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<p>III FORMAÇÃO CULTURAL, DESBARBARIZAÇÃO E REEDUCAÇÃO DOS SENTIDOS: UMA EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA 1. O poder educativo do pensamento auto-reflexivo Talvez uma das principais implicações filosófico-edu- cacionais da teoria de Adorno refira-se à defesa intransi- gente de um modo de pensar, que não se entrega diante das facilidades de um raciocínio condicionado a perma- necer na superfície do dado imediato. frankfurtiano de- fende, pelo contrário, a manutenção de um pensamento que ensina a ler as entranhas de cada objeto analisado. dado particular contém dentro de si não só suas idiossin- crasias, mas também as relações sociais, materiais e his- tóricas que foram responsáveis tanto pela sua essência, como pela sua aparência. "(...) é no olhar para o desvian- te, no ódio à banalidade, na busca do que ainda não está gasto, do que ainda não foi capturado pelo esquema con- 109</p><p>ceitual geral que reside a derradeira chance do pensa- ciências. Adorno, no texto diz que essa infe- mento" (MM, p. 58). rência hegeliana aparece de forma explícita no Marx de A Ideologia "O homem Pedro só se refere a si próprio Ao proceder dessa forma, descobre-se uma incon- como homem através de sua relação com o homem Paulo, gruência entre a essência e aparência do objeto, fazendo sou semelhante". com que se vislumbre a distância entre suas promessas e efetivas realizações. Na análise do dado ideológico, obser- Percebe-se a diferença em relação ao raciocínio posi- va-se tanto a verdade do conteúdo das palavras, tais como tivista, que se contenta em encetar explicações superfici- a defesa de uma sociedade mais justa e igualitária, e a fal- ais dos problemas provenientes das relações entre indiví- sidade de que essa promessa se encontra efetivamente duo e sociedade. Dentro desse aspecto, sustenta-se a cumprida. Efetiva-se, portanto, aquilo que os frankfurtia- idéia de que os acontecimentos sociais são desenvolvi- nos chamam de crítica imanente ao próprio objeto. dos numa direção linear, onde nascem e perecem após certo tempo. Na verdade, perde-se de vista a considera- Um conceito fundamental para a efetuação desse ção de que há uma relação de interdeterminação entre es- objetivo é o de negação determinada, desenvolvido por ses mesmos acontecimentos. Sabemos que nas contradi- Hegel. É verdade que os frankfurtianos, e particular- ções geradas entre as relações de produção e as forças mente Adorno, criticaram a forma como Hegel finaliza o produtivas dentro do feudalismo, já se encontram desen- processo do raciocínio dialético, convergindo as anti- volvidas, potencialmente, as características do modo de nomias sociais entre sujeito e objeto no espírito absolu- produção capitalista, por exemplo. "O positivismo se con- to. Contudo, concordam com a intuição hegeliana de verte em ideologia quando elimina primeiro a categoria que verdadeiro conhecimento não fica restrito ao time- objetiva de essência e, depois, conseqüentemente, in- diatismo do objeto, mas que compreende suas relações teresse pelo essencial" (DN, p. 173). espaço-temporais dentro dos sentidos histórico, social Há uma censura ao raciocínio positivista que se ren- e humano. Há uma negação ao dado imediato, para pos- de à tautologia tão criticada nas bases explicativas do teriormente poder compreendê-lo como parte de um mito, pois sabe-se de antemão os resultados que serão processo social, e não como uma parte isolada do todo. obtidos mediante o controle "total" das variáveis. Na ver- A construção da identidade não se limita ao momento dade, pensamento não se conserva apenas em si mes- em que o indivíduo se distancia do objeto, num movi- mo. A pretensão de auto-suficiência do positivismo en- mento de contemplação. contra correlação direta com a veleidade do indivíduo Faz-se necessária a retomada de contato consigo burguês que crê no poder do exercício de sua vontade, a mesmo, pela mediação do trabalho, objetivando-se não despeito de possíveis entraves sociais. A crítica de Ador- só o auto-reconhecimento de si, como também o reco- no, desenvolvida dentro da tradição do materialismo his- nhecimento do outro. A concretização das aspirações pessoais depende do trabalho em conjunto entre o sujei- to e seus semelhantes. A satisfação da autoconsciência só é alcançada mediante o contato com outras autocons- 1. In: Adorno, T.W. e Horkheimer, M. Temas básicos da sociologia. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 52. 110 111</p><p>tórico não ortodoxo, tem papel relevante na desmistifica- em Minima Moralia: "Entre conhecimento e o poder não ção do conceito de indivíduo enquanto entidade absoluta existe apenas uma relação de lacaio, mas também uma e independente. Contudo, atento para o perigo de tal ati- relação de verdade" (MM, p. 48). Além disso, chama a tude, o frankfurtiano também alude ao de uma atenção para a universalização da lógica do equivalente concepção de sociedade que acaba por conduzir ao mes- em todas as relações sociais, tal como pudemos observar mo erro observado na tentativa psicológica de absoluti- na equiparação das leis da matemática, da justiça e da zação do conceito de indivíduo. afetividade. combate à propagação desse princípio en- contra ressonâncias nas atividades cotidianas desenvol- Como vimos anteriormente, o pensamento está sem- pre vinculado a juízos de valores, consubstanciado a inte- vidas em todas as instituições que envolvam processos resses que determinam a forma como o saber será objeti- de sociabilização. Nas escolas, esse tipo de atuação po- deria ser identificado em várias situações. Como exem- vado em produtos sociais posteriormente distribuídos e assimilados pelos indivíduos. Dessa feita, outra contribui- plo, poderíamos fazer menção ao predomínio do nio entre os alunos de que um fenômeno social é comple- ção filosófico-educacional é a de que Adorno estimula a importância do pensamento que reflete sobre si mesmo. É tamente independente de outro qualquer. porque, para ele, que legitima ainda de algum modo a re- Evita-se contato com o modo de pensar que afirma flexão provém de algo que é negativo, e, ao mesmo tempo, que um fenômeno seria concomitantemente ele mesmo e a degeneração da consciência é produto de sua carência outra coisa diferente, idêntico e não idêntico, uma identi- de reflexão crítica sobre si (cf. DN, 58 e 152) Uma observa- dade engendrada pela sua negação. que realmente in- ção como essa entra em choque imediato com o pensamen- teressa ao positivismo é a investigação dos casos isola- to que se isola dos fatos sociais e que se julga independente dos entre Nele, o pensar se torna desacreditado por do estado de escravidão e de miserabilidades gerais. sua parcialidade, perde-se a dimensão da independên- O discurso de que a ciência não tem nenhuma res- cia, desaparece a autonomia da razão, a concepção de li- ponsabilidade perante a desumanização carrega consigo berdade e virtualmente a autodeterminação da socieda- de Esse tipo de mentalidade permanece atuan- tanto a verdade de que potencialmente possui as condi- ções para livrar os homens de suas debilidades, como a te em acontecimentos que aparentemente não possuem falsidade de seu argumento de que está acima das ques- qualquer correlação, tais como a luta pela memorização tões que envolvem as desigualdades entre os opressores de fórmulas e datas exigidas nas avaliações mensais e as e os oprimidos. Como disso, pensamento disputas esportivas que há muito abandonaram o princí- adorniano refuta tanto uma noção de progresso ingenua- pio de que o que importa é a participação e não a vitória a mente otimista, que acredita ter superado os irracionalis- qualquer custo. Ambas as situações se rendem à inexorá- mos míticos, como uma postura que busca um re- vel conclusão de que só dois tipos de caráter são devida- torno a uma natureza idílica que não mais existe, se é que um dia realmente existiu. questionamento da relação entre o poder e conhe- 2. Cf. Adorno, T.W. Para qué aún la filosofia? In: Intervenciones. cimento revela-se central nos textos de Adorno. Diz Versão castelhana de Roberto J. Vernengo, Caracas: Monte Avila Edito- res, 1969, p. 14-15. 112 113</p><p>mente aceitos: os vencedores e os perdedores. Não se sujeito e objeto adjudicada a um jogo de forças e antifor- pode descaracterizar a relevância que a memorização ças. No texto Sobre a lógica das ciências sociais, o Adorno possui no decorrer do processo ensino-aprendizagem. contesta Popper da seguinte forma: Deve-se oferecer oposição, todavia, aos comportamentos dos agentes educacionais que se acostumam com a asso- "Mas o ideal de conhecimento de uma explicação unívo- ciação entre o pensamento superficial e a valorização da- ca, simplificada ao máximo, matematicamente elegante, queles que sempre aceitam a regra do jogo. fracassa quando o próprio objeto, a sociedade, não é uní- voca, nem simples... A sociedade é contraditória e mes- A noção de teoria de Adorno compromete-se com um mo assim determinável, a um só tempo racional e irracio- juízo existencial. Toda produção simbólica, construída às nal, sistemática e caótica, natureza cega e mediada pela expensas daqueles que não tiveram as condições mate- consciência. Os procedimentos da sociologia devem cur- riais e espirituais para usufruí-las, tem dentro de si a po- var-se ante isso" (in: Cohn, 1994, p. 19). tencialidade para que seja democraticamente apropriada pelos responsáveis diretos de sua produção. Adorno fina- A defesa do pensamento auto-reflexivo é balizada in- liza o texto Cultura e civilização dizendo que as promes- clusive na autocrítica estabelecida pelo próprio Adorno. sas que a cultura carrega serão verificadas quando esti- Evita-se, a todo o custo, fechar as portas do raciocínio, a vermos diante de uma sociedade onde não exista mais ponto de recusar sobremaneira a cobrança feita pelos ma- fome e miséria. terialistas ortodoxos a respeito de sua opinião sobre quais Por meio de uma leitura mais apressada, poder-se-ia seriam os agentes revolucionários na sociedade capitalis- ter a impressão de que Adorno recusa completamente as ta Ciente do perigo que tal previsão acar- qualidades do positivismo. Pelo contrário, há uma consta- reta, Adorno prefere argumentar que, se não podemos tação do rigor da dedução e da necessidade de análise aduzir quais são as características. da sociedade "perfei- dos dados empíricos. A própria história da chamada Esco- ta", podemos trabalhar na direção de identificação da la de Frankfurt sempre foi permeada por pesquisas empí- barbárie atual, com o objetivo de poder transformá-la. So- ricas que possibilitaram textos tais como Autoridade e fa- mente uma sociedade mais justa poderá propiciar condi- mília e A personalidade autoritária. Os dados coletados ções para a propagação de um pensamento verdadeiro. em pesquisas como essas foram essenciais, inclusive no Se as ciências conseguirem manter evidente essa que concerne às alterações nas relações entre áreas de tensão existencial que determina as relações entre sujei- conhecimento aparentemente tais como o ma- to e objeto, entre o desejo e as leis gerais, entre a socieda- terialismo histórico e a psicanálise. Adorno, Horkheimer e de e as naturezas interna e externa, conseqüentemente o seus colegas perceberam que, se fosse possível estabele- pensamento assume a sua principal função, defendida cer relações dialógicas entre os escritos de Marx e Freud, sem que suas identidades específicas fossem destruídas, por Adorno, e que poderia ser identificada como sua gran- os fenômenos empíricos poderiam ser explicados de ma- de contribuição ao debate filosófico-educacional a fun- neira bem mais consistente. Mas, a valorização do empí- ção de resistência ao status quo vigente. Porque, apenas rico não quer dizer que deixa de haver uma oposição ao resistindo, não cedendo perante esse sistema coercitivo pensamento descritivo que não considera a relação entre de fato, ou melhor ainda, permanecendo no meio de tudo 114 115</p><p>isso é que se exprime de maneira negativa uma "promes- Para o frankfurtiano, educação é o mesmo que emanci- sa de felicidade" (Stendhal). pação. Percebe-se uma defesa radical do resgate da di- mensão emancipatória da Bildung, em tempos onde pre- dominam situações que imobilizam quase que por comple- 2. Semicultura, formação cultural e educação to suas duas faces centrais: continuidade e temporalidade. A continuidade refere-se à importância de que os conteú- As reformas pedagógicas por si só são insuficientes dos culturais permaneçam presentes no decorrer do pro- para a transformação radical do processo de difusão da se- cesso ensino-aprendizagem. não-presente não pode e micultura. com esse argumento que Adorno alicerça o tex- não deve se transformar num ausente. Contudo, é o que to Theorie der Halbbildung (Teoria da semicultura). Enquan- ocorre quando nos defrontamos com a maneira pela qual a to não se modificarem as condições objetivas, haverá um hi- semicultura se difunde. Ela exige a memorização de fór- ato entre as boas intenções das propostas educacionais re- mulas, datas e nomes que serão rapidamente esquecidos, formistas e suas reais objetivações. Mas, justamente por- mediante a apresentação de um "novo" conteúdo que pre- que pensamento ainda não se encontra reconciliado com cisa ser absorvido imediatamente, evitando-se a execução a realidade, toma-se possível realizar a sua autocrítica, de um raciocínio que procura adjudicar essas mesmas procurando compreender quais foram os fatores que con- fórmulas com a história e os interesses da humanidade. duziram ao seu processo de embrutecimento. Como vimos, a memorização dos conteúdos não dei- Dentro dessa premissa, podemos identificar outra xa de ser uma etapa essencial para o desenvolvimento da importante contribuição de Adorno ao pensamento filo- própria formação cultural, pois ela permite fazer a relação sófico-educacional: a de que os processos educacionais com o mundo fenomênico através do contato com os res- não se restringem ao necessário momento da instrução, pectivos signos. Contudo, não se deve esquecer que a as- mas que certamente o transcendem. Esse tipo de similação dos conhecimentos fica talvez irremediavelmen- nio nos leva a inferir que a esfera do educativo não se deli- to prejudicada, uma vez que os processos reflexivos subju- mita às instituições de ensino, ampliando a percepção a gam-se ao imperativo de que não há tempo a perder. ponto de investigarmos a forma como a mercantilização A outra característica determinante da Bildung, a dos produtos simbólicos determina novos processos edu- temporalidade, relaciona-se à necessidade de que sejam cativos, inclusive nas escolas. Antes de refletirmos sobre considerados os vínculos temporais entre os objetos de es- isso, seria relevante elaborar algumas palavras sobre a Procura-se evitar um tipo de procedimento que inva- concepção de educação. lida a historicidade situada entre eles. Na reposição ime- diata dos produtos semiculturais, têm-se a impressão de que passado não possui mais nenhuma ligação com o presente e com o futuro. Essa concepção a-histórica sus- tenta um presente que parece ser interminável, que pare- estar sempre se perpetuando. Ora, essa circunstância 3. Cf. Nielsen, A.V. Adorno: o trabalho artístico da razão. Tradução é representativa da maneira como a indústria cultural de- de Newton São Carlos: UFSCar, 1993, publicação in- termina a. relação entre a ideologia contida no produto terna, p. 4-5. 116 117</p><p>simbólico e a esperança de que enfim encontramos um pro- ria humana responsável por sua produção. Como pode- duto que nos possibilita ser identificados como indivíduos mos notar, esse é ponto central do seu argumento contra de personalidades A promessa de felicidade a forma como o mandarinato alemão promove o estranha- está vinculada a um eterno presente que tira suas forças mento da subjetividade e sua conseqüente objetivação justamente da mentira de que somos seres emancipados. nos produtos simbólicos. Observa-se, no processo de conversão da Bildung em Já quando se reporta à relevância do processo de Halbbildung, quais foram as da instru- configuração ao real, novamente denota uma postura crí- mentalização da racionalidade científica. Ao invés de ser- tica na medida em que faz objeção ao processo educacio- mos apenas tutelados pelas ordens advindas das institui- nal que visa a formação das pessoas bem ajustadas, ou ções religiosas, atualmente submetemo-nos preponde- seja, conformadas ao status quo atual. Ora, a concepção rantemente aos comandos dos produtos semiculturais, de educação de Adorno objetiva exatamente criticar essa veiculados pela pseudodemocratização da produção sim- sociedade que potencialmente carrega dentro de si o re- bólica. A tutelagem a que Kant era radicalmente contra, torno da A semicultura tem uma relação de pa- quando sustentou a importância de que o homem aban- rentesco tão forte com o princípio da equivalência, que donasse sua condição de menoridade, fazendo uso públi- podemos identificar a difusão da sua lógica dual em todas CO da razão, na sociedade capitalista contemporânea ad- as relações sociais que envolvam um processo de sociabi- quire outras cores. Mas é justamente dentro dessa tradi- lização. Ela pode ser identificada na mentalidade das ção kantiana de defesa do Aufklärung que Adorno expli- chamadas tribos urbanas ou nas torcidas de futebol que cita o seu entendimento do que significa educação como afirmam seu narcisismo coletivo ao mesmo tempo em que emancipação: "De um certo modo, emancipação significa excluem e eliminam os "diferentes". São atitudes comuns o mesmo que conscientização, racionalidade". do indivíduo semiculto aquelas que dizem respeito à falta de tempo em proporcionar algum tipo de aprofundamen- Fica claro que a educação emancipadora possui tanto to sobre qualquer assunto. Esse tipo de comportamento é uma dimensão de adaptação, como uma dimensão de dis- cotidianamente reforçado pela mídia, sob a forma de jor- tanciamento da realidade. Quando Adorno diz que a edu- nais, revistas e biografias romanceadas que fornecem da- cação seria impotente e ideológica, uma vez que ignora o dos superficiais sobre personagens e fatos, perdendo-se objetivo de adaptação, está fazendo uma alusão ao ne- a possibilidade do exercício do raciocínio crítico, que se cessário processo de estranhamento do espírito, presen- converte em mera curiosidade. te na construção do conceito de formação cultural (Bil- dung). No mesmo movimento, está também ciente do pe- Anula-se o sentimento de culpa ou mesmo de horror rigo de absolutização da subjetividade que nega a histó- às práticas preconceituosas quando agradecemos ao des- tino pela oportunidade de pelo menos um miserável se tornar mais novo milionário. Afinal, por que é que não podemos também ser agraciados pela sorte? Novamente, na sociedade capitalista contemporânea, subjetivamen- 4. Adorno, T.W. Educação quê? In: Educação e eman- te confluem-se as barreiras sociais entre os opressores e cipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Editora Paz e Ter- os oprimidos, integrando-os de tal forma que se se dife- ra, 1995, p. 143. 118 119</p><p>renciam em função dos recursos materiais amealhados esses abandonem o estágio primitivo de consciência in- para obter os objetos de desejo, por outro lado se igualam gênua, para atingir o status de consciência crítica. Com no alento pelo reconhecimento geral de que são pessoas efeito, atualmente a passagem da consciência ingênua "dignas". Essa titulação está entrelaçada com a aquisi- para a consciência crítica não é tão simples de ocorrer ção de um símbolo que os identifica como "eleitos", po- como possa parecer à primeira vista. dendo ser desde um automóvel importado ao tênis com a grife da moda. Todos são teleologicamente educados, ou É dentro desse contexto que o conceito de indústria melhor dizendo, semi-educados para essa direção. cultural proporciona elementos para o entendimento das mudanças observadas nas relações entre cultura popular, A partir dessas constatações nos deparamos ao mes- cultura erudita e os processos educacionais subjacentes. mo tempo com um terrível desafio e com outra contribui- Como se pôde ver, o próprio conceito indústria cultural- ção de Adorno para o pensamento foi engendrado por Adorno e Horkheimer em 1947 com o Como é que se pode educar indivíduos que já se conside- interesse de caracterizar uma produção simbólica que ram educados? Evidentemente, essa questão não se res- não promana de um genuíno saber popular, mas sim dos tringe aos milhões de analfabetos de que se tem notícia, interesses do mercado. Foi por isso que se evitou o termo mas também àqueles que se consideram bem informados cultura de massas, justamente porque poderia dar a im- sobre uma miríade de assuntos pelos meios de comunica- pressão de existir uma produção simbólica que permane- ção de massa. Trata-se de se ter consciência de que a cesse intocada pelos laços do fetiche da mercadoria. Essa mercantilização dos produtos simbólicos, ou seja, a in- observação merece ser apreciada, sobretudo pelas teori- dústria cultural, não permite, por antemão, a verdadeira as pedagógicas que fundamentam suas respectivas con- democracia e nem a validação da racionalidade livre, ob- cepções de cultura na dicotomia entre o saber ingênuo jeto de desejo da própria formação cultural. dos dominados e o saber erudito dos dominantes. Há que Para Adorno, a não-cultura pode se converter em se considerar que, nos dias de hoje, a subordinação da consciência crítica, pois ainda conserva certa dose de in- produção simbólica à lógica da mercadoria não prejudica genuidade, ceticismo e ironia. Já a semicultura, que sola- apenas os dominados, mas conduz também à semiforma- pa violentamente essas virtudes, esmera-se na produção ção cultural dos dominantes. Se as reformas pedagógicas do conformismo e da fácil aceitação da realidade. Se con- ficarem alheias a isso, correm o sério risco de contribuir sideramos válida essa dedução, torna-se inevitável a ob- para a reprodução da barbárie, apesar de pretenderem servação de que, nos dias de hoje, esse tipo de consciên- exatamente seu contrário. cia irônica e cética está fadada a ser extinta. Para tanto, basta observar o alcance global das formas de conduta que estão atreladas ao consumo dos produtos semicultu- 3. Psicanálise, Adorno e a educação rais, difundidos pelos mass media. Talvez estejamos fa- zendo parte de uma época na qual não se possa identifi- A interpretação da psicanálise feita por Adorno pode car um autêntico conhecimento popular proveniente dos ser aplicada tanto na análise de questões grupos sociais marginalizados. Um conhecimento porta- rais exemplo, os processos educacionais derivados da dor de signos capazes de prover as condições para que relação irreconciliada entre homem e natureza como na 120 121</p><p>investigação das energias psíquicas direcionadas aos de e de submissão entre os agentes educacionais, em de- No debate com Hellmut Becker, transmitido trimento de propostas curriculares e de atitudes que seriam pela rádio de Hessen em 1969 e que deu origem ao texto reforçadoras de um comportamento não autoritário e au- Educação e emancipação, Adorno defende a atualidade da to-reflexivo. Para Adorno, tanto a ideologia vulgar do prag- proposta de Kant sobre a necessidade de que os homens matismo norte-americano, como a filosofia heideggeriana abandonem estado de menoridade em que se encon- na Alemanha concordam precisamente num ponto: a glori- tram. Eles devem se emancipar da tutelagem feita pelos ficação da subordinação no desenvolvimento do processo outros, ousando fazer uso público de sua própria razão. educacional. Porém, será que a elaboração de consciências Uma leitura equivocada poderia argumentar ser essa críticas e reflexivas dispensa a figura de autoridade? uma defesa de um individualismo que Tanto Becker como Adorno são favoráveis à presença desconsidera a relevância das normas sociais para a vida da autoridade nos processos sociabilizadores, inclusive em conjunto. Adorno certamente não compactuaria com nos que ocorrem dentro das instituições escolares. Apoi- uma visão tão pois sua preocupação se esmera ado nos escritos freudianos, Adorno declara que autori- pelo ponto de vista de que a democracia, corporificada na dade é um conceito psicossocial que ocupa papel central instituição de eleições representativas, depende do de- na consolidação de egos consistentes e, conseqüente- senvolvimento moral de cada indivíduo. Há uma crítica, mente, na formação de pessoas emancipadas. Aqueles também compartilhada por Becker, de que o sistema edu- que possuem uma personalidade não patológica são indi- cacional alemão da época, dividindo-se em escolas para víduos que, nas suas infâncias, introjetaram a figura pa- os altamente para os medianamente dotados e terna e, após um período de dolorosa conscientização, para os desprovidos de talento, praticamente se afasta de perceberam que não há uma correspondência direta en- uma proposta de educação para a emancipação. Enquan- tre o pai real e pai idealizado. A dor de tal descoberta é to for mantido falso conceito de talento, as condições proveniente da desilusão de que o objeto amado não é tão objetivas desiguais são plenamente justificadas. E são poderoso como parecia ser, e a criança que projeta parte essas que determinam a formação educacional daqueles de sua libido narcísica em tal objeto sente-se também, de que são identificados como sujeitos que tiveram a "sorte" certa maneira, impotente. A frustração proporciona con- de já nascerem privilegiados, enquanto que a maioria não dições psicológicas para que ego conteste a identifica- foi tão agraciada pela "bênção" do destino. A conserva- ção com o modelo idealizado e suas respectivas interdi- ção do fetiche do princípio do eu resplandece novamente, ções, tomando contato com outras figuras "socializado- numa sociedade que antecipadamente nega as condi- ras", ou seja, com outros sentimentos, valores e opiniões. ções para a sua afirmação em toda coletividade. Apesar Evidentemente, ocorre um tipo de contestação que não de reconhecer a existência de um certo resíduo natural, solapa definitivamente a imago objeto tanto de Adorno, concorda com as explicações psicológicas de ódio, como também de amor. Estruturam-se, dessa forma, que a própria capacidade de expressão e de sucesso de- as circunstâncias para que ego exerça sua função de re- pende das condições sociais. lativa autonomia na ordenação dos processos mentais. A Outra oposição ao sistema educacional alemão da épo- possibilidade de emancipação depende do contato com ca é a que enfatiza a perpetuação da relação de autorida- um modelo de autoridade. Mas, de acordo com Adorno, 122 123</p><p>(...) de maneira alguma isso deve possibilitar o mau uso expostos nos estádios esportivos, por exemplo, é teste- de glorificar e conservar essa etapa, e quando isso ocorre munho de uma sociedade marcada pela perene tensão os resultados não serão apenas mutilações psicológicas, entre o particular e o geral. No que se trata das tensas re- mas justamente aqueles fenômenos do estado de meno- lações estabelecidas entre os agentes educacionais, não ridade, no sentido da idiotia sintética que hoje constata- se pode desconsiderar que há uma série de manifesta- mos em todos os cantos e paragens". 5 ções de caráter afetivo que estão presentes e que não são admitidas pelo currículo oficial. Becker concorda com o argumento de Adorno de que seria impossível a formação de uma identidade sem al- Desse modo, Adorno investiga justamente a aversão gum contato com alguma figura que representa autorida- dos alunos referente aos seus mestres. No texto Tabus a de. Por outro lado, também, afirma que o movimento de li- respeito do professor, define tabus como representações bertação dessa figura é central. Assim, os professores são subjetivas, de caráter inconsciente ou pré-consciente, necessários, mas não tão relevantes a ponto de se supri- contra a docência. Com o passar do tempo, essas repre- mir as capacidades dos alunos. Adorno corrobora esse sentações têm perdido em grande medida suas bases pensamento e acrescenta a crítica ao fato das pessoas de- reais. Mas os prejuízos psicológicos sentidos não deixam sempenharem uma série de papéis que não permitem dúvidas sobre a influência das condições objetivas nas contato com várias outras identidades. Para a maior parte suas formações. menosprezo pelo mestre é de longa dessas, a identificação "superegóica" sempre redunda data, podendo ser localizado desde a Antigüidade, quan- num fracasso, pois internalizam um pai repressor e, devi- do os inimigos derrotados pelos romanos se transforma- do às pressões sociais, não conseguem efetivar a identifi- vam em escravos, cuja função, entre outras, era a de exer- cação. São pessoas que não pensam muito para se identi- cer a profissão de ensinar. Há indícios históricos de repul- ficar com algum tipo de discurso fascista. Ilusoriamente sa ao mestre também no feudalismo e no começo do re- sentem um incremento das capacidades "egóicas", uma nascimento. Talvez esse desprezo esteja relacionado com vez que acabam por desempenhar os papéis que lhes são a separação e conseqüente valorização da força física so- correspondentes e que são legitimados pelos líderes a bre a força intelectual. Segundo Adorno, na Alemanha, quem se subordinam. pode-se definir essa atitude para com os intelectuais como ressentimento do guerreiro, que logo, por um in- Como vimos anteriormente, a permanência de um cli- terminável mecanismo de identificação, penetra no povo. ma cultural, cuja instrumentalização da racionalidade se Basta colocar em contraste a imagem conservadora, realiza de forma irracional, pressupõe o retorno da barbá- emasculada e apagada do professor com a imagem herói- rie que foi nazismo. E o entrelaçamento entre progresso ca e exaltada dos guerreiros, para observar a alegria com da técnica que exalta o cumprimento de papéis sociais que os meninos brincam de bandidos e mocinhos.6 específicos de cada circunstância e os atos regressivos 6. Cf. Adorno, T.W. Tabus a respeito do professor (Tabus). In: Qua- 5. Adorno, T.W. Educação e emancipação (EE). Tradução e introdu- tro textos clássicos. Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira São Car- ção de Wolfgang Leo Maar. São Paulo, Paz e Terra, 1995, p. 177. los: UFSCar, 1992, publicação interna, p. 60. 124 125</p><p>Na verdade, a relação entre o particular e geral nun- vro durante uma avaliação tem vínculo direto com profes- ca deixou de ser mediada pela força física. Todos os pro- sor que se diz compreensivo e aberto ao diálogo e que, na cessos de sociabilização são construídos, direta ou indire- primeira oportunidade, pune com todas as suas forças. tamente, sob a ameaça da violência expressa pelas puni- narcisismo secundário dos alunos é decorrente da hipocri- ções e pelos castigos. Até bem pouco tempo atrás eram fa- sia de uma sociedade que considera seus agentes educa- mosas as palmadas nas mãos dos alunos que não conse- cionais desprovidos de todas essas contradições. guiam decorar as tabuadas. As escolas são marcadas por uma hierarquia oficial, segundo rendimentos, capacida- Os alunos que triunfam são aqueles que seguem os des intelectuais, notas e outra hierarquia que permanece passos não tão explícitos do mestre. Como contraponto a latente, não oficial e que se baseia na força Na socie- essa situação sadomasoquista, talvez fosse bem mais in- dade capitalista contemporânea, deparamo-nos com mais teressante a postura do docente que assume ser passível uma contradição: por detrás do discurso liberal que é repe- de cometer falhas e injustiças. Para Adorno, os mestres tido pelos docentes, encontra-se a ameaça de punições não deveriam reprimir o afeto, mas sim deixá-lo transpa- exemplares. O fato é que a própria sociedade exige isso. recer de forma racional, reconhecendo-o perante aos alu- nos e a si mesmo: No seu íntimo, os alunos percebem essa incongruência e associam a imagem do professor com a do verdugo. Mas "Provavelmente seja mais convincente um professor que será que também nessa relação não ocorre um processo diga: razão. Sou injusto, sou um homem como vo- de idealização "egóica" do aluno para com o mestre? cês. Algumas coisas me agradam e outras me desagra- Para Adorno, apesar desse processo ocorrer, dificil- dam' do que outro que se mantenha ideologicamente na mente a identificação se concretiza, pois os professores defesa da justiça, mas que logo, sem poder evitar, come- são produtos do conformismo, enquanto profissionais ta a injustiça que havia reprimido" (cf. Tabus, p. 69). burgueses especializados, estando, portanto, bem dis- Se fosse dessa forma, o processo de identificação po- tantes da imago de homem integral projetada pelos alu- deria ocorrer não com base na mentira de uma relação nos. A profissão de ensinar não possui uma divisão nítida igualitária inexistente, mas na verdade de que há um pro- entre afeto e o trabalho, tal como as demais profissões li- cesso doloroso em que uma autoridade está presente e berais, o que dificulta ainda mais o processo de identifica- que não deve ser ignorada, mas sim superada. Adorno ção. Além disso, apresentam-se como indivíduos assexua- então sustenta o argumento de que as pessoas propen- dos, apesar de serem adultos. Contudo, se os alunos te- sas a lutar pela busca da emancipação devem trabalhar mem as ameaças veladas ou não dos docentes, por outro duramente para a educação que tem por finalidade a ob- lado, também desejam possuir o poder conferido ao mes- jeção e a resistência ao estado de barbárie. Como vimos, tre. Se a identificação com os professores fracassa, medi- essa é uma das suas contribuições ao debate filosófi- ante a projeção da libido narcísica, pois eles estão distan- co-educacional. A partir desse procedimento, caminha-se tes da idealização encetada, por outro lado, é fato também em direção à formação de personalidades emancipadas, que os alunos se revoltam e se sentem no direito de trans- tanto por parte do aluno, como por parte do docente. De gredir as regras, pois também se identificam com agres- fato, a interpretação adorniana da psicanálise pode con- sor. A desonestidade presente no aluno que consulta o li- tribuir, e muito, para a concretização desse objetivo. 126 127</p><p>4. A desbarbarização da educação Não obstante à sábia advertência de Adorno, a publi- cação de suas falas nos mostra um outro lado do teórico, "Contra essa falsa veneração, poderia ser objetado sobri- oculto em seus textos principais: alguém que apresenta amente que, de fato, da funda até a bomba atômica, o sugestões concretas de procedimentos pedagógicos, de progresso é escárnio satânico, mas que somente na épo- articulação entre a teoria e a prática educacional. A nosso ca da bomba atômica é possível vislumbrar uma situação ver, essas "sugestões concretas de procedimentos peda- em que desaparecesse a violência do todo" (Adorno). além de satisfazer, em parte, nossa busca in- contida de elementos voltados para "quêfazer", nos ser- A questão da "desbarbarização da educação" aparece vem sobretudo de diretrizes teóricas para o reencontro do de maneira aguda e constante em suas conferências e en- educador profundo, presente, por exemplo, na Dialética trevistas realizadas na Alemanha, particularmente de 1959 do esclarecimento, na Dialética negativa. a 1969, algumas delas através das rádios de Hessen e de Frankfurt. Essa seqüência de debates pedagógicos mos- A presença da barbárie ou a perspectiva de seu retor- tra-nos os esforços práticos desenvolvidos por um notável no fez parte do contexto sociocultural de Adorno, desde a pensador para difundir sua concepção de educação políti- ascensão do nazi-fascismo em 1933 até sua morte em ca, enquanto um instrumental básico no processo de 1969. Seus textos são um depoimento contínuo e pungen- emancipação do sujeito. É verdade que Adorno resistiu te dessa verdade. A barbárie não é a filha bastarda do ca- muito à idéia de publicar suas conferências e entrevistas. pitalismo burguês e sim geração permanente do interior Ele, que primava pela construção elaborada de seus escri- do próprio processo civilizatório. Na conferência radiofô- tos, não se sentia à vontade em dar forma definitiva às nica de abril de 1965, Educação após Auschwitz, expres- suas falas. Já em 1962, ao reproduzir a palestra "Para sa esse princípio norteador que já tinha aparecido na Dia- combater o anti-semitismo hoje", assim se expressava: lética do esclarecimento, em Mínima Moralia e que, de- pois, irá aparecer no texto Progresso e na Dialética negati- "O autor tem consciência de que, por sua eficácia va: "a civilização diz Freud produz a anticivilização e a fica, a distância entre a palavra falada e a palavra escrita reforça progressivamente (...) Se no próprio princípio da é ainda maior do que usualmente. Se ele falasse tal como civilização está implícita a barbárie, então repeti-la tem é obrigado a escrever em função do compromisso com a algo de As condições objetivas que pro- apresentação do objeto, tornar-se-ia incompreensível; duziram a barbárie de Auschwitz, de Hiroshima e Naga- mas nada do que pode dizer pode fazer jus ao que é preci- saki, do genocídio da população do Timor pela Indonésia so exigir de um texto. (...) No fato de existir por toda parte e das torturas e assassinatos de adversários políticos co- a tendência a gravar em fita a conversa descompromis- metidos pelas ditaduras militares sul-americanas e tan- sada, como se diz, autor enxerga um sintoma daquele tas recaídas nas práticas desumanas permanecem, sua comportamento do mundo administrado que fixa até maldição não foi ainda exorcizada. A procissão das famin- mesmo a palavra efêmera que tem sua verdade na pró- pria transitoriedade, para comprometer o orador com ela. registro gravado é como a impressão digital do espírito vivo (Kadelbach, in Maar, 1995, p. 9). 7. T.W. Educação após Auschwitz (EAA). Tradução de Aldo Onesti, In: Conh, G. Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1986, p. 33-34. 128 129</p><p>tas e violentadas crianças e mulheres africanas, as muti- trabalhar contra essa devem os homens lações e mortes cotidianas de pessoas inocentes no Rio e ser dissuadidos de, carentes de reflexão sobre si mesmos, em São Paulo, vítimas das gangues das drogas e da vio- atacarem os outros. A educação só teria pleno sentido lência urbana generalizada, mostram a trágica atualida- como educação para a auto-reflexão crítica (EAA, p. 34-35). de das análises adornianas sobre a permanência das con- dições objetivas que geram a barbárie. Na conferência radiofônica Educação contra a barbá- rie, em abril de 1968, Adorno denuncia que a forma como a Adorno constata a dificuldade, no quadro do capita- lismo tardio, de se superar as condições dadas. Diz ele na barbárie se reveste nos dias de hoje é a de, em nome dos Minima Moralia: "Progresso e barbárie estão hoje, como detentores do poder, praticarem-se atos que engendram cultura de massa, tão enredados que só uma ascese bár- a deformidade, o impulso destrutivo e a essência mutila- bara contra essa última e contra o progresso dos meios da da maioria das Em texto anterior, já dissera seria capaz de produzir de novo a não-barbárie" (MM, p. que o positivismo, a indústria cultural, os donos do poder 43). E, apesar da quase impossibilidade de encontrar saí- querem os sujeitos impotentes por medo da objetividade das concretas para a situação dada, não perde que está conservada apenas nesses sujeitos (cf. MM, p. como em nenhum de seus escritos perdeu - a esperança 60). É preciso reconstruir a individualidade do sujeito na de as pessoas construírem saídas. Assim, em seu denso experiência com os outros sujeitos, para que essa indivi- texto sobre o Progresso, resultado de uma conferência fei- dualidade seja a fonte impulsionadora de resistência ta no Congresso Filosófico de Münster em outubro de num mundo danificado. 1962, se expressa: "As instituições esclerosadas, as rela- A desbarbarização, pois, se apresenta como um dos ções de produção não são pura e simplesmente um ser, mais importantes objetivos da educação. Essa proposta mas sim, embora se apresentem com onipotentes, algo tinha sido afirmada por adorno na Educação após Aus- feito por pessoas, e, portanto, revogável". chwitz (abril de 1965), referindo-se especificamente à re- As possibilidades de, no momento, educação do homem do campo (EAA, p. 37-38). Nesse mudar radicalmente os pressupostos socieconômico-po- mesmo ano, em outra palestra radiofônica, Tabus a res- líticos que geram a barbárie levam Adorno a enfatizar o peito do professor, insiste na temática: "se a barbárie é lado subjetivo, desenvolvendo o que se denomina a volta justamente o contrário da formação cultural, então a des- ao sujeito. E nessa tentativa, a educação, a psicanálise, a barbarização das pessoas individualmente é muito im- auto-reflexão crítica assumem uma posição portante. (...) Este deve ser o objetivo da escola, por mais "Deve-se conhecer os mecanismos que os homens restritos que sejam seu alcance e suas possibilidades" assim, que os tornam capazes de tais atos. (...) Devemos (Tabus, p. 117). Alguns anos depois, 1968, na conferência 8. Adorno, T.W. Progresso (P). Tradução de Maria Helena Ruschel. 9. Adorno, T.W. A educação contra a barbárie (ECB). In: Educação In: Palavras e sinais: modelos críticos 2. Petrópolis: Editora Vozes, 1995, e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, p. 55. 1995, p. 159. 130 131</p><p>A educação contra a barbárie, volta a defender esse ponto mesmo julga adquirir o direito de sê-lo também com os de vista: "A tese que gostaria de discutir é a de que des- outros, "se vinga da dor que não teve a liberdade de de- barbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação monstrar, que precisou reprimir". Para Adorno, esse me- hoje em dia" (ECB, p. 155). Nesses textos, quando fala de canismo deve ser conscientizado, e se deve, ao mesmo barbárie, refere-se diretamente ao preconceito delirante, tempo, fomentar uma educação que não mais valorize a à opressão, ao genocídio, à tortura, tão presentes na so- dor e a capacidade de suportá-la (cf. EAA, p. 39). ciedade de seu tempo e também na nossa. Para Adorno, a desbarbarização é decisiva para a sobrevivência da pró- da educação para a dureza é a formação pria humanidade. E volta a enfatizar que, na situação educacional das pessoas que se apresentam com o cons- mundial presente, em que não se vislumbram outras pos- ciente coisificado. São pessoas que se distinguem pela sibilidades mais abrangentes de se superar a barbárie, é incapacidade de realizar experiências humanas, pela au- sência de emotividade. Elas se relacionam ambiguamen- preciso contrapor-se com força a ela, principalmente na com a técnica, como se esta fosse um fim em si mesmo, escola, ajudando a esclarecer os alunos do pesado legado que satisfizesse plenamente as carências humanas. Seu que se abate sobre a humanidade (cf. Tabus, p. 117). amor tecnológico, absorvido por objetos, as torna intima- Adorno julga que quando a problemática da barbárie é mente frias, incapazes de amar outras pessoas. Equipa- tratada com urgência e agudez pela educação, o simples ram-se de certa forma às coisas e tendem a considerar os fato de se colocar essa questão no centro da consciência outros também como coisas (cf. EAA, p. 40-42). Só o que já traz benefícios e possibilidades de mudanças. Reco- está reificado, que pode ser contado, medido, existe para nhece que existem momentos repressivos e opressivos elas. Adorno, no ensaio Sobre o sujeito e objeto, expressa no conceito de educação e de cultura e que esses momen- bem a vivência fetichizada dessas pessoas: "A consciên- tos ajudam a produzir e a reproduzir a barbárie (ECB, p. cia coisificada, que se entende mal a si mesma como se 157). Daí a importância de se entender mais a fundo o seu fosse natureza, é ingênua: toma a si mesma algo que conceito de desbarbarização. veio a ser e que é completamente mediado em si como Mas exatamente quando os ansiosos por soluções se fosse, conforme expressão de Hegel, a esfera do ser práticas perguntam: Então, que Adorno mergu- das origens absolutas" (SO, p. 192). lha em suas No parágrafo do Vale a pena levantar aqui dois outros aspectos impor- texto Tabus a respeito do professor, ele se depara com tantes do que se deve combater nesse processo de des- essa problemática: "Por fim coloca-se a questão barbarização. primeiro diz respeito à prática do espor- vel do fazer'? (...). Muitas vezes essa questão sabota No tema A educação após Auschwitz, Adorno apre- desenvolvimento do conhecimento neces- senta a ambigüidade do esporte, que, de um lado pode sário para possibilitar qualquer transformação" (Tabus, ser um encontro social, dentro de um clima de competiti- p. 113). Mas não deixa sem resposta seus interlocutores. vidade, permeado pelo cavalheirismo, pela solidarieda- Na elaboração da proposta de desbarbarização da de, pelo respeito ao adversário, portanto, com um manan- educação, Adorno começa denunciando os caminhos que cial de energias potencialmente educativas. Por outro não se devem seguir. Critica inicialmente "a educação lado, em muitas de suas modalidades, pode gerar agres- pela dureza" como errada. Aquele que é duro consigo crueldade, violência generalizada, seja entre seus 132 133</p><p>participantes, como entre seus torcedores. O fanatismo, a plandeceu sob signo do infortúnio triunfal. Os frankfur- exacerbação da competitividade sobretudo no esporte tianos, porém, nunca perderam a esperança de resgatar a profissional podem suscitar explosões de barbárie, prin- potencialidade crítica do esclarecimento espezinhada e cipalmente, diz Adorno, em pessoas que não se subme- pelo capitalismo tardio. esclareci- tem aos esforços e à disciplina do esporte (cf. EAA, p. 38). mento (Aufklärung) para Adorno é a negação do caráter O outro aspecto está relacionado com o princípio da repressivo e unilateral do esclarecimento da indústria cul- tural e só se realiza enquanto possibilidade de um esclare- competição, particularmente utilizada em escolas, de dife- cimento reflexivo e dialético, que vem atualizar o sentido rentes regimes políticos, como um instrumental pedagógi- do sapere aude ousar É o que afirma ex- CO por excelência. Adorno, bem como seu interlocutor Hel- mut Becker, na entrevista A educação contra a barbárie, plicitamente Adorno na Educação após Auschwitz: vão analisar essa temática, mostrando-lhe também sua "A educação só teria sentido como educação para a au- ambigüidade. A competição, enquanto estímulo, emula- to-reflexão crítica. (...). A única verdadeira força contra ção, bem orientada, pode ser realmente um instrumental princípio de Auschwitz seria a autonomia, se é que posso pedagógico. Porém da maneira como usualmente é utiliza- utilizar a expressão de Kant; a força para a reflexão, para a da nas escolas pode ser um instrumental reprodutivo da autodeterminação, para a não-participação" (EAA, p. 37). intensa competição presente na essência do sistema capi- talista, que transforma os homens em inimigos dos próprios Adorno, já vimos, tem plena consciência de que a homens, privilegiando, na lei da sobrevivência, o domínio educação apenas, por mais crítico-reflexiva que seja, não dos mais fortes, mais ricos, mais cultos, mais armados. tem condições sozinha de transformar radicalmente a si- Para Adorno, a competição é um princípio no fundo con- tuação de barbárie predominante. Porém ela tem uma es- trário a uma educação humana. É preciso diz ele "desa- pecificidade insubstituível, e isso é expressivo em diver- costumar as pessoas de se darem cotoveladas. Cotovela- sas colocações suas. Assim, a educação, enquanto escla- das constituem sem dúvida uma expressão da barbárie". recimento geral, pode criar um clima espiritual, cultural e Becker, por sua vez, concorda com Adorno, e critica tam- social que não dê margem a uma repetição; um clima em bém a utilização da competição como um instrumento cen- que os motivos que levaram ao horror se tornem consci- tral da educação para aumentar a eficiência. Diz ele: "Eis entes, na medida do possível (cf. EAA, p. 35-36). No final um aspecto em que pode ser feito algo de fundamental em desse mesmo texto vai reafirmar que receia que através relação à desbarbarização" (cf. ECB, p. 161-193). das medidas educativas será difícil evitar que assassinos que entende Adorno por "desbarbarização da edu- de escrivaninha tornem a aparecer. Contudo existem pes- cação?" A nosso ver, duas características constituem esse soas lá embaixo, como servos, que praticam atos de bar- princípio pedagógico: a educação enquanto esclareci- bárie porque são mandados e perpetuam assim sua pró- mento e a educação enquanto emancipação. Vimos que, pria servidão. A chamada "obediência devida" revela a na Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer ten- barbárie que se volta contra o semelhante, que é tomado tam mostrar que o esclarecimento perseguia o objetivo de como antagonista, e contra o próprio autor, que se torna livrar os homens do medo e de fazer deles senhores, po- servo autobarbarizado. É vital fazer alguma coisa a esse rém, quando a terra se julgou toda esclarecida, ela res- 134 135</p><p>respeito pela educação, pelo esclarecimento (cf. EAA, p palavra, ser senhor de si. A emancipação pressupõe a ap- 45; cf. ECB, p. 164). e a coragem de cada um em se servir de seu próprio esclarecimento pedagógico não é privilégio da re- De certo modo, pois, emancipação se apro- flexão Adorno atribui importância fundamental xima de conscientização, racionalidade. à psicologia, enquanto atividade que pode levar à cons- Uma educação que procura evitar a volta à barbárie cientização os mecanismos subjetivos, fortalecendo na deverá se concentrar na primeira infância. Quanto melhor pré-consciência determinadas contra-instâncias, que forem esclarecidas as crianças, mais chances elas terão ajudam a preparar um clima desfavorável aos extremis- de formarem seu ego e ajudar a criar um ambiente mais mos (cf. EAA, p. 44). Acreditava que o consciente nunca humano (EAA, p. 35, 43-44). É necessário que esse pro- acarreta tantos males quanto o inconsciente, semicons- cesso educacional ocorra num período etário da pré-esco- ciente e o pré-consciente. Defendia a atualidade do la, onde não se verificam apenas adequações sociais de- nhecimento autêntico e integral da psicanálise e seu po- cisivas e definitivas, como sabemos hoje, mas também tencial enquanto auto-reflexão crítica. Daí que, para ele, o ocorrem adaptações decisivas das disposições anímicas problema da realização prática do esclarecimento subje- (Becker, ECB, p. 166). Até hoje nenhuma investigação tivo deveria ser resolvido através dos esforços conjuga- diz Adorno num fragmento das Minima Moralia explo- dos de pedagogos e psicólogos. Mas não só. Outras disci- rou o inferno em que se forjam as deformações que, mais plinas universitárias, como a sociologia, tinham também tarde, vêm à luz. Há razões para supor que essas deforma- essa responsabilidade, procurando reservar na investi- ções ocorrem em fases do desenvolvimento da criança gação histórica esclarecimentos sobre períodos de pró- que são anteriores até mesmo à origem das neuroses: pria história de suas nações. "se estas são o resultado de um conflito no qual a pulsão Adorno fazia questão de enfatizar que, quando se re- foi derrotada, então a situação, que é tão normal quanto a feria à função do esclarecimento, de maneira alguma pro- sociedade deteriorada à qual ela se assemelha, resulta punha a conversão de todos os homens em seres inofensi- como que de uma espécie de intervenção pré-histórica que inibe as forças antes mesmo de surgir qualquer con- vos e passivos. Isto porque, inclusive, essa passividade flito, e a subseqüente ausência de conflitos reflete deci- inofensiva pode constituir ela própria uma forma de bar- são prévia, o triunfo do a priori da instância coletiva e não bárie, na medida em que está pronta para contemplar o a cura pelo conhecimento" (MM, p. 50). horror e se omitir no momento decisivo (cf. ECB, p. 164). Para ele, o esclarecimento consistia essencialmente em Nos textos Educação para quê? Adorno tenta carac- se voltar para o sujeito, fortalecendo sua autoconsciência terizar melhor o que ele entende por uma educação eman- crítica, e portanto a si mesmo. cipatória. Educação não é um processo de modelagem de Vinculado ao esclarecimento reflexivo e dialético no pessoas, porque ninguém tem o direito de modelar al- processo da desbarbarização da educação está a busca guém a partir de fora. A educação não é também mera transmissão de conhecimentos. Transformando os sujei- da emancipação, a Mündigkeit kantiana. Mund, em ale- mão, quer dizer boca. Mündigkeit = fazer uso da própria tos em depositários de coisas mortas. Paulo Freire cha- mou essa pseudo-educação de educação bancária. A edu- 136 137</p><p>cação é sim a produção de uma consciência bre os homens que lhes impõe desde a infância o proces- E o que entende Adorno por produção de uma consciên- SO de adaptação, tornando-o quase automático. A organi- cia verdadeira? mesmo texto, mais à frente, nos ajuda a zação econômica leva a maioria das pessoas à dependên- ver melhor o duplo caráter da educação. A educação traz cia do Quem quer sobreviver tem que se adap- dentro de si uma ambigüidade: ela é ao mesmo tempo tar ao que está dado. Uma exacerbada indústria cultural adaptação e autonomia. Enquanto um processo desen- veda-lhes a visão e ofusca qualquer esforço na busca de volvido na difícil relação entre pessoas, na pesada in- um conhecimento enriquecedor. A necessidade da iden- fluência das gerações mais velhas sobre as mais novas, tificação com o existente, com o poder, com o dado cria as com uma importância fundamental na continuidade da condições favoráveis para o autoritarismo. Então, que fa- espécie humana pela transmissão dos valores culturais, a zer numa situação como a nossa, em que a dimensão da educação precisa integrar a criança, o jovem na realidade autonomia quase que desaparece? Como resgatar a ten- em que ele vive. "A educação seria impotente e ideológi- são dialética entre esses momentos? Adorno responde: ca se ignorasse o objetivo de adaptação e não preparasse "A educação por meio da família, na medida em que é os homens para se orientarem no mundo". Porém ela não consciente, por meio da escola, da universidade teria nes- pode ser apenas um processo de adaptação e seria igual- se momento de conformismo onipresente muito mais a ta- mente questionável se fosse apenas isso, produzindo nada refa de fortalecer a resistência do que de fortalecer a além de pessoas bem ajustadas (cf. p. 143-144). Em adaptação" (Epq, p. 144). Daí a ênfase incansável nos ele- outro texto, o entrevistador Becker faz a importante ob- mentos da auto-reflexão crítica, e na negatividade pre- servação: "O simples fato de a adaptação ser o êxito prin- sentes em todos os lugares, em todos os textos desse in- cipal da educação infantil já deveria ser motivo de refle- fatigável educador. xão" (EE, p. 174). A educação deve ser também e simulta- neamente autonomia, racionalidade, possibilidade de se A educação como produção de uma consciência ver- além da mera adaptação. Não podemos nos desviar dadeira é, para Adorno, uma exigência política, pois "uma dessa tensão entre autonomia e adaptação, sob o risco de democracia com o dever de não apenas funcionar, mas falsear o processo pedagógico. operar conforme seu conceito, demanda pessoas emanci- padas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada Mas Adorno acrescenta um outro elemento importan- enquanto uma sociedade de quem é emancipado" (Epq, te na análise da relação entre os momentos constitutivos p. 141-142). A categoria "democracia" também é ambí- da educação, a autonomia e a adaptação. A contraditorie- gua, apresenta um duplo caráter. Ela é ao mesmo tempo dade entre esses elementos não é metafísica e sim dialé- poder do povo, da maioria, e poder dos donos do povo. tica, portanto muda historicamente. que ocorre nos Sua ambigüidade também se desenvolve historicamente. dias de hoje é que a realidade se tornou tão poderosa so- Qual a experiência que Adorno vivenciou, como exilado, na "democracia de massas" norte-americana? E qual ele vivenciou nos vinte e cinco anos pós-guerra da reconstru- ção Nesse contexto Adorno faz referência à busca 10. Adorno, T.W. Educação para quê? (Epg). In: Educação e da construção de uma verdadeira democracia, daquela Tradução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, que visa operar "conforme seu conceito" poder do povo. 1995, p. 141-142. 138 139</p><p>A construção dessa efetiva democracia só será possível a 1965-1969 e publicado em 1970). A análise visa enfocar a partir da formação de sujeitos emancipados, enquanto questão da regressão dos sentidos na era da indústria uma busca infindável da maioridade. cultural, mas, no aprofundamento dessa crítica e também Adorno lamenta que na literatura pedagógica não se no contexto dos diversos textos, desvendar as possibili- encontre essa tomada de posição decisiva pela educação dades de os sujeitos reeducarem suas faculdades percep- para a emancipação, como seria de se pressupor (cf. EE, tivas e intelectivas. p. 172), e reafirma com convicção que "a única concretiza- A dos sentidos nos ensaios so- ção efetiva da emancipação consiste em que aquelas pou- bre a música. Nestes Adorno vai mostrar como a inven- cas pessoas interessadas nessa direção orientem toda a ção de um certo número de descobertas técnicas bem sua energia para que a educação seja uma educação para como modificações padronizadas da sociedade de consu- a contradição e para a resistência" (EE, p. 183). mo contemporânea modificaram consideravelmente o Nada mais sugestivo que terminar esse item com a sensorium humano, particularmente a estrutura da audi- primeira afirmação do texto A educação após ção musical. De um lado a fetichização da música ligeira, "Para a educação, a exigência de que Auschwitz não se da música popular, que, através da estandardização do repita é primordial" (EAA, p. 33). ritmo, da melodia, da harmonia e de sua repetição inces- sante, se apresenta como a única e verdadeira música. No pólo oposto um processo semelhante de estandardização 5. A regresso/reeducação dos sentidos dos hábitos de ouvir a regressão da audição despojan- do os ouvintes de sua espontaneidade, promovendo ne- A indústria cultural visa subordinar todos os setores da les predisposições contra outro tipo de música que não o produção espiritual a um fim único: "ocupar os sentidos dos predominante. Registram-se modificações históricas no homens da saída da fábrica à noitinha, até a chegada ao re- ato de compreender e sentir a música. lógio do ponto, na manhã seguinte" (cf. Adorno, DE, p. 123). "A música popular afirma Adorno impõe seus pró- prios hábitos de audição". Para entendê-la é preciso Vamos nesse tópico, a partir de uma teorização esté- aprender a obedecer seus comandos. Qualquer acorde tica, analisar duplo caráter da educação dos sentidos que fuja de seu esquema harmônico deve ser percebido para Adorno, a educação imposta pela indústria cultural, como "falso", inadequado e substituído pelo detalhe prioritariamente voltada para a adaptação, e a educação "verdadeiro". A identidade do material e a grande seme- que visa resgatar a autonomia do sujeito e reeducar os lhança nas apresentações habilitam rapidamente ou- sentidos. Essa temática perpassa a maioria dos textos fi- vinte a distinguir os tipos de música e até conjunto que losóficos, sociológicos, literários e estéticos de Adorno. está tocando. Os hábitos de audição de massa se formam Vamos nos deter apenas em textos relacionados com a em torno do princípio do reconhecimento. Fundamen- música (O fetichismo da música e a regressão da audição ta-se no pressuposto de que basta repetir algo até tor- FMRA 1938; Sobre a música popular SMP 1941; Por ná-lo reconhecível para que ele se torne aceito. No reco- que é difícil a nova música PdNM 1968 e sobre a peda- nhecimento há a identificação do ouvinte com hit musi- gogia da música SPM) e na Teoria estética (escrito entre cal (cf. SMP, p. 124, 130-136). No texto Por que é difícil a 140 141</p><p>nova música, Adorno acrescenta um outro elemento para música popular, esconde, camufladamente, em sua mani- mostrar a estandardização dos ouvintes da música popu- festação a concentração e o controle social. Se não fossem lar e suas conseqüentes dificuldades em entender a mú- camuflados, provocariam resistências. preciso manter sica nova: a tonalidade, que se tornou no pré-consciente a ilusão de que a estandardização é uma realização indi- musical e no inconsciente coletivo algo como uma segun- vidual, fruto do gosto e da livre-escolha dos ouvintes. "O da natureza, exercendo por muito tempo a função de um correspondente necessário da musical é certo equilíbrio entre o universal e particular na música. a Há um certo envolvimento da O ouvinte, como que sintonizado na harmonia tonal, sen- produção cultural de massa com a ilusão da livre-escolha te-se exigido demais quando precisa acompanhar os pro- ou do mercado aberto. E a pseudo-individuação faz os cessos específicos de outras composições individuais, usuários esquecer que o que eles escutam já é sempre es- em que a relação entre universal e particular é articulada cutado por eles, é pré-dirigido (cf. SMP, p. 122-123). caso a caso. Na verdade são situações sociais e históricas Na verdade o que caracteriza a nova época musical objetivas que penetram profundamente no que parecem para Adorno é a liquidação do indivíduo. A audição mo- ser dificuldades puramente musicais de audição. E ob- derna regrediu e permaneceu num estado infantil. "Os serva Adorno: "Não por acaso a tonalidade foi a lingua- ouvintes, vítimas da regressão, comportam-se como cri- gem musical da era burguesa. A harmonia do universal anças. Exigem sempre de novo, com malícia e pertinácia, com o particular correspondia ao modelo clássico-liberal O mesmo alimento que uma vez lhe foi oferecido". Os de sociedade" (cf. PdNM, p. 55). adeptos mais extremados, entusiastas, da música popu- A música popular para o ouvinte estandardizado se lar são denominados em Inglês jitterbugs, insetos-nervo- caracteriza como a soma total de todas as convenções e SOS. Quais besouros fascinados pela luz, ziguezagueiam fórmulas materiais nela presentes, às quais o ouvinte ao som da música, como que querendo afirmar e ao mes- está acostumado e que ele encara como natural. Há um mo tempo ridicularizar a perda de sua individualidade. processo de adaptação à essa lei comum construída pela Adorno observa que termo jitterbugs foi-lhes inculcado indústria cultural e apresentada racionalmente como dis- pelos empresários para lhes fazer crer que são eles que se ciplina, rejeição da arbitrariedade e da anarquia. Não se- encontram por trás dos bastidores (cf. FMRA, p. 98-99 e guir as regras do jogo tornou-se critério para a exclusão. SMP, p. 144-145). A dinâmica entre a fetichização da música popular e a au- "A composição escuta pelo ouvinte. Esse é modo de dição estereotipada é de tal forma predisposta, pré-fabri- a música popular despojar ouvinte de uma espontanei- cada, pré-dirigida, que não sobra espaço algum para ten- dade e promover reflexos condicionados" (SMP, p. 121). "Os ouvintes e os consumidores em geral precisam Em diversos momentos de seus textos Adorno ressalta as e exigem exatamente aquilo que lhes é imposto insisten- da padronização cultural no incessante temente" (FMRA, p. 95). processo de construção da menoridade do sujeito. Assim, No item Pseudo-individuação, do texto Sobre a músi- a música ligeira contribui para o emudecimento dos ho- ca popular, Adorno mostra que o processo de estandardi- mens, para a morte da linguagem como expressão, para a zação tem um caráter dual. Ao mesmo tempo em que res- incapacidade de ouvir. "Se ninguém mais é capaz de falar salta a estilização da sempre idêntica estrutura básica da realmente, é óbvio também que já ninguém é capaz de ou- 142 143</p><p>vir". Dado clima de descontração, de distração própria Mas, se Adorno, em suas análises críticas, insiste for- de quem se habituou a "curtir" a música popular, em seu temente nos aspectos negativos e regressivos da música comportamento perceptivo não se consegue manter a popular, não o faz para desqualificar a música popular em tensão de uma concentração mais atenta (cf. FMRA, 80, si, mas para tentar compreender a fundo o que fizeram 96). A música popular emocional se transforma em uma com ela e com as pessoas que se habituaram a ouvi-la e catarse para as massas, mas uma catarse regressiva, que tenta encontrar saídas reflexivas, que apontem para a re- as mantém todas ainda mais firmemente na linha (cf. educação dos sentidos. Para tanto é paradigmático em SMP, p. 141). Existe, além disso, aversão e até ódio contra seus textos críticos, sobretudo nos parágrafos finais, abor- o que é diferente, estranho, contra o que não participa do dar a ambigüidade das categorias analisadas para ver mesmo hit. No ensaio A filosofia da nova música, Adorno nelas também o pulsar de sua outra face, mesmo que fra- faz como que um desabafo sobre as des- gilizada, onde estão latentes as possibilidades de mu- trutivas da música popular para a audição moderna: danças. o que vamos ver a seguir. "Não apenas os ouvidos das pessoas estão saturados de Assim no parágrafo da Fetichização música ligeira, a ponto de outra música não os atingir. da música e regressão da audição, Adorno começa a tratar (...); não somente as melodias em moda embotam a tal mais diretamente das "novas possibilidades" na audição ponto a faculdade perceptiva que, estando os ouvintes regressiva. Inicialmente critica as tentativas infrutíferas distraídos pelas reminiscências destes refrões estúpi- de conciliação feitas por artistas que acreditam no merca- dos, não lhes é mais possível se concentrarem para uma do ou por pedagogos da arte que acreditam no coletivo. A audição séria, mas ainda a sacrossanta música tradicio- seu ver, "uma música de massa tecnicamente conse- nal se assimilou (...) à produção comercial de massa qüente, coerente e purificada dos elementos de má apa- (FNM, p. 19). rência, se transformaria em música artística, e com isto mesmo perderia a característica que a torna aceita pelas No texto Por que é difícil a nova música, 1968, faz refe- massas". Mas apesar disso, Adorno acredita que no cora- rência a seu artigo de 1938, quando introduziu o conceito ção da decadência estabelecida possa um dia surgir o de "regressão da audição", dizendo que então não se re- inesperado, "que a arte, de mãos dadas com a sociedade, feria a uma "regressão generalizada do ouvir", mas à "au- abandone a rotina do sempre igual". E aponta o trabalho dição de pessoas desmesuradamente aco- de Mahler, como uma das possibilidades criada pela mú- modadas, nas quais a formação do ego foi deficiente, pes- sica artística, que conseguiu fazer com que temas "bati- soas em que prevaleceu a adaptação ao coletivo em detri- dos", "gastos" recebessem nova vida como variações, mento da percepção autônoma. Para ele, "regressão no que elementos depravados, extraídos da audição regres- ouvir não quer dizer que a audição tenha caído abaixo de siva, formasse um conjunto realmente novo, que essa um padrão anteriormente superior. Antes, deslocou-se a nova música se apresentasse como uma forma de consci- relação global do ouvinte adequado com o ouvinte inade- entemente resistir à experiência da regressão auditiva. A quado". Segundo Adorno, os tipos que hoje predominam obra do compositor brasileiro Heitor Villa Lobos apresen- na consciência musical são regressivos no sentido socio- ta pontos semelhantes a ponderar, por sua pesquisa do psicológico (cf. PdNM, p. 158). nosso folclore e das cantigas e choros populares em es- 144 145</p><p>pecial "Amazonas", "Uirapuru" e "Choros". E Adorno No texto Sobre a pedagogia da música, como está tratan- termina o texto tentando resgatar a música e o sujeito: do mais diretamente do "quêfazer" educacional, apre- "As forças coletivas liquidam também na música a indi- senta alguns indicativos mais práticos. Ao apresentar vidualidade que já não tem chance de salvação. Todavia, como objetivo da pedagogia musical elevar as capacida- somente os indivíduos são capazes de representar e de- des dos alunos para aprender a linguagem da música e as fender, com conhecimento claro, o genuíno desejo de obras significativas, insiste: que eles possam diferenciar letividade face a tais poderes" (FMRA, p. 103-105). qualidades e níveis e, por força da exatidão da apreciação do sensível, perceber o espiritual que constitui o conteú- Uma metodologia semelhante acontece na Sobre a do de cada uma das obras de (1996: 83-84). música popular, último item, onde analisa a problemática "Ambivalência, despeito, fúria". Entre os vários momen- A regressão-educação dos sentidos na Teoria estéti- ca. É verdade que a Teoria estética, assim como os livros tos de frutíferas quero destacar a que se filosóficos de Adorno, não tratam diretamente da questão refere ao comportamento submisso dos jitterbugs. Se de educacional. Não deixa de ser, porém, a mensagem esté- um lado a comparação dos homens com insetos sugere a tico-filosófica, que perpassa esse volumoso texto, uma constatação de que eles foram privados de sua vontade crítica radical à "deseducação" dos sentidos perpetrada autônoma, em da enorme quantidade de pela indústria cultural e, ao mesmo tempo, uma promessa forças operantes sobre eles, de outro lado eles não rea- de como a verdadeira arte só pode ser um instrumento ex- gem de modo completamente passivo, precisam de sua cepcional e único de educar para a sensibilidade estética, vontade, de um tremendo esforço pessoal para aceitar o que lhes é violentamente imposto. E, segundo Adorno, para o estremecimento, para a admiração. Quando se fala de arte, de obra de arte, se fala de uma nova maneira de se "essa transformação da vontade indica que a vontade ver o mundo, em que os sentidos, a percepção, a razão, a ainda está viva neles e que, sob certas circunstâncias, ela reflexão se articulam tensamente na crítica e no resgate pode ser suficientemente forte para os livrar das influên- do indivíduo e da sociedade. E isso e muito mais o que a cias que lhes foram impostas e que perseguem os seus Teoria estética nos faz ver. Assim como a indústria cultu- passos". E da análise dos jitterbugs passa para a análise ral nos impõe seus próprios hábitos (educar é formar há- do povo, resgatando a ambigüidade de seu comporta- bitos) de ouvir-ver-sentir-perceber-pensar impedin- mento político, observando que a crença de que povore do-nos de tocar as coisas com nossos próprios sentidos, a age como insetos é apenas aparente. E termina o texto obra de arte, trabalhando em direção oposta, pode nos com a mais profunda esperança, que brota cristalina das ajudar a criar hábitos que favoreçam o desenvolver de entranhas sombrias de sua dialética negativa: "para ser sentimentos e comportamentos estéticos. transformado em um inseto, o homem precisa daquela energia que eventualmente poderia efetuar a sua trans- formação em homem" (SMP, p. 144-146). Como pudemos observar, se Adorno critica o subsis- tente, ele não elabora propostas imediatas para supe- 11. In: Reis, S.L.F. Elementos de uma filosofia da educação musical rá-lo. Apresenta indicativos, possibilidades, mensagens. em Theodor Wiesegrund Adorno. Belo Horizonte: Mãos Unidas Edições Pedagógicas, 1996, p. 83-84. 146 147</p><p>Num belo parágrafo da Teoria estética, Adorno trata perceptivos e os elementos intelectivos. Não se concebe da importância da educação dos sentidos para se poder uma educação dos sentidos que não seja ao mesmo tem- usufruir criticamente da arte. Ressalta a impossibilidade po uma educação das faculdades racionais. Adorno tra- de se explicar a broncos que é a arte, pois eles não pode- balha essa tensão sob a denominação da dialética da mí- riam introduzir em sua experiência vivida a compreensão mesis e da racionalidade. A mímesis é o momento da sen- intelectual dessa realidade. O princípio da realidade está sibilidade, da emotividade, da pré-logicidade; sem ela a tão sobrevalorizado neles que interdiz sem mais o com- obra de arte deixaria de ser arte e se confundiria com o portamento estético. Quem é totalmente privado de "ou- simples artefato. A racionalidade é momento da cons- vido musical", os que sofrem de amusia, quem não com- trução, da logicidade, do espiritual; sem ela, a obra de preende a "linguagem da música" percebe nela apenas a arte seria uma manifestação de irracionalidade inconse- confusão e, mesmo interrogando-se sobre o significado qüente. Na tensão dos dois momentos estéticos, a mime- de tais ruídos, dificilmente vai-se dar conta do seu caráter sis nega a racionalidade, a mímesis se compõe com a ra- enigmático, que precisa ser desvendado. Todos aqueles cionalidade, a mímesis manifesta sua racionalidade. "Na que tentam reproduzir uma obra de arte sem conhecer sua irracionalidade do momento expressivo, a arte tem o ob- disciplina imanente, olham um quadro ou um poema com jetivo de toda a racionalidade estética" (TE, p. 135, 139). os mesmos olhos vazios que a música mostra ao É O espírito, por sua vez, não é apenas o spiritus, o sopro porque, conclui Adorno, o olhar vazio ou interrogador deve que anima as obras de arte e as transforma em fenômeno, resultar da experiência e da interpretação e isso é alguma é também a força de sua objetivação; é a sua mediação coisa realizada historicamente (cf. TE, p. 141). imanente, que sobrevém em momentos sensíveis, confi- Adorno mostra também a historicidade da gurando-os objetivamente. O elemento sensível não seria estético se não fosse mediatizado pelo espírito. "A pura cia da natureza e envolvimento dessa experiência com a imediaticidade não é suficiente para a experiência estéti- sociedade; como através dela se desenvolvem os esque- ca. Além da espontaneidade, necessita também da inten- mas de percepção e, por contraste e semelhança, a pró- pria caracterização de natureza. Desde a emancipação cionalidade, da concentração da consciência; não se burguesa, em nome dos pretensos direitos naturais do pode eliminar a contradição" (TE, p. 86 e 105). A educa- homem, o mundo da experiência se tornou mais reificado ção estética trabalha, pois, no sentido de captar o mo- do que no século XVIII. E a experiência imediata da natu- mento expressivo presente na reflexão filosófica e o mo- mento intelectivo presente na manifestação estética. reza, libertada de sua intransigência crítica e dominada pela relação de troca, tornou-se informalmente neutra e Uma sensibilidade que aguce pensamento crítico; uma apologética. De modo que, "sentir a natureza, seu silên- racionalidade que potencialize o caráter enigmático da cio, tornou-se um privilégio raro e comercialmente explo- obra de arte. "A genuína experiência estética deve tornar-se filosófica ou então não existe" (cf. TE, p. 152). rável" (TE, p. 85). A redução de tudo ao mundo da merca- doria deforma as percepções, as experiências vividas e a Daí a importância da articulação arte-filosofia como intelecção da realidade. uma forma de se resgatar um novo olhar crítico, de purifi- car as coisas da onipresente apropriação capitalista, de Na construção e na interpretação de uma obra de arte as tornar ao mesmo tempo coloridas e úteis. Se tudo na há uma imanente tensão entre os elementos sensitivos, 148 149</p><p>realidade se tornou fungível, a arte, emancipada dos es- quemas de identificação, sugere, como imago do não-cam- biável, a idéia de que no mundo nem tudo seria permutá- vel. E em virtude do não-cambiável, ela deve levar o cam- biável à autoconsciência crítica (cf. TE, p. 101). A arte, por seu processo formativo, pode ajudar os ho- CONCLUSÃO mens, submetidos pelas categorias afirmativas do espíri- to objetivo, a reaprenderem o estranhamento, a admira- ção. A arte, diz Adorno, "leva a priori os homens à admira- ção, como outrora Platão exigia da filosofia, que se deci- diu pelo seu contrário". É essa mesma estranheza e admi- "O cipoal não é nenhum bosque sagrado" (Adorno). ração que está nos fundamentos de todos que se dispõem a se aproximar, como aprendizes, de uma obra de arte: "Só compreenderia a música quem a ouvisse com a mes- ma estranheza de alguém que nada soubesse acerca Nesse percurso que fizemos sobre o pensamento ador- dela, e com a mesma familiaridade com que Siegfried es- niano e sobre algumas de suas possíveis aplicações à cutava a linguagem das aves" (TE, p. 142 e 147). educação, chegou o momento de entrarmos em algumas reflexões finais. destaque inicial é dado pela epígrafe acima: em qualquer pensador o conjunto de conceitos e conclusões forma um conjunto organizado e internamente coerente naquelas perspectivas que o autor assume e sob as con- dições específicas que vivencia. Temos, portanto, em cada conjunto organizado uma arquitetura definida. A um estudioso iniciante fica, portanto, a impressão de algo intocável, não suscetível de contestações parciais. Se ti- rarmos uma estaca, o edifício explode? A esse conjunto Adorno denomina "cipoal", pretendendo demonstrar já que a aparente formação monolítica só na aparência é um bloco organizado, um sistema no sentido que a moderni- dade cunhou. Após esta advertência indireta, o filósofo nos indica o ponto central: mesmo reconhecendo que o "sistema" é um cipoal pois a realidade é múltipla e mu- tante não se deixando imobilizar em traços separáveis, mas, ao contrário, é composta por elementos miscíveis e "imiscíveis" que se alternam e se alteram, se combinam e se distinguem conforme o momento histórico não deve- 150 151</p><p>mos ter, em relação a esse conjunto, uma atitude de into- Uma segunda conclusão é decorrente dessa primei- cabilidade. O próprio Adorno, à semelhança do que acon- ra: é preciso um olhar não bloqueado para conseguir apre- tece com qualquer pensador, alterou inúmeras vezes ender um discurso filosófico. Qualquer discurso, aliás. seus conceitos centrais, adequando-os às peculiaridades Dizemos bloqueado para indicar um traço que, infeliz- históricas ou simplesmente aproximando-os mais da rea- mente, se faz cada dia mais presente: o hábito de concor- lidade. Quantas e quantas vezes Adorno não discordou dância ou discordância a partir de posições tomadas e de Walter Benjamin enquanto este era ainda vivo (fato sobre as quais não se retorna à reflexão. A essa atitude constatável por várias fontes, como a copiosa correspon- pode-se atrelar outra característica, bem próxima dos dência entre eles) e, depois, não retornou ao tema com mecanismos da semiformação cultural: a tendência a diferentes graus de aproximação? Portanto, uma primei- simplificar um pensamento de conjunto a uma só diretriz. ra conclusão é esta: pensamento adorniano não consti- Algo como reduzir o universo a um grão de areia: grão tui um sistema fechado, mas deve ser investigado, contém elementos do universo, mas é apenas um ponto contestado ou confirmado conforme a força dos fatos e isolado. Aí os preconceitos se acumulam e se enrodilham: das nossas reflexões apontem novos que a influência do episódico nazismo impressionou por que resta mais forte nessa empreitada a ser feita é demais a Escola de Frankfurt; que há muita melancolia estudo cuidadoso do estilo de pensar adorniano: recusa em seus estudos; que não se aponta para ação imediata; à solução fácil e reconfortante, mas falsa; núcleo auten- que o mundo se transformou muito e hoje atravessamos ticamente marxiano e freudiano, sem contaminações de- uma fase de progresso técnico muito promissora e seme- formantes; exercício constante da heurística dialética; lhante à do Renascimento; que a teoria é muito distante reconhecimento da ambigüidade como estágio do marxismo ou que está por demais ligada ao marxis- te da realidade em mutação; diálogo com os pensares mo. Ah, como as manchetes simplificadoras evitam o in- divergentes desde que estes tenham uma coerência au- cômodo de estudar uma obra copiosa e séria! Como é têntica capaz de apontar para lacunas ou falsos atalhos mais tranqüilo seguir caminhos conhecidos e "comparti- da reflexão e outros aspectos que se fizeram visíveis lhados" pela multidão! Hoje a indústria cultural e sua nesta travessia. A se destacar, também, no pensamento contrapartida subjetiva, a semiformação cultural, cons- de Adorno, está o uso da ênfase para evitar mecanismo troem "senso comum" a ser adotado para preservação capitalista de tudo dissolver homogeneizando. É esta a do sistema administrado. função da ênfase adorniana. Feita para evitar um meca- nismo capitalista, e denunciada como pretendendo-se Que não se veja também a indústria cultural como po- adialética, é revertida por esse mesmo mecanismo per- lítica conspiratória. Nada que se assemelhe a conceitos verso como se fosse um conceito unilinear, adialético. como trust ou cartel, grandes acordos para impingir de- Há que se analisar que Adorno diz dentro de seu siste- terminadas abordagens ideológicas, moldando o caráter ma de pensar. Não reduzi-lo a textos ou citações isola- e pensamento coletivos segundo uma diretriz adrede das. A coragem de ousar sapere aude kantiano estabelecida. Há uma força construída coletivamente pe- também se estende ao estilo. "A circunspecção que pro- los seres humanos para a manutenção da ordem, que é a íbe de se ousar, ir longe demais numa frase é, na maioria ordem capitalista. Uma força que "distrai", "consola" e das vezes, apenas um agente do controle social e, como "aquieta" os impulsos e as pulsões que teimam em se opor tal, estupidificação" (MM, p. 74). à administração das existências. Nenhum cérebro diabóli- 152 153</p><p>individual ou coletivo, edifica a imensa engrenagem da pendente da inteligência neste ou naquele setor da existência indústria cultural. Ela se instala calmamente, "normal- cotidiana. Uma espécie de triturador a "converter" o mente", como um ponto espontâneo da organização socie- mundo num vasto painel de iguais. Excelentes porque Algo como a resistência que mantém a iguais. Companheiros, comparsas, camaradas. Fortes. Isto bolha de espuma. É uma tendência, uma direção. Mas não é: fracos, vazios. Como se observa, o etnocentrismo é a ou- há realidades isoladas ou unilineares sabemos. Tal vetor tra face do "sempre igual", do "Immergleich", da volúpia tem seus contravetores a serem explorados. em converter o diferente em assimilável. Ou em canibali- Cabe esta exploração ao pensamento penetrante, zá-lo. Adorno também relaciona o etnocentrismo à estere- àquele pensamento capaz de desviar-se dos preconcei- otipia. Será, nesse aspecto, a "compreensão facilitada", tos e das tomadas de posição fixas porque se pretendem porque falsa. A quem se vê incapaz de atingir certo grau de definitivas. apreensão da múltipla realidade móvel, a estereotipia fun- ciona como "abre-te sésamo". indivíduo, de repente, é Nessa empreitada, não cabe também lugar ao etno- um sábio: todos os males derivam do judeu. Ou do migran- centrismo. Tomamos este termo no sentido que lhe atri- te, ou do estrangeiro, ou do funcionário público, ou do sin- bui certa tradição, na qual se insere Theodor W. Adorno, dicato, ou dos sem-terras. Sempre de um só ponto ao qual que explica: convergem todos os ódios e todas as de "não há qualquer outro termo que seja adequado (...) Pri- quem finalmente É o império tranqüilo meiro introduzido e usado de maneira descritiva por das definições culturalmente enrijecidas. Sumner em 1906, o termo tinha o sentido de provincianis- Bem se vê que nesse conjunto imenso e emaranhado de mo ou estreiteza cultural; incluía uma tendência do indi- fatores que se conjugam e se excluem ou se combinam con- víduo a ser centrado etnicamente, a ser rígido na forme o momento, deve haver para a educação formal algum aceitação dos culturalmente semelhantes e em sua rejei- espaço. Para um mundo complexo faz-se necessário uma ção dos diferentes (...)". prática de destrinchar complexos. Essa prática só pode se instalar a partir do que realmente existe, dentro de um mun- Etnocentrismo é, portanto, para Adorno na grande do administrado no qual se cruzam as influências ideológicas pesquisa realizada nos Estados Unidos na década de 50, aderidas à realidade, a indústria cultural, a semicultura, a que define em outra passagem como "um frame of mind barbárie em suas formas agressivas, como nazi-fascismo relativamente consistente a respeito de estranhos". et- ou em suas formas mais e dissimuladas, como as nocentrismo consiste nessa tendência a separar o mundo que Adorno denominava de "garden variety". Não se trata, em "o nosso bom e certo grupo" e os "grupos errados e portanto, de tarefa facilmente realizável. Mas seu grau de di- maus deles". Trata-se de um pensamento rígido e concre- ficuldade não pode ser equiparado ao valor de poder contri- to, com limites egóicos estreitos, completamente inde- para sua ultrapassagem. Nesse conjunto, a escola como instituição tem algo a dizer? A escola, sabemos, é uma força reprodutora da es- trutura social opressiva, como bem demonstram vários 1. Adorno, T.W. et al. The authoritarian personality. Nova York: estudos, dentre os quais se destacam as contribuições de Harper & Brothers, 1950, p. 102. Pierre Bourdieu. Revendo o que dissemos acima, pode-se 154 155</p><p>dizer, portanto, que a escola é uma força reprodutora, mas não é a única, nem mesmo a mais central. apenas mais uma força que se reproduz reproduzindo. Mas as for- ças não são exclusivas, são dialéticas. possível enfren- tá-las. Aliás, essa tem sido uma das faces mais importan- tes do caminho percorrido pela humanidade: a transfor- TEXTO DE THEODOR W. ADORNO: mação da realidade. TABUS A RESPEITO DO Se os caracteres em geral se formam já na primeira infância, diz Adorno, uma educação que se proponha a conjurar a barbárie deve ser forte logo na primeira infân- cia. aí que já se deve plantar as sementes da autono- mia, do esclarecimento geral, para caminhar na constru- ção de um clima espiritual, cultural e social que leve à emancipação real. Como se vê, Adorno aponta para a força da escola como instituição formalmente constituída. Se assim é, esta escola deve ser orientada para a construção de seres emancipados. Em suas palavras exatas: Minha conferência se resume apenas em colocar uma "não se deve negar a importância da educação. Ao con- questão. Não será uma teoria plenamente elaborada, pa- trário, deve ser até enfatizado que nosso sistema educa- ra a qual eu, por não ser pedagogo, não estaria mesmo cional, universidade e escolas públicas, ainda está longe habilitado, nem será um relato de resultados de pesqui- de ter realizado toda sua potencialidade como força so- sas empíricas. Se a isso me dispusesse, teria que anexar cial a serviço dos valores dados, sobretudo estudos de casos individuais, incluin- do a dimensão psicanalítica. Minhas observações ser- Mas a perspectiva adequada há de evitar a ingenui- vem, no máximo, para tornar visíveis algumas dimen- dade. As medidas educativas, "por mais abrangentes que sejam", não abarcam a totalidade da tarefa. Há que da aversão contra a profissão do magistério, que re- se aplicar em âmbitos mais completos o poder educativo presentam um papel não muito manifesto na conhecida do pensamento auto-reflexivo e da reeducação dos senti- dos. Há que se construir o humano como realmente huma- no. Eis a tarefa individual e coletiva. 1. Adorno, T.W. Tabus über dem Lehrberuf. In: Adorno, T.W. Erzie- hung zur Mündigkeit (Vorträge und Gespräche mit Hellmut Becker 1959-1969. Herausgegeben von Gerd Kadelbach). Frankfurt: Suhrkamp 2. Idem, p. 35. Verlag, 1970, p. texto data de 1965. Tradução de Newton Ra- 3. Idem, p. 45. mos-de-Oliveira, 1992. 156 157</p>