições.............................................. 152</p><p>10.2.2. Teoria da Causalidade Adequada...................................................... 154</p><p>10.3. Posição do Direito Brasileiro........................................................................ 155</p><p>10.4. Causalidade nos Crimes Culposos................................................................ 158</p><p>Capítulo XI - Tipicidade.............................................................................................. 159</p><p>11.1. Conceito c Evolução da Tipicidade............................................................... 159</p><p>11.2. Função dc Garantia da Tipicidade................................................................. 163</p><p>11.3. Análise do Tipo Penal.................................................................................... 164</p><p>11.3.1. Sujeito Ativo....................................................................................... 165</p><p>11.3.2. Sujeito Passivo................................................................................... 168</p><p>11.3.3. Objeto Material.................................................................................. 169</p><p>11.3.4. Elementos do Tipo Penal................................................................... 169</p><p>Capítulo XII - Tipo Comissivo Doloso....................................................................... 173</p><p>12.1. Conceito c Teorias do Dolo........................................................................... 173</p><p>12.2. Normalização do Dolo................................................................................... 174</p><p>12.3. Elementos do Dolo........................................................................................ 176</p><p>12.4. Prctcrdolo....................................................................................................... 179</p><p>Capítulo XIII - Tipo Comissivo Culposo................................................................... 181</p><p>13.1. Conceito c Teorias da Culpa......................................................................... 181</p><p>13.2. Espécies dc Culpa.......................................................................................... 183</p><p>Procurar</p><p>X II Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>13.3. Formas dc Comctimcnto do Crime Culposo................................................ 184</p><p>13.4. Requisitos da Culpa....................................................................................... 186</p><p>Capítulo XIV - Antijuridicidade................................................................................. 189</p><p>14.1. A Antijuridicidade na Teoria Geral do Direito............................................. 189</p><p>14.2. Antijuridicidade como Essência do Crime.................................................... 190</p><p>14.3. Antijuridicidade como Elemento do Crime.................................................. 193</p><p>14.4. Antijuridicidade Formal c Material............................................................... 197</p><p>14.5. Antijuridicidade Objetiva c Subjetiva........................................................... 200</p><p>Capítulo XV - Exclusão de Antijuridicidade............................................................ 203</p><p>15.1. Apresentação do Tema................................................................................... 203</p><p>15.2. Estado dc Necessidade................................................................................... 204</p><p>15.2.1. Requisitos da Situação dc Perigo...................................................... 207</p><p>15.2.2.</p><p>um</p><p>traço evidente da transformação de um sacrifício humano em uma punição</p><p>jurídica: os deuses ameaçadores, dos céus, castigarão não somente aquele</p><p>6 MALINOWSK, Bronislaw. Op. cit. p. 27-28.</p><p>7 RADBRUCH, Gustav; GWINNER, Enrique. Historia de la Criminalidad. Barcelona:</p><p>Bosch, 1955. p. 22.</p><p>* É a lição dc Jimóncz dc Asúa, in verbis: “Aquella serie de prohibiciones, a Ias que,</p><p>con una frase polinèsica se llama ahora tapú o tabú tienen origen mágico y religioso,</p><p>y significa reíribución en vida: Edelson Best dice que tapú entre los mayores significa</p><p>prohibición, una mutiplicación de 'no harásN o es incorrecto llamar a esas prohibiciones</p><p>la ley de los dioses que no deben ser infringidas. La penalidad, por la desobediencia de</p><p>esos mandatos tácitos es el retiro de protección de la divindad". ASÚA, Luís Jimcncz</p><p>dc. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Losada. t. I, p. 235.</p><p>Procurar</p><p>26 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>que cometeu o crime, mas toda a tribo; a pena evitaria o castigo sobre a</p><p>tribo, tomando-se um meio de sua defesa em face do perigo comum. O</p><p>criminoso, portanto, por ser um inimigo dos deuses da tribo, tomava-se</p><p>um inimigo da própria tribo.9</p><p>Do exposto, conclui-se que a pena tinha um caráter sacramental,</p><p>sendo um sacrifício expiatório oferecido à divindade.</p><p>Passemos, agora, à descrição de alguns institutos do Direito Penal</p><p>primitivo. Radbmch registra que, entre os germanos, uma forma comum</p><p>de apenar era o sepultamento com vida nos pântanos, aplicado como</p><p>pena aos homens que tivessem atitudes afeminadas ou praticassem atos</p><p>homossexuais, ou, ainda, às mulheres que fossem adúlteras ou licenciosas;</p><p>tais suplícios eram sacrifícios expiatórios oferecidos às divindades subter­</p><p>râneas. A morte por enforcamento, de outro lado, era um sacrifício ao deus</p><p>Wotan, o deus das tempestades, enquanto a profanação de um santuário</p><p>ou roubo de seus tesouros era punido com uma morte expiatória peculiar:</p><p>o criminoso era levado para a praia, durante o período de maré alta, tinha</p><p>suas orelhas rasgadas, depois era castrado e, em seguida, sacrificado em</p><p>expiação às divindades do templo profanado ou roubado.10 *</p><p>Outra instituição bastante marcante no Direito Penal primitivo foi o</p><p>suplício da roda. Essa pena representava um sacrifício expiatório à di­</p><p>vindade solar, sendo comum, depois do referido sacrifício, expor a roda</p><p>para o alto, inclusive com o corpo, em oferta à divindade." O suplício</p><p>da roda consistia em prender o corpo do condenado a um apoio para</p><p>depois dilacerar seus membros com uma grande roda, o dilaceramento</p><p>se dava através da separação dos membros do próprio corpo; após o</p><p>dilaceramento dos membros, prendia-se o corpo ainda vivo na própria</p><p>roda, para em seguida colocá-lo no alto, numa posição elevada. Em um</p><p>estádio posterior da evolução desse suplício, alguns instrumentos eram</p><p>utilizados para separar os membros do corpo, como, por exemplo, a</p><p>marreta e o porrete.</p><p>Na sociedade primitiva, quando alguém violava uma norma penal,</p><p>havia um grande clamor da tribo, que reagia energicamente. A pena</p><p>9 Cf. VON HENTING, Hans . La Pena. Origine - scopo - psicologia. Milão: Frattcli</p><p>Boca, 1942. p. 40.</p><p>10 RADBRUCH, Gustav; GWINNER, Enrique. Historia de la Criminalidad. Barcelona:</p><p>Bosch, 1955. p. 21-22.</p><p>" Cf. VON HENTING, Hans. La Pena. Origine - scopo - psicologia. Milão: Frattcli Boca,</p><p>1942. p. 57.</p><p>Procurar</p><p>Escorço H istórico d o D ire ito Penal</p><p>X</p><p>27</p><p>primitiva, portanto, era uma pena social, isto é, imposta pela sociedade,</p><p>não se identificando, portanto, com uma vingança individual.12 A pena</p><p>era uma reação da tribo àquele que não observou a norma penal, que</p><p>tinha uma força derivada do costume tribal, rigidamente observado pelos</p><p>integrantes das tribos. Deste modo, podemos concluir que o Direito Penal</p><p>da sociedade primitiva não está vinculado à razão, mas está vinculado</p><p>à superstição e à teologia da época. Em virtude desse irracionalismo, a</p><p>pena primitiva estava vinculada a superstições especialíssimas e a odiosas</p><p>práticas, que em nada respeitam o ser humano em sua dignidade.</p><p>2 3 . D IR E IT O P E N A L E M R O M A</p><p>Os romanos não conheceram o Princípio da Legalidade.13 14 O Direito</p><p>Romano durou aproximadamente 10 séculos e, assim, foi produto de</p><p>uma evolução milenar. Para os romanos, o Direito podería ser expresso</p><p>na definição de Celso: o Direito é a arte do bom e do equitativo (jus ars</p><p>boni aequm). O pretor, em cada caso, deveria construir a decisão boa que</p><p>realizasse a justiça naquela situação concreta. Por conseguinte, o Direito</p><p>Romano foi, sobretudo, costumeiro. A lei existia somente como um guia,</p><p>como um esquema de interpretação, que o prudente arbítrio do julgador</p><p>podería afastar, tendo sempre presente a decisão boa e justa. Foi no pe­</p><p>ríodo do declínio do Direito Romano que surgiu a famosa compilação do</p><p>imperador Justiniano, posteriormente denominada Corpus Júris Civilis,u</p><p>que tinha como parte mais importante o Digesto. O referido Digesto</p><p>era uma reunião, não das leis, mas da opinião dos doutrinadores. Com</p><p>efeito, para os romanos, os ensinamentos de juristas como Papiniano,</p><p>Modestino, Ulpiano, Gaio, Celso, Paulo, dentre outros, tinha muito mais</p><p>valor que qualquer lei.</p><p>12 Neste mesmo sentido, pronuncia-se Franz von Liszt: “La pena primitiva entendida de</p><p>forma mediata como el resultado dei instinto de conservaciún de la especie tuvo que</p><p>comportar un caracter social desde un principio, y aparecer como una reacción social</p><p>contra perturbaciones sociales". VON LISZT, Franz. La Idea dei Fin en el Derecho</p><p>PenaL Granada: Cornares, 1995. p. 55.</p><p>15 FERRINI, Contardo. Diritto Penale Romano. Milano: Hocpli, 1899. p. 32.</p><p>14 O Corpus Juris Civilis era composto dc quatro partes: Digesto, compilação da doutrina</p><p>dos jurisconsultos; Código, reunião das leis dos imperadores a partir de Constantino;</p><p>Institutos, que era um livro dc ensino do Direito; c Novelas, que eram as leis editadas</p><p>por Justiniano.</p><p>Procurar</p><p>2 8 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>A partir desse panorama, podemos entender o Direito Penal romano</p><p>e o porquê de ele não ter conhecido o Princípio da Legalidade. A noção</p><p>de crime e de pena na sociedade romana nasce com a sua formação, mas</p><p>elas não se derivam de normas penais. O antigo Direito Penal romano</p><p>surge através da disciplina doméstica, da disciplina militar e da ação direta</p><p>da polícia da época; somente quando o Estado, através de suas normas</p><p>legais ou consuetudinárias, interveio para limitar a discricionariedade das</p><p>pessoas revestidas do poder de punir, surgiu o Direito Penal público.15</p><p>A distinção entre os Direitos Penais público e privado determinou a dis­</p><p>tinção entre delicia e crimina. Durante a época clássica, o primeiro era</p><p>o fato ilícito punido com a pena privada e o segundo era o fato punido</p><p>com a pena pública.16</p><p>No Direito Penal romano, a lei não podería ser obstáculo para a</p><p>construção da decisão boa e justa no caso concreto. Por isso, mesmo</p><p>existindo leis penais em Roma, “não ficou abolido de maneira alguma o</p><p>arbítrio do magistrado; ainda agora podia este castigar fatos não fixados</p><p>como delitos pela lei, sem atender a procedimento algum determinado de</p><p>antemão pela mesma, fixando a medida da pena ao seu arbítrio”.</p><p>A maioria dos institutos penais, inclusive, não se deve à legislação,</p><p>mas às construções pretorianas. A formulação dos conceitos de dolo e</p><p>culpa, por exemplo, surgem através da atividade interpretativa dos jul­</p><p>gadores, não das leis.17</p><p>2 .4 . D IR E IT O P E N A L N A ID A D E M É D IA</p><p>As instituições penais existentes na Idade Média em muito se dis­</p><p>tanciam do Princípio da Legalidade. Na Idade Média, o julgador gozava</p><p>de ampla competência penal, tanto podendo incriminar condutas sem a</p><p>existência de lei escrita expressa quanto podendo aplicar penas não co­</p><p>nfinadas na legislação. Era permitido, ainda, ao julgador, utilizar-se da</p><p>tortura durante o curso processual. Deve-se salientar que</p><p>tortura e pena</p><p>não se confundem, a primeira, com efeito, era o instituto processual</p><p>destinado à obtenção de confissões e da verdade em tomo dos fatos re­</p><p>levantes no processo. Todavia, é relevante ressaltar que “os sofrimentos</p><p>15 MANZINI, Viccnzo. Trattato di Diritto Penale Italiano. Turim: Editricc Torincnsc,</p><p>1948. p. 54.</p><p>16 Idem. Ibidem. p. 55.</p><p>17 Idem. Ibidem. p. 89.</p><p>Procurar</p><p>Escorço H is tórico d o D ire ito Penal 29</p><p>impostos aos acusados para lhes arrancar confissões ou delações, eram de</p><p>tal sorte agudos que a sentença condenatória terminava por ser desejada</p><p>pelo imputado como verdadeira libertação - ainda quando se tratasse da</p><p>pena capital.”</p><p>As torturas, enquanto meios de prova processual, não estavam previs­</p><p>tas na lei, afastando-se assim do multirreferido Princípio da Legalidade.</p><p>Seu desenvolvimento deve-se à mente criativa dos julgadores da época,</p><p>os quais eram hábeis mestres quando o assunto era propalar o terror</p><p>penal. Dentre as modalidades de tortura existentes no período medieval,</p><p>destacamos as seguintes:18</p><p>Ia) Trato da Corda. Consistia em amarrar as mãos da pessoa atrás</p><p>das costas; o que sobrava da corda era amarrado a uma roldana</p><p>presa no teto do local da tortura. Ao sinal convencionado, o</p><p>torturador puxava a corda e o torturado ficava suspenso no ar.</p><p>2a) Suplício do Fogo. Untava-se a planta dos pés do acusado com</p><p>gordura e acendia-se fogo. Frequentemente o acusado perdia os</p><p>pés.</p><p>3a) Língua Caprina. Amarrava-se o torturado em uma cadeira, en­</p><p>quanto o torturador borrifava seus pés com água salgada; após,</p><p>trazia-se para junto do torturado uma cabra, que primeiro lambia</p><p>o sal, depois roía a pele, a carne e até os ossos do torturado.</p><p>É relevante ainda salientar o papel da Inquisição, instituição que mar­</p><p>cou a repressão penal da Idade Média. A história registra que a Inquisição</p><p>se utilizou do Direito Penal para acomodar certas situações desagradáveis</p><p>à manutenção da ordem pública, vinculando os suplícios e as penas oriun­</p><p>dos do poder penal da época ao afastamento de fenômenos naturais, que</p><p>se apresentavam como produto “da ira de Deus”. Uma situação concreta</p><p>poderá ilustrar bem esse referido papel: depois do terremoto que devastou</p><p>cerca de três quartos da cidade de Lisboa, fora decidido, pela Univer­</p><p>sidade de Coimbra, que o espetáculo da queima de pessoas vivas seria</p><p>um eficaz instrumento para evitar novos tremores de terra. Para tanto,</p><p>detiveram, dentre outras pessoas, um homem acusado de ter desposado</p><p>sua comadre e dois portugueses que retiraram a gordura do frango antes</p><p>18 Para uma minuciosa descrição das torturas da Idade Media, vcja-sc a obra dc ANTUNES,</p><p>Ruy da Costa. Problemática da Pena (Tcsc dc Cátedra). Recife: Edição do Autor, 1958.</p><p>p. 144-146.</p><p>Procurar</p><p>30</p><p>1</p><p>C urso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>de comê-lo. A Inquisição vestiu os condenados com vestes penitenciais,</p><p>levou-os em procissão para a praça pública, fez com que eles ouvissem</p><p>um sermão e entregaram-nos para serem queimados vivos.19 É digno de</p><p>registro que no mesmo dia da execução das penas capitais a terra voltou</p><p>a tremer, frustrando as expectativas dos inquisidores em vincular à pena</p><p>rituais transcendentes, hábeis para aplacar a ira divina.</p><p>Do exposto, nota-se que o Direito Penal medieval não tinha nenhuma</p><p>preocupação com a dignidade humana do réu criminal. Não havia, na</p><p>época, nenhuma garantia ao respeito da integridade física do condenado</p><p>ou mesmo daquele que era investigado; o arbítrio do julgador criminal</p><p>não tinha nenhum limite. Se era facultado ao julgador penal, durante</p><p>o processo, violar, ao seu arbítrio, a integridade corporal e até mesmo</p><p>matar sob tortura os investigados, muito mais arbitrária era a inflição da</p><p>pena: os julgadores aplicavam a morte acompanhada de intensa dor ou</p><p>penas corporais igualmente dolorosas. A época medieval registra como</p><p>modalidades de pena a extração de globos oculares, a castração, a extir-</p><p>pação das orelhas, a amputação das mãos e dos pés, o corte do nariz e</p><p>a marcação da face com ferro em brasa.20</p><p>Dentro desse panorama histórico, analisemos como o Direito se com­</p><p>portara. Durante a alta Idade Média, com o esvaziamento das cidades, a</p><p>população concentrou-se nos feudos e o Direito Romano deixou de ser</p><p>aplicado. A história jurídica registra poucos dados sobre esse período,</p><p>porque aí o Direito Penal foi, sobretudo, costumeiro,21 como os demais</p><p>ramos do Direito. Os únicos registros existentes sobre o Direito Penal da</p><p>alta Idade Média são os foros e as façanhas. Os primeiros eram normas</p><p>de auto-organização dos feudos; as segundas eram sentenças memoráveis</p><p>invocadas para solucionar casos semelhantes aos dela. Nesse panorama</p><p>19 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições. São Paulo: Companhia das Letras,</p><p>2000. p. 219.</p><p>20 Segundo a lição dc Ruy Antunes: “Sc antes dc obtida a certeza da culpabilidade do acu­</p><p>sado, os magistrados gozavam dc poder bastante para lhes fraturar ossos, mutilá-los, c até</p><p>privá-los da vida mediante a inflição de torturas; se os ordenamentos medievais da baixa</p><p>idade c da alta idade média c dc parte da idade moderna, como visto, cominavam pena</p><p>dc morte para a generalidade das infrações graves, não surpreendente hajam recomendado,</p><p>profusamente, castigos corporais exacerbados. De franco favor, como no Estado tcocrático,</p><p>gozaram as penalidades expressivas: amputação das mãos c pés, desorelhamento, corte dc</p><p>nariz, extração dos globos oculares, castração.” Problemática da Pena (Tese de Cátedra).</p><p>Recife: Edição do Autor, 1958. p. 146.</p><p>21 Cf. LEVAGGI, Abelardo. Manual de Historia dcl Derecho Argentino. Buenos Aires:</p><p>Dcpalma, 1991. t. I, p. 51.</p><p>Procurar</p><p>Escorço H is tórico d o D ire ito Penal 1 31</p><p>também não surge espaço para a efúsão do Princípio da Legalidade, por­</p><p>que o Direito Penal não escrito era um eficaz instrumento de controle do</p><p>povo que vivia sob o julgo feudal. Com a queda do Império Romano e</p><p>o surgimento do feudalismo houve o esfacelamento e fragmentação do</p><p>Direito Penal, podendo-se falar em um Direito Penal para cada feudo. A</p><p>partir desse esfacelamento o Direito Penal passou, segundo o magistério de</p><p>Ricardo de Brito Freitas, “a ser aplicado nos delitos comuns pelo próprio</p><p>senhor feudal através de critérios largamente arbitrários que redundavam</p><p>com frequência na aplicação de penas cruéis”.22</p><p>Na baixa Idade Média o Direito volta a evoluir, as escolas jurídicas</p><p>dos Glosadores (1100-1250) e dos Comentaristas (1250-1400) surgem na</p><p>Itália, a primeira reestudando o Direito Romano fundamentalmente pelo</p><p>método denominado trivium, que era composto por gramática, retórica</p><p>e dialética; a segunda, criando o Direito Comum, produto da união do</p><p>Direito Romano com o Direito Canônico.</p><p>É durante a época da baixa Idade Média que se promulga a Magna</p><p>Charta, assinada pelo rei João sem Terra, no ano de 1215. A Magna</p><p>Carta estabelecia, em seu art. 3,23 que nenhum homem livre podería ser</p><p>condenado senão em virtude de um processo legal efetuado pelos seus</p><p>pares, segundo a lei da terra. Eis aí o gérmen do Princípio da Legalidade.</p><p>Se não se pode afirmar que a Magna Charta exigia uma lei anterior ca­</p><p>pitulando uma conduta como crime e imputando a ela uma pena (porque</p><p>o Direito inglês é baseado no costume e no precedente judicial), pode-se</p><p>afirmar que a Magna Charta é um instrumento limitador do poder penal</p><p>do rei. Assim, se a Magna Charta foi voltada para o sistema chamado</p><p>commom law - sendo, portanto, incompatível com o da maioria dos paí­</p><p>ses - seu conteúdo limitativo do poder estatal é o mesmo do Princípio</p><p>da Legalidade.</p><p>Durante a Idade Média, com respeito às origens do Princípio da Le­</p><p>galidade, também é digna de menção a obra de Tiberius Decianus, datada</p><p>do século XVI. Deve-se a Decianus a divisão do Direito Penal em duas</p><p>partes: a parte geral e a parte especial. Em sua obra, intitulada Tractatus</p><p>Criminalis, o autor elabora uma obra abertamente teórica, especialmente</p><p>22 A. P. FREITAS, Ricardo dc Brito dc. Razão e Sensibilidade</p><p>- Fundamentos do Direito</p><p>Penal Modcmo. São Paulo: Juarez dc Oliveira, 2001. p. 10.</p><p>y Art. 39: “Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão ou privado dc seus bens,</p><p>ou colocado fora da lei, ou exilado, ou dc qualquer modo molestado, c nós não procede­</p><p>remos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular dc</p><p>seus pares ou dc harmonia com a lei da terra.”</p><p>Procurar</p><p>32 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B ran d ão</p><p>porque contém uma parte geral, que se desenvolve a partir do conceito de</p><p>crime, buscando sua análise sobre os princípios, causas, fontes, natureza,</p><p>elementos acidentais, e uma parte especial, a qual foi formulada segundo</p><p>uma sistematização racional dos crimes, sobre a base do objeto violado</p><p>(rectius, bem jurídico) pela ação criminosa.24</p><p>Ao analisar as causas do crime, Decianus inicia pela causa formal,</p><p>tal causa, segundo ele é a lei, que proíbe a ação sob a ameaça de uma</p><p>pena. Segundo Schaffstein: “A frase de Deciano ‘nullum potest cognosci</p><p>delictum, nisi praecedat lex, quae illud prohibeat et puniat', produz o</p><p>efeito de uma antecipação da regra nullum crimen sine legé".2S</p><p>Deciano foi um dos primeiros a estabelecer os princípios gerais</p><p>que norteiam o crime, com isso estabeleceu a base do Princípio da Le­</p><p>galidade. Todavia, não se pode afirmar que a ideia tida pelo autor em</p><p>comento sobre a lei era a ideia de lei escrita que se tem hodiemamente.</p><p>Na Idade Média, a lei não era necessariamente escrita, pois poderia ser</p><p>também considerada lei a “lei costumeira”. Ademais, parafraseando a</p><p>observação de Schaffstein, seria exagerado afirmar-se que Deciano via na</p><p>exigência do requisito da lei uma tendência político-jurídica - conforme</p><p>se conhece hoje - mesmo porque naquela época existia uma confusão</p><p>entre a lei humana e a lei divina.26 Segundo o pensamento da época,</p><p>existiam três tipos de lei: a lei etema, a lei natural e a lei humana. A lex</p><p>aetema é a vontade de Deus, que rege o universo; a lex naturalis é o</p><p>reflexo da vontade de Deus na mente humana, isto é, é o reflexo da lei</p><p>etema na mente humana; e a lex humanae é a lei temporal do Estado.27</p><p>Em caso de conflito entre a lei natural e a lei humana deveria prevalecer</p><p>a lei natural, visto que o poder divino seria supremo, em tudo superior</p><p>ao poder humano.</p><p>Com base no que foi exposto, constata-se que, teoricamente, à luz</p><p>do Direito e do próprio pensamento da época, não existe lugar para o</p><p>surgimento do Princípio da Legalidade. Corrobora esse entendimento</p><p>a análise da realidade histórica da aplicação do Direito Penal na Idade</p><p>Média.</p><p>24 Cf. SCHAFFSTEIN, Frederico. La Ciência Europea dei Derecho Penal en la Época</p><p>dei Humanismo. Madrid: Civitas, 1957. p. 88.</p><p>25 Idem. Ibidem. p. 108.</p><p>26 Idem. Ibidem. p. 109.</p><p>27 ABAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.</p><p>280.</p><p>Procurar</p><p>Escorço H is tórico d o D ire ito Penal</p><p>i</p><p>33</p><p>2 .5 . ID A D E M O D E R N A</p><p>Na Idade Moderna, os sofrimentos impostos pelo uso de um Direito</p><p>Penal não limitado pelo Princípio da Legalidade deram continuidade ao</p><p>terror que se verificou na Idade Média. Os monarcas utilizavam-se do</p><p>Direito Penal com o fim de assegurar a continuidade do absolutismo,</p><p>pois, quanto maior fosse o terror penal, maior seria o temor de rebelar-</p><p>-se contra o regime. Segundo o pensamento da época, o crime deveria</p><p>ser punido da maneira mais brutal possível, porque ele representava uma</p><p>ofensa à própria pessoa do soberano. Parafraseando Michel Foucault, vê-</p><p>-se no carrasco que executa a pena uma engrenagem entre o príncipe e</p><p>o povo,28 pois ele vingava a pessoa do soberano aplicando o suplício em</p><p>quem realizou a ação criminosa.</p><p>É na Idade Moderna que temos o nascimento, propriamente dito,</p><p>do Princípio da Legalidade, em 1764, através da obra do Marquês de</p><p>Beccaria, Cesare Bonesana, intitulada: Dos Delitos e das Penas. Para</p><p>a boa compreensão da obra que inaugura o Princípio da Legalidade, é</p><p>relevante a compreensão das características de seu autor e do ambiente</p><p>onde ele surge.</p><p>Beccaria nasceu em 15 de março de 1738, filho de uma família nobre</p><p>de Milão, que por tradição defendia o papado. Estudou interno com os</p><p>jesuítas em Parma, até o ingresso na universidade de Pavia, na qual es­</p><p>tudou Direito.29 Na vida intelectual milanesa enfrentavam-se, de um lado,</p><p>os homens maduros - burocratas imperiais, de postura conservadora - e,</p><p>do outro, os jovens intelectuais, atentos às novidades filosóficas vindas do</p><p>exterior. Dentre esses jovens, comandados por Pedro Verri, encontrava-se</p><p>o nosso autor. Eles fundaram um grupo autodenominado “Academia dos</p><p>Punhos”, onde questionaram, além da literatura, a economia e a política;</p><p>tentam redimensionar, à luz da filosofia iluminista, as questões relativas ao</p><p>Estado e à sociedade, à fé, à autoridade e à tradição.50 A influência desse</p><p>grupo sobre Beccaria foi tanta que alguns autores chegam ao exagero de</p><p>afirmar - sem provas históricas, ressalte-se - que o livro Dos Delitos e das</p><p>Penas é, em verdade, uma obra coletiva, originada daquele grupo.31</p><p>“ FOUCAULT, Michcl. Vigiar e Punir. Pctrópolis: Vozes, 2000. p. 69.</p><p>39 CABANELLAS, Guillcrmo. Beccaria y su Obra. Tratado de los Delitos y de las Penas.</p><p>Buenos Aires: Arcngrecn, 1945. p. 12-13.</p><p>30 SÁINZ CANTERO, José. La Ciência dei Derecho Penal y su Evolución. Barcelona:</p><p>Bosch, 1970. p. 50.</p><p>31 Idem. Ibidem. p. 52.</p><p>Procurar</p><p>3 4 , Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>Beccaria, segundo o seu próprio testemunho em carta enviada ao</p><p>abade Morellet, sofreu uma influência marcante da filosofia francesa,</p><p>mormente de Montesquieu e Helvetius.32 Sua doutrina é, na verdade, uma</p><p>aplicação das concepções iluministas francesas ao Direito Penal. Sua obra</p><p>procura, embora de uma forma incipiente, sistematizar os princípios de</p><p>um Direito Penal que respeite a dignidade da pessoa humana, livrando-a</p><p>do uso arbitrário do jus puniendi por parte dos detentores do poder po­</p><p>lítico. Seu sistema se baseia em três princípios basilares: a legalidade</p><p>dos crimes e das penas, a separação de poderes e a utilidade do castigo.</p><p>Todavia, todo o sistema liberal de Beccaria depende de um pressuposto:</p><p>o Princípio da Legalidade. Deste modo, a Legalidade é o Princípio que</p><p>fundamenta todos os demais.</p><p>Segundo Beccaria, “só as leis podem fixar as penas de cada delito</p><p>e o direito de fazer leis penais não pode residir senão no legislador, que</p><p>representa toda a sociedade, unida por um contrato social”.33 O milanês</p><p>parte de um pressuposto filosófico formulado por Rousseau, segundo o</p><p>qual, no princípio, havia um estado de natureza, no qual o homem, ao</p><p>chegar à idade da razão, era senhor de si, tendo uma vontade soberana.</p><p>Todavia, para a subsistência do próprio homem foi necessário alienar</p><p>uma parte de sua vontade em prol da vontade geral. A partir de então,</p><p>a vontade geral, oriunda do contrato social, é que será soberana e a lei</p><p>é a sua expressão.34 Para Beccaria, seguindo o esteio de Rousseau, os</p><p>homens sacrificaram uma parte de sua liberdade individual, em prol da</p><p>geral. Essa liberdade geral, obviamente decorrente da vontade geral,</p><p>materializa a soberania da nação.35</p><p>52 Na cana dc Baccaria a Morellet, o próprio declina que sc converteu à filosofia graças à</p><p>leitura das Cartas Persas, dc Montesquieu, c o Espírito, dc Helvetius. Cf. Apêndice. In:</p><p>BECCARIA, Ccsarc. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Edipro, 1993. p 120.</p><p>” BECCARIA, Ccsarc. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Edipro, 1993. p. 18. Ver</p><p>também; BONESANA, Ccsar (Marquês dc Beccaria). Tratado de los Delitos y de las</p><p>Penas. Buenos Aires: Arcngrccn, 1945. p. 47.</p><p>H Sobre a influência dc Rousseau cm Beccaria, veja-se Guillcrmo Cabancllas. Beccaria</p><p>y su Obra. Tratado de los Delitos y de las Penas. Buenos Aires: Arcngrccn, 1945. p.</p><p>25. Dcvc-sc salientar que Ricardo dc Brito Freitas, adotando uma posição divergente da</p><p>maioria dos estudiosos, identifica não cm Rousseau, mas cm Lockc, a fundamentação</p><p>contratualista dc Beccaria. Razão e Sensibilidade. Op. cit. p. 72 c ss.</p><p>35 In verbis: “Cansados dc só viver no meio dc temores c dc encontrar inimigos por toda</p><p>parte, fatigados dc uma liberdade que a incerteza dc conservá-la tomava inútil, sacrificaram</p><p>uma parte dela para gozar do resto com mais segurança. A soma dc todas essas porções</p><p>dc liberdade, sacrificadas assim ao bem geral, formou a soberania da nação”. BECCARIA,</p><p>Ccsarc. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Edipro, 1993. p. 16-17.</p><p>Procurar</p><p>Escorço H istórico d o D ire ito Penal 1 35</p><p>Beccaria enxerga, no Princípio da Separação de Poderes, outro</p><p>requisito necessário para evitar o terror penal, devendo-se distinguir o</p><p>legislador, cuja função é elaborar as leis, e o magistrado, ao qual cabe</p><p>decidir se a lei foi ou não violada. O legislador, que representa toda a</p><p>sociedade unida pelo contrato social, é a pessoa que tem a atribuição</p><p>de fazer as leis penais; essas leis precisam ser sempre gerais, desse</p><p>modo o legislador deverá elaborar a lei de forma que as pessoas da</p><p>mais alta posição social sofram a mesma punição que as pessoas das</p><p>mais baixas classes. Não é tarefa, entretanto, do legislador julgar quem</p><p>violou as leis, esse papel é exercido pelo magistrado. Segundo nosso</p><p>autor, o magistrado, por sua vez, não pode ser mais severo que a lei;</p><p>se o magistrado fosse mais severo que a lei, ele seria injusto, porque</p><p>infligiría um castigo que não estava determinado.36 A tarefa do magistrado</p><p>é, por conseguinte, fazer um silogismo perfeito, sendo a lei a premissa</p><p>maior, a ação em julgamento a premissa menor, e a consequência seria</p><p>a pena ou a liberdade.37</p><p>Outra ideia criada a partir da Legalidade é a da utilidade. Segundo</p><p>o autor, as vantagens decorrentes da união dos homens em sociedade</p><p>devem ser repartidas igualmente entre todos. Todavia, nota-se uma ten­</p><p>dência contínua de acumulação dos privilégios por uma minoria. A lei</p><p>legítima, para o autor, é aquela que dirige todo o bem-estar possível para</p><p>a maioria.38 As leis penais não devem ser cruéis, porque essa crueldade</p><p>é inútil, por isso ela é dita, parafraseando Beccaria, odiosa, revoltante,</p><p>contrária à justiça e ao próprio contrato social.39 É por conta do Princípio</p><p>da Utilidade que “as penas que ultrapassem a necessidade de conservar</p><p>o depósito da salvação pública são injustas por sua natureza; e tanto</p><p>mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança que</p><p>o soberano conserve aos súditos.40</p><p>O utilitarismo de Beccaria foi sintetizado por Cezar Roberto Biten-</p><p>court, in verbis: “Beccaria tinha uma concepção utilitarista da pena. Essa</p><p>orientação tem estreita relação com a tendência empírica que dominou</p><p>entre os penalistas de seu tempo. Essa concepção utilitarista considera­</p><p>va a pena um simples meio de atuar no jogo de motivos sensíveis que</p><p>36</p><p>37</p><p>38</p><p>39</p><p>40</p><p>BECCARIA, Ccsarc. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Edipro, 1993. p. 18.</p><p>Idem. Ibidem. p. 19.</p><p>Idem. Ibidem. p. 13-14.</p><p>Idem. Ibidem. p. 19.</p><p>Idem. Ibidem. p. 18.</p><p>Procurar</p><p>36 1 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>influenciam a orientação da conduta humana. Procuravam um exemplo</p><p>para o futuro, mas não vingança para o passado.”41</p><p>Para Beccaria o primado da lei, isto é, o Princípio da Legalidade, é</p><p>o meio eficaz para, em primeiro lugar, possibilitar que as pessoas da mais</p><p>alta posição social sejam punidas da mesma maneira que as pessoas da</p><p>mais baixa classe; em segundo lugar, para que houvesse a proporciona­</p><p>lidade entre o crime e a pena; e, em terceiro lugar, para que houvesse a</p><p>irretroatividade da norma penal e a proibição de analogia.42</p><p>O Código Penal de D. José II, rei da Áustria, datado de 1787, foi o</p><p>primeiro a consagrar o Princípio da Legalidade, o que foi seguido pelas</p><p>ordenações de Frederico II, rei da Prússia, denominadas Parte Geral do</p><p>Direito da Terra, e pelo Código Penal francês de 1810.</p><p>2 .6 . D IR E IT O P E N A L L IB E R A L : C O N S O L ID A Ç Ã O D A L E G A L ID A D E</p><p>O Princípio da Legalidade foi acolhido pela Declaração Universal</p><p>dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Segundo o artigo oitavo</p><p>da Declaração: “A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidente­</p><p>mente necessárias, e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma</p><p>lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada.”</p><p>Contudo, a sistematização dogmática do Princípio da Legalidade</p><p>não se deu com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do</p><p>Cidadão. Sua fórmula jurídica somente se perfez em 1801, através da obra</p><p>de Anselm von Feuerbach. Para Feuerbach, toda pena dentro do Estado</p><p>é a consequência de uma lesão jurídica, fundamentada na preservação do</p><p>Direito, e de uma lei que comine um mal sensível.43 Daí decorrem os</p><p>41 BITENCOURT, Cczar Roberto. Falência da Pena de Prisão. Causas e alternativas. 2.</p><p>cd. São Paulo: Saraiva, 2001 p. 36.</p><p>42 A importância dc Beccaria ó testumunhada por Florian, nos seguintes termos: “Fino</p><p>ai tempo de Beccaria nell'ordine pratico avevano avu/o sfrenato dominio abusi d'ogni</p><p>genere: la tortura, I 'arbítrio dei giudice, la desigualanza piü atroce. Nell 'ordine teorico</p><p>pretendevasi ricondurre la umana giustiza alia giustizia divina giungendo cosi alia teó­</p><p>rica espiazione, o fecevasi derivare il diritto penale dal diritto di guerra e di vendetta,</p><p>arrivando per tal guisa alia piü feroce intimidazione. Beccaria inaugura la guerra santa</p><p>conlro gli abusi e gli arbitri dei magistero penale ed assegna al medesimo una ragione</p><p>tutta umana e sociale". FLORIAN, Eugcnio. Trattato de Diritto Penale - Dei Reato c</p><p>dcllc Pene in Gcncralc. Milão: Vallardi, 1910. v. 1, p. 32.</p><p>A> VON FEUERBACH, Anselm. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Hammurabi,</p><p>1989. p. 63.</p><p>Procurar</p><p>Escorço H istórico d o D ire ito Penal</p><p>i</p><p>37</p><p>seguintes princípios: primeiro - toda imposição de pena pressupõe uma</p><p>lei penal (nulla poena sine lege); segundo - a imposição de uma pena</p><p>é condicionada à existência de uma ação incriminada (nulla poena sine</p><p>crimen); terceiro, o mal da pena, como consequência necessária, será</p><p>vinculado à existência de uma lesão jurídica determinada (nullum crimen</p><p>sine poena legali).44 Posteriormente a Feuerbach, as três fórmulas latinas</p><p>decorrentes do Princípio da Legalidade foram condensadas na expressão</p><p>nullum crimen nulla poena sine lege.</p><p>Destarte, é com Feuerbach que surge a formulação científica do</p><p>Princípio da Legalidade. A Legalidade aqui formulada guarda direita</p><p>relação com a ideia do pensador acerca da finalidade da pena e da fi­</p><p>nalidade do próprio Direito Penal, o que é traduzido na sua Teoria da</p><p>Coação Psicológica.</p><p>Para Feuerbach a união da vontade e da energia dos indivíduos</p><p>proporciona o fundamento da sociedade civil. O Estado é uma sociedade</p><p>civil organizada constitucionalmente mediante a submissão das vontades e</p><p>energias individuais a uma vontade comum. O objetivo do Estado é que</p><p>não se realizem lesões jurídicas, o que toma possível a coexistência dos</p><p>homens conjuntamente consoante as leis do Direito. Toda lesão jurídica</p><p>contradiz o objetivo do Estado e para evitar essas lesões deve-se recorrer</p><p>à lei penal, a qual cumpre um papel de exercer uma coação de índole</p><p>psicológica.45 Se o indivíduo conhece a lei e o mal que ela comina à</p><p>lesão tenderá a refrear seus impulsos, o que o leva ao cometimento da</p><p>ação lesiva; assim, a lei penal produz uma coação psicológica que traz</p><p>como consequência a intimidação dos sujeitos. Segundo o autor: “Posto</p><p>que a lei intimida a todos os cidadãos e a execução deve dar efetividade</p><p>à lei, resulta que o objetivo imediato (ou final) da aplicação da lei é, em</p><p>qualquer caso, a intimidação dos cidadãos mediante a lei."</p><p>Portanto, para o sistematizador do Princípio da Legalidade a lei</p><p>exerce o papel central do Direito Penal, pois possibilita a concreção dos</p><p>seus fins. Hodiemamente, entretanto, não se pode estear a Legalidade na</p><p>Teoria da Coação Psicológica. A essência do Princípio da Legalidade deve</p><p>ser buscada na própria</p><p>ideia atual do Direito Penal. O Direito Penal é o</p><p>instrumento de que o Estado se utiliza para exercer o seu jus puniendi.</p><p>Ocorre que, quando o referido Estado aplica a pena, ele retira direitos do</p><p>indivíduo, como a liberdade, o patrimônio e, excepcionalmente, a vida,</p><p>atingindo, portanto, direitos individuais da mais alta significação para</p><p>44 Idem. Ibidem. p. 63.</p><p>45 Idem. Ibidem. p. 58-60.</p><p>Procurar</p><p>38 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>a pessoa humana. O Princípio da Legalidade vai traçar o limite divisor</p><p>entre dois “direitos” em jogo: os direitos pessoais, de um lado, e o di­</p><p>reito de punir do Estado, de outro. O papel da Legalidade é proteger os</p><p>direitos pessoais ante o jus puniendi do Estado, porque o Princípio da</p><p>Legalidade garante que a potestade punitiva não seja usada de maneira</p><p>arbitrária, evitando a volta do “terror penal” . Portanto, é pela Legalidade</p><p>que o Direito Penal se volta para o homem, rompendo com o terror</p><p>penal. Se é através da Legalidade que se limita a intervenção penal,</p><p>é porque ela tem a função de garantir o indivíduo do próprio Direito</p><p>Penal, delimitando o âmbito de atuação do Estado na inflição da pena.</p><p>Neste espeque, podemos fazer a ilação que é a Legalidade que toma o</p><p>homem a figura central de todo o Ordenamento Penal, valorizando-o</p><p>em sua dignidade.</p><p>Dizemos que a Legalidade respeita o homem em sua dignidade,</p><p>portanto, para a compreensão do conceito moderno do Princípio da Le­</p><p>galidade, precisamos aclarar o que significa essa ideia. O conceito de</p><p>dignidade humana é presente em vários sistemas normativos, no caso</p><p>brasileiro é explicitamente citado na Constituição Federal de 1988, que</p><p>determina que um dos princípios que norteiam a República Federativa</p><p>do Brasil é o respeito à dignidade humana, in verbis:</p><p>“Art. Io A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel</p><p>dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituindo-se em Estado</p><p>Democrático de Direito tendo como fundamentos:</p><p>(...)</p><p>III - a dignidade da pessoa humana...”</p><p>No Direito estrangeiro a dignidade da pessoa humana é consagrada</p><p>em diversas passagens normativas. Dentre elas, destaca-se o Decreto-</p><p>-Lei n. 48/95, que trata da revisão do sistema de penas do Código Penal</p><p>português, que trazemos à colação:</p><p>“1. A tendência cada vez mais universalizante para a afirmação dos direitos</p><p>do homem como princípio basilar das sociedades modernas, bem como</p><p>o reforço da dimensão ética do Estado, imprimem à justiça o estatuto de</p><p>primeiro garante da consolidação dos valores fundamentais reconhecidos</p><p>pela comunidade, com especial destaque para a dignidade da pessoa hu­</p><p>mana” (grifo nosso).</p><p>O conceito de dignidade da pessoa humana expressa a ideia de que</p><p>a pessoa humana deve ser respeitada enquanto tal, independentemente de</p><p>Procurar</p><p>Escorço H is tórico d o D ire ito Penal</p><p>i</p><p>39</p><p>qual seja sua condição pessoal ou social, independentemente de ser ou</p><p>não cidadão, de ter ou não direitos politicos ou de qualquer ordem. Pa­</p><p>rafraseando Juarez Tavares, afirmamos que dignidade da pessoa humana,</p><p>dessarte, coloca o ser humano não como um meio, mas como o fim da</p><p>própria Ordem Jurídica.'46</p><p>Interessante ressaltar que a ideia de que os homens têm alguns direitos</p><p>inatos, decorrentes de sua própria natureza, é bastante antiga. Quando o</p><p>Direito positiva esses direitos inatos, ele dignifica o homem enquanto tal,</p><p>reconhecendo, pois, o que aqui se chama de dignidade humana. A título</p><p>de exemplificação, veja-se o que está estabelecido na secção primeira da</p><p>Declaração de Direitos da Virgínia:</p><p>“Todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes e</p><p>têm certos direitos inatos de que, quando entram no estado de sociedade</p><p>não podem, por nenhuma forma, privar ou despojar a sua posteridade, no­</p><p>meadamente o gozo da vida e da liberdade, com os meios de adquirir ou</p><p>possuir a propriedade e procurar obter a felicidade e a segurança.”</p><p>Isto posto, quando se diz que o Direito Penal acolheu o Princípio da</p><p>Legalidade, diz-se que em verdade ele passou a respeitar a dignidade da</p><p>pessoa humana, rompendo com o terror. Deste modo reconheceu-se que</p><p>o ju s puniendi do Estado não é um poder absoluto, mas é um poder que</p><p>se curva a limitações da mais alta ordem, a saber: não pode ser utilizado</p><p>de modo arbitrário ou cruel pelos detentores do poder político. Por isso,</p><p>enfatize-se, o conceito contemporâneo do Direito Penal é vinculado ao</p><p>do Princípio da Legalidade, o qual estabelece que pela lei não somente</p><p>se protege o homem das ações lesivas aos bens jurídicos, mas que por</p><p>ela se protege o homem do próprio Direito Penal.47</p><p>46 TAVARES, Juarez. Os Limites Dogmáticos da Cooperação Internacional. In: Principio</p><p>de Cooperação Judicial Penal Internacional no Protocolo do MercosuL São Paulo:</p><p>RT, 2000. p. 183.</p><p>47 No âmbito do Ordenamento cxtrapcnal é comum se reconhecer a Legalidade como uma</p><p>garantia dos Direitos Fundamentais. Os Direitos Fundamentais são Direitos Humanos</p><p>garantidos pelo ordenamento jurídico positivo. Eles são expressos numa gama dc direitos</p><p>c garantias que regulam as relações entre os indivíduos c o Estado, como exigência da</p><p>dignidade da pessoa humana, salvaguarda da sua liberdade c da sua segurança (cf. BA-</p><p>LAGUER CALLEJÓN, Francisco (Coord.). Derecho Constitucional. Madrid: Tecnos,</p><p>1999. t. II, p. 29). As Garantias Fundamentais, por sua vez, são condições necessárias</p><p>para a realização dos Direitos fundamentais (cf. BALAGUER CALLEJÓN, Francisco</p><p>(Coord.). Op. cit. p. 270).</p><p>Procurar</p><p>Procurar</p><p>3</p><p>D IR E IT O P E N A L E E S T A D O</p><p>3 .1 . A P R E S E N T A Ç Ã O D O T E M A</p><p>O Direito Penal está indissociavelmente relacionado com a política.</p><p>Através do Direito Penal se pode identificar a feição liberal ou totali­</p><p>tária do Estado,1 porque este ramo do Direito traduz o uso estatal da</p><p>violência, formalizada pela Dogmática Jurídica. É neste sentido que se</p><p>diz que a Justiça Criminal, por ser a concreção da essência opressiva do</p><p>Estado, é um indicador extremamente sensível do sistema político social</p><p>operante.* 2</p><p>O Princípio da Legalidade, que foi o marco através do qual sur­</p><p>giu o Direito Penal liberal, nasceu como reação à tirania do Estado</p><p>absolutista, portanto, ele tem uma origem política. O próprio Beccaria</p><p>reconheceu isso ao escrever sua obra magna, quando afirmava que:</p><p>“Tais princípios desagradarão sem dúvida aos déspotas subalternos que</p><p>se arrogam no direito de esmagar seus inferiores com o peso da tirania</p><p>que sustentam.”3</p><p>Pelo exposto, é o Princípio da Legalidade o paradigma utilizado</p><p>para a análise do significado político do Direito Penal, conforme se verá</p><p>a seguir.</p><p>' OUVENÍA, Guillcrmo. Estado Constitucional de Derecho Penal. Teorias Aclualcs cn cl</p><p>Dcrccho Penal. Buenos Aires: Ad-hoc, 1998. p. 56-57.</p><p>3 BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Estado de Derecho y Justicia Criminal en Chile (1973-</p><p>1979). Control Social y Sistema Penal. Barcelona: PPU. p. 584-585.</p><p>3 BECCARIA, Ccsarc. Dos Delitos e das Penas. p. 21-22.</p><p>Procurar</p><p>4 2 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>3 .2 . D IR E IT O P E N A L E E S T A D O T E O C R Á T IC O</p><p>Nos dias atuais constata-se que alguns Estados estão essencialmente</p><p>vinculados à religião, e essa assertiva pode ser provada através do caso</p><p>do Islã. O nosso objeto, dentro do Estado Teocrático, é analisar nele o</p><p>Princípio da Legalidade.</p><p>O Direito Islâmico (Shari’a) contém as regras de organização da</p><p>sociedade muçulmana e os meios de resolução de conflitos entre os indi­</p><p>víduos e entre os indivíduos e o Estado. No Direito Islâmico, considera-se</p><p>que somente existe uma fonte do Direito: Deus.4 A divindade, através</p><p>da revelação, regula as condutas humanas, bem como as demandas,</p><p>autorizando-as ou proibindo-as através do Direito. São esses os postulados</p><p>que se encontram nos livros sagrados da fé muçulmana, que estabelece</p><p>que: “A decisão é somente de Allah. Ele diz a verdade e Ele é o melhor</p><p>dos julgadores” (Surat al-An ’am, VI: 57).</p><p>O</p><p>Estado Islâmico (Estado do Qu ’ran) é baseado na revelação, e o Islã</p><p>seria a última das revelações divinas.5 Para os muçulmanos, o islamismo</p><p>não é uma nova religião, mas a culminação dos comandos espirituais e</p><p>temporais de Deus, que chegaram aos homens por meio de Moisés, Je­</p><p>sus, os profetas e Maomé, o último dos profetas. Dessarte, o islamismo</p><p>continuaria e terminaria a expressão da revelação judaico-cristã.6</p><p>A fonte principal do Estado e do Direito Islâmico é o livro dado</p><p>por Deus, o Qu’ran,7 além da Sunna ou Tafsir, que expressa a tradição</p><p>do profeta Maomé; por isso, apesar de o Estado islâmico estar figurando</p><p>4 Segundo o magistério dc Kamcl: “In Islamic law, properly speaking, lhere is only one</p><p>giver o f lhe law: God. (...) The law is a decison by God in lhe form o f a communication</p><p>regarding human actions, either demanding, authorizing, or prohibiting them”. KAMEL,</p><p>Taymour. The Principie of Lcgality and its Application in Islamic Criminal Justice. The</p><p>Islamic Criminal Justice System. New York: Bassiouni Editor, 1982. p. 151.</p><p>5 BASSIONI, Chcrif. Introduction. The Islamic Criminal Justice System. New York:</p><p>Bassiouni Editor, 1982. p. XIII.</p><p>6 Idem. Ibidem. p. XIII.</p><p>7 “The Qu’ran is lhe Holy Book o f Islam and, for lhe Muslims, the Word o f God, which</p><p>He has revelaed in order to gide all o f mankind and secure happiness both on earth and</p><p>in lhe hereafter. Il contains 114 Surats (chapters), including 6,342 verses, o f which 500</p><p>verses deal wich legal malters (kithab). Each o f these judicial verses bears an injuetion</p><p>- either an order ('amr) or a proibition (nahi). Out o f each juditial verse, a decision</p><p>(hukm) arises which is analogous to a judgment and is a specific legal rule (...) Qu’ran</p><p>is a code which govens religious and social life”. KAMEL, Taymour. The Principie of</p><p>Lcgality and its Application in Islamic Criminal Justice. The Islamic Criminal Justice</p><p>System. New York: Bassiouni Editor, 1982. p. 152.</p><p>Procurar</p><p>D ire ito Penal e Estado</p><p>i</p><p>4 3</p><p>entre as pessoas jurídicas de Direito Internacional em pleno século XXI,</p><p>podemos dizer que dito Estado é sacerdotal e teocrático.</p><p>Analisando, agora especificamente, o Direito Penal islâmico, verifi­</p><p>camos a existência de três grupos de crimes. Em primeiro lugar, temos</p><p>os crimes mais graves desse sistema, que são os chamados crimes de</p><p>Hudud\ em segundo lugar, por ordem de importância, temos os crimes</p><p>de Quesas; em terceiro lugar, temos os crimes de Ta 'azir.</p><p>A doutrina islâmica tem a preocupação de vincular os crimes de</p><p>seu sistema ao Princípio da Legalidade, pois ela reconhece que o dito</p><p>Princípio é uma garantia fundamental do ser humano, a qual resguarda</p><p>a sua liberdade.8 Segundo Kamel, o Direito Islâmico é, a exemplo do</p><p>Direito ocidental, fundamentado no Princípio da Legalidade, ainda que</p><p>implicitamente. A atitude ocidental de não reconhecer esse embasamento</p><p>- prossegue o autor - reflete a arrogante maneira ocidental de entender</p><p>o Direito Penal do Islã.9 Se é verdade que apenas o primeiro grupo de</p><p>delitos tem penas legalmente fixadas, enquanto o segundo e o terceiro</p><p>grupos de delitos são categorias aparentemente arbitrárias, é também</p><p>verdade que todo o Direito Islâmico, incluindo o Penal, é baseado nos</p><p>princípios gerais extraídos do Qu’ran, no qual reside a essência do mo­</p><p>derno conceito de Legalidade.10</p><p>Passemos, por conseguinte, à análise de alguns dos crimes do sistema</p><p>islâmico para confrontá-los com o Princípio da Legalidade.</p><p>Os crimes de Hudud foram estabelecidos, segundo a crença mu­</p><p>çulmana, dirctamente pela divindade no multirreferido livro sagrado do</p><p>Qu’ran. Os crimes dessa categoria são especialmente tidos como graves,</p><p>porque ferem os valores primordiais da sociedade islâmica. Ditos crimes</p><p>são: apostasia, roubo, adultério ou fomicação, falsa acusação de adultério,</p><p>associação armada, embriaguez por vinho e rebelião contra a legítima</p><p>autoridade. O objetivo da pena nesses delitos, a qual tem uma execução *</p><p>* In verbis: “The principie o f legality in crime and punishmení - in Roman Law, ‘Nullun</p><p>Crimen Nulla Poena Sine Lege’- constitutes a fundamental guarantee o f individual free-</p><p>dom by precisely and cleary delimiting the domain o f fobidden activity”. Taymour Kamel.</p><p>The Principie of Lcgalily and its Application in Islamic Criminal Justice, p. 149.</p><p>’ In verbis: “Ostensibly; accordin to westen views, the principie o f legality was inventes</p><p>in Europe, and Islamic criminal law is not basead in such principie. (...) This western</p><p>attitute reflects only an arrogantly narrow European understanding o f slamic penal law”.</p><p>KAMEL, Taymour. The Principie of Lcgality and its Application in Islamic Criminal</p><p>Justice, p. 150.</p><p>10 Idem. Ibidem. p. 157-158.</p><p>Procurar</p><p>44 Curso d e D ire ito Penai - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>temporalmente limitada, é causar uma extraordinária dor física no cri­</p><p>minoso, com vistas a tomar o castigo inesquecível, prevenindo futuras</p><p>repetições desses ilícitos.11 Segundo Mansour - embora o mesmo não</p><p>explique o porquê - as penas desses delitos, apesar de serem expressas</p><p>em flagelações, amputação da mão, morte por apedrejamento, dentre</p><p>outras, são em verdade um ato de misericórdia com aqueles que têm a</p><p>tendência ao cometimento de crimes.* 12</p><p>O primeiro dos crimes de Hudud é o de apostasia (Ridda). Apóstata</p><p>é todo aquele que, tendo professado a fé islâmica, a rejeita por palavras,</p><p>atos ou omissões. O Qu’ran assim dispõe sobre a apostasia: “E qualquer</p><p>de vocês que mudar de sua religião e morrer sem acreditar nela, seus</p><p>trabalhos falharam neste mundo e no próximo. Esses são habitantes do</p><p>fogo: eles estarão morando lá para sempre” (Surat al-Ma 'eda, V: 35).</p><p>A pena imposta para a apostasia é a morte.</p><p>Confrontando especificamente o crime de apostasia com o Princípio</p><p>da Legalidade, podemos constatar que, em que pese esse crime estar</p><p>previsto na fonte maior do Islã, ele não se adequa àquela. Conforme</p><p>se pode observar, é crime renunciar a fé islâmica por palavras, atos ou</p><p>omissões; todavia, não estão definidos quais atos, palavras ou omissões</p><p>importam a renúncia da fé islâmica. Dessarte, há uma indeterminação da</p><p>norma penal, o que contraria a exigência de lei certa. Além desse fato, a</p><p>doutrina reconhece que há desacordo entre os juristas sobre que condutas</p><p>acarretam a apostasia.13 14</p><p>O roubo é outro dos crimes de Hudud. A pena prevista para o roubo</p><p>é de natureza corporal, traduzindo-se no corte da mão direita.12 O livro</p><p>sagrado do islamismo assim dispõe sobre esse delito: “E para o ladrão,</p><p>homem ou mulher, corte-se a mão dele ou dela, uma punição para servir</p><p>de exemplo, de Deus, para o crime deles” (Surat al-Ma’eda, V: 38).</p><p>Ocorre que a interpretação dada pelos aplicadores do Direito do</p><p>Islã para o crime de roubo restringe a pena de amputação da mão para</p><p>os casos nos quais a coisa roubada tenha um valor significativo. Se o</p><p>objeto material for de pequeno valor, como no caso de roubo de porcos</p><p>“ MANSOUR, Aly Aly. Hudud Crimes. The Islamic Criminal Justice System. New York:</p><p>Bassiouni Editor, 1982. p. 200.</p><p>12 Idem. Ibidem. p. 196.</p><p>15 Idem. Ibidem. p. 197.</p><p>14 Idem. Ibidem. p. 198.</p><p>Procurar</p><p>D ire ito Penal e Estado</p><p>i</p><p>45</p><p>ou de álcool, não se utiliza essa pena.15 Todavia, os juristas não estão de</p><p>acordo sobre qual seja o valor mínimo para que se configure o delito de</p><p>roubo,16 em virtude de essa previsão não estar expressa no Qu’ran. Por</p><p>conseguinte, vê-se claramente que o crime de roubo não se amolda aos</p><p>ditames do Princípio da Legalidade, mormente considerando a severidade</p><p>de sua pena.</p><p>Através desses dois delitos, já resta provado que os crimes de Hudud,</p><p>do sistema islâmico, não obedecem ao Princípio da Legalidade. Corrobora</p><p>essa assertiva a advertência dos próprios juristas muçulmanos sobre o</p><p>conteúdo do livro sagrado dessa religião, o Qu’ran, o qual contém as</p><p>normas penais já referidas, das quais se depreende que: “A verdadeira</p><p>leitura do Q u’ran não é possível exceto através da remissão aos seus</p><p>comentários</p><p>(tafsir).”17</p><p>Ora, se a leitura do texto onde se situam as normas penais depen­</p><p>de da utilização de comentários, resta provado que há uma violação</p><p>à exigência de lei certa, a qual é uma decorrência do Princípio da</p><p>Legalidade.</p><p>Passemos agora à análise do segundo grupo de crimes: os crimes</p><p>de Quesas. Quesa significa equivalência, donde se denota que quem</p><p>comete um delito dessa espécie deve ser punido da mesma maneira e</p><p>na mesma intensidade de sua agressão.18 Os crimes que aqui se estudam</p><p>são cometidos contra a vida ou a incolumidade física da pessoa humana</p><p>e, nomeadamente, são:</p><p>Io) homicídio qualificado;</p><p>2o) homicídio doloso;</p><p>3o) homicídio culposo;</p><p>4°) lesão corporal dolosa;</p><p>5°) lesão corporal culposa.19</p><p>15 Idem. Ibidem. p. 198.</p><p>16 Idem. Ibidem. p. 198.</p><p>17 KAMEL, Taymour. The Principie of Lcgality and its Application in Islamic Criminal</p><p>Justice. The Islamic Criminal Justice System. New York: Bassiouni Editor, 1982. p.</p><p>152.</p><p>18 BASSIOUNI, Chcrif. Quesas Crimes. The Islamic Criminal Justice System. New York:</p><p>Bassiouni Editor, 1982. p. 204.</p><p>19 Idem. Ibidem. p. 203.</p><p>Procurar</p><p>Os crimes de Quesas são sempre considerados violações aos Direitos</p><p>Individuais da pessoa, os quais acarretam a necessidade de satisfação</p><p>e indenização da vítima ou seus familiares. Conforme já mencionado,</p><p>são duas as possibilidades de sanção. A primeira é o talião: aplica-se</p><p>a mesma violação física e corporal que foi feita em face da vítima. A</p><p>segunda forma é a indenização, chamada de Diyya, que é representada</p><p>pelo pagamento de uma compensação à vítima ou a seus familiares. O</p><p>Qu’ran indica a preferência pelo Diyya, porque este se traduz em uma</p><p>forma de perdão, incentivado pela crença muçulmana; contudo, o Islã</p><p>não obriga o ofendido ou os familiares deste a aceitar a indenização. No</p><p>caso de recusa do Diyya, aplica-se inexoravelmente o talião.20</p><p>Confrontando os crimes de Quesas com o Princípio da Legalidade,</p><p>verificamos a inadequação desses delitos aos ditames do nosso Princípio</p><p>maior. No sistema islâmico, por conta da não taxatividade da norma, o</p><p>valor entre matar um homem ou uma mulher, entre matar uma criança ou</p><p>uma pessoa insana pode variar conforme a escola jurídica. Para alguns</p><p>juristas, por exemplo, a morte de uma mulher, criança ou deficiente não</p><p>pode ser tratada com a mesma severidade com que é tratada a morte de</p><p>um homem muçulmano.21</p><p>Conforme se vê, pela falta de pormenorização da norma, as penalida­</p><p>des dos crimes de Quesas podem variar, o que acarreta uma instabilidade</p><p>jurídica em virtude da incerteza da sanção. Dita instabilidade é própria</p><p>dos sistemas em que a Legalidade é ausente.</p><p>A última espécie de crimes no sistema islâmico são os delitos de</p><p>Ta ’azir. A palavra Ta 'azir, juridicamente, significa punição criminal que</p><p>não está legalmente fixada.22 Os crimes de Ta’azir e suas respectivas</p><p>penas não têm previsão em nenhuma espécie de norma, ficando a deter­</p><p>minação da conduta incriminada e a pena a ela cominada vinculadas ao</p><p>arbítrio do julgador.</p><p>Tradicionalmente, as penas aplicadas pelos crimes de Ta’azir</p><p>são corporais, podendo variar entre a pena de morte e fiagelação.23</p><p>Todavia, é possível a aplicação de pena de prisão, que variará de um</p><p>4 6 | Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - Clá u d io B rand ão</p><p>20 Idem. Ibidem. p. 204-205.</p><p>21 Idem. Ibidem. p. 208-209.</p><p>22 BENMELHA, Ghaouti. Ta’azir Crimes. The Islamic Criminal Justice System. New</p><p>York: Bassiouni Editor, 1982. p. 212.</p><p>23 Idem. Ibidem. p. 215-216.</p><p>Procurar</p><p>D ire ito Penal e Estado 1 47</p><p>dia até um ano, ou de penas restritivas de liberdade, como banimento</p><p>ou exílio.24</p><p>Segundo Benmelha, o Ta 'azir é uma área penal cuja intervenção do</p><p>juiz é um importante meio de controle social, por isso seu poder discri­</p><p>cionário é manifesto.25 O juiz deverá se basear na Shari 'a para efetuar</p><p>um juízo de necessidade de pena, a qual preservará os valores sociais</p><p>e religiosos que têm inspiração geral no livro sagrado do Qu’ran. Dita</p><p>inspiração é geral porque - enfatize-se - as condutas incriminadas não</p><p>estão previstas em nenhuma espécie de norma.</p><p>Podemos identificar um exemplo do crime de Ta 'azir na prática do</p><p>lesbianismo. O contato sexual entre mulheres, pela natureza dos sujeitos</p><p>ativo e passivo, não pode ser considerado fomicação, porque, nesses</p><p>casos, parafraseando Benmelha, a violação não é tão grave para ensejar</p><p>a inflição do Hudud.26 Entretanto, tal ato fere os valores e a moralidade</p><p>da sociedade islâmica e ensejam uma penalidade; portanto, recorre-se ao</p><p>Ta 'azir para sancioná-los.</p><p>Após essa exposição dos crimes do Islã, tomado como caso paradig­</p><p>mático do Estado Teocrático, podemos concluir que nenhum dos grupos</p><p>de crimes existentes no sistema vincula-se ao Princípio da Legalidade. O</p><p>primeiro dos grupos, que são os crimes de Hudud, tem penas legalmente</p><p>fixadas, mas a descrição das condutas incriminadas é por demais genérica,</p><p>não existindo a sua individualização na norma. Alguns penalistas islâmicos</p><p>da atualidade consideram que no crime de Hudud não existe nenhuma</p><p>discricionariedade dos juizes, que são vinculados aos escritos sagrados,</p><p>somente existindo o poder criativo do juiz penal nos crimes de Ta 'azir,</p><p>em virtude da possibilidade de criação de crimes e de fixação de penas.27</p><p>Tal argumentação, entretanto, não pode subsistir, em virtude da indeter-</p><p>minação do conteúdo do crime de Hudud; ditas normas, com efeito, são</p><p>por demais vagas, violando materialmente o Princípio da Legalidade.</p><p>Os crimes de Quesas se baseiam no talião ou na compensação, mas</p><p>o sistema de penas não está taxativamente previsto pelo Ordenamento,</p><p>o que acarreta uma série de contradições no sistema penal, violando o</p><p>Princípio da Legalidade. O terceiro grupo de delitos, que são os crimes</p><p>24 Idem. Ibidem. p. 217.</p><p>25 Idem. Ibidem. p. 218.</p><p>26 Idem. Ibidem. p. 214.</p><p>27 MOSTAFA, Mahmoud M. Príncipes de Droit Pénal des Pays Árabes. Paris: Librairic</p><p>Gónóralc dc droit, 1972. p. 11.</p><p>Procurar</p><p>48 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>de Ta 'azir, estão confiados ao arbítrio do julgador, o qual apontará que</p><p>conduta é tida como criminosa e qual a pena que deve ser a ela imputada,</p><p>sem qualquer parâmetro normativo, exceto um juízo - e aqui frise-se bem:</p><p>vago, abstrato e inseguro - de contrariedade aos preceitos do Qu’ran.</p><p>Isto posto, salta aos olhos que os delitos de Ta 'azir violam o Princípio</p><p>da Legalidade.</p><p>Como o Direito Penal dos países árabes e islâmicos está impreg­</p><p>nado de preceitos do Direito Muçulmano, seus próprios penalistas reco­</p><p>nhecem a dificuldade de conciliá-lo com os principios do Direito Penal</p><p>contemporâneo,28 que é fundamentado na Legalidade.</p><p>3 .3 . D IR E IT O P E N A L E E S T A D O T O T A L IT Á R IO</p><p>A função do Direito Penal é tutelar valores, que são os bens jurídi­</p><p>cos.29 Se o Direito Penal se afasta da tutela de valores, ele se toma um</p><p>instrumento de arbítrio. Nos sistemas totalitários, o Direito Penal se afasta</p><p>da tutela de bens jurídicos para servir a outros interesses, transformando-</p><p>-se no referido instrumento de arbítrio.</p><p>Nos sistemas totalitários existe a necessidade de proceder ao controle</p><p>da sociedade oprimida e, para exercer o dito controle, o Direito Penal</p><p>é o mais eficaz instrumento. Ora, se o Princípio da Legalidade importa</p><p>a garantia da pessoa humana frente aos possíveis abusos dos detentores</p><p>do poder político estatal, ele é por natureza incompatível com o Estado</p><p>Totalitário. Com efeito, o Direito Penal do Estado Totalitário é um ins­</p><p>trumento de violência. Parafraseando Mir Puig, no multicitado Estado</p><p>Totalitário, a pena se converteu numa arma do Estado esgrimida contra</p><p>a sociedade, trocando-se a eficácia da pena pelo terror penal.30</p><p>No nosso panorama histórico, os exemplos do Direito Penal totalitário</p><p>avultam: no Chile, durante a ditadura iniciada nos idos de 1970, o Direito</p><p>28 MOSTAFA, Mahmoud M. Príncipes de Droit Pénal des Pays Árabes. Paris: Librairic</p><p>Génóralc dc droit, 1972. p. 13.</p><p>29 Neste</p><p>sentido a doutrina liberal soa unissona, veja-se, por todos, o que leciona Josó</p><p>Cerezo Mir: “El Derecho Penal es un sector dei ordenamiento jurídico al que, según la</p><p>opinión dominante de la dogmática moderna, le incumbe la tarea de la protección de</p><p>los bienes vitales fundamentales dei indivíduo y la comunidad. Estos bienes son elevados</p><p>por la protección de las normas dei Derecho a la categoria de bienes jurídicos". Curso</p><p>de Derecho Penal EspanoL Madrid: Tccnos, 1993. p. 15.</p><p>30 MIR PUIG, Santiago. Función de la Pena y Teoria dei Deito en el Estado Social y</p><p>Democrático de Derecho. Barcelona: Bosch. 1982. p. 29.</p><p>Procurar</p><p>D ire ito Penal e Estado 49</p><p>Penal não se submetia à lei, mas suas normas eram oriundas de decretos</p><p>prolatados por uma junta militar, que emitia regras que não castigavam</p><p>propriamente condutas, mas no dizer de Bustos Ramírez, castigavam a</p><p>consciência, a vontade e a forma de expressar-se na vida social.31 Temos</p><p>ainda o caso da Alemanha nazista, onde a vontade do Fürer era identificada</p><p>com a lei; esse Direito foi construído com base na doutrina da Escola</p><p>de Kiel, a qual suprimiu o Princípio da Legalidade para dar lugar a um</p><p>indeterminado Direito Penal de luta, brotado do sadio sentimento popu­</p><p>lar.32 No caso brasileiro, durante a ditadura militar inaugurada na década</p><p>de 60, o Direito Penal formalmente estava conforme a Legalidade, mas o</p><p>arbítrio se dava de forma sub-reptícia, onde sequestros, torturas e demais</p><p>atos correlatos não estavam formalmente previstos nas normas penais, mas</p><p>eram praticados sob os “olhos vendados” das autoridades judiciárias, que</p><p>nada podiam fazer contra os detentores do poder político.</p><p>Para o estudo da Legalidade e do Direito Penal no Estado Totalitário,</p><p>tomaremos como caso paradigmático o exemplo da Alemanha Oriental.</p><p>Dito Estado foi escolhido, em primeiro lugar, porque não existem mui­</p><p>tos estudos sobre ele nas obras brasileiras. Ademais, é um exemplo que</p><p>possibilita uma farta análise sobre a relação entre o arbítrio e a inflição</p><p>de pena, isto é, a relação entre a imposição do Direito Penal como meio</p><p>de garantir a subsistência de uma realidade política, afastada da ideia</p><p>mestra de tutela de bens jurídicos.</p><p>Durante a ditadura comunista na Alemanha Oriental, a qual foi exer­</p><p>cida pelo Partido Socialista Unificado por 40 anos, o Direito Penal foi</p><p>utilizado como um meio de imposição da ideologia comunista ou como</p><p>um meio de assegurar a sua vigência.33</p><p>51 In verbis: “De más está insistir sobre el carácter autoritário de los tipos, con abundancia</p><p>de elementos subjetivos, en que claramente no se castigan conductas, sino la conciencia</p><p>o el ânimo, la forma de expresarse en la vida social, Io que en su conjunto constituye un</p><p>derecho penal de autor". Estado de Derecho y Justicia Criminal en Chile (1973-1979).</p><p>Control Social y Sistema Penal. Barcelona: PPU, 1987. p. 588-589.</p><p>12 Sobre o Direito Penal nazista, obscrvc-sc, ainda, que “el variado injusto criminal durante</p><p>la dictadura nacionalsocialista tenia, como es sabido, su punto esencial en las consecuen-</p><p>cias delictivas de la idelolgia racista, sea en el extermínio masivo de judios y también</p><p>de gitanos, sea en las muertes masivas de dementes realizadas con motivo de la ‘higiene</p><p>de la raza'". H1RSCH, Hans Joachim. Derecho Penal dcl Estado dc Dcrccho c Injusto</p><p>Dirigido Estatalmcntc. Derecho Penal. Obras Completas. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni,</p><p>2000. t. II, p. 209.</p><p>M Segundo Hirsch, “Lo injusto criminal durante la dictadura dei partido único socialista</p><p>consistiá en lesiones de bienes jurídicos, que debian servir a la ideologia comunista o</p><p>aseguramiento de su pretensión de poder." HIRSCH, Hans Joachim. Dcrccho Penal dcl</p><p>Procurar</p><p>50 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>Segundo o que lecionava o Direito Penal vigente na pretérita Ale­</p><p>manha Oriental, a compreensão do delito não poderia ser buscada na</p><p>natureza humana, como produto da conduta de um sujeito ou de sujeitos</p><p>determinados, mas estava relacionada com a compreensão das condições</p><p>sociais oriundas das lutas de classes. Por conseguinte, não é o espírito</p><p>ou a força moral do homem que determina a conduta criminosa, mas é</p><p>a sua situação econômica que a determina. Assim, o crime é relacionado</p><p>com uma série de lutas de classes, segundo a mudança de produção nas</p><p>distintas épocas da evolução da história. Se o comunismo encerra a luta</p><p>de classes e as desigualdades econômicas, ele extermina da sociedade o</p><p>fenômeno “crime”.</p><p>Sobre o ideal comunista, são contundentes as palavras críticas de</p><p>Jescheck: “Se diz que a criminalidade não é uma condição inevitável da</p><p>existência humana, mas do desenvolvimento social, que, não obstante,</p><p>terminará por si só na última fase do comunismo (...). A crença de que</p><p>pode fazer-se desaparecer o delito modificando-se os pressupostos econô­</p><p>micos, pertence ao âmbito das grandes utopias que a humanidade criou</p><p>sempre de novo com joguetes fascinantes, mas que não podem enganar</p><p>o investigador sério.”34</p><p>Com efeito, razão assiste a Jescheck. Desvincular o crime da essên­</p><p>cia humana é ir de encontro à natureza das coisas. O estudo do crime,</p><p>bem como do próprio Direito Penal, está substancialmente vinculado ao</p><p>homem; e para que se possa provar esse fato, é só analisar os institu­</p><p>tos penais: o que é o dolo senão a vontade? O que é a consciência de</p><p>antijuridicidade senão a percepção? O Direito Penal, portanto, busca o</p><p>âmago da alma humana. E nesse sentido que se diz que ele é o ramo do</p><p>Direito mais próximo da Filosofia, pois ambos buscam a compreensão</p><p>dos fatos do espírito.35</p><p>Estado dc Dcrccho c Injusto Dirigido Estatalmcmc. Derecho Penal - Obras Completas.</p><p>Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2000. t. II, p. 209.</p><p>w JESCHECK, Hans-Heirich. Derecho Penal y su Aplicación en la Zona Alemana de</p><p>Ocupación Soviética. Buenos Aires: Depalma, 1967. p. 21-23.</p><p>35 Neste sentido, veja-se a lição dc Camclutti: "Pmbablemente la siluación dei jurista es</p><p>más cômoda para observar los hechos dei espiritu y, asi, las relaciones entre ellos. Y,</p><p>de los juristas, el penalista tiene, a este fin, las mayores posibilidades". CARNELUTTI,</p><p>Franccsco. Arte dei Derecho. Buenos Aires: Europa-América, 1948. p. 31. Sobre as rela­</p><p>ções do Direito Penal com a Filosofia, consultc-sc, ainda, CORREIA. Direito Criminal.</p><p>Coimbra: Almcdina, 1971. t. I, p. 9; c BRANDÃO, Cláudio. Erro dc Proibição - Análise</p><p>dc sua relevância para a exclusão da culpabilidade. Dissertação dc Mestrado - UFPE.</p><p>Recife: SED, 1998. parte II.</p><p>Procurar</p><p>D ire ito Penal e Estado</p><p>i</p><p>51</p><p>A partir desse conceito desvirtuado de delito, podemos compreender</p><p>a relação entre o Princípio da Legalidade e o Direito Penal da antiga</p><p>Alemanha Oriental.</p><p>O Princípio da Legalidade Socialista vigeu, como dito, na pretérita</p><p>Alemanha Oriental, dando o norte de seu Direito Penal. Dito Princípio</p><p>da Legalidade Socialista deita suas raízes no comunismo soviético de</p><p>guerra, correspondente aos anos de 1917 a 1921, que apregoava não estar</p><p>o Direito Penal restrito às “meras” leis, mas estar vinculado à consciência</p><p>revolucionária, podendo os Tribunais Populares incriminar condutas e</p><p>cominar penas aos fatos contrários à revolução comunista, independen­</p><p>temente de previsão legal.36</p><p>O Princípio da Legalidade Socialista não guarda relação com o Prin­</p><p>cípio da Legalidade, porque para o primeiro a apreensão do conteúdo da</p><p>lei somente pode ser feita de acordo com a orientação do Partido Socia­</p><p>lista Unificado. Assim, decorre do Princípio da Legalidade Socialista o</p><p>Princípio do Partidarismo. A orientação do partido para a compreensão do</p><p>conteúdo das leis tinha uma dupla característica: primeiramente, segundo</p><p>as exigências da política, os posicionamentos do partido sujeitavam-se a</p><p>uma mutabilidade constante, isto posto, o conteúdo das leis era mutável;</p><p>em segundo lugar, essa orientação “mutante” era cogente, traduzindo-se</p><p>em uma orientação obrigatória para todos os organismos do Estado e do</p><p>partido, aí incluído, obviamente,</p><p>o Poder Judiciário.</p><p>A doutrina penal da época na Alemanha Oriental referendava a</p><p>Legalidade Socialista. Veja-se, por exemplo, o magistério de Buchholz,</p><p>catedrático da Universidade de Humboldt: “As resoluções do partido nas­</p><p>cem da compreensão das necessidades históricas, são sua tradução política</p><p>prática. Constituem o fundamento da nossa legalidade e de nossas leis.</p><p>Por sua parte, estas adotam na forma de normas jurídicas estatalmente</p><p>obrigatórias, a legalidade - já reconhecida e elaborada nas resoluções do</p><p>partido - de nosso desenvolvimento social (...). Nosso Direito Socialista</p><p>é, como instrumento da classe dos trabalhadores estatalmente dominante,</p><p>uma expressão específica do rol condutor do partido. A vontade do partido</p><p>reside fixada no nosso Direito Socialista. Em conseqüência, a infração ou</p><p>o desrespeito a nossa legalidade significa, em última instância, infração</p><p>ou desrespeito das resoluções do partido.”</p><p>36 JESCHECK, Hans-Hcirich. Derecho Penal y su Aplicación en la Zona Alemana de</p><p>Ocupación Soviética. Buenos Aires: Dcpalma, 1967. p. 33.</p><p>Procurar</p><p>52 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>O Princípio da Legalidade Socialista, atrelado ao Partidarismo, tra­</p><p>duzia-se em um uso arbitrário do Direito Penal como um instrumento</p><p>de afirmação do regime político, o que pode ser comprovado por vários</p><p>casos concretos. Deve-se salientar, antes da análise dos ditos casos, que</p><p>essa forma de legalidade se distancia dos princípios penais decorrentes</p><p>do Princípio da Legalidade, inerente ao Estado de Direito, o qual exige</p><p>precisão na definição do delito e na definição da pena. Na verdade, a Le­</p><p>galidade Socialista dava ao arbítrio uma forma exterior de ato jurídico, o</p><p>que transformou o Direito Penal na mais temida arma de que dispunham os</p><p>governantes da zona comunista na luta contra seus inimigos políticos.37</p><p>Uma série de exemplos pode demonstrar que o Princípio da Legali­</p><p>dade Socialista faz com que o aplicador da lei penal maneje abertamente</p><p>com dois pesos e duas medidas.38 Quem aderisse à ideologia do Partido</p><p>Socialista Unificado, apesar de realizar com sua conduta um tipo penal,</p><p>podería ser liberto da incidência deste, ao passo que quem não aderisse</p><p>à ideologia comunista podería sofrer uma pena baseada tão somente em</p><p>cláusulas gerais e vagas da Constituição da República Democrática alemã,</p><p>sem a existência de tipos penais específicos.39</p><p>Enumeramos os seguintes exemplos para comprovar as assertivas</p><p>acima ditas sobre a aplicação do Direito Penal na Alemanha Orien­</p><p>tal:</p><p>1°) O Tribunal Supremo Alemão da zona comunista, através de</p><p>sentença datada de 1958, julgou um processo onde dois sol­</p><p>dados perseguiram um ébrio por conta de uma “provocação</p><p>política grosseira” e desferiram nele golpes, realizando o tipo</p><p>de lesão corporal grave. Como a provocação do ébrio foi contra</p><p>o regime político, o Tribunal entendeu que não houve ação</p><p>punível, porque não se produziram consequências danosas para</p><p>a República Democrática Alemã.40</p><p>2°) O Tribunal Departamental de Halle, por sentença ditada em</p><p>1957, condenou a cinco anos e três meses de reclusão o filho</p><p>de um ex-lati fundiário somente porque, no curso de uma visita</p><p>37 JESCHECK, Hans-Hcirich. Derecho Penal y su Aplicación en la Zona Alemana de</p><p>Ocupación Soviética. Buenos Aires: Dcpalma, 1967. p. 23.</p><p>M Idem. Ibidem. p. 38.</p><p>39 Idem. Ibidem. p. 23.</p><p>40 Idem. Ibidem. p. 26-27.</p><p>Procurar</p><p>D ire ito Penal e Estado</p><p>i</p><p>53</p><p>a sua terra natal, procurou informar-se acerca da situação do</p><p>estabelecimento rural que foi expropriado de seu pai.41</p><p>3o) O Tribunal do Distrito de Dessau, por sentença prolatada cm</p><p>1958, condenou a cinco anos de reclusão um sacerdote que,</p><p>dentro e fora da federação de estudantes de Leipzig, se declarou</p><p>contrário às teorias marxistas.42 *</p><p>4o) O Tribunal Departamental de Karl-Marx-Staadt condenou um</p><p>trabalhador sem antecedentes penais a um ano e seis meses de</p><p>prisão porque ele intermediou o emprego de uma adolescente</p><p>de dezessete anos, como criada de uma família conhecida dele,</p><p>residente na Alemanha Ocidental.45</p><p>3 .4 . D IR E IT O P E N A L E E S T A D O D E D IR E IT O</p><p>Cabe agora analisar a ligação do Princípio da Legalidade com a ideia</p><p>do Estado de Direito. Tal tarefa é árdua, porque os conceitos de Estado</p><p>de Direito e de conformidade com o Estado de Direito não são conceitos</p><p>precisos; não obstante, a doutrina é pacífica em reconhecer que uma justiça</p><p>penal exitosa é aquela ligada ao multirreferido Estado de Direito.44</p><p>Nelson Saldanha definiu o Estado de Direito “como aquele em que</p><p>o limite e o fundamento da ação estatal se encontram na ordem jurídica</p><p>e essencialmente na base desta, a constituição ’.</p><p>A ideia de Estado de Direito surge com as idéias do Iluminismo,</p><p>que apregoava um modelo de Estado diferente do absoluto, isto é, o</p><p>Estado liberal.45 Ocorre que não existe hodiemamente o Estado liberal</p><p>1,1 Idem. Ibidem. p. 28-29.</p><p>42 Idem. Ibidem. p. 28.</p><p>45 Idem. Ibidem. p. 29-30.</p><p>44 Vcja-sc, por todos, o que leciona Jüngcn Woltcr: “EI fundamento de un sistema de Dere­</p><p>cho penal y de la punición radica en el derecho la libertad, la garantia de la diginidad</p><p>humana y el principio de Estado de Derecho”. Problemas politico-criminales y jurídi­</p><p>co constitucionales de un sistema internacional de Derecho PenaL Politica Criminal</p><p>y Nucvo Dcrccho Penal - libro homenaje a Claus Roxin. Barcelona: Bosch, 1997. p.</p><p>102.</p><p>45 Neste sentido, vcja-sc o pensamento dc Jõrg Amold: “El Derecho penal propio de un</p><p>Estado de Derecho liberal-clásico se entiende como contrapeso frente a la facultad</p><p>punitiva de caráter autoritário dei Estado; éste se desarroló como reacción frente a la</p><p>arbitrariedad penal dei absolutismo”. ARNOLD, Jõrg. La ‘Superación’ dei Pasado de</p><p>la RDA ante las Barreras dei Derecho Penal dei Estado de Derecho. La Insostcniblc</p><p>Siluación dcl Dcrccho Penal. Granada: Cornares, 2000. p. 308.</p><p>Procurar</p><p>54 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>apregoado pelos iluministas, mas sim um Estado intervencionista, que,</p><p>independentemente de adotar o sistema capitalista ou socialista, se utiliza</p><p>de ações para, por exemplo, regular mercados, controlar a vida social,</p><p>dentre outras.</p><p>Santiago Mir Puig faz uma interessante construção doutrinária sobre o</p><p>Direito Penal no Estado moderno, apregoando que o Direito Penal é em ver­</p><p>dade um Direito Constitucional aplicado. Para o autor, atualmente não existe</p><p>o Estado de Direito, mas o Estado Social e Democrático de Direito.</p><p>Segundo Mir Puig, no Estado Teocrático a pena servia como forma</p><p>divina de castigo, e no Estado Absolutista, como um instrumento ilimi­</p><p>tado de subjugar os súditos. Somente com o Estado de Direito o poder</p><p>penal foi limitado por princípios abstratos e ideais. Um Estado Social e</p><p>Democrático de Direito é um modelo de Estado que une o Estado Liberal</p><p>e o Estado Social, superando-os. O Estado Liberal adota o Estado de Di­</p><p>reito, o qual é aquele onde o Direito emanado pela vontade geral é quem</p><p>governa, respondendo às exigências de defender a sociedade do Estado;</p><p>enquanto isso, o Estado social é o intervencionista. Pela fórmula: Estado</p><p>Social e Democrático de Direito, submete-se a intervenção do Estado aos</p><p>limites formais e materiais do Estado de Direito.46</p><p>Após as definições de Estado de Direito e de Estado Social e De­</p><p>mocrático de Direito, urge fazer uma análise do caso brasileiro.</p><p>A Constituição Federal de 1988, no seu artigo Io, define o Brasil</p><p>como um Estado Democrático de Direito. Daí, vem-nos o seguinte ques­</p><p>tionamento: pode-se afirmar que o Brasil é um Estado Social e Demo­</p><p>crático de Direito? A resposta é afirmativa. Com efeito, através de uma</p><p>interpretação sistemática da Constituição se constata (vejam-se, a título</p><p>de exemplo, os arts. 174 e 175) que o nosso Estado intervém em diver­</p><p>sas esferas, dentro dos limites fixados no Direito. Por isso é extreme de</p><p>dúvida que a República brasileira é - enfatize-se - um Estado Social e</p><p>Democrático de Direito.</p><p>O Princípio da Legalidade constitui-se em um limite da intervenção</p><p>estatal, sendo indissociável da ideia do Direito Penal de um Estado Social 44</p><p>44 O pensamento do autor pode ser extraído das seguintes obras: Función de la Pena y</p><p>Teoria dei Delito en el Estado Social y Democrático de Derecho. 2. ed. Barcelona:</p><p>Bosch, 1982. p. 19-23; El Derecho Penal en el Estado Social y Democrático de Dere­</p><p>cho. Barcelona: Aricl, 1994. p. 31-34; Revisión de la Teoria dei Delito en un Estado</p><p>Social y Democrático de Derecho. Libro Homcnajc a Josc Rafael Mcndoza Traconis.</p><p>Caracas: Univcrsidad Central dc Venezuela, 1998. t. II, p. 195-198.</p><p>Procurar</p><p>D ire ito Penal e Estado i</p><p>55</p><p>e Democrático de Direito. A Legalidade preserva a liberdade e a digni­</p><p>dade do homem, e assegura que esses valores não sejam arbitrariamente</p><p>violados pelo jus puniendi do Estado.47 48 Assim, em um Estado Social e</p><p>Democrático de Direito o Princípio da Legalidade faz com que o Direito</p><p>Penal sirva ao homem.</p><p>Politicamente o Princípio da Legalidade se constitui em uma alta</p><p>limitação ao jus puniendi estatal, servindo para proteger a pessoa humana</p><p>em face de um possível uso arbitrário do Direito Penal pelos detentores</p><p>do poder político. Desta forma, Roxin pronuncia-se no sentido de que</p><p>o Princípio da Legalidade protege o homem pelo Direito Penal e do</p><p>Direito Penal.4S</p><p>Outrossim, é por conta de seu significado político (garantir o homem</p><p>em face do poder do Estado) que o Princípio da Legalidade é erigido</p><p>a dignidade de garantia fundamental, o que já foi reconhecido pelo</p><p>Supremo Tribunal Federal.49</p><p>Corrobora nossa conclusão a lição de Francesco Palazzo: “A ver­</p><p>dadeira garantia do princípio do Estado de Direito, que no campo penal</p><p>encontra sua máxima expressão na legalidade dos delitos e das penas,</p><p>é totalmente política. Ela reside, em primeiro lugar, em impedir que a</p><p>pena, ou melhor dito, a pena penal, seja utilizada na contingência da</p><p>luta política e segundo a mudança das situações, como instrumento de</p><p>opressão sobre os adversários.”</p><p>O Princípio da Legalidade, com todas as suas implicações, é próprio</p><p>do Estado de Direito. Com relação à política criminal, equiparam-se o</p><p>Estado Teocrático e o Estado Totalitário: em ambos existe o arbítrio, não</p><p>se conhecendo a Legalidade como fundamento do sistema penal.</p><p>Se afirmamos que pelo Direito Penal podemos identificar a face po­</p><p>lítica do Estado, porque ele é a mais grave forma de intervenção estatal</p><p>na esfera individual, é correto se afirmar também que pelo Princípio da</p><p>Legalidade podemos identificar o Estado que submete o poder político aos</p><p>limites do Direito, amoldando-se na concepção, aqui exposta, do Estado</p><p>Social e Democrático de Direito.</p><p>47 Neste sentido 6 a lição dc Juarez Tavares: “Por outra parte, o principio da legalidade,</p><p>inserido no art. 5o, XXXIX, da Constituição Federal, pelo qual se exige uma exata des­</p><p>crição da conduta criminosa, tem por escopo evitar possa o direito penal transformar-se</p><p>cm instrumento arbitrário, orientado pela conduta dc vida ou pelo ânimo”. Teoria do</p><p>Injusto Penal. Belo Horizonte: Dcl Rcy, 2000. p. 169.</p><p>48 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Madrid: Civiias, 1998.</p><p>44 STF, Rcc. Ext. Criminal n. 11.8655-1, Rcl. Min. limar Galvão, DJ, 21.08.1992.</p><p>Procurar</p><p>Procurar</p><p>P R IN C ÍP IO D A L E G A L ID A D E P E N A L</p><p>4 .1 . C O N S ID E R A Ç Õ E S IN IC IA IS</p><p>O Princípio da Legalidade é o estudo da lei penal em sua natureza</p><p>intrínseca. Isso se dá porque dita natureza intrínseca versa sobre a subs­</p><p>tância da lei, isto é, versa sobre a essência mesma da lei. É através do</p><p>Princípio da Legalidade que o Estado encontra o pressuposto e a fonte</p><p>para o exercício da potestade de repressão penal. De outro lado, para­</p><p>fraseando Florian, é também através do mesmo Princípio da Legalidade</p><p>que termina o reino de arbítrio, porque alguém somente pode ser tido</p><p>como criminoso após a prévia e solene declaração da conduta qualificada</p><p>na lei como crime.1</p><p>Como visto alhures, o sistema penal tem como partes o Estado e a</p><p>pessoa humana. Juridicamente, o Princípio da Legalidade se presta para</p><p>equilibrar o sistema penal, dando ao Estado uma fonte - ainda que limi­</p><p>tada - para a emissão de seus comandos e à pessoa humana uma série de</p><p>garantias, que são decorrentes da significação jurídica desse Princípio.</p><p>Juridicamente, o Princípio da Legalidade alcança a interpretação</p><p>da lei penal e a fundamentação das Teorias do Crime e da Pena. Com</p><p>relação à interpretação da lei penal, as consequências do Princípio em</p><p>1 “Non si può duvitare delia necessita d'una lege (...). Sarebbe il regno deli'arbítrio, la</p><p>tranquilità e la pace dei cittadini non esisterebbero piü, qualora si potessero la consi-</p><p>derare como reati le azioni che al giudice od al sovrano parecero tali, senza previa e</p><p>solenne dichiarazione, o s 'irrogassero pene a capriccio". FLORIAN, Eugênio. Trattato</p><p>de Diritto Penale - Dei Reato c dcllc Pene in Gcncrale. Milão: Vallardi, 1910. v. 1. p.</p><p>VITOR SILVA BRAGA</p><p>Explicação da importância semelhante à ideia de Roxin - "O princípio da legalidade serve para proteger o homem do próprio direito penal. É o maior limite ao jus puniendi do Estado, pois ele estabelece que a lei certa, escrita e prévia funciona como um anteparo à manipulação do direito penal frente aos detentores do poder"</p><p>58 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>comento são, em primeiro lugar, a proibição da analogia em prejuízo</p><p>do réu; em segundo lugar, a proibição do Direito Costumeiro in malam</p><p>partem-, em terceiro lugar, a exigência de lei certa; e, em último lugar, a</p><p>exigência de lei prévia.</p><p>Com relação à fundamentação das Teorias do Crime e da Pena, vemos</p><p>que ambas alcançam o seu suporte na Legalidade a partir da análise da nor­</p><p>ma penal. Com efeito, a norma penal incriminatória tem como requisitos</p><p>formais o preceito e a sanção; do preceito decorre a Teoria do Crime, da</p><p>sanção, decorre a Teoria da Pena. Os capítulos que se seguem, portanto,</p><p>dão continuidade ao significado jurídico do Princípio da Legalidade, pois</p><p>tratam de sua relação com a Teoria do Crime (referentes à tipicidade, à</p><p>antijuridicidade e à culpabilidade) e com a Teoria da Pena.</p><p>4 .2 . P R O IB IÇ Ã O D E A N A L O G IA ( N U L L U M C R IM E N , N U L L A P O E N A</p><p>S IN E L E G E S T R IC T A )</p><p>A lei penal precisa ser interpretada de um modo particular, diferen­</p><p>temente das normas existentes nos outros ramos do Direito. É comum,</p><p>nos demais ramos do Direito, admitir-se o procedimento da analogia, tal</p><p>procedimento, todavia, não é admitido no Direito Penal da mesma forma</p><p>que o é nos outros ramos do Direito.</p><p>Analogia é um processo de interpretação que integra uma lacuna</p><p>existente na lei a partir de um argumento de semelhança. A analogia</p><p>possibilita a regulação de um determinado caso que não se encontra</p><p>tratado na perspectiva linguística-conceitual da norma, a partir de um</p><p>processo de comparação. Na lição de Maurach: “A aplicação de analo­</p><p>gia abandona o âmbito demarcado pelo preceito jurídico, ao submeter</p><p>à regra jurídica também certos preceitos da vida situados fora do dito</p><p>âmbito, por ser similar em sentido (paralelo) com o fato tido em vista</p><p>pelo preceito jurídico.”2</p><p>A proibição de analogia é uma decorrência do Princípio da Legali­</p><p>dade. Se uma conduta não se amoldar perfeitamente ao modelo abstrato</p><p>da ação ou da omissão que a norma penal descreve, não é possível a</p><p>aplicação da dita norma. Isso se dá porque em Direito Penal é defeso</p><p>a aplicação das normas para incriminar condutas semelhantes àquelas</p><p>típicas. Com efeito, o juiz não pode ocupar o papel do legislador para</p><p>2 MAURACH, Rcinhat; ZIPF, Heinz. Derecho Penal. Parte General. Buenos Aires: Astrea,</p><p>1994. p. 160.</p><p>Procurar</p><p>VITOR SILVA BRAGA</p><p>Analogia e integração de lacunas</p><p>VITOR SILVA BRAGA</p><p>A particularidade do Direito Penal.</p><p>VITOR SILVA BRAGA</p><p>.</p><p>P rin c íp io d a L e g a lid a d e Penal</p><p>i</p><p>59</p><p>criar um novo tipo penal ou para agravar a punibilidade dos crimes já</p><p>previstos no</p><p>Requisitos da Ação Agressiva........................................................... 210</p><p>15.3. Legítima Defesa............................................................................................. 211</p><p>15.3.1. Repulsa a uma Agressão Injusta, Atual ou Iminente....................... 212</p><p>15.3.2. Uso Moderado dos Meios Necessários............................................. 214</p><p>15.3.3. Direito Próprio ou dc Outrem........................................................... 215</p><p>15.3.4. Animus Defendendi............................................................................ 216</p><p>15.3.5. Legítima Defesa x Legítima Defesa Putativa................................... 216</p><p>15.4. Estrito Cumprimento do Dever Legal........................................................... 217</p><p>15.5. Exercício Regular dc um Direito.................................................................. 218</p><p>15.6. Problemática do Consentimento do Ofendido............................................. 219</p><p>15.7. Excesso........................................................................................................... 220</p><p>Capítulo XVI - Culpabilidade..................................................................................... 223</p><p>16.1. Conceito c Fundamentos da Culpabilidade................................................... 223</p><p>16.2. Evolução do Conceito dc Culpabilidade....................................................... 226</p><p>16.2.1. A Culpabilidade no Direito Penal Romano...................................... 226</p><p>16.2.2. Teoria Psicológica da Culpabilidade................................................. 228</p><p>16.2.3. Teoria Psicológico-Normativa da Culpabilidade................................ 230</p><p>16.2.4. Teoria Normativa Pura da Culpabilidade.......................................... 232</p><p>Capítulo XVII - Potencial Consciência de Antijuridicidade................................... 235</p><p>17.1. Conceito dc Consciência dc Antijuridicidade............................................... 235</p><p>17.2. Classificação da Consciência da Antijuridicidade........................................ 237</p><p>17.2.1. Consciência da Antijuridicidade Formal........................................... 237</p><p>17.2.2. Consciência dc Antijuridicidade Material......................................... 238</p><p>17.2.2.1. Consciência dc Antijuridicidade como Consciência Ética... 238</p><p>17.2.2.2. Consciência dc Antijuridicidade como Agir Comunicativo.. 239</p><p>17.2.2.3. Consciência dc Antijuridicidade como Valoração Paralela</p><p>na Esfera do Profano.......................................................... 240</p><p>17.3. Colocação da Consciência da Antijuridicidade na Teoria do Delito........... 242</p><p>17.3.1. Teoria Estrita do Dolo.................................................................... 242</p><p>Procurar</p><p>ín d ice S is te m á tico | X II I</p><p>17.3.2. Teoria Limitada do Dolo................................................................... 243</p><p>17.3.3. Teoria Estrita da Culpabilidade......................................................... 244</p><p>17.3.4. Teoria Limitada da Culpabilidade..................................................... 245</p><p>Capítulo XVIII - Imputabilidade................................................................................ 247</p><p>18.1. Conceito dc Imputabilidade........................................................................... 247</p><p>18.2. Análise do Direito Brasileiro......................................................................... 248</p><p>18.3. Emoção c Paixão............................................................................................ 253</p><p>18.4. Embriaguez..................................................................................................... 253</p><p>Capitulo XIX - Exigibilidade de outra Conduta e sua Exclusão........................... 257</p><p>19.1. Conceito dc Exigibilidade dc outra Conduta................................................ 257</p><p>19.2. Inexigibilidade dc outra Conduta.................................................................. 258</p><p>19.2.1. Obediência Hierárquica..................................................................... 260</p><p>19.2.2. Coação Moral Irresistível.................................................................. 261</p><p>Capítulo XX - Erro....................................................................................................... 263</p><p>20.1. Conccituação dc Erro..................................................................................... 263</p><p>20.2. Espécies dc Erro segundo a Dogmática Penal............................................. 265</p><p>20.3. Erro dc Fato c Erro dc Direito...................................................................... 267</p><p>Capítulo XXI - Erro de Tipo e Erro de Proibição.................................................. 273</p><p>21.1. Conceito dc Erro dc Tipo.............................................................................. 273</p><p>21.2. Erro dc Tipo Essencial c Erro dc Tipo Acidental........................................ 274</p><p>21.3. Conceito dc Erro dc Proibição...................................................................... 275</p><p>21.3.1. Erro dc Proibição Direto................................................................... 280</p><p>21.3.2. Erro dc Proibição Indireto versus Dcscriminantcs Putativas Fáticas.. 281</p><p>21.3.3. Erro Mandamcntal............................................................................. 283</p><p>21.4. Escusabilidadc do Erro dc Proibição............................................................ 284</p><p>21.5. Incscusabilidadc do Erro dc Proibição.......................................................... 285</p><p>Capítulo XXII - Crime Consumado e Crime Tentado............................................ 287</p><p>22.1. Apresentação do Tema................................................................................... 287</p><p>22.2. Histórico da Tentativa.................................................................................... 288</p><p>22.3. Iter Criminis................................................................................................... 289</p><p>22.4. Requisitos da Tentativa.................................................................................. 293</p><p>22.5. Punibilidade da Tentativa............................................................................... 294</p><p>22.6. Desistência Voluntária c Arrependimento Eficaz.......................................... 296</p><p>22.7. Crime Impossível........................................................................................... 297</p><p>Capítulo XXIII - Concurso de Pessoas...................................................................... 301</p><p>23.1. Apresentação do Tema................................................................................... 301</p><p>23.2. Teorias sobre o Concurso dc Pessoas........................................................... 302</p><p>23.3. Requisitos do Concurso dc Pessoas.............................................................. 304</p><p>23.4. Espécies do Concurso dc Pessoas................................................................. 304</p><p>Procurar</p><p>X IV | Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>23.4.1. Autoria................................................................................................ 305</p><p>23.4.2. Participação........................................................................................ 307</p><p>23.5. Cooperação Dolosamcntc Distinta................................................................ 309</p><p>23.6. Formas Especiais dc Autoria......................................................................... 309</p><p>23.7. Comunicabilidadc das Circunstâncias........................................................... 310</p><p>T ÍT U L O II I - T E O R IA D A P E N A</p><p>Capítulo XXIV - Conceito e Fins da Pena................................................................ 315</p><p>24.1. Conceito dc Pena...........................................................................................</p><p>Ordenamento. Daí conclui-se que somente a lei pode de­</p><p>terminar o conteúdo da ação digna de uma pena e de sua consequência</p><p>jurídica;3 no silêncio da lei não é possível nenhum processo de integração</p><p>por parte do aplicador da norma para a ampliação do conteúdo da lei ou</p><p>da sua sanção.</p><p>Por exemplo, o art. 269 do Código Penal dispõe:</p><p>“Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação</p><p>é compulsória. Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.”</p><p>Sobre a aplicação da norma acima descrita, imaginemos uma situação</p><p>corriqueira no interior do Nordeste: em alguns povoados distantes dos</p><p>grandes centros urbanos é comum que, em virtude da falta de médicos, a</p><p>chefia do posto de saúde seja entregue às enfermeiras. Se uma enfermeira,</p><p>que seja responsável por um posto de saúde, deixa de denunciar às auto­</p><p>ridades públicas as doenças de notificação compulsória, há um perigo de</p><p>lesão ao bem jurídico saúde pública. Dito perigo é da mesma magnitude</p><p>que o resultante da conduta do médico que se abstém da mesma comuni­</p><p>cação; todavia, não se pode aplicar por analogia à conduta da enfermeira</p><p>o art. 269 do Código Penal em virtude do Princípio da Legalidade, que</p><p>exige a previsão legal - não a analógica - para a imposição de uma pena.</p><p>Como a lei exige que o crime em comento seja praticado por médico, é</p><p>impossível a extensão dessa incriminação por via analógica a quaisquer</p><p>outras pessoas, ainda que exista dano ou perigo de dano ao bem jurídico</p><p>tutelado. Sobre isso, trazemos à colação a lição de Enrique Cury: “Ao</p><p>juiz se veda impor uma pena a condutas distintas da descrita pelo tipo,</p><p>ainda que sejam muito semelhantes a ela e exista, em consequência, a</p><p>mesma razão para castigá-las.”4</p><p>3 É a lição dc Jcschcck: "La función de garantia de la ley penal en su faceta de prohibición</p><p>de analogia comprende todos los elementos que determinan su contcnido dc mcrccimicnto</p><p>dc pena y la consccucncia jurídica, es decir, los elementos dei tipo de injusto y de la</p><p>culpabilidad, las causas personales de exclusión y anulación de pena, las condiciones</p><p>objetivas de punibilidady todas Ias sanciones." JESCHECK, Hans-Hcinrich. Tratado de</p><p>Derecho Penal. Granada: Cornares, 1993. p. 121.</p><p>4 Rcflcxioncs sobre la Analogia cn Dcrccho Penal dcl Presente. Ciência PenaL São Paulo:</p><p>Convívio, Ano II, v. 4, p. 25, 1975. No mesmo sentido sc pronuncia Pagliaro: “II divieto</p><p>de analogia in malam partem fa sorgere, per il legislatore penale, la necessita di indi-</p><p>care col texto impiegato tutte, proprio tutte, le conduta che egli vuole incriminare. Se ne</p><p>dimentica qualcuna, non vi sara possibilità, per I 'interprete, di invocare cadcm ratio ed</p><p>Procurar</p><p>VITOR SILVA BRAGA</p><p>Explicação para impedimento do uso de analogias;</p><p>6 0 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>Entretanto, a proibição de analogia no Direito Penal não é absolu­</p><p>ta. O sentido do Princípio da Legalidade é proteger o homem frente à</p><p>possibilidade de inflição de uma pena, por isso se proíbe a analogia in</p><p>malam partem, isto é, que prejudica o sujeito, cerceando, fora dos limites</p><p>da lei, sua liberdade. A analogia in bonam partem, isto é, que beneficia</p><p>o sujeito, é permitida pelo Direito Penal, não se contrapondo aos fins</p><p>do multirreferido Princípio da Legalidade, porque não tolhe a liberdade</p><p>humana, mas contribui para estendê-la.* 3 * 5 Como bem explica Paulo José</p><p>da Costa Júnior: “Se, em nome das garantias individuais, para evitar o</p><p>arbítrio dos potentados, consagrou-se o nullum crimem, nulla poena sine</p><p>lege, nada impede que em benefício do cidadão e somente neste caso,</p><p>seja rompido o dique da reserva legal.”</p><p>Vejamos um exemplo da analogia em benefício da parte. Diz o art.</p><p>128, II, do Código Penal:</p><p>“Não se pune o aborto praticado por médico: (...)</p><p>II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento</p><p>da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”</p><p>O art. 128,1, descriminaiiza o abortamento consentido, que é oriundo</p><p>de uma gravidez resultante de um estupro. O estupro, descrito no art.</p><p>213 do Código Penal, pressupõe a introductio penis intra vas, isto é, a</p><p>introdução completa ou incompleta do pênis na vagina; se o ato libidinoso</p><p>não é dessa natureza, o crime será o do art. 214 - atentado violento ao</p><p>pudor. Dessarte, o coito vestibular (introdução peniana na região da vulva)</p><p>será tipificado não como estupro, mas como atentado violento ao pudor.</p><p>Como se sabe, a gravidez oriunda da cópula vestibular é, juridicamente,</p><p>resultante de atentado violento ao pudor. Ora, pela norma acima citada,</p><p>o aborto resultante do atentado violento ao pudor seria considerado cri­</p><p>ampliare la punibilità a casi símile". PAGLIARO, Antonio . Texto c Intcrprctazionc nel</p><p>Diritto Penale. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. Milão: GiufTrè, p. 437,</p><p>Apr.-Gui. 2000.</p><p>3 Neste sentido, Enrique Cury: "Desde que Feuerbach formulou o principio nulla poena</p><p>nullum crimen sine lege, la prohibición de interpretar analógicamente las disposiciones</p><p>punitivas es un lugar común. Por supuesto, existen cuestiones discutidas. Por ejemplo,</p><p>la posibilidad de hacer analogia en favor dei reo. Pcro quienes accptamos la alternativa</p><p>pensamos que no cs una cxcpción a la regia, sino consccucncia dc sus fundamentos: lo</p><p>que no se permite porque ponc en peligro la libertad dc los ciudadanos, se autoriza cuando</p><p>contribuyc a cxtcndcrla." Rcflcxioncs sobre la Analogia en Dcrccho Penal dcl Presente.</p><p>Ciência Penal. p. 24 (grifo nosso).</p><p>Procurar</p><p>VITOR SILVA BRAGA</p><p>A analogia é cabível nas ocasiões em que amplia o âmbito de liberdade.</p><p>P rin c íp io d a L e g a lid a d e Penal 1 61</p><p>minoso, visto que a lei somente descriminaiiza o resultante de estupro.</p><p>Contudo, nesse caso concreto, há o entendimento majoritário de que se</p><p>aplica a analogia in bonam partem para descriminalizar também o aborto</p><p>resultante do atentado violento ao pudor.</p><p>Devemos alfim esclarecer que analogia não é sinônimo de inter­</p><p>pretação analógica. Na analogia se integra, por um processo lógico de</p><p>comparação, uma lacuna da norma, através da qual se regula um caso</p><p>por uma norma semelhante. Na interpretação analógica, por sua vez, o</p><p>intérprete não se afasta do teor da norma, mas, ao contrário, debruça-se</p><p>sobre o sentido literal possível da regra jurídica. Sobre a matéria é irre-</p><p>prochável a lição de Gimbemat Ordeig:</p><p>“É perfeitamente possível distinguir a aplicação analógica e analogia. E a</p><p>delimitação entre ambas se efetua, efetivamente, sobre a base do ‘sentido</p><p>literal possível’. Na interpretação analógica se trata de determinar que é o que</p><p>disse o Direito penal sobre uma questão duvidosa acudindo a comparação</p><p>com outras figuras delitivas ou instituições penais similares. A interpretação</p><p>analógica pode chegar a estender (...) ou a restringir (...) o comportamento</p><p>punível. Mas tanto se restringe como se estende se mantendo dentro do</p><p>‘sentido literal possível’. Por isso esse tipo de interpretação não viola o</p><p>principio da legalidade.”6</p><p>4 .3 . E X IG Ê N C IA D E LEI C ER TA ( N U L L U M C R IM E N , N U L L A P O E N A</p><p>S IN E L E G E C E R T A )</p><p>Para que o Princípio da Legalidade não fique com seu conteúdo</p><p>esvaziado, é necessário que o legislador se atenha à obrigação de definir</p><p>com clareza e individualizar a conduta delituosa, além de cominar a pena.</p><p>De nada adiantaria que houvesse a exigência formal da lei, sem também</p><p>se exigir uma definição precisa do preceito e da sanção, contidos na lei</p><p>penal. Uma lei penal sem precisão não seria hábil para cumprir a função</p><p>6 GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. Concepto y Método de la Ciência dei Derecho Pe­</p><p>nal. Madrid: Tccnos, 1999. p. 64. No mesmo sentido, vcja-sc a lição dc Pagliaro: “Aia</p><p>si tratta pur sempre di casi che rimangono entro 1'insieme delineato dalla proposizione</p><p>linguística contenuta nella legge. Per questo significato dei termini ivi imppeigati e dei</p><p>propoizione nel suo complesso constituisce el limite estremo delia interpretazione anche</p><p>estensiva.</p><p>II momento teleologico delia interpretazione incontra tale limite logico. Nel caso</p><p>deli'analogia, tale limite viene super&lo". PAGLIARO, Antonio. Testo c Interpretazione</p><p>dcl Diritto Penale. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. Milão: Giuffrè, A.</p><p>XLIII, p. 441, Apr.-Gui. 2000.</p><p>Procurar</p><p>VITOR SILVA BRAGA</p><p>O caso deve se adequar à lei.</p><p>6 2 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>do Princípio da Legalidade, que é a limitação do jus puniendi estatal;</p><p>isto posto, não estaria o homem livre da utilização arbitrária do Direito</p><p>Penal pelos detentores do poder político.7 8 A própria história nos mostra</p><p>a realidade: se tomarmos como exemplo o Direito Penal da Alemanha</p><p>hitlerista, veremos que a norma dispunha que poderíam ser declaradas</p><p>criminosas as ações contra o sadio sentimento popular. Ora, ocorre que</p><p>a norma não estabelecia quais ações eram contrárias ao sadio sentimen­</p><p>to popular. Isto posto, não se pode afirmar que a potestade punitiva da</p><p>Alemanha de Hitler estava delimitada em virtude da presença de uma lei</p><p>incriminatória, posto que a norma em comento não tinha a determinação</p><p>de seu conteúdo.</p><p>A lei penal, assim como qualquer outra, é compreendida, pelo seu</p><p>destinatário, pela linguagem, todavia, há uma tendência do legislador</p><p>moderno em se expressar com signos pouco claros e até mesmo am­</p><p>bíguos.® Se em alguns ramos do Direito, que precisam de uma carac­</p><p>terística de mobilidade - como, por exemplo, no Direito Econômico</p><p>- isso pode ser considerado um indício de modernidade, em outros</p><p>- é o caso do Direito Penal - a falta de clareza na formulação da lei</p><p>significa uma afronta aos cidadãos, que ficam sujeitos à instabilidade</p><p>e à insegurança.</p><p>O Princípio da Legalidade impõe uma exigência ao legislador quan­</p><p>to à linguagem utilizada na formulação da norma penal: a norma deve</p><p>usar signos linguísticos claros, que possibilitem uma individualização</p><p>do modelo abstrato da conduta incriminada. Dessarte, enfatize-se, a lei</p><p>penal deverá apresentar os elementos necessários para a individualização</p><p>da conduta incriminada, caso contrário, será impossível a sua aplicação,</p><p>por afronta ao Princípio da Legalidade.</p><p>7 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte GeneraL Madrid: Civitas, 1997. p. 169.</p><p>8 Neste sentido, vcja-sc o que leciona Wíníricld Hasscmcr: "La tendencia dei legislador</p><p>moderno a expresarse más bien de forma poco clara, y a cargar el peso de la decisiõn</p><p>cada vez más en ombros ajenos, tiene diferente intensidad segtin las ramas dei derecho, y</p><p>tambiên diferentes consecuencias. Hay ramas dei derecho que, por asi decirlo, se encuen-</p><p>tran en movimiento por su propia naturaleza (como, por ejemplo, el derecho econômico</p><p>o impositivo), mientras que hay otras ramas que se apoyan más bien en regulaciones</p><p>en cierto modo eternas (como, por ejemplo, el derecho de familia o el derecho penal).</p><p>Los âmbitos 'móviles' toleran mejor que los ‘eternos ’ un derecho judicial flexible. En</p><p>estos últimos, las modificaciones normativas o supresivas, frecuentes y no espetaculares</p><p>trasmiten la sensación de ineslabilidad e irritaciòn, mientras que en los otros pueden</p><p>ser un indicio de presencia y modemidad." Critica al derecho penal de hoy. Bogotá:</p><p>Univcrsidad Externato dc Colombia, 1998. p. 18.</p><p>Procurar</p><p>VITOR SILVA BRAGA</p><p>Como a ausência de uma lei certa (específica) transforma o direito penal em instrumento de arbítrio dos detentores do poder.</p><p>VITOR SILVA BRAGA</p><p>.</p><p>P rin c íp io d a L e g a lid a d e Penal</p><p>i</p><p>6 3</p><p>A preocupação com a clareza na formulação das leis penais é pre­</p><p>sente em todos os ordenamentos que se baseiam no Princípio da Legali­</p><p>dade. O ordenamento português, por exemplo, declara essa preocupação</p><p>expressamente, através da Lei n. 35/94, que em seu art. 2°, j, autorizou</p><p>a revisão no Código Penal com o objetivo de: “Reduzir ao máximo o</p><p>recurso aos conceitos indeterminados ou às cláusulas gerais, em certos</p><p>tipos de crimes, designadamente os crimes contra o patrimônio, assim se</p><p>procurando consagrar critérios de maior certeza na aplicação das penas</p><p>e evitar indesejáveis divergências jurisprudenciais.”</p><p>Se analisarmos o ordenamento penal brasileiro, verificaremos que</p><p>ele apresenta normas incompatíveis com o Princípio da Legalidade, por</p><p>inexistência de lei certa. É o caso, v.g., do art. 69 da Lei n. 8.078/90,</p><p>que estabelece a seguinte incriminação:</p><p>“Deixar de organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dão base à</p><p>publicidade. Pena - detenção de 1 (um) a 6 (seis) meses ou multa.”</p><p>Dita norma prima pela imprecisão. O legislador incrimina, em tese,</p><p>uma omissão de organização de dados; porém, não determina de que</p><p>forma esses dados deveríam ser organizados, deixando ininteligível qual</p><p>é a conduta punida pelo tipo; ademais, o legislador não precisa quais são</p><p>os dados fáticos, técnicos e científicos que dão base à publicidade. Isto</p><p>posto, essa norma fere uma exigência do Princípio da Legalidade.</p><p>De outro lado podemos observar que já figurou no Ordenamento</p><p>Jurídico brasileiro uma lei que estabelecia crimes, mas não estabelecia</p><p>penas.</p><p>É o caso da Lei n. 8.212/91. No seu art. 95, a norma em comento</p><p>afirmava literalmente: “Constitui crime”. Dita regra estabelecia dez condu­</p><p>tas criminosas, mas somente atribuía pena para três dessas condutas. É de</p><p>causar espécie a falta de técnica do legislador, que inseriu formalmente no</p><p>Ordenamento Jurídico pátrio crimes sem a devida cominação das penas.</p><p>Deve-se salientar que hodiemamente esta norma já está revogada, não</p><p>fazendo mais parte do nosso sistema jurídico.</p><p>Para concluirmos esse tópico, trazemos à colação a lição de Roxin,</p><p>para quem a falta de lei certa, além de não proteger o cidadão do arbítrio</p><p>estatal, viola a separação de poderes. É que se a norma apresenta uma</p><p>excessiva vaguidade, o julgador estará criando, quando da aplicação da</p><p>norma, a determinação da conduta incriminada. Com efeito, se pela falta</p><p>de determinação se permite ao juiz qualquer interpretação, permite-se a</p><p>Procurar</p><p>VITOR SILVA BRAGA</p><p>O direito penal, diante de uma eventual vagueza da norma, dá espaço para violação da separação de poderes, pois o julgador passaria a decidir quais as condutas incrimináveis ou as penas imputáveis.</p><p>6 4 i Curso d e D ire ito Penai - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>ele invadir o terreno legislativo. Ademais, ainda alerta o mestre alemão,</p><p>se não existe determinação da conduta incriminada, não se podería falar</p><p>em eficácia de prevenção geral, visto que o indivíduo não pode conhecer</p><p>o que se quer proibir.9</p><p>4 .4 . E X IG Ê N C IA D E LEI ESC R ITA ( N U L L U M C R IM E N , N U L L A P O E N A</p><p>S IN E L E G E S C R IP T A )</p><p>O costume é uma norma jurídica que brota espontaneamente, sendo</p><p>o resultado da realização de uma sucessão reiterada de atos aliada a um</p><p>aspecto subjetivo: a convicção da obrigatoriedade desse procedimento.</p><p>Em muitos ramos do Direito o costume é fundamental para a solução</p><p>de lides: no Direito Comercial, por exemplo, o velho Código do século</p><p>XIX (1850) ainda está em vigor em virtude de esse ramo do Ordenamento</p><p>Jurídico ser eminentemente costumeiro. De outro lado, o Direito Civil,</p><p>através da Lei de Introdução ao Código Civil, estabelece que o costume</p><p>é uma das formas de resolução de casos à qual o intérprete deve se re­</p><p>meter no silêncio da lei.</p><p>Quando projetamos a nossa reflexão no Direito Penal, entretan­</p><p>to, vemos que este ramo do Direito trata o costume de uma forma</p><p>diversa.</p><p>O costume não pode ser utilizado para a incriminação de condutas</p><p>nem para a inflição das penas, porque isso acarretaria uma violação à</p><p>segurança do Ordenamento Punitivo, que exige para a caracterização do</p><p>preceito penal ou da sanção a formalização legal da conduta e de sua</p><p>consequência, por isso se pode afirmar que a reserva legal no Direito</p><p>Penal é mais observada que em qualquer outro ramo do Ordenamento</p><p>Jurídico. No dizer de Jescheck, a proibição do Direito Consuetudinário</p><p>em matéria penal é a primeira consequência do Princípio da Legalidade:</p><p>“O Princípio da Legalidade implica primeiro termo a exclusão do Direito</p><p>consuetudinário. Isso significa que por essa via não se pode criar nenhum</p><p>novo tipo penal nem nenhuma agravação punitiva (nullum crimen nulla</p><p>poena sine lege scripta)."</p><p>Na verdade, nada autoriza afirmar, como pretende Jescheck, que o</p><p>Direito Consuetudinário tem primazia sobre as outras consequências do</p><p>Princípio da Legalidade, como a proibição da analogia, exigência de lei</p><p>certa etc. Mas é inegável que a formalização legal da norma penal é uma</p><p>9 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Madrid: Civitas, 1997. p. 169.</p><p>Procurar</p><p>VITOR SILVA BRAGA</p><p>As leis estarem escritas buscam promover a segurança jurídica do Ordenamento.</p><p>P rin c íp io d a L e g a lid a d e Penal 65</p><p>consequência indelével, que se traduz em uma alta garantia do cidadão</p><p>frente ao jus puniendi estatal.</p><p>O Direito Consuetudinário, destarte, não pode ser invocado quando</p><p>houver prejuízo para o sujeito. Todavia, a norma costumeira pode ser</p><p>invocada para beneficiar o réu, isto é, in bonam partem. Como sabido, o</p><p>costume é uma norma que brota da sucessão reiterada de atos, que são</p><p>tidos como obrigatórios e, portanto, são tidos como jurídicos, e não anti-</p><p>jurídicos. Na norma costumeira não existe nenhuma reprovação social, ao</p><p>contrário, a norma costumeira é socialmente tida como lícita. Isto posto,</p><p>o costume pode evitar a tipicidade de uma conduta, pelo consenso social,</p><p>o qual considera determinada conduta como socialmente adequada.</p><p>Um exemplo de um costume com força derrogatória pode ser vis­</p><p>lumbrado através do tipo do art. 132 do Código Penal, que estabelece:</p><p>“Art. 132. Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:</p><p>Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, se o fato não constitui</p><p>crime mais grave.”</p><p>Ora, imaginemos a seguinte conduta: Em um circo, um homem com</p><p>olhos vendados atira facas em direção a uma mulher, a qual se encontra</p><p>numa roda em movimento. Esse fato por si só, em tese, expõe a saúde e</p><p>mesmo a vida de outrem a perigo direto e iminente, pois existe a possi­</p><p>bilidade concreta de dano ao bem jurídico tutelado, em outras palavras,</p><p>o perigo apresenta-se como uma realidade concreta. De outro lado, existe</p><p>também a vontade livre e consciente de praticar o ato hábil a expor a</p><p>saúde ou a vida de outrem a perigo, isto é, existe o dolo genérico. O</p><p>tipo do art. 132 do Código Penal, pois, restaria configurado tanto obje­</p><p>tivamente como subjetivamente. Todavia, o costume exclui a reprovação</p><p>social da conduta, que é considerada pelo consenso das pessoas como</p><p>lícita, possuindo força derrogatória.</p><p>Um outro exemplo de aplicação do costume com força derrogatória</p><p>é extraído do art. 229 do Código Penal, que dispõe:</p><p>“Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar</p><p>destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, o intuito de lucro</p><p>ou mediação direta de proprietário ou gerente: Pena - reclusão, de 2 (dois)</p><p>a 5 (cinco) anos, e multa.”</p><p>À luz do tipo em análise, os estabelecimentos de hospedagem deno­</p><p>minados motéis se amoldam ao conceito típico da casa de prostituição.</p><p>Procurar</p><p>VITOR SILVA BRAGA</p><p>O Direito Penal sempre optará pelo caminho que prima pelo aumento do âmbito da liberdade.</p><p>66 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>É fato notório que ditos estabelecimentos existem para propiciar encon­</p><p>tros com fins sexuais, existindo, ainda, o intuito de lucro e a mediação</p><p>de gerente, proprietário ou terceira pessoa. Em tese, portanto, o tipo do</p><p>crime de casa de prostituição se realiza com a manutenção dos ditos</p><p>motéis. Por conta dessa adequação formal ao tipo, em 16 de setembro</p><p>de 1969, em acórdão relatado pelo Ministro Raphael de Barros Monteiro</p><p>(RT 423/475), o Supremo Tribunal Federal reconheceu, nesta hipótese, a</p><p>perfeição típica. Interessante trazer à colação o voto do relator: “Tenho,</p><p>nesta Turma, seguidamente votado no sentido de que, em se tratando de</p><p>hotel devidamente licenciado e que paga impostos, não pode caracterizar</p><p>o delito do art. 229 do CP o oferecimento de hospedagem a casais. Não é</p><p>esse, entretanto, o caso dos autos, no qual, como consta na sentença, entre</p><p>os anos de 1963 e 1965, somente na 15a Vara Criminal da Guanabara,</p><p>foram processadas 4 ações penais, referentes ao mesmo estabelecimento</p><p>- (...) e relativos ao mesmo delito. Aparece, pois, aqui o elemento da</p><p>habitualidade, com o intuito de lucro, a transformar o hotel em verdadeira</p><p>casa de exploração de lenocínio.”10 11</p><p>Se, na década de 60 do século XX, o motel era um estabelecimento</p><p>reprovado pela cultura e pelo costume, atualmente não o é. A manu­</p><p>tenção de motéis, ao contrário, é vista pelo consenso social como algo</p><p>positivo, já que as relações sexuais no século XXI são praticadas com</p><p>uma abertura que não era conhecida há tempos. Isto posto, o costume</p><p>exclui a reprovação social da conduta em análise. Desta feita, existem,</p><p>no panorama jurisprudencial, sucessivas decisões absolutórias, não con­</p><p>siderando o motel como um elemento previsto no art. 229. É relevante</p><p>ressaltar, aqui, um trecho do conteúdo do decisum absolutório do Tribunal</p><p>de Justiça de São Paulo (AC n. 98.873, rei. des. Luiz Betanho), referente</p><p>ao caso do multirreferido motel: “Quando se trata não de um erro, mas</p><p>de ilícito repetido, numeroso e comum, é necessário reavaliar até que</p><p>ponto a moralidade média da sociedade (enfoque fundamental nos crimes</p><p>contra o costume) realmente considera criminosa a conduta, a fim de se</p><p>alargar ou reprimir o âmbito de interpretação. Não se pode, em outras</p><p>palavras, desconhecer a dramática alteração de costumes por que</p><p>tem passado nosso país, desde que entrou em vigor o Código Penal,</p><p>há cinqüenta anos.” 11</p><p>10 Revista dos Tribunais. A 60. v. 423, p. 475, Janeiro dc 1971.</p><p>11 FRANCO, Alberto Silva, el al. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. São</p><p>Paulo: RT, 1993. p. 2.595.</p><p>Procurar</p><p>P rin c íp io d a L e g a lid a d e Penal 1 6 7</p><p>No caso dos motéis, portanto, resta provado que a norma consuetu-</p><p>dinária derroga a aplicação do tipo penal capitulado no art. 229 do Có­</p><p>digo Penal. O costume, pois, tem relevância penal quando for in bonam</p><p>partem, pois está de acordo com o Princípio da Legalidade. O Direito</p><p>Penal não pode punir condutas que a norma costumeira, que brota da</p><p>própria sociedade, considera como lícita e socialmente adequada. A lei</p><p>penal, com efeito, tem sempre a função maior de ser pró-liberdade, ao</p><p>invés de ser pró-punição.</p><p>Para concluir o nullum crimen nulla poena sine lege scripta, tra­</p><p>zemos à colação o irreprochável ensinamento de Maurach: “A eficácia</p><p>derrogatória do direito consuetudinário (desuetudo) constitui na vida ju ­</p><p>rídica um meio imprescindível para a exclusão de ameaças de pena que</p><p>chegaram a ser obsoletas e que o legislador não derrogou formalmente</p><p>por imprudência ou por impossibilidade de sua superação”.12</p><p>4 .5 . E X IG Ê N C IA D E LEI P R É V IA {N U L L U M C R IM E N , N U L L A P O E N A</p><p>S IN E L E G E P R A E V IA )</p><p>Por fim, é exigência do Princípio da Legalidade a irretroatividade</p><p>da lei penal que de qualquer forma prejudique o réu, assunto que é ora</p><p>apresentado e que será retomado no estudo da lei penal no tempo. Se as</p><p>normas penais incriminatórias pudessem retroagir, o princípio em comen­</p><p>to não atingiría a sua finalidade de garantir o homem em face do poder</p><p>penal do Estado. Corroborando essa necessidade, Hassemer já afirmou</p><p>categoricamente que “o legislador e o juiz penal não podem aplicar leis</p><p>de forma retroativa em prejuízo do afetado (proibição de retroatividade:</p><p>lex praevia)”.13 Parafraseando Roxin, podemos afirmar que a proibição</p><p>de retroatividade goza de uma atualidade permanente, porque evita que</p><p>o criador da norma legal possa cair na tentação de introduzir punições</p><p>ou agravar a posteriori, o que podería ser frequente em vista de estados</p><p>de alarme social ou de excitação política.14</p><p>Todavia - não é desnecessário mencionar! - o Princípio da Legali­</p><p>dade não</p><p>obsta a retroatividade da lei que de qualquer modo beneficie o</p><p>agente. Esse postulado do Princípio da Legalidade, inclusive, foi inserido</p><p>12 MAURACH, Rcinhat; ZIPF, Heinz. Derecho Penal. Parte General. Buenos Aires: Astrca,</p><p>1994. p. 139.</p><p>13 HASSEMER, NVinfricld . Crítica al Derecho Penal de Hoy. Op. cit. p. 21.</p><p>14 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Madrid: Civitas, 1997. p. 161.</p><p>Procurar</p><p>VITOR SILVA BRAGA</p><p>Irretroatividade</p><p>VITOR SILVA BRAGA</p><p>.</p><p>68 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>expressamente no Código Penal, conforme se vê através da norma do</p><p>seu artigo 2°, in verbis:</p><p>“Art. 2o Ninguém pode ser punido por fato que a lei posterior deixa de</p><p>considerar crime, cessando em virtude dela todos os efeitos penais da</p><p>sentença condenatória.</p><p>Parágrafo único. A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente,</p><p>aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória</p><p>transitada em julgado.”</p><p>A respeito da retroatividade da lei em benefício do réu, pronuncia-</p><p>-se Paulo de Souza Queiroz: “Excepcionalmente, porém, a norma operará</p><p>retroativamente, alcançando, por conseguinte, situações anteriores à sua</p><p>entrada em vigor, sempre que for mais benéfica para o infrator, ou por­</p><p>que lhe é mais branda (lex mitior) ou porque descriminaliza a conduta</p><p>(aboliíio criminis).”'5</p><p>A impossibilidade de aplicação da analogia em prejuízo do réu, a</p><p>impossibilidade de retroatividade da lei penal para prejudicar o réu e</p><p>a impossibilidade de edição de leis penais indeterminadas constituem</p><p>um eficaz instrumento de segurança jurídica aos destinatários das leis</p><p>penais, porque limitam a atividade penal, tanto do julgador quanto do</p><p>legislador.15 16</p><p>15 SOUZA QUEIROZ, Paulo dc . Direito Penal. Introdução Crítica. São Paulo: Saraiva,</p><p>2001. p. 24.</p><p>16 No caso brasileiro, ainda é relevante mencionar que o Princípio da Legalidade impede</p><p>a edição dc normas penais através das medidas provisórias, porque se exige para essas</p><p>normas uma lei cm sentido formal. Ademais, conforme alerta Luiz Flávio Gomes, “a</p><p>norma penal, pela transcendência dc seu conteúdo, pela repercussão dc seus mandamentos</p><p>c proibições, pela extensão dc seus efeitos, pelas conscqüências nefastas que produz na</p><p>liberdade humana, jamais pode ser provisória. Nada dc provisório pode haver numa norma</p><p>penal”. GOMES, Luiz Flávio. Princípio da legalidade penal e suas garantias mínimas:</p><p>da inconciabilidadc da lex populi c as medidas provisórias. A Sociedade, a Violência e</p><p>o Direito Penal. FAYET JR., Ncy; CORRÊA, Simonc (orgs.). Porto Alegre: Livraria do</p><p>Advogado, 2000. p. 179.</p><p>Procurar</p><p>VITOR SILVA BRAGA</p><p>A retroatividade da lei penal para os casos em que beneficia o réu.</p><p>5</p><p>LEI P E N A L N O T E M P O</p><p>5 .1 . O B JE T O D O E S T U D O</p><p>A lei é um ato de vontade do legislador, e como tal não possui</p><p>eficácia universal e permanente, mas uma eficácia circunscrita à vontade</p><p>que a anima.1 Deste modo, a “vida” da lei penal é limitada no tempo:</p><p>seu nascimento se dá com a promulgação e publicação, e sua morte se</p><p>dá com a revogação, por uma lei posterior que expressamente cesse a</p><p>validez temporal da primeira ou por uma lei posterior que tacitamente</p><p>a faça. Chama-se ab-rogação a revogação completa da lei, e chama-se</p><p>derrogação a revogação que se circunscreve à parte da lei.1 2</p><p>Porque a lei penal é limitada no tempo, é possível haver a edição</p><p>de leis penais novas, que são susceptíveis de regular o mesmo fato de</p><p>forma diversa, quer de forma mais rigorosa, quer mais branda. Consoante</p><p>a lição de Antolisei, quando uma norma se extingue e é substituída por</p><p>outra há a presença da denominada sucessão de leis penais.3</p><p>Se uma lei posterior reger de forma mais rigorosa o delito, ela não</p><p>será aplicada para regular os fatos anteriores à sua vigência. Como sa­</p><p>1 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. La ley y el delito. Caracas: Andrès Bcllo, 1945. p. 178.</p><p>: HUNGRIA, Núlson. Comentários ao Código Penal. Rio dc Janeiro: Forense, 1958. v.</p><p>I, t. I, p. 105.</p><p>3 ANTOLISEI, Franccsco. Manuale di Diritto Penale. Milano: GiufTrc, 1997. p. 102.</p><p>No mesmo sentido, embora especificando mais o tema, Taipa dc Carvalho, verbis: “O</p><p>problema do conflito temporal dc leis penais pressupõe, obviamente, uma sucessão dc</p><p>leis penais, isto é, uma alteração lcgislativo-pcnal.” Sucessão de Leis Penais. Coimbra:</p><p>Coimbra Editora, 1997. p. 109.</p><p>Procurar</p><p>7 0 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>bido, toda incriminação de conduta sob a ameaça de uma pena depende</p><p>de uma previsão legal, que seja prévia ao fato, o que se dá por força do</p><p>Princípio da Legalidade, que tem sede constitucional (art. 5o, XXXIX, da</p><p>CF).4 Por conseguinte, antes de uma incriminação legal, o fato deve ser</p><p>considerado penalmente lícito,5 e o que é lícito não pode ser apenado.</p><p>Assim como é proibido à lei nova incriminar uma conduta que até então</p><p>não era proibida pelo Direito Penal, também não é permitida a retroativi­</p><p>dade para aumentar a pena de algum delito já existente no ordenamento,6</p><p>nem para prejudicar de qualquer forma o réu. Como diz Jescheck: “A</p><p>irretroatividade das leis penais significa que uma ação que era impune</p><p>no momento de sua realização não pode ser considerada depois como</p><p>punível e que, da mesma forma, está proibida uma agravação da pena já</p><p>existente, que se opere pelo mesmo modo.”7</p><p>Todavia, a lei penal que de algum modo beneficia o agente tem</p><p>eficácia retroativa. A exposição de motivos da Parte Geral do Código</p><p>Penal é elucidativa sobre o assunto ao dispor que: “Na aplicação da lei</p><p>penal no tempo, o Projeto permanece fiel ao critério da lei mais benigna.</p><p>(...) Resguarda-se, assim, a aplicação da Lex mitior de qualquer caráter</p><p>restritivo, no tocante ao crime e à pena.”</p><p>Com relação à sucessão de várias leis penais, a tradição jurídica</p><p>brasileira, desde a década de 40 do século XX, aponta que prevalece a</p><p>lei mais benigna, “pois é evidente que, aplicando-se ao fato lei posterior</p><p>4 Palazzo consigna que a irretroatividade da lei penal c o núcleo mais estável nas cnunciaçõcs</p><p>constitucionais do Princípio da Legalidade. In verbis: “non c e dubbio che l 'irretroatività</p><p>constituisce delia lagalità il núcleo storicamente piü risalente e stabile, come è dimonstato</p><p>dal fatio che ancora oggi lê enunciazione constituzionale dalla legalità penale sono tutti</p><p>immancabilmente incentrate proprio sul diveto di applicazione si pone delia legge pena­</p><p>le incriminatrice." PALAZZO, Franccsco. Introduzione ai Principi di Diritto Penale.</p><p>Torino: Giappichclli, 1999. p. 286.</p><p>5 ANTOLISEI, Franccsco. Manuale di Diritto Penale. Milano: GiuíTrc, 1997. p. 102,</p><p>104.</p><p>6 Com muita lucidez, desde o scc. XIX Tobias Barreto aponta que essa proibição também</p><p>decorre do Principio da Legalidade: “Que as penas mais graves da lei nova não devam</p><p>ser impostas por crimes cometidos no vigor da lei antiga, que, aliás cominava com a</p><p>punição menor, ó ainda uma verdade contida no princípio nulla poena sine lege poenali</p><p>BARRETO, Tobias. Comentário Teórico c Critico ao Código Penal Brasileiro. Estudos</p><p>de Direito II. Rio dc Janeiro: Rccord, 1991. p. 171.</p><p>7 Tradução livre dc: "Das Verbot der Rückwirkung von Strafgesetzen bedeutet, dafi eine</p><p>Handlung, die im Zeitpunkt ihrer Begehung slraffrei ivar, nicht nachtràglich Jiir strafbar</p><p>erklãrt werden darf und dafi auch eine nachtràglich Strafchãrfung ausgescholssein ist".</p><p>JESCHECK, Hans-Hcinrich. Lerhbuch des Strafrechts. Bcrlin: Dunckcr u. Humblot,</p><p>1988. p. 123.</p><p>Procurar</p><p>Lei Penal n o Te m p o</p><p>X</p><p>71</p><p>somente quando favorece ao agente, em caso algum poderá se cogitar na</p><p>aplicação de lei sucessiva mais rigorosa”.8</p><p>Quando se trata, portanto, da lei penal no tempo, em verdade se</p><p>regula a aplicação da lei mais favorável ao agente. Os institutos que são</p><p>analisados no estudo temporal da lei penal são os seguintes: Abolitio</p><p>Criminis, Lex Mitior, Lex Tertia, Ultra-Atividade da Lei Penal e Tempo</p><p>do Crime.</p><p>5 .2 . A B O L IÇ Ã O D O C R IM E ( A B O L IT IO C R IM IN IS )</p><p>O Código Penal brasileiro regula a lei penal no tempo a partir da</p><p>hipótese da abolição do crime (abolitio criminis). Estabelece o artigo 2o</p><p>do Código Penal que:</p><p>“Art. 2o Ninguém pode ser punido por fato que a lei posterior deixa de</p><p>considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais</p><p>da sentença condenatória.”</p><p>Por óbvio, as leis não são imutáveis. Ao contrário, por ser o Direito</p><p>uma ciência cultural, e por ser da essência da cultura a mudança de va­</p><p>lores de acordo com a vivência na sociedade, todas as normas jurídicas</p><p>são susceptíveis de mudanças. É em face dessa dita mudança que integra</p><p>a Teoria Geral do Direito o assunto referente à revogação das normas</p><p>jurídicas. É certo que o Direito Penal não escapa à Teoria Geral do Di­</p><p>reito, já que suas normas também podem ser revogadas e o instituto da</p><p>dogmática penal que trata da revogação por ab-rogação da norma penal</p><p>é chamado de abolitio criminis. Cuida, esse instituto, da revogação de</p><p>uma incriminação penal por uma lei posterior que não mais considere</p><p>o fato como criminoso, o que traz como consequência a cessação de</p><p>todos os efeitos penais decorrentes do fato revogado, extinguindo-se a</p><p>punibilidade. Nesse exato sentido, expressa-se Pallazo: “Portanto, quando</p><p>sobrevêm a ab-rogação de uma norma incriminadora precedente sob a</p><p>vigência da qual foi cometido o fato, o seu autor não poderá mais ser</p><p>condenado e, se interviesse a condenação, aqui se conclui a execução e</p><p>todos os efeitos penais.”9</p><p>8 Exposição dc motivos do Código Penal dc 1940. Dccrcto-Lci n. 2.848/40. Item n. 7.</p><p>9 Tradução livre dc: "pertanto, qualora soppawenga l 'ab-rogazione di uma precedente nor­</p><p>ma incriminatrice sotto la cui vigenza è stato commesso il falto, il suo autore non potrà</p><p>Procurar</p><p>7 2 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>O Direito Penal brasileiro tem alguns exemplos recentes da abolitio</p><p>criminis. A parte especial do Código Penal em vigor, que data de 1940,</p><p>trazia na sua redação original os crimes de Adultério (art. 240. Cometer</p><p>adultério: Pena - detenção, de quinze dias a seis meses) e de Sedução (art.</p><p>217. Seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze,</p><p>e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou</p><p>justificável confiança: Pena - reclusão de dois a quatro anos).</p><p>Ora, como foi dito, o Direito é uma ciência cultural, e a cultura é</p><p>dinâmica. Se na década de 40 do século passado a sexualidade era cultu­</p><p>ralmente contida e reprimida, nos dias atuais esse panorama sofreu uma</p><p>drástica modificação, e o Direito Penal acompanhou dita modificação.</p><p>O Código Penal em sua redação original incriminava o adultério,</p><p>que era o sexo com um parceiro diverso do cônjuge, considerando que</p><p>entre os deveres do casamento está o de fidelidade recíproca, no sentido</p><p>de não manter relações sexuais fora da união nupcial. Todavia, em 28 de</p><p>março de 2005, a Lei n. 11.106 revogou o delito de adultério, concreti­</p><p>zando a abolitio criminis. Com isso, a partir da revogação do adultério,</p><p>cessaram-se todos os efeitos penais daqueles que estavam condenados por</p><p>aquele crime. Isso significa que, se alguém estava cumprindo uma pena,</p><p>ela imediatamente se extingue; se alguém era réu em processo criminal</p><p>de adultério, não há mais justa causa para o processo; se alguém era</p><p>considerado reincidente por ter cometido crime de adultério, não mais o</p><p>é. Com a abolitio criminis cessam todos os efeitos penais da condena­</p><p>ção, além de extinguir-se a punibilidade (art. 107 do Código Penal), não</p><p>subsistindo nenhum efeito penal decorrente daquele fato.</p><p>O outro exemplo trazido à baila é o do delito de Sedução. Esse</p><p>delito tinha como sujeito passivo a mulher virgem, maior de 14 e menor</p><p>de 18 anos. É indubitável a mudança no papel da mulher na sociedade.</p><p>Quando o Código Penal entrou em vigor na década de 40, as mulheres</p><p>tinham conquistado havia pouco tempo o direito ao voto, mas as casadas</p><p>eram consideradas relativamente incapazes perante o Direito. Ressalte-se</p><p>que somente com o Estatuto da Mulher Casada, uma lei da década de 60</p><p>do século XX, a referida mulher casada passou a ser, perante o Direito,</p><p>um sujeito plenamente capaz. É nesse panorama que foi incriminada a</p><p>Sedução, onde a mulher virgem consentia com a relação sexual em face</p><p>de sua inexperiência (em assuntos de ordem sexual) ou em face de de­</p><p>piü essere condannato e, se fosse già intervenuta la condanna, ne cessano l 'esecuzione e</p><p>tutli gli ejfetipenale.” PALAZZO, Franccsco. Introduzione ai Principi di Diritto Penale.</p><p>Torino: Giappichclli, 1999. p. 295.</p><p>Procurar</p><p>Lei Penal n o T e m p o</p><p>i</p><p>7 3</p><p>positar confiança no homem. Neste segundo caso, a doutrina traz como</p><p>exemplo o aceite da relação sexual por conta da promessa de casamento.</p><p>Todavia, é certo que o papel da mulher mudou com a evolução da cultura,</p><p>pois a autonomia sexual feminina dos dias atuais não se coadunava mais</p><p>com aquela incriminação. Por isso, em 28 de março de 2005, pela Lei</p><p>n. 11.106, houve a revogação expressa do art. 217 do Código Penal, que</p><p>tipificava a sedução; houve, portanto, a abolitio criminis, o que trouxe</p><p>como consequência a cessação de todos os efeitos penais condenatórios</p><p>referentes àquele delito.</p><p>5 .3 . R E T R O A T IV ID A D E D A LEI M A IS B E N IG N A (L E X M I T I O R )</p><p>Caso fosse possível ao Estado incriminar fatos anteriores à vigência</p><p>da lei penal, o Princípio da Legalidade ficaria esvaziado na sua função</p><p>de garantia. Com efeito, seria fácil aos detentores do poder político</p><p>utilizar-se de forma arbitrária do Direito Penal para alcançar fatos passa­</p><p>dos desagradáveis a eles, se não houvesse a proibição da retroatividade</p><p>da lei penal. É por isso que a formulação constitucional do Princípio da</p><p>Legalidade exige que a lei penal seja prévia ao fato, não podendo retro-</p><p>agir para prejudicar o réu. Assim, parafraseando Jescheck, a proibição</p><p>de retroatividade é uma norma protetora do réu.10 11</p><p>Todavia, a proibição da retroatividade não é absoluta. Com efeito, se</p><p>não é possível que a lei penal retroaja para prejudicar o réu, é perfeitamente</p><p>possível a retroatividade da lei penal quando houver algum benefício para</p><p>o réu. O fundamento dessa retroatividade foi magistralmente exposto por</p><p>Maurach: “A rigorosa aplicação da proibição de retroatividade encontra</p><p>suas fronteiras no lugar de onde, ao invés de se cumprir o fim perseguido</p><p>pela retroatividade - proteção do autor frente às penas ‘sobrevindas’ - se</p><p>produziría um prejuízo para o sujeito. Toda modificação é signo de uma</p><p>mudança valorativa; pela supressão ou atenuação da ameaça penal, mani­</p><p>festa o legislador uma mudança na sua concepção primitiva em favor de</p><p>uma mais suave. Se se quisesse manter aqui a proibição de retroatividade,</p><p>deveria ser castigado o autor sobre a base de uma concepção jurídica</p><p>não professada mais pelo próprio legislador. Com o objeto de evitar essa</p><p>violação da justiça material, prevê-se a obrigatória retroatividade da lei</p><p>penal mais benigna.”11</p><p>10 JESCHECK, Hans Hcirich. Lerhbuch des Strafrechts. Bcrlin: Dunckcr u. Humblot,</p><p>1988. p. 125.</p><p>11 MAURACH, Rcinhart. Tratado de Derecho PenaL Barcelona: Aricl. 1962. t. I, p.</p><p>143.</p><p>Procurar</p><p>7 4 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>Assim, a lei penal que beneficie o agente, chamada de lex mitior,</p><p>retroage para alcançar os fatos anteriores à sua vigência. Essa retroativi­</p><p>dade está prevista expressamente no art. 2o, parágrafo único, do Código</p><p>Penal, in verbis:</p><p>“A lei posterior que de qualquer modo favorece o agente, aplica-se aos</p><p>fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada</p><p>em julgado.”</p><p>Como visto, o Código Penal se utiliza da expressão “lei que de qual­</p><p>quer modo favorece o agente”. Em várias situações a lei nova poderá ser</p><p>mais benéfica ao agente, como, exemplificativamente: (a) quando diminui</p><p>a pena do crime; (b) quando toma a execução do crime menos rigoro­</p><p>sa; (c) quando cria institutos não existentes</p><p>na lei antiga que reduzem</p><p>a limitação à liberdade; (d) quando toma menos gravosa ao patrimônio</p><p>a pena de multa ou se facilita seu pagamento; (e) quando é aumentado</p><p>o rol das causas de exclusão da antijuridicidade ou de exclusão da cul­</p><p>pabilidade; (f) quando se acrescenta ao tipo uma causa de diminuição</p><p>de pena; (g) quando se aumenta o rol das circunstâncias atenuantes; (h)</p><p>quando se altera os critérios de fixação da pena base, tomando-a menos</p><p>gravosa ao agente.</p><p>Ocorre que, se por vezes pode ser evidente o benefício da lei nova</p><p>(como no caso de uma redução na pena), pode também não estar claro</p><p>se a retroatividade da lei, de fato, beneficia o agente. Isso porque, “mais</p><p>benigna é a lei mais favorável ao autor no caso concreto”.12 É, pois,</p><p>indispensável a análise do benefício em face da singularidade de cada</p><p>caso concreto.</p><p>O ordenamento espanhol, reconhecendo explicitamente esse proble­</p><p>ma, fez constar naquele Código Penal que em caso de dúvida sobre a</p><p>determinação da lei mais favorável, se a lei nova ou a lei mais antiga, o</p><p>réu será ouvido, antes de o juiz decidir.13</p><p>Em que pese não haver norma explícita no ordenamento penal bra­</p><p>sileiro, no caso de dúvida quanto à determinação da lei mais favorável,</p><p>não há nenhuma proibição para a oitiva do réu. Se o julgador entender</p><p>necessário, para dirimir a dúvida, tem a faculdade de determinar a ouvida,</p><p>MAURACH, Rcinhart. Tratado de Derecho Penal Barcelona: Aricl. 1962. t. 1, p.</p><p>143.</p><p>,} Art. 2o, n. 2, da Lei Orgânica n. 10/95.</p><p>Procurar</p><p>Lei P enal n o T e m p o</p><p>i</p><p>75</p><p>o que é de todo recomendável, sobretudo em face do próprio sentido da</p><p>norma penal brasileira, que se utiliza da expressão “beneficie o agente”.</p><p>Assim, é necessário um benefício pessoal concedido pela lei nova ao réu</p><p>e, sendo o condenado um sujeito considerado juridicamente como capaz,</p><p>já que ele conserva todos os direitos não atingidos pela condenação,</p><p>nada mais natural que ouvi-lo. Assim, a opinião do réu sobre a lei nova</p><p>duvidosamente mais favorável pode ser colhida pelo julgador, embora o</p><p>órgão julgador não esteja vinculado a ela.</p><p>Após essas considerações, cabe considerar uma hipótese: qual o</p><p>Direito aplicável, se a lei nova surge quando o processo está em grau de</p><p>apelação? Parafraseando Tobias Barreto, ainda aí ela deve prevalecer, em</p><p>face das condições de maior favorabilidade.14</p><p>Como foi visto, uma vez determinado que uma lei nova é mais fa­</p><p>vorável ao agente, ela retroage para beneficiá-lo. Todavia, uma questão</p><p>ainda se põe: quando é possível aplicar a lei posterior mais benigna?</p><p>À primeira vista, a resposta seria a partir da entrada em vigor da</p><p>lei nova, porque a Teoria Geral do Direito estabelece que a eficácia da</p><p>norma se dá com a vigência. Como sabido, após a publicação da lei, se</p><p>a própria norma não dispuser de um prazo diverso, ela vigorará a partir</p><p>de 30 dias; em caso de ela dispor de prazo diverso, vigorará no prazo</p><p>que estiver estabelecido nela própria. Todavia, porque o Direito Penal</p><p>está sempre ligado, em sua essência, ao uso estatal da violência - o que</p><p>se concretiza com a pena - , por vezes ele tem uma lógica diferenciada</p><p>dos demais ramos do Direito. Passemos ao exame da questão com o</p><p>seguinte exemplo:</p><p>Caio é condenado definitivamente, por crime de Deserção (crime</p><p>militar próprio), estando o Brasil em guerra com uma potência estrangeira,</p><p>à pena de morte por pelotão de fuzilamento. Fica determinado que a pena</p><p>será executada um mês depois da condenação. Todavia, dez dias após</p><p>o trânsito em julgado da sentença condenatória, surge uma nova lei que</p><p>retira a pena de morte do rol das penalidades para a Deserção, só que</p><p>dita lei tem uma vacatio legis de seis meses, isto é, somente entrará em</p><p>vigor seis meses após a sua publicação. Assim, quando a lei que retira a</p><p>pena de morte do crime militar de Deserção, em tempo de guerra, entrar</p><p>em vigor, a pena de morte já terá sido executada.</p><p>14 BARRETO, Tobias. Comentário Teórico c Crítico ao Código Penal Brasileiro. Estudos</p><p>de Direito II. Rio dc Janeiro: Rccord, 1991. p. 173.</p><p>Procurar</p><p>76 1 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>Como se vê, a pena - sanção exclusiva do Direito Penal - é a mais</p><p>grave forma de o Estado intervir na esfera de seu súdito, porque as penas</p><p>retiram do agente seus direitos fundamentais (vida, liberdade, patrimônio).</p><p>Deste modo, a interpretação da lei penal no tempo deve considerar uma</p><p>variável importante: é que o Estado não tem o poder de fazer retroagir a</p><p>flecha do tempo para restituir a vida retirada ou a liberdade que deixou</p><p>de ser gozada. Pois bem, por conta da gravidade da sanção denomina­</p><p>da pena, o Direito Penal é regulado pelo Princípio Constitucional da</p><p>Legalidade (Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem</p><p>prévia cominação legal), princípio este elencado no rol dos Direitos e</p><p>Garantias Fundamentais (art. 5o, XXXIX, da CF). Porque a lei penal é</p><p>uma Garantia Fundamental, ela tem aplicabilidade imediata, conforme</p><p>dispõe expressamente o texto constitucional. In verbis:</p><p>“Art. 5o, § Io As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais</p><p>têm aplicação imediata.”</p><p>Assim, para efeito da aplicação da lei penal no tempo, retroage-se a</p><p>lei mais benéfica a partir da sua publicação, não sendo necessário esperar</p><p>sua entrada em vigor, já que a lei na esfera penal é uma Garantia Funda­</p><p>mental, com aplicação imediata, por força de dispositivo constitucional.</p><p>Uma outra questão interessante refere-se à retroatividade favorá­</p><p>vel de uma interpretação jurisprudencial consolidada. Visualizemos essa</p><p>questão com um exemplo: em face de uma antiga decisão do Supremo</p><p>Tribunal Federal brasileiro, o uso de arma de brinquedo idônea para</p><p>enganar, no delito de roubo, justifica a aplicação da forma qualificada</p><p>daquele crime.15 Tal entendimento, embora deveras criticável, ganhou</p><p>um significativo eco na jurisprudência pátria. Imagine-se, para efeito de</p><p>argumentação, entretanto, que o próprio STF, conhecendo um recurso</p><p>extraordinário de sua competência, declare supervenientemente que tal</p><p>interpretação é inconstitucional. Imagine-se, ainda, que essa nova decisão</p><p>do STF acarretou a modificação posterior da interpretação jurisprudencial</p><p>dos demais tribunais sobre a forma qualificada do tipo de roubo, que não</p><p>mais se imputaria ao crime cometido com o uso de arma de brinquedo.</p><p>Pergunta-se: seria possível a retroatividade do entendimento jurispruden­</p><p>cial consolidado para beneficiar o réu?</p><p>15 Esse entendimento, que se iniciou cronologicamente no Supremo Tribunal Federal, foi</p><p>também seguido c sumulado pelo Superior Tribunal dc Justiça.</p><p>Procurar</p><p>Lei P enal n o T e m p o 1 77</p><p>Enfrentando esse problema, Zafarroni afirma que, quando a jurispru­</p><p>dência com valor indicativo geral muda de critério, temos que considerar</p><p>três hipóteses:</p><p>Ia) dita jurisprudência pode passar a considerar atípica uma ação</p><p>que até então era julgada adequada a um tipo penal;</p><p>2a) dita jurisprudência pode passar a considerar como incursa na</p><p>forma simples do tipo a ação que era anteriormente considerada</p><p>como adequada à forma qualificada; ou,</p><p>3a) dita jurisprudência pode considerar justificado por uma causa se</p><p>exclusão de antijuridicidade o que era considerado anteriormente</p><p>como ilícito.</p><p>Em todos os três casos, não reconhecer a eficácia retroativa da juris­</p><p>prudência “provoca um escândalo jurídico, pois duas pessoas que realizam</p><p>idênticas ações, reguladas pela mesma lei, resultam julgadas de modo que</p><p>uma seja condenada e outra absolvida, só porque a primeira foi julgada</p><p>antes”.16 Com efeito, é a interpretação jurisprudencial consolidada que</p><p>determina os contornos da ação criminosa. Se essa interpretação conso­</p><p>lidada muda, embora não exista alteração na definição legal, muda-se o</p><p>próprio significado conceituai do crime. Porque é a jurisprudência que</p><p>determina a aplicação concreta da lei, a mudança da interpretação conso­</p><p>lidada acima referida determina a retroatividade da lei penal, considerada</p><p>em seu elemento mais</p><p>palpável: sua aplicação.</p><p>5 .4 . C O M B IN A Ç Ã O D E LEIS (L E X T E R T IA )</p><p>Uma questão central no estudo da lei penal no tempo é a da com­</p><p>binação de leis. Tratemos desse assunto com um exemplo: imaginemos</p><p>que, quando um determinado crime foi cometido, a pena estabelecida era</p><p>de reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos. Posteriormente ao cometimento</p><p>do delito, uma lei nova alterou a pena do mesmo crime para reclusão de</p><p>1 (um) a 5 (cinco) anos. Como se vê, a lei posterior tem um elemento</p><p>mais favorável: a pena mínima; e a lei anterior tem um elemento mais</p><p>favorável que a posterior: a pena máxima. Como, no caso, se determina</p><p>a lei mais favorável?</p><p>16 ZAFFARONI, Eugcnio Raúl el al. Derecho Penal. Parte general. Buenos Aires: Ediar,</p><p>2000. p. 126.</p><p>Procurar</p><p>7 8 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>Vê-se que nenhuma das duas leis, por si só, pode ser apontada como</p><p>a mais favorável; o mais favorável ao agente, no caso, seria a combinação</p><p>das leis (da pena mínima da lei posterior - um ano de reclusão - com a</p><p>pena máxima da lei anterior - quatro anos de reclusão). Segundo Bagio</p><p>Petrocelli, a combinação de leis, nesse caso, é necessária, por força da</p><p>equidade, para regular algumas situações transitórias, que se verificam</p><p>em face da sucessão de leis penais.17</p><p>Na dogmática penal brasileira, não houve uma unanimidade na ad­</p><p>missão da combinação de leis. Nélson Hungria, por exemplo, afirma</p><p>não ser possível a combinação de leis porque transformaria o juiz em</p><p>legislador.18</p><p>Todavia, essa opinião não pode se sustentar. Na combinação de</p><p>leis o juiz está operando com leis do ordenamento jurídico, não está ele</p><p>criando ex nihilo, isto é, do nada, uma nova norma. Ressalte-se, ainda,</p><p>que a sentença é uma norma do caso concreto, criada pelo juiz. Assim,</p><p>na sentença judicial, que, repita-se, é uma norma criada pelo juiz, é per-</p><p>feitamente possível ao julgador se movimentar dentro dos quadros legais</p><p>do ordenamento jurídico. Lúcida, sobre o assunto, é a lição de José Fre­</p><p>derico Marques: “Dizer que o juiz está fazendo lei nova, ultrapassando</p><p>assim suas funções constitucionais é argumento sem consistência, pois</p><p>o julgador, em obediência a princípios de equidade consagrados pela</p><p>própria Constituição, está apenas movimentando-se dentro dos quadros</p><p>legais para uma tarefa de integração perfeitamente legítima. O órgão do</p><p>judiciário não está tirando, ex nihilo, a regulamentação eclética que deve</p><p>imperar hic et nunc. A norma do caso concreto é construída em função</p><p>de um princípio constitucional e com o próprio material fornecido pelo</p><p>legislador.”19</p><p>A lição de Frederico Marques permanece atual, sobretudo em face</p><p>do princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, assegurado</p><p>pela Constituição Federal de 1988. Com efeito, não podemos esquecer</p><p>17 PETROCELLI, Biagio. Principi di Diritto Penale. Nápoles: Eugênio Jovcnc, 1950. v. I,</p><p>p. 150-151.</p><p>Is Diz Hungria: “Cumpre advertir que não podem ser entrosados os dispositivos mais favo­</p><p>ráveis da lex nova com os da lei antiga, pois, dc outro modo, estaria o juiz arvorado cm</p><p>legislador, formando uma terceira lei, dissonante, no seu hibridismo, dc qualquer das leis</p><p>cm jogo.” HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio dc Janeiro: Forense,</p><p>1958. v. I, t. I, p. 110.</p><p>19 MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1964. v. I,</p><p>p. 210.</p><p>Procurar</p><p>Lei Penal n o T e m p o 1 79</p><p>que a sanção penal atinge Direitos Fundamentais, constitucionalmente</p><p>assegurados. Destarte, se a combinação de leis promove uma redução</p><p>à lesão desses Direitos Fundamentais atingidos pela pena, não é só por</p><p>equidade que se deve aplicar a combinação de leis, mas, sobretudo, porque</p><p>o respeito à Dignidade da Pessoa Humana impõe a menor lesão possível</p><p>dos Direitos Fundamentais.</p><p>Para se concluir a argumentação sobre a combinação de leis, traga-se</p><p>à colação a irreprochável lição de Taipa de Carvalho: “Sobre a alegada</p><p>ilegitimidade da aplicação das disposições favoráveis de cada uma das</p><p>leis, não se vê onde esteja a ilegitimidade; deve-se mesmo dizer que</p><p>tal é imposto pela ratio jurídico-política da proibição da retroatividade</p><p>desfavorável e pela ratio político-criminal da imposição da retroatividade</p><p>favorável.”20</p><p>5 .5 . U L T R A -A T IV ID A D E D A LEI P E N A L {LEI P E N A L E X C E P C IO N A L</p><p>O U T E M P O R Á R IA )</p><p>O Código Penal prevê uma exceção à regra da abolitio criminis: é</p><p>o caso da lei penal excepcional ou temporária.21 Como sabido, se uma</p><p>conduta deixa de ser considerada como criminosa, cessam todos os efeitos</p><p>penais condenatórios. Mas se uma lei penal com prazo de vigência deter­</p><p>minado deixa de vigorar pelo término do prazo ou das circunstâncias que</p><p>a ensejaram, todos os fatos que se deram sob a sua vigência são regulados</p><p>por ela. A isso a dogmática chama de ultra-atividade penal.</p><p>Quando uma lei passa a existir no ordenamento jurídico, sabe-se o</p><p>inicio de sua vigência, conforme foi dito: 30 dias após a sua publicação</p><p>ou, caso ela disponha de modo diverso, o prazo que for estabelecido</p><p>na própria norma. Mas se, no comum dos casos, se conhece o termo</p><p>inicial da lei, a regra é que ela não disponha de prazo de término de</p><p>vigência.</p><p>Contudo, parafraseando Welzel, algumas leis são criadas para regular</p><p>uma situação transitória,22 * tendo prazo de vigência determinado. Existem</p><p>20 TAIPA DE CARVALHO, Amórico. Sucessão de Leis Penais. Coimbra: Coimbra Editora,</p><p>1997. p. 197.</p><p>21 No sentido dc scr a lei excepcional ou temporária uma exceção aos princípios gerais,</p><p>vcja-sc: NUVOLONE, Pictro. II Sistema dei Diritto Penale. Padova: CEDAM, 1975.</p><p>p. 40.</p><p>22 WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Santiago: Editorial Jurídica dc Chile, 1976. p.</p><p>44.</p><p>Procurar</p><p>8 0 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>duas possibilidades de a lei penal ser editada com prazo determinado: a</p><p>primeira é a lei excepcional. Nesse caso, a lei fixa na sua definição circuns­</p><p>tâncias concretas que, enquanto existirem, possibilitarão a sua vigência.</p><p>Podemos visualizar a presente hipótese com um exemplo: Imagine-se que o</p><p>Brasil esteja sofrendo uma ameaça terrorista determinada em face da visita</p><p>de um chefe de Estado estrangeiro. Entretanto, suponha-se também que,</p><p>em face da dita ameaça terrorista, entre em vigor uma lei que incrimine</p><p>a conduta de manter em depósito, sem a autorização estatal, compostos</p><p>químicos que possam provocar explosão, enquanto durar a ameaça. Ora,</p><p>essa lei penal hipotética tem um termo final previsto na própria norma, pois</p><p>com o fim do dito estado de ameaça, que é uma circunstância concreta e</p><p>excepcional, ela deixa de vigorar; assim, essa norma é classificada como</p><p>excepcional. Segundo Jiménez de Asúa, a derrogação da lei excepcional</p><p>se dá “por haver desaparecido o objeto, circunstância ou privilégio que</p><p>deram nascimento a ela”.23</p><p>A segunda hipótese é lei temporária, que é aquela que leva “no</p><p>próprio texto ou em outra lei, de igual ou superior hierarquia, a data</p><p>de caducidade”,24 declarando-se explicitamente o tempo em que deixará</p><p>de vigorar perante o ordenamento jurídico. É o caso, por exemplo, de</p><p>uma norma penal que é publicada e, nas suas disposições finais existe o</p><p>seguinte comando: esta norma vigorará por seis meses.</p><p>Manzini esclarece que não se enquadram no conceito de leis excep­</p><p>cionais ou temporárias aquelas normas que, embora se refiram às situações</p><p>transitórias, são permanentes, como é o caso dos crimes cometidos em</p><p>tempo de guerra.25 Com efeito, o tempo dc guerra é um tempo excep­</p><p>cional, já que dentre os fins do Estado está a convivência pacífica com</p><p>as outras potências, mas os crimes previstos para o tempo de guerra não</p><p>são leis excepcionais, já que eles são consubstanciados em uma norma</p><p>permanente (no Brasil, o Código Penal Militar, Decreto-Lei n. 1.001/69).</p><p>Assim, somente as normas não permanentes, isto é, com vigência limitada</p><p>por prazo determinado ou pela presença de circunstâncias excepcionais,</p><p>podem ser consideradas para efeito da ultra-atividade penal.</p><p>No caso das leis penais excepcionais ou temporárias, ainda que ces­</p><p>sadas as circunstâncias que determinaram a edição da norma, ou, ainda</p><p>24 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luís. La Ley y el Delito. Caracas: Andrés Bcllo, 1945. p. 179.</p><p>24 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. La Ley y el Delito. Caracas: Andrcs Bcllo, 1945. p. 179.</p><p>25 MANZINI, Viccnzo. Trattato de Diritto Penale Italiano. Torino: Unionc Tipográfico,</p><p>1950. v. I, p. 337.</p><p>Procurar</p><p>Lei Penal n o Te m p o 81</p><p>que cessado o prazo, os fatos ocorridos no período de sua vigência são</p><p>sempre regulados segundo seus comandos. Tal norma é constante no</p><p>artigo terceiro do Código Penal, in verbis:</p><p>“Art. 3o A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de</p><p>sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se</p><p>ao fato praticado durante a sua vigência.”</p><p>5 .6 . Q U E S T Õ E S P O N T U A IS D A A P L IC A Ç Ã O D A LEI P E N A L N O</p><p>T E M P O</p><p>5 .6 .1 . M e d id a s d e S e g u ra n ç a</p><p>O Direito Penal tem duas consequências previstas para a violação</p><p>de suas normas: a pena e a medida de segurança. Enquanto a pena é</p><p>aplicada como a consequência jurídica do crime, a medida de segurança</p><p>é aplicada para os sujeitos que não podem ser objeto de uma censura</p><p>pessoal, em face de serem portadores de anomalias mentais e, por conta</p><p>dessas anomalias, não conseguir compreender o caráter ilícito do fato ou</p><p>determinar-se conforme esse entendimento. Por exemplo, se um sujeito</p><p>doente mental mata alguém por obedecer a “ordens sobrenaturais” - caso</p><p>característico de esquizofrenia paranoide - não pode ele sofrer uma pena,</p><p>mas será submetido à medida de segurança.</p><p>Surge, aqui, uma importante questão: as normas referentes à lei penal</p><p>no tempo aplicam-se às medidas de segurança? A resposta é positiva: as</p><p>normas referentes à lei penal no tempo também se aplicam à medida de</p><p>segurança.</p><p>Polaino Navarrete, discorrendo sobre a medida de segurança, faz</p><p>uma advertência segundo a qual as citadas medidas de segurança não</p><p>são estabelecidas arbitrariamente, não se acham isentas de fundamentação</p><p>jurídica e possuem a natureza penal, por isso se lhe aplicam os postulados</p><p>da lei penal no tempo.26 Destarte, proíbe-se que a retroatividade da lei</p><p>tome de qualquer modo mais gravosa essa medida e aplicam-se-lhe as</p><p>leis posteriores que de qualquer modo representem benefícios aos que a</p><p>cumprem.27</p><p>26 POLAINO NAVARRETE, Miguel. Derecho Penal. Parte General. Barcelona: Bosch,</p><p>1983. t. I, p. 494.</p><p>27 Neste sentido: TAIPA DE CARVALHO, Américo. Sucessão de Leis Penais. Coimbra:</p><p>Coimbra Editora, 1997. p. 208-209.</p><p>Procurar</p><p>8 2 Curso d e D ire ito Penai - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>Com efeito. Para haver a aplicação de uma medida de segurança é</p><p>necessário que o sujeito, portador de uma anomalia mental que anula sua</p><p>capacidade de consciência ou de autodeterminação, tenha violado uma</p><p>lei penal. Se um doente mental não praticar nenhum fato incriminado em</p><p>uma lei penal sob a ameaça de uma pena, não há a possibilidade de se</p><p>lhe imputar uma medida de segurança. Assim, é condição para a aplicação</p><p>da medida de segurança a violação da lei penal, sendo a aplicação da</p><p>referida medida de segurança o produto da interpretação sistemática da lei</p><p>penal incriminadora e das normas gerais sobre a culpabilidade, presentes</p><p>na Parte Geral do Código Penal. Ora, como a lei penal, que é condição</p><p>prévia para a aplicação da medida de segurança, é regulada segundo as</p><p>normas referentes à lei penal no tempo, não há como a dita medida de</p><p>segurança também não sê-lo.</p><p>5 .6 .2 . N o rm a P e n a l e m B ra n c o</p><p>Chama-se norma penal em branco a lei penal que, para ter a indivi­</p><p>dualização da conduta proibida, precisa ser completada por outra norma.</p><p>Na norma penal em branco a lei penal descreve o núcleo da conduta</p><p>proibida, já que a dita lei sempre traz na sua descrição abstrata o verbo,</p><p>o qual indica o comportamento que é vetado pelo Direito Penal sob a</p><p>ameaça de uma pena. Todavia, o complemento do verbo, sempre neces­</p><p>sário para a individualização da conduta incriminada, é feito por outra</p><p>norma jurídica.</p><p>Um exemplo esclarecerá a questão: a Lei n. 6.368/76, que trata do</p><p>tráfico e do consumo de substâncias entorpecentes, dispõe do seguinte</p><p>crime:</p><p>“Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância</p><p>entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem auto­</p><p>rização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar:</p><p>Pena - detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 20</p><p>(vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa.”</p><p>Como visto, a presente lei traz na sua descrição o núcleo da proibição,</p><p>que é expresso pelos verbos que indicam os comportamentos proibidos</p><p>(adquirir, guardar, trazer), mas somente se pode individualizar a conduta</p><p>proibida se houver a determinação do complemento do verbo. É com­</p><p>plemento do verbo, nessa lei, o conceito de substância entorpecente, sem</p><p>Procurar</p><p>Lei Penal n o Te m p o</p><p>i</p><p>83</p><p>ele não se alcançará a taxatividade penal, isto é, a conduta proibida não</p><p>poderá ser individualizada. Pois bem, quais são as substâncias entorpe­</p><p>centes? A lei não as define, mas estabelece no seu art. 36 que elas serão</p><p>definidas em lei ou relacionadas pelo Serviço Nacional de Fiscalização</p><p>da Medicina e Farmácia, do Ministério da Saúde. Como visto, a Lei n.</p><p>6.368/76 remete seu complemento a uma outra norma; logo, ela é uma</p><p>norma penal em branco.</p><p>Com relação à lei penal no tempo, a norma penal em branco está</p><p>submetida às mesmas regras gerais explicadas anteriormente, inclusive</p><p>com relação ao seu complemento.2s Por exemplo, se a portaria do Mi­</p><p>nistério da Saúde que relaciona as substâncias entorpecentes é acrescida</p><p>por um novo elemento, não é possível a incriminação retroativa do uso</p><p>da novel substância. Com efeito, somente se poderá incriminar o uso da</p><p>novel substância entorpecente a partir da vigência da nova portaria. De</p><p>outra parte, se a mesma portaria do Ministério da Saúde retira de seu</p><p>rol uma determinada substância, haverá a abolitio criminis com relação</p><p>a todas as persecuções penais envolvendo o uso da substância que foi</p><p>retirada da norma. Como se vê, todos os postulados referentes à lei penal</p><p>no tempo se aplicam à norma penal em branco.</p><p>5 .7 . T E M P O D O C R IM E</p><p>Ponto central na aplicação temporal da lei penal é a determinação</p><p>do tempo do crime. Um exemplo comprovará a importância do tema:</p><p>Caio, com o fim de matar, desfere um disparo de arma de fogo em Pau­</p><p>lo. Este último é socorrido logo após a ação de Caio, mas morre cinco</p><p>dias depois, por conta dos ferimentos sofridos. Todavia, entre a ação de</p><p>Caio e a morte de Paulo, entra em vigor uma lei majorando a pena do</p><p>homicídio. Somente podemos saber se a lei nova é aplicável ao caso após</p><p>a determinação do tempo do crime.</p><p>Ao longo do desenvolvimento teórico da dogmática penal, três teorias</p><p>foram formuladas para a determinação do tempo do crime. 28</p><p>28 Neste mesmo sentido, vcja-sc a lição dc Cerezo Mir: “Se discute si el principio de irretro-</p><p>actividad de las leyes penales debe aplicarse a las leyes o disposiciones que complemenlan</p><p>las llamadas leyes penales en blanco. En realidad dichas leyes o disposiciones, aunque</p><p>pertenezean a otro sector dei ordenamiento (Derecho Civil, Derecho Administrativo) que-</p><p>dan incorporadas a las leyes penales, al completarias con la descripción de las conductas</p><p>prohibidas u ordenadas. Debe regir, pues, para ellas el principio de la irretroactividad,</p><p>asi como el de la irretroactividad de las leyes penales de caracter favorable". CEREZO</p><p>MIR, José. Curso de Derecho Penal Espanol. Madrid: Tccnos, 1993. p. 180.</p><p>Procurar</p><p>84 i Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>A primeira é a Teoria da Atividade ou da Ação. Segundo ela o crime</p><p>é considerado praticado ao tempo da ação ou da omissão, ainda que seja</p><p>outro o momento do resultado. Essa teoria é assim chamada (da atividade)</p><p>porque considera momento do crime tanto o momento da ação positiva</p><p>(comissão), quanto o momento da ação negativa (omissão). Segundo</p><p>Jescheck, “o tempo de comissão do fato punível se determina pelo mo­</p><p>mento da ação, isto é, pelo momento em que a vontade é manifestada, e</p><p>não no momento da realização do resultado. Nos delitos de omissão, o</p><p>tempo de realização se determina no momento em que o autor deveria</p><p>ter atuado”.29</p><p>A segunda doutrina construída foi a Teoria do Resultado. Segundo</p><p>ela, o resultado é o momento em que o dano ao bem jurídico se perfaz.</p><p>Assim, o resultado encerra o processo temporal do crime, devendo ser ele</p><p>o tempo do crime. No dizer de Antolisei, a teoria do resultado “considera</p><p>cometido o delito no momento em que se verificou o efeito exterior da</p><p>conduta humana”.30</p><p>A terceira posição é a teoria eclética, que considera tempo do crime</p><p>tanto o tempo da ação ou da omissão quanto o tempo do resultado.</p><p>O Código Penal brasileiro, no seu artigo 4o, adotou expressamente</p><p>a Teoria da Atividade, ao estabelecer que:</p><p>“Art. 4o Considera-se praticado o crime no momento da ação ou da omissão,</p><p>ainda que seja outro o momento do resultado.”</p><p>Entretanto, algumas questões sobre o tempo do crime precisam ser</p><p>tratadas. A primeira diz respeito aos crimes permanentes. Crime perma­</p><p>nente é o que se protrai no tempo, não se realizando num instante de­</p><p>terminado. Veja-se o delito de extorsão mediante sequestro (art. 159 do</p><p>Código Penal), cujo núcleo é o verbo sequestrar. Ora, o verbo sequestrar</p><p>indica uma privação de liberdade que se estende no tempo. Como se dá</p><p>o tempo do crime se a ação se prolonga no tempo? No caso do crime</p><p>permanente, será considerado tempo do crime todo o percurso temporal,</p><p>até haver cessado a permanência.</p><p>N Tradução livre dc: “Die Begehungszeit der Straftat bestimmt sich nach dem Zeitpuunkt</p><p>der Handlung, d.h. nach dem der Willensbetãtigung. nicht nach dem Zeitpunkt des Erfol-</p><p>geintritts im Falle des Unterlassens nach dem Zeitpunkt, zu dem der Tãter Hãtte handeln</p><p>müssen". JESCHECK, Hans-Hcinrich. Lerhbuch des Strafrechts. Bcrlin: Dunckcr u.</p><p>Humblot, 1988. p. 123-124.</p><p>30 ANTOLISEI, Franccsco. Manuale di Diritto Penale. Milano: Giufirc, 1997. p. 115</p><p>Procurar</p><p>Lei P enal n o T e m p o 1 85</p><p>A segunda questão a ser enfrentada no que diz respeito ao tempo</p><p>do crime é a questão do crime continuado. O crime continuado é aquele</p><p>que, em face das circunstâncias de tempo, lugar, modo de execução, ou</p><p>outra que possa indicar a referida continuidade, a ação antecedente deva</p><p>ser vinculada à posterior, num nexo ideal de continuação, de modo a se</p><p>reconhecer não mais duas ações, mas uma única e, portanto, não mais</p><p>crimes diversos, mas um único crime (art. 71 do Código Penal).</p><p>Um exemplo elucidará o conceito: O tesoureiro de um banco deter­</p><p>minado, todos os dias, durante uma semana, subtrai valores do cofre do</p><p>estabelecimento, de que tinha a detenção. Nesse caso não existiram sete</p><p>crimes de apropriação indébita, mas um crime único, em face da regra</p><p>do crime continuado. Por força da norma jurídica do crime continuado,</p><p>ele é visto como um crime único. Por isso, surge uma questão: quando é</p><p>que se verifica o tempo de sua realização? Do mesmo modo que o crime</p><p>permanente, o tempo de sua realização se dá até a prática do último ato</p><p>ligado pelo liame da continuidade delitiva. Assim, o tempo de realização</p><p>no crime continuado é, por conseguinte, todo o espaço de tempo que se</p><p>dê até o término da ação.31</p><p>Nessas hipóteses, se uma lei passa a vigorar após iniciada a per­</p><p>manência ou a continuidade, mas antes de cessados todos os atos inte­</p><p>grantes daquelas ações, ela é aplicável, ainda que mais gravosa, porque</p><p>sob o seu império se deu parte da atividade executiva.32 Nesse caso,</p><p>não há que se falar em retroatividade de lei posterior, porque a lei é</p><p>posterior ao primeiro ato da ação criminosa, mas é anterior ao último</p><p>ato da referida ação.</p><p>31 JESCHECK, Hans-Hcinrich. Lerhbuch des Strafrechts. Bcrlin: Dunckcr u. Humblot,</p><p>1988. p. 124.</p><p>32 ANTOLISEI, Franccsco. Manuale di Diritto Penale. Milano: Giufirc, 1997. p. 116.</p><p>Procurar</p><p>Procurar</p><p>6</p><p>LEI P E N A L N O ESPAÇO</p><p>6 .1 . O B JE T O D O E S T U D O</p><p>A lei penal pode ser aplicada no espaço pelo Princípio da Territoria­</p><p>lidade ou pelo Princípio da Extraterritorialidade. Desses princípios, em</p><p>face da função do próprio Estado, o de maior importância é o primeiro.1</p><p>Todavia, o Princípio da Territorialidade, apesar de dominante, não é su­</p><p>ficiente para fundamentar e explicar todo o alcance espacial da lei penal,</p><p>sofrendo uma série de exceções, que alicerçam a aplicação extraterritorial</p><p>da norma positiva estatal.1 2</p><p>Isto posto, no âmbito espacial de vigência, a lei penal pátria tem</p><p>por objeto principal a determinação da lei aplicável nos crimes cometi­</p><p>dos dentro do espaço territorial brasileiro e tem como objeto acessório</p><p>a determinação da aplicabilidade da lei brasileira aos crimes cometidos</p><p>fora do território nacional.</p><p>O tema da aplicação espacial da lei penal começou a ganhar relevo</p><p>no século XIX. Com o advento da Codificação Penal, a França e a Alema­</p><p>nha passaram a admitir a aplicação extraterritorial de suas normas penais</p><p>e a extradição passou a ganhar um especial destaque.3 Com isso se dá</p><p>uma incipiente internacionalização do Direito Penal, através da aplicação</p><p>extraterritorial do Direito punitivo interno. No século XX consolidou-se</p><p>1 CUELLO CALÓN, Eugcnio. Derecho Penal. Barcelona: Bosch, 1975. t. I, p. 233.</p><p>: SOLER, Scbastián. Derecho Penal Argentino. Buenos Aires: TEA, 1992. v. 1, p. 190.</p><p>3 ARAÚJO JÚNIOR, João Marccllo. Introdução à Teoria Geral do Direito Penal Interna­</p><p>cional. Ciência Penal. Curitiba: JM, 1999. p. 245.</p><p>Procurar</p><p>88 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>o estudo da lei penal no espaço, e “a aplicação extraterritorial do direito</p><p>punitivo interno exigiu o surgimento de diversas regras destinadas a dirimir</p><p>os conflitos interespaciais de normas. Tais regras encontram-se hoje, mais</p><p>ou menos, bem estruturadas nas legislações nacionais e permitem uma</p><p>atuação ordenada, garantidora da eficácia da lei penal interna, constituindo</p><p>matéria do Direito Penal Internacional”.4</p><p>Se é antigo o estudo da aplicação da lei penal de um determinado</p><p>Estado fora de seu território, o que se convencionou chamar de Direito</p><p>Penal Internacional, é recente o estudo de um Direito Internacional Pe­</p><p>nal. Este último supõe uma autêntica jurisdição internacional na esfera</p><p>criminal, que importa a determinação de crimes internacionais e de penas</p><p>internacionais, não vinculados a um ordenamento jurídico determinado,</p><p>mas oriundos de normas próprias do Direito Internacional sobre a maté­</p><p>ria. O assunto é de grande atualidade, porque tais normas internacionais</p><p>foram consubstanciadas a partir do Tratado de Roma, de 1988, o que</p><p>possibilitou, nos dias atuais, a coexistência de um Direito Internacional</p><p>Penal ao lado do Direito Penal Internacional.</p><p>O objeto do presente estudo, entretanto, é o âmbito espacial da apli­</p><p>cação da lei penal. Logo, ele se vincula ao Direito Penal Internacional.</p><p>Aqui se estudará o Princípio da Territorialidade, bem como a aplicação</p><p>extraterritorial da lei penal, quer a extraterritorial idade incondicionada,</p><p>quer a condicionada. Por fim, será objeto de estudo a determinação do</p><p>lugar do crime.</p><p>6 .2 . P R IN C ÍP IO D A T E R R IT O R IA L ID A D E</p><p>Com relação à vigência espacial da lei penal, o primeiro preceito</p><p>a ser estudado é o Princípio da Territorialidade, que triunfou a partir da</p><p>Revolução Francesa. Segundo ele, a lei aplicável para processar e julgar</p><p>um crime é a do Estado no qual o delito foi cometido. Isto se dá porque o</p><p>Direito de Punir (Jus Puniendi) é uma manifestação da soberania estatal,5</p><p>a qual é exercida dentro dos limites territoriais do Estado.</p><p>Relevante ressaltar que, por este Princípio, não importará, na deter­</p><p>minação da lei aplicável, a nacionalidade, quer do sujeito ativo - aquele</p><p>* ARAÚJO JÚNIOR, João Marccllo.</p><p>Introdução à Teoria Geral do Direito Penal Interna­</p><p>cional. Ciência Penal. Curitiba: JM, 1999. p. 245.</p><p>5 CEREZO MIR, Josó. Curso de Derecho Penal Espaiiol. Madrid: Tccnos, 1993. p.</p><p>193.</p><p>Procurar</p><p>Lei Penal n o Espaço</p><p>i</p><p>89</p><p>que comete o crime quer do sujeito passivo - o titular do bem jurídico</p><p>violado pelo crime nem tampouco a natureza do dito bem jurídico</p><p>violado.6</p><p>O Código Penal pátrio consagra esse Principio como a regra geral</p><p>com relação à lei penal no espaço. Portanto, aplica-se a lei penal brasileira</p><p>aos crimes cometidos dentro do território nacional, independentemente</p><p>da nacionalidade dos sujeitos ou da natureza do bem jurídico violado. O</p><p>Princípio da Territorialidade supõe que pertence ao Estado o direito de</p><p>punir todas as pessoas que estejam sob o seu território, em face de sua</p><p>soberania.7 Além disso, consoante ensina Jiménez de Asúa: “o princípio</p><p>da territorialidade se legitima pela consideração de que o Estado - salvo</p><p>em casos excepcionais - não tem necessidade nem interesse em proibir</p><p>penalmente os fatos cometidos fora de seu território, porque a existência</p><p>simultânea de outros Estados, com seus respectivos ordenamentos jurí­</p><p>dicos, permite estabelecer as fronteiras de repressão penal que cada um</p><p>deles exerce em seu próprio território.”8</p><p>Todavia, uma questão se põe: qual o conceito de território nacional?</p><p>Se um crime é cometido a 100 milhas da costa brasileira, em alto-mar,</p><p>ele é cometido no território brasileiro? Ou ainda, se o crime é cometido</p><p>no espaço aéreo de uma ilha brasileira distante da costa, estamos em</p><p>território brasileiro?</p><p>O conceito de território nacional é dado normativamente. Destarte,</p><p>o conceito de território não é um conceito geográfico, mas um conceito</p><p>político-normativo: o território é o espaço no qual o Estado exerce a</p><p>6 A conccituação desse Principio há muito se consolidou na doutrina penal; desde o século</p><p>XIX, Tobias Barreto ensinava: “Princípio territorial ou da territorialidade. O lugar da</p><p>perpetração do crime determina o domínio da autoridade puniente. As ações criminosas</p><p>praticadas no interior são violações da lei penal pátria, quer o agente seja nacional, quer</p><p>não.” Comentário Teórico c Crítico ao Código Criminal Brasileiro. Estudos de Direito</p><p>II. Rio dc Janeiro: Rccord, 1991. p. 177. Vcja-sc, também, a lição dc Bataglini na Itália,</p><p>que já demarcava os contornos do princípio desde a década dc 20 do século passado, ao</p><p>afirmar que: "11 principio terriloriale si fonda sul conceito che la norme de! diritto penale</p><p>dei Stato si debbano applicare a tutti i reati commessi entro il suo território, a prescindire</p><p>dalla persona dei delinquente e dalla natura dei bene guiridico leso." BATTAGLINI,</p><p>Giulio. Introduzione alio Studio dei Diritto Penale. Milano: Vita c Pcnsicro, 1923. p.</p><p>66.</p><p>7 ASÚA, Luis Jiménez dc. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Losada, 1950, t. I.</p><p>p. 660.</p><p>8 ASÚA, Luis Jiménez dc. Op. cit. p. 652.</p><p>Procurar</p><p>90 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>sua soberania.9 Será território nacional, em primeiro lugar, a porção de</p><p>terra delimitada pelas fronteiras do país, sem solução de continuidade,</p><p>aí incluídas as águas interiores, o subsolo, as ilhas e outras porções de</p><p>terra separadas do solo principal.</p><p>Integra, ainda, o território nacional, o mar territorial. O Decreto-Lei</p><p>n. 1.098, de 25 de março de 1970, fixava o mar territorial em 200 milhas.</p><p>Todavia, essa fixação estava em descompasso com as normas de Direito</p><p>Internacional. Com efeito, a Convenção de Montego Bay, patrocinada</p><p>pelas Nações Unidas em 10 de dezembro de 1982, regulou intemacio-</p><p>nalmente os direitos sobre o mar. Dispõe ela no artigo 3°:</p><p>“Art. 3° Todo o Estado tem o direito de fixar a largura do seu mar ter­</p><p>ritorial até um limite que não ultrapasse 12 milhas marítimas, medidas a</p><p>partir de linhas de base determinadas de conformidade com a presente</p><p>Convenção.”</p><p>Com o Decreto Legislativo n. 5, de 9 de novembro de 1987, a Con­</p><p>venção de Montego Bay foi aprovada pelo Poder Legislativo nacional, e</p><p>o Brasil a ratificou em 22 de dezembro de 1988.</p><p>Urgia, portanto, rever a extensão do mar territorial brasileiro, que</p><p>não mais podería ter 200 milhas. Com o advento da Lei n. 8.617, de 4</p><p>de janeiro de 1993, revogou-se expressamente o Decreto-Lei n. 1.098/70</p><p>e se modificou a extensão do mar territorial para 12 milhas, a partir da</p><p>preamar do litoral continental e insular brasileiro. Assim estabelece o</p><p>artigo Io da Lei n. 8.617/93:</p><p>“Art. 1° O mar territorial brasileiro compreende uma faixa de doze milhas</p><p>marítimas de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral</p><p>continental e insular brasileiro, tal como indicada nas cartas náuticas de</p><p>grande escala, reconhecidas oficialmente pelo Brasil.”</p><p>Ressalte-se que após o mar territorial, o Brasil tem 188 milhas de</p><p>Zona Econômica Exclusiva, espaço exclusivo de exploração de recursos</p><p>naturais, mas não mar territorial. Registre-se, ainda, que a Lei n. 8.617/93</p><p>estabeleceu o limite de 24 milhas a partir da preamar (12 milhas além do</p><p>mar territorial) como espaço de Zona Contígua (art. 4°).</p><p>9 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal Parte geral. Rio dc Janeiro: Fo­</p><p>rense, 2003. p. 133.</p><p>Procurar</p><p>Lei Penal n o Espaço</p><p>i</p><p>91</p><p>A soberania brasileira se estende até o mar territorial, envolvendo o</p><p>subsolo e o leito desse mar. Até aí temos os limites do território nacional</p><p>e se aplica a lei penal brasileira. Todavia, após o mar territorial, não existe</p><p>mais o território nacional, iniciando-se a Zona Econômica Exclusiva. Essa</p><p>Zona se estende das 12 milhas após o mar territorial até o limite de 200</p><p>milhas náuticas, compreendendo, portanto, o espaço da Zona Contígua (cf.</p><p>o art. 6o da Lei n. 8.617/93). Na Zona Econômica Exclusiva os direitos</p><p>do Brasil se restringem a exploração e aproveitamento, conservação e</p><p>gestão de todos os recursos naturais que estejam nas águas, no leito do</p><p>mar ou no seu subsolo, para fins econômicos (art. 7o). Assim, se zona</p><p>econômica exclusiva não vige mais o Princípio da Territorialidade, não</p><p>pode ser possível, por óbvio, considerá-la território nacional, não se lhe</p><p>aplicando a lei penal brasileira, exceto nas hipóteses de extraterritoriali-</p><p>dade, adiante estudadas.</p><p>Com relação ao espaço aéreo, ele é determinado por todo espaço</p><p>situado acima do território brasileiro e do seu mar territorial, conforme</p><p>o art. 11 da Lei n. 7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica).</p><p>O Princípio da Territorialidade, acima descrito, foi instituído no artigo</p><p>5o do nosso Código Penal, in verbis:</p><p>“Art. 5o Aplica-se a lei penal brasileira, sem prejuízo de convenções,</p><p>tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no Território</p><p>Nacional.”</p><p>Por extensão legal, consoante a norma do parágrafo primeiro do</p><p>Código Penal, também integrarão o conceito de território nacional em­</p><p>barcações ou aeronaves brasileiras, nas seguintes situações: I</p><p>Ia) as embarcações e aeronaves públicas brasileiras, onde quer que</p><p>se encontrem, isto é, mesmo que fora do mar territorial brasileiro</p><p>ou do espaço aéreo brasileiro;</p><p>2a) as embarcações e aeronaves privadas brasileiras, que estejam</p><p>a serviço do poder público brasileiro, onde quer que se encon­</p><p>trem, isto é, mesmo que fora do mar territorial brasileiro ou do</p><p>espaço aéreo brasileiro;</p><p>3a) as embarcações e aeronaves privadas de bandeira brasileira que</p><p>estejam em alto-mar ou no espaço aéreo correspondente.</p><p>Procurar</p><p>9 2 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>Registre-se ainda que, no caso de embarcações ou aeronaves es­</p><p>trangeiras de natureza privada, que estejam no território nacional ou no</p><p>espaço aéreo correspondente, é aplicável a lei penal brasileira para regular</p><p>as situações criminalmente relevantes. Com efeito, ditas embarcações</p><p>ou aeronaves privadas estão no território nacional, logo, aplica-se aí o</p><p>Princípio da Territorialidade, ainda que os sujeitos envolvidos na situação</p><p>penalmente relevante não sejam de nacionalidade brasileira</p><p>315</p><p>24.2. Fins da Pena................................................................................................... 317</p><p>24.3. Espécies dc Pena............................................................................................ 320</p><p>Capítulo XXV - Penas Privativas de Liberdade....................................................... 321</p><p>25.1. Formação do Conceito dc Pena Privativa dc Liberdade.............................. 321</p><p>25.2. Espécies dc Penas Privativas dc Liberdade.................................................. 324</p><p>25.3. Regimes dc Cumprimento da Pena Privativa dc Liberdade........................ 326</p><p>25.4. Progressão c Regressão.................................................................................. 329</p><p>25.5. Exame Criminológico.................................................................................... 332</p><p>25.6. Regime Especial para as Mulheres............................................................... 333</p><p>25.7. Trabalho do Preso.......................................................................................... 333</p><p>25.8. Remição.......................................................................................................... 335</p><p>25.9. Detração.......................................................................................................... 337</p><p>25.10. Supcrvcnicncia dc Doença Mental.............................................................. 338</p><p>25.11. Limite das Penas.......................................................................................... 339</p><p>Capítulo XXVI - Penas Restritivas de Direitos........................................................ 341</p><p>26.1. Necessidade dc Alternativas à Pena Privativa dc Liberdade....................... 341</p><p>26.2. Penas Restritivas dc Direitos......................................................................... 342</p><p>26.3. Prestação dc Serviços à Comunidade ou a Entidades Públicas................... 345</p><p>26.4. Interdição Temporária dc Direitos................................................................. 347</p><p>26.5. Limitação dc Fim dc Semana........................................................................ 350</p><p>26.6. Prestação Pecuniária...................................................................................... 351</p><p>26.7. Perda dc Bens c Valores................................................................................ 353</p><p>Capítulo XXVII - Pena de Multa............................................................................... 355</p><p>27.1. Formação do Conceito da Pena dc Multa.................................................... 355</p><p>27.2. Sistema do Dias-Multa.................................................................................. 357</p><p>27.3. Análise da Constitucionalidadc da Pena dc Multa....................................... 360</p><p>27.4. Hipóteses dc Aplicação da Pena dc Multa................................................... 361</p><p>27.5. Pagamento c Prescrição da Pena dc Multa................................................... 363</p><p>27.6. Supcrvcnicncia dc Doença Mental................................................................ 365</p><p>Procurar</p><p>ín d ic e S is tem ático</p><p>1</p><p>X V</p><p>Capítulo XXVIII - Aplicação da Pena....................................................................... 367</p><p>28.1. Apresentação do Tema................................................................................... 367</p><p>28.2. Circunstâncias Judiciais: Histórico c Fundamento......................................... 369</p><p>28.3. As Circunstâncias Judiciais no Direito Penal Atual....................................... 372</p><p>28.4. Culpabilidade.................................................................................................. 374</p><p>28.5. Antecedentes................................................................................................... 375</p><p>28.6. Conduta Social............................................................................................... 377</p><p>28.7. Personalidade.................................................................................................. 378</p><p>28.8. Motivos........................................................................................................... 379</p><p>28.9. Circunstâncias c Consequências do Crime................................................... 380</p><p>28.10. Comportamento da Vítima.......................................................................... 381</p><p>28.11. Circunstâncias Legais................................................................................... 381</p><p>28.11.1. Circunstâncias Agravantes............................................................. 383</p><p>28.11.1.1. Hipótese do Inciso I: Reincidência............................. 384</p><p>28.11.1.2. Hipótese do Inciso II, Alinca “a”...................... 385</p><p>28.11.1.3. Hipótese do Inciso II, Alinca “b”...................... 386</p><p>28.11.1.4. Hipótese do Inciso II, Alinca “c”...................... 386</p><p>28.11.1.5. Hipótese do Inciso II, Alinca “d”...................... 387</p><p>28.11.1.6. Hipótese do Inciso II, Alinca “c”...................... 387</p><p>28.11.1.7. Hipótese do Inciso II, Alinca “f” ...................... 388</p><p>28.11.1.8. Hipótese do Inciso II, Alinca “g”...................... 388</p><p>28.11.1.9. Hipótese do Inciso II, Alinca “h”...................... 389</p><p>28.11.1.10. Hipótese do Inciso II, Alínea “i” .............................. 389</p><p>28.11.1.11. Hipótese do Inciso II, Alínea “j ”............................... 389</p><p>28.11.1.12. Hipótese do Inciso II, Alinca “1” .............................. 390</p><p>28.11.2. Circunstâncias Agravantes no Concurso dc Agentes................... 390</p><p>28.11.2.1. Hipótese do Inciso 1..................................................... 391</p><p>28.11.2.2. Hipótese do Inciso I I ................................................... 391</p><p>28.11.2.3. Hipótese do Inciso III.................................................. 391</p><p>28.11.2.4. Hipótese do Inciso IV.................................................. 392</p><p>28.11.3. Circunstâncias Atenuantes............................................................. 393</p><p>28.11.3.1. Hipótese do Artigo 65, Inciso 1.................................. 393</p><p>28.11.3.2. Hipótese do Artigo 65, Inciso II ................................ 394</p><p>28.11.3.3. Hipótese do Artigo 65, Inciso III, “a” ......................... 395</p><p>28.11.3.4. Hipótese do Artigo 65, Inciso III, “b” ......................... 395</p><p>28.11.3.5. Hipótese do Artigo 65, Inciso III, “c” ......................... 395</p><p>28.11.3.6. Hipótese do Artigo 65, Inciso III, “d” ......................... 396</p><p>28.11.3.7. Hipótese do Artigo 65, Inciso III, “c” ......................... 396</p><p>28.12. Causas dc Aumento c Diminuição da Pena................................................ 397</p><p>28.13. Aplicação da Pena no Concurso dc Crimes............................................... 399</p><p>Capítulo XXIX - Incidentes na Execução da Pena Privativa de Liberdade........ 405</p><p>29.1. Objeto do Estudo........................................................................................... 405</p><p>29.2. Livramento Condicional................................................................................ 405</p><p>Procurar</p><p>X V I C urso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>29.2.1. Requisitos c Condições do Livramento Condicional...................... 407</p><p>29.2.2. Revogação do Livramento Condicional........................................... 410</p><p>29.3. Suspensão Condicional da Pena................................................................. 411</p><p>29.3.1. Requisitos do Sursis.......................................................................... 412</p><p>29.3.2. Formas Especificas dc Suspensão Condicional da Pena................. 414</p><p>29.3.3. Revogação do Sursis......................................................................... 416</p><p>29.3.4. Período dc Prova............................................................................... 418</p><p>Capítulo XXX - Efeitos da Condenação, Reabilitaçãoe</p><p>(art. 5o, §</p><p>2o, do Código Penal). Se, entretanto, estiverem no Brasil embarcações e</p><p>aeronaves estrangeiras de natureza pública, elas serão consideradas com</p><p>extensão do território de suas respectivas bandeiras, não se aplicando,</p><p>nesse caso, a lei brasileira, mas a do país da bandeira da embarcação ou</p><p>da aeronave.</p><p>6 .3 . L U G A R D O C R IM E</p><p>Para a exata aplicação da lei penal no espaço é indispensável a</p><p>determinação do lugar do crime. A importância dessa questão é crucial</p><p>porque alguns fatos penalmente relevantes têm um iter, isto é, têm uma</p><p>trajetória.10 Imagine-se o seguinte caso: em território argentino Caio sofre</p><p>um disparo de arma de fogo desferido por Paulo, que desejava produzir</p><p>sua morte. Caio, entretanto, é socorrido, atravessa a fronteira e é hospi­</p><p>talizado no Brasil. Todavia, em face dos ferimentos, Caio vem a morrer,</p><p>em território brasileiro. Esse hipotético delito teve uma trajetória, na qual</p><p>a ação se deu na Argentina e o resultado se verificou no Brasil. Surge,</p><p>portanto, o questionamento: segundo o Direito Penal brasileiro, qual é o</p><p>lugar do crime?</p><p>Três foram as teorias desenvolvidas pela dogmática penal para a</p><p>determinação do lugar do crime. A primeira é a Teoria da Ação: considera-</p><p>-se praticado o delito no local no qual se produziu ou deveria ter sido</p><p>produzida a ação, ainda que tenha sido outro o lugar do resultado.</p><p>A segunda teoria para a determinação do lugar do crime é a Teoria</p><p>do Resultado. Para ela, o lugar do crime é o lugar onde o resultado se</p><p>verificou, pouco importando o lugar no qual a ação ou omissão se deu.</p><p>A terceira teoria é a da Ubiquidade. Essa teoria amplia as possibili­</p><p>dades do lugar do crime, pois considera lugar do crime tanto o lugar no</p><p>qual se realizou a ação ou a omissão, quanto o lugar onde se realizou ou</p><p>deveria ter sido realizado o resultado.</p><p>10 ANTOLISEI, Franccsco. Manuale di Diritto Penale. Milano: Giufirc, 1997. p. 135.</p><p>Procurar</p><p>Lei Penal n o Espaço</p><p>1</p><p>9 3</p><p>O Código Penal brasileiro adotou expressamente o terceiro critério:</p><p>a Teoria da Ubiquidade, conforme a regra do artigo 6o:</p><p>“Art. 6o Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação</p><p>ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria</p><p>produzir-se o resultado.”</p><p>O gérmen da Teoria da Ubiquidade é bastante antigo. Foi na baixa</p><p>Idade Média que surgiu a discussão, decisiva para a competência penal,</p><p>sobre se o lugar do crime era o da execução da ação, chamado de inchoatio,</p><p>ou o da consumação, chamado de consumatio. Os pós-glosadores, como</p><p>Júlio Claro e Prospero Farinado, opinaram por considerar equivalentes</p><p>ambos os lugares, sendo qualquer um deles relevante para determinar o</p><p>lugar do delito.11</p><p>Quase todos os ordenamentos jurídicos ocidentais, aí incluído o</p><p>brasileiro, adotam essa teoria para a determinação do lugar do crime.</p><p>Portanto, não é necessário que a ação e o resultado ocorram num mesmo</p><p>local, para a determinação do lugar do crime, basta que se verifique um</p><p>fragmento do crime, qualquer um que seja,11 12 no Brasil, para que o crime</p><p>seja considerado como cometido no território nacional.</p><p>6 .4 . A P L IC A Ç Ã O E X T R A T E R R IT O R IA L D A LEI P E N A L</p><p>Normalmente a lei penal é direcionada a reprimir os crimes que acon­</p><p>tecem no seu território, mas em alguns casos de particular importância,</p><p>é de interesse do Estado que a lei penal estenda a sua eficácia também</p><p>a crimes cometidos em território estrangeiro.13</p><p>Isto posto, o Direito Penal brasileiro, a exemplo da significativa</p><p>maioria dos ordenamentos jurídicos no Direito comparado, prevê os</p><p>casos de aplicação da lei penal brasileira para regular os crimes pratica­</p><p>dos fora do território nacional. Registre-se que tais casos de aplicação</p><p>extraterritorial da norma penal, previstos pelo nosso Direito positivo, são</p><p>11 BATAGLINI, Giulio. Introduzione alio Studio dcl Diritto Penale. Milano: Vita c Pcn-</p><p>sicro, 1923. p. 66.</p><p>12 PAGLIARO, Antonio. Sommario dei Diritto Penale Italiano. Milano: Giufírc, 2001. p.</p><p>108.</p><p>15 PETROCELLI, Bagio. Principi di Diritto Penale. Nápoles: Eugênio Jovcnc, 1950. v. I,</p><p>p. 158.</p><p>Procurar</p><p>9 4 | C urso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>sempre alicerçados em princípios penais de valor universal, cultivados</p><p>pela dogmática dos mais diversos países.</p><p>As hipóteses de aplicação extraterritorial da lei penal são reunidas,</p><p>segundo o Código Penal brasileiro, em dois subgrupos: de um lado, estão</p><p>previstos os casos de aplicação extraterritorial incondicionada da lei penal</p><p>brasileira, para regular os delitos praticados fora do território nacional; de</p><p>outro lado, estão previstas as hipóteses de aplicação extraterritorial da lei</p><p>penal condicionada aos requisitos dados pelo próprio Código.</p><p>6 .4 .1 . H ip ó te s e s d e E x tr a te r r i to r ia l id a d e In c o n d ic io n a d a</p><p>Nos casos de extraterritorialidade incondicionada, o simples come-</p><p>timento de um delito que se enquadre nas hipóteses abaixo mencionadas</p><p>faz com que a lei brasileira se declare competente para processá-lo e</p><p>julgá-lo. Não há qualquer espécie de restrição; aplica-se, pois, a lei bra­</p><p>sileira, mesmo que o crime tenha sido cometido em território estrangeiro</p><p>ou ainda quando o sujeito tenha sido já julgado no exterior, quer tenha</p><p>havido uma absolvição, quer tenha havido uma condenação. Essas hipó­</p><p>teses são esteadas em dois princípios: o Princípio da Defesa ou Real e</p><p>o Princípio da Justiça Penal Universal, este último aplicado ao delito de</p><p>Genocídio.</p><p>6.4.7.7. Princípio da Defesa ou Real</p><p>O Princípio da Defesa ou Real, em contraste com o Princípio da</p><p>Territorialidade, não se baseia no lugar de cometimento do delito para</p><p>determinar a lei aplicável ao seu processo e julgamento, mas se alicerça</p><p>na natureza do bem jurídico protegido. Segundo Jiménez de Asúa, ao</p><p>longo da história do Direito Penal, tomando em conta os mais diversos</p><p>ordenamentos jurídicos, é possível comprovar uma reação penal dos</p><p>diferentes países, em face de alguns crimes que ameaçavam sua própria</p><p>segurança, interna e extema, mesmo quando essas ações eram preparadas</p><p>e consumadas fora do território nacional.14</p><p>Destarte, no Princípio da Defesa, considera-se que o bem jurídico</p><p>violado pelo crime é diretamente ligado à existência do Estado, porque a * II,</p><p>14 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Losada, 1950. t.</p><p>II, p. 762.</p><p>Procurar</p><p>Lei Penal n o Espaço</p><p>i</p><p>95</p><p>sua conservação é tida como um interesse vital da própria nação. Nesta</p><p>toada, explicando o fundamento do Princípio da Defesa, Mezger afirma</p><p>que “alguns interesses nacionais devem ser protegidos penalmente, sem</p><p>que seja levado em conta o lugar da realização da ação que os lesiona,</p><p>portanto, também quando a ação se realiza no estrangeiro”.15 Por conse­</p><p>guinte, no Princípio da Defesa, considera-se que o bem jurídico atingido</p><p>pelo crime deve gozar de proteção absoluta,16 estendida a qualquer ponto</p><p>territorial, ainda que fora das fronteiras nacionais.</p><p>Em síntese: o princípio da defesa supõe o abandono de critérios</p><p>geográficos ou personalistas17 em face de o delito ofender diretamente o</p><p>Estado na sua personalidade ou nas suas funções.18</p><p>Com base no Princípio da Defesa, aplica-se a lei penal brasileira</p><p>incondicionadamente para regular os seguintes delitos, ainda que sejam</p><p>praticados em território estrangeiro (art. 7°, I, alíneas “a”, “b” e “c”):</p><p>Ia) crimes contra a vida ou liberdade do presidente da república;</p><p>2a) crimes contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito</p><p>Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa</p><p>pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação</p><p>instituída pelo poder público;</p><p>3a) crimes contra a administração pública, por quem está a seu</p><p>serviço.</p><p>6.4.1.2. Princípio da Justiça Penal Universal Aplicado ao Genocídio</p><p>O Princípio da Justiça Penal Universal, que também é chamado de</p><p>Sistema da Administração da Justiça Mundial,19 fundamenta aplicação</p><p>15 Tradução livre dc: “Gewisse inlãndische Inleressen</p><p>sollen strafrechlich geschiitzt sein.</p><p>gleichgiiltig, wo die verletzende Handlung bengangen wurd, d. h. Auch darm, wenn sie im</p><p>Ausland vollzogen ist." MEZGER, Edmund. Strafrecht. Ein Lehrbuch. Bcrlin: Dunckcr</p><p>u. Humblot, 1949. p. 59.</p><p>16 BRUNO, Aníbal. Direito PenaL Rio dc Janeiro: Editora Nacional dc Direito, 1956. t. I,</p><p>p. 236.</p><p>17 LANDROVE DÍAZ, Gcrardo. Introducción al Derecho Penal EspahoL Madrid: Tccnos,</p><p>1997. p. 128.</p><p>18 Expressão retirada dc PETROCELLI, Bagio. Principi di Diritto Penale. Nápoles: Eugcnio</p><p>Jovcnc. 1950. v. I, p. 158.</p><p>19 Tradução livre da expressão alemã: System der Weltrechtspljiege. In: MEZGER, Edmund.</p><p>Strafrecht. Ein Lehrbuch. Bcrlin: Dunckcr u. Humblot, 1949. p. 60.</p><p>Procurar</p><p>96 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>extraterritorial da lei penal na significação internacional de determinados</p><p>delitos.20</p><p>Jiménez de Asúa anota que, nos idos iniciais do Direito Internacio­</p><p>nal, Hugo Grocio defendeu que cada Estado, a título de representante da</p><p>comunidade internacional civilizada, tem o direito e o dever de exercitar</p><p>a justiça repressiva contra os delinquentes, para todos os crimes, sem</p><p>se dar importância ao lugar de realização do ilícito.21 Como visto, a</p><p>internacionalização da jurisdição penal tem seu gérmen em um passado</p><p>longínquo, fundamentada na ideia de retribuição: ao mal do crime cor­</p><p>responde o mal da pena. Assim, seria papel de todo Estado civilizado</p><p>não deixar o crime sem punição.</p><p>Todavia, a noção de soberania, cunhada para fundamentar o Estado</p><p>da Idade Moderna - e hoje tão mitigada em face da globalização - re-</p><p>lativizou o Princípio da Justiça Penal Universal de modo a possibilitar</p><p>sua mudança conceituai.</p><p>Nos dias atuais, o Princípio da Justiça Penal Universal fundamenta a</p><p>aplicação extraterritorial da lei penal em face da significação que o delito</p><p>tem para a Ordem Jurídica Internacional. Na lei brasileira esse Princípio</p><p>fundamenta duas hipóteses de aplicação extraterritorial da lei penal, mas</p><p>apenas uma - a que tem significação mais danosa à ordem jurídica in­</p><p>ternacional - é caso de extraterritorialidade incondicionada. Esse caso é</p><p>a prática de crime de Genocídio, quando o sujeito ativo é brasileiro ou</p><p>domiciliado no Brasil.</p><p>O Genocídio é um crime contra a Humanidade. Seu surgimento se</p><p>deu em face do nazismo alemão, o qual patrocinou o extermínio de gru­</p><p>pos humanos (judeus, ciganos, dentre outros), fato de triste memória, que</p><p>manchou a história mundial. A Convenção Internacional que reprime o</p><p>Genocídio e o aponta como um crime contra a Humanidade foi patrocinada</p><p>pela ONU, em 1948, e foi ratificada pelo Brasil em 15 de abril de 1952.</p><p>Atualmente, o crime de Genocídio é um dos delitos de competência do</p><p>Direito Internacional Penal, consoante o Tratado de Roma de 1988.</p><p>Tomando como ponto de partida o Ordenamento Jurídico brasilei­</p><p>ro, o crime de Genocídio tem sua definição dada no artigo Io da Lei n.</p><p>2.889/56. Comete esse delito quem, com a intenção de destruir, no todo ou</p><p>:a Cf. MEZGER, Edmund. Strafrecht. Ein Lehrbuch. Bcrlin: Dunckcr u. Humblot, 1949.</p><p>p. 60.</p><p>:l JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Losada, 1950. t.</p><p>n, p. 764.</p><p>Procurar</p><p>Lei Penal n o Espaço</p><p>i</p><p>9 7</p><p>em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso praticar as seguintes</p><p>condutas: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade</p><p>física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o</p><p>grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição</p><p>física total ou parcial; d) adotar medidas para impedir os nascimentos</p><p>no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo</p><p>para outro grupo.</p><p>Se o sujeito ativo do crime de Genocídio for brasileiro ou domiciliado</p><p>no Brasil, aplica-se incondicionalmente a lei penal brasileira, ainda que</p><p>o crime tenha sido praticado fora do território nacional.</p><p>6 .4 .2 . H ip ó te s e s d e E x tr a te r r i to r ia l id a d e C o n d ic io n a d a</p><p>A lei penal brasileira, fundamentada nos Princípios da Nacionalida­</p><p>de, da Bandeira e da Justiça Penal Universal, também pode ser aplicada</p><p>para regular os crimes cometidos fora do território nacional se estiverem</p><p>reunidas todas as seguintes circunstâncias (art. 7o, § 2o, do Código Pe­</p><p>nal): a) ter o agente entrado no território nacional; b) ser o fato punível</p><p>também no país em que foi praticado; c) estar o crime incluído entre</p><p>aqueles que o Brasil autoriza a extradição; d) não ter sido o agente ab­</p><p>solvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido pena; e) não ter sido o</p><p>agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a</p><p>punibilidade, segundo a lei mais favorável.</p><p>6.4.2.1. Princípio da Justiça Penal Universal</p><p>O Princípio da Justiça Penal Universal teve origem nas concepções</p><p>jusnaturalistas dos teólogos e Juristas dos séculos XVI e XVII, especial­</p><p>mente Covarrubias e Suárez, que inspiraram Grocio, que considerava</p><p>os crimes violações ao Direito Natural que regia a sociedade humana.22</p><p>Por isso, nenhum Estado podería permitir a impunidade. Na atualidade</p><p>o fundamento desse princípio é o interesse da comunidade internacional</p><p>em perseguir delitos que violem interesses reconhecidos por ela. Nesses</p><p>casos a repressão do crime é feita por qualquer país, já que todos são</p><p>" CEREZO MIR, Josó. Curso de Derecho Penal Espano). Madrid: Tccnos, 1993. p.</p><p>207.</p><p>Procurar</p><p>9 8 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>interessados naquela punição, por serem membros da comunidade inter­</p><p>nacional.23</p><p>O primeiro caso de extraterritorialidade condicionada de que trata o</p><p>Código Penal é embasado no princípio da Justiça Penal Universal. Conforme</p><p>dito, o delito pode ter uma significação internacional e essa significação</p><p>tem uma graduação valorativa. O Código Penal entendeu ser a mais grave</p><p>forma de violação do Princípio em tela a prática do crime de Genocídio,</p><p>que é caso de aplicação incondicionada da lei penal brasileira, se o agente</p><p>for brasileiro ou domiciliado no Brasil. Mas há uma segunda forma de</p><p>violar esse referido Princípio, esta menos grave em face da valoração do</p><p>Código, que importará a aplicação extraterritorial condicionada à presença</p><p>concorrente dos requisitos expressos no parágrafo 2o do artigo T do di­</p><p>ploma penal. Tal caso é a prática de crimes que por tratado ou convenção</p><p>internacional o Brasil se obrigou a reprimir (art. 7o, II, “a”).</p><p>6A.2.2. Princípio da Nacionalidade</p><p>Por este princípio, a lei penal é aplicada em face da pertença do</p><p>sujeito a uma nação, isto é, de sua nacionalidade, por isso ele também é</p><p>chamado de Princípio da Personalidade. Segundo Mezger, “o Princípio da</p><p>Personalidade se deduz da relação de fidelidade, que obriga o súdito de</p><p>um Estado, ainda quando ele se encontre em território estrangeiro”.24</p><p>A história do Direito Penal registra que este já foi o mais importante</p><p>princípio para a determinação do Direito Penal aplicável. Com efeito, na</p><p>baixa Idade Média se exigia que a lei penal fosse pessoal: quilibet est</p><p>subditus legibuspatriae suae et extra territorium.2- Este princípio significa</p><p>que se uma pessoa é vinculada a um território, a lei desse território se</p><p>lhe é aplicada, na sua pátria ou fora dela. Somente a partir da Revolução</p><p>Francesa este Princípio cedeu lugar à Territorialidade, que passou a ser</p><p>a regra geral para a aplicação espacial da lei penal.26</p><p>:J MUNOZ CONDE, Francisco; GARCIA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal - Parle General.</p><p>Valcncia: Tirant lo Blanch, 1998. p. 176.</p><p>:4 Tradução livre dc: “Das Personalprinzip erkldrt sich aus dem besonderen Treuverhàltins.</p><p>das den |Inlànder auch im Auslande mil dem Inlande verbindet." MEZGER, Edmund.</p><p>Strafrecht. Ein Lehrbuch. Bcrlin: Dunckcr u. Humblot. 1949. p. 58.</p><p>:} BATAGLINI, Giulio. Introduzione alio Studio dei Diritto Penale. Milano: Vita c Pcn-</p><p>sicro, 1923. p. 66.</p><p>:6 Interessante registrar a critica que Tobias Barreto fez ao Princípio da Personalidade: “A</p><p>lei natural da divisão do trabalho também</p><p>regula a existência c desenvolvimento dos Es-</p><p>Procurar</p><p>Lei Penal n o Espaço</p><p>i</p><p>99</p><p>Essa relação que vincula o sujeito nacional com seu Estado é ana­</p><p>lisada sob dois ângulos, o que origina dois subprincípios: o Princípio da</p><p>Nacionalidade Ativa e o Princípio da Nacionalidade Passiva.</p><p>Pelo Princípio da Nacionalidade Ativa o Estado tem legitimidade para</p><p>aplicar a sua lei penal ao seu cidadão que pratica um crime, ainda que</p><p>essa prática se dê fora das suas fronteiras. O Código Penal consagrou este</p><p>Princípio como uma das formas de aplicação extraterritorial condicionada</p><p>da lei penal (art. 7o, II, “b”). Cerezo Mir aponta uma razão prática para</p><p>que a nacionalidade ativa esteja consagrada na maioria dos Códigos Penais:</p><p>quase todos os países não concedem a extradição de seus nacionais que</p><p>cometeram um delito no estrangeiro e a impunidade, nesse caso, seria</p><p>uma violação a todos os princípios do Direito, um verdadeiro escândalo.* 27</p><p>Como a Constituição Federal de 1988 proíbe a extradição de cidadãos</p><p>brasileiros, a consagração deste princípio evita a impunidade quando um</p><p>nacional pratica um delito no exterior e se refugia no Brasil.</p><p>Pelo Princípio da Nacionalidade Passiva o Estado se julga competente</p><p>para aplicar sua lei penal sempre que o crime seja praticado contra seus</p><p>nacionais. Este princípio também foi adotado como uma das causas de</p><p>aplicação extraterritorial condicionada da lei penal. Todavia, para essa hi­</p><p>pótese, além dos requisitos gerais - que estabelecem, dentre outras coisas,</p><p>a necessidade de estar o agente no território nacional - exige-se também</p><p>um dos seguintes requisitos adicionais: Io) a extradição do sujeito ativo</p><p>não ter sido pedida ao Brasil por algum país ou, caso tenha sido pedida,</p><p>ter sido negada; 2o) haver uma requisição do Ministro da Justiça para a</p><p>persecução penal do agente (art. 7o, § 3o, do Código Penal).</p><p>6A.2.3. Princípio do Pavilhão ou da Bandeira</p><p>As embarcações ou aeronaves, por disposição normativa, devem</p><p>indicar a bandeira do Estado no qual são registradas. O Princípio do Pa­</p><p>vilhão ou da Bandeira considera como competente o Estado que registrou</p><p>tados. O principio da territorialidade 6 o que mais se conforma com essa lei. Um direito</p><p>penal universal, que 6 pressuposto dc todas as conjecturas c fantasias dos criminalistas</p><p>propugnadores dc um alargamento do principio da personalidade, 6 uma coisa impossí­</p><p>vel no estado atual do mundo culto”. Comentário Teórico c Critico ao Código Criminal</p><p>Brasileiro. Estudos de Direito II. Rio dc Janeiro: Rccord, 1991. p. 179.</p><p>27 CEREZO MIR, Josó. Curso de Derecho Penal Espanol. Madrid: Tccnos, 1993. p.</p><p>201.</p><p>Procurar</p><p>100 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>a embarcação ou a aeronave para aplicar a sua lei penal. Na definição de</p><p>Marques da Silva, o Princípio da Bandeira determina que “o Estado em</p><p>que está registrado navio ou aeronave pode sujeitar ao seu poder punitivo</p><p>as infracções cometidas a bordo, ainda que o fato tenha sido cometido</p><p>por um estrangeiro (...)”.28</p><p>No Código Penal pátrio esse princípio foi adotado subsidiariamente,</p><p>pois quando uma embarcação ou aeronave privada de bandeira brasileira</p><p>ingressa em águas territoriais de outro país ou em seu espaço aéreo, estão</p><p>submetidas à jurisdição dele.29 Somente quando não forem ali julgadas é</p><p>que se aplicará a lei brasileira.</p><p>É importante enfatizar que se a embarcação ou aeronave privada de</p><p>bandeira brasileira se encontra em alto-mar ou no espaço aéreo correspon­</p><p>dente, aplica-se sempre a norma penal pátria, porque serão considerados</p><p>como extensão do território nacional. Isto posto, o Código Penal somente</p><p>adotou o Princípio da Bandeira quando forem praticados crimes a bordo</p><p>de navios ou aeronaves brasileiras, que estejam em território estrangeiro</p><p>e não tenham sido ali julgadas (art. 7o, II, “c”, do Código Penal).</p><p>MARQUES DA SILVA, Germano. Direito Penal Português. Lisboa: Verbo. t. I, p.</p><p>283.</p><p>N Solcr chama esse sistema de solução dc doutrina inglesa, in verbis: “En cuanto a las</p><p>naves privadas, los crimenes cometidos (...) cuando este penetra en aguas juridicionales</p><p>de otro Estado, queda la nave sometida a la ley de este. Nuestro pais sigue la llamada</p><p>doctrina inglesa." SOLER, Scbastián. Derecho Penal Argentino. Buenos Aires: TEA,</p><p>1992. v. I, p. 197.</p><p>Procurar</p><p>LEI P E N A L C O M R E LA Ç Ã O À S P E SSO A S</p><p>7 .1 . IN T R O D U Ç Ã O</p><p>O mundo antigo não conhecia a igualdade entre as pessoas. Em</p><p>face disso, o Direito Penal não era aplicado a todos da mesma forma.</p><p>Reconheciam-se, portanto, privilégios pessoais. Para comprovar esse fato,</p><p>traga-se à colação o exemplo do Direito Romano, que distinguia os hones-</p><p>tiores dos humiliores e determinava sanções penais diferentes, segundo a</p><p>categoria a que o sujeito fizesse parte.' Registre-se, ainda, que o Direito</p><p>Romano previa a exclusão da aplicação da lei penal para o magistrado</p><p>supremo. Dizia-se que o fundamento do Direito Penal estava no poder</p><p>de coação dos magistrados e, por isso, o magistrado supremo não estava</p><p>submetido a tal poder.1 2</p><p>Com o suporte da tradição do Direito Romano, os reis, os príncipes,</p><p>e, na Idade Média, os senhores feudais, que monopolizavam o Direito,</p><p>fizeram proclamar que eles estavam subtraídos da esfera penal. Somente</p><p>com o advento da Revolução Francesa, houve uma renovação ideológica</p><p>das antigas concepções jurídicas e se proclamou o princípio da igualdade</p><p>perante a lei.3 A partir daí começam a cessar, nos diversos ordenamentos,</p><p>os privilégios pessoais que excluíam determinados sujeitos do Direito</p><p>Penal.</p><p>1 BATAGLINI, Giulio. Introduzione alio Studio dei Diritto Penale. Milano: Vita ct Pcn-</p><p>sicro, 1923. p. 95.</p><p>2 MOMMSEN, Tcodoro. El Derecho Penal Romano. Madrid: Espana Moderna, 1898. p.</p><p>92.</p><p>POLAINO NAVARRETE, Miguel. Derecho Penal. Parte General. Barcelona: Bosch,</p><p>1983. t. I, p. 505.</p><p>r</p><p>1 0 2 i Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>Historicamente, portanto, concediam-se privilégios em face da perten­</p><p>ça da pessoa à classe na nobreza, podendo-se até mesmo subtrair alguém</p><p>da esfera da aplicação da lei penal em face dessa pertença.</p><p>Noticiado o tratamento pretérito do objeto de estudo - a lei penal</p><p>quanto às pessoas - passemos ao Direito pátrio.</p><p>No Direito Penal brasileiro, a lei penal é imputada, em regra, a to­</p><p>dos os que estão no território nacional. Todavia, o próprio Direito prevê</p><p>algumas hipóteses de não aplicação da lei penal em face de condições</p><p>pessoais, que são chamadas de imunidades. De início, registre-se que o</p><p>fundamento da imunidade não reside nas pessoas em si, mas na necessidade</p><p>de outorgar proteção específica a determinadas funções a determinadas</p><p>instituições.4</p><p>As imunidades, portanto, são obstáculos à aplicação da lei penal, por</p><p>conta do reconhecimento jurídico da relevância de uma qualidade pessoal</p><p>do sujeito, em face da função que ocupa ou em face da instituição que</p><p>representa.</p><p>Há de ser questionado se as imunidades são compatíveis com o prin­</p><p>cípio constitucional da igualdade de todos perante a lei.5 Tal pergunta não</p><p>é recente e já foi respondida há muito. Porque o Principio da Igualdade</p><p>não significa identidade absoluta de todas as pessoas, isto é, ausência de</p><p>diferenças, mas significa a paridade jurídica, não há contrariedade entre</p><p>ele e as imunidades.</p><p>Dita paridade importa o tratamento semelhante, em face das mesmas</p><p>condições e capacidades pessoais.6 Não podem, portanto, ser tratados como</p><p>iguais os desiguais. Isso significa que todos que têm as condições pessoais</p><p>requeridas pelas diferentes imunidades podem gozar delas paritariamente,</p><p>o que não fere, como dito, o Princípio da Igualdade. Veja-se um exemplo:</p><p>há a imunidade substancial dos parlamentares por suas opiniões, palavras</p><p>e votos. Só seria ferido o Princípio da Igualdade se se reconhecesse a</p><p>imunidade a um vereador por uma opinião proferida no exercício do</p><p>4 MUNOZ CONDE, Francisco; GARCIA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal. Parte General.</p><p>Valcncia: Tirant lo</p><p>Blanch, 1998. p. 192.</p><p>5 Esse principio está insculpido no art. 5o da Constituição Federal de 1988: “Art. 5o Todos</p><p>são iguais perante a lei, sem distinção dc qualquer natureza, garantindo-sc aos brasileiros</p><p>c aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à</p><p>igualdade, à segurança c à propriedade, nos termos seguintes; (...)”</p><p>* BATAGLINI, Giulio. Introduzione alio Studio dei Diritto Penale. Milano; Vita et Pcn-</p><p>sicro, 1923. p. 95-96.</p><p>Procurar</p><p>Lei P ena l c o m R elação às Pessoas</p><p>1</p><p>1 0 3</p><p>seu mandato e não se reconhecesse a imunidade de outro, nas mesmas</p><p>circunstâncias. Como visto, a igualdade precisa ser observada no âmbito</p><p>da paridade jurídica, o que não significa a ausência de diferenças.</p><p>Superada a questão da igualdade, consigne-se que as imunidades</p><p>podem ser classificadas em duas espécies: de um lado está a imunida­</p><p>de substancial e, de outro, estão as imunidades formais. Na primeira</p><p>espécie - imunidade substancial - que também pode ser chamada de</p><p>inviolabilidade,7 há uma causa pessoal de exclusão de pena. No segundo</p><p>caso - imunidades formais - o crime subsiste, mas existe um obstáculo</p><p>à sua persecução penal, isto é, existe um impedimento à instauração do</p><p>processo penal.</p><p>7 .2 . IM U N ID A D E S S U B S T A N C IA IS</p><p>A imunidade substancial é um obstáculo incontomável à aplicação</p><p>da lei penal, assim, qualquer conduta que for cometida sob a sua égide</p><p>não se torna punível pela lei penal, por força de uma inviolabilidade</p><p>constitucional.</p><p>A imunidade substancial é baseada, enfatize-se, em previsão consti­</p><p>tucional. Ela só se dá no caso do exercício da atividade parlamentar, isto</p><p>é, ela só acontece no âmbito do exercício de um mandato legislativo e</p><p>tem como consequência a isenção de qualquer responsabilidade penal por</p><p>opiniões, palavras ou votos, que sejam exarados no exercício da atividade</p><p>parlamentar. Assim dispõe a Constituição Federal de 1988:</p><p>“Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente,</p><p>por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.”</p><p>Os deputados estaduais também têm a inviolabilidade garantida pelo</p><p>artigo 27 da Constituição Federal:</p><p>“Art. 27. O número de Deputados à Assembléia Legislativa corresponderá</p><p>ao triplo da representação do Estado na Câmara dos Deputados e, atingi­</p><p>do o número de trinta e seis, será acrescido de tantos quantos forem os</p><p>Deputados Federais acima de doze.</p><p>7 Vocábulo utilizado pela Constituição Federal dc 1988, no art. 53. Ver também essa no­</p><p>menclatura na doutrina estrangeira, sobretudo na doutrina espanhola, por exemplo: CAR-</p><p>BONELL MATEU, Juan Carlos. Derecho Penal: conccpto y princípios constitucionalcs.</p><p>Valcncia: Tirant lo Blanch, 1999. p. 188.</p><p>Procurar</p><p>1 0 4 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>§ Io Será de quatro anos o mandato dos Deputados Estaduais, aplicando-</p><p>se-lhes as regras desta Constituição sobre sistema eleitoral, inviolabilida­</p><p>de, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e</p><p>incorporação às Forças Armadas.”</p><p>A mesma regra da inviolabilidade se estende aos Vereadores, que</p><p>exercem o mandato parlamentar no âmbito municipal, por força de outro</p><p>artigo da Constituição:</p><p>“Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos,</p><p>com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos</p><p>membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios</p><p>estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e</p><p>os seguintes preceitos: (...)</p><p>VIII - inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos</p><p>no exercício do mandato e na circunscrição do Municipio.”</p><p>Assim, para exemplificar, veja-se o que se segue.</p><p>Quando alguém ofende a dignidade ou o decoro de uma pessoa,</p><p>proferindo palavras injuriosas, realiza uma conduta típica, porque dita</p><p>conduta é enquadrada em uma lei penal. Com efeito, estabelece o Código</p><p>Penal o crime de Injúria, previsto no artigo 140, que dispõe:</p><p>“Art. 140. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:</p><p>Pena - detenção de um a seis meses, ou multa.”</p><p>Pois bem, se um parlamentar, por exemplo, na discussão de um pro­</p><p>jeto de lei, para sustentar sua opinião contrária à aprovação do projeto,</p><p>ofender a dignidade ou o decoro de alguém, sua conduta, embora esteja</p><p>adequada à lei penal (mais precisamente, ao crime de injúria), não será</p><p>considerada como punível porque haverá um obstáculo constitucional à</p><p>aplicação da referida punição, classificado dogmaticamente como uma</p><p>causa pessoal de isenção de pena*</p><p>A imunidade substancial é fundamentada no imperativo de proteção</p><p>da função legislativa. Parafaseando Munoz Conde e Garcia Arán, pretende- 8</p><p>8 PRADO, Luiz Rcgis. Curso de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2004. v. 1, p.</p><p>197. BRUNO, Anibal. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2003. t. 1, p. 152. FRA­</p><p>GOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Parte Geral. Rio dc Janeiro: Forense,</p><p>2004. p. 154.</p><p>Procurar</p><p>Lei P ena l c o m R elação às Pessoas</p><p>i</p><p>105</p><p>-se com ela que os parlamentares possam se manifestar, com absoluta</p><p>liberdade, qualquer opinião, sem o temor de se verem submetidos a um</p><p>processo penal em face dos seus posicionamentos.9</p><p>Essa imunidade foi construída há muito. Havia a necessidade de pro­</p><p>teger os primeiros parlamentares frente à intromissão de outros poderes,</p><p>sobretudo, das interferências do monarca. Por isso, deve-se registrar, seu</p><p>reconhecimento é muito antigo; consta, por exemplo, no Bill o f Rights</p><p>inglês, datado do século XVII, a garantia da liberdade de expressão e</p><p>discussão parlamentar, que era imune à apreciação de outros poderes.</p><p>A imunidade substancial tem por principal característica sua irrenun-</p><p>ciabilidade. Não é possível nem à casa legislativa a que o sujeito é vin­</p><p>culado, nem tampouco ao próprio sujeito, afastá-la. Isso se dá porque não</p><p>é punível uma conduta coberta pelo manto da imunidade substancial, não</p><p>sendo seu autor objeto do juízo de reprovação que ensejaria a pena.</p><p>7 .3 . IM U N ID A D E S F O R M A IS</p><p>Nas imunidades formais as condutas são consideradas como típicas,</p><p>isto é, são consideradas como adequadas a um tipo penal; antijurídicas,</p><p>ou seja, contrárias ao Direito; e também culpáveis, isto é, seu autor é</p><p>censurado pelo ordenamento jurídico por ter realizado a conduta típica e</p><p>antijurídica. Todavia, não se aplica a lei penal em face de uma especial</p><p>condição que impede o procedimento penal;10 11 são essas imunidades,</p><p>portanto, causas que impedem a impetração de uma ação penal e do con­</p><p>sequente processo. Por isso, essas imunidades também são chamadas de</p><p>“privilégios de direito processual penal”.11 Sobre o assunto, é conclusiva</p><p>a lição de Mezger: “Os casos que originariamente se consideram como</p><p>restrições pessoais à validade do Direito de Punir são, de fato, obstáculos</p><p>processuais. Deixam intactos o caráter do injusto e a culpabilidade do</p><p>fato.”12</p><p>9 MUÍtoZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal. Parte General.</p><p>Valencia: Tirant lo Blanch, 1998. p. 194.</p><p>10 BATAGLINI, Giulio. Introduzione alio Studio dei Diritto Penale. Milano; Vita et Pcn-</p><p>sicro, 1923. p. 96.</p><p>11 BATAGLINI, Giulio. Introduzione alio Studio dei Diritto Penale. Milano: Vita et Pcn-</p><p>sicro, 1923. p. 102.</p><p>12 Tradução livre dc: “Die iiblicherweise ais persônliche Geltungsbeschrãnkungen des Strafrechls</p><p>verstandenen Fãlle sind in Wahrheit Prozeflhindemisse. Sie lassen das Unrecht und die</p><p>Schuld der Tat unberührt". MEZGER, Edmund. Strafrecht Bcrlin: Dunckcr u. Humblot</p><p>Procurar</p><p>106 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>Diferentemente da imunidade substancial, não há na imunidade for­</p><p>mal uma impossibilidade absoluta de aplicação da lei penal, mas uma</p><p>impossibilidade relativa. Como a imunidade formal representa apenas</p><p>um obstáculo processual, se ele for retirado se aplica normalmente a lei</p><p>penal. Os casos de imunidade formal são os seguintes: Io) imunidades</p><p>diplomáticas; 2o) imunidades consulares;</p><p>e 3o) imunidades parlamentares,</p><p>para fatos não vinculados ao exercício do mandato, após a manifestação</p><p>da casa legislativa a que pertence o parlamentar.</p><p>7 .3 .1 . Im u n id a d e s D ip lo m á tic a s</p><p>As imunidades diplomáticas são previstas em uma norma de Direito</p><p>Internacional: a Convenção de Viena para Relações Diplomáticas, que foi</p><p>patrocinada pelas Nações Unidas e ratificada há muito pelo Brasil, desde</p><p>08 de junho de 1965, através do Decreto n. 56.435.</p><p>Segundo o que consta do preâmbulo da própria Convenção de Viena,</p><p>a finalidade da imunidade não é beneficiar indivíduos, mas sim garantir</p><p>o desempenho eficaz da função de uma missão que representa um deter­</p><p>minado país em outro.13</p><p>Os diplomatas são emissários de um Estado que exercem uma tripla</p><p>função. A primeira é a de representação, a segunda é a de negociação e</p><p>a terceira é a de informação.14 Como os diplomatas são emissários que</p><p>1949. p. 73. Neste mesmo sentido, POLAINO NAVARRETE, Miguel. Derecho Penal.</p><p>Parte General. Barcelona: Bosch, 1983. t. I, p. 506.</p><p>IJ Eis o que dispõe, in verbis, a Convenção dc Viena: “Os Estados-Partcs na presente</p><p>Convenção, Considerando que, desde tempos remotos, os povos de todas as nações tem</p><p>reconhecido a condição dos agentes diplomáticos; Conscientes dos propósitos c princípios</p><p>da Carta das Nações Unidas relativos à igualdade soberana dos Estados, à manutenção</p><p>da paz c da segurança internacional c ao desenvolvimento das relações dc amizade entre</p><p>as nações; Estimando que uma convenção internacional sobre relações, privilógios c</p><p>imunidadcs diplomáticas contribuirá para o desenvolvimento dc relações amistosas entre</p><p>as nações, indcpcndcntcmcntc da diversidade dos seus regimes constitucionais c sociais;</p><p>Reconhecendo que a finalidade dc tais privilégios c imunidadcs não c beneficiar indivíduos,</p><p>mas, sim, a dc garantir o eficaz desempenho das funções das missões diplomáticas, cm</p><p>seu caráter dc representantes dos Estados; (...)</p><p>Convieram no seguinte: (...)”</p><p>14 Sobre essa tríplice função, que sintetiza a atuação do diplomata no exterior, vcja-sc o</p><p>que declara a embaixada brasileira cm Ottawa - Canadá: “As tarefas do diplomata estão</p><p>sintetizadas no trinômio clássico: ‘informar, representar, negociar’. O diplomata deve</p><p>manter o seu país informado sobre o cenário internacional, deve trabalhar continuamcntc</p><p>para marcar a presença c difundir a imagem dc seu país no exterior, c deve estar pre­</p><p>Procurar</p><p>Lei P ena l c o m R elação às Pessoas</p><p>1</p><p>107</p><p>agem em nome de um determinado país, é característica dessa função a</p><p>oficialidade. Isto é, só gozam da condição de diplomata aqueles que têm</p><p>investidura oficial nessa função.15</p><p>Porque os diplomatas são emissários de um Estado, eles são enviados</p><p>no âmbito de uma missão. A definição de missão diplomática é normativa,</p><p>estando presente no art. 2° da Convenção de Viena:</p><p>“Art. 2o O estabelecimento de relações diplomáticas entre Estados e o</p><p>envio de missões diplomáticas permanente efetua-se por consentimento</p><p>mútuo.”</p><p>Por conta do exercício de suas funções, os diplomatas gozam de</p><p>imunidade de jurisdição penal.16 Deve-se ressaltar que essa imunidade é</p><p>o reflexo de uma antiquíssima tradição jurídica: Hugo Grocio afirma que</p><p>se tratavam os emissários diplomáticos como pessoas extraterritoriais, su­</p><p>jeitos apenas ao Direito do país que o enviou.17 As normas internacionais</p><p>sobre a matéria, também registre-se, foram iniciadas desde o século XIX:</p><p>em 1895 houve uma assembléia do Instituto de Direito Internacional, em</p><p>Cambridge, que votou um regulamento de imunidades diplomáticas, que</p><p>mais tarde deu suporte à Convenção de Havana, de 1928.18 Como visto,</p><p>a vigente Convenção de Viena é herdeira de uma rica tradição, que ainda</p><p>continua a ter significativo eco nos dias atuais.</p><p>Deste modo, caso algum diplomata cometa um crime, não está ele,</p><p>em princípio, sujeito à jurisdição penal do país em que foi praticado o</p><p>delito, não se lhe aplicando a regra geral da territorialidade. Todavia,</p><p>deve-se ressaltar, existe uma grande diferença entre essa imunidade e a</p><p>imunidade substancial. Enquanto na imunidade substancial não chega a</p><p>parado para defender os interesses nacionais cm negociações externas dc caráter bila­</p><p>teral ou multilatcral.” http://www.brascmbottawa.org/prt/diplomacia/indcx.html (Acesso</p><p>cm 02.08.2007). Rcgistrc-sc que tal sintese está cm sintonia com a norma do art. 3o da</p><p>Convenção dc Viena sobre Relações Diplomáticas.</p><p>15 Dispõe o art. Io, “d”, da Convenção dc Viena sobre Relações Diplomáticas: “d) ‘membros</p><p>do pessoal diplomático’ são os membros do pessoal da missão que tiverem a qualidade</p><p>dc diplomata”.</p><p>16 Dispõe o art. 31 da Convenção dc Viena: “Art. 31. O agente diplomático gozará dc</p><p>imunidade dc jurisdição penal do Estado acreditado. (...)”</p><p>17 Cf. BATAGLINI, Giulio. Introduzione alio Studio dei Diritto Penale. Milano: Vita et</p><p>Pcnsicro, 1923. p. 105.</p><p>18 ROSAL, Juan dcl. Derecho PenaL Valladolid: Univcrsidad dc Valladolid, 1953. p. 261.</p><p>Procurar</p><p>http://www.brascmbottawa.org/prt/diplomacia/indcx.html</p><p>108 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>existir a possibilidade de aplicação de uma pena, por conta de um obs­</p><p>táculo constitucional, na imunidade diplomática - que é uma imunidade</p><p>formal - o crime existe, mas não é possível se aplicar a lei penal por</p><p>força de uma norma de Direito Internacional, recepcionada pelo Direito</p><p>interno. Dita norma impede que se exerça o Jus Persequendi in Juditio,</p><p>isto é, o direito de se propor uma ação penal e, via de consequência,</p><p>impede que se instaure um processo criminal,19 já que o início de um</p><p>processo penal se dá com o recebimento da ação.</p><p>A prova de que o crime subsiste na imunidade diplomática é ex­</p><p>traída do fato de que o país representado pelo diplomata pode renunciar</p><p>à imunidade; nesse caso, aplica-se a regra geral do Princípio da Terri­</p><p>torialidade, e o diplomata ficará sujeito à lei do território no qual foi</p><p>realizado o delito.20 Deve-se registrar que apenas o país acreditante (que</p><p>envia a missão) poderá renunciar a dita imunidade; não é, pois, válida</p><p>a renúncia efetuada pela pessoa que se beneficia dela. Isso se deve ao</p><p>fato de o fundamento da imunidade diplomática residir no exercício de</p><p>uma função estatal: a de efetuar o relacionamento com os demais países</p><p>e pessoas jurídicas de Direito Internacional.</p><p>A imunidade diplomática se estende também aos familiares do re­</p><p>ferenciado diplomata. Nesse caso, entretanto, para obter-se a imunidade,</p><p>deverão ser obedecidos dois requisitos: Io) o familiar deverá residir com</p><p>o diplomata; e 2o) não dever ser o familiar nacional do país em que está</p><p>estabelecida a missão diplomática.21</p><p>Deve-se registrar aqui que a missão diplomática não contempla ape­</p><p>nas pessoas revestidas com a qualidade de diplomata. Com efeito, também</p><p>serão membros da missão diplomática o pessoal técnico e administrativo,</p><p>além do pessoal de serviço, que dará o necessário suporte à realização</p><p>dos fins da referida missão.22</p><p>19 POLAINO NAVARRETE, Miguel. Derecho Penal. Pane General. Barcelona: Bosch,</p><p>1983, t. I. p. 506.</p><p>20 Diz o art. 32 da Convenção dc Viena: “Art. 32. 1 .0 Estado acreditante pode renunciar</p><p>à imunidade dc jurisdição dc seus agentes diplomáticos c das pessoas que gozem dc</p><p>imunidade nos termos do art. 37.”</p><p>31 Art. 37.1 da Convenção dc Viena: “Os membros da família, dc um agente diplomático</p><p>que com ele vivam gozarão dos privilégios c imunidadcs mencionados nos arts. 29 a 36,</p><p>desde que não sejam nacionais do Estado acreditado.”</p><p>" É o que estabelece o art. 1°, “c”, da Convenção dc Viena: ‘“membros do pessoal da</p><p>Missão’ são os membros do pessoal diplomático, do pessoal administrativo c técnico c</p><p>do pessoal dc serviço da Missão.”</p><p>Procurar</p><p>Lei Penal c o m R elação às Pessoas</p><p>i</p><p>109</p><p>Estende-se a imunidade da jurisdição penal, ainda, ao pessoal ad­</p><p>ministrativo e técnico da missão diplomática. Com relação aos seus fa­</p><p>miliares, deve-se também obedecer os mesmos requisitos anteriormente</p><p>expressados para</p><p>a concessão da imunidade: Io) o familiar deverá residir</p><p>com o membro do pessoal técnico e administrativo; e 2o) não deve ser</p><p>o familiar nacional do país em que está estabelecida a missão diplomá­</p><p>tica.23</p><p>Com relação ao membro do pessoal de serviço da missão, que são</p><p>os funcionários do Estado acreditante (que envia a missão) que executam</p><p>o serviço doméstico, só gozarão de imunidade nos atos praticados no</p><p>exercício de suas funções, desde que: Io) não sejam nacionais do país em</p><p>que está estabelecida a missão diplomática; e 2o) não tenham residência</p><p>permanente no país em que está estabelecida a dita missão.24</p><p>Em que pese não haver a aplicação do Princípio da Territorialidade</p><p>no caso da imunidade diplomática, os atos delituosos cometidos estão</p><p>sujeitos à jurisdição do Estado que envia a missão. Tal norma está</p><p>estabelecida expressamente no art. 31, item quatro, da Convenção de</p><p>Viena, verbis:</p><p>“A imunidade de jurisdição de um agente diplomático no Estado acreditado</p><p>não o isenta da jurisdição do Estado acreditante.”</p><p>A imunidade diplomática é, portanto, um obstáculo formal à aplicação</p><p>da lei penal, que sujeita o fato considerado como delituoso à jurisdição</p><p>do Estado que enviou a missão, salvo nos casos de renúncia expressa da</p><p>imunidade, efetuada pelo referido Estado.</p><p>2J Art. 37.2 da Convenção dc Viena: “Os membros do pessoal administrativo c técnico da</p><p>Missão, assim como os membros dc suas famílias que com eles vivam, desde que não</p><p>sejam nacionais do Estado acreditado nem nele tenham residência permanente, gozarão</p><p>dos privilégios c imunidadcs mencionados nos arts. 29 a 35, com a ressalva dc que a</p><p>imunidade dc jurisdição civil c administrativa do Estado acreditado, mencionada no § Io</p><p>do art. 31, não se estenderá aos atos por eles praticados fora do exercício dc suas fun­</p><p>ções; gozarão também dos privilégios mencionados no § Io do art. 36; no que respeita</p><p>aos objetos importados para a primeira instalação”.</p><p>24 Esta norma está contida no art. 37.3. da Convenção dc Viena: “Os membros do pessoal</p><p>dc serviço da Missão, que não sejam nacionais do Estado acreditado nem nele tenham</p><p>residência permanente, gozarão dc imunidadcs quanto aos atos praticados no exercício</p><p>dc suas funções, dc isenção dc impostos c taxas sobre os salários que perceberem pelos</p><p>seus serviços c da isenção prevista no art. 33.”</p><p>Procurar</p><p>n o Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>7 .3 .2 . Im u n id a d e s C o n s u la re s</p><p>Os cônsules são funcionários administrativos que desempenham</p><p>funções previstas em norma de Direito Internacional, representando um</p><p>determinado país em outro. A norma internacional que regula a atividade</p><p>dos cônsules é a Convenção de Viena sobre Relações Consulares, promul­</p><p>gada pelo Brasil através do Decreto n. 61.078, de 26 de julho de 1967.</p><p>Dita norma prevê dois tipos dc cônsules: de um lado figura o cônsul de</p><p>carreira, de outro, o cônsul honorário.</p><p>Diferentemente dos diplomatas, os cônsules não possuem imunida­</p><p>de penal para todos os atos praticados. A imunidade do cônsul é muito</p><p>mais limitada: ela se restringe apenas aos atos praticados no exercício</p><p>de sua função. Com efeito, o artigo 43 da norma internacional consular</p><p>estabelece que:</p><p>“Art. 43. 1. Os funcionários consulares e os empregados consulares não</p><p>estão sujeitos à jurisdição das autoridades judiciárias e administrativas</p><p>do Estado receptor pelos atos realizados no exercício das funções con­</p><p>sulares.”</p><p>Alguns ordenamentos jurídicos, como o italiano, preveem um maior</p><p>grau de imunidade, tanto aos cônsules quanto aos funcionários consulares,</p><p>se houver algum tratado internacional fixando a imunidade penal e seus</p><p>limites. Assim, tem-se a Convenção de Viena para Relações Consulares</p><p>como norma geral, mas é possível a celebração de algum tratado inter­</p><p>nacional especifico aumentando o âmbito da imunidade.25</p><p>Não é essa, entretanto, a posição do Direito brasileiro. No ordenamen­</p><p>to jurídico pátrio, só é possível a imunidade dos cônsules e funcionários</p><p>consulares no estrito âmbito do exercicio das suas funções, consoante</p><p>o que regula a dita Convenção de Viena, que entrou em vigor no país</p><p>desde 1967.</p><p>Fora do exercício da função consular, aplica-se sempre a lei penal</p><p>brasileira para regular as infrações cometidas pelos agentes e funcionários</p><p>consulares, imputando-se-lhes a regra geral da territorialidade, constante</p><p>no artigo 5o do Código Penal.</p><p>25 ANTOLISEI, Franccsco. Manuale di Diritto Penale. Milano: Giufirc, 1997. p. 144.</p><p>Procurar</p><p>Lei P ena l c o m R elação às Pessoas</p><p>1</p><p>111</p><p>7 .3 .3 . Im u n id a d e s P a r la m e n ta re s F o rm a is</p><p>Na redação original da Constituição de 1988, os deputados só</p><p>poderíam ser processados criminalmente se houvesse a autorização da</p><p>casa a que eles pertencem. Portanto, não havia a condição de se pro­</p><p>cessar o parlamentar, salvo se houvesse a licença da respectiva casa</p><p>legislativa.</p><p>Atualmente, entretanto, a Emenda Constitucional n. 35/2001 revo­</p><p>gou aquela norma. A partir de então, a regra é a de que não se proíbe</p><p>processo e julgamento do parlamentar que cometer um delito após a sua</p><p>diplomação, sendo o Supremo Tribunal Federal o foro competente para</p><p>dito processo. Todavia, um partido político com representação na casa</p><p>legislativa de que faz parte o parlamentar poderá dar causa a uma imu­</p><p>nidade formal, que tem o condão de ser um obstáculo à instauração ou</p><p>ao prosseguimento do processo-crime.26 * Nesses casos, o partido político</p><p>deverá promover um pedido de sustação do processo, que será concedido</p><p>se aprovado pela maioria dos membros da casa legislativa, num prazo</p><p>máximo de 45 dias após o pedido chegar à mesa diretora.</p><p>Nesses casos, a imunidade funciona como um obstáculo processual,</p><p>mas o prazo prescricional do delito fica igualmente sustado, enquanto</p><p>durar o mandato.</p><p>7 .4 . E X T R A D IÇ Ã O</p><p>7 .4 .1 . C o n c e ito e C la s s ific aç ã o</p><p>A extradição é um instituto de cooperação internacional em matéria</p><p>penal. Consiste na entrega de uma pessoa, feita por solicitação de um</p><p>pais a outro, para se submeter à lei penal do país solicitante.</p><p>Sobre a história da extradição, Jimenéz de Asúa aponta que alguns</p><p>autores buscam remotíssimos precedentes do instituto, mas a entrega de</p><p>sujeitos que cometeram crimes na antiguidade não estava revestida do</p><p>26 É o que dispõe a Constituição Federal, art. 53, § 3o: “Recebida a denúncia contra o Se­</p><p>nador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal</p><p>dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa dc partido político nela representado e</p><p>pelo voto da maioria dc seus membros, poderá, ate a decisão final, sustar o andamento</p><p>da ação.”</p><p>Procurar</p><p>1 1 2 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>caráter da extradição e esse instituto só surge como tal no século XVIII.27</p><p>Naquela época o sistema político da maioria dos Estados ocidentais era</p><p>o absolutismo. Os réus dos crimes políticos eram vistos como os mais</p><p>perigosos delinquentes, e foi justamente em face dos crimes políticos que</p><p>surgiu a extradição, como forma de cooperação penal entre os Estados</p><p>absolutistas. No século XIX, o crime político deixou de ser objeto da</p><p>extradição e foi substituído, a partir de então, pelos crimes comuns.</p><p>Na Antiguidade, há muitas referências a entrega de criminosos entre</p><p>países, mas nesses casos, como dito, não havia propriamente a extradição,</p><p>porque a requisição de entrega do criminoso ia acompanhada de coação</p><p>e ameaça de guerra. Com efeito, considerava-se que o país em cujo</p><p>território havia se refugiado o autor do crime fazia-se cúmplice dele ao</p><p>protegê-lo e não entregá-lo ao Estado requerente.28</p><p>A doutrina não é unívoca na classificação da extradição, existindo</p><p>diversas maneiras de realizá-la. Todavia, uma classificação tem efeito</p><p>concreto para a melhor compreensão do sistema de normas referentes</p><p>a este objeto. Por ela, a extradição se subdivide em ativa e passiva. A</p><p>extradição é ativa em relação ao Estado que a solicita, com</p><p>vistas a fazer</p><p>com que alguém que se encontra no exterior se sujeite à lei penal do</p><p>país solicitante.29 * De outro lado, a extradição é passiva com relação ao</p><p>Estado que a concede. Ela é a entrega, por parte de um Estado, de um</p><p>sujeito que está em seu território, a um outro país para ser processado</p><p>criminalmente ou cumprir pena. Afirma Jiménez de Asúa que a extra­</p><p>dição ativa tem o caráter de um ato administrativo e político, enquanto</p><p>a extradição passiva é um ato substancialmente jurídico e jurisdicional,</p><p>por isso os problemas que são suscitados na extradição dizem respeito</p><p>à extradição passiva.20</p><p>Destaque-se, ainda, que existe uma terceira forma doutrinária de</p><p>extradição: a extradição de trânsito. Segundo Jiménez de Asúa: “Existe</p><p>extradição de trânsito quando os indivíduos, cuja extradição foi concedida</p><p>17 JIMÉNEZ ASÚA, Luis. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Losada, 1950. t. I,</p><p>p. 901-902.</p><p>“ JIMÉNEZ ASÚA, Luis. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Losada, 1950. t. 1,</p><p>p. 903-903</p><p>29 Cf. PAGLIARO, Antonio. Sommario dei Diritto Penale Italiano. Milano: Giufirc, 2001.</p><p>p. 109.</p><p>50 JIMÉNEZ ASÚA, Luis. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Losada, 1950. t. I,</p><p>p. 898.</p><p>Procurar</p><p>Lei P ena l c o m R elação às Pessoas</p><p>i</p><p>113</p><p>pelo Estado requerido ao país demandante, são conduzidos em detenção</p><p>pelo território de um terceiro estado („.)”.31</p><p>No Brasil, a regulação da extradição passiva é feita pela Constituição</p><p>Federal e pelo Estatuto do Estrangeiro (Lei n. 6.815/80).</p><p>7 .4 .2 . C asos d e Im p o s s ib il id a d e d e E x tra d iç ã o</p><p>De início, registre-se que, segundo o que dispõe o ordenamento</p><p>jurídico pátrio, existem situações nas quais a extradição é proibida. Dita</p><p>proibição ou é fundamentada na nacionalidade do extraditando ou é fun­</p><p>damentada na natureza do crime praticado.</p><p>Com relação à proibição da extradição por força da nacionalidade do</p><p>sujeito, a Constituição Federal de 1988 tem norma expressa,32 esculpida</p><p>nas garantias fundamentais, que dispõe ser proibida, em qualquer caso,</p><p>a extradição de brasileiro nato. Todavia, a impossibilidade da extradição</p><p>do brasileiro nato não significa a impunidade, porque, nessa hipótese, se</p><p>aplica a lei penal brasileira para determinar regular processo e julgamento</p><p>do fato que foi objeto da extradição. Há, por conseguinte, a incidência</p><p>do Princípio da Nacionalidade Ativa (art. 7, II, “b”).</p><p>Com relação ao brasileiro naturalizado, a regra é que ele também</p><p>não poderá ser extraditado. Todavia, essa regra comporta duas exceções:</p><p>primeira, se o crime tiver ocorrido antes da naturalização, pois “a natu­</p><p>ralização não pode se constituir em meio para fraudar a extradição”.33</p><p>Em segundo lugar, será permitida a extradição do brasileiro naturalizado,</p><p>se for comprovado o seu envolvimento em delito de tráfico ilícito de</p><p>entorpecentes ou drogas afins.</p><p>Se o agente for casado com nacional brasileiro ou tiver filho brasi­</p><p>leiro, sem ter se naturalizado, não há óbice à extradição. Nesse sentido,</p><p>sumulou o Supremo Tribunal Federal que:</p><p>31 JIMÉNEZ ASÚA, Luis. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Losada, 1950. t. I,</p><p>p. 899.</p><p>3: Art. 5o, LI: “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, cm caso dc crime</p><p>comum, praticado antes da naturalização, ou dc comprovado envolvimento cm tráfico</p><p>ilícito dc entorpecentes ou drogas afins, na forma da lei.”</p><p>33 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. Rio dc Janeiro: Forense, 2004.</p><p>v. I, p. 115.</p><p>Procurar</p><p>1 1 4 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>“Não impede a extradição a circunstância de ser o extraditando casado com</p><p>brasileira ou ter filho brasileiro” (Súmula n. 421).</p><p>Com relação à natureza do crime praticado, existem duas espécies</p><p>de delito que desautorizam a extradição. A norma constitucional brasileira</p><p>estabelece ser proibido extraditar pelo cometimento de crimes políticos ou</p><p>de opinião.34 Os crimes de opinião são os “decorrentes da manifestação</p><p>do pensamento, seja por meio de imprensa ou não”.35</p><p>O crime político também não pode ensejar a extradição. Aqui, en­</p><p>tretanto, devemos enfrentar um problema: qual a conceituação do crime</p><p>político? Parafraseando Canedo da Silva, o conceito e a natureza jurídica</p><p>do crime político estão longe de serem pacíficos, pois há uma grande</p><p>variabilidade de conteúdo, natureza e alcance dessa definição.36 Apesar</p><p>da variabilidade de conceitos, as figuras que o integram parecem ter “um</p><p>pressuposto não escrito, mas que a prática impôs: só têm aplicação para</p><p>o vencido”.37</p><p>Três são os critérios cunhados pelo Direito Penal para a determi­</p><p>nação do crime político: a) critério objetivo; b) critério subjetivo; e, c)</p><p>critério eclético.</p><p>O critério objetivo tem como pressuposto o bem jurídico lesado</p><p>ou posto em perigo. Seriam, portanto, crimes políticos “aqueles que</p><p>atentam contra as condições de existência do Estado como organismo</p><p>político”.38</p><p>O critério subjetivo na finalidade ou desiderato perseguido pelo</p><p>agente, “de modo que, se esse for político, o crime será sempre político,</p><p>independentemente do bem jurídico lesado. Aqui o móvel constitui fator</p><p>decisivo”.39</p><p>34 Art. 5o, LII: “Não será concedida a extradição dc estrangeiro por crime político ou dc</p><p>opinião.”</p><p>35 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. Rio dc Janeiro: Forense, 2004.</p><p>v. I, p. 116.</p><p>36 SILVA, Carlos A. Canedo Gonçalves da. Crime Político. Belo Horizonte: Del Rcy, 1993.</p><p>p. 55.</p><p>37 CARDENAS, Raul. El Delito Politico. Estúdios Penales. Mõxico: Jus, 1977. p. 293.</p><p>34 SILVA, Carlos A. Canedo Gonçalves da. Crime Político. Belo Horizonte: Dcl Rcy, 1993.</p><p>p. 57.</p><p>39 SILVA, Carlos A. Canedo Gonçalves da. Op. cit. p. 57.</p><p>Procurar</p><p>Lei P ena l c o m R elação às Pessoas 115</p><p>Os critérios ecléticos “partem de um critério objetivo, combinando-o</p><p>com o subjetivo, vale dizer, levam em conta o bem jurídico tutelado e o</p><p>móvel ou fim que guia o agente”.40 41</p><p>Na atualidade, a tendência francamente dominante é conceituar crime</p><p>político através do critério eclético. Veja-se, por todos, o conceito de Reale</p><p>Júnior: “O crime é político quando constitui ato de oposição à organi­</p><p>zação política ou social vigente contra a qual se arvora visando-se à sua</p><p>modificação, reputada delito pelo Estado para manter o status quo.”i]</p><p>O nosso Direito positivo não permite a extradição por crime polí­</p><p>tico, mas se o dito crime estiver associado a um crime comum poderá</p><p>o Supremo Tribunal Federal fazer com que o crime comum prevaleça</p><p>frente àquele, autorizando-se, destarte, a extradição. Por exemplo, se para</p><p>subverter a ordem política realiza-se uma extorsão mediante sequestro,</p><p>com vistas à obtenção de recursos para o fim almejado, tem-se aí um</p><p>crime comum - extorsão mediante sequestro - associado ao político.</p><p>Nesses casos a extradição será possível se o Supremo Tribunal Federal</p><p>considerar a prevalência do crime comum, conforme dispõe o parágrafo</p><p>terceiro da Lei n. 6.815/80.42 * * 45 Em vários casos, havendo o entrelaçamento</p><p>do crime comum com o político, o STF indeferiu, por maioria, o pedido</p><p>de extradição. Veja-se, por exemplo, a seguinte decisão:</p><p>“EXTRADIÇÃO - CRIMES POLÍTICO E COMUM - CONTAMINA­</p><p>ÇÃO. Uma vez constatado o entrelaçamento de crime de natureza política</p><p>e comum, impõe indeferir a extradição. Precedentes: Extradições n. 493-0</p><p>3 694-1, relatadas pelos ministros Sepúlveda Pertence e Sydney Sanches,</p><p>respectivamente.”4-'</p><p>Nada impede, entretanto, conforme determina expressamente a lei,</p><p>que na análise do caso concreto a Corte Suprema dê prevalência ao crime</p><p>comum, atenta aos bens jurídicos que foram violados com a conexão dos</p><p>crimes comum e político. Com efeito, por exemplo, se visualizarmos</p><p>40 SILVA, Carlos A. Canedo Gonçalves da. Op. cit. p. 58.</p><p>41 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. Rio dc Janeiro: Forense, 2004.</p><p>v. I, p. 115.</p><p>4; In verbis: “O Supremo Tribunal Federal poderá deixar de considerar crimes políticos</p><p>os atentados contra Chefes dc Estado ou quaisquer autoridades,</p><p>bem assim os atos dc</p><p>anarquismo, terrorismo, sabotagem, scqücstro dc pessoa, ou que importem propaganda</p><p>dc guerra ou dc processos violentos para subverter a ordem politica ou social.”</p><p>45 Extradição n. 994, Relator Min. Marco Aurélio, DJ, 04.08.2006.</p><p>Procurar</p><p>1 1 6 Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>a hipótese de terrorismo para fins políticos, poderemos ter a noção da</p><p>extensão do dano causado por determinadas condutas criminosas - que</p><p>podem ser praticadas à custa de milhares de vidas - tomando escandalosa</p><p>a impunidade, em face da não extradição.</p><p>7 .4 .3 . R e q u is ito s d a E x tra d iç ã o</p><p>Superadas as proibições constitucionais, para que a extradição passiva</p><p>seja concedida, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, é necessário</p><p>o preenchimento dos seguintes requisitos:44</p><p>Io) O fato que motiva a extradição deve ser considerado como</p><p>crime tanto no Brasil quanto no país que requer a extradição.</p><p>A dogmática penal chama esse requisito de Princípio da Dupla</p><p>Tipicidade ou, ainda, Princípio da Dupla Incriminação.45 Esse</p><p>requisito não será obedecido se o fato se constituir em con­</p><p>travenção penal, e não crime, em qualquer dos ordenamentos</p><p>jurídicos. Com efeito, na esfera da extradição também não se</p><p>admite a analogia in malam partem, já que ela é regida pelos</p><p>princípios gerais do Direito Penal.</p><p>2o) Não ser o Brasil competente para julgar o fato. A extradição</p><p>supõe a cooperação entre países; logo, não há a sujeição de um</p><p>país a outro nesse instituto. Por óbvio, se a lei brasileira for</p><p>aplicável ao caso, o Brasil não se sujeita à requisição entrega</p><p>de pessoa determinada. Aí não há que se falar em cooperação,</p><p>já que prevalece o exercício da soberania nacional.</p><p>3o) O crime imputado ao sujeito deve ser punido, segundo a lei</p><p>brasileira, com uma pena de prisão igual ou superior a um</p><p>ano. No Direito Penal a pena é um indicador da gravidade</p><p>do delito, os fatos punidos com penas menores de um ano</p><p>são considerados de menor potencial ofensivo aos bens ju ­</p><p>rídicos, e como tal não ensejam o encarceramento a priori.</p><p>Isto posto, seria um contrasenso autorizar a extradição nessas</p><p>hipóteses. 44 45</p><p>44 Cf. os arts. 77 c 78 da Lei n. 6.815/80.</p><p>45 Vcja-sc, por exemplo: ARAÚJO, Luiz Ivani dc Amorim. Direito Internacional Penal.</p><p>Rio dc Janeiro: Forense, 2000. p. 46.</p><p>Procurar</p><p>Lei P ena l c o m R elação às Pessoas 117</p><p>4°) O extraditando não deve ter sido condenado ou absolvido no</p><p>Brasil pelo fato imputado, ou não deve estar respondendo pro-</p><p>cesso-crime em face dele. Se a jurisdição brasileira se manifestar</p><p>acerca do fato imputado na extradição, já havendo o julgamento</p><p>do fato ou não, não é cabível a aplicação da jurisdição estran­</p><p>geira. Isso porque haverá sempre a prevalência da jurisdição</p><p>brasileira em face da estrangeira.</p><p>5o) O crime não deve estar prescrito segundo os critérios da lei</p><p>mais favorável, quer ela seja brasileira ou quer ela seja do pais</p><p>que requereu a extradição. A prescrição é a perda do poder de</p><p>punir em virtude do decurso do tempo e os prazos prescricio-</p><p>nais variam, como é facilmente perceptível, de acordo com os</p><p>diversos ordenamentos jurídicos. Se o crime imputado estiver</p><p>prescrito em face das leis do país que solicita a extradição ou</p><p>em face da lei brasileira - a que for mais favorável - não se</p><p>autoriza a extradição. Com efeito, a prescrição acarreta a ex­</p><p>tinção da punibilidade, cessando-se com ela todos os efeitos</p><p>penais condenatórios.</p><p>6o) Não ser o extraditando submetido, no estrangeiro, a juizo ou</p><p>tribunal de exceção. Por tribunal ou juízo de exceção se entende</p><p>aquele que foi instituído para ter uma decisão pré-determinada</p><p>no julgamento definitivo do fato, como acontece, sobretudo, nos</p><p>regimes totalitários. O tribunal de exceção não julga, destarte,</p><p>com base no Direito, não se respeitam os princípios conside­</p><p>rados como legitimadores do sistema jurídico, principalmente o</p><p>Princípio do Devido Processo Legal. Sem o respeito ao Direito,</p><p>o julgamento não é considerado como legítimo, por isso se</p><p>proíbe a extradição.</p><p>7o) O fato que motiva a extradição deve ter sido cometido no</p><p>Estado que a requer, ou devem ser aplicáveis ao extraditando</p><p>as leis penais daquele Estado. O Princípio da Territoriali­</p><p>dade ou as hipóteses legais da extraterritorialidade previstas</p><p>no ordenamento jurídico do país requerente deverão declarar</p><p>aquele Estado como competente para processar e julgar o</p><p>extraditando. É indispensável que ditas leis que declaram a</p><p>competência do Estado solicitante sejam prévias ao fato cri­</p><p>minoso, porque o contrário equivalería a uma fraude material</p><p>a este requisito.</p><p>Procurar</p><p>1 1 8 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>8o) Deve existir uma sentença transitada em julgado, condenando</p><p>o extraditando, ou deverá haver a decretação da prisão pro­</p><p>cessual do extraditando pela autoridade competente. Porque a</p><p>extradição é uma limitação ao exercício da liberdade de loco­</p><p>moção, que importa na condução coercitiva de uma pessoa a</p><p>um Estado estrangeiro, é indispensável uma manifestação oficial</p><p>e competente do Estado solicitante que determine a restrição à</p><p>dita liberdade de locomoção. Essa manifestação oficial se faz</p><p>a partir da decisão da autoridade competente, que a realiza em</p><p>uma sentença ou em um decreto de prisão.</p><p>A extradição é sempre processada perante o Supremo Tribunal Fe­</p><p>deral e será fundamentada na existência de Tratado Internacional ou na</p><p>promessa de reciprocidade entre os países protagonistas da extradição:</p><p>o país da extradição passiva a concede, fundado na promessa de ser</p><p>atendido quando solicitar a extradição ativa àquele país. Porque esse</p><p>instituto refere-se à cooperação em matéria penal entre países, deve ele</p><p>ser requerido diplomaticamente, ou na falta de representação diplomática,</p><p>diretamente pelo Governo do país solicitante.</p><p>Quanto aos requisitos do pedido, a lei brasileira é elucidativa. Ele</p><p>deverá ser instruído com:</p><p>Io) cópia autêntica ou certidão da sentença condenatória, da de</p><p>pronúncia ou da que decretar a prisão preventiva, proferida por</p><p>juiz ou autoridade competente;</p><p>2o) documento que informe - caso a sentença condenatória ou decreto</p><p>de prisão não contenham - indicações precisas sobre o local, a</p><p>data, a natureza e as circunstâncias do fato criminoso;</p><p>3o) identidade do extraditando; e</p><p>4o) cópia dos textos legais sobre o crime, a pena e sua prescri­</p><p>ção.46</p><p>Para que a extradição se efetive o Estado requerente deverá firmar</p><p>um compromisso com o Estado brasileiro, obrigando-se47 a: 1°) não</p><p>1,4 Cf. o art. 80 da Lei n. 6.815/80.</p><p>47 Cf. o art. 91 da Lei n. 6.815/80.</p><p>Procurar</p><p>Lei Penal c o m R elação às Pessoas</p><p>X</p><p>119</p><p>processar o extraditando por fatos anteriores diferentes do pedido; 2o)</p><p>aplicar a detração para descontar o tempo da prisão efetuada para a ex­</p><p>tradição; 3o) não aplicar penas corporais ou de morte (salvo nos casos</p><p>em que a Constituição brasileira autoriza), comutando-a em privativa de</p><p>liberdade; 4o) não re-extraditar o sujeito, entregando-o a outro Estado,</p><p>sem o consentimento do Brasil; e, 5o) não considerar qualquer motivo</p><p>político para agravar a pena.</p><p>Procurar</p><p>Procurar</p><p>Título II</p><p>Teoria do Crime</p><p>Procurar</p><p>Procurar</p><p>8</p><p>C O N C E IT O D E C R IM E</p><p>8 .1 . C O N C E IT O C R IM IN O L Ó G IC O E J U R ÍD IC O D E C R IM E</p><p>O conceito de crime é o ponto inicial da Teoria Jurídica do Delito.</p><p>Entretanto, antes de analisarmos o conceito jurídico do crime, é relevante</p><p>mencionar o conceito criminológico, visto que este último se perfez antes</p><p>da consolidação do conceito jurídico.</p><p>Sabe-se que Lombroso, criador da teoria do atavismo, desenvolveu</p><p>estudos sobre o criminoso, mas não se preocupou com o estudo do crime</p><p>em si. A tarefa de estudar o crime à luz da criminologia foi empreendi­</p><p>da por Garofalo.1 Para ele, chega-se ao conceito de delito utilizando-se</p><p>os elementos da moralidade necessários para que a consciência pública</p><p>qualifique como criminosa a ação; esses elementos</p><p>são os sentimentos</p><p>altruístas de piedade e de probidade. Quando esses ditos sentimentos</p><p>são ofendidos, ocorre o delito natural.2 O delito natural, portanto, é um</p><p>atentado aos sentimentos altruístas de piedade e probidade. O homicídio</p><p>é o principal exemplo do atentado ao sentimento de piedade, e o roubo,</p><p>ao de probidade.</p><p>1 Garofalo critica a posição lombrosiana dizendo: “Estudado nos últimos tempos pelos</p><p>naturalistas, o dclinqücntc foi por alguns descrito anatomopsicologicamcntc c apresentado</p><p>como um tipo, uma variedade do genus homo. Certo 6, porém, que os trabalhos empre­</p><p>endidos nesse sentido não deram resultados aplicáveis à legislação (...) um simples erro</p><p>dc método explica o fato. Falando do delinqiiente, os naturalistas haviam-sc esquecido dc</p><p>dizer-nos o que entendiam por delito” (GAROFALO. Criminologia. Campinas: Péritas,</p><p>1997. p. 9).</p><p>: GAROFALO. Op. cit. p. 29.</p><p>Procurar</p><p>1 2 4 i Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>Outra tentativa de definir o delito à luz da criminologia foi desen­</p><p>volvida por Ferri. Para ele o crime é uma ação movida por motivos</p><p>egoísticos e antissociais que viola a moralidade média de um povo em</p><p>um dado momento.3</p><p>Tanto o conceito de Garofalo como o de Ferri têm grande valor histó­</p><p>rico, mas pouco valor prático. Garofalo peca ao associar a ideia de crime</p><p>à vaga noção de sentimento. Muitos crimes, inclusive, não são atentados</p><p>aos sentimentos de piedade e de probidade. O art. 242 do Código Penal,</p><p>por exemplo, que incrimina, dentre outras condutas, registrar como seu o</p><p>filho de outrem, reconhece que esse crime pode ser praticado por motivo</p><p>de reconhecida nobreza, o que ensejaria uma causa de diminuição de pena</p><p>ou o perdão judicial. Se há um motivo de reconhecida nobreza, jamais</p><p>pode haver uma ofensa aos sentimentos de piedade e probidade.</p><p>O conceito de Ferri também é insustentável. Jamais se descobriu</p><p>o que é uma “moralidade média”. De outro lado, existem crimes que</p><p>não são movidos por motivos egoísticos ou antissociais. O homicídio</p><p>piedoso ou eutanásia, por exemplo, é um crime que tem uma especial</p><p>causa de diminuição de pena por ser uma ação cometida com relevante</p><p>valor moral (art. 121, § Io). Como se dizer que um valor moralmente</p><p>relevante é egoístico? A mesma norma (art. 121, § Io) ainda prevê uma</p><p>diminuição de pena se o crime de homicídio for praticado com relevante</p><p>valor social. Como se pode dizer que um motivo socialmente relevante</p><p>é antissocial?</p><p>Assim, à luz dos crimes em espécie, vemos que essas definições</p><p>criminológicas são inadequadas. Isso ocorre porque o método utilizado</p><p>por esses autores não é o método do Direito Penal. Com efeito, dizem</p><p>Hassemer e Munoz Conde que tanto o direito penal quanto a crimino­</p><p>logia versam sobre a criminalidade; todavia, o Direito Penal é um saber</p><p>normativo, enquanto a criminologia é um saber empírico.4 Isso significa</p><p>que o Direito Penal busca investigar o crime à luz das normas, do dever-</p><p>-ser, ao passo que a criminologia busca investigá-lo à luz da realidade</p><p>3 Apud LUNA, Evcrardo da Cunha. Estrutura Jurídica do Crime. São Paulo: Saraiva,</p><p>1993. p. 13.</p><p>4 “Si el objeto dei derecho penal es la criminalidad, quien se ocupe dei derecho penal tiene</p><p>que ocuparse tamhién de la criminalidad. Y quien no conozca o conozca mal el aspecto</p><p>empírico de la Administración de Justicia penal, dificilmente podrá manejar las regias</p><p>dei Derecho penal en todos sus âmbitos: legislativo, judicial y ejecutivo o penitenciário.</p><p>Junto al saber normativo es necesario e imprescindible un saber empírico que brinda a</p><p>la Criminologia” (HASSEMER, Winfricld; CONDE, Francisco Munoz. Introducción a</p><p>la Criminologia y al Derecho Penal. Vaicncia: Tirant to Blanch, 1989. p. 15).</p><p>Procurar</p><p>C o n c e ito d e C rim e</p><p>i</p><p>125</p><p>fenomênica. Consequentemente, os conceitos criminológicos de delito</p><p>buscam explicá-lo à luz do ser, enquanto o conceito jurídico buscará</p><p>compreendê-lo à luz do dever-ser.</p><p>Para chegarmos ao conceito de crime, que seja adequado ao Direito</p><p>Penal, precisamos utilizar o método normativo, isto é, precisamos estudá-</p><p>-lo à luz das normas jurídicas.</p><p>Como já afirmou Everardo Luna, a norma é unidade dialética entre</p><p>preceito e conteúdo.5 Toda norma tem uma fórmula que a expressa; no</p><p>homicídio, por exemplo, a fórmula é: “Matar alguém. Pena - Reclusão,</p><p>de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.” Decompondo essa fórmula, constatamos</p><p>que nela está presente uma conduta (matar alguém), que é chamada de</p><p>preceito, e uma sanção. O conteúdo da norma penal é o objeto por ela</p><p>tutelado; no caso do homicídio, é a preservação da vida.</p><p>Quando definimos o crime à luz das normas jurídicas podemos fazê-lo</p><p>dando ênfase ao preceito ou ao conteúdo da norma. O conceito de crime</p><p>que dá ênfase ao conteúdo da norma é chamado conceito material, o que</p><p>dá ênfase ao preceito é chamado conceito formal do crime.</p><p>8 .2 . C O N C E IT O M A T E R IA L D E C R IM E</p><p>Toda norma penal incriminadora tutela um valor. Na lição de Nélson</p><p>Saldanha, “os valores, que são políticos e éticos, justificam as regras e,</p><p>portanto, as sanções nela prescritas”.6</p><p>A norma que incrimina o furto, por exemplo, dispõe: “Subtrair para</p><p>si ou para outrem coisa alheia móvel. Pena - Reclusão, de 1 (um) a 4</p><p>(quatro) anos e multa” (art. 155 do Código Penal), tutela-se aí o patrimônio.</p><p>A norma que incrimina o estupro dispõe: “Constranger mulher, mediante</p><p>violência ou grave ameaça, à conjunção camal. Pena - Reclusão, de 6</p><p>(seis) a 10 (dez) anos” (art. 213 do Código Penal), tutela-se, com essa</p><p>norma, a liberdade sexual. Em todas as condutas incriminadas há, pois,</p><p>um valor tutelado e esse valor é chamado de bem jurídico.</p><p>Materialmente, o crime é definido como violação, ou exposição a</p><p>perigo, do bem jurídico.</p><p>5 LUNA, Everardo da Cunha. Capítulos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1985. p.</p><p>115.</p><p>6 SALDANHA, Nelson. Ordem e Hermenêutica. Rio dc Janeiro: Renovar, 1992. p.</p><p>169.</p><p>Procurar</p><p>126 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>O conceito de bem jurídico foi formulado em 1834, por Bimbaum,</p><p>inspirado nas idéias iluministas e liberais dos séculos XVIII e XIX. Esse</p><p>conceito surgiu como uma forma de limitar o poder penal do Estado.</p><p>Quando se afirmava que o crime era uma violação ao bem jurídico,</p><p>expurgava-se do Direito Penal as meras violações à lei moral ou às leis</p><p>religiosas.7</p><p>O Direito Penal ganha legitimidade quando se reveste da função de</p><p>proteger bens jurídicos, por isso é uníssono na doutrina afirmar-se que</p><p>tutelar os bens jurídicos é a missão do Direito Penal.8 Deve-se salientar</p><p>que outrora o Direito Penal já foi considerado como instrumento do ar­</p><p>bítrio estatal, mas, quando esse ramo do ordenamento jurídico se voltou</p><p>para a tutela dos referidos bens jurídicos, ele rompeu com o seu passado</p><p>nebuloso e passou a figurar como um Direito garantidor do homem, de</p><p>sua liberdade e da sociedade. Por isso é imperioso definir-se o que seja</p><p>bem jurídico.</p><p>Antes de adentrar na conceituação de bem jurídico, é fundamental</p><p>a distinção entre bem jurídico e objeto da ação. Um exemplo esclarecerá</p><p>a diferença: no furto a coisa alheia móvel subtraída é o objeto da ação,</p><p>enquanto a propriedade é o bem jurídico protegido.9 “Bem jurídico, por­</p><p>tanto, é o bem ideal que se incorpora no objeto de ataque concreto.”10</p><p>Quando analisamos a estrutura do Direito Penal, constatamos que a</p><p>ele não interessa tanto esse “algo concreto”, isto é, o objeto da ação, mas</p><p>o valor abstrato que se materializa neste algo: o bem jurídico.</p><p>7 Neste sentido, HASSEMER, Winfricld. Fundamentos dei Derecho Penal. Barcelona:</p><p>Bosch, 1984. p. 37. Em outra obra o autor assim se expressa: "La función fundamental</p><p>de la doutrina de los bienes jurídicos era y es - con todas las diferencias de origen y</p><p>concepto - negativa y crítica dei Derecho (aun cuando la negatividad constituía una con-</p><p>dición de la potência crítica): el legislador debia castigar sólo aquellos comportamientos</p><p>que amenazaban un bien jurídico;</p><p>los actos que sólo atentaban a la moral, a valores</p><p>sociales o contra el soberano debian excluirse dei catálogo de delitos" (HASSEMER,</p><p>Winfricld. Dcrccho Penal Simbólico y Protección dc Bienes Jurídicos. Pena y Estado.</p><p>Barcelona, PPU, n. 1, p. 31, set.-dez. 1991).</p><p>* Esta posição ó pacífica na doutrina penal, quer nacional, quer estrangeira. Vcja-sc, a titulo</p><p>dc exemplo o que nos diz Cerezo Mir: "El Derecho Penal es un sector dei ordenamiento</p><p>jurídico al que, segiin la opinión dominante de la dogmática moderna, le incumbe la</p><p>tarea de la protección de los bienes vitales fundamentales dei indivíduo y la comunidad.</p><p>Estos bienes son elevados por la protección de las normas dei Derecho a la categoria de</p><p>bienes jurídicos" (MIR, Josc Cerezo. Curso de Derecho Penal Espanol. Madri: Tccnos,</p><p>1993. p. 15).</p><p>9 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Madri: Civitas, 1997. p. 62-63.</p><p>10 ROXIN, Claus. Op. cit. p. 63.</p><p>Procurar</p><p>C o n c e ito d e C rim e</p><p>X</p><p>127</p><p>Com acerto, já se afirmou que a “história do bem jurídico é, ao</p><p>mesmo tempo, reconhecidamente, a história de suas dificuldades”.11</p><p>Já se disse que o bem jurídico é o valor objetivo que a norma penal</p><p>visa proteger.11 12</p><p>Modemamente, entretanto, define-se o bem jurídico à luz da so­</p><p>ciedade. Um dos grandes artífices dessa concepção é Claus Roxin, que</p><p>cria uma doutrina original. Segundo ele, o Estado não pode ter a função</p><p>de realizar fins divinos ou transcendentais, mas a função do Estado é</p><p>garantir a um grupo de indivíduos - os seus súditos - as condições de</p><p>existência que satisfaçam as suas necessidades vitais.13 Em cada situação</p><p>histórica e social aqueles pressupostos imprescindíveis para assegurar a</p><p>existência de um grupo humano são considerados bens jurídicos. Eles se</p><p>concretizam numa série de condições valiosas como a vida, a liberdade,</p><p>o patrimônio. Cabe ao Direito Penal assegurar esses bens jurídicos, pu­</p><p>nindo a sua violação.14 *</p><p>Outra tentativa de conceituação de bem jurídico, nesta mesma linha</p><p>de pensamento, foi desenvolvida por Urs Kindhàuser. Segundo ele, bens</p><p>jurídicos são aqueles que representam a identidade jurídica de uma so­</p><p>ciedade e de sua perpetuação.ls O Direito Penal serve para proteger os</p><p>bens jurídicos, os quais devem ser entendidos como “características de</p><p>pessoas, coisas ou instituições, que são objetos de posições jurídicas”.16 A</p><p>proteção ao bem jurídico não se refere isoladamente a esses bens como</p><p>tais, mas à relação desses bens com os sujeitos que devem ser beneficia­</p><p>dos por ele. Por isso, a tutela de bens jurídicos significa a proteção dos</p><p>princípios que salvaguardam o indivíduo no sentido de sua participação</p><p>igualitária na interação social.17 O autor conclui o seu pensamento dizendo</p><p>que essa proteção se dá incriminando-se a lesão e a exposição a perigo</p><p>dos referidos bens jurídicos.</p><p>11 RODRIGUES, Anabcla. A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade.</p><p>Coimbra: Coimbra, 1995. p. 260.</p><p>12 MEZGER, Edmund. Diritto Penale. Padua: CEDAM, 1935. p. 220.</p><p>13 ROXIN, Claus. Sentido e Limites da Pena Estatal. Problemas Fundamentais de Direito</p><p>Penal. Lisboa: Veja, 1993. p. 27.</p><p>14 ROXIN, Claus. Op. cit. p. 27-28.</p><p>13 KINDHÀUSER, Urs. Derecho Penal de la Culpabilidad y Conducta Peligrosa. Bogotá:</p><p>Univcrsidad Externato dc Colombia, 1996. p. 67.</p><p>16 KINDHÀUSER, Urs. Op. cit. p. 67.</p><p>17 KINDHÀUSER, Urs. Op. cit. p. 68.</p><p>Procurar</p><p>128 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>Com efeito, para que o papel do bem jurídico cumpra a sua função</p><p>de legitimar a intervenção penal, é imprescindível interpretá-lo à luz da</p><p>sociedade, como pretende a atual dogmática alemã. A ideia de bem ju ­</p><p>rídico não é desvinculada da ideia de valor, visto que o bem jurídico é</p><p>precisamente o valor protegido pela norma penal, mas esse valor cumpre</p><p>a Junção de resguardar as condições de convivência em sociedade de</p><p>um determinado grupo humano. Se, por exemplo, qualquer um pudesse</p><p>matar livremente outro ser humano, não seria possível a convivência em</p><p>sociedade. Assim o valor vida é um daqueles que precisam ser tutelados</p><p>como bem jurídico, em virtude de sua importância para a constituição</p><p>e preservação da sociedade. Bem jurídico deve ser definido, pois, como</p><p>o valor tutelado pela norma penal, funcionando como um pressuposto</p><p>imprescindível para a existência da sociedade.</p><p>8 .3 . C O N C E IT O F O R M A L D E C R IM E</p><p>O Código Penal trata do crime no seu Título II, todavia, o diploma</p><p>legal evitou dar o conceito de delito, iniciando suas disposições normativas</p><p>com o Nexo de Causalidade (art. 13).IS * * 18 Cabe, então, à doutrina fixar o</p><p>conceito de crime. Entretanto, essa definição não pode ser feita à margem</p><p>da lei; devem-se fixar no conceito de delito os elementos gerais que estão</p><p>presentes nos crimes em espécie. A fixação do conceito de crime é um dos</p><p>principais pontos do Direito Penal, porque é imprescindível diferenciar o</p><p>crime das infrações administrativas, tributárias, dentre outras.</p><p>O primeiro elemento geral do crime é derivado do princípio nullum</p><p>crimen, nulla poena sine lege, isto é, do Princípio da Legalidade. Se é</p><p>necessário que uma conduta criminosa esteja prevista em lei, é também</p><p>necessário que a ação humana esteja perfeitamente adequada ao modelo</p><p>descrito na lei. Essa adequação é chamada de tipicidade.</p><p>A tipicidade é, pois, definida como uma relação de adequação entre</p><p>a ação humana e a norma do Direito. Só se pode falar em crime se,</p><p>primeiramente, a ação humana for típica, isto é, adequada ao modelo</p><p>descrito na lei.</p><p>IS No nosso ordenamento, um conceito legal dc crime foi dado pela Lei dc Introdução ao</p><p>Código Penal; todavia, esse conceito não revela quais são os elementos componentes do</p><p>crime. Segundo essa lei, considera-se crime a infração penal que cominc pena dc reclusão</p><p>ou detenção, quer isoladamente, quer altemativamente, ou cumulada com a pena dc multa</p><p>(an. 1°).</p><p>Procurar</p><p>C o n c e ito d e C rim e 1 1 2 9</p><p>Ocorre que existem ações típicas que não se constituem em crimes.</p><p>O art. 121 do Código Penal, por exemplo, tipifica a conduta de “matar</p><p>alguém”. Mas isso não significa que necessariamente haverá crime todas</p><p>as vezes que um ser humano matar outro. Dessarte, a tipicidade por si</p><p>só não é suficiente para dar a ideia de delito.</p><p>Quando o Direito tipifica uma conduta humana é porque ele não quer</p><p>que a mesma se realize. Isso se comprova pelo fato de o Direito imputar</p><p>uma pena à dita realização dessas condutas. Portanto, toda ação típica</p><p>é, em regra, contrária ao Direito, ou seja, toda ação típica é em regra</p><p>antijurídica. A ação típica só não será antijurídica se estiver justificada</p><p>pelas causas de exclusão da antijuridicidade, as quais estão capituladas no</p><p>art. 23 do Código Penal (Estado de Necessidade, Legítima Defesa, Estrito</p><p>Cumprimento do Dever Legal e Exercício Regular do Direito).</p><p>O segundo elemento do crime é chamado de antijuridicidade. A</p><p>antijuridicidade é um juízo de valor negativo, ou desvalor, que qualifica</p><p>o fato como contrário ao Direito.</p><p>Tanto a tipicidade quanto a antijuridicidade são juízos sobre a ação</p><p>humana. Ocorre que há vezes em que existem ações típicas e antijurídicas</p><p>que ainda não se constituem em crimes. Imaginemos a morte de um ser</p><p>humano provocada por um menor, de 15 anos de idade. Indiscutivelmente</p><p>há uma adequação entre aquela conduta e o modelo descrito na lei, sendo</p><p>a ação, portanto, típica. Se a ação não estiver justificada pelas causas de</p><p>exclusão da antijuridicidade será, também, antijurídica. Só que essa ação</p><p>típica e antijurídica não se constitui em um crime. Com efeito, segundo</p><p>o art. 27 do Código, os menores estão fora do Direito Penal.</p><p>Para que o crime se perfaça é necessário que, além dos juízos sobre</p><p>a ação (tipicidade e antijuridicidade), se faça um juízo sobre o autor da</p><p>ação. Esse juízo sobre o autor da ação é chamado de culpabilidade.</p><p>A culpabilidade é um juízo de reprovação pessoal, feito a um autor</p><p>de um fato típico e antijurídico porque, podendo se comportar</p><p>Medidas de Segurança.. 419</p><p>30.1. Efeitos da Condenação.................................................................................. 419</p><p>30.2. Reabilitação.................................................................................................... 424</p><p>30.3. Medidas dc Segurança................................................................................... 428</p><p>Capítulo XXXI - Extinção da Punibilidade.............................................................. 433</p><p>31.1. Objeto do Estudo........................................................................................... 433</p><p>31.2. Morte do Agente............................................................................................ 435</p><p>31.3. Anistia, Graça c Indulto................................................................................. 436</p><p>31.4. Abolição do Crime......................................................................................... 437</p><p>31.5. Decadência c Perempção............................................................................... 438</p><p>31.6. Renúncia do Direito dc Queixa c Perdão do Ofendido................................. 439</p><p>31.7. Retratação do Agente..................................................................................... 440</p><p>31.8. Perdão Judicial............................................................................................... 441</p><p>31.9. Prescrição....................................................................................................... 442</p><p>31.9.1. Prescrição da Pretensão Punitiva in Abstraclo................................ 444</p><p>31.9.2. Prescrição da Pretensão Punitiva Retroativa................................... 446</p><p>31.9.3. Prescrição da Pretensão Punitiva Intcrcorrcntc................................... 447</p><p>31.9.4. Prescrição da Pretensão Exccutória.................................................... 448</p><p>31.9.5. Modificações Legais aos Prazos Prcscricionais................................. 448</p><p>Procurar</p><p>P R E FÁ C IO D O PR O F. J A C IN T O N E L S O N</p><p>DE M IR A N D A C O U T IN H O</p><p>O D R A M A , H O JE , D O D IR E IT O P E N A L</p><p>"Tre só i putenti: ú papa, ú re, e chi nun tene nienti. ”</p><p>"Três são os poderosos: o papa, o rei, e quem não tem nada."</p><p>(Provérbio napolitano)</p><p>1. O momento que se vive é de perplexidade e, sem dúvida, muito</p><p>dela decorre da complexidade com a qual os fenômenos se apresentam,</p><p>arrostando uma infinidade de interrogações. Junto, por primário, sucumbe a</p><p>verdade Toda, obviamente deslocada para o campo da crença. A evolução</p><p>científica e a velocidade - dentre outras coisas - têm muito a dizer aqui,</p><p>mas, ao revés de sanarem as dúvidas, criam-nas com maior frequência.</p><p>Assim, aparentes paradoxos, como aquele expresso no precitado</p><p>provérbio napolitano (de todo genial!), ganham corpo e impõem um</p><p>repensar constante da realidade, não mais passível de se subsumir às</p><p>velhas categorias impostas pela modernidade.</p><p>Ora, por que justo quem não tem nada é, fora do institucional (no</p><p>caso representado pelo papa e pelo rei), exatamente o poderoso? Seria</p><p>como dizer: quem não tem nada, tem tudo!</p><p>Claro, há na assertiva um jogo de palavras, mas em larga escala</p><p>- em que nada se coloca como tropo mais que corresponder a uma</p><p>verdade (veja-se, com minúscula e sem ser Toda, razão por que não vai</p><p>Procurar</p><p>X V I I I Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B rand ão</p><p>precedida do artigo “a”), denuncia a própria falta (que não se confunde</p><p>com inexistência) da Verdade ou, pelo menos ou para ser mais preciso,</p><p>a incapacidade de se chegar nela pela inexistência de linguagem capaz</p><p>de alcançá-la.</p><p>Vive-se, assim, na corda bamba das meras aparências linguísticas,</p><p>cada um se sustentando como pode.</p><p>Os mais perigosos, aqui, sem dúvida, são os “donos da Verdade”, os</p><p>que não têm dúvidas e não se comprometem com seu próprio pensar e com</p><p>seu desejo, agindo burocraticamente por renunciar à subjetividade, a qual,</p><p>como se sabe, é sempre um fardo. Para eles, tem-se a impressão de que</p><p>tudo funciona como se o mundo estivesse acabado, terminado, pronto: cada</p><p>coisa tem o seu lugar exato no mundo das palavras e, assim, respondem à</p><p>vida e suas expectativas com uma certeza (opção) inabalável.</p><p>Por certo, tanta segurança é sintoma exatamente da falta dela, em­</p><p>bora, em alguns casos, possa ser confortável. Mas sempre se paga um</p><p>preço, isto é, não é impune que o “dono da Verdade” perambula pela vida</p><p>traçando, não raro, a desgraça alheia e, assim, a cada passo, precisa dar</p><p>conta para si mesmo dos seus atos. Eis, então, a generalidade dos casos:</p><p>a neurose nossa de cada dia!</p><p>A regra, todavia, admite exceções - e não são poucas - , seja em razão</p><p>de os atos não lhe fazerem questão (talvez fosse interessante dizer: eles</p><p>lhe são indiferentes), seja em razão de “não terem nada”, como assevera</p><p>o referido provérbio napolitano.</p><p>Na última categoria encontram-se aqueles que, muito além da ex­</p><p>clusão econômica, não se têm atados à vida porque, de um modo ou de</p><p>outro, não encontram em si mesmos a própria dignidade do viver, ou</p><p>seja, sentem-se como uns “nadas ambulantes" e, por isso - também - ,</p><p>os outros lhes são indiferentes.</p><p>Gente assim não é produzida só pela exclusão econômica e social,</p><p>mas, principalmente, porque, enxovalhada, não vê razão para se amparar</p><p>nos valores que a cultura produz e cultiva na sociedade.</p><p>Eis, então, um bom modo - mas não o único - de entender o poder</p><p>de “quem não tem nada". O sujeito precisa encontrar, por seus próprios</p><p>atos, um lugar ao sol e, para tanto, os limites não lhe dizem nada de</p><p>substancial.</p><p>Neste caso, quando os atos são desviantes e criminosos, a resposta</p><p>última da sociedade, como se sabe, é determinada pelo direito punitivo e,</p><p>nele, com maior expressão, porque voltado aos crimes e contravenções,</p><p>está o Direito Penal.</p><p>Procurar</p><p>P refácio d o Prof. Jac in to N e lson d e M ira n d a C o u tin h o</p><p>i</p><p>X IX</p><p>A imensa dificuldade, nesses casos, é como tratar dos problemas</p><p>com o Direito Penal que se tem e os inapreensíveis limites (pelo menos</p><p>é possível que seja assim) que impõe.</p><p>A opção pelo incremento do medo é, então, em definitivo, não só a</p><p>mais ingênua como a menos racional delas, justo por representar o senso</p><p>comum diante da normalidade. No caso, porém, não se está a tratar com</p><p>“os normais”, mas, em geral, com “quem não tem nada” e, portanto, não</p><p>lhe diz, não lhe intimida a ameaça do “medo” e a “cultura” criada em</p><p>tomo dele. Exemplo paradigmático, aqui, é a Lei n. 8.072, de 25.07.1990,</p><p>a chamada Lei dos Crimes Hediondos: após tanto tempo, só mostrou até</p><p>agora - e vai continuar assim - o seu lado bárbaro-, não fosse, antes,</p><p>cretino, porque salta à vista o desserviço que presta ao país quando</p><p>ajuda a formar, na desumanidade e quantidade de prisão, a radicalização</p><p>da autonegação dos presos (é difícil imaginar que a pessoa não se veja</p><p>indigna do seu próprio ser e, portanto, enxovalhada, humilhada), assim</p><p>como, por outra parte, fomenta proto-organizações como o PCC, de todo</p><p>inaceitáveis em uma sociedade democrática.</p><p>2. O Direito Penal que se tem hoje, como é evidente, é filho de seu</p><p>tempo, ou seja, do século XIX, da modernidade penal. Nela, como se sabe,</p><p>refletindo-se aquilo que foi a superação do medievo, o indivíduo ganhou</p><p>status de cidadão e, por princípio (Ortega y Gasset falou da substituição</p><p>do príncipe pelo princípio, como se devem recordar todos), o Direito</p><p>Penal é a ultima ratio da sua proteção, justo porque encampa o bastião</p><p>mais longínquo de penetração, pelo Estado, na esfera individual.</p><p>Para tanto, garantiu-se forjando seus postulados e categorias no dis­</p><p>curso da Filosofia da Consciência, mormente na crença de que a Verdade</p><p>(ou verdade Toda) estaria presente na relação sujeito/objeto, por óbvio</p><p>para aquilo que dissesse com os elementos objetivos, como pensavam os</p><p>clássicos e Carrara por todos. No aspecto subjetivo, um tanto quanto sem</p><p>saída (para o seu tempo), louvou-se o que se tinha à</p><p>conforme</p><p>o Direito, optou livremente por se comportar contrário ao Direito.</p><p>Os três elementos gerais que formam a ideia de crime são: tipicidade,</p><p>antijuridicidade e culpabilidade. Esse conceito surgiu originariamente na</p><p>dogmática alemã, que é quase unânime em adotá-lo, e ganhou eco no</p><p>Direito Comparado, sendo chamado de Conceito Tripartido de Delito.'9 19</p><p>19 JESCHECK, Hans-Hcinrich. A Nova Dogmática Penal c a Política Criminal cm Perspectiva</p><p>Comparada. Ciência e Política Criminal em Honra de Heleno Fragoso. Rio dc Janeiro:</p><p>Forense, 1992. p. 221-222. É relevante ressaltar que no seu Tratado de Direito Penal, o</p><p>Procurar</p><p>1 3 0 , Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>Destarte, o crime pode ser definido como uma ação típica, antijurídica</p><p>e culpável. Welzel afirma que a conceituação do crime com base nesses</p><p>três elementos conduz a um alto grau de racionalidade e segurança jurí­</p><p>dica porque o elemento antecedente será sempre pressuposto do elemento</p><p>consequente. Segundo sua lição: “A divisão do delito em três graus de</p><p>juízos e valorações um sobre e em continuação do outro, proporciona um</p><p>alto grau de racionalidade na aplicação do direito, a facilita e a assegura</p><p>contra contradições e arbitrariedades.”</p><p>No mesmo sentido pronuncia-se Jescheck: “No procedimento cri­</p><p>minal, o valor do conceito tripartido de delito reside no fato de que os</p><p>níveis de tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade se sucedem uns aos</p><p>outros no processo de obtenção da resolução, com o qual se possibilita,</p><p>ao menos se facilita, uma jurisprudência ponderada e contrastável, que</p><p>garante assim a segurança jurídica.”20</p><p>Assim, só se pode fazer o juízo de antijuridicidade se já estiver</p><p>perfeito o juízo de tipicidade; só se pode fazer o juízo de culpabilidade</p><p>se já estiverem perfeitos o juízo de tipicidade e de antijuridicidade.</p><p>Com efeito, somente se poderá caracterizar uma ação como anti­</p><p>jurídica se ela estiver proibida através de uma lei, através de um tipo</p><p>penal. É proibido ao Estado considerar uma conduta como antijurídica</p><p>no âmbito penal se não houver uma previsão legal. A culpabilidade, por</p><p>sua vez, necessita dos juízos de tipicidade e de antijuridicidade porque</p><p>só se pode reprovar autor de um fato típico e antijurídico se existir um</p><p>fato típico e antijurídico.</p><p>No Direito brasileiro, todavia, não há um acordo com relação à in­</p><p>clusão da culpabilidade no conceito de crime. Para alguns, como Damásio</p><p>de Jesus,21 Júlio Fabrini Mirabete22 e Celso Delmanto,23 a culpabilidade</p><p>não integra o conceito de crime, sendo apenas um pressuposto da pena.</p><p>autor nomeia esse mesmo conceito dc delito dc conceito quadripartido, porque inclui entre</p><p>os elementos do crime a ação. In verbis: “La agrupaciòn de los elementos de la acción</p><p>punible en un sistema desemboca en la clãsica definición cuatripartida dei concepto de</p><p>delito como acción típica, antijurídica y culpablc” (JESCHECK, Hans-Hcirich. Tratado</p><p>de Derecho Penal. Granada: Cornares, 1993. p. 179).</p><p>20 JESCHECK, Hans-Hcinrich. A Nova Dogmática Penal c a Política Criminal cm Perspectiva</p><p>Comparada. Op. cit. p. 223.</p><p>21 Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1998. v. I, p. 149.</p><p>22 Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 1998. v. I, p. 93.</p><p>21 Código Penal Comentado. Rio dc Janeiro: Renovar, 1998. p. 18.</p><p>Procurar</p><p>C o n c e ito d e C rim e</p><p>i</p><p>131</p><p>O crime é tão só uma ação típica e antijurídica, sendo seu conceito ex­</p><p>presso numa definição bipartida.</p><p>De outro lado, Francisco de Assis Toledo,24 Cezar Bitencourt,25 Aníbal</p><p>Bruno,26 Heleno Fragoso,27 Nélson Hungria,28 João Mestieri,29 Magalhães</p><p>de Noronha,30 Roque de Brito Alves,31 Luiz Régis Prado,32 José Cirilo de</p><p>Vargas,33 Jair Leonardo Lopes34 e João José Leal35 integram a culpabili­</p><p>dade no conceito de crime.</p><p>Para nós, não há dúvida de que a culpabilidade integra o conceito de</p><p>crime. Não se pode dizer que a culpabilidade é um mero pressuposto da</p><p>pena, porque a pena é a consequência jurídica do crime. Assim, o próprio</p><p>crime - e não somente a culpabilidade - é o pressuposto da pena. Ademais,</p><p>a culpabilidade é o único elemento do crime voltado para a reprovação do</p><p>homem, visto que os outros se voltam para o fato. Um Direito Penal só é</p><p>liberal se incluir o elemento que possibilita a reprovação do homem, isto</p><p>é, a culpabilidade, no conceito de crime. Por isso, vários doutrinadores</p><p>já proclamam o princípio nullum crimen sine culpa, não reconhecendo a</p><p>existência de crime sem culpabilidade.</p><p>8 .4 . C L A S S IF IC A Ç Õ E S D O C R IM E</p><p>O crime, como objeto da compreensão humana, pode ser classificado.</p><p>Não procuraremos esgotar este assunto, mas nosso objetivo é fornecer as</p><p>classificações de crimes necessárias à compreensão dos capítulos poste­</p><p>riores. São elas:</p><p>24 Princípos Básicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 82.</p><p>25 Manual de Direito Penal. São Paulo: RT, 1997. p. 171 c scgs.</p><p>26 Direito Penal. Rio dc Janeiro: Forense, 1959. t. I. p. 275.</p><p>27 Lições de Direito Penal - Parte Geral. Rio dc Janeiro: Forense, 1992. p. 141-142.</p><p>M Comentários ao Código Penal. Rio dc Janeiro: Forense, 1958. v. I, t. II, p. 9.</p><p>29 Manual de Direito Penal. Rio dc Janeiro: Forense, 1999. p. 106.</p><p>M Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1991. v. I, p. 94.</p><p>21 Direito Penal. Recife: Inojosa, 1977. p. 279 c scgs.</p><p>12 Curso de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2000. p. 149.</p><p>,J Instituições de Direito Penal. Belo Horizonte: Dcl Rcy, 1997. p. 157 c scgs.</p><p>M Curso de Direito Penal. São Paulo: RT, 1999. p. 104.</p><p>,s Direito Penal Geral. São Paulo: Atlas, 1998. p. 167-168.</p><p>Procurar</p><p>132 Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>a) Quanto ao resultado, os crimes podem ser materiais, formais ou</p><p>de mera conduta. Crimes materiais são aqueles que apresentam</p><p>uma modificação no mundo exterior perceptível pelos sentidos</p><p>(por exemplo, o homicídio - art. 121 - é um crime material</p><p>porque exige uma conduta e um resultado exterior: a morte de</p><p>alguém). Os crimes formais são aqueles de consumação anteci­</p><p>pada, onde o resultado ocorre no mesmo momento da realização</p><p>da conduta criminosa, e é geralmente um resultado de perigo</p><p>(um exemplo de crime formal é o do art. 291 do Código Penal:</p><p>Petrechos para a falsificação de moeda). Crime de mera conduta</p><p>é aquele que não exige um resultado para a sua configuração</p><p>(por exemplo, o crime do art. 150 do Código Penal: Violação</p><p>de domicílio).</p><p>b) Quanto ao elemento subjetivo do tipo, o crime pode ser do­</p><p>loso, culposo ou preterdoloso. Crime doloso é aquele onde o</p><p>agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo (art.</p><p>18, I, do Código Penal); a regra é que só exista a punição de</p><p>uma conduta se ela for dolosa. Crime culposo é aquele que se</p><p>verifica por imprudência, negligência ou imperícia (art. 18, II,</p><p>do Código Penal); para que exista punição a título de culpa é</p><p>necessária a expressa previsão legal. Na culpa, o agente não</p><p>deseja o resultado nem assume o risco de produzi-lo, mas o</p><p>Direito considera criminosa a sua ação porque os meios que</p><p>o agente elegeu para alcançar os seus fins foram considerados</p><p>reprováveis. Há crime culposo, por exemplo, quando um médico</p><p>não é diligente e prescreve um tratamento errado ao paciente,</p><p>causando a sua morte.36 Nesse caso, o Direito não reprovará a</p><p>finalidade do agente (curar o paciente), mas os meios eleitos</p><p>para a consecução do fim, reconhecendo neles a imprudência,</p><p>a negligência ou a imperícia. Os crimes preterdolosos são um</p><p>misto de dolo e culpa, há dolo no resultado antecedente e culpa</p><p>no resultado consequente; é o que ocorre, por exemplo, na lesão</p><p>corporal seguida de morte, onde há o dolo na lesão corporal e</p><p>a culpa no resultado morte. Diz o art. 129, § 3°:</p><p>“Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:</p><p>Pena - detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano.</p><p>)6 O homicídio culposo está cxprcssamcntc previsto no art. 121, §§ 3o c 4o, do Código</p><p>Penal.</p><p>Procurar</p><p>C o n c e ito d e C rim e 1 133</p><p>§ 3o Se resulta morte e as circunstâncias</p><p>mão e, portanto,</p><p>valeu-se do livre-arbitrio.</p><p>Ela (a Filosofia da Consciência), com o Direito Penal a reboque (para</p><p>ficar tão só nele), desde sempre mostrou a sua incompletude e só não</p><p>foi desacreditada (como postulado mesmo) antes porque o narcisismo do</p><p>homem é maior que sua razão. Por sinal, Freud, em um pequeno-grande</p><p>texto (Uma dificuldade no caminho da Psicanálise), mostrou os golpes</p><p>sofridos por tal narcisismo com Copémico, Darwin e ele próprio ao desco­</p><p>brir o inconsciente como centro do vivente. Ora, para isso entender, basta</p><p>Procurar</p><p>X X Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>ter presente que, até para Copémico (embora já se tivesse falado disto</p><p>antes), o sol girava em torno da Terra. Isso era a Verdade', e pronto!</p><p>Hoje - embora siga muito forte a Filosofia da Consciência nos mais</p><p>variados campos, inclusive no Direito - não é mais possível dar conta da</p><p>realidade com a ilusão da completude por ela oferecida. Afinal, o sujeito</p><p>só é sujeito porque vive (Dussel); e porque vive, fala.</p><p>A linguagem tomou-se imprescindível à constituição do ser no mundo</p><p>(Heidegger) e o pensar filosófico só se aproxima de uma verdade - e</p><p>não d (a) Verdade - por seu intermédio. Eis o lugar do interpres, no la­</p><p>tim, ou seja, aquele que se coloca entre duas partes, mas também o que</p><p>explica: inter+pres; daí interpretãtiõ, interpretãtiõnis, interpretação, em</p><p>português, com sua teoria, hermenêutica, decorrente de Hermes, o deus</p><p>grego da fertilidade, filho de Zeus e Maia (filha de Atlas), que levava as</p><p>mensagens dos deuses na Odisséia.</p><p>Aqui (mesmo com o risco de deixar fora quem não podería estar), é</p><p>preciso reconhecer que gente como Freud, Saussure, Heidegger, Jakobson,</p><p>Lacan, Gadamer, Habermas e Dussel tem muito a dizer, justo por, de certa</p><p>forma, auxiliarem ou tentarem construir um pensar no qual uma verdade</p><p>só desperta na relação sujeito-sujeito. Está-se diante, então, de parte (talvez</p><p>uma das mais significativas) da chamada Filosofia da Linguagem; aquela</p><p>que resultou do giro linguístico, dito linguistic turn.</p><p>Não é simples, porém, ao homem, forjado a partir da Filosofia da</p><p>Consciência, abdicar da relação sujeito-objeto, principalmente por repre­</p><p>sentar para ele um “porto seguro”, um lugar no qual a crença construiu,</p><p>por exemplo, a segurança jurídica. Enfim, não é impossível - mas se há</p><p>de entender que é muito difícil - fazer perceber que a verdade oferecida</p><p>pelos objetos disponíveis não é Toda e, portanto, in extremis, não é a ver­</p><p>dade. Diante do objeto, porém, é muito difícil o negar. O problema a ser</p><p>entendido, então, não está aí, ou seja, de que ele não esteja na realidade,</p><p>aquilo que, aos olhos do vivente, se apresenta como parcial e representando</p><p>o mundo exterior. A dificuldade maior está no fato de que, como real, faz</p><p>parte da estrutura psíquica e, quando nela se inscreve (pela parcialidade</p><p>do significante, por elementar, quando da castração simbólica), não pode</p><p>ser simbolizado por completo (pois não era assim que havia chegado) na</p><p>palavra ou na escrita, razão por que se mostra, ali, impossível.</p><p>Da linguagem, todavia, não se tem, hoje, como escapar, mormente</p><p>quando se inscreve, na estrutura, a representação da realidade. Embora,</p><p>como ensinou Lacan, ele (o real) não cesse de não se escrever, vai eclip­</p><p>sado pelo simbólico, que lhe não permite uma apreensão direta.</p><p>Procurar</p><p>P refácio d o Prof. Jac in to N e lson d e M ira n d a C o u tin h o 1 X X I</p><p>O vivente acredita, com frequência, nos seus sonhos, mas não na sua</p><p>incapacidade de investir com a linguagem a realidade e nela não perceber</p><p>o impossível. A linguagem ê em si, e o sujeito, quando se reporta ao</p><p>sujeito, inviabiliza qualquer verdade Toda, deixando a parcialidade como</p><p>marca do humano e daí projetando infindáveis consequências.</p><p>Um dos grandes problemas nesse sentido está situado, sem dúvida,</p><p>no Direito Penal.</p><p>3. Pelo menos na aparência, ele, o Direito Penal, hoje, diante da</p><p>construção que recebeu na modernidade - e o lastro da Filosofia da</p><p>Consciência - , após o giro linguístico, enfrenta pelo menos três problemas</p><p>gigantescos que desafiam a inteligência e a democracia.</p><p>3.1. O primeiro deles - e que tem tirado o sono dos penalistas e</p><p>produzido inúmeros conflitos de concepções - diz com a pedra angular</p><p>do Direito Penal clássico, isto é, estar ele destinado à tutela de bens</p><p>jurídicos. Isso calhava à perfeição (pelo menos discursivamente) no fun­</p><p>damento da Filosofia da Consciência e embalou o sono do dogmatismo</p><p>onde todos eram iguais e, portanto, protegidos; embora, desde sempre e</p><p>por natureza, a tal igualdade se desse perante a lei.</p><p>O direito positivado - e sobretudo o Direito Penal positivo - , pela</p><p>crença na completude da relação sujeito-objeto, objetificava-se natural­</p><p>mente, a tal ponto de a simples previsão legal ser, por si só, o receptáculo</p><p>e o resplendor dos direitos do vivente. Reserva de lei, tipicidade e taxati-</p><p>vidade, como princípios, garantiríam, de modo fidedigno, o cidadão, um</p><p>sujeito de direitos e, assim, um sujeitado, isto é, colocado debaixo - por</p><p>força de subjectíõnis - , só que, agora, era do Direito, tudo com o escopo</p><p>de garantir a proteção prometida.</p><p>O passar do tempo e a realidade dos povos garantiram a inviabilida­</p><p>de do que foi tomado como meta optãta; logo no início se dizimando o</p><p>escopo diante das alquebradas posturas da Escola da Exegese. No fundo,</p><p>seguiam os homens ditando os sentidos possíveis aos textos legais, al­</p><p>guns com maior precisão; outros, nem tanto, ou melhor, apostando-se (de</p><p>modo vitorioso), com frequência, no contrário e, assim, na sua negação,</p><p>mesmo em se tratando de lógica dedutiva, até porque, por princípio de</p><p>exclusão (Aristóteles), algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Ou</p><p>não podería!</p><p>Em se tratando de Direito Penal (mas não só nele, embora prin­</p><p>cipalmente nele, pelo lugar que ocupa), a promessa de proteção se fez</p><p>Procurar</p><p>X X II Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>quimera; e o sentido dado ao texto na criação da norma, com muita</p><p>assiduidade, é fruto exclusivo da razão do intérprete, quando não da sua</p><p>atividade pulsional e, portanto, inconsciente.</p><p>Agregado a isso e com a desculpa de que os tempos atuais exigem</p><p>posições diferenciadas (principalmente em nome do combate à crimi­</p><p>nalidade, sempre a ser medida pela inoperância e incapacidade estatal/</p><p>governamental), cada vez mais, renegando-se a taxatividade, lança-se</p><p>mão de conceitos indeterminados, vagos, opacos (tudo sem muita revolta</p><p>de todos, máxime do Poder Judiciário, o garante-mor da Constituição,</p><p>das leis e dos cidadãos), e se protegem interesses e não bens jurídicos.</p><p>Neste ponto, dizem alguns ter o Direito Penal restado ultrapassado, o</p><p>que é altamente discutível. A polêmica, todavia, não é nem pequena, nem</p><p>despicienda; tudo ao contrário. Quiçá o futuro do próprio Direito Penal</p><p>dependa dos seus resultados.</p><p>O certo, porém, é que os postulados da Filosofia da Linguagem</p><p>não ajudam muito aqui (quando ela prevalece), embora desvelem a far­</p><p>sa protecionista que se criou no quadro paulatinamente ultrapassado e,</p><p>assim, ajuda a denunciar os “justiceiros”, essa praga que se alimenta da</p><p>carniça da falsa democracia e do medo que se vende como mecanismo</p><p>impulsionador da panaceia.</p><p>O Direito Penal da velha concepção, assim, agoniza e, desse modo,</p><p>coloca-se muito mais como problema que como solução.</p><p>3.2. No aspecto subjetivo (eis o segundo dos problemas), a culpa­</p><p>bilidade, como juízo de censura e, em ultima ratio, marcada pelo livre-</p><p>arbitrio (bem dentro do modelo que se supera, talvez como não poderia</p><p>deixar de ter sido), já diante da realidade alheia à visão marcada pela</p><p>Filosofia da Linguagem, fazia muita questão e impulsionou “batalhas</p><p>e guerras" conceituais àqueles que se não conformam em meramente</p><p>reproduzir o ditado pelos experts.</p><p>O resultado, porém, até o momento, não é louvável e com constância</p><p>se percebe um alto grau de mal-estar quando em jogo estão</p><p>as devidas</p><p>explicações. O esforço - sabe-se bem - produziu uma refinada teoria,</p><p>nem sempre de simples compreensão, por sinal, para todos, de professores</p><p>a alunos, passando por profissionais, inclusive especializados. Como é</p><p>primário, isso gera discórdia; e esta desconfiança que, por sua vez, coloca</p><p>de joelhos um dos sonhos mais caros à modernidade, isto é, a segurança</p><p>jurídica. Mas é assim, não adianta negar.</p><p>Procurar</p><p>P refácio d o Prof. Jac in to N e lson d e M ira n d a C o u tin h o X X III</p><p>Hoje, porém, juntam-se alguns complicadores ao problema, mas,</p><p>como precitado, nada parece se comparar à descoberta de Freud: o in­</p><p>consciente.</p><p>Aceite-se ou não a sobredeterminação que ele produz ao agir do</p><p>agente - é matéria para longas investigações só não pode mais ser</p><p>negado; só não mais se permite o faz de conta de não existir.</p><p>Afinal, cada um, mesmo sem o aceitar, sabe perfeitamente os enor­</p><p>mes efeitos que produz na sua própria vida, basicamente quando sofre</p><p>queimando energia psíquica, desde o fazer, o praticar atos mesmo contra</p><p>a vontade, até a falta de respostas às demandas mais profundas, como o</p><p>sentido do existir.</p><p>Para sobre Isso questionar, os meios podem ser os mais variáveis,</p><p>mas não se pode deixar de passar por Freud e, a partir dele, pela lin­</p><p>guagem.</p><p>Ora, quando a linguagem é a realidade objetificada (na visão clás­</p><p>sica penalística), parece evidente que o desprezo por tudo o que com ela</p><p>não se adequar seja sintomático. Assim, como para Lacan, com razão, o</p><p>inconsciente é estruturado como linguagem, é a partir dela que alguma</p><p>resposta pode surgir quando as questões aparecem; e o Direito - e aqui,</p><p>ao que interessa, o Direito Penal - e suas elucubrações podem ajudar,</p><p>ma non troppo.</p><p>Desse ponto de vista, se assim é, não se pode esperar muito do</p><p>Direito Penal de hoje, no qual se foge do problema (quase tomando out-</p><p>siders os que o querem enfrentar) como o diabo da cruz. “Se não se tem</p><p>uma resposta, é porque o problema não existe” (como querem alguns):</p><p>trata-se, por evidente, de mais uma escaramuça de fuga; mas que não</p><p>suprime o problema.</p><p>Assim, ainda não se tem uma resposta adequada à culpabilidade e</p><p>pode ser que, tão cedo, não se tenha. Por isso, o problema (muito grande),</p><p>como indicado, subsiste, desafiando a todos, principalmente porque se</p><p>espera de um terceiro desinteressado (juiz) a solução inexistente desde</p><p>sempre.</p><p>3.3. Mais clara ainda (eis o terceiro problema) fica a situação quando</p><p>o vivente se dá conta de que o Direito Penal não é autoaplicável e, por­</p><p>tanto, o preceito secundário nele tipificado só encontra aplicação através</p><p>do processo ou, como gostaria que fosse a Constituição da República (art.</p><p>5o, LIV), do devido processo legal.</p><p>Procurar</p><p>X X IV i Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>Nulla poena sine judicio e nulla poena sine judice (não há pena sem</p><p>processo e não há pena sem juiz) são princípios lógicos que situam a</p><p>relação mútua de complementaridade funcional (Figueiredo Dias) entre</p><p>Direito Penal e Direito Processual Penal. Este existe, sobretudo, para poder</p><p>ter vida aquele, o qual, por sua vez, só se realiza por meio deste.</p><p>A autonomia de ambos, hoje, não se discute. Com objetos diferentes</p><p>e regras próprias, não deixam espaço para muitas confusões teóricas,</p><p>embora o Direito Processual, por sua natureza, siga instrumental (por</p><p>óbvio), mas não admita ser um adjetivo diante de um substantivo, como</p><p>pretendem alguns em formulação não muito bem meditada, agora em</p><p>face da natureza dos adjetivos.</p><p>Ademais, diante da hermenêutica mais avançada, tem-se um intér­</p><p>prete que, literalmente, cria a norma a partir de um texto preestabelecido,</p><p>tanto que, não raro, assim o faz contra expressa disposição da lei (do texto),</p><p>trazendo de volta o inaceitável, isto é, a afronta ao precitado princípio</p><p>aristotélico da não contradição. E isso se dá em razão de o texto não ser</p><p>fixado a partir de qualquer palavra, mas das escolhidas por expressarem</p><p>valores que se pretende delimitar e, se for o caso, proteger. É o mito da</p><p>lei, pelo qual se espera ter a antecipação de sentido garantida. Desse</p><p>modo, há nele (texto) um critério (Oliveira Ascensão) de valor que lhe</p><p>delineia uma(s) regrais). Elas, por sua vez, oferecem um padrão às de­</p><p>cisões e, assim, impõem uma visão diferenciada das diversas categorias</p><p>axiológicas, nos diversos campos do Direito. Entre Direito Penal e Direito</p><p>Processual Penal, isso fica claro quando se vê que aquele, regulando a</p><p>vida de relações, se vale da dicotomia lícito-ilícito; este, o DPP, por</p><p>outro lado, dirigido primordialmente ao ambiente processual, se vale da</p><p>dicotomia admissível-inadmissível ou eficaz-ineficaz (Castanheira Neves;</p><p>Figueiredo Dias). Eis por que, no DPP, por exemplo, não se questiona</p><p>se uma sentença é lícita ou ilícita, algo que, se ocorrer, vem, em geral,</p><p>a partir do Direito Penal. Mas ela, naquele campo (DPP), pode ser inad­</p><p>missível e, assim, viciada e, portanto, inválida, podendo vir a ser o ato</p><p>declarado nulo\ ou mesmo ser ineficaz, justo pelo ato não ter existido,</p><p>de fato ou de direito. Está aqui, en passant, a base da chamada teoria</p><p>das nulidades, a qual muito pouco tem a ver com a teoria da pena, sua</p><p>(aparente) correspondente no Direito Penal.</p><p>Tudo serve, aqui, para mostrar que ambos estão, metaforicamente,</p><p>a anos-luz de distância, sem embargo da manutenção inarredável da re­</p><p>ferida instrumentalidade. Havería - como de fato há - uma explicação</p><p>tanto para o distanciamento entre eles como, por outro lado, para fazer</p><p>ver que a influência de um no outro é muito grande e, em alguns casos,</p><p>Procurar</p><p>P refácio d o Prof. Jac in to N e lson d e M ira n d a C o u tin h o</p><p>i</p><p>X X V</p><p>extrema (seria importante dizer: em face do manejo do Direito ser feito</p><p>pelos humanos), como, de uma certa forma, para também desbancar o</p><p>glamour da promessa da modernidade: a segurança jurídica.</p><p>Ora, o Direito Processual Penal, como se sabe, é fruto, até por sua</p><p>natureza instrumental, da elucubração. Suas categorias (quem seguisse</p><p>Santi Romano preferiría dizer: suas instituições - como se tem indevi­</p><p>damente generalizado) são resultado de laboriosa produção intelectual e,</p><p>portanto, desde sempre ou mesmo - se se quiser - antes do chamado giro</p><p>linguístico, diziam ao que Cossio chamaria de objetos culturais. Dessa</p><p>maneira, não é difícil entender que, aos seus significantes, não corresponde</p><p>qualquer substância, qualquer matéria, razão por que sempre foi muito</p><p>complicado fazer entender aos leigos (diante da Filosofia da Consciência</p><p>e da relação sujeito-objeto) que, nele, o objeto não está como tal. Para</p><p>isso observar, basta pensar nos conceitos fundamentais do DPP e seus</p><p>núcleos: ação é um direito (às vezes, um dever); jurisdição é poder; e</p><p>processo é um conjunto de atos. Pode-se, por evidente, compreender tudo</p><p>(até porque é apreensível sem muita dificuldade, mesmo sendo como é),</p><p>mas não em função da substância do objeto, de todo inexistente, salvo,</p><p>quem sabe, nos chamados atos reais (Goldschmidt). O entender decorre</p><p>da lógica com a qual se movem os significantes, na cadeia que formam,</p><p>um remetendo para outro em busca do seu sentido, o qual, por evidente,</p><p>só vem depois.</p><p>Para os versados em Heidegger, seria possível dizer que a linguagem,</p><p>ao Direito Processual Penal, é ontológica; e, ao Direito Penal, è ôntica.</p><p>Eis, então, a base da diferença entre ambos, como infindáveis indagações</p><p>que não querem calar.</p><p>O problema do Direito Processual Penal (e do Direito Penal que</p><p>nele ganha realização), diante de tal quadro, é depender sobremaneira</p><p>da interpretação. Afinal, se assim é, não é da coisa que se trata, mas</p><p>do que se diz sobre ela. Pense-se - para se ter tão só um exemplo - na</p><p>denúncia ou na queixa: nelas, a imputação não é o crime ou o caso</p><p>penal dele decorrente, mas o que se diz sobre eles, por sinal em con­</p><p>formidade com o art. 41 do CPP, o qual não deixa dúvida: “A denúncia</p><p>ou a queixa conterá a exposição do fato criminoso, com</p><p>todas as suas</p><p>circunstâncias...”.</p><p>Ora, no jogo da linguagem, o intérprete, com alguma habilidade (e</p><p>hoje não são poucos os que sabem disso), cria a norma que quiser ou,</p><p>em outras palavras, como vem sustentando Lênio Streck, diz qualquer</p><p>coisa sobre qualquer coisa, o que deve ser evitado por evidente absurdo</p><p>Procurar</p><p>X X V I Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>inconstitucional e antidemocrático. Mas é, infelizmente, o que se tem</p><p>passado em largos espaços nos quais prevalece o decisionismo (Ferrajoli),</p><p>vicejam os justiceiros (bem-intencionados ou não, não importa, porque</p><p>atuam desprezando as leis e, sobretudo, a CR, pela manipulação que delas</p><p>fazem), movidos pelo aparente apoio popular construído pela ignorância</p><p>ou má-fé midiática e, também, vai-se a ética.</p><p>O Direito Penal - perceba-se - esvai seu resto de sangue (democrá­</p><p>tico?), que nunca foi muito azul, no momento em que, por ser inevitável,</p><p>vira "''discurso” no processo penal.</p><p>Há uma agravante, porém. O Direito Processual Penal brasileiro</p><p>vai estruturado dentro do Sistema Inquisitório, em razão de a gestão</p><p>das provas (Franco Cordero) estar, primordialmente, a cargo do juiz.</p><p>Hoje, não mais se duvida de tal assertiva, por inúmeros motivos, que</p><p>são despiciendos discutir. A prova (ou, como deveria ser, tudo aquilo</p><p>que é introduzido no processo para tornar conhecido fato, pessoa ou</p><p>coisa), contudo, não só passa pelo crivo do juiz como, por outro lado,</p><p>com muita - e hoje é muita mesmo! - frequência é ele que sai à sua</p><p>cata, autorizado que está pela lei: veja-se, por todos, o art. 156, segunda</p><p>parte, do CPP: “... mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de</p><p>proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida</p><p>sobre ponto relevante”. A dúvida, por primário, é dele (juiz) e o ponto</p><p>relevante - a par de ser um conceito indeterminado - serve para o que</p><p>ele quiser, tudo em flagrante inconstitucionalidade ou, para ser mais</p><p>preciso, em evidente demonstração de não ter sido recepcionado o CPP</p><p>ou grande parte dele pela CR, embora não se tenha muita vontade (para</p><p>dizer o menos) de assim se declarar.</p><p>Aí está, nitidamente, a lógica deformada do sistema inquisitorial</p><p>(Cordero), dado ser ingênuo não imaginar que ele (juiz) decide antes (ou</p><p>pode decidir) e depois sai atrás do necessário para confirmar sua decisão.</p><p>É o primado das hipóteses sobre os fatos (Cordero) e, como não podería</p><p>deixar de ser, o passo decisivo à formação de um quadro mental para­</p><p>nóico (Cordero), ou seja, dentre outras coisas, mas em ultima ratio, de</p><p>um sujeito que acredita nas imagens como se fossem reais.</p><p>Nesse diapasão, o Direito Penal sucumbe pelas aparências, pelos pre-</p><p>julgamentos, peloprêt-à-porter das imagens padronizadas e pasteurizadas.</p><p>Vem à luz, em uma estrutura processual assim delineada, a guerra ideoló­</p><p>gica (da qual tanto se falou) de classes, que resta difícil de negar, mormente</p><p>quando são os menos favorecidos que ocupam os cárceres superlotados,</p><p>verdadeiros depósitos humanos e extrema vergonha no grau de civilidade</p><p>Procurar</p><p>em que se encontra a nação. Por sinal, se valesse, de fato, a CR, deveríam</p><p>estar nos cárceres, pela isonomia, todos os culpados (mas só os culpados</p><p>mesmo!), sejam pobres ou ricos. A opção preferencial pelos pobres (como</p><p>em um avesso do postulado da teologia da libertação) não é alvissareira,</p><p>mas seria ilógica se não fosse assim diante do sistema adotado.</p><p>Outro exemplo do descalabro da situação - e que coloca de joelhos</p><p>o Direito Penal no processo penal - diz respeito à condição lastimável</p><p>da estrutura material e pessoal de que dispõe a Justiça Criminal. Cabería,</p><p>nesse passo, uma longa incursão, impossível nos limites destas parcas</p><p>anotações. De qualquer forma, é imprescindível ter presente, sempre e</p><p>sempre, em razão dos dados do Ministério da Justiça no final de 2007,</p><p>que, se bem contado (no Brasil as estatísticas devem sempre ser computa­</p><p>das assim!), 67% dos presos em todo o sistema prisional do país lá estão</p><p>em face de prisão cautelar, ou seja, prisão de natureza processual e que</p><p>desafia, mesmo que se não queira, o constitucional princípio da presunção</p><p>de inocência, mormente em razão de a extragrande maioria deles ser das</p><p>classes menos favorecidas e, assim, sem a Defensoria Pública devidamente</p><p>implantada (apesar da CR), não se consegue medir o grau de injustiça que</p><p>se está a praticar. O certo, não obstante tudo o mais que se pode discutir</p><p>sobre o assunto, é que a prisão cautelar tem-se colocado, com frequência</p><p>anormal, como prisão definitiva, satisfazendo um certo gozo coletivo em</p><p>determinadas hipóteses, embora sempre inconstitucionais.</p><p>A solução, por evidente, para este terceiro problema, também não está</p><p>disponível, mas denuncia algumas coisas importantes para serem levadas</p><p>em consideração e, dentre elas, a razão por que é tão difícil mudar subs­</p><p>tancialmente o CPP (algo impossível com reformas parciais que servem</p><p>mais para quebrar a harmonia de certa forma dominada e estabelecer um</p><p>casuísmo perigoso), sendo certo que falar em câmbio é falar em câmbio</p><p>epistemológico e, assim, caminhar no sentido do sistema adotado pela</p><p>CR, a fim de fazê-lo efetivo, ou seja, aquele acusatório ou, pelo menos</p><p>(se não se conseguir cumprir a Constituição como se deve), com vocação</p><p>acusatória - e não como faz parte da doutrina, que o define por elemen­</p><p>tos secundários, como, por exemplo, a existência de partes - , máxime</p><p>pela introdução do princípio dispositivo (como princípio ontológico) no</p><p>lugar daquele hoje vigente, o principio inquisitivo. Como significantes</p><p>primeiros - sabem todos - eles ordenam a cadeia de significação e nada</p><p>(praticamente) muda sem substituição de um pelo outro. Este é, quiçá, o</p><p>maior desafio dos processualistas penais pátrios na atualidade, mas pouco</p><p>podem eles fazer se os penalistas não se engajarem no bom combate, algo</p><p>difícil quando tomam o processo penal como um adjetivo, um apêndice,</p><p>P refácio d o Prof. Jacinto N e lson d e M ira n d a C o u tin h o | X X V II</p><p>Procurar</p><p>X X V II I Curso d e D ire ito Penal - P arte G eral - C láu d io B rand ão</p><p>um secundário ou - pior - como pronto e acabado e, assim, sem a devida</p><p>importância. Sem constitucionalizar devidamente o processo penal não se</p><p>consegue sequer ir adiante - como é necessário - nem com o Direito Penal.</p><p>Basta ver, no Brasil, a grande dificuldade de se transitar com a chamada</p><p>responsabilidade penal da pessoa jurídica, dentre tantos motivos pelas</p><p>dificuldades processuais, de todo insuperáveis até o momento, se é que</p><p>um dia poderão ser superadas. Em casos assim, os penalistas (como não</p><p>podería deixar de ser) são obrigados a se manifestarem sobre o problema e,</p><p>em geral, quando o fazem, tratando de matéria processual, obviamente usam</p><p>seus conceitos e, de regra, aqueles aprendidos nos bancos escolares, isto é,</p><p>não raro ultrapassados. Isso, à evidência e por melhor que seja a intenção</p><p>(faz-se mister reconhecer), acaba por funcionar - ou pode funcionar - como</p><p>um empecilho à evolução dos dois campos; e não é o que se deseja.</p><p>É necessário, portanto, um certo acordo entre os estudiosos, embora</p><p>sempre difícil pela cada vez maior complexidade oferecida pela vida. Nesse</p><p>passo, vale a humildade, aquela mesma que, como conceito, se recebia</p><p>em casa - na construção dos sujeitos - para lastrear a ética condutora dos</p><p>comportamentos. Por elementar, isso não é fácil em um mundo marcado</p><p>pela competição e desprezo pela diferença do outro. Mas há de se tentar,</p><p>em nome do Estado Democrático de Direito.</p><p>4. A tentativa, na prática, passa por vários fatores, mas, sem dúvida,</p><p>no caso específico, está em lugar cimeiro a dogmática.</p><p>Mas não basta uma dogmática qualquer, mormente aquela meramente</p><p>descritiva e quase sempre reflexo direto do dogmatismo (já denunciado por</p><p>Kant), essa praga (às vezes tranquilizante às consciências, como fez com</p><p>os nazistas) que assola o mundo jurídico - se fosse permitido assim referir</p><p>- só encontra explicação satisfatória na paz da burocracia e no desejo de</p><p>agir em nome de um, como (quase) profetizou Etienne de La Boétie.</p><p>Em definitivo, faz-se hora de, para todo o sempre, não se confundir</p><p>dogmática e dogmatismo. Aquela é imprescindível ao campo jurídico</p><p>e hoje anda alquebrada pela falta de qualidade e imensa dificuldade de</p><p>uma formação adequada aos tempos atuais. Este, o dogmatismo, serve</p><p>de mecanismo de descarga, pois, como doutrina, cobra, pelo lugar da</p><p>segurança, o afastamento completo da crítica de seus postulados, justo</p><p>por isso transformados cm dogmas.</p><p>A questão há de ser analisada - tudo indica não propriamente</p><p>porque haja consciência da importância dela, a dogmática não pode estar</p><p>atrelada ao dogmatismo, como, por exemplo, ocorre nas estruturas dou­</p><p>Procurar</p><p>P refácio d o Prof. Jac in to N e lson d e M ira n d a C o u tin h o X X IX</p><p>trinárias religiosas, por lhes ser imprescindível. Ao contrário, no campo</p><p>jurídico, o vital é o oposto: estarem desatreladas. Mas aqui, por evidente,</p><p>tal consciência está em nível muito pequeno e, por mais estranho que</p><p>possa parecer, poucos são os que, de fato, têm ciência de ser assim e</p><p>por que è assim. Além de tudo, entra em cena o fator psíquico: assumir</p><p>as interrogações (e, quem sabe, o desespero da falta de respostas) dos</p><p>próprios postulados e admitir que se tratam de mitos (motivos conceituais</p><p>que podem ser ditos no lugar daquilo que, se existir, na linguagem não</p><p>se o tem presente para dizer), é um preço não só grande como o que se</p><p>precisa pagar e, por isso, não se o faz, preferindo o vivente tentar driblar</p><p>os seus fantasmas. Claro, em sendo assim, é muito mais fácil o conforto</p><p>da (aparente) certeza que o desassossego martirizante da dúvida-, do ter de</p><p>vir a descobrir; do ter de vir a fazer; do arriscar romper com um passado</p><p>de certeza, quando não, para ele, verdadeiro. Tal conforto {aparente), sem</p><p>embargo, é altamente pernicioso quando em jogo está a formação dos</p><p>juristas e um futuro da democracia onde eles não representem os simpá­</p><p>ticos (mas inanimados e insensíveis) bonecos dos ventríloquos.</p><p>A dogmática, não seria “neste lugar” ou “sob este prisma”?, só pode</p><p>ser crítica. Para tanto, precisa não só descrever os elementos, as categorias</p><p>teóricas, mas, também e principalmente, indagar dos postulados tudo o</p><p>que fo r possível para, se necessário, transformar. Agindo-se desse modo,</p><p>põe-se em crise (de krísis) o saber, mas se ganha a chance de melhorar.</p><p>Eis por que a dogmática critica é imprescindível: a transformação vera</p><p>e própria só se efetiva a partir dela.</p><p>Nessa relação de assunção de uma postura ideológica e rompimento</p><p>com o lugar-comum, como parece básico, há uma estupenda dificuldade:</p><p>ter coragem suficiente para romper com o passado. Mas é o que se precisa</p><p>fazer e, de certa forma, vem imposto pela natureza com o tempo, por</p><p>exemplo, consumindo a vida. A decisão, porém, é difícil; para alguns,</p><p>muito difícil. Mais fácil, sem dúvida, é o lugar-comum (no campo jurí­</p><p>dico, com manuais e cartilhas enfadonhas e repetitivas), que escraviza o</p><p>vivente e o faz renegar à subjetividade e se submeter à burocratização.</p><p>Há, nesta opção, como que um mero adiamento. Mais cedo ou mais tarde</p><p>o sujeito "estoura ”, embora deixe antes, em geral, um rastro de maldades.</p><p>É, quem sabe, uma (re)leitura possível da “banalização do mal” da qual</p><p>falou Hannah Arendt.</p><p>A dogmática critica, então, é uma brava forma de resistência. Entre</p><p>altos e baixos, acertos e erros, sempre fez resplandecer a honorabilidade</p><p>dos seus adeptos pelo reconhecimento de que a dita resistência não é tão</p><p>só - ou muito pelo contrário - em nome próprio; da mesma forma que</p><p>Procurar</p><p>X X X Curso d e D ire ito Penal - P arte G era l - C láu d io B ran d ão</p><p>a covardia. Os melhores médicos - como dizia o antigo ditado popular</p><p>- não são aqueles que receitam remédios doces.</p><p>Cláudio Roberto Cintra Bezerra Brandão, por sua formação pes­</p><p>soal e acadêmica, não é o médico bom do adágio. E de gente assim o</p><p>Brasil tem sentido muita falta. Sua resistência é a do companheiro (de</p><p>cum panis, não esquecer), que divide o seu saber como se reparte o pão</p><p>na eucaristia, tudo por uma fé inabalável e onde o outro tem sempre o</p><p>seu lugar.</p><p>5. Seu livro é apurado tecnicamente e, assim, tem-se uma Parte Geral</p><p>pensada, meditada e escrita segundo o que há de melhor na atualidade.</p><p>Dele, não se podería esperar outra coisa. Beneditino até a medula, cobra</p><p>de si mesmo mais do que é possível a um mortal, mas sabe que não há</p><p>outro meio de galgar aos patamares mais altos. Os resultados, porém, são</p><p>vistos pela reputação que tem entre os penalistas e, por que não, entre os</p><p>juristas. Quiçá o primus inter pares da nova geração de penalistas do país</p><p>faz por merecer porque segue sendo o mesmo de sempre (como deveria</p><p>se passar com todo mundo), isto é, tem razão suficiente para não permitir</p><p>que a inteligência gigante e aguçada retire a primazia da humildade em</p><p>seu modo de ser. Por sinal, quando a algo do gênero não se resiste - e isso</p><p>precisa se dar para além da sublimação do sujeito transborda o sintoma,</p><p>como expressão de um conflito inconsciente. O vivente, aqui, coloca-se,</p><p>antes de tudo, no lugar do ridículo e, ao invés de provocar inveja (como,</p><p>aparentemente, parece ser o seu desejo), em geral provoca pena, compai­</p><p>xão, dó; invariavelmente, sem embargo (desse pode ser que sim, pode ser</p><p>que não), produz sofrimento aos outros, pelo que é responsável, queira-se</p><p>ou não. Isso nada tem a ver com ser sério, com agir com seriedade: um</p><p>professor deve ser sério (ensinando tudo o que for possível) e exigente</p><p>(Cláudio tem as duas virtudes!), talvez para afastar o malsinado pacto da</p><p>mediocridade do qual falou Gianotti. Nada, todavia, lhe retira a humildade</p><p>e, com ela, a bondade, a solidariedade, a fraternidade.</p><p>O Curso de Direito Penal que ora vem a lume cumpre a tradição da</p><p>Faculdade de Direito do Recife, a casa de Tobias Barreto, que projetou e</p><p>projeta tantos ícones a cada geração. Cláudio Brandão é um deles, que,</p><p>junto com vários outros, formam um grupo que sustenta a honorabili-</p><p>dade da primeira Faculdade de Direito do Brasil. Por trás dele(s) estão</p><p>vários professores de nomeada e, no Direito Penal, bastaria lembrar de</p><p>Everardo da Cunha Luna. Deve-se ter presente, hoje e por todos (que</p><p>também mereceríam lembrança), João Maurício Leitão Adeodato, pela</p><p>imensa importância da Filosofia do Direito e da Teoria Geral do Direito</p><p>Procurar</p><p>P refácio d o Prof. Jac in to N e lson d e M ira n d a C o u tin h o</p><p>i</p><p>X X X I</p><p>na construção de um bacharel, professor e doutor. A nova geração de</p><p>professores do Recife (e não só da UFPE) é tributária a João Maurício</p><p>e outros, tanto quanto, quem sabe, a anterior foi devedora de Lourival</p><p>Vilanova. Sem essa gente - e João Maurício é um especialista, para além</p><p>de tudo, em ressaltar a afetividade dos laços que cria com seus alunos -</p><p>podem-se formar juristas, mas é quase certo que serão leguleios, e eles,</p><p>como marionetes, estarão sempre a serviço de alguma ideologia dominante,</p><p>não raro contra a Constituição e o interesse de todos.</p><p>Respostas aos três problemas antes indicados, o livro não tem; e</p><p>nem podería ter, porque são questões insolúveis por ora, há de se reco­</p><p>nhecer. Mas ele não deixa de buscar a vereda para tentar chegar lá. Basta</p><p>ver como sustenta a “delimitação do estudo e objeto da investigação”,</p><p>apontando na direção correta:</p><p>“Isto posto, a interpretação e aplicação do Direito Penal não</p><p>devem ser feitas de forma autista, isto é, encerradas exclusivamente</p><p>na dogmática daquele direito. Se o que se atinge no Direito Penal</p><p>são bens assegurados pela Carta Política, sua aplicação e interpre­</p><p>tação devem ser feitas em consonância com os Princípios Consti­</p><p>tucionais.</p><p>Isso importa reconhecer que, além do caráter técnico-dogmático,</p><p>o Direito Penal tem um caráter político. Ocorre que o caráter político</p><p>não é inócuo, ao contrário, ele condicionará o objeto e o método</p><p>do Direito</p>

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