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<p>SETTING PSICANALÍTICO</p><p>AULA 5</p><p>Prof.ª Bruna Chime Madrigal</p><p>2</p><p>CONVERSA INICIAL</p><p>O setting psicanalítico apresenta-se amplo, com isso, serão apresentados</p><p>ambientes diversos de atuação, visto que a análise ocorre onde o analisante e o</p><p>analista estão. A partir de uma experiência única do analista com o próprio</p><p>inconsciente, para que possa se autorizar como analista de outrem. Tornando</p><p>indispensável a análise pessoal para aquele que deseja escutar outro. Utilizarei</p><p>como base teórica Freud e Lacan, considerando que há diferentes autores e</p><p>formas de ver e tratar o sujeito.</p><p>Uma das possibilidades de intervenção do analista, consiste na função de</p><p>acompanhante terapêutico. Mais conhecida como tutoria, em ambientes</p><p>escolares, entretanto, será abordado outros cenários além do escolar – que será</p><p>detalhado nos próximos conteúdos. Uma estratégia clínica singular e pouco</p><p>explorada. Apresentarei uma breve retrospectiva histórica sobre o</p><p>acompanhamento terapêutico, a técnica e suas estratégias clínicas, formação,</p><p>campos de atuação e público atendido, objetivando o conhecimento de uma</p><p>prática singular e ampliando as possibilidades de atuação profissional.</p><p>A transferência, que se estabelece já nos primeiros atendimentos e se</p><p>consolida no decorrer do processo, é condição imprescindível para que o</p><p>tratamento se efetue, assim como a implicação do sujeito na análise. Ao</p><p>psicanalista, cabe a ética psicanalítica independentemente de onde estiver</p><p>atuando e a aposta no sujeito inconsciente. Ao analisante, a responsabilidade</p><p>por si mesmo e pelo próprio tratamento, submetendo-se à escuta de si próprio,</p><p>por mais insuportável que às vezes seja e, a partir dela, escolher como deseja</p><p>seguir, se reinventando.</p><p>Para exemplificar e melhor compreender o que será abordado, ao final</p><p>desse percurso, haverá um fragmento clínico de um caso atendido em</p><p>acompanhamento terapêutico (A.T.), por mais de um ano, mantendo o sigilo</p><p>profissional.</p><p>TEMA 1 – HISTÓRICO DO ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO</p><p>O acompanhamento terapêutico surge em meados de 1960 na França,</p><p>anos depois na Argentina, e em 1980, no Brasil, a partir da Reforma Psiquiátrica.</p><p>“Desde o início de sua prática, situada na Argentina nos anos 1970, o AT se</p><p>mostrou uma estratégia efetiva no tratamento das psicoses, geralmente em</p><p>3</p><p>articulação com outros dispositivos, como centros de atenção psicossocial e</p><p>residências terapêuticas” (Metzger, 2017, p. 16).</p><p>Como uma alternativa de tratamento distinta da convencional – em</p><p>manicômios e hospitais –, propõe a circulação pela cidade e um tratamento mais</p><p>humanitário. Sendo possível ocupar outros espaços em vez de apenas do</p><p>consultório para estar inserido no laço social. O movimento de</p><p>desinstitucionalização da saúde mental trouxe outra perspectiva para o</p><p>tratamento das pessoas, um suporte individualizado e maior atenção e cuidado.</p><p>Foram criadas instituições na tentativa de ampliar as possibilidades de</p><p>tratamento, como as comunidades terapêuticas e os hospitais dia. Com a criação</p><p>do Hospital Dia no Brasil, pode-se pensar novas formas de tratar pacientes em</p><p>condições psíquicas e emocionais graves (Pulice, 2012). Auxiliar psiquiátrico,</p><p>amigo qualificado, entre outros termos, foram expressões utilizadas para definir</p><p>a atuação do acompanhante terapêutico, embora ainda haja divergências</p><p>teóricas quanto a eles. Utilizaremos aqui o termo acompanhante terapêutico.</p><p>Nos anos 1950 e 1960, já havia precursores da função que descreveremos do</p><p>A.T. (Metzger, 2017)</p><p>A psiquiatria imperava no tratamento de saúde mental e, com o passar</p><p>dos anos, pode-se questionar as intervenções e o saber médico, ampliando o</p><p>saber em saúde mental para outras áreas profissionais, considerando outros</p><p>saberes, tão importantes quanto os do médico (Pulice, 2012).</p><p>As instituições, após a Segunda Guerra Mundial, ruíram, evidenciando</p><p>atos de violência aos pacientes e mostrando-se insuficientes no atendimento a</p><p>eles, diante de um cenário de conflitos sociais, políticos e pessoais. Com a</p><p>ditadura militar, houve retrocesso e fechamento de algumas instituições, a</p><p>marginalização de sujeitos tidos como “loucos” e sua exclusão do social.</p><p>Em contrapartida, os auxiliares psiquiátricos foram solicitados e o trabalho</p><p>passou a ser exercido nas casas dos pacientes, possibilitando maior</p><p>proximidade entre o auxiliar e a família durante o tratamento, inserido e atuante</p><p>no cotidiano do acompanhado, constituindo-se, a partir disso, o</p><p>acompanhamento terapêutico (Hermann, 2008).</p><p>O auxiliar psiquiátrico sai da instituição, onde acompanhava os</p><p>pacientes em tarefas/ações do cotidiano da instituição, e passa a</p><p>trabalhar diretamente com o paciente, assumindo ele mesmo o estatuto</p><p>de instituição, ao intervir no seio familiar do paciente sem o respaldo</p><p>de uma equipe de trabalho constituída a priori. (Hermann, 2008, p. 17)</p><p>4</p><p>A psiquiatria italiana com a substituição dos manicômios questiona a</p><p>“loucura” humana, definindo a sociedade produtora dela e causadora de</p><p>discriminação e exclusão social. Com isso, acreditava que caberia à sociedade</p><p>desenvolver meios de inserção e tratamento adequados (Hermann, 2008).</p><p>A experiência mais marcante foi a de Trieste, iniciada em 1971, a partir</p><p>da nomeação de Franco Basaglia para a direção de um manicômio</p><p>com mais de 1.200 leitos. Optou-se por trabalhar as relações internas</p><p>do hospital, com o intuito de gradativamente abrir as portas do</p><p>manicômio para a cidade. Criou-se desse modo, uma cultura distinta</p><p>das relações entre as pessoas, em função da responsabilidade</p><p>atribuída aos médicos e, sobretudo, pela retomada da relação do</p><p>interno com a cidade. (Hermann, 2008, p. 21)</p><p>Acredita-se que a circulação social permite ao sujeito acessar aos</p><p>próprios recursos e desenvolver outros, para que possa estar em relação com</p><p>outros sujeitos. Incluir o “louco” no social, de onde nunca deveria ter sido</p><p>excluído. Em vez disso, políticas públicas deveriam amparar tais sujeitos para</p><p>ter qualidade de vida e respeito, diante das suas diferenças.</p><p>Ainda hoje, há um percurso de estudos e pesquisas sobre o</p><p>acompanhamento terapêutico, em diversos países, para ampliação de sua</p><p>atuação. No Brasil, há diferentes centros de formação que amparam o</p><p>acompanhante em seu desejo e prática. Vemos os efeitos do que já fora</p><p>construído após a reforma psiquiátrica, mas ainda há que seguir para não haver</p><p>retrocessos e para que haja mais avanço nessa área de atuação.</p><p>TEMA 2 – A FUNÇÃO DO ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO</p><p>O acompanhante terapêutico é aquele capaz de suportar a “loucura” do</p><p>outro, de acompanhar o sujeito em sua jornada de inventividade no mundo,</p><p>reconstruindo-o a partir de uma perspectiva única. É preciso desejar e sustentar</p><p>essa função. É um fazer junto, mas não apenas isso, fornece a ele estratégias</p><p>para ser e estar onde desejar.</p><p>Sustentar a circulação pela cidade nem sempre é fácil, considerando que</p><p>cada paciente possui suas limitações no tratamento. Estamos ali inseridos com</p><p>nosso próprio corpo, demandando de cada um de nós, por isso, a importância</p><p>do desejo para sustentar essa prática clínica.</p><p>Apostamos no sujeito, mesmo que saibamos que pode haver fracassos.</p><p>Aposta-se nos recursos que o analisando possui e naqueles que pode</p><p>5</p><p>desenvolver a partir do tratamento. Com isso, o setting de trabalho no A.T. não</p><p>se restringe ao consultório, mas pode se dar em outros ambientes da cidade,</p><p>onde o sujeito desejar e precisar circular.</p><p>A transferência é o que tornará viável o acompanhamento, para que a</p><p>partir dela haja um fazer outro por parte do acompanhado. Segundo Lacan (1960</p><p>– 1961, p. 218), “O fenômeno de transferência é ele próprio colocado em posição</p><p>de sustentáculo da ação da fala”.</p><p>Uma suposição de saber, inicialmente, é direcionada ao analista, para</p><p>que, assim, possa depositar sobre ele a confiança em compartilhar</p><p>seu ser. E o</p><p>analista em sua atenção flutuante escuta sem preconceitos e/ou julgamentos,</p><p>abstendo-se de si para ouvir esse outro que o procura. No decorrer do A.T., o</p><p>sujeito, ao se apropriar do tratamento, percebe que detém o saber sobre si e com</p><p>ele pode fazer o que desejar. Sendo o protagonista da própria história, não mais</p><p>se colocando refém dela.</p><p>A forma como o paciente se posicionará frente ao próprio tratamento dirá</p><p>como é seu funcionamento e como se dá suas relações. Por exemplo, a</p><p>dificuldade em estabelecer vínculo e em permanecer no tratamento pode vir</p><p>acompanhada de uma vida solitária em que o paciente possui dificuldades em</p><p>permanecer em relacionamentos.</p><p>Algo se repete na vida do paciente e precisa ser escutado para que seja</p><p>possível agir de outro modo. Lembrando que qualquer comportamento e fala</p><p>observados em análise precisa ser escutado. Não nos precipitemos em concluir</p><p>algo sobre o paciente, mas nos preocupemos em ouvi-lo sem ressalvas.</p><p>A ética da psicanálise é distinta da psiquiátrica, não tendo como objetivo</p><p>a cura do sujeito, mas visando escutá-lo em seu desejo. Entendemos que o</p><p>sintoma possui uma função para a pessoa, por isso, não tentamos eliminá-lo,</p><p>mas o interrogamos. Uma função dentro de uma narrativa histórica,</p><p>enquadrando o estar do sujeito no mundo, a lente pela qual ele vê a realidade, e</p><p>nem sempre está disposto a questioná-la. Contudo, o trabalho de análise o</p><p>conduzirá para tal.</p><p>A associação livre é a única regra ao trabalho, viabilizando-o,</p><p>independentemente de onde o acompanhante e o acompanhado estiverem</p><p>(Freud, 1913). Ela permite o desenrolar de uma cadeia significante e através</p><p>disso, o sujeito enfrentar o que lhe pertence e fazer algo com isso.</p><p>6</p><p>Com relação a cadeia significante inconsciente como constitutiva do</p><p>sujeito que fala, o desejo se apresenta como tal numa posição que</p><p>somente se pode conceber com base na metonímia determinada pela</p><p>existência da cadeia significante. A metonímia é esse fenômeno que</p><p>se produz no sujeito como suporte da cadeia significante. (Lacan,</p><p>1960-1961, p. 214)</p><p>Há um saber inconsciente que o sujeito não sabe que possui, mas no</p><p>decorrer da análise constrói um saber sobre si. O inconsciente é determinante,</p><p>sendo a associação livre não tão livre assim, ou seja, ao falar livremente, mesmo</p><p>que o paciente não utilize uma lógica, seu discurso sofrerá influências do</p><p>inconsciente. O inconsciente se manifesta através de chistes, sonhos, atos</p><p>falhos etc., sendo a partir disso que analisamos o sujeito.</p><p>Segundo Freud, em 1904, na associação livre, o paciente não precisa</p><p>seguir uma coerência no discurso, solicitamos que diga tudo que lhe vier à</p><p>cabeça e o que for trazido será material de interpretação do analista. Mesmo que</p><p>no acompanhamento sigamos um plano terapêutico, ainda assim a associação</p><p>livre é válida e pode ser realizada. Durante o acompanhamento, não nos</p><p>preocupamos em interpretar o conteúdo trazido, mas o escutamos e reteremos</p><p>o que for importante ao trabalho, para posteriormente discutir em supervisão o</p><p>caso.</p><p>Entre as funções do A.T., inclui não apenas o suporte emocional, mas</p><p>também prático, em atividades da rotina, desde a higiene pessoal a burocracias</p><p>da vida diária. O analista conduz o tratamento e não o sujeito, ajudando o</p><p>paciente a atravessar os próprios fantasmas. Escutando o sujeito inconsciente,</p><p>apostando nele e testemunhando suas travessias.</p><p>Na obra de Pulice 2012, foram descritas algumas funções do A.T., como</p><p>servir de modelo de identificação; emprestar o ego; perceber, reforçar e</p><p>desenvolver a capacidade criativa do paciente; oferecer informação; representar</p><p>o terapeuta; agente catalisador das relações familiares e atuar como agente</p><p>ressocializador etc. Funções que podem ser exercidas, de acordo com a</p><p>necessidade de cada caso. Que estejamos atentos a escutar inicialmente, para,</p><p>a partir disso, juntamente com o paciente pensar nessas estratégias de</p><p>intervenção.</p><p>O setting do acompanhamento não se restringe ao consultório, a um</p><p>espaço físico, como as práticas clínicas convencionais (Hermann, 2008),</p><p>podendo ser realizado na rua, na casa do acompanhado, entre outros lugares.</p><p>Um setting ambulante. Será definido com o paciente o ambiente de circulação,</p><p>7</p><p>sendo o espaço escolhido reflexo da transferência no tratamento e material de</p><p>análise na condução do A.T.</p><p>Se não é o setting que garante a condição de que uma psicanálise se</p><p>efetive, no que podemos apostar? O avanço das formulações de Lacan</p><p>apresenta o operador desejo do analista como elemento decisivo. É o</p><p>desejo do analista que dá à pessoa do analista a condição de se</p><p>suportar nesse lugar-função no discurso do analista. (Katz, 2016, p.</p><p>246)</p><p>O acompanhamento terapêutico no Brasil não é uma profissão</p><p>regulamentada. Em outros países, como a Argentina há uma tendência a</p><p>profissionalização da função do A.T. (Metzger, 2017). Sem essa regulamentação</p><p>o profissional tem a liberdade para exercer sua ética, de acordo com o</p><p>embasamento teórico que norteará o trabalho.</p><p>TEMA 3 – PLANO TERAPÊUTICO</p><p>Juntamente com o paciente e/ou com a família, estabelecemos um plano</p><p>terapêutico para o tratamento, definindo dias de atendimento, horários, locais,</p><p>pagamentos, cancelamento de atendimentos etc. O que faz parte da construção</p><p>do setting analítico (Hermann, 2008), de acordo com a necessidade e a</p><p>especificidade de cada caso e de cada profissional. Importante que haja diálogo</p><p>e clareza no estabelecimento no contrato de trabalho, não apenas no</p><p>acompanhamento terapêutico, mas no consultório também.</p><p>No fazer psicanalítico, escutamos a demanda, acolhendo as angústias e</p><p>questões que surgem, mas não respondemos às demandas. Entendemos a</p><p>relevância de ouvir o sujeito para além daquilo que se diz nas entrelinhas do</p><p>discurso, não impondo sobre ele aquilo que temos como bem e bom, moralmente</p><p>falando, mas nos atemos em escutar o sujeito inconsciente e seu desejo.</p><p>Considerando que é singular e relativa a trajetória de cada um.</p><p>O trabalho tem seus impasses, desde a resistência do analista, em</p><p>escutar aquilo com que precisa se haver, de si, até a resistência do analisante,</p><p>em falar daquilo que lhe traz dor, mas também lhe é satisfatório em alguma</p><p>medida.</p><p>A análise tem de lutar contra as resistências de ambas as fontes. A</p><p>resistência acompanha o tratamento a cada passo; cada ocorrência</p><p>[Einfall], cada ato do analisando precisa prestar contas à resistência e</p><p>coloca-se como um acordo entre as forças que objetivam a cura e</p><p>aquelas mencionadas, que a elas se opõem. (Freud,1912 p. 112)</p><p>8</p><p>No A.T., procura-se entender o contexto familiar e social, no qual a pessoa</p><p>está inserida. Por vezes, o acompanhamento vem como uma alternativa ao</p><p>internamento em instituições psiquiátricas, sendo uma opção de tratamento mais</p><p>singular e humanitária.</p><p>Nas entrevistas preliminares, é realizado um diagnóstico diferencial para</p><p>a condução do tratamento. Podendo o analista identificar de que estrutura se</p><p>trata o caso, neurose, psicose ou perversão. Averiguando também a viabilidade</p><p>do acompanhamento terapêutico para o caso em questão. Segundo Freud</p><p>(1913, p. 122), “O início do tratamento com esse período probatório estipulado</p><p>em algumas semanas, aliás, também tem uma motivação diagnóstica”.</p><p>A duração do tratamento é variável, de acordo com o objetivo de cada</p><p>trabalho e com as possibilidades de cada sujeito. Pode haver a necessidade de</p><p>um trabalho de reinserção social, promoção de independência e autonomia,</p><p>desenvolvimento interrelacional, entre outros exemplos de objetivos do A.T.</p><p>Acolhemos a demanda inicial, fazemos um diagnóstico estrutural e seguimos ao</p><p>trabalho de acordo com os objetivos estabelecidos ou por onde o inconsciente</p><p>do sujeito permitir a ele chegar. Junto com o paciente, o ajudamos a ver novas</p><p>alternativas de ser e estar no mundo, fazendo sua diferença pertencer ao mundo,</p><p>não tentando incluí-lo a um padrão normativo.</p><p>Em um caso ou outro, a função do acompanhamento terapêutico visa</p><p>abrir ao paciente uma brecha desde a qual não fique condenado ao</p><p>anonimato de quem sempre é levado e carregador por outros e conte,</p><p>no cotidiano, com o suporte necessário para que – a partir do que se</p><p>vai formulando enquanto desejo – possa exercer algum protagonismo</p><p>no seu modo de circulação e inclusão social. (Jerusalinsky, 2016, p.</p><p>67)</p><p>TEMA 4 – TRABALHO EM EQUIPE</p><p>O trabalho em equipe ampara o profissional em suas intervenções.</p><p>Através das trocas da rede de apoio, permite-se um trabalho mais amplo.</p><p>Considerando que o sujeito é múltiplo em suas facetas, bio-psico-social-</p><p>espiritual e o tratamento pode se dar em todas essas esferas. Juntamente com</p><p>outros dispositivos de tratamento, como psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas</p><p>ocupacionais, entre outros. O A.T. pode entrar como uma extensão ao trabalho</p><p>institucional e/ou clínico, complementando o tratamento já realizado. Segundo</p><p>Jerusalinsky, o acompanhamento terapêutico,</p><p>9</p><p>Consiste em uma intervenção em ato, que possibilita experiências de</p><p>vida e uma sustentação simbólica como ato de um sujeito, permite ao</p><p>paciente uma apropriação desejosa de suas produções e, para tanto,</p><p>é central que a intervenção em A.T. se sustente em interlocução</p><p>interdisciplinar. (Jerusalinsky, 2016, p. 39)</p><p>Nessa interdisciplinaridade, o psicanalista pode suspender seu “saber”,</p><p>abrindo-se para a possibilidade de aprender com o restante da equipe e</p><p>contribuindo também com sua escuta. Para que juntos, possam construir um</p><p>caminho possível de tratamento ao sujeito. Não ocupando um lugar de mestre,</p><p>mas uma horizontalidade, tanto com outros profissionais, quanto com o próprio</p><p>paciente. Em que o saber se constrói juntos e é partilhado por todos, ao contrário</p><p>de uma imposição de saber.</p><p>TEMA 5 – A FORMAÇÃO DO ACOMPANHANTE TERAPÊUTICO</p><p>A formação do analista tem como base o tripé: análise pessoal, supervisão</p><p>e estudo teórico, onde o psicanalista estiver atuando, essa será a égide de sua</p><p>formação contínua. A partir disso, poderá se autorizar em sua práxis. Há outras</p><p>fundamentações teóricas que podem embasar o trabalho de A.T, como a</p><p>comportamental, a fenomenologia etc. Entretanto, um caminho distinto daquele</p><p>traçado por nós da psicanálise.</p><p>A análise pessoal permite ao analista trabalhar sua própria história, antes</p><p>mesmo de ouvir a do outro. Considerando que um analista se forma em sua</p><p>própria análise, primeiro aprendendo a escutar a si mesmo, encarando o seu</p><p>próprio inconsciente. Falar de si pode parecer fácil, mas se escutar e se</p><p>responsabilizar pela própria história tem suas resistências, as quais nos</p><p>deparamos em análise e trabalhamos. Na formação do acompanhante</p><p>terapêutico não é diferente, a análise é fundamental e contínua, sendo o</p><p>inconsciente um trabalhador constante e atemporal. “A análise também faz parte</p><p>da transmissão da psicanálise, é a forma mais prática de passar por essa</p><p>transmissão: viver a experiência da análise. Para escutar o não saber do nosso</p><p>acompanhado, é preciso que tenhamos assentido em nosso próprio não saber.”</p><p>(Metzger, 2017, p. 65).</p><p>A supervisão ou análise de controle viabiliza a continuidade do trabalho,</p><p>pois é através dela que falamos dos impasses, angústias e resistências nos</p><p>atendimentos. O analista auxiliará na condução do caso e poderá ser trabalhado</p><p>questões do acompanhante que surgem no decorrer do processo, pensando</p><p>10</p><p>junto nas possibilidades de tratamento e os recursos a serem utilizados e</p><p>explorados.</p><p>É uma articulação teórico-clínica (Metzger, 2017), em que o caso clínico</p><p>é analisado sob viés teórico psicanalítico, caso esta seja a linha de referência</p><p>seguida pelo profissional. O supervisor geralmente é alguém com maior percurso</p><p>clínico e teórico, disposto a pensar e construir junto. Não alguém que se coloque</p><p>no lugar de mestre, sendo a ética da psicanálise contrária a esse</p><p>posicionamento.</p><p>É a partir das trocas com os pares, colegas de estudo e profissão que</p><p>compartilhamos nosso fazer clínico e aprendemos outras formas de fazer.</p><p>Compartilhamos também o não saber, importantíssimo para o</p><p>acompanhamento, para que a partir dele algo possa ser construído. A</p><p>psicanálise se dá nessa troca. A formação é contínua e não toda, sendo da</p><p>ordem da impossibilidade saber tudo.</p><p>Os “furos” promovidos em nosso saber pelo dispositivo grupal são</p><p>importantes, porque, estando sozinhos, a tentação de achar que somos</p><p>muito sabidos é grande. O dispositivo grupal deve nos permitir</p><p>sustentar nosso não-saber, o que pode ser muito incômodo, mas</p><p>também necessário. O dispositivo grupal interroga o at – quando este</p><p>se deixa interrogar, é claro – de um modo diverso do supervisor e do</p><p>analista e também oferece outro tipo de referência e sustentação no</p><p>trabalho. (Metzger, 2017, p. 66)</p><p>Pelo país e fora dele, há cursos de formação em acompanhamento</p><p>terapêutico com grandes referências no campo psicanalítico, capacitando ainda</p><p>mais o analista que se autorizará na prática clínica. A formação do</p><p>acompanhante terapêutico é contínua, assim como a formação do psicanalista.</p><p>Sendo através do estudo teórico que o profissional se embasará na análise do</p><p>caso, o que torna necessário escolher por qual viés seguir, para se dedicar a ele</p><p>e aplicar em sua práxis.</p><p>NA PRÁTICA</p><p>Descreverei brevemente um fragmento de caso clínico atendido em 2020,</p><p>mantendo o sigilo dos dados da paciente, para exemplificar os conceitos</p><p>trabalhados no capítulo.</p><p>Fui indicada para o trabalho com a paciente que chamarei de Maria, para</p><p>preservar sua identidade. Solteira, 30 anos e desempregada. Fizemos o primeiro</p><p>contato via telefone, no qual foi receptiva, e agendamos o primeiro atendimento</p><p>11</p><p>na casa da paciente. Sua psicóloga de consultório – quem me procurou para</p><p>acompanhamento terapêutico como uma alternativa ao tratamento de Maria, já</p><p>que outrora recorreram ao internamento em hospital psiquiátrico – havia passado</p><p>algumas informações sobre o caso clínico, como tentativa de suicídio, depressão</p><p>e conflitos familiares.</p><p>Na primeira sessão, chego e me deparo com a desorganização da casa,</p><p>entretanto, o sofá – local do atendimento – estava arrumado e no decorrer da</p><p>manhã, me disse que havia arrumado para me esperar. Atitude que dá indícios</p><p>de transferência. Já nos primeiros atendimentos podemos observar a</p><p>transferência se estabelecendo, através dos comportamentos e falas do</p><p>paciente.</p><p>Ainda no primeiro encontro, alinhamos o plano terapêutico, conversando</p><p>sobre locais em que o atendimento poderia ser realizado, foi estabelecido a</p><p>quantidade de sessões por semana e a quantidade de horas a serem realizadas,</p><p>sendo inicialmente quatro vezes na semana, na duração de duas horas por dia,</p><p>o que se modificou no decorrer do tempo.</p><p>A forma de pagamento foi combinada e ajustamos o valor da sessão de</p><p>acordo com uma tabela de preço que estabeleço para os atendimentos,</p><p>considerando o tempo de trabalho e meu deslocamento pela cidade. Em comum</p><p>acordo, iniciamos as sessões naquela mesma semana e Maria mostrou-se</p><p>desejante ao tratamento, o que é importante para que haja engajamento no</p><p>acompanhamento.</p><p>Ela me conta um pouco sobre sua vida e a dificuldade dos últimos anos.</p><p>Rompimentos afetivos, perdas profissionais, desentendimentos familiares,</p><p>frustração amorosa, dificuldade em manter a rotina e solidão, temas</p><p>conversados no decorrer dos atendimentos.</p><p>Aos poucos, a paciente se sente confiante para relatar a acompanhante</p><p>detalhes sobre sua vida. Entretanto, no decorrer das sessões aparece</p><p>resistências, negando-se algumas vezes em falar. Fora respeitado o silêncio de</p><p>Maria e sempre resultava em material de análise.</p><p>Outra grande dificuldade de Maria nos últimos meses era realizar as</p><p>atividades diárias, desde afazeres domésticos a cuidados pessoais, um assunto</p><p>abordado nas sessões. De empresária,</p><p>passou a ter dificuldades em manter a</p><p>própria casa e a si mesma. Com o tempo, ela estipulou atividades para fazer</p><p>durante a minha permanência na casa e sempre realizava. Percebi que a minha</p><p>12</p><p>presença trazia alguns movimentos para a vida da paciente, que agora estava</p><p>estagnada.</p><p>Ao realizar seus afazeres domésticos, me relatava sua história de vida e</p><p>dificuldades, o que possibilitava a ela se escutar em meio ao “bate-papo”. O</p><p>acompanhamento é mais do que estar junto ao paciente, é viabilizar essa fala e</p><p>escuta de si. Para quem sabe gerar uma hiância nesse ciclo que se estabeleceu,</p><p>que fora o que Maria pode fazer com sua história.</p><p>Estabeleceu alguns planos para si, de projetos futuros, o que já alguns</p><p>meses não fazia. Voltou a ser mais ativa em sua rotina, o autocuidado também</p><p>aumentou, comparado a como estava quando iniciamos o trabalho. Pude</p><p>fornecer a Maria uma escuta qualificada e acompanhá-la em seu dia a dia, desde</p><p>ir ao supermercado até ficar sentada no sofá da sala. Sendo um suporte</p><p>emocional nos momentos difíceis. Ainda assim, tinha suas angústias, mas já</p><p>conseguia lidar melhor com elas através do tratamento realizado.</p><p>Esse fragmento exemplifica as possibilidades do sujeito frente ao</p><p>acompanhamento terapêutico, permitindo desenvolver novas formas para lidar</p><p>com suas dificuldades e limitações. Reconhecendo também suas</p><p>potencialidades e desejos. Através da transferência, foi possível trabalhar</p><p>aspectos da história de Maria, o que consequentemente refletiu em mudanças</p><p>no dia a dia. Não houve cura diante do quadro diagnóstico, sendo imprescindível</p><p>continuar com os tratamentos necessários, mas houve um fazer diferente do que</p><p>vinha sendo feito nos últimos anos, houve melhora na qualidade de vida e saúde</p><p>mental. Ela pode se apropriar de sua condição e traçar um novo caminho.</p><p>Antes mesmo de acompanhar a paciente, já realizava minha análise</p><p>pessoal, me havendo com minhas próprias questões. No decorrer do trabalho</p><p>terapêutico, recorri à supervisão para auxiliar na elucidação do caso clínico e,</p><p>além disso, fiz alguns cursos de A.T. para me capacitar mais e fornecer mais</p><p>suporte no processo.</p><p>Infelizmente, com mais de um ano de tratamento, ele precisou ser</p><p>interrompido devido a condições financeiras da paciente e mudanças em sua</p><p>rotina. Entendo que o acompanhamento com Maria foi bem-sucedido, dentro</p><p>daquilo que era possível. Também precisei lidar com minhas frustrações e</p><p>impasses e entender que o ideal não é possível de ser atingido, mas quando</p><p>abrimos mão de tentar cumpri-lo para escutar o sujeito e ver suas possibilidades,</p><p>percebemos que grandes coisas são possíveis. Em nosso trabalho clínico,</p><p>13</p><p>constantemente nos depararemos com situações que nos desafiam e castram</p><p>nossas expectativas. Mas como analistas, aprendemos a ver a realidade de outra</p><p>forma, nos deparando com aquilo que é impossível e fazendo o que está ao</p><p>nosso alcance.</p><p>FINALIZANDO</p><p>Nesta etapa, conhecemos um pouco sobre a origem do acompanhamento</p><p>terapêutico no Brasil e fora dele. Suas atribuições e responsabilidades, muito</p><p>similares ao clássico analista de consultório. O A.T. é fruto da Reforma</p><p>Psiquiátrica, na contramão da institucionalização. Ele trouxe outra perspectiva</p><p>de tratamento, propondo um trabalho humanitário e singular.</p><p>Por não haver uma formalização da função do A. T. no Brasil, a prática é</p><p>exercida por diferentes profissionais da área de saúde mental, cada qual com</p><p>sua ética e métodos. A ética psicanalítica abordada tem sua especificidade,</p><p>sendo a associação livre regra ao trabalho e a escuta flutuante por parte do</p><p>analista imprescindível. Além disso, a transferência – sendo os afetos que o</p><p>paciente transfere ao analista, repetindo algo de sua vida – o que conduzirá e</p><p>tornará viável todo o processo. Claro que diante disso a resistência surge como</p><p>tentativa inconsciente de impedir o trabalho, entretanto, ela é falada e</p><p>questionada durante a intervenção.</p><p>Sua práxis tem como estabelecimento um plano terapêutico singular,</p><p>considerando o cenário no qual o paciente está inserido e suas possibilidades.</p><p>O analista visa escutar o sujeito inconsciente em seu desejo e, a partir dele,</p><p>nortear o tratamento. O objetivo maior do acompanhamento terapêutico é tornar</p><p>o acompanhado o protagonista da própria história, produzindo subjetividade e</p><p>laço social, independente do quadro clínico. Entendemos com a psicanálise que</p><p>há possibilidades ao sujeito desejante.</p><p>Apostamos nele com a ética psicanalítica e embarcamos nessa viagem</p><p>juntos. Independente das resistências encontradas, nos abstendo de nós</p><p>mesmos e nossa própria moral, o que há de mais importante é o acompanhado</p><p>e sua história, por mais trágica que possa ter sido até o momento do A.T.</p><p>Para escutar o outro, o acompanhado precisa escutar a si mesmo, se</p><p>deparar com o próprio inconsciente e suas resistências. O falar nunca se esgota,</p><p>assim como o saber, por isso, a relevância da continuidade tanto da própria</p><p>análise quanto da formação, que também não se esgota em seu saber. Em</p><p>14</p><p>busca desse saber, sobre si e sobre o outro, nos deparamos com o saber</p><p>insabido, aquilo que está encoberto, mas também com o não saber, que é o que</p><p>nos move em nossa escuta e de outrem. O desejo do analista é o que sustenta</p><p>essa função, mesmo não havendo um espaço físico para o trabalho delimitado.</p><p>A supervisão clínica, juntamente com o trabalho em equipe, permite-nos</p><p>pensar e articular o caso de modo teórico-clínico, tendo em vista que o</p><p>acompanhante não detém o saber sobre o acompanhado, sendo importante</p><p>ouvir outros colegas para a construção de um caminho possível ao trabalho.</p><p>Pensamos sobre as possibilidades tanto do sujeito quanto daqueles que o</p><p>acompanham, nos deparamos com a realidade e os impasses dela.</p><p>Na sequência, continuaremos a abordar sobre o A.T., explanando os</p><p>campos de atuação e público atendido. Considerando o setting psicanalítico</p><p>amplo e variável, onde o acompanhante e o acompanhado podem estar, com</p><p>seus corpos e desejos. Visto a impossibilidade de esgotar o assunto, não sendo</p><p>esse o objetivo desse conteúdo, mas de fazer conhecida essa área clínica tão</p><p>vasta e rica.</p><p>15</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>FREUD, S. O método psicanalítico freudiano (1904 [1905]). In: _____. Obras</p><p>incompletas de Sigmund Freud, Fundamentos da Clínica Psicanalítica.</p><p>Tradução de Claudia Dornbusch. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 51-</p><p>61.</p><p>_____. Sobre a dinâmica da transferência (1912). In: _____. Obras incompletas</p><p>de Sigmund Freud, Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Tradução de</p><p>Claudia Dornbusch. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 107-120.</p><p>_____. Sobre o início do tratamento (1913). In: _____. Obras incompletas de</p><p>Sigmund Freud, Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Tradução de Claudia</p><p>Dornbusch. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 121-147.</p><p>HERMANN, M. C. Acompanhamento terapêutico e psicose: um articulador do</p><p>real, simbólico e imaginário. 271 f. Dissertação (Doutorado em Psicologia) –</p><p>Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.</p><p>JERUSALINKSY, J. A especificidade do acompanhamento terapêutico:</p><p>Travessias e travessuras. In: _____. Travessias e travessuras no</p><p>acompanhamento terapêutico. Salvador: Ágalma, 2016, p. 37-51.</p><p>_____. O acompanhamento terapêutico e a construção de um protagonismo. In:</p><p>Travessias e travessuras no acompanhamento terapêutico. Salvador:</p><p>Ágalma, 2016. p. 53-67.</p><p>KATZ, I. Acompanhamento Terapêutico, estratégias clínicas e princípios do</p><p>poder de um tratamento conduzido por um psicanalista. In: _____. Travessias e</p><p>travessuras no acompanhamento terapêutico. Salvador: Ágalma, 2016. p.</p><p>241-253.</p><p>LACAN, J. O seminário, livro 8: a transferência. 1960 – 1961. Versão brasileira</p><p>de Dulce Duque Estrada. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.</p><p>METZGER, C. Clínica do acompanhamento terapêutico e psicanálise. São</p><p>Paulo: Aller, 2017.</p><p>PULICE, G. O. Fundamentos clínicos do acompanhamento terapêutico.</p><p>Tradução de Sandra M. Dolinsky. São Paulo: Zagodoni, 2012.</p>