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<p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)</p><p>Rezende, José Ricardo</p><p>Tratado de direito desportivo / José Ricardo Rezende. -- São Paulo : All Print Editora, 2016.</p><p>Bibliografia.</p><p>1. Esportes - Leis e legislação 2. Esportes Leis e legislação - Brasil 3. Jogadores de futebol 4. Justiça desportiva - Brasil I. Título.</p><p>16-01884 CDU-34:796(81)</p><p>Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Direito desportivo 34:796(81)</p><p>José RicaRdo Rezende</p><p>TRATADO DE DIREITO DESPORTIVO Copyright © 2016 by José Ricardo Rezende O conteúdo desta obra é de</p><p>responsabilidade do autor, proprietário do Direito Autoral. Proibida a reprodução</p><p>parcial ou total sem autorização.</p><p>Capa:</p><p>Marco Mancen Design Studio</p><p>Revisão:</p><p>Ana Rosa Rezende</p><p>Traduções (Bibliografia em inglês): Pedro Henrique Della Rosa Matheus Mayara Silva Rezende</p><p>Projeto gráfico, editoração e impressão:</p><p>www.allprinteditora.com.br info@allprinteditora.com.br (11) 2478-3413</p><p>Apresentação</p><p>É no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve.</p><p>Johan Huizinga (1872-1945)</p><p>Esporte é a forma que o homem encontrou de continuar a jogar, por toda sua existência. O jogo</p><p>transformado em esporte (desportivizado) ultrapassa a esfera do lúdico, adquirindo particular</p><p>feição e significado (agonístico). Faz do jogo coisa séria, científica, invoca proteção jurídica, faz</p><p>brotar o Direito Desportivo. Atribuímos tamanha importância aos jogos desportivos que</p><p>inventamos inúmeros deles, dos mais variados tipos e formas, que expressam crenças, anseios,</p><p>convicções, afinidades, aflições, valores e tradições construídas ao longo da história da</p><p>humanidade, não menos, refletindo aspectos de cada região do mundo, podendo expandir-se por</p><p>todo o planeta ou ficar circunscrito ao seu local de origem. De tão diversificada, é praticamente</p><p>impossível classificar as práticas desportivas, no máximo admitindo agrupamentos segundo</p><p>características homogêneas, tais como: quanto ao meio físico (terrestres, aquáticos ou aéreos); ao</p><p>número de participantes (individuais, coletivos); aos vínculos (olímpicos, não-olímpicos,</p><p>formais, não-formais); à prevalência (física, intelectiva); ao público que se destina (atletas,</p><p>militares, universitários, pessoas com deficiência, etc.); à natureza e finalidade (educacional,</p><p>participação, rendimento); à condição do atleta (profissional ou não profissional), ao tipo</p><p>(tradicionais, radicais, de aventura, indígenas, adaptados, de luta, de praia, motorizados), e por aí</p><p>afora.</p><p>O jogo desportivo remete os envolvidos a um ambiente completamente diferenciado da realidade</p><p>cotidiana, notadamente marcado pela excitação do confronto (competição) e a incerteza do seu</p><p>resultado. Nessa trama social, por um determinado período nada mais importa além do que</p><p>acontece na arena de jogo. “Até hoje nenhuma sociedade humana existiu que não tivesse algo</p><p>equivalente ao desporto moderno” (ELIAS; DUNNING, 1985, p. 15). Imaginar um mundo sem</p><p>atividade desportiva remete a algo sombrio, triste, mórbido, obscuro. A ausência de jogos</p><p>geralmente indica que as coisas não estão bem em determinado lugar, provavelmente encontra-se</p><p>em guerra, estado de calamidade ou pobreza extrema. É quando o fascínio do esporte cede lugar</p><p>à luta pela própria sobrevivência, o jogo da vida. Gostamos tanto do espetáculo esportivo, em</p><p>tempos de paz e prosperidade, que formamos clubes exclusivamente para exercitar sua prática.</p><p>Reconhecemos organizações de todos os níveis para cuidar da sua gestão, codificar regras,</p><p>promover competições, transmiti-los às novas gerações, assegurando sua perenidade. Dotamos o</p><p>esporte de sistemas de disputa peculiares, categorias específicas, fomentando encontros</p><p>equilibrados e sucessivos em temporadas planejadas, gerando classificações, rankings e</p><p>estatísticas variadas, que merecem registro e destaque permanente. Conferimos títulos e prêmios</p><p>aos vencedores, estimulando a eficiência esportiva. Consagramos uma ética do esporte,</p><p>dogmatizada pelo espírito do Jogo Limpo (Fair Play) e respaldada por um emulado “sistema</p><p>judiciário”, a Justiça Desportiva. Queremos sempre fazer do esporte permanente instrumento de</p><p>paz, educação, saúde e promoção social, ou seja, uma ferramenta ímpar para transmissão de</p><p>valores e combate a vícios. Lutamos pelo “Esporte para Todos”, democratizando o acesso às</p><p>atividades esportivas para além das elites e das exigências do alto nível, reservando aos</p><p>profissionais de Educação Física a grandiosa tarefa de conduzir suas atividades, assegurando</p><p>métodos compatíveis às suas possibilidades de cunho educacional, de participação e de</p><p>rendimento.</p><p>A expansão do esporte na sociedade pós-moderna reclama permanente atenção das nações e seus</p><p>governos pelo mundo, que passam a editar leis e normas de organização interna das atividades</p><p>afins em seus territórios, por vezes até extrapolando e invadindo áreas que deveriam permanecer</p><p>imunes de intervenção estatal, enfrentado reações das entidades do setor na defesa de uma certa</p><p>autonomia desportiva, cuja articulação jurídica aos poucos vai se acomodando, mas enfrenta</p><p>sobressaltos de tempos em tempos, devido aos novos panoramas sociais, fatos e acontecimentos.</p><p>Não obstante, foi-se consolidando nas diversas esferas da administração pública estruturas para</p><p>dar-lhe suporte de gestão, atendendo demandas da coletividade, chegando ao ponto da sua</p><p>constitucionalização por diversos países, seu reconhecimento permanente pelo Estado da</p><p>obrigação em fomentá-lo, como direito de cada um. Dizem alguns, um direito fundamental de</p><p>terceira geração ou dimensão, dentro do conceito do Estado de bem-estar social (welfare state).</p><p>Esse composto dinâmico de matéria jurídica desportiva, privada e estatal, deu origem a um</p><p>promissor campo de estudo e intervenção profissional, denominado Direito Desportivo, objeto</p><p>central deste livro. Além disso, permanentemente exigimos políticas públicas para o esporte e a</p><p>destinação de recursos pelo governo, seja por via orçamentária, pela concessão de incentivos,</p><p>subvenções e outros benefícios. Demandamos por praças e equipamentos esportivos de</p><p>qualidade, distribuídos nas escolas e na comunidade em geral, funcionando como verdadeiros</p><p>clubes populares, para que possamos praticar o esporte a qualquer tempo e em qualquer lugar, do</p><p>nosso jeito. Construímos grandes arenas, templos do esporte, cada vez mais modernas, seguras e</p><p>confortáveis, disponibilizando milhares de assentos para que se possa viver a emoção do jogo</p><p>diante dos nossos olhos. Pleiteamos sediar grandes eventos esportivos mundiais, inspirados em</p><p>vencê-los ou melhorar posicionamentos. Ansiamos estar presentes, envolvermo-nos pela</p><p>dimensão surreal do jogo, viver o desenrolar dramático da competição. Mas também adotamos a</p><p>televisão como meio confortável, e de certo modo democrático, para acompanhar suas</p><p>transmissões em tempo real.</p><p>Cobramos ética, honestidade e eficiência na gestão das entidades desportivas, sejam elas de</p><p>administração ou de prática, dotadas de mecanismos de transparência e equilíbrio financeiro,</p><p>sempre lembrando que boa parte delas recebeu ou ainda depende de recursos públicos (auxílios e</p><p>subvenções), somados ao uso de infraestrutura estatal urbana (ginásios, estádios, pistas, piscinas</p><p>etc.) e também de serviços públicos de suporte (v.g. policiamento, transporte coletivo, hospitais).</p><p>Em razão de tudo isso e muito mais, temos que investigar e avaliar profundamente a prática</p><p>desportiva, enquanto fenômeno social de tamanha expressividade, verdadeiro “patrimônio</p><p>cultural da humanidade”, identificando sua gênese, bases conceituais, aspectos biopsicossociais,</p><p>valores, transformações, instituições e realidade atual, prospectando, paralelamente, seus rumos</p><p>neste século 21. Mais que depressa o esporte precisa aparelhar-se de novos métodos, sem a</p><p>ilusão de sucesso permanente em razão de um passado glorioso. Outro desafio é enxergá-lo</p><p>dentro da sociedade midiatizada, na qual o tão desejado tempo de lazer, que arduamente</p><p>conquistamos para assegurar nossa higidez física e mental, vem sendo consumido frivolamente</p><p>sua exercitação em busca de resultados,</p><p>articulando competições regulares e atraindo espectadores, ainda que alguns idealistas tentassem</p><p>preservar sua inspiração exclusiva de culto ao corpo e ao belo, tanto assim que as organizações</p><p>nasceram sem fins lucrativos, moldando-se na forma de entidades que não perseguiam um</p><p>resultado financeiro em benefício de seus administradores, mas objetivando tão somente</p><p>congregar associados para o desfrute de seus prazeres e dotes desportivos. Por essa razão, a</p><p>prática de esporte não tinha conotação pública e amparo estatal, sendo uma iniciativa privada e</p><p>elitista por convicção, independendo de qualquer financiamento externo para seu exercício. Essa</p><p>dinâmica de organização do esporte também definiu seu apreço pelo amadorismo, isto é, do</p><p>atleta despido de qualquer interesse material, afinal, as classes dominantes possuíam meios de</p><p>sobra para assegurar a prática esportiva sem comprometer seu padrão de vida. Praticar esporte</p><p>era sinônimo de status social. Logo, o amadorismo foi a matriz de organização do desporto, mas</p><p>que não resistiu por muito tempo, sendo invadido pelo espírito cada vez mais competitivo que</p><p>passou a dominar as sociedades capitalistas e justificavam toda e qualquer medida visando</p><p>conferir maior eficiência e produtividade nas relações humanas. Assim, não tardou para que</p><p>empreendedores fizessem do esporte um negócio, recrutando e remunerando atletas para obterem</p><p>melhor desempenho em competições esportivas, fazendo disso um espetáculo, sustentado por</p><p>apostas e cobrança de entrada nos recintos, sendo esse um dos grandes dilemas, senão o maior,</p><p>do esporte desde então.</p><p>2.3. O método</p><p>Deve ser entendido como o conjunto de regras, normas, princípios, usos e costumes que regulam</p><p>a prática de cada modalidade esportiva, tornando-a conhecida e estável. Isto é, definindo os</p><p>procedimentos, técnicas e meios de praticar o jogo, como uma atividade lógica e sistemática,</p><p>dentro de padrões de igualdade de condições, configurando o que se pode chamar de lex sportiva</p><p>e lex lúdica, conforme será estudado na parte II deste livro. Para Helal (1990, p. 28): “Sempre</p><p>que o jogo começa a se submeter a uma organização burocrática mais ampla, que se situa acima</p><p>e além dos interesses individuais dos jogadores, estamos a um passo do universo do esporte”. A</p><p>introdução de métodos formais para a prática de modalidades desportivas, que até a Idade Média</p><p>eram transmitidos pura e simplesmente pela tradição, acompanhou todo um processo de</p><p>vertiginosa transformação social verificada na Idade Moderna, amparado pelo Tratado de</p><p>Westphalia (1648).</p><p>Esse tratado marca o final do domínio da autoridade religiosa na Europa e o surgimento de</p><p>autoridades seculares. Com a autoridade secular veio o princípio que proporcionou o alicerce</p><p>para as relações internacionais desde então: a noção de integridade territorial dos Estados –</p><p>participantes juridicamente iguais e soberanos do sistema internacional (MINGST, 2009, p. 16).</p><p>O conceito de soberania das nações caminhou em seguida para um crescente positivismo</p><p>jurídico, assentando as bases do constitucionalismo e da separação dos poderes (executivo,</p><p>legislativo e judiciário) em regimes progressistas e democráticos, assegurando a dinamização das</p><p>relações comerciais fundada no liberalismo econômico e no sistema capitalista (produção de</p><p>riquezas por particulares e sistema de impostos que garantem o funcionamento da “máquina</p><p>pública”), logo inaugurando a Era Contemporânea, em meio às descobertas científicas,</p><p>progressos tecnológicos e a segunda fase da Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra e que se</p><p>propagou pela Europa e pelo mundo, de tal maneira que conceitos de administração são</p><p>desenvolvidos e passam a ser fundamentais e necessários para dar suporte ao novo degrau de</p><p>evolução da humanidade. Portanto, os métodos introduzidos na forma de lex ludica e lex sportiva</p><p>são consequências da adoção de técnicas de Administração e de Direito no desporto, fato esse</p><p>concretizado em todas as atividades sociais, que passaram a ser gerenciadas e normatizadas por</p><p>organizações (públicas e privadas), em substituição ao sistema monárquico e patriarcal da</p><p>sociedade medieval.</p><p>2.3.1. Direito aplicado ao desporto (racionalização do jogo): Como estamos afirmando, a</p><p>transformação de jogos em atividade desportiva, demandou o aparato das ciências jurídicas e</p><p>econômicas, visando dotá-la de estabilidade e segurança. Ou seja, o processo de organização</p><p>formal do desporto veio acompanhado da codificação de suas regras de prática, seguindo</p><p>tendências de positivação do Direito que se verificavam em larga escala no âmbito do Estado e</p><p>da sociedade civil organizada, quando tudo tendeu ao império da lei.</p><p>Lo que anteriormente había estado al cuidado de la voluntad o de la costumbre quedaba</p><p>definitivamente fijado en reglamentos, y lo que hasta entonces se había apoyado únicamente en</p><p>la experiencia personal se confiaba a unas sistemáticas reglas de entreno (DIEM, 1966b, p. 71).</p><p>E isso aconteceu por via das instituições sociais que se criaram para fins de organização da</p><p>prática desportiva, e assim passaram a codificar as regras de cada modalidade (regras do jogo),</p><p>unificando procedimentos e técnicas para sua exercitação, bem como normas de comportamento</p><p>dos participantes, fato que contribuiu no processo de “racionalização do jogo” (ou</p><p>“desportivização”, para Elias e Dunning, e “desludificação”, segundo J. M. Cagigal), à</p><p>semelhança do que vinha ocorrendo dentro das fábricas, no mesmo período histórico, com a</p><p>“racionalização do trabalho”, enquanto regras e técnicas de observância pelos operários. Como</p><p>todo sistema normativo sua finalidade é assegurar estabilidade, no caso, durante a prática de</p><p>determinada modalidade desportiva, fato que torna, inclusive, legítima a organização de</p><p>competições, quando teremos um vencedor decorrente do seu próprio esforço (mérito), sendo</p><p>apenas relativo o fator sorte (álea).</p><p>2.3.2. Federalismo como princípio de organização: Depois da iniciativa de algumas pessoas,</p><p>que progrediu com a reunião de pequenos grupos, formando as primeiras associações de</p><p>praticantes desportivos, passo seguinte foi a aproximação destes, na forma de uma federação, à</p><p>semelhança dos pequenos produtores daquela época, que se juntavam para formar uma</p><p>companhia (holding). Assim, vemos estatuídas as primeiras normas de organização e</p><p>funcionamento unificado na regência do desporto, embrião de um sistema federativo que</p><p>germinou na Europa e depois se internacionalizou por completo, congregando associações</p><p>representativas de países pelo mundo inteiro, que voluntariamente passam a se submeter a um</p><p>mesmo padrão de regras, regulamentos, técnicas, meios e toda uma infinidade de vinculações</p><p>formais emanadas da referida entidade matriz, assegurando a universalização de diferentes</p><p>modalidades esportivas, permitindo, de igual modo, equacionar encontros desportivos dos mais</p><p>variados, superando barreiras linguísticas e aproximando povos de diferentes culturas. De se</p><p>notar que o desporto, enquanto prática inicialmente cultivada pelas classes dominantes,</p><p>naturalmente envolvia pessoas que ocupavam posição de destaque na sociedade e detinham</p><p>conhecimento organizacional inovador para aplicação em favor do progresso dessa forma de</p><p>manifestação. Logo, o sistema desportivo nasceu constituído sob uma ótica privada, elitista e, em</p><p>princípio, destinado ao desfrute dos “associados”, sem finalidade econômica, justificando sua</p><p>forma jurídica de associação sem fins lucrativos.</p><p>Um dos efeitos mais notáveis da técnica moderna sobre a vida social é o alto grau de organização</p><p>das atividades humanas no interior de grandes grupos, a ponto de uma ação pessoal poder</p><p>exercer uma considerável influência sobre grupos remotos com os quais o seu próprio grupo</p><p>mantém relações de cooperação ou conflito (RUSSELL, 2002, p. 133).</p><p>2.3.3. Influência da organização militar e coesão internacional: Ensina Chiavenato (1993, p.</p><p>9) que “a palavra administração vem do latim ad (direção, tendência para) e minister</p><p>(subordinação ou obediência),</p><p>e significa aquele que realiza uma função abaixo do comando de</p><p>outrem”. Notadamente, o desporto incorporou um sistema de organização administrativa na</p><p>mesma linha da organização militar, mais ainda diante da importância histórica das práticas</p><p>atléticas, ginásticas e desportivas para fins de treinamento militar e preparação para guerra. Não</p><p>é de estranhar, portanto, a organização linear que sustenta o sistema federativo desportivo, o</p><p>respeito dogmático ao princípio da unidade de comando, o reconhecimento das autoridades</p><p>desportivas e subordinação plena às suas determinações, sob pena de exclusão do grupo, tendo</p><p>na Federação Internacional seu “Estado-Maior”. Com essa base de direção deu-se a delegação de</p><p>poderes, com exclusividade, para representação esportiva continental e nacional, integrando</p><p>praticantes pelo mundo inteiro. A propósito, o jargão militar impera no reino esportivo, como um</p><p>mimetismo de guerra. Neste cenário, muitas competições são precedidas de um desfile das</p><p>equipes, imitando uma parada militar. A execução do Hino e o hasteamento do Pavilhão</p><p>Nacional é uma constante, algumas vezes acompanhado do juramento do atleta que, igualmente</p><p>aos soldados destacados para o campo de batalha, haverão de defender (no campo de jogo) seu</p><p>território, assim como atacar o adversário (v.g. marcando um gol, um ponto, uma cesta, chegando</p><p>antes, arremessando mais longe ou com maior precisão). Utilizam fardamento (uniformes</p><p>esportivos) que identifica o soldado (atleta) ou pelotão (time) no campo de batalha (arena de</p><p>jogo), ao comando de um “capitão”. Guardam posições estrategicamente definidas e</p><p>desenvolvem táticas orientadas pelo comando central (Comissão Técnica). Ao final, os</p><p>vencedores recebem medalhas de condecoração, quase sempre com a inscrição “Honra ao</p><p>Mérito”. Muitas vezes os atletas são tratados como heróis, guerreiros. O objetivo é sempre</p><p>vencer, não há transigência no campo de jogo, assim como não existe piedade no campo de</p><p>batalha. A rendição marca o fim de uma guerra, do mesmo modo que não há possibilidade de</p><p>competição esportiva quando o adversário desiste do jogo.</p><p>2.3.4. Burocratização do esporte: Na década de oitenta do século passado, Ommo Grupe (in:</p><p>DIECKERT, 1984, p. 27) já analisava a crescente burocratização do meio esportivo, sentindo</p><p>também os reflexos do elevado nível tecnológico na esfera da alta competição. A saber, resume</p><p>Chiavenato (1993, p. 411) que “a burocracia é uma forma de organização humana que se baseia</p><p>na racionalidade, isto é, na adequação dos meios aos objetivos (fins) pretendidos, a fim de</p><p>garantir a máxima eficiência no alcance desses objetivos”. A partir de meados do século vinte,</p><p>com a expansão mundial da indústria, as relações comerciais intensas, os avanços tecnológicos,</p><p>dos transportes e dos meios de comunicação, dentre tantas outras transformações por que passou</p><p>a humanidade, demandaram a adoção de métodos de administração, sendo que a Teoria da</p><p>Burocracia, desenvolvida pelo jurista e economista alemão Max Weber (1864-1920), foi</p><p>resgatada para orientar a função gerencial, influenciando todos os segmentos sociais, inclusive as</p><p>organizações esportivas, em especial dentro do sistema federativo internacional, que passou a</p><p>valer</p><p>-se de processos de planejamento, fixação de metas, preocupações logísticas e estratégicas,</p><p>departamentalização, treinamento e remuneração de pessoal executivo, implantação de sistema</p><p>de direção e controle (feedback), busca de fontes externas de financiamento, dentre tantas outras</p><p>ferramentas da administração moderna. Assim, abandonou-se cada vez mais o amadorismo em</p><p>troca de um profissionalismo de gestão, tratando o esporte como negócio (etimologicamente:</p><p>“negação do ócio”), e que demanda lucro para movimentação do processo, em substituição aos</p><p>antigos ideais de pureza e absoluto desinteresse financeiro da prática desportiva, paradigma que</p><p>quase levou Coubertin a bancarrota. Michael Payne, executivo de marketing do COI nas décadas</p><p>de 1980/90, não titubeia em afirmar:</p><p>É importante lembrar que os ideais inspiradores do Barão de Coubertin para o Movimento</p><p>Olímpico continham uma falha grave: davam pouca atenção à parte monetária dos Jogos. A</p><p>maior parte dos Jogos Olímpicos no século XX foi possível graças a muita economia e apertos de</p><p>cinto. A ética e as ideias do Movimento Olímpico eram claras, mas sua execução foi erigida</p><p>sobre uma construção comercial frágil. Em 1980, estava ameaçada de desabar. O Movimento</p><p>Olímpico tinha uma escolha: continuar em seu amadorismo e andar por vias periféricas até a</p><p>extinção ou reinventar sua organização e perspectivas para a era moderna. Ele optou pela</p><p>segunda alternativa (PAYNE, 2006, p. 32-33).</p><p>No tocante ao panorama da própria prática desportiva, os clubes também passaram a enfrentar o</p><p>desafio de melhor estruturarem suas atividades, que vai do atendimento recreativo aos milhares</p><p>de associados (entusiasmados com a popularização do desporto), exigindo a implantação de</p><p>estruturas e programas para este fim (desporto de participação), sem deixar de lado a formação e</p><p>manutenção das tradicionais estruturas voltadas ao atendimento dos atletas e equipes esportivas</p><p>de rendimento, e suas demandas cada vez maiores devido à crescente regulamentação das</p><p>competições, ampliação dos clubes e da distância entre eles, refinamento dos equipamentos e</p><p>instalações, avanço científico nos métodos de treinamento, enfim, exigindo um aparato</p><p>administrativo, técnico e operacional que cobra seu preço (desporto de rendimento). Manter</p><p>instalações recreativas para associados e subsidiar a prática de esporte de alto nível, tornou-se</p><p>cada vez mais complexo e dispendioso, sem que houvesse suporte financeiro na mesma medida,</p><p>salvo raras exceções, tanto que um dos maiores desafios do esporte na atualidade relaciona-se</p><p>com seus meios de financiamento público e privado, além do equacionamento de dívidas</p><p>históricas acumuladas por muitos clubes esportivos, que por não estarem preparados para</p><p>enfrentar essa realidade mergulharam em compromissos que não puderam honrar, além, é claro,</p><p>das aventuras financeiras e gestão temerária de muitos dirigentes. No Brasil, inúmeros clubes</p><p>fecharam suas portas nas últimas décadas, por muitos desses motivos, sendo extintos ou</p><p>abandonados por seus gestores, levando ao sucateamento das instalações, quando não</p><p>convertidos em espólio judicial para pagamento de dívidas de toda ordem. Resistem os clubes de</p><p>elite com bom corpo de associados, os tradicionais clubes de futebol profissional e os clubes</p><p>populares bem administrados, merecendo destaque também as agremiações do SESI, as</p><p>Associações Atléticas do Banco do Brasil (AABBs) e as centenárias Associações Cristãs de</p><p>Moços (ACM/YMCA), espalhadas pelo país e por todo o mundo.</p><p>2.3.5. “Monopólio” federativo desportivo: Retornando ao eixo, a organização de federações</p><p>esportivas a partir do final do século dezenove, especialmente na Europa, não tinha apenas o</p><p>condão nobre e desinteressado de ampliar as possibilidades de intercâmbio entre seus adeptos,</p><p>mas certamente, também de impor a vontade de determinados grupos dominantes, fazendo</p><p>prevalecer sua forma de jogar, ditando regras, controlando competições e gozando do prestígio</p><p>decorrente dessa posição de comando. Assim como neste período da história da humanidade</p><p>surgiram os grandes impérios corporativos e iniciou-se a expansão da indústria e comércio em</p><p>nível global, também estavam sendo constituídas aquelas que iriam se tornar as grandes</p><p>organizações do desporto no século vinte em diante, cuja legitimidade de atuação advém da</p><p>própria sociedade, realçando a importância alcançada pelo esporte desde então. Logo, o sistema</p><p>desportivo firmou-se com extraordinária eficácia e consistência de comando, consagrando um</p><p>poderio hegemônico internacional sem precedentes às Federações Internacionais e ao Comitê</p><p>Olímpico. Muitos ficam estarrecidos com a força política dessas instituições, respaldada pela</p><p>simples forma de organização associativa, mas cujas normas (interna corporis) parecem ter força</p><p>de legislação estatal e eficácia</p><p>“erga omnes”, especialmente quando governos cedem às suas</p><p>exigências, editam leis de convergência às suas regulamentações, recebem com honras seus</p><p>dirigentes e disputam acirradamente o direito em sediar eventos esportivos sob sua chancela</p><p>internacional, sujeitando-se aos “cadernos de encargos”, concedendo imunidades tributárias e</p><p>trânsito internacional facilitado, assumindo compromissos financeiros e de infraestrutura de fazer</p><p>inveja a outros setores. Convém assinalar, no entanto, que referido “monopólio federativo</p><p>desportivo” tem um sentido figurado, referindo</p><p>-se apenas a uma decisão estratégica interna das Federações Internacionais de expandirem sua</p><p>influência por via da representação territorial exclusiva nos países mundo afora, fato que não</p><p>impede a constituição de outros sistemas desportivos por iniciativa daqueles que não estejam</p><p>interessados em participar destes ou estejam descontentes com as suas determinações, sendo o</p><p>boxe o exemplo clássico neste sentido, com uma diversidade de organizações internacionais ao</p><p>longo de sua história.</p><p>2.3.6. Outros modelos organizacionais: É preciso admitir, também, que existem outras formas</p><p>de organização esportiva, ao lado dos sistemas tradicionais disseminados na Europa e adotados</p><p>pelo Brasil e boa parte do mundo, sinalizando possibilidades de ruptura para este século, tanto</p><p>mais o sistema federativo se mostre ineficiente ou desvirtuado por dirigentes corruptos em busca</p><p>do lucro fácil. Neste sentido, podemos destacar as Ligas profissionais norte-americanas, que</p><p>funcionam como empresas e os times como franquias; o X GAMES, que contempla esportes</p><p>radicais e é organizado por uma emissora de televisão (ESPN); e o Ultimate Fighting</p><p>Championship - UFC, evento de artes marciais mistas (sigla em inglês: MMA) de titularidade da</p><p>empresa privada norte-americana Zuffa (“luta”, em italiano). Tais exemplos revelam outras</p><p>possibilidades de governança desportiva, que não se apoiam nas premissas do sistema federativo</p><p>clássico. Na obra “Na trave: o que falta para o futebol brasileiro ter uma gestão profissional”</p><p>(2014), Michel Fauze Mattar expõe de maneira didática a dinâmica do festejado modelo norte-</p><p>americano das Ligas e seu sistema fechado e empresarial de organização de competições</p><p>esportivas, prestigiando os fãs do esporte (torcedores/consumidores), coligado com o sistema</p><p>escolar e universitário na revelação de novos talentos, bem como adotando métodos claros de</p><p>distribuição de receitas entre os franqueados, processos de seleção invertido (reverse-order</p><p>draft), estabelecimento de piso e teto salarial (salary caps e floors), impostos de luxo (luxury</p><p>taxes) e restrições à liberdade de agenciamento dos atletas (free agency restrictions), concluindo</p><p>que no Brasil a adoção desses procedimentos demandaria, mais do que uma alteração legislativa,</p><p>uma mudança de paradigma, que parece improvável no curto prazo, ainda que a maioria dos</p><p>clubes esteja à beira da “falência” (insolvência civil), senão perdoados pela ação benevolente do</p><p>Estado, no interminável processo de reequacionamento de suas impagáveis dívidas tributárias,</p><p>fruto da má-gestão e da permissividade de sucessivos governos. O X Games, iniciado em 1995,</p><p>congrega as modalidades de skate, snowboard, surf, ski, BMX e rally/moto X, configurando uma</p><p>competição promovida pela rede de comunicações norte-americana ESPN, servindo de conteúdo</p><p>para sua grade de programação e captação de anunciantes (patrocinadores), com promoção anual</p><p>em edições de verão e inverno, sendo os atletas convidados para participarem das provas,</p><p>competindo por medalhas e prêmios em dinheiro. A dinâmica das competições é o estímulo de</p><p>manobras radicais, que diferem muito dos métodos tradicionais de prática desportiva, inclusive</p><p>as vestimentas dos atletas são mais despojadas, casuais, dentro de um ambiente pouco formal</p><p>(descontraído). O UFC também é outro modelo de organização comercial do esporte fomentado</p><p>nos EUA que congrega lutadores de diferentes estilos, daí sua denominação como MMA (Mixed</p><p>Martial Arts), colocando em confronto atletas praticantes do boxe, jiu-jitsu, judô, karatê,</p><p>kickboxing, kung fu, taekwondo e wrestling, promovendo combates pelo mundo, que além do</p><p>espetáculo local se transformam em conteúdo de mídia altamente valorizado, sendo considerado,</p><p>na atualidade, como um dos esportes que mais cresce no mundo, em número de adeptos e fãs.</p><p>Vistas antigamente pelos desinformados como um esporte sangrento e bruto sem regras, as artes</p><p>marciais mistas são, na verdade, um esporte profissional com muitas regras e regulamentos para</p><p>proteger os atletas durante as competições. (Guia Oficial do UFC, 2012, p. 16).</p><p>Contudo, diante da realidade da organização do esporte no Brasil, sem perspectivas de grandes</p><p>mudanças, fortemente vinculada ao sistema federativo e olímpico, inclusive por força da</p><p>legislação em vigor, calçada exclusivamente nesse modelo, nossos estudos seguirão focados sob</p><p>tais estruturas.</p><p>2.3.7. Organização e administração no esporte: Quanto ao método, aspiramos evidenciar que a</p><p>organização de atividades desportivas, seja qual for sua finalidade, demanda um profundo</p><p>conhecimento das suas relações de causa e efeito, pois o esporte é saúde, mas também pode</p><p>lesionar e matar; é instrumento da paz, contudo pode servir de palco para violência e desordem; é</p><p>inclusão social, mas sofre com atos de discriminação e intolerância. Enfim, a atividade esportiva</p><p>pode ser uma experiência enriquecedora ou perigosamente frustrante na vida das pessoas,</p><p>quando o dinamismo da prática atropela metodologias que precisam lhe dar suporte. Não há</p><p>como atingir objetivos sem tê-los traçados, sem estudos, pesquisas, políticas e ações</p><p>coerentemente planejadas, fielmente organizadas, dirigidas com firmeza, controladas e avaliadas</p><p>permanentemente, por profissionais capacitados e dirigentes honestos. Logo, é preciso saber</p><p>manipular, com apurada reflexão e sensatez, a “fórmula do esporte”, dosando jogo, competição e</p><p>método, com temperança, segundo missões de ordem educacional, de participação ou de</p><p>rendimento (profissional e não profissional), imbuídos de boa-fé e lealdade. Só assim iremos</p><p>alcançar o melhor que se pode esperar do esporte, bem como rechaçar suas piores experiências.</p><p>Capítulo 3</p><p>Investigação antropológica e crítica filosófica ao esporte</p><p>Sendo a prática desportiva uma criação humana destinada a promover relações sociais diversas e</p><p>diferenciadas do contexto cotidiano, torna-se imprescindível indagar seus antecedentes</p><p>antropológicos e pressupostos filosóficos, para que se possa melhor compreender esse fenômeno</p><p>cultural, ainda que sejam raros os estudos neste sentido.</p><p>3.1. Aspectos antropológicos</p><p>Poucas publicações tratam da “Antropologia do Esporte”, fundamental para estabelecer</p><p>correlações da prática desportiva no processo de desenvolvimento da humanidade, firmando</p><p>posição de seus significados e valores, baseando-se para tanto em aspectos que englobam, por</p><p>exemplo: suas origens; processo evolutivo; progresso físico, intelectual, material e cultural;</p><p>alimentação e fisiologia; costumes sociais; crenças; dentre outros. Conforme Garcia (2007, p.</p><p>54), “somente nos últimos 20 anos é que a Antropologia começou a interrogar o esporte”. Na</p><p>lição de Ferrari (1961, p. 7), a Antropologia tem “a preocupação por conhecer o homem, na sua</p><p>estrutura orgânica, nos seus critérios associativos e nas suas manifestações espirituais”. Deste</p><p>modo, seria importante indagar a prática desportiva do ser humano enquanto membro do reino</p><p>animal, considerando as bases anatômicas da hominização, a libertação da mão, a aquisição da</p><p>consciência e da postura ereta e suas implicações neuromusculares, por exemplo. Por outro lado,</p><p>sendo o esporte um “produto cultural”, torna-se indispensável investigá-lo sob a ótica do ser</p><p>humano como criador e modificador de elementos culturais, como membro da sociedade e</p><p>integrado numa trama de símbolos, em princípio, por meio de jogos, danças e outros rituais</p><p>tribais. O método cronológico tem sido o mais utilizado para esse fim, situando no tempo</p><p>os</p><p>acontecimentos que podem ser relacionados, de acordo com o nosso objeto de estudo, às práticas</p><p>atléticas, ginásticas e desportivas, de tal maneira que no Capítulo 5 desta primeira parte</p><p>procuraremos identificar recortes relacionados a essas manifestações culturais, fazendo um</p><p>passeio pela história clássica da humanidade, dividida em: Era Primitiva, Idade Antiga, Idade</p><p>Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea.</p><p>3.1.1 . Homo Ludens, Gymnasticus, Olympicus, Sportivus: Ainda que sem qualquer pretensão</p><p>científica, muitas vezes encontramos na literatura esportiva referências a um denominado homo</p><p>ludens, gymnasticus, olympicus e sportivus, como que inseridos dentro de um processo evolutivo</p><p>do homo sapiens. Por evidente que se trata de um recurso de linguagem proposto a ilustrar, em</p><p>sentido figurado, aspectos relevantes da prática humana de jogos e esportes. Nesse contexto,</p><p>Huizinga exaltou o Homo Ludens, em contraposição ao Homo Faber, defendendo que “é no jogo</p><p>e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve” (HUIZINGA, 1993, prefácio). D’outro giro</p><p>o “Homo Faber, prisioneiro das estruturas sociais que o obrigam ao trabalho, procura,</p><p>desesperadamente, a liberdade no Homo Ludens, no desporto” (ESTEVES, 1975, p. 104).</p><p>Quanto ao Homo Gymnasticus, observa J. O. Bento (in: RBEFE, 2007, p. 319-320), que seu</p><p>esboço foi traçado pelo professor alemão Guts Muths (1759-1839), introdutor das aulas de</p><p>ginástica obrigatórias em seu país, por ocasião da publicação da obra “Ginástica para a</p><p>Juventude” (Gymnastik fur die Jugend – 1793), sendo que “este pretende reforçar e reformar a</p><p>natureza corporal e anular a desarmonia de corpo e espírito, ocasionada pelo negligenciamento</p><p>do exercício e esforço físicos”, desafiando a maneira de viver na Idade Média, mas advertindo</p><p>que: “Devemos praticar a ginástica para viver, porém, não viver para fazer ginástica” (in: DIEM,</p><p>1966b, p. 244). Segue Bento anunciando o Homo Sportivus, como uma evolução do Homo</p><p>Olympicus sonhado por Pierre de Coubertin (1863-1937), ao recriar os Jogos Olímpicos e seus</p><p>ideais de congraçamento e exaltação da humanidade através do esporte, induzindo um “estilo de</p><p>vida que enlace estreitamente o bem (ética) e o belo (estética), que se obrigue ao respeito por si e</p><p>pelos outros (‘fair-play’), que cultive uma apurada consciência de valores (moral) e que eleve a</p><p>existência ao plano da excelência (arte e virtude)” (in:in: 320). Sem embargos, continua Bento</p><p>dizendo que no transcorrer do século vinte, em especial depois da Segunda Guerra Mundial, há o</p><p>nascimento do Homo Sportivus, “uma espécie de redescoberta e enfatização do homem total e</p><p>integral”, sendo que o desporto serve de instrumento, “ajudando a reanimar e realizar uma</p><p>expressão extraordinária da nossa Humanidade”. Já Manoel Tubino, na década de 1980, utilizava</p><p>a expressão Homo Sportivus “para caracterizar as pessoas que passaram, sob qualquer</p><p>perspectiva, a exercer o direito às práticas esportivas” (TUBINO, 2007, p. 873).</p><p>3.1.2. O homem-atleta (razão das práticas ginástico-atléticas): Dentro de uma perspectiva</p><p>histórica percebe-se que a destinação social é latente na investigação das práticas que hoje</p><p>classificamos como desportivas. Desde o início, utiliza o homem sua capacidade criativa para</p><p>estruturar atividades que determinam movimento ao corpo e uso da inteligência, evoluindo com</p><p>o passar dos tempos na mesma proporção da primazia do arranjo social. Assim, em princípio,</p><p>tínhamos um corpo em movimento destinado fundamentalmente para fins utilitários de</p><p>sobrevivência, mas que aos poucos, pela composição de grupos e domínio do meio, vai tendo</p><p>mais tempo de descanso, além do necessário para repor suas energias. Vigilante, ainda que</p><p>involuntariamente, o homem passou a utilizar parte deste tempo de repouso em excesso para</p><p>manter-se apto aos desafios e contratempos de outrora, em um ato que pode ser entendido como</p><p>de autopreservação, já que seu estado de segurança é (e sempre será) relativo. Torna-se lógico,</p><p>portanto, que o homem tenha buscado subterfúgios para manter e desenvolver seu vigor físico e</p><p>raciocínio estratégico, indispensáveis para proteção de suas conquistas e enfrentamento de novos</p><p>desafios, colocando-os em prática, mesmo que sem essa plena consciência, por meio de rituais,</p><p>danças, lutas e jogos, isto é, submetendo-se a sacrifícios com certo sentido (inicialmente de</p><p>ordem espiritual, sagrada, já que muitas das suas dificuldades eram atribuídas a forças</p><p>extraterrenas), e dos quais somente se descurava em tempos de guerra ou catástrofe (estado de</p><p>necessidade), quando as atenções se voltavam novamente para o sentido de preservação da</p><p>espécie ou do grupo, sendo induvidoso que os rituais, danças, lutas e jogos, principalmente estes</p><p>últimos, lhes serviam para orientar os sentidos.</p><p>Desporto, guerra e emoções podem parecer um saco de farrapos de tópicos esquecidos, mas se</p><p>reflectirmos um pouco sobre isso, verificamos que existem, possivelmente, sobreposições</p><p>significativas entre eles. Desde modo, o desporto e a guerra envolvem formas de conflito que se</p><p>encontram entrelaçadas, de maneira subtil, como formas de interdependência, de cooperação e</p><p>com a formação do “nosso grupo” e do “grupo deles”. Aliás, tanto um como o outro podem</p><p>desencadear quer emoções de prazer quer de sofrimento e compreendem uma mistura complexa</p><p>e variável de comportamento racional e irracional. A existência de ideologias diametralmente</p><p>opostas – que sublinham, por um lado, que o desporto pode constituir um substituto da guerra e,</p><p>por outro, que este fenômeno é o veículo ideal de treino militar, devido à dureza e à</p><p>agressividade demonstradas pelos que nele participam – é também muito sugestiva quanto ao</p><p>carácter homólogo e, talvez, da inter-relação das duas esferas (ELIAS; DUNNING, 1985, p. 16).</p><p>Sob o prisma de Rudolf Lencert “a competição esportiva parte de raízes diversas da rivalidade</p><p>social” (in: DIECKERT, 1984, p. 17). Talvez por esses caminhos realmente encontremos</p><p>indícios antropogênicos que sustentam a prática desportiva ao longo da história da humanidade e</p><p>que se encontra tão vigorosa nesses tempos de acomodação social e sensação de segurança</p><p>coletiva, quando se discute, de forma bem mais consciente, o que fazer com o tempo de ócio,</p><p>cada vez maior (até pela falta de trabalho), no sentido de proporcionar melhor qualidade de vida,</p><p>dentro do qual se encaixa, invariavelmente, o estímulo à prática de exercícios físicos e esportes.</p><p>3.1.3. Orientação sensorial para precisão do movimento e raciocínio estratégico:</p><p>Reafirmando, o jogo – em princípio – tinha (e tem), um significado sempre baseado na precisão</p><p>do movimento combinado ao raciocínio estratégico, independente de atender uma necessidade</p><p>real (p. ex., proteger-se de um ataque). Assim, o jogo naturalmente acaba por exercitar os</p><p>sentidos de ataque e defesa. “As sociedades humanas formam unidades de “ataque e de defesa”</p><p>ou de “sobrevivência” e que estas constituem uma das bases para a emergência do Estado”</p><p>(ELIAS; DUNNING; 1985, p. 28), seguindo no raciocínio de que, com o passar do tempo e o</p><p>“refinamento das condutas e dos padrões sociais”, tivemos a emergência do desporto para a</p><p>configuração atual, como uma forma de confronto físico do tipo relativamente não violento,</p><p>segundo regras concertadas que ambas as partes respeitam. Para Olímpio Bento:</p><p>Ademais, o desporto é um campo, por excelência, de conhecimento e de objetivação da vida e do</p><p>homem, é um espelho onde o homem reflete todas as suas forças e fraquezas, as suas virtudes e</p><p>defeitos, as suas dignidades e indignidades, os seus heroísmos e cobardias, as suas coragens e</p><p>medos, as suas nobrezas e vilanias. O desporto é isto, porque é uma atividade antropológica</p><p>essencial e é nas atividades que o homem se revela sem sofismas, em toda a sua plenitude e</p><p>transparência. Refletir sobre o desporto é refletir sobre o homem, sim, porque é o homem quem</p><p>pratica o desporto, quem o inventou, quem lhe dá forma e conteúdo (in: TANI; BENTO;</p><p>PETERSEN; 2006; p. 9).</p><p>3.1.4. Do jogo sagrado ao esporte lúdico (secularização):</p><p>Note-se que os exercícios físicos e</p><p>ginásticos, bem como os jogos da Antiguidade, encontravam como fundamento o culto ao belo e</p><p>a aproximação com os deuses. Tinha algo de sagrado essas práticas e acontecimentos, sendo os</p><p>Jogos Olímpicos a maior prova neste sentido. Mas com a ascensão do Império Romano, os Jogos</p><p>foram profanados, adquirindo feição de “ludus”, lúdico, brincadeira, divertimento dos</p><p>imperadores, não mais culto ao sagrado. Com a decadência do Império Romano, os jogos, de um</p><p>modo geral, são banidos, abandonados e amaldiçoados. Mas apesar de perderem importância e</p><p>significado, continuaram a ser praticados pela nobreza, para fins de seu divertimento, bem como</p><p>o exercício atlético é instrumento permanente de treinamento dos cavaleiros e guerreiros. Esse</p><p>divertir-se (deportar-se), ou exercitar-se, passou a suplantar a desgastada acepção “jocus” (jogos)</p><p>ou “ludus”, retomando sua força, vigor e entusiasmo, porém, deixando de possuir qualquer traço</p><p>de sagrado. Essa mudança de paradigma é apontada por Guttmann (1994) como sendo um</p><p>processo de secularização do esporte, isto é, apesar da tendência para se tornar ritualizado e</p><p>despertar emoções fortes, o esporte moderno não se relaciona mais ao reino transcendente do</p><p>sagrado, como era anteriormente.</p><p>SECULARIZAÇÃO: Em poucas palavras, podemos definir secularização como o processo pelo</p><p>qual realidades pertencentes ao domínio religioso, sagrado ou mágico passam a pertencer ao</p><p>domínio profano. Sempre que uma representação racional, científica e técnica substitui uma</p><p>representação religiosa ou uma explicação pelo sagrado ou pelo divino, podemos afirmar que</p><p>estamos presenciando um processo de secularização. (HELAL, 1990, p. 34).</p><p>De se destacar que nem todas as práticas atléticas e ginásticas, bem como jogos, possuíam caráter</p><p>de sagrado, exemplo disso são os jogos com bola, que nunca fizeram parte do programa olímpico</p><p>da Antiguidade.</p><p>3.2. Crítica ao esporte</p><p>A literatura esportiva do início do século vinte é recheada de lirismo e sutilezas, mas lembra</p><p>Bracht (2011, p. 31) que “o esporte não se desenvolveu sem despertar reações críticas, o que</p><p>parece contrastar com a ‘aparente’ unanimidade social da qual desfruta hoje”. Assim, baseando</p><p>-se em estudo de H. Bernett (Der Sport im Kreuzfeuer der Kritik; 1982), enumera a crítica dos</p><p>adeptos da ginástica; do movimento ginástico da classe trabalhadora ao esporte “burguês”; da</p><p>igreja ao caráter irreal do esporte; dos “intelectuais”; dos nacional-socialistas ao esporte</p><p>“apolítico”, dentre outras, todas anteriores à Segunda Guerra Mundial.</p><p>Bernett (1982, p. 43-82) resumiu em cinco pontos as críticas ao esporte advindas deste</p><p>movimento: (1) emancipação do “esporte dos senhores”. Era destacada a necessidade de quebrar</p><p>a exclusividade do esporte dos senhores (dos dominantes); (2) os princípios da competição, do</p><p>rendimento e do recorde. A negação do princípio da competição é entendida como decisivo para</p><p>uma cultura corporal proletária. O esporte competitivo burguês é atacado genericamente como</p><p>um espelho e instrumento da economia capitalista. Nesta visão, a racionalização das técnicas</p><p>esportivas aparece como paralela ao sistema capitalista taylorizado; (3) mentalidade esportiva</p><p>capitalista. As organizações ginásticas e esportivas de trabalhadores buscavam se distanciar da</p><p>mentalidade esportiva burguesa, na medida em que colocavam como princípio orientador a</p><p>solidariedade de todos os trabalhadores; (4) o esporte como arma dos dominantes. O esporte-</p><p>espetáculo é utilizado como meio para desviar a atenção das massas da luta de classes e como</p><p>fuga da realidade política. Com relação ao esporte nas fábricas, alertava-se contra a introdução</p><p>de uma nova “arma” para a disciplina dos trabalhadores; (5) esporte “burguês” a serviço do</p><p>capitalismo e do fascismo. O esporte burguês é dominado pelo capitalismo que fomenta o</p><p>militarismo e o fascismo. [...] O ambiente que se seguiu à Segunda Guerra Mundial na Europa</p><p>não favoreceu o ressurgimento deste movimento social, em razão de um ambiente francamente</p><p>anticomunista/ socialista, ambiente que envolverá também o cenário esportivo, principalmente</p><p>no âmbito dos jogos olímpicos. (BRACHT, 2011, p. 33-34).</p><p>3.2.1. Teoria crítica da Escola de Frankfurt: Já na década de setenta, após um período de</p><p>relativa alienação com os fatos desportivos, ressurge a crítica sócio filosófica ao esporte, cuja</p><p>maior vertente advém da denominada Escola de Frankfurt (Teoria Crítica).</p><p>[...] apoiando-nos em Salamun (1981), procuraremos estabelecer sumariamente as teses da</p><p>Escola de Frankfurt que transpareceram na crítica ao esporte de forma mais pronunciada: (a) a</p><p>tese da coisificação ou alienação. Essa tese resumidamente propõe que a sociedade e os homens</p><p>não são aquilo que em virtude de suas possibilidades e sua natureza poderiam ser. Isso</p><p>transparece nas sociedades industriais principalmente no mundo do trabalho. Como causa, temos</p><p>um tipo de pensamento que se efetiva na razão instrumental ou racionalidade técnica. Isto é, as</p><p>relações sociais em seu conjunto são norteadas por uma razão instrumental, coisificando-as; (b) a</p><p>tese da repressão e manipulação. De acordo com essa tese, a sociedade moderna altamente</p><p>tecnologizada, industrializada e desenvolvida, representa um sistema de repressão, dominação e</p><p>manipulação. [...] A partir desse referencial – apresentado aqui de forma muito precária</p><p>– diferentes autores levaram a efeito uma crítica da</p><p>instituição burguesa do esporte . [...] O esporte nessa crítica é caracterizado: (a) como um</p><p>sistema de ação coisificado e em conformidade com o trabalho; (b) como um instrumento de</p><p>repressão das necessidades; (c) como um fenômeno de manipulação e adaptação, sendo que tal</p><p>adaptação dar-se-ia, por sua vez, pelas funções de compensação, socialização e integração</p><p>cumpridas pelo esporte. (BRACHT, 2011, p. 36-38).</p><p>3.2.2. Desporto em democracia: Com esse título de livro Manuel Sérgio (1976), ao analisar o</p><p>desporto naquele momento, teceu suas críticas, ao compreender que sua prática mantém “o</p><p>espírito da cultura dominante e dominadora no capitalismo, assimilando dele não só os</p><p>conhecimentos, mas também os valores” (p. 105). Para ele: “A concepção tecnocrática do</p><p>desporto é filha da concepção capitalista de vida” (p. 114), concluindo que: “o atleta-coisa, o</p><p>atletarobot é o resultado da “taylorização”, da organização industrial do trabalho” (p. 118).</p><p>Desta forma, o desporto moderno sobressai, intumescido pela ânsia de competição desmedida e</p><p>da tecnicidade agnóstica, com as seguintes características negativas: predomínio bárbaro da</p><p>técnica; subordinação a interesses comerciais e classistas; organização semelhante à organização</p><p>científica do trabalho, tendo em vista o rendimento; especialização e profissionalização</p><p>(SÉRGIO, 1976, p. 109).</p><p>Desta feita, o desporto não tem referências inovadoras de ordem axiológica. O rendimento e o</p><p>lucro, a competição desmedida e a concorrência sem escrúpulos, o conflito e o narcisismo</p><p>formam a sua expressão autêntica. [...] Logo no acto do treino, o atleta é sujeito a exames</p><p>rigorosíssimos e obrigado à repetição mecânica dos gestos, como se de máquina se tratasse. O</p><p>desenvolvimento capitalista encontrou nas máquinas um poderoso aliado. Também o atleta para</p><p>representar verdadeiramente esse tipo de sociedade deverá distinguir-se pela produtividade e pelo</p><p>progresso constantes. Em poucas palavras: pelo seu carácter mecânico. Já durante a competição</p><p>somos testemunhas que se lhe exige o máximo rendimento e uma fiel subordinação aos planos</p><p>tácticos do treinador principal e uma dádiva total aos imperativos da melhor classificação</p><p>possível. O desporto, segundo esta orientação, domestica a acção e a criatividade e funciona</p><p>como elemento de manutenção do “status quo” opressivo. A presença transformante do</p><p>indivíduo não é permitida, nem sequer considerada. O atleta desce de fim a meio, de sujeito a</p><p>objecto, de homem a coisa (SÉRGIO, 1976, p. 116-117).</p><p>Também Carlos Nolasco avaliou que “o espaço desportivo deixou por cumprir muitas das</p><p>promessas que</p><p>se havia proposto realizar”, concluindo:</p><p>Em vez de se constituir como uma das reservas morais da sociedade, como elemento de</p><p>promoção de bem-estar social e factor de emancipação individual, o fenómeno desportivo</p><p>metamorfoseou-se por influência da política, adulterou-se com a economia e tornou-se produtor</p><p>de violência, racismo e discriminação sexual, para além de provocar a hipercomputurização dos</p><p>atletas (NOLASCO, in: Rev. Crítica de Ciências Sociais n. 60, 2001, p. 143).</p><p>Em defesa do desporto parte Sidónio Serpa, intitulando que sua prática “oferece oportunidades,</p><p>cria desafios, apresenta problemas, tal como outros âmbitos de vida”, e arremata:</p><p>O modo como tem impacto positivo ou negativo nos praticantes depende das características</p><p>individuais de cada um, mas também das condições oferecidas pelo contexto e do modo como o</p><p>atleta aprendeu a interagir com as situações que o desporto lhe proporciona. [...] A relação que o</p><p>atleta estabelece com o desporto e o impacto fenomenológico que se verifica é significativamente</p><p>determinada pela forma de organização do processo desportivo (Sidónio Serpa, in: BENTO;</p><p>CONSTANTINO (Coords.), 2007, p. 390).</p><p>Capítulo 4</p><p>Dimensões biopsicossociais da prática desportiva</p><p>Diante do predomínio da técnica, o ambiente esportivo é marcado pela intervenção de diferentes</p><p>profissionais, de modo que temos, no plano educacional, a atuação preponderante do profissional</p><p>licenciado em educação física, dentro de estabelecimentos de ensino (Educação Básica). Já na</p><p>esfera do desporto de participação podemos ter, além destes, também dirigentes e gestores do</p><p>setor público e privado, bem como assistentes sociais, psicólogos, terapeutas, dentre outros,</p><p>focados na organização de atividades de todos os gêneros, visando criar oportunidades de prática</p><p>desportiva para a população em geral ou grupos específicos (ex.: idosos, pessoas com</p><p>deficiência), por meio de órgãos públicos ou de academias, clubes, ligas e outros tipos de</p><p>associação (especializadas, comunitárias, assistenciais, filantrópicas, etc.). No âmbito do</p><p>rendimento, com a elevação dos padrões exigidos do praticante – que assume a condição de</p><p>atleta</p><p>– a intervenção profissional passa a ser multidisciplinar, demandando suporte mais</p><p>especializado, como o de preparadores físicos e técnicos (bacharéis em educação física),</p><p>nutricionistas, fisioterapeutas, médicos e psicólogos. Além disso, o esporte de alto nível,</p><p>principalmente, também agrega a atuação de publicitários (marketing esportivo), jornalistas</p><p>(mídia esportiva) e advogados (Direito Desportivo). Contudo, independente da manifestação em</p><p>questão, é recomendável aos envolvidos possuir uma visão abrangente (além da sua</p><p>especialidade) das dimensões biológicas, psicológicas e sociais que envolvem o praticante</p><p>desportivo, isto é, tendo uma compreensão integral do ser humano (biopsicossocial), permitindo</p><p>assim uma intervenção profissional de melhor qualidade no atendimento das suas necessidades e</p><p>aspirações. Muitas vezes a falta de conhecimento e de uma visão mais ampla dos significados da</p><p>prática desportiva, quando não sua condução por pessoas inabilitadas, leva a intervenções</p><p>inoportunas, indesejadas e até nefastas para o indivíduo, ao ser submetido, por exemplo, a</p><p>sobrecarga de treinamento; a especialização precoce; ao uso indevido de medicamentos; ao</p><p>envolvimento em atos violentos; processos de exclusão dentro do próprio do grupo de atividade;</p><p>humilhação; falsas expectativas. Não são poucos os relatos de pessoas frustradas que deixaram</p><p>de praticar atividades desportivas por razões deste tipo, de inadvertido desgaste físico e</p><p>emocional, quando não deixando sequelas por toda a vida.</p><p>4.1. Aspectos biológicos</p><p>Um dos maiores apelos do nosso tempo, que induzem e justificam a prática de atividades</p><p>esportivas, recai sobre os benefícios orgânicos que essa atividade pode trazer ao colocar o corpo</p><p>em movimento. As possibilidades de melhor condicionamento físico, desenvolvimento muscular,</p><p>flexibilidade corporal, expansão da coordenação motora e noção espaço-temporal, dentre tantos</p><p>outros benefícios, já revelam o prestígio que essa atividade goza em uma sociedade que tanto</p><p>sofre com os efeitos do sedentarismo. Sob outro aspecto, também é a prática desportiva uma</p><p>forma condizente para o estabelecimento de desafios entre indivíduos, seja de forma direta</p><p>(futebol, basquete, boxe, etc.) ou indireta (ex.: provas de saltos, arremessos, corridas, tiro), de tal</p><p>sorte que podem ser criadas as mais diversas situações de exigência física, mental e sensorial do</p><p>praticante. Entretanto, para serem benéficas ao organismo e aceitas socialmente, demandam</p><p>observar parâmetros biológicos e fisiológicos que respeitem a condição humana, seus limites e</p><p>fragilidades, ainda que levados ao extremo, o que é uma peculiaridade de determinadas</p><p>modalidades, classificadas como “esportes radicais”, vistos com reprovação por alguns setores</p><p>da sociedade, assim como determinadas categorias de lutas. De todo modo, cumpre aos</p><p>organizadores de modalidades e competições desportivas dotá-las de regras e procedimentos</p><p>(métodos) que resguardem, ainda que relativamente, as condições de saúde dos competidores.</p><p>Nesse ponto, as implicações de caráter biológico e fisiológico se tornam fundamentais para</p><p>análise de especialistas na definição dos limites de exposição toleráveis. Esse estudo científico é</p><p>indispensável para validar práticas desportivas e mesmo atenuar vertentes de contraposição à sua</p><p>realização, quando não a própria criminalização da atividade, constando inclusive na legislação</p><p>brasileira o “princípio da segurança”, que deve ser propiciado ao praticante de qualquer</p><p>modalidade desportiva, quanto a sua integridade física, mental e sensorial (Lei nº 9.615/98, art.</p><p>2º, inciso XI).</p><p>4.1.1. Medicina no esporte: Para atender as demandas do meio esportivo, diante da sua franca</p><p>expansão no decorrer do século XX, muitas áreas do conhecimento humano passaram a estudar o</p><p>fenômeno esportivo de modo particularizado, dentre elas, a medicina. No Brasil, desde 1962,</p><p>temos a SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA DO EXERCÍCIO E DO ESPORTE</p><p>(SBME), associação de fins não econômicos que tem por missão, segundo o médico especialista</p><p>Dr. Antonio C. L. da Nóbrega, “fortalecer a educação continuada e o aperfeiçoamento científico</p><p>de seus membros como estratégia de promover melhoria da qualidade de vida da população</p><p>através da atividade física e do esporte” (in: SBME, 2009, apresentação). Já de acordo com o</p><p>também especialista em Medicina Esportiva, Dr. Felix D. Albuquerque, seu objeto “compreende</p><p>os campos teóricos e práticos da área que estuda a influência do exercício, o treinamento e a</p><p>prática esportiva em pessoas sadias e doentes, produzindo resultados importantes na prevenção,</p><p>tratamento e reabilitação de patologias e na performance do atleta” (in: SBME, 2009, p. 3),</p><p>apontando como papel do médico do esporte realizar, sinteticamente: (1) avaliação clínica; (2)</p><p>avaliação, análise e atuação sobre os dados da avaliação funcional (fisiológica); (3)</p><p>implementação de ações para a prevenção de lesões; (4) integração com outras áreas (saúde e</p><p>comissão técnica); (5) acompanhamento em treinos e competições, e; (6) atuação ética em</p><p>relação à saúde do atleta.</p><p>4.1.2. Código de Ética na Medicina do Esporte: Destacam os especialistas a existência do</p><p>Código de Ética na Medicina do Esporte, aprovado pelo Comitê Executivo da FÉDÉRATION</p><p>INTERNATIONALE DE MÉDECINE SPORTIVE (FIMS), em 23 de setembro de 1997. Não</p><p>obstante, o Conselho Federal de Medicina (CFM) do Brasil, através da Resolução nº 1.833, de</p><p>20/02/2008, regulamenta a organização de serviços médicos em instituições esportivas e dá</p><p>outras providências.</p><p>4.1.3. Avaliação pré-participação (APP): Partindo do princípio do esforço físico associado à</p><p>prática desportiva, ainda que de baixa intensidade, antes do início da participação em atividades</p><p>de cunho pedagógico, regulares ou de competições, recomenda-se o exame das condições de</p><p>saúde do praticante, em respeito à sua individualidade biológica, conforme parâmetros</p><p>médicos</p><p>definidos pelos profissionais da área, diante dos níveis de sobrecarga, exigência cardiopulmonar</p><p>e neuromuscular (velocidade, força, resistência, flexibilidade) a que será submetido, de maneira</p><p>que esteja apto para iniciar as atividades, delas tirando o melhor proveito. Logo, a realização de</p><p>“Avaliação pré-participação” (APP), mostra-se indispensável para assegurar as condições de</p><p>saúde do praticante desportivo, de tal modo que não deve ser negligenciada, sob pena de</p><p>responsabilização civil e criminal daqueles a quem cumpre o dever de agir neste sentido. Sobre a</p><p>APP, destacam os médicos Lazzoli e Leitão (in: SBME, 2009, p. 13), que se trata de “um</p><p>instrumento importante para a manutenção da saúde e da segurança de atletas e praticantes de</p><p>exercícios, sendo mais do que uma simples formalidade que possa restringir ou impedir a prática</p><p>de exercícios ou esportes”.</p><p>A APP é recomendável para todos os indivíduos que praticam exercícios físicos – de caráter</p><p>competitivo ou não – e tem como um de seus principais objetivos afastar condições que possam</p><p>ter no exercício físico um gatilho para o desencadeando de eventos graves, como a ocorrência de</p><p>morte súbita. Na APP, o objetivo do candidato também deve ser considerado: atividade física,</p><p>exercícios físicos em caráter não-competitivo ou esporte competitivo. É importante também na</p><p>individualização e no direcionamento da avaliação levar em conta a faixa etária do indivíduo:</p><p>criança, adolescente, adulto, jovem ou idoso (in: SBME, 2009, p. 13).</p><p>4.1.4. Exigências do treinamento desportivo de alto nível (rendimento): No caso da prática</p><p>desportiva de rendimento, que envolve atletas profissionais e não profissionais em situação de</p><p>treinamento intenso e participação contínua em competições, torna-se ainda mais necessária a</p><p>avaliação das suas condições de saúde, com diagnósticos detalhados e específicos conforme a</p><p>modalidade em questão, devendo ser acompanhado permanentemente. Casos de morte súbita,</p><p>enfartes e outros incidentes desta natureza, por vezes circulam no noticiário esportivo, sendo</p><p>certa a instauração de inquéritos policiais e demandas judiciais para identificação e penalização</p><p>dos responsáveis, bem como reparação de danos. Nesse sentido, a prática desportiva de</p><p>rendimento sugere maior possibilidade de ocorrências de incidentes durante a realização das</p><p>competições, de forma que o atendimento de emergência se torna uma necessidade sempre</p><p>presente. Por seu turno, fisioterapeutas especializados cuidam da recuperação dos atletas, após</p><p>intervenções de médicos também especializados. Com isso, procura-se resguardar as condições</p><p>de saúde do atleta de alto nível, sendo que negligências podem representar o “encurtamento” da</p><p>sua carreira ou mesmo deixar sequelas indesejadas por toda a vida. Essa dimensão biológica não</p><p>pode ser descuidada na prática desportiva. Há, inclusive, quem defenda a não prática de esporte.</p><p>Para o médico Dr. José Róiz, “esporte faz mal, muito mal mesmo. E minha opinião não mudará</p><p>nunca, a menos que alguém prove o contrário” (RÓIZ, 2004, p. 36). Com essa convicção, critica</p><p>inclusive o Método Cooper, que ficou mundialmente conhecido a partir dos anos 70, com a</p><p>publicação de livros do médico americano Kenneth H. Cooper, estimulando a prática de</p><p>exercícios aeróbicos, para fins de melhor aptidão física. Para Róiz, uma verdadeira “tapeação”,</p><p>que induz os praticantes a risco de morte, recomendando a caminhada para combater a vida</p><p>sedentária. Bem mais contida era a opinião do médico e esportista alemão Harald Mellerowicz</p><p>(1919-1996), quando afirmava que: “Qualquer remédio transforma-se em veneno quando tomado</p><p>em doses exageradas. Assim também o treinamento e as atividades desportivas exageradas</p><p>podem prejudicar a saúde, causando o surgimento de alterações biológicas. Entretanto, este</p><p>perigo é mínimo, comparado com os perigos muito maiores à saúde por falta de movimento” (in:</p><p>DIECKERT, 1984, p. 84-85).</p><p>4.1.5 Genética do esporte: Mais recentemente, com a conclusão do projeto de mapeamento do</p><p>genoma humano, começa a se pesquisar sobre as características genéticas dos atletas de elite,</p><p>reavivando as indagações sobre o que é inato e aquilo que é adquirido através de treinamento</p><p>intenso e especializado, ao lado das influências do ambiente. O esportista e jornalista David</p><p>Epstein, pesquisando o assunto em profundidade, suspeita que “qualquer tese sobre perícia</p><p>esportiva que se erga integralmente sobre o inato ou sobre o adquirido será falha” (EPSTEIN,</p><p>2014, p. 263), concluindo que:</p><p>À medida que amadurecem os estudos genéticos, cada vez mais vamos descobrir dados</p><p>hereditários</p><p>– alguns consideráveis, e muitos triviais –, por trás das histórias esportivas que contamos. Mas é</p><p>improvável que cheguemos a encontrar respostas completas só no genoma, e não apenas porque</p><p>ambiente e treinamento são sempre fatores críticos. Lembre-se de que mesmo com relação à</p><p>altura, uma característica facilmente mensurável, os cientistas precisaram de vários milhares de</p><p>sujeitos e centenas de milhares de pontos de código de DNA para dar conta de pouco menos da</p><p>metade das variações entre adultos. Está cada vez mais claro que muitas características são</p><p>influenciadas pela interação de um grande número de variações de DNA. Assim, os estudos</p><p>exigirão centenas ou mesmo milhares de indivíduos para chegar à raiz genética desses traços.</p><p>Acontece que não existem no mundo milhares corredores de ponta nos 100m rasos [por</p><p>exemplo]. Além disso, as variantes genéticas que tornam determinado corredor rápido podem ser</p><p>completamente distintas daquelas que contribuem para a velocidade do adversário correndo na</p><p>faixa ao lado (EPSTEIN, 2014, p. 264).</p><p>4.2. Aspectos psicológicos</p><p>Além do aspecto biológico e fisiológico, estudar o comportamento do ser humano e de suas</p><p>interações com o ambiente físico e social através do esporte, é outra vertente fundamental para</p><p>dimensionar os estados e processos mentais dos praticantes e fãs (torcedores), em especial por se</p><p>tratar de um meio no qual se exercita a competição. A considerar que é da natureza humana ser</p><p>competitivo (somos concebidos diante de uma competição sem precedentes e da qual saímos</p><p>como único vencedor), talvez esteja inscrito em nosso código genético a eterna postura</p><p>competitiva e o compromisso com a vitória, em todos os sentidos. E desportivamente não é</p><p>diferente, aliás, pode justificar até a motivação para sua prática. Claro que nem todos manifestam</p><p>gosto pelos esportes, preferindo outras formas de ocupação, entretanto, sempre que</p><p>adequadamente estimulados, é muito difícil alguém recusar-se à prática de alguma das inúmeras</p><p>modalidades desportivas, havendo opções para todos os gostos. Em resumo:</p><p>A psicologia do esporte examina processos e fenômenos psíquicos como ocorrências sensoriais,</p><p>psicomotrizes, cognitivas, motivacionais, sociais, de personalidade, desenvolvimento</p><p>educacional, e de aprendizagem no campo de ação do esporte. Nasceu da necessidade do esporte,</p><p>especialmente o esporte de competição de alto nível, por uma consideração maior dos fatores</p><p>psicológicos no planejamento, execução e avaliação de performances desportivas. [...] As tarefas</p><p>da psicologia do esporte resultam da combinação de fatores individuais das quatro seguintes</p><p>dimensões: condições das atividades desportivas; direcionamento dos objetivos das atividades</p><p>desportivas; participantes dos eventos desportivos; bases fundamentais e efeitos psíquicos</p><p>generalizados e específicos do esporte (THOMAZ, 1983, p. 15).</p><p>4.2.1. Teorias sobre a motivação para a prática de esportes: De forma abrangente Harris</p><p>(1976) mapeou diversas teorias, tradicionais e clássicas, informadoras dos motivos determinantes</p><p>que conduzem à prática desportiva, conforme a seguir resumidos:</p><p>(a) TEORIA DO EXCESSO DE ENERGIA: Seus defensores entendem que o homem possui</p><p>mais energia do que necessita para o trabalho e mesmo para sua existência, funcionando os jogos</p><p>como um meio para descarregar seu excesso. (b) TEORIA DA PREPARAÇÃO PARAA VIDA:</p><p>É uma das mais antigas e sugere que o jogo prepara tanto os animais</p><p>como as pessoas para</p><p>situações da vida real, sendo instintiva a motivação para o jogo. (c) TEORIA DO</p><p>RELAXAMENTO OU DIVERSÃO: Neste caso o jogo proporciona uma oportunidade para</p><p>escapar do tédio do trabalho, ao acrescentar outra dimensão para a vida. (d) TEORIA DO</p><p>RECREIO: Segundo esta teoria, ainda que desprovida de sentido fisiológico, o jogo recreia o</p><p>trabalhador e combate sua fadiga [laboral], repondo e regenerando sua energia. (e) TEORIA DA</p><p>SUBLIMAÇÃO: Aqui o jogo, a atividade física e a competição são vistos como uma situação de</p><p>libertação das pressões e frustrações cotidianas. (f) TEORIA DO DOMÍNIO EM</p><p>COMPETIÇÃO: O jogo permite ao individuo, dentro de um esquema de regras e limites,</p><p>demonstrar sua capacidade contra outros indivíduos ou contra elementos da natureza,</p><p>reassegurando sua condição de domínio. (g) TEORIA DA IMITAÇÃO: Vê o jogo e a</p><p>participação em atividades físicas como um laboratório para imitação das experiências da vida</p><p>real, inclusive permitindo desenvolver conceitos de guerra. (h) TEORIA DA REALIZAÇÃO DA</p><p>PESSOA: O indivíduo, como um ser dotado de inteligência, espírito e capacidade física, busca</p><p>através do jogo experimentar sensações de realização, dominação e aprovação. (i) TEORIA DE</p><p>ENRIQUECIMENTO DA VIDA: O jogo e a atividade física servem para realizar e proporcionar</p><p>outra dimensão para a existência humana, especialmente como alternativa ao trabalho. (j)</p><p>TEORIA DO CONTROLE OU CATARSE: Entende que o jogo pode servir como uma válvula</p><p>de escape para a agressividade que alguns creem fazer parte da natureza humana, de tal maneira</p><p>que a participação em uma atividade física pode proporcionar uma liberação catártica dessa</p><p>conduta agressiva, assim como educar o homem para um controle consciente desse instinto</p><p>(HARRIS, 1976, p. 16-19).</p><p>4.2.2. Catarse (liberação de emoções e tensões): A palavra “catarse” expressa o sentido de</p><p>“liberação de emoções ou tensões reprimidas” (HOUAISS, 2009, p. 422), que trazida para o</p><p>contexto do esporte é avaliada nos seguintes termos, por Lamartine Pereira da Costa (1980):</p><p>Enquanto elemento de cultura, a observação do esporte como canalizador positivo da</p><p>agressividade humana é outra importante forma de abordagem. As pessoas, no caso, esgotariam</p><p>suas cargas agressivas concentradas na representação das oposições, dos conflitos e das guerras.</p><p>Chama-se a isto de catarse, que na Antiguidade gerou modalidades esportivas (lutas, arremessos</p><p>de peso e de dardo, esgrima) ligadas à cultura de cada nação e de seus valores guerreiros. A atual</p><p>civilização tecnológica, cada vez mais competitiva, tem utilizado o esporte como meio de</p><p>representação de oposições num processo catártico, que cresceu e ultrapassou os naturais</p><p>impulsos lúdicos e agonísticos. Há, evidentemente, aspectos positivos na compensação da</p><p>agressividade com o apelo a energias adormecidas e o estímulo a potencialidades. Contudo, o</p><p>esporte, como qualquer meio, quando excessivamente estimulado, passa a ser vivido como um</p><p>fim. Daí perde-se a noção de objetivos, de finalidades, de propósitos da atividade (PEREIRA DA</p><p>COSTA, 1980, p. 12).</p><p>Por esse caminho, a índole guerreira (agonística) do ser humano, encontra aplacamento no</p><p>universo do desporto, dentro e fora de campo.</p><p>4.2.3. Assédio moral: Tema recente e controvertido que começa a ser debatido com maior</p><p>profundidade pelos especialistas, é a caracterização do assédio moral no esporte, não apenas em</p><p>nível de rendimento, mas também no âmbito educacional, em relação à cobrança de desempenho</p><p>dos praticantes, exercida pelos profissionais encarregados do comando das atividades, diante do</p><p>fator “competição”, querendo com isso extrair o máximo de seus comandados. Sem pretender</p><p>entrar no mérito da questão, já que cada caso demanda uma análise pormenorizada, apenas</p><p>ressaltamos, uma vez mais, a importância da compreensão global do indivíduo em termos</p><p>biológicos, psicológicos e sociais, que se traduz numa intervenção muita mais sadia e proveitosa</p><p>para todos. A visão deturpada do ser humano como uma máquina reprodutora, pura e</p><p>simplesmente, de movimentos específicos de determinada modalidade esportiva (adestramento),</p><p>é que conduz a comportamentos inadvertidos. Nunca podemos esquecer que o esporte deve</p><p>servir ao homem, e não o contrário, por mais importante que seja determinada competição, de</p><p>maneira que deve ser acompanhado psicologicamente e com maior frequência nessa situação. No</p><p>campo educacional, mais ainda, a finalidade da prática desportiva deve estar voltada</p><p>fundamentalmente para o “desenvolvimento integral do indivíduo e a sua formação para o</p><p>exercício da cidadania e a prática do lazer” (Lei nº 9.615/98, art. 3º, I).</p><p>4.2.4. Atos discriminatórios: Se por um lado o esporte integra e cria oportunidades para</p><p>relações sociais saudáveis por meio da sua prática, sua face obscura é refletida quando serve de</p><p>palco para discriminações de toda ordem, como as intolerâncias em situações corriqueiras de</p><p>jogos comunitários ou atos preconceituosos vistos em arenas esportivas. O combate a este mal só</p><p>é possível através de planejamento e gestão. Nas atividades comunitárias é preciso aplicar</p><p>métodos disciplinares que inibam comportamentos inadequados dos participantes, como a</p><p>exigência de desempenho além das possibilidades do praticante, ou xingamentos e reclamações a</p><p>todo instante, e isso somente é possível por via de um agente orientador, o profissional de</p><p>educação física. Já nos espetáculos esportivos os atos discriminatórios costumeiramente são</p><p>objeto de regulamentos internacionais e códigos de justiça desportiva para penalização daqueles</p><p>que assim se manifestam. “O exercício físico e esportivo se mal orientado, dinamizado e</p><p>ensinado de forma errônea, pode causar danos, lesões físicas, psíquicas, morais e sociais” (Jorge</p><p>Steinhilber – Pres. do CONFEF, in: Rev. da Educação Física n. 55, 2015).</p><p>4.3. Aspectos sociológicos</p><p>Para Esteves (1975, p. 11) “só há uma forma de entender o fenómeno desportivo: na perspectiva</p><p>das estruturas sociais”. No mesmo sentido destaca John Ford (1977, p.7), que “o esporte faz</p><p>parte do processo de funcionamento de uma sociedade”. Como já afirmado, além do aspecto</p><p>funcional (jogo, competição e método) o reconhecimento de uma atividade desportiva demanda a</p><p>finalidade de interação social, ou seja, estimulando contatos e relações entre uma pessoa e outra,</p><p>entre uma pessoa e um grupo ou entre um grupo e outro, sendo essa interação fundamental para o</p><p>desenvolvimento do ser humano, de maneira que possa assimilar (interiorizar) e compartilhar</p><p>(praticar) hábitos, regras e costumes característicos do seu grupo, conhecendo também o dos</p><p>outros, permitindo o melhor convívio social. Nesse ponto, há muito já destacava o Conseil</p><p>Internationale d’education Physique et Sports (CIEPS, 1968), item 3, que: “O grupo esportivo é</p><p>uma família. A simpatia, o calor humano que cada um deve aí poder encontrar e a amizade que</p><p>pode nascer da luta esportiva constituem o segredo da sua coesão” (in: TUBINO, M;</p><p>GARRIDO; TUBINO, F; 2007, p. 594). De se notar que, quando nos afastamos desses ideais,</p><p>não tarda em degradar as relações esportivas no seu contexto geral, inclusive no tocante aos</p><p>torcedores, cuja degeneração, muitas vezes, desemboca em atos de violência e discriminação.</p><p>4.3.1. Interação social: A chamada “Sociologia do Esporte”, cada vez mais tem sido tema de</p><p>estudos, procurando examinar o impacto da prática desportiva nas relações sociais que estimula.</p><p>Georges Magnane, em meados do século passado, já apontava o esporte como “um fenômeno</p><p>social que impregna profundamente a vida quotidiana do homem do século XX” (MAGNANE,</p><p>1969, p. 16), encerrando valores culturais, vistos naquela época, ainda em estado latente, mas já</p><p>o estudando como “fato social, capaz de representar um papel na cultura e na civilização” (p. 40),</p><p>situação que acabou realmente por se concretizar. Na mesma direção apontava Dumazedier</p><p>(1973), orientador dos estudos de Magnane, quando identificava a crescente “necessidade de</p><p>lazer”, especialmente da classe trabalhadora, diante do incessante processo</p><p>de urbanização e</p><p>industrialização que marcaram os novos tempos, cumprindo três importantes funções, sendo: (a)</p><p>função de descanso; (b) função de divertimento, recreação e entretenimento; (c) função de</p><p>desenvolvimento. Assim, na mesma linha de Bertrand Russel, em seu “elogio ao ócio” (1935),</p><p>pressentia Dumazedier que: “o jogo poderá determinar mudanças profundas tanto na cultura</p><p>tradicional quanto nas de vanguarda e conferir uma poesia paralela à vida de todo o dia e um</p><p>pouco de humor no compromisso social” (DUMAZEDIER, 1973, p. 40).</p><p>4.3.2. O esporte como patrimônio cultural: As proposições de Russel, Magnane e Dumazedier</p><p>se concretizaram no entorno das práticas desportivas, verdadeira “instituição social” do mundo</p><p>moderno, a reclamar permanente atenção dos governos e investimentos da iniciativa privada. Ou</p><p>seja, desde o momento em que a sociedade passou a utilizar o termo “esporte” para definir certas</p><p>práticas exercidas pelo homem, acabou delimitando também os significados e valores que lhes</p><p>são atribuídos, ainda que sujeito a transformações sociais, fato que notadamente ocorreu no final</p><p>do século 19, quando o esporte deixou de ser apenas uma forma de divertimento das “elites”, e</p><p>passou a ser concebido também no plano educacional (quando é inserido nas escolas) e de</p><p>rendimento (marcado pelo surgimento das Federações Internacionais e do COI), reinventando-se</p><p>de forma mais expansiva e contundente. O viés de rendimento (valorização da competição) é o</p><p>que mais chama a atenção nessa transformação, podendo ser atribuído em razão da</p><p>reaproximação das pessoas que passaram a povoar as cidades que se formavam, já que, “entre</p><p>1100 e 1300, nada menos que 140 novas cidades foram erguidas na Europa ocidental”</p><p>(OLIVEIRA, 2011), ditando o ritmo dos valores que seguiriam associados à Revolução</p><p>Industrial que se avizinhava e seu fundamento capitalista mercantil, de estímulo à concorrência e</p><p>a livre iniciativa. Logo, a humanidade saía iluminada de um regime feudal, escravagista e</p><p>marcado pelo isolamento social do campo, marchando a passos largos rumo a regiões urbanas,</p><p>nas quais naturalmente ocorreram trocas de experiências e costumes, dentre elas, as práticas</p><p>desportivas, que permitiam uma interação social bastante dinâmica e excitante. Não tardaram a</p><p>surgir as elitistas associações desportivas e depois as associações de trabalhadores (ligadas aos</p><p>sindicatos), dentre tantas outras. Nesse ritmo, a ampliação da finalidade da prática desportiva</p><p>começou a se verificar. Fato é que, sempre que a humanidade vivencia períodos de prosperidade</p><p>e estabilidade, o esporte aflora como uma manifestação de destacada importância e especial</p><p>atenção, e isso de uma forma tão espontânea, que parece fazer dessa atividade algo de</p><p>imprescindível (patrimônio cultural), para o desgosto daqueles que insistem em tratá-la como</p><p>supérfluas, ou de menor importância social frente a outras manifestações culturais. O conceito de</p><p>esporte é tão superlativo em termos culturais, que extrapola a própria dimensão de cultura,</p><p>colocando-se ao seu lado.</p><p>Capítulo 5</p><p>Origens e evolução da prática desportiva</p><p>Passar o esporte em revista à luz da periodização histórica clássica é outra forma de estudo</p><p>reveladora das condições em que essa manifestação social vai ganhando espaço, forma e</p><p>importância para a humanidade, evoluindo de uma atividade natural, utilitária e mística (Era</p><p>Primitiva), depois guerreira, agonística e ritual (Antiguidade), profana e recreativa (Idade</p><p>Média), até alcançar o formato desportivo (competitivo, educativo e participativo), ocupando</p><p>lugar de destaque na sociedade moderna e contemporânea. “Assim como há história social da</p><p>literatura, da música, da arte, existe a história do esporte” (FORD,1977, p.7).</p><p>5.1. Era Primitiva</p><p>Da ascensão do ser humano na terra até próximo de 4.000 a.C., os desafios que enfrentou nesta</p><p>fase de evolução sempre foram marcados pela incessante luta pela sobrevivência e busca de</p><p>dominação, conferindo nítida impressão do seu espírito criativo e competitivo. Neste período</p><p>rudimentar e primitivo, em que o homem “era mais músculo do que cérebro” (RAMOS, 1982, p.</p><p>16) não há de se falar em jogos no sentido desportivo, ao contrário, os embates eram utilitários,</p><p>pois tinham o fito de garantir a vida e suprir suas necessidades primárias. Assim, os exercícios</p><p>físicos, como correr, saltar, lançar, arremessar, nadar, e o impulso de atacar e defender-se, eram</p><p>práticas cotidianas na interação com a natureza, seus semelhantes, e sempre necessárias à</p><p>manutenção da vida. Flávio M. Pereira, citando Friedrich Engels, teórico revolucionário alemão</p><p>(1820-1895), que ao lado de Karl Marx desenvolveu a teoria do socialismo científico ou</p><p>“marxismo”, salienta que:</p><p>[...] os movimentos repetidamente treinados determinaram aperfeiçoamento nas ações de</p><p>respostas às necessidades de sobrevivência, com o desenvolvimento corporal e mental,</p><p>modificações morfofuncionais de músculos, tendões, ossos e de sistema nervoso, que, evoluindo</p><p>através de gerações, permitiram que se estabelecessem novas condições de alimentação, com</p><p>maior ingestão de alimentos ricos em proteínas, mais consumo de carne; e, também pelo trabalho</p><p>físico, o homem pôde criar e efetivamente utilizar armas, com lanças e machados de pedra,</p><p>usados na casa e na defesa grupal de modo facilitado pela posição de dois apoios. Pois,</p><p>mantendo-se ereto, com as duas mãos livres, o homem podia lançar ou bater com eficiência,</p><p>diferenciando-se das outras espécies antropóides também pelo domínio corporal e por suas</p><p>habilidades manuais. Então, o domínio do esquema corporal, conseguido por meio do</p><p>treinamento gestual, possibilitou aos homens primitivos o domínio sobre o ambiente natural, ou</p><p>seja, por meio do movimento, do trabalho, é que o homem desenvolveu seu corpo, e, com um</p><p>corpo mais habilidoso, mais aperfeiçoado, no sentido operativo, é que conseguiu dominar a</p><p>natureza (PEREIRA, 1988, p. 24-25).</p><p>Frente à tamanha importância da capacitação física no processo evolutivo da humanidade era</p><p>natural que buscasse estabelecer meios de transmitir às gerações seguintes suas habilidades</p><p>desenvolvidas, e as gravações rupestres descobertas por arqueólogos ao longo do tempo, de</p><p>ancestrais arremessando lanças contra animais, correndo ou nadando, revelam a primeira</p><p>utilidade da escrita.</p><p>Desde o começo da aventura do homem sobre a Terra foi transmitida, de geração em geração,</p><p>uma série de práticas utilitárias, que, observadas e imitadas, possibilitaram-lhe, vivendo em um</p><p>meio hostil, melhor apurar seus sentidos, forças e habilidades (RAMOS, 1982, p. 16).</p><p>5.1.1. Criatividade humana e jogos fúnebres: A inventividade e a imaginação, traços</p><p>diferenciadores da nossa espécie, revelaram-se desde então, pela descoberta do fogo, pela</p><p>invenção da roda, pelo surgimento da escrita e da arte de contar, das técnicas de lavoura e uso da</p><p>tração animal, mudando a feição nômade e fazendo surgir os agrupamentos e os assentamentos,</p><p>despertando o interesse por territórios férteis. Neste período, alguns historiadores interpretam</p><p>que certos rituais, em especial por ocasiões fúnebres, representavam a primeira manifestação da</p><p>prática de jogos pelos seres humanos (jogos fúnebres).</p><p>5.1.2. Consciência e pensamento lúdico: A descontração física e mental do homem, pela</p><p>dominação do meio em que vivia, aliada ao consumo de proteínas e a convivência coletiva,</p><p>reforçou os laços de identidade e abriu caminho para o pensamento e a ludicidade, preenchendo</p><p>suas mentes com crenças e abrindo caminho para a formulação de teorias, jogos, danças e outras</p><p>manifestações culturais, levados pela ânsia da razão em busca de compreender sua existência, e</p><p>também para movimentar-se e ocupar-se, como sempre lhe foi exigido pela natureza, dando azo</p><p>a um misto de convenções, práticas e rituais diversos. A cultura e a consciência humana</p><p>começam a sedimentar-se.</p><p>5.1.3. Vida em sociedade e sedentarismo: A fixação do homem na terra aliado ao senso de</p><p>grupo que se estabeleceu, deu início a um crescente processo de concentração urbana, levando a</p><p>outros níveis</p><p>de evolução e organização social. As regras de convívio começaram a ser pensadas</p><p>e introduzidas. O sedentarismo e a mudança de padrões alimentares, especialmente trazidos pelo</p><p>cultivo de grãos e consumo de carne, com maior valor energético, mudaram a feição e forma de</p><p>viver do homem na terra. Lembra G. Blainey que:</p><p>A capacidade de um distrito de alimentar as pessoas passava a ser multiplicado por três, seis ou</p><p>talvez até mais vezes, com o uso mais eficiente do solo e das pastagens, dos minerais e da pesca:</p><p>um conjunto de conquistas que estava além das habilidades dos povos nômades. A população do</p><p>mundo, até então reduzida, aumentou drasticamente. Talvez somente 10 milhões de pessoas</p><p>habitassem o mundo inteiro na época em que as primeiras experiências com lavoura e criação de</p><p>rebanhos foram feitas. Mas é provável que por volta de 2000 a.C. a população do mundo se</p><p>aproximasse dos 90 milhões; 2 mil anos mais tarde, na época de Cristo, estava próxima dos 300</p><p>milhões. Às vezes o crescimento contínuo da população era refreado por epidemias (BLAINEY,</p><p>2009, p. 35).</p><p>5.1.4. Divisão social do trabalho, escravidão e tempo livre das classes dominantes: Traço</p><p>marcante das sociedades que surgiram é a gritante separação das castas sociais, de tal maneira</p><p>que o homem, além de dominar o meio em que vivia, também passou a exercer domínio sobre</p><p>seus semelhantes. Relata Pereira (1988, p. 27), neste sentido:</p><p>Evoluindo no tempo, com a fixação do homem na terra, abandonando o nomadismo e a vida da</p><p>coleta e da caça, domesticando animais, aproveitando novas forças e meios para o transporte,</p><p>desenvolvendo técnicas de cultivo de alimentos e de fabricação de armas e de utensílios, com a</p><p>divisão social do trabalho, e com a implementação da escravidão, os exercícios físicos deixaram</p><p>paulatinamente de ser atividades primárias, de sobrevivência, e passaram principalmente para o</p><p>campo bélico e a ser atividades culturais desenvolvidas no lazer. As camadas social e</p><p>economicamente dominantes, que aos poucos diferenciavam-se dos estamentos ligados às tarefas</p><p>produtivas, possuíam maiores oportunidades de práticas de tempo livre, incluindo as atividades</p><p>de cultura física, as quais mantinham também como privilégio de classe, como a caça, o hipismo,</p><p>certas técnicas de combate corpo a corpo e exercícios com armas. A cultura física também</p><p>caracteriza-se por ser um fenômeno cultural universal, pois pode-se ter exemplos de práticas de</p><p>exercícios físicos em vários estágios civilizatórios e em diversas regiões do globo.</p><p>5.1.5. Supremacia em dirigir e governar (exercício de domínio): A forja de metais, utilizados</p><p>como ferramentas e armas, representou outro passo importante da humanidade. A necessidade de</p><p>governo se fez sentir cada vez mais, bem como o temperamento político humano deu o tom pela</p><p>crescente hierarquização social. Houve o acirramento na disputa entre homens pelos bens</p><p>materiais e territórios conquistados. Exércitos começaram a ser pensados e erigidos, batalhas se</p><p>iniciaram, cavalarias são montadas, armamentos desenvolvidos, homens transformaram-se em</p><p>guerreiros, surgiram os impérios. Neste cenário a manutenção do vigor físico do homem ganhou</p><p>outro sentido, pois precisava manter-se forte e combativo para proteger seu grupo e suas</p><p>conquistas. Além de avançar sobre as de outrem.</p><p>5.2. Idade Antiga</p><p>Ao final da Era Primitiva até por volta de 476 d.C., temos o período histórico conhecido como</p><p>Antiguidade, a era da consolidação das primeiras civilizações organizadas e seus impérios,</p><p>vividos em ascensão e decadência. No ocidente, vimos surgir Grécia e depois Roma, no oriente,</p><p>a civilização Medo-Persa. Saímos das cavernas e assentamentos para edificar as primeiras</p><p>cidades e monumentos, que fizeram surgir o comércio entre homens e povos de diferentes</p><p>regiões da Europa e Ásia (Eurásia), criando rotas, conexões e comunicações que articulariam</p><p>depois o mundo moderno. O intercâmbio comercial permitiu também a aproximação de</p><p>diferentes culturas e religiões, e o esplendor da humanidade começou seu alvorecer, cimentado</p><p>pela exploração da tração animal e de novas matrizes energéticas, em especial o betume,</p><p>trazendo junto perigos ocultos, como doenças, epidemias e mais guerras pelo poder, eclodindo</p><p>com uso da pólvora, inventada pelos chineses, lançando, ao final deste período histórico, a</p><p>humanidade toda no obscurantismo marcado da Idade Média. Mas desta época, entre avanços e</p><p>retrocessos, alguns episódios são marcantes na futura concepção do desporto, especialmente pelo</p><p>significado atribuído à cultura corporal e aos jogos.</p><p>5.2.1. Sistema educacional grego e os “exercícios do corpo”: Ainda que outros povoamentos</p><p>tenham se desenvolvido de maneira extraordinária na Antiguidade (v.g. hindus, chineses, persas,</p><p>japoneses), nós, do lado ocidental do planeta, quase sempre nos referenciamos nos fatos do</p><p>mundo mediterrâneo, e na reconstrução da história do desporto não é diferente, tendo como</p><p>paradigma a civilização grega, que desde seu surgimento sempre demonstrou especial afeição e</p><p>interesse pela prática regular, sistemática e organizada de exercícios físicos (ginásticos), não</p><p>apenas como elemento de saúde do corpo e preparação para guerra (atletas guerreiros), mas</p><p>também como princípio de vida para elevação espiritual e moral, sendo o sedentarismo um ato</p><p>vergonhoso. “Para os gregos, os exercícios constituíam, do ponto de vista místico, expressão do</p><p>instinto de imortalidade” (RAMOS, 1982, p. 101). Um diálogo de Sólon é mencionado por</p><p>Walter Umminger, no livro Heróis, Deuses, Super-Homens (1968), para explicar o sistema</p><p>educativo da Grécia Antiga, conforme segue:</p><p>Com os nossos exercícios físicos visamos a seguinte finalidade: Logo que nossos jovens</p><p>alcançam a idade na qual seus membros adquirem a necessária firmeza e robustez, fazemo-los</p><p>lutar despidos, para que se acostumem, antes de tudo, ao ar livre e a todas as intempéries das</p><p>várias estações do ano, a ponto de o calor não os deprimir, nem o frio os incapacitar. Em seguida,</p><p>ungimos-lhes o corpo em óleo, para dar mais elasticidade e resistência aos membros. Depois são</p><p>treinados nas diversas artes ginásticas, idealizadas para que se habituem a exercer esforços e</p><p>trabalho, bem como lutar contra o inimigo, sem medo de sofrer golpes e ferimentos. Com isso</p><p>conseguimos duas vantagens de suma importância, a saber: insuflamos nos jovens o ânimo de</p><p>não se pouparem em situação difícil e os tornamos mais fortes e resistentes. Além de treinar</p><p>nossos filhos nas artes ginásticas fazemo-los praticar a corrida; aprendem a usar o fôlego e as</p><p>forças em pistas compridas para que aguentem alcançar a meta e, em pistas curtas, desenvolvam</p><p>a velocidade máxima. Igual treinamento recebem no salto de obstáculos, que eles transpõem</p><p>levando nas mãos pesadas bolas de chumbo. Competem também no arremesso de dardo,</p><p>rivalizando-se para atingir a maior distância. Na escola de esgrima há uma chapa redonda de</p><p>bronze, semelhante a um disco, sem cabo sem correia; esse disco é de manejo muito difícil por</p><p>ser extremamente pesado e liso, mas nossos rapazes arremessam-no para o ar e lutam entre si,</p><p>esforçando-se cada qual para alcançar maior distância. Esse trabalho robustece-lhe as espáduas e</p><p>aumenta-lhes a força dos dedos. Com esses exercícios treinamos nossos filhos, para que se</p><p>tornem defensores eficientes de nossa cidade e liberdade e reprimam o inimigo que atentar contra</p><p>nós. Porém, mesmo em tempos de paz, teremos cidades melhores, pois deixam de competir, com</p><p>os outros jovens, por falsa ambição, disputando coisas indignas, não se dedicam a frivolidades e</p><p>impertinências por falta de ocupação adequada, mas tomam a sério o treinamento e lhe destinam</p><p>todas as horas de lazer (UMMINGER, 1968, p. 28).</p><p>As atividades ginástico-atléticas não foram, nesta fase, concebidas como um bem do povo, ao</p><p>contrário, eram uma expressão reservada àqueles que detinham estirpe, quando as tradições</p><p>familiares regiam as relações sociais com intensidade. Leciona Katia Rubio que:</p><p>Na Grécia, as práticas atléticas eram um privilégio dos cidadãos – homens</p><p>no mundo virtual, inclusive por via da ampla gamificação do desporto, afastando as pessoas de</p><p>um convívio social pleno de contato humano, presencial, efetivo e afetivo.</p><p>No que remete ao Direito Desportivo é de se observar que tudo quanto foi apresentado neste</p><p>início, demanda suporte jurídico, sendo nosso desejo estudar essa dimensão do desporto em</p><p>profundidade. Conforme Santi Romano (2008, p. 92), “o direito é o princípio vital de toda</p><p>instituição, que anima e mantém reunidos os vários elementos que desta advém”. Em termos</p><p>específicos ressalta Álvaro Melo Filho (2006, p. 13): “Direito e desporto são conceitos</p><p>convergentes e entrelaçados que se complementam, se coordenam e se unem, dado que a</p><p>organização e o funcionamento do sistema desportivo requerem necessariamente o Direito como</p><p>mecanismo regulador”. Esse processo de construção de um sistema de direito (em nosso caso:</p><p>desportivo), é destacado por Ferraz Jr. (1994, p. 99) como de suma importância operacional já</p><p>que “ao distinguir, definir, classificar, sistematizar, a ciência jurídica está às voltas com a</p><p>identificação do direito, tendo em vista a decidibilidade de conflitos”. Alhures, reduzindo atritos</p><p>e entrechoques de direitos e deveres nascidos de uma relação jurídica atrelada, no mais das</p><p>vezes, à ordem interna e internacional, simultaneamente. Logo, quanto maior o tratamento lógico</p><p>-científico-sistemático do Direito Desportivo, melhor será seu domínio técnico e metodológico</p><p>no “que concerne ao plano da existência; depois, o que se refere ao plano da validade;</p><p>finalmente, o que somente pertence ao plano da eficácia” (MIRANDA, 1999, p. 25), conduzindo</p><p>com decantada segurança e certeza a busca de soluções e tomada de decisões para o progresso do</p><p>desporto no arranjo social. Enfim, essas breves linhas já revelam a densidade do tema que vamos</p><p>abordar, dividido em duas partes: (I) Da Prática Desportiva, e; (II) Do Direito Desportivo. Obra</p><p>que em seu conjunto denominamos TRATADO DE DIREITO DESPORTIVO.</p><p>José Ricardo Rezende</p><p>Sumário</p><p>Parte I – Da PrátIca DesPortIva</p><p>Capítulo 1– Bases conceituais do desporto .......................................19</p><p>1.1. Considerações iniciais ....................................................................19</p><p>1.2. Origem da palavra: desporto/esporte .............................................23</p><p>1.3. Conceito: o que é esporte/desporto? ..............................................29</p><p>Capítulo 2 – A fórmula do esporte: jogo, competição e método .....33</p><p>2.1. O jogo.............................................................................................34</p><p>2.2. A competição ..................................................................................38</p><p>2.3. O método ........................................................................................42</p><p>Capítulo 3 – Investigação antropológica e crítica</p><p>filosófica ao esporte ................................................................................ 51</p><p>3.1. Aspectos antropológicos ................................................................51</p><p>3.2. Crítica ao esporte ...........................................................................56</p><p>Capítulo 4 – Dimensões biopsicossociais da prática desportiva .....61</p><p>4.1. Aspectos biológicos .......................................................................62</p><p>4.2. Aspectos psicológicos ....................................................................66</p><p>4.3. Aspectos sociológicos ....................................................................70</p><p>Capítulo 5 – Origens e evolução da prática desportiva ...................73</p><p>5.1. Era Primitiva ..................................................................................73</p><p>5.2. Idade Antiga ...................................................................................77</p><p>5.3. Idade Média ...................................................................................91</p><p>5.4. Idade Moderna ...............................................................................95</p><p>5.5. Idade Contemporânea ..................................................................100 5.6. A crise existencial</p><p>do esporte no século 21 e os</p><p>desafios de um novo tempo.................................................................136</p><p>Parte II - Do DIreIto DesPortIvo</p><p>Capítulo 6 – Introdução ....................................................................145 6.1. Definições e</p><p>acepções do Direito Desportivo ..............................146</p><p>Capítulo 7 – O Direito Desportivo na dogmática jurídica ............155</p><p>7.1. Fontes e tipos de normas jurídicas desportivas ............................155</p><p>7.2. Posicionamento frente ao direito público e privado ....................159</p><p>7.3. Relação com os ramos clássicos do direito ..................................161</p><p>7.4. Institutos jurídicos próprios (lex specialis)..................................165</p><p>7.5. Hermenêutica e aplicação do Direito Desportivo ........................166</p><p>7.6. A questão da autonomia científica do Direito Desportivo ...........174</p><p>Capítulo 8 – Sistema normativo do desporto .................................179</p><p>8.1. Internormatividade público-privada e transnacionalidade ...........180</p><p>8.2. Unidade do direito nacional e internacional desportivo ..............186</p><p>8.3. Poder normativo desportivo privado ............................................193</p><p>8.4. Princípio da soberania nacional em matéria desportiva ...............197</p><p>8.5. Lógica jurídica do Direito Desportivo .........................................203</p><p>8.6. O papel das entidades nacionais de administração do desporto........ 213</p><p>Capítulo 9 – Entidades transnacionais de administração do desporto e seus sistemas</p><p>..............................................................217</p><p>9.1. Organizações não-governamentais de atuação</p><p>transnacional (ONGATS) ....................................................................217</p><p>9.2. Federações esportivas internacionais ...........................................220</p><p>9.3. Suporte jurídico das federações internacionais ............................223</p><p>9.4. Princípios fundamentais (estratégias de ação) .............................227</p><p>9.5. Comitê Olímpico Internacional (COI) .........................................235</p><p>9.6. Tribunal Arbitral do Esporte (TAS/CAS).....................................243 9.7. Agência Mundial</p><p>Anti-doping (AMA/WADA) ...........................252 9.8. Organizações empresariais desportivas</p><p>.......................................259 9.9. Medidas e normas anticorrupção no esporte</p><p>................................261</p><p>Capítulo 10 – Origens e bases da organização e</p><p>normatização do desporto no Brasil ................................................267</p><p>10.1. Prolegômenos .............................................................................267</p><p>10.2. Fundação das primeiras entidades diretivas do</p><p>desporto no Brasil ...............................................................................272</p><p>10.3. Intervenção estatal e disciplinamento da</p><p>organização do desporto brasileiro .....................................................288</p><p>10.4. Estado Novo Desportivo ............................................................296</p><p>10.5. Primeiros atos normativos sobre a condição do</p><p>atleta profissional ................................................................................309</p><p>10.6. Reforma das bases de organização desportiva nacional ............317</p><p>Capítulo 11 – Normas constitucionais sobre desporto ................... 333</p><p>11.1. Panorama do esporte brasileiro no início da década de 1980....... 334</p><p>11.2. Tratamento constitucional do desporto ......................................... 337</p><p>11.3. O Estado e o fomento ao desporto ................................................ 342</p><p>11.4. Conceituação das práticas desportivas em</p><p>formais e não-formais............................................................................. 344</p><p>11.5. Dimensões da autonomia das entidades desportivas</p><p>dirigentes e associações ..........................................................................</p><p>livres, nascidos de pai</p><p>e mãe gregos, os únicos a terem direito de possuir terras e gozar de plenos direitos políticos.</p><p>Também poderiam praticar ginástica, porém em outro ginásio, os metecos – estrangeiros que</p><p>obtiveram permissão para se fixar na Ática, protegidos pelas leis, pagavam impostos e prestavam</p><p>o serviço militar. Esses homens não podiam possuir terras nem participar do governo. Os únicos</p><p>a serem excluídos integralmente da prática de ginástica eram os escravos – capturados em</p><p>guerras, filhos de escravos ou de pais que os abandonaram quando crianças – e as mulheres</p><p>(RUBIO, 2009, p. 23).</p><p>5.2.2. Práticas pré-esportivas: Parte da doutrina classifica esse período histórico como</p><p>precursor daquilo que viria a se configurar como o desporto moderno e contemporâneo,</p><p>definindo-o assim como pré-desportivo, já que nesta época não se tinha a noção do desporto,</p><p>lembrando que essa palavra sequer fazia parte do vocabulário antigo, conforme estudado no item</p><p>1.2.</p><p>Percebe-se que, na Antiguidade, as práticas esportivas eram muito diferentes das atuais; por isto</p><p>as denominamos de Práticas Pré-esportivas, muitas de caráter utilitário para a própria</p><p>sobrevivência das pessoas (natação, corrida, caça etc.) e também para as preparações para as</p><p>guerras (marchas, caminhadas, esgrima, lutas etc.) (TUBINO, 2010, p. 21).</p><p>5.2.3. Jogos Olímpicos da Antiguidade: Como sabemos, foi na Antiguidade que surgiram os</p><p>Jogos Olímpicos, cujos primeiros registros considerados oficiais remetem ao ano de 776 a.C.</p><p>Porém, especula-se que sua instituição ocorreu em período anterior, sendo diversas as conclusões</p><p>dos historiadores sobre os fatores determinantes que lhe deram origem, como, por exemplo: para</p><p>aplacar uma peste, após consulta ao oráculo de Delfos; uma criação de Hércules (Héracles),</p><p>temido como sendo o homem mais forte da Antiguidade; em homenagem a Zeus. De todo modo,</p><p>é convergente o entendimento do seu caráter sagrado e inspiração religiosa de culto aos deuses.</p><p>Tinha organização pública (Jogos Públicos), sucedendo a prática de culto aos mortos por meio de</p><p>sacrifícios e combates diante de sepulturas (Jogos Fúnebres). A importância adquirida pelos</p><p>Jogos Olímpicos na Grécia levou-os a convencionar sua realização como instrumento</p><p>cronológico (base de calendário), de modo que o termo Olimpíada passou a delimitar o espaço</p><p>de tempo de quatro anos consecutivos havido entre a realização do evento, que iniciava no dia de</p><p>lua cheia após o solstício de verão (próximo de 24 de junho), quando o sol atingia o ponto mais</p><p>elevado de sua trajetória no hemisfério Norte. Sempre foi disputado em Olímpia (extremo sul da</p><p>Grécia continental), localizada no bosque de Altis, cidade de Elida, no Peloponeso; santuário de</p><p>divindades superiores, onde se encontrava um altar do deus supremo Zeus (nome Grego) ou</p><p>Júpiter (nome Romano). Os jogos eram celebrados em sua homenagem. Reporta Umminger</p><p>(1968, p. 25) que “Olímpia não era nem cidade, nem aldeia, tampouco lugar habitado, se</p><p>excetuarmos os alojamentos dos sacerdotes e funcionários incumbidos da guarda do templo. Era</p><p>unicamente local para a realização dos jogos festivos”. Assim, lá se estabeleceu, com o passar do</p><p>tempo, ao lado das instalações divinas, todo o aparato necessário à realização das competições,</p><p>que iniciou de uma simples corrida de 200 metros, entre um grupo eleito de jovens, em direção</p><p>ao altar de Zeus, conferindo direito de incendiar oferendas lá depositadas, progredindo com o</p><p>tempo para um espetáculo grandioso de devoção, praticado por atletas especialmente preparados</p><p>e diferentes provas, com fins de reparação, apaziguamento e proteção divina. Lembremos que os</p><p>fenômenos meteorológicos (chuvas, ventos, tempestades, trovões, raios), eram acontecimentos</p><p>temidos pelos habitantes daquela época, e, ao lado de outros eventos da natureza, atribuíam-se</p><p>aos deuses sua existência, cumprindo aos homens prestar-lhes homenagens e reverências</p><p>constantes para aquietar seus ânimos e garantir prosperidade e harmonia. Em princípio, era</p><p>-lhes oferecido a própria vida humana, por meio de rituais de sacrifício. A realização dos jogos</p><p>“atléticos” deu outro sentido às celebrações, ao substituir a imolação de vidas humanas pelo suor</p><p>e empenho dos atletas, demonstrando que os jogos assumem papel marcante na evolução da</p><p>espécie humana, conferindo valor especial e significado social ao que hoje designamos</p><p>“esporte”. Olímpia era considerada como solo sagrado e inviolável, por todos os povos</p><p>helênicos, sendo proibida a entrada de armas. Inclusive, proclamava-se dois (ou três) meses antes</p><p>do início dos Jogos Olímpicos, a “trégua sagrada”, por todo o “mundo grego”, suspendendo</p><p>guerras e combates, com imputação de castigos e outras penas aos infratores, além, é claro, da</p><p>“maldição divina”. Tudo isso conferia ainda mais importância e magnificência ao evento,</p><p>assegurando o deslocamento pacífico e maciço para sua celebração, que era acompanhado por</p><p>milhares de homens, entre atletas, negociantes, devotos, artistas ou simplesmente espectadores,</p><p>que vinham de todos os cantos. Os nobres e governantes eram alojados em instalações</p><p>apropriadas, já os comuns ficavam ao relento, em acampamentos a céu aberto e difíceis</p><p>condições de higiene, mas atendidos por comerciantes de alimentos e artesanatos, tudo para</p><p>assistir aos jogos e vivenciar outros acontecimentos paralelos, como: desfiles; apresentações de</p><p>acrobatas, saltimbancos, músicos (flautistas); discurso de oradores e poetas; exposições de</p><p>artistas; procissões. O sol escaldante daquela região e época do ano, somado a proibição de</p><p>cobrir a cabeça e a escassez de água, em razão do elevado público, não esmorecia o ânimo pelo</p><p>acompanhamento, e os Jogos Olímpicos da Antiguidade, assim como hoje, eram uma grande</p><p>celebração da humanidade, com substância unificadora (e naquela época, também purificadora</p><p>do espírito). Observa Teixeira e Mazzei (1967, p. 63), sobre os Jogos Olímpicos, que “o primeiro</p><p>dia era dedicado exclusivamente aos rituais religiosos em homenagem a Zeus. Os sacerdotes</p><p>faziam as suas profecias e os atletas, banhando as mãos no sangue de um porco imolado, juravam</p><p>lutar com lealdade para homenagear condignamente seus deuses”. Nas primeiras edições, durava</p><p>apenas um dia, evoluindo para uma programação mais extensa, que chegou a alcançar sete dias.</p><p>Realçando o contexto dos Jogos e seu ambiente unificador, aponta L. Godoy (1996, p. 34), que:</p><p>Isócrates foi um dos mais sábios pensadores políticos gregos. Discípulo de Sócrates, mais</p><p>escritor que orador, preparava brilhantes e eloquentes discursos, onde exaltava de maneira</p><p>sistemática a necessidade de unificação helênica. Certa vez nos Jogos Olímpicos elogiou os</p><p>idealizadores dos grandes festivais esportivos: “Juntamo-nos todos em um lugar onde evocamos</p><p>nossa origem comum e sentimo-nos mais próximos uns dos outros, revivendo nossas velhas</p><p>amizades e estabelecendo novos vínculos”.</p><p>5.2.4. Normas das Olimpíadas: Estabelecidas pelo chamado “Senado Olímpico”, sediado em</p><p>Elis, representavam a aplicação efetiva do Direito, no que depois viríamos a conhecer como</p><p>desporto. Assim como tudo no Direito Romano, pode-se perceber que muitas das suas normas,</p><p>fazem sentido no contexto atual da organização de competições esportivas. Nos livros,</p><p>encontramos traduções diversas, mas quase sempre como o mesmo escopo, regulando as</p><p>seguintes questões:</p><p>(I) Somente podem participar cidadãos livres (Gregos, em princípio), nem escravos, nem</p><p>estrangeiros (metecos) ou bárbaros. (II) Não ter sido punido pela justiça, nem ter moral duvidosa.</p><p>(III) Os atletas devem inscrever-se dentro do prazo legal, fazer um estágio no ginásio de Elida,</p><p>passar pelas provas classificatórias e prestar juramento. (IV) Quem chegar atrasado será</p><p>desclassificado da competição. (V) As mulheres casadas não poderão comparecer aos Jogos ou</p><p>subirem no Altis (campos de corrida), sob pena de serem atiradas do alto do rochedo Typeu. (VI)</p><p>Durante os exercícios e competições os treinadores deverão permanecer em espaço próprio a eles</p><p>destinado, próximo ao local da prova. (VII) É</p><p>proibido matar o adversário, voluntariamente ou</p><p>não, sob pena de ficar perdida a coroa do triunfo, e de pagar uma multa. (VIII) É proibido usar</p><p>manobras desleais para vencer. (IX) É proibido amedrontar o adversário. (X) Não se permite</p><p>perseguir o adversário fora dos limites determinados ou empurrá-lo. (XI) Aquele que corromper</p><p>árbitro ou outro participante (oferecer dinheiro ou qualquer outra vantagem para deixar se bater)</p><p>será punido com chicote. (XII) Todo concorrente contra quem não se apresentar o adversário,</p><p>será considerado vencedor. (XIII) É proibida qualquer manifestação pública contra a decisão dos</p><p>juízes. (XIV) Os descontentes poderão apelar, por sua conta e risco, da decisão dos juízes</p><p>(Helanócedes) para o Senado Olímpico. Estes, ou serão punidos, ou sua decisão será anulada se</p><p>ela for considerada errada.</p><p>A sacerdotisa Deméter (Ceres), foi a única mulher casada admitida na cerimônia dos Jogos.</p><p>[...] por serem consideradas criaturas inferiores, as mulheres eram proibidas de assistir ao</p><p>espetáculo realizado quadrienalmente no vale sagrado. Esse privilégio era privativo de homens e</p><p>deuses. Há quem assegure que o impedimento atingia somente mulheres casadas. As virgens</p><p>podiam comparecer para aprender a admirar o sexo oposto e adquirir gosto pelo casamento. [...]</p><p>Toda mulher casada encontrada no local dos Jogos seria atirada ao mar, do alto do rochedo</p><p>Typeu, sem qualquer julgamento. A proibição foi violada apenas uma vez (GODOY, 1996, p.</p><p>69).</p><p>5.2.5. Outras celebrações atléticas na Grécia e Roma: Cabe registrar, por oportuno, a</p><p>existência dos chamados Jogos Heranos, em honra de Hera (esposa de Zeus), do qual</p><p>participavam apenas jovens mulheres da cidade de Elis, constituído de apenas uma prova</p><p>(corrida), em princípio, a qual disputavam com o ombro e o seio direito exposto, para provar que</p><p>eram mulheres. Nesta época, registra-se também a realização de outras celebrações atléticas,</p><p>como: Jogos Píticos (Pythicos), celebrados em Delfos, em honra a Apolo (deus da luz e das</p><p>artes); Jogos Ístmicos (Insthmicos), ocorridos no istmo de Corinto, formado de provas aquáticas,</p><p>em culto a Poseidon (Netuno, senhor dos mares); Jogos Nemeus, celebrados entre Cleonte e</p><p>Flionte, em homenagem inicialmente a Archemor filho de Licurgo, que morreu vítima de uma</p><p>serpente quando bebia água na fonte e depois a Héracles (Hércules), por ter abatido um leão nas</p><p>cercanias de Neméia, substituindo a finalidade fúnebre por jogos comemorativos de uma vitória.</p><p>Panatenéias, acontecida em Atenas, composta de jogos atléticos, regatas, concursos de canto,</p><p>poesia e música, que se realizavam em quatro dias, sendo o último dedicado às grandiosas</p><p>procissões que percorriam o Partenon, um dos mais conhecidos templos gregos da Antiguidade,</p><p>sendo que até hoje se preservam suas ruínas. Também os romanos nutriam gosto pela realização</p><p>de jogos, dentre os quais: “Ludi Romani”, em honra a Júpiter; originariamente com a duração de</p><p>um dia, chegaram depois a durar uma semana; “Ludi Plebei”, organizados pelos edis com a</p><p>duração de 14 dias; “Ludi Cereales” em homenagem a Ceres; “Ludi Apollinares”, em honra a</p><p>Apolo; “Ludi Megalenses”, em homenagem à Magna Mater; “Ludi Florales”, em honra a Flora.</p><p>5.2.6. “Mens sana in corpore sano”: “Uma mente sã em um corpo são”. A frase do poeta</p><p>satírico romano Juvenal, em que pese ser interpretada, à época, como um manifesto de</p><p>indignação aos excessos do Império Romano, em sua tresloucada saga de prazeres, sempre foi</p><p>utilizada, pelas gerações que se seguiram, para dimensionar a preocupação que se deve ter com o</p><p>corpo, recomendando um estilo de vida saudável. Inspirou até o nome de uma conhecida marca</p><p>japonesa de materiais esportivos: Asics (sigla para “Anima Sana in Corpore Sano”). A propósito,</p><p>“Niké” era uma deusa grega que representava a vitória.</p><p>5.2.7. O profissionalismo nos Jogos Olímpicos da Antiguidade: Em sua época sagrada, o</p><p>estímulo que impulsionava o atleta, era ter a honra de aproximar-se dos deuses olímpicos.</p><p>Alcançado o triunfo maior recebia a designação de “Olimpionike” (vitorioso em Olímpia),</p><p>assemelhando-se a um semideus, sendo imortalizado em estátua erigida no bosque de Altis.</p><p>Chegando a sua terra natal tinha direito de entrada triunfal, por entre passagem especialmente</p><p>preparada, sendo recebido com festa (chuva de flores e toque de trombetas), merecendo citações</p><p>em hinos e versos líricos. Seu nome era respeitado e falado por todo o território grego, por vezes</p><p>gravado em locais públicos, e suas façanhas professadas de boca em boca. Nas primeiras edições</p><p>dos Jogos Olímpicos da Antiguidade, como prêmio, recebia o campeão tão somente um “pedaço</p><p>de animal sacrificado a Zeus”, depois sendo agraciado também com uma “coroa de oliveira”</p><p>(árvore símbolo da Grécia). Mas o profissionalismo olímpico, com o passar dos tempos, mostrou</p><p>sua força e transformou os ideais desportivos. Houve até a criação de uma organização de atletas</p><p>profissionais, no século II da era cristã (domínio romano), denominada “Sindicato de Hércules”,</p><p>restrita a atletas profissionais campeões dos Jogos Olímpicos, que por meio desta instituição</p><p>viabilizava a exibição em cidades diversas em troca de remuneração. Os Jogos Olímpicos,</p><p>iniciado de uma simples corrida seguiu-se com provas atléticas (saltos, arremessos), e com o</p><p>passar dos séculos, agregou provas de resistência, lutas, como “pugilato” e pancrácio (mistura de</p><p>luta e pugilato), provas hípicas (corrida de bigas e quadrigas) e o pentatlo, dentre outras. Os</p><p>atletas, por sua vez, começaram a ser treinados de forma cada vez mais intensa na preparação</p><p>para as competições, a exemplo do que acontece na atualidade, inclusive com dieta alimentar</p><p>específica e moderação de sua vida social (e até íntima), cobrando-se assiduidade, disciplina e</p><p>dedicação aos programas de atividade (concentração aos treinamentos). Sessenta dias antes da</p><p>realização dos Jogos, eram recebidos em Elis, para um período de integração e “aclimatação” ao</p><p>ambiente, condições e equipamentos esportivos. O início do profissionalismo no esporte antigo</p><p>pode ter sido obra de Sólon, conforme relato de Godoy (1996, p. 99), quando observa:</p><p>Nos Jogos da quadragésima sétima olimpíada, Sólon, o grande legislador de Atenas, decretou a</p><p>doação de 500 dracmas aos vencedores. Era uma recompensa valiosa, considerando que, na</p><p>época, os atenienses recebiam apenas 1 dracma por dia de trabalho. Além desse prêmio</p><p>financeiro, eram isentos do pagamento de impostos e passavam a ter lugares especiais reservados</p><p>nos teatros e cerimônias públicas. Em outras cidades recebiam uma casa, terras e títulos de</p><p>nobreza. [...] Além disso, os “olimpiônicos” percorriam os ginásios e palestras de suas cidades</p><p>transmitindo conselhos, ministrando ensinamentos técnicos, encorajando a prática das atividades</p><p>esportivas e incentivando o esforço pessoal como condição básica para a projeção do indivíduo</p><p>na sociedade. [...] Nos Jogos Olímpicos da Grécia Antiga o homem chegava como atleta e</p><p>voltava para sua cidade como um semideus. Píndaro escreveu “Quem vencer em Olímpia gozará,</p><p>pelo resto da vida, de uma calmaria doce como mel”.</p><p>Algumas cidades gregas, diante da inveja e rivalidade que nutriam, recrutavam atletas de forma</p><p>sorrateira, pagando alto pela vitória, sedimentando ocultamente a prática do profissionalismo.</p><p>Netto (1937) lembra que os atletas daquela época, inicialmente “amadores” em busca de ganhar</p><p>uma “coroa de oliveira”, também se transformaram quando outras recompensas materiais foram</p><p>postas em jogo, desenvolvendo o espírito de lucro ao lado da vaidade. Diz ele, seguindo Píndaro,</p><p>que “da simples glória de vencer o campeão olímpico passou, sem demorar muito, a ter em suas</p><p>mãos um dos melhores ‘negócios’ da sua época” (p. 173).</p><p>5.2.8. Pancrácio e os atletas gladiadores profissionais: Outro foco de profissionalismo foi</p><p>identificado pelos historiadores quando observaram o grande interesse das pessoas, naquela</p><p>época, em assistir aos jogos de lutas e pugilato, mas que descambaram para o chamado</p><p>“pancration” (mistura de lutas, pugilato e outros elementos)</p><p>e jogos de gladiadores (“Ludus</p><p>Gradiatores”), desnorteando para violentos combates entre homens ou mesmo contra animais</p><p>ferozes, inclusive com uso de facas, espadas, lanças, bolas de metal, redes e tridentes. Tratavam-</p><p>se, pois, de espetáculos bizarros e insanos, com frequente desfecho fatal ou mutilações,</p><p>explorando-se ao máximo os atletas-lutadores e resultando em grandes lucros aos “empresários</p><p>do ramo”. Tais atletas eram, na verdade, escravos, firmemente preparados para esse tipo de jogo-</p><p>combate, tratados como homens-feras, que lutavam por dinheiro e também na esperança de obter</p><p>a liberdade depois de três anos em atividade (era o “passe livre” da época). Para Godoy (1996, p.</p><p>88), “foi no pugilato que surgiu a semente do profissionalismo e onde, pela primeira vez, os</p><p>nobres ideais olímpicos foram desonrados”. Com o profissionalismo atlético desenfreado abriu-</p><p>se espaço também para a corrupção no esporte, “as honras desmedidas dadas a eles, a paixão da</p><p>multidão e outros males, foram quebrando, pouco a pouco, a moralidade das competições e</p><p>aumentando a vaidade, a ambição e o suborno de atletas e juízes” (RAMOS, 1982, p. 124).</p><p>Os olimpiônicos já não eram mais o protótipo do atleta equilibrado e perfeito. Submetiam-se a</p><p>um árduo treinamento, exageravam na alimentação para aumentar a capacidade gástrica e</p><p>transformaram-se em montanhas de músculos. As classes cultas iniciaram campanha maciça</p><p>contra os esportes. No século V a.C. Hipócrates já dizia que o atleta supertreinado era uma figura</p><p>absurda e antinatural, pois acima de tudo desprezava a busca da saúde (GODOY, 1996, p. 101).</p><p>5.2.9. O desporto entre a cruz e a espada (Imperialismo Romano x Cristianismo): Teixeira e</p><p>Mazzei (1967, p. 60) dividem a idade clássica em dois “grandes e memoráveis períodos”:</p><p>O primeiro, memorável pelo seu esplendor, é o período áureo dos gregos, que concebiam a</p><p>Educação Física, em suas múltiplas formas, sob um aspecto educativo, com finalidades morais e</p><p>religiosas. É o período antigo da Idade Clássica. O segundo, inversamente, memorável pelos seus</p><p>exageros, pelos seus cultos pagãos, pelas suas concepções imorais, indecorosas e, portanto,</p><p>deseducativas; memorável ainda porque mudou todo o curso da História da Humanidade; com</p><p>efeito, [...] duas filosofias, uma nascente, bela e verdadeira, o Cristianismo, e outra dominante, o</p><p>Imperialismo Romano, brutal e indecoroso, iriam se digladiar em campos antagônicos, para</p><p>disputar a supremacia. De um lado a verdade e a cruz; do outro a mentira e a espada.</p><p>Os jogos sempre foram objeto marcante de disputa ideológica, haja vista que adotados pelos</p><p>gregos em celebração às suas divindades (culto pagão na acepção Cristã vindoura), transformado</p><p>após a dominação romana em “Jogos Circenses”, sendo palco inclusive do massacre de cristãos,</p><p>e também por isso suprimido com a ascensão do Cristianismo ao final da Antiguidade.</p><p>5.2.10. Pão e jogos circenses ( Panis et circenses): O mesmo poeta Juvenal, que brindará a</p><p>humanidade com a sabedoria da frase “Mente sã em corpo são”, parece que enxergou as</p><p>vicissitudes que podiam contaminar os jogos lúdicos, ao filosofar que “As pessoas comuns – em</p><p>vez de cuidar da sua liberdade – estão apenas interessadas em ‘pão e circo’”. Pois a política do</p><p>pão e circo (“Panis et circenses”), marcou a decadência do Império Romano, e retratou um dos</p><p>meios de controle social para tentar “distrair o povo”, através da euforia criada nesses</p><p>espetáculos sangrentos de combates entre gladiadores (“ludus gladiatores”), e até de assassinato</p><p>de cristãos, postos para serem devorados por animais famintos, queimados vivos ou torturados</p><p>até a morte (no período mais incisivo de perseguição aos cristãos pelos governantes de Roma).</p><p>Ao público presente eram distribuídas “guloseimas, vinho e surpresas”. “O profissionalismo,</p><p>principalmente as práticas sangrentas e amorais, fez o desporto, cada vez mais, perder sua</p><p>nobreza e suas essências mais puras” (RAMOS, 1982, p. 161). É certo que a população aceitou</p><p>viver esta histeria nonsense e cada vez mais lotavam as arenas e embriagavam-se pelo ambiente</p><p>surreal, banhado em sangue e violência brutal. “Com o lema “pão e circo para o povo” os</p><p>imperadores pagãos governavam livremente, numa orgia louca, mórbida e sádica” (TEIXEIRA e</p><p>MAZZEI, 1967, p. 69).</p><p>5.2.11. Decadência e extinção dos Jogos Olímpicos: Ao longo dos doze séculos em que foi</p><p>realizado, os Jogos Olímpicos passaram por muitas transformações. Porém, com a escalada de</p><p>domínio romano sobre a Grécia antiga, o evento caminhou definitivamente rumo à decadência.</p><p>“Os exercícios e as atividades suaves e belas eram condenados em Roma” (TEIXEIRA;</p><p>MAZZEI, 1967, p. 70). Depois de dominarem a Grécia em 146 a.C., os romanos passaram a</p><p>disputar os Jogos Olímpicos, antes restritos aos cidadãos gregos, mudando ainda mais sua feição,</p><p>subestimando sua inspiração sagrada e conferindo-lhe caráter de espetáculo de entretenimento e</p><p>diversão profana, inclusive com a participação de escravos submetidos a espetáculos de</p><p>carnificina. Não obstante, promoveram melhorias e dotaram de opulência as instalações</p><p>desportivas de Olímpia. No entanto, relegaram a um segundo plano os dotes atléticos exigidos</p><p>dos competidores, especialmente permitindo a disputa de provas por “nobres do Império”, ainda</p><p>que sem técnica, força ou habilidade, mas amparados na busca da vitória pela intimidação dos</p><p>oponentes. Chegaram a disputar provas sem adversários, como foi o caso do imperador Nero na</p><p>corrida de quadrigas, apenas para obter e ostentar o título de campeão olímpico (“Olimpiônico”),</p><p>ultrajando toda a tradição atlética e aspiração religiosa construída pela civilização grega. “Os</p><p>Jogos Olímpicos se tornaram um festival para o público, sem nenhum caráter religioso ou</p><p>ideológico” (FREIRE; RIBEIRO, 2006, p. 25). Nesse passo da história, a bancarrota romana e a</p><p>determinação dos cristãos garantiram, a partir do ano de 313, a liberdade de culto e o</p><p>reconhecimento oficial do cristianismo, através do “Édito de Milão” (Édito da Tolerância),</p><p>findando a perseguição aos discípulos de Jesus e restaurando-lhes o direito de propriedade.</p><p>Iniciava-se um período de ascendência definitiva da religião cristã como culto universal. Mais</p><p>adiante, em 393 d.C., Teodósio I (“O Grande”), último Imperador da Roma unificada, depois de</p><p>mandar exterminar, três anos antes, milhares de gregos que almejavam a libertação, e em seguida</p><p>enfrentar severa doença, desesperou-se e converteu-se ao cristianismo, por recomendação de San</p><p>Ambrósio, bispo de Milão. Restabelecida sua saúde, quedou em atender ao pedido do clérigo,</p><p>para que decretasse o fim das festas pagãs, como no caso dos Jogos Olímpicos, depois de</p><p>celebrado por 12 séculos (293 edições), marcando a história da humanidade. Já em 426 d.C., o</p><p>imperador Teodósio II mandou destruir e incendiar as instalações olímpicas, que ficaram</p><p>abandonadas definitivamente. Depois disso, em 522 e 551 dois terremotos arrasaram o que</p><p>restava das instalações religiosas e desportivas de Olímpia, e as enchentes dos rios Alfeu e</p><p>Cladeu afundaram os últimos vestígios do palco dos Jogos Olímpicos da Era Antiga</p><p>(redescobertas em 1776).</p><p>5.2.12. Legado atlético-ginástico: Instalações apropriadas para prática de exercícios físicos e</p><p>ginásticos foram objeto de especial atenção dos gregos. Segundo Jayr J. Ramos (1982, p. 95):</p><p>“Os ginásios e as palestras constituíam os edifícios mais importantes de qualquer comunidade</p><p>grega”. Assinala A. R. Netto (1937) que entre as construções esportivas destacavam-se o</p><p>Estádio, para as corridas a pé, e o Hipódromo (Hippodromo), destinado às carreiras de cavalos e</p><p>de carros (bigas). Existia também o Ginásio (Gymnasio), local de exercícios preparatórios e, ao</p><p>mesmo tempo, de estudos. Lyceu e Academia eram nomes de dois ginásios de Atenas. Palestra</p><p>era o recinto onde se desenvolviam as provas de luta, pugilato e pancrácio, e também discursos</p><p>filosóficos (luta de palavras). Verdadeiras arenas multiuso. Até hoje utilizamos essas</p><p>nomenclaturas para instalações esportivas, de cultura física e educacional.</p><p>Ainda segundo</p><p>Mazzei e Teixeira (1967, p. 62)</p><p>Estádio ou (State grego) era uma medida correspondente mais ou menos aos duzentos metros</p><p>atuais. Com o decorrer do tempo foram instituídas as provas de longo percurso, que consistiam</p><p>em correr, no Estádio, quatro, oito, doze e até vinte e quatro vezes. Conta-se que, ao ser</p><p>instituída essa prova morreu, quando fazia o longo percurso, um célebre corredor grego, de nome</p><p>Ladas.</p><p>Não é apenas no aspecto da infraestrutura e da organização de competições que temos o legado</p><p>da civilização grega na moderna concepção da prática desportiva. Ante a regular celebração dos</p><p>Jogos Olímpicos e toda a sua importância já destacada, muitos filósofos daquela época</p><p>dedicaram-se à formulação de métodos de treinamento dos atletas. No século II a.C., Filostrato</p><p>desenvolveu estudos sobre “Ginástica”, propondo sistemas de treinamento físico, variantes de</p><p>intensidade e utilização do sistemas de treinamento físico, variantes de intensidade e utilização</p><p>377 a.C.), considerado “pai da medicina”, prescrevia a prática de corridas moderadas para</p><p>manutenção da saúde, sem deixar de ser crítico com os excessos no mesmo sentido. Aristóteles</p><p>(384-322 a.C.), além da filosofia, fazia análises sobre o movimento dos animais. Outros</p><p>propunham uma dieta alimentar especial para os atletas. Os “ginasiarcas” cuidavam da</p><p>administração e disciplina nos ginásios. Os “paidotribais” eram os instrutores dos atletas,</p><p>assemelhando-se aos profissionais de educação física da atualidade. Outras atribuições poderiam</p><p>ser elencadas, mas queremos apenas destacar a significância do contributo grego, ao deixar um</p><p>legado cultural muito forte na valorização das práticas atlético-ginásticas. Outra lição extraída</p><p>desta época mostra que as atividades atlético-ginásticas, e sua conversão em competição, pode</p><p>servir a fins não tão elevados quanto dele se espera, em termos éticos e morais. Comprovando,</p><p>trata-se de uma atividade que exerce muitas influências sobre as pessoas – positivas e negativas</p><p>–, inebriadas que ficam pela excitação proporcionada pelos jogos competitivos, devendo haver</p><p>especial cuidado quando seu objetivo se liga a combates físicos diretos (lutas). A ética e a moral,</p><p>como na vida cotidiana, nunca podem se afastar do desporto. O desrespeito às regras ou aos</p><p>princípios do desporto, sem muita dificuldade, pode levar a atos de selvageria, sendo que relatos</p><p>neste sentido não faltam, revelando que muitas pessoas não estão preparadas, ou não foram</p><p>educadas, para reagir às emoções provocadas pelas competições desportivas, sendo de todo certo</p><p>que esse é um processo permanente, e que deve ser especialmente compreendido pelos principais</p><p>intervenientes do meio esportivo, isto é, os atletas, técnicos, dirigentes e outros profissionais do</p><p>ramo. Mesmo os líderes de torcidas organizadas. Enfim, para que todos compartilhem a</p><p>responsabilidade de agir concretamente na preservação do esporte, enquanto atividade que em</p><p>suas vidas, assume papel principal.</p><p>5.2.13. Jogos com bola (Palla): Chamamos a atenção para o fato de jogos coletivos com bola</p><p>não integrarem a grade de competições das Olimpíadas na Antiguidade e mesmo de outros</p><p>eventos do gênero. Na verdade, os jogos com bola nunca foram considerados sagrados,</p><p>possuindo um caráter eminentemente recreativo. Tampouco estavam associados a treinamento de</p><p>guerreiros, como era a cavalaria e o tiro com arco, por exemplo. Há registros de jogos com bola</p><p>por toda a história da humanidade, como o “Harpastum” (Século I a.C.), praticado pelos</p><p>romanos. Na Grécia, em 600 a.C., tínhamos o “Epyskiros”, e no Japão, 2500 anos antes de</p><p>Cristo, relata-se jogo assemelhado, denominado “Kemari”, assim como o “Gioco di cálcio” em</p><p>Florença. Tínhamos também o boliche, exercido pelos egípcios e celtas há 150 a.C.; depois o La</p><p>Paume, que deu origem ao tênis na Idade Média, quando surge também o jogo de bilhar, dentre</p><p>tantos outros.</p><p>5.3. Idade Média</p><p>Este período iniciado no século V e que segue até o século XV é marcado pela ascensão do</p><p>Cristianismo na Europa como religião dominante (império teocrático medieval) e imposição da</p><p>sua doutrina ascética (austera e voltada para a vida espiritual, contemplativa), de modo que os</p><p>jogos foram praticamente banidos de muitas comunidades do mundo ocidental, avessos que eram</p><p>os clérigos à cultura física em detrimento das coisas espirituais. Além disso, os jogos carregavam</p><p>o estigma do culto ao paganismo (deuses mitológicos), bem como havia o trauma da realização</p><p>de competições pelos romanos nas quais os seguidores do cristianismo eram vítimas indefesas de</p><p>atrocidades, conforme já exposto.</p><p>5.3.1. Palaestrica diaboli negotium: Tudo isso relegou a prática de atividades físicas e ginásticas</p><p>a um plano inferior, ficando famosa a seguinte expressão do escritor romano e apologista cristão</p><p>Tertulliano (160-220 d.C.): “Palaestrica diaboli negotium”, a qual, segundo registra Franzoni</p><p>(1933, p. 105), servia como um lema, uma palavra de ordem que obedecia a vida da época. Um</p><p>determinado jogo com bola, conduzida por grupos opositores na Idade Média, causava furor, que</p><p>segundo Schermann (1958, p. 16), “era na realidade uma batalha em que valiam a luta e a</p><p>agressão para a conquista da vitória”. Segue ele:</p><p>[...] disputas violentas geravam conflitos entre as populações locais e vizinhas, resultando a</p><p>proibição feita pelo rei Eduardo II, em 1314, da prática de jogos. Eduardo III, 35 anos mais tarde,</p><p>ordenou maior fiscalização da proibição que vinha sendo burlada. A popularidade do jogo</p><p>aumentava apesar de tudo isso e em 1389, Carlos II decretou seu banimento da Inglaterra,</p><p>considerando-o crime, e criminoso aquele que fosse surpreendido jogando. A primeira vítima foi</p><p>Denis Woogan, organizador de partidas, condenado a 6 anos de prisão. [...] No século XVII</p><p>melhoraram o exercício e as regras, encaminhando-se mais as disputas para o caráter desportivo.</p><p>[...] A violência, contudo, ainda perdurava, e novamente voltaram as proibições reais e, em</p><p>consequência, a clandestinidade. Em 1300 o Conselho dos Anciãos, de Pisa, proibia, sob ameaça</p><p>de multa, o jogo de bola no Duomo e no Camposanto, e no ano de 1310, foi proibido aos clérigos</p><p>o “ludos globarum”. [...] Em 1397 o prefeito de Paris proíbe o jogo durante a semana</p><p>(SCHERMANN, 1958, p. 17).</p><p>5.3.2. O “Livro dos Jogos” do século XIII: Apesar das restrições de ordem religiosa à prática</p><p>de jogos, efetivamente, não deixou de acontecer nesta época, sendo apenas mitigada sua</p><p>importância. Isso se pode concluir através do chamado “Libro de los Juegos” ou “Libro de</p><p>acedrex, dados e tablas”, composto em 1283, em Sevilha, por ordem do rei Afonso X (El</p><p>Sábio), que reinou em Leão e Castela no período de 1252 a 1284, no qual estão listados jogos</p><p>praticados neste período. Atribui-se a ele a frase: “Deus quis que os homens se divertissem com</p><p>muitos e muitos jogos, pois eles trazem conforto e dissipam preocupações”.</p><p>5.3.3. Os torneios medievais: Os torneios, segundo Jestice (2012, p. 53) “se tornaram populares</p><p>primeiro na década de 1090, já estando estabelecidos em grande parte da Europa</p><p>aproximadamente em 1130”. Não eram compreendidos como jogo ou esporte, mas serviam para</p><p>exercitar a nobreza na arte da cavalaria, inclusive para fins de treinamento e manutenção das</p><p>condições de guerreiro (próprias dos “senhores feudais”, impetuosos e dominadores), sempre</p><p>ávidos em lutar e provar seu destemor, força física e valor, invocando respeito e submissão,</p><p>além, é claro, de servir-lhe para aquinhoar novas terras, bens e súditos. Destaca Del Pozo (1967,</p><p>p. 25) que a realização de torneios ocorria nos períodos de ócio, isto é, quando os contendores</p><p>não estavam em guerra, de tal maneira que os cavaleiros se entregavam a caça de animais</p><p>enquanto os “senhores” iam aos torneios. De acordo com Ramos (1982, p. 23), muito sangrento</p><p>em seu início, foi “codificado” pelo francês Geoffroy de Preuilly, que escreveu as regras</p><p>universalmente adotadas a partir do século XIII. Destaca Floc’hmoan (1965) que o papa</p><p>Inocêncio chegou a classificar os torneios como “festas satânicas”,</p><p>diante da brutalidade que por</p><p>vezes lhe assaltava, mas como fazia parte da cultura feudalista, só vieram a retroceder e extinguir</p><p>na Idade Moderna. De outro lado, como já afirmado, em que pese não ser, à época, classificado</p><p>com um esporte, a expressão “torneio” acabou absorvida dentro deste meio para identificar um</p><p>sistema de disputa que previa a eliminação de um competidor quando vencido pelo adversário</p><p>dentro de uma competição maior, podendo essa eliminação decorrer de apenas uma (eliminatória</p><p>simples) ou duas derrotas (dupla eliminatória). Sistema também conhecido pelo sugestivo nome</p><p>“mata-mata”. De se notar também, à semelhança dos torneios, que o uso de brasões e outros</p><p>distintivos tornaram-se uma tradição do universo esportivo, sendo que todas as entidades</p><p>constituídas para atuação neste ambiente – clubes, ligas, federações, confederações – possuem</p><p>como identificação um brasão, escudo, insígnia, símbolo, emblema ou coisa que o valha, bem</p><p>como cores oficiais e uniformes próprios, sendo objeto comum de licenciamento para exploração</p><p>comercial na atualidade. A inglesa The Football Association (FA), por exemplo, como primeira</p><p>entidade da categoria a reunir praticantes do futebol, fundada em 1863, com sede em Londres,</p><p>tem em seu escudo as armas da Inglaterra, representadas por leões, e as cores da bandeira</p><p>britânica (azul, vermelho e branco).</p><p>5.3.4. As justas (duelos), a equitação e a esgrima: Ressalta Corvisier (1983) que, também nesta</p><p>época, “o duelo, forma nobiliária do combate singular, tem equivalentes em todos os escalões da</p><p>sociedade”, assim como se destacam as escolas de equitação e esgrima.</p><p>As Justas diferenciavam-se dos Torneios por serem mais uma competição individual entre 2</p><p>cavaleiros com a finalidade de derrubaram-se dos cavalos. Essa competição, também, sofreu</p><p>inúmeras proibições devido a ser jogo cruel e, às vezes, mortal. Com o tempo, porém, melhorou</p><p>a sua prática, inclusive com a modificação de determinar o vencedor àquele que quebrasse a</p><p>lança do outro contra a armadura ou o escudo. A equitação teve a seu apogeu no Idade Média,</p><p>quando em diversos países surgiram as chamadas Escolas, que deram um impulso extraordinário</p><p>à arte de montar. Desenvolve-se paralelamente a esgrima, com seus maiores centros na Espanha</p><p>e Itália, estendendo-se depois à França e aos demais países. Foi a época dos famosos duelos, do</p><p>romantismo. (SCHERMANN, 1958, p. 18)</p><p>5.3.5. La paz y trégua de Dios: Observa Del Pozo (1967, p. 23) que em meados do século XI,</p><p>por ocasião do Concílio de Tuluges (França), foi proposta a trégua denominada “La paz y tregua</p><p>de Dios”, que consistia em proibir que se pudesse guerrear em certos dias da semana (da noite de</p><p>quarta até o amanhecer de segunda-feira) e em determinados períodos de festas importantes,</p><p>senão contra os muçulmanos, propagando-se depois para a Espanha. Para fazer respeitar a trégua</p><p>ameaçavam os nobres (que eram os principais causadores de conflitos civis), com multas e penas</p><p>impostas pela igreja, então temida e respeitada pela grande fé das pessoas. Na ocasião também se</p><p>formaram os Tribunais de Paz. Convém lembrar, porém, que a Idade Média não foi de todo um</p><p>período obscuro e crítico da história da humanidade, sobretudo na Europa Ocidental, senão nos</p><p>séculos IX e X, por conta das invasões de normandos, eslavos, húngaros e muçulmanos.</p><p>Contudo, a partir do século XI ressurgiriam lentamente os grandes agrupamentos que, aos</p><p>poucos, foram estendendo sua influência e alcance, sublinhando o século XIII como um período</p><p>máximo da cultura medieval, com o florescimento da arte gótica, o surgimento das primeiras</p><p>universidades e a construção de catedrais esplendorosas por toda a Europa.</p><p>A idade Média, repleta de ascetismo, não foi um período de completa ignorância, noite de trevas</p><p>na cultura do antigo mundo europeu. Os povos, acorrentados ao regime feudal, sofreram o</p><p>impacto do Cristianismo, porém, nos mosteiros e universidades, frades e estudantes, ávidos de</p><p>saber, comentavam as teorias de Aristóteles, continuavam enriquecendo o patrimônio dos</p><p>conhecimentos e criaram a escolástica (RAMOS, 1982, p. 22).</p><p>5.3.6. “Caballero Cortés” e o espírito esportivo: Se no primeiro período da Idade Média a</p><p>forma de tratamento social era por demais rude e opressiva, inclusive em razão das mulheres –</p><p>tomadas à força em guerras –, a partir do século XII, em um novo estágio sublinhado pela igreja</p><p>e pela nobreza, se introduziu como uma onda de transformação dos costumes. Para Del Pozo,</p><p>essa nova situação marcou o início do “Caballero Cortés”, acompanhando o surgimento da</p><p>palavra e do conceito “deporte” (esporte, desporto), ou, pelo menos, a situá-lo histórica e</p><p>geograficamente (lembremos que a tônica do Fair-Play é exatamente o cavalheirismo, acima de</p><p>tudo). Com efeito, este novo respeito, estimulou a cortesia em outros níveis da relação social.</p><p>Tratando do assunto, Carl Diem conta que a relação entre cavalheirismo e cavalo, não é casual,</p><p>pois se trata de um animal nobre e sensível, que só é governado por quem ama, e que só obedece</p><p>àquele que com sua sensibilidade saiba conquistar sua confiança. E conclui que: “Algo parecido</p><p>a la comprensión del alma del caballo ló constituye el ‘fair play’” (DIEM, 1966, p. 93),</p><p>concebendo a impetuosidade do atleta dominada pela grandeza de espírito, sabendo moderar os</p><p>limites da força empregados dentro de uma competição esportiva, que não comprometam a</p><p>integridade do seu adversário, permitindo assim, desenvolver relações sociais cada vez mais</p><p>intensas e frequentes.</p><p>5.4. Idade Moderna</p><p>O período compreendido entre os anos de 1453 até 1789 é de grande significado na reconstrução</p><p>da história do esporte, pois marcou a transição da sociedade feudal em mercantilista, pré-</p><p>industrial e capitalista. Essa revolução social determinou o progresso das cidades, iniciando na</p><p>Europa, e que causou uma reaproximação das pessoas, induzindo um renascimento literário e</p><p>artístico, ao lado do progresso científico e da reforma religiosa, levando a uma nova forma de</p><p>agir e pensar. Neste período, destacam-se, a França como monarquia absoluta e a Inglaterra</p><p>como monarquia constitucional, países que, enriquecidos pela ascensão comercial e novos</p><p>métodos de produção veem nascer uma nova classe social, identificada como burguesia, que</p><p>almeja um estilo de vida tão sofisticado quanto à nobreza, sendo o envolvimento com esportes</p><p>uma dessas conquistas.</p><p>5.4.1. A Declaração dos Esportes do s éculo XVII (The Book of Sports): No plano</p><p>comunitário, tamanha era a insurgência dos puritanos ingleses contra a prática de esportes que os</p><p>súditos de pequena nobreza da Coroa Inglesa, partindo de Lancashire, buscaram proteção junto</p><p>ao Rei James I, para garantir-lhes esse direito aos domingos depois das orações da noite e do</p><p>sermão da tarde de dias santos. Assim, em 1617 expediu-se a ordem do rei denominada</p><p>“Declaração de Esportes” (Livro do Esporte), no qual eram listados os esportes e recreações</p><p>permitidos nessas ocasiões aos súditos, considerando que “trabalham duro durante toda a</p><p>semana”, desde que praticados sem negligência quanto aos deveres religiosos. Chama a atenção</p><p>a proibição do jogo de boliche, visto que a Coroa Inglesa temia que sua popularidade ofuscasse a</p><p>prática do tiro com arco, que tinha maior importância militar ao reino. Curiosamente o boliche</p><p>era o esporte preferido do clérigo, com conotação religiosa (derrubar os pinos era livrar-se de</p><p>pecados). Para as mulheres era admitida uma tradição (velho costume) da “corrida à igreja para</p><p>decoração da mesma”. Em 1618 foi determinada a leitura, no púlpito, da referida declaração,</p><p>enfrentando resistência do clero.</p><p>Mas a Revolução Puritana, movimento religioso contrário à realização de qualquer atividade aos</p><p>domingos, jogaria contra essa medida e derrubaria o ato real por terra. O esporte teria que esperar</p><p>até 1660, quando a Inglaterra já era novamente uma monarquia, e os festivais, eventos de lazer</p><p>que incluíam jogos, voltariam a ser permitidos (FREITAS; BARRETO, 2012, p. 28).</p><p>5.4.2. A doutrina cristã e a pacificação do desporto:</p><p>Os tempos passaram, as restrições de</p><p>ordem religiosa decaíram e o desporto foi se consolidando como uma maneira nobre e</p><p>cavalheiresca de ocupação do tempo livre. É certo que a principal e decisiva contribuição da</p><p>religião para o desporto foi pacificá-lo, conforme defende Campos (1963, p. 17-18) ao suavizar</p><p>costumes e dotá-lo de um espírito fortemente cavalheiresco, “revestido de todos aqueles</p><p>predicados e qualidades humanas, que nós hoje desejamos ver brilhar e resplandecer em todo o</p><p>verdadeiro e bom atleta ou desportista: lealdade, decisão, espírito de bem-querer, honra,</p><p>coragem, valentia e dignidade”. Contudo, até então a prática desportiva era um privilégio de</p><p>classes dominantes, como os burgueses e aristocratas, sendo o esporte um meio sofisticado de</p><p>entretenimento e ocupação do “tempo livre”, além de servir para o treinamento militar. “El</p><p>deporte ha sido actividad de tiempo libre, de ocio, privilegio aristocrático de los que no tenían</p><p>necesidad de trabajar para ganarse la vida” (DEL POZO, 1967, p. 180).</p><p>5.4.3. Novo estilo de vida urbano e incremento do esporte: Outro fator determinante para a</p><p>evolução das práticas desportivas na Europa foi a Revolução Industrial, ao estabelecer um novo</p><p>modo de vida urbano, iniciando um processo contínuo de rompimento das estruturas sociais</p><p>medievais. Entre 1750 e 1850 os europeus tiveram uma elevação do padrão de vida que por</p><p>séculos havia se mantido numa mesma escala, acompanhado de um crescimento populacional</p><p>jamais visto. “Em 1600, a Europa tinha somente 13 cidades com mais de 100 mil habitantes. Em</p><p>1900, esse número chegava a 143” (BLAINEY, 2009, p. 265). A Inglaterra, gozando dos</p><p>benefícios da Revolução Industrial que desencadeou, observava a prosperidade das famílias,</p><p>sendo que em Londres a população ultrapassava a marca de um milhão de habitantes em 1800,</p><p>chegando a três milhões, sessenta anos depois, passando à condição de maior cidade do mundo</p><p>moderno. Não era diferente na França e em outros países da Europa, que viam crescer</p><p>enormemente suas principais cidades. Neste cenário, as classes dominantes passaram a ter</p><p>condições de interagir de uma forma bem mais dinâmica, quando então iniciaram a formação de</p><p>associações das mais diversas, dentre as quais, as de cunho esportivo, bem como começaram a</p><p>construção de instalações para a prática do boxe, ciclismo, ginástica, tiro, hipismo, atletismo,</p><p>futebol, rugby, tênis e tantas outras modalidades, que iam surgindo e se desenvolvendo,</p><p>originalmente ou derivadas de práticas mais antigas.</p><p>5.4.4. Os defensores do esporte e da Educação Física: Sob outro aspecto, é preciso observar</p><p>que neste período, junto com as transformações sociais, houve uma intensa atividade intelectual</p><p>na formulação de teorias que iriam impactar sobre o modo de agir e pensar do homem moderno,</p><p>quando então muitos dos pensadores da época passaram a defender a educação física, dentro do</p><p>contexto pedagógico tradicional, conforme leciona Adolpho Schermann (1958), em sua obra, “A</p><p>evolução dos desportos através dos tempos”, destacando:</p><p>FRANCISCO RABELAIS (1483-1533), escritor francês do Renascimento, propondo no seu</p><p>poema Gargantúa, um programa completo de cultura física; MARTIN LUTERO (1483-1546),</p><p>alemão, assinala o grande valor da educação corporal para lutar contra o descuido que em</p><p>matéria pedagógica reinava em seus tempos; LUIZ VIVES (1492-1540), o maior dos</p><p>renascentistas espanhóis, que entendia que os exercícios e jogos são uma necessidade para o</p><p>organismo humano e que se devem praticar em todas as estações do ano, ao ar livre, com bom</p><p>tempo e ao abrigo das intempéries, na estação rigorosa; JACOPO SADOLET (1477-1547),</p><p>cardeal e humanista italiano, exaltou a ginástica como meio educativo da infância; ULRICO</p><p>ZWINGLIO (1484-1531), reformador protestante, suíço, ponderou o mesmo com relação à</p><p>educação física; MICHEL DE MONTAGNE (1542-1592), o primeiro dos grandes escritores</p><p>modernos franceses, defendia a necessidade de ligar a educação física à intelectual; JUAN</p><p>CORNENIUS (1592-1670), famoso pedagogo e gramático da Morávia, recomendava a prática</p><p>de exercícios corporais nos cursos escolares. No século XVII o pensador inglês J. LOCKE,</p><p>médico e filósofo, mostrou-se partidário de que, à semelhança da Grécia, a educação física</p><p>precede à cultura do espírito. DESCARTES E PERRAULT, durante o mesmo século, se</p><p>ocuparam, em França, da mecânica muscular animal, e um italiano</p><p>– BORELLI – acolhido na corte da Suécia, ao estudar os movimentos corporais, assinala uma</p><p>época no estudo da fisiologia humana. LING, sueco, ao ressuscitar o desporto no século XIX se</p><p>inspira nos trabalhos de seu precursor italiano. A partir da metade do século XVIII, acentua-se o</p><p>movimento a favor da educação física, tão descuidada havia dois séculos. TISSOT, francês, em</p><p>1780, denunciava as deformações das crianças nas escolas e, finalmente, GORJE apresentava</p><p>com o seu Plano de Educação, a melhor obra do século XVII sobre educação física</p><p>(SCHERMANN, 1958, p. 115).</p><p>Por sua vez, Inezil Penna Marinho (1980), enumera outros expoentes da educação física na Era</p><p>Moderna, como: Johann Bernhard Basedow (1723-1790); Friedrich-Ludwig Jahn (1778-1825);</p><p>Miroslav Tyrs (1832-1884), e; Spencer (1820-1903). Atestando que, no Brasil, foi Ruy Barbosa</p><p>(1849-1923), quem primeiro se empenhou na inclusão da educação física nos quadros do sistema</p><p>educacional, influenciado por vários desses doutrinadores, assentando que:</p><p>As páginas mais lindas, mais profundas, mais eruditas e mais enfáticas, que existem sobre</p><p>Educação Física e Desportos foram escritas principalmente por pensadores, que deixaram de</p><p>forma indelével e admirável, sublime mensagem para as gerações futuras. E entre estes, para</p><p>satisfação nossa, figura Ruy Barbosa – Paladino da Educação Física no Brasil (MARINHO,</p><p>1980, p. 27).</p><p>5.4.5. Teoria da classe ociosa: O economista Thorstein Veblen (1857-1929), ao desenvolver um</p><p>clássico estudo econômico das instituições na sua época, acabou por apontar o perfil do</p><p>praticante desportivo de então, definido dentro do contexto que denominou de “classe ociosa”,</p><p>referindo-se àqueles que, dada a condição privilegiada, gozavam de tempo livre para desfrutar os</p><p>prazeres do esporte, como também da música, das artes, letras e cultura em geral.</p><p>Em seu pleno desenvolvimento, a instituição da classe ociosa surge nos estágios avançados da</p><p>cultura bárbara, como por exemplo na Europa e no Japão feudais. Em tais comunidades as</p><p>diferenças entre as classes são de observância obrigatória, sobressaindo-se entre elas, como de</p><p>mais notável significação econômica, as diferenças de ocupação. As classes mais altas são</p><p>costumeiramente excluídas de ocupações industriais, cingindo-se às funções inerentemente</p><p>honoríficas. Entre essas funções honoríficas, nas comunidades feudais, estão em primeiro lugar a</p><p>guerra e, em segundo, o sacerdócio. O sacerdócio, nos casos de comunidades não especialmente</p><p>belicosas, assume importância maior, seguindo-se a ele o Exército. De qualquer modo, com</p><p>insignificantes exceções, as classes altas em regra não têm funções industriais e esse fato é a</p><p>expressão econômica de sua superioridade. [...] A classe ociosa, como um todo, compreende as</p><p>classes nobres e as classes sacerdotais e grande parte de seus agregados. As ocupações são</p><p>diferentes dentro da classe ociosa, mas todas elas têm uma característica comum</p><p>– não são ocupações industriais. Essas ocupações não industriais das classes altas são em linhas</p><p>gerais de quatro espécies – ocupações governamentais, guerreiras, religiosas e esportivas</p><p>(VEBLEN, 1983, p. 5).</p><p>5.5. Idade Contemporânea</p><p>Depois da Revolução Francesa (1789) e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,</p><p>consagrando os pilares de uma nova sociedade, fundada nos princípios da liberdade, igualdade e</p><p>fraternidade; iniciou-se um período marcado por mais transformações culturais, refinamento de</p><p>costumes, valorização artística e cultural, bem como das atividades de cunho desportivo. Aliado</p><p>a isso, começou a ser reconhecido com maior ênfase o direito de associação, e sobre ele</p><p>debruçou-se</p><p>Costa Lobo, ao argumentar, no final do século XIX, se o Estado deveria intervir no</p><p>exercício da liberdade de associação; e, no caso afirmativo, quais deveriam ser os limites dessa</p><p>interferência, concluindo que ao Estado cabe:</p><p>[...] garantir a liberdade de associação, como direito absoluto da personalidade, deve ao mesmo</p><p>tempo facilitar a elaboração de novos órgãos sociaes, estreitar entre todas as espheras os laços de</p><p>união e solidariedade, e preparar d’esta maneira uma futura edade, em que a harmonia seja a lei</p><p>fundamental da sociedade humana” (COSTA LOBO, 1864, p. 186).</p><p>Apesar desse espírito fraternal é certo que:</p><p>[…] el deporte moderno surgió a la escena social como un fenómeno profundamente clasista, de</p><p>cuyos beneficios solo disfrutaban las clases dominantes en aquellos días, esto es, la nueva</p><p>aristocracia burguesa, sobre todo, y la pequeña burguesía, parcialmente” (CAZORLA PRIETO,</p><p>1979, p. 91),</p><p>Leve-se em conta, ainda, que “as condições de vida da população operária e camponesa de todos</p><p>os países da Europa não davam lugar senão a um mínimo de repouso” (R. Vimard. In:</p><p>DUMAZEDIER, J.; BAQUET M.; GUIMIER J.; et. al. 1979, p. 28).</p><p>5.5.1. Belle Époque Sportif: A Belle Époque, como ficou conhecida esta fase da história pela</p><p>expressão francesa, ressaltou a cultura cosmopolita que passou a impregnar a Europa,</p><p>estendendo-se até o início da 1ª Guerra Mundial (1914). Em que pese o esporte não ser realçado</p><p>pelos historiadores dessa época de ouro, o desenvolvimento de organizações, eventos e</p><p>atividades do gênero, verificadas neste mesmo período (1871-1914), revela que vivíamos não</p><p>apenas um esplendoroso momento intelectual e artístico no velho continente, mas também</p><p>esportivo, no embalo das novas relações sociais e modos de viver e pensar, agora dentro de um</p><p>contexto urbano das cidades que não paravam de se formar e crescer. Assim o cenário esportivo</p><p>estava em efervescência, acompanhando a nova cultura de divertimento e entretenimento, como</p><p>se via nas artes, na dança, cinema e arquitetura, acentuada pela revolução dos transportes, das</p><p>comunicações e da eletricidade, que aproximavam as pessoas pelo mundo desenvolvido. Neste</p><p>cenário, avistamos dezenas de modalidades esportivas sedimentadas entre os europeus, para o</p><p>deleite da classe dominante ociosa, como: esportes atléticos (corridas e caminhada, salto em</p><p>altura e com vara, salto em distância, lançamento de martelo e peso, cabo de guerra), badminton,</p><p>baseball, boliche, boxe, canoagem, críquete, ciclismo, curling, rugby, futebol, futebol americano,</p><p>golfe, hóquei, tênis, remo, patinação, natação, esportes de caça e com uso de armas,</p><p>adestramento de cães (Kennel Clubs), ginástica recreativa, acrobática e terapêutica, com uso de</p><p>pesos, trampolim, anéis, barras horizontais e paralelas, trapézio e mesas, etc. Dentre as inovações</p><p>tecnológicas deste período destacam-se o uso esportivo da bicicleta e depois do automóvel, cujas</p><p>competições integravam o frisson dos novos divertimentos da burguesia e aristocracia.</p><p>5.5.2. A figura do Sportsman’s: O atleta por princípios (amador), aquele para o qual a prática de</p><p>esportes converteu-se em um estilo de vida e que repudiava o profissionalismo, próprio da</p><p>família aristocrática ou burguesa que tanto falamos, passou a ser identificado como um</p><p>“sportsman’s”, conceito importado da Inglaterra, muito bem definido por Luís Trindade, ao</p><p>comentar sobre a difusão do desporto moderno em Portugal, conforme segue.</p><p>Alguns desportos impuseram-se como dimensão de um estilo de vida privilegiado, brotando de</p><p>um mundo social que criou os sportsmen e outros amadores menos mediáticos. As regatas,</p><p>competições hípicas, a esgrima, o tiro ou o ténis, de modo distinto, tornaram-se numa marca de</p><p>pertença social. A sua prática não era apenas caracterizada pela exigência de equipamentos</p><p>dispendiosos. As regras e as posturas corporais traduziam também uma relação com o mundo. A</p><p>posição equilibrada do esgrimista ou do cavaleiro em cima do cavalo, os gestos delicados do</p><p>jogador de ténis, não por acaso um desporto que rapidamente foi considerado adequado a um</p><p>certo ideal feminino, exprimiam um ethos particular [...]. A democratização social de algumas</p><p>modalidades, casos do futebol, ciclismo e do boxe, que deixaram de estar confinados aos</p><p>contextos de uma prática elitista, afastou antigos praticantes. Estes amadores recusaram-se a</p><p>partilhar os espaços de prática com profissionais, ou semi-profissionais, que faziam do corpo</p><p>uma forma de vida e se exibiam perante multidões apaixonadas, tão diferentes do público selecto</p><p>que atendia aos torneios de ténis ou às regatas e cuja mundanidade a imprensa retratava com</p><p>vigor. (in: NEVES; DOMINGOS, 2011, p. I e II).</p><p>5.5.3. Esporte, meios de comunicação e transporte crescem juntos: Outra nítida influência na</p><p>propagação do esporte, como um meio de interação social das classes dominantes, constata-se a</p><p>partir do rasgo de ferrovias que cruzavam toda a Europa, permitindo não apenas o transporte de</p><p>carga como também de passageiros, modificando um estilo de vida no qual as pessoas não</p><p>tinham o costume de viajar. Lembra Blainey (2009, p. 255-256) que, até o século XVIII, “as</p><p>pessoas passavam toda a vida em um único lugar” e “até dormir uma noite fora de casa era uma</p><p>coisa incomum”, de modo que mesmo “os ricos não viajavam muito longe à procura de</p><p>conhecimento ou prazer”. Porém, com a revolução dos transportes tudo se transformou,</p><p>estimulando encontros entre clubes de diferentes nações, especialmente França, Inglaterra e</p><p>Escócia, mas logo se espalhando por todo o continente. A consolidação da imprensa jornalística</p><p>e a invenção do telégrafo permitiriam, paralelamente, a distribuição de notícias sobre os feitos</p><p>esportivos, estimulando cada vez mais sua prática, símbolo de status social.</p><p>Na maioria dos países, o jornal diário da nação tornou-se possível pela primeira vez, porque os</p><p>velozes trens mensageiros podiam transportar fardos de jornais até a maioria das cidades no</p><p>mesmo dia da publicação. O jornal tornou-se também mais barato, pois era impresso pela</p><p>imprensa a vapor, inventada na Alemanha (BLAINEY, 2009, p. 259).</p><p>De se destacar que muitos dos encontros esportivos, como corridas de rua e provas ciclísticas,</p><p>passaram a ser organizados por jornais da época e revistas especializadas, que circulavam pelas</p><p>principais economias da Europa. O “Tour de France” (Volta da França) é um bom exemplo</p><p>disso, já que foi criado em 1903 por iniciativa do fundador do periódico L’Auto (depois</p><p>denominado L’Équipe), para fazer frente a outras provas organizadas por concorrentes. Depois</p><p>dela vieram o Giro da Itália, em 1909 (idealizado para aumentar a circulação do jornal italiano</p><p>La Gazzetta dello Sport) e a Volta da Espanha (1935), apoiada pelo jornal “Informaciones”.</p><p>5.5.4. Aparecimento dos torcedores e aficionados por esporte: Depois de deflagrada a</p><p>Revolução Industrial e o povoamento das cidades, alguns esportes romperam a dimensão restrita</p><p>da classe ociosa e passaram a incorporar o cotidiano da vida urbana, com o surgimento de</p><p>agrupamentos diversos e o início de uma prática profissional, isto é, em que os atletas recebiam</p><p>algum benefício em decorrência do seu desempenho, seja por via da exploração comercial das</p><p>suas exibições ou por prêmios e benefícios oferecidos pelos que exerciam a direção dos clubes</p><p>esportivos. Esse é o momento que marcou uma forma inovadora de praticar esporte, deixando de</p><p>servir apenas à diversão da burguesia e aristocracia, isto é, passando à condição de espetáculo,</p><p>quando o rendimento determina a seleção dos jogadores. Tais competições, sempre que tornadas</p><p>públicas, assim como na Antiguidade, atraiam a atenção do público, por diferentes fatores, como:</p><p>tradição, laços afetivos com os atletas, interesse estético pela modalidade. Mas são as apostas, ao</p><p>lado da excitação competitiva, as circunstâncias que mais determinam a presença de público nas</p><p>arenas de combate esportivo. Isso estimulou o surgimento de clubes populares, especialmente</p><p>ligados a fábricas (classe operária) e também de fãs do esporte, aficionados,</p><p>torcedores, que</p><p>passaram a estabelecer um novo tipo de relação social, criando diversos grupos de identidade que</p><p>não tardariam em rivalizar junto com suas equipes prediletas. A divulgação dos feitos esportivos</p><p>pela imprensa da época estimulavam comentários frequentes sobre os jogos e o desempenho de</p><p>atletas, criando expectativas em relação aos próximos encontros, funcionando como um motor,</p><p>que colocou em movimento permanente o esporte, cada vez com mais intensidade.</p><p>5.5.5. As apostas, bilheteria e os atletas profissionais: Como primeira potência econômica</p><p>mundial, a Inglaterra avançou rápido em termos sociais, com maior possibilidade de</p><p>envolvimento em esportes diversos. Paralelamente, o gosto da população inglesa por apostas</p><p>servia de combustível para alimentar as competições esportivas, como se via nas salas de armas</p><p>que abriam para prática de esgrima, nos ringues de boxe (esgrima sem armas) e nos hipódromos,</p><p>onde além de provas hípicas também aconteciam corridas pedestres (atletismo). Como dito, os</p><p>atletas ganhavam uma parte das apostas, sendo que a maioria deles tinha outra profissão, mas uns</p><p>poucos já se qualificavam como “atletas de ofício”. Quando havia cobrança de ingressos para</p><p>adentrar ao recinto, também uma parte do arrecadado era destinada aos atletas, caracterizando</p><p>assim uma prática desportiva de certa forma “profissional”. Anota Floc’hmoan (1965), que no</p><p>final do século XVIII, nobres e burgueses, sobretudo militares, se dedicavam também a correr,</p><p>sendo que alguns grupos decidiram correr apenas entre si, sem a presença de atletas</p><p>“profissionais” ou “semiprofissionais”, isto é, aqueles que recebiam algum dinheiro pela</p><p>atividade esportiva.</p><p>5.5.6. O esporte nas escolas e universidades inglesas: Ao final do século XVIII, as corridas</p><p>estavam na moda, especialmente em Manchester, que despontava como centro da nova indústria</p><p>têxtil, povoada de operários que lotavam as arenas para assistir as provas e apostar. No século</p><p>seguinte começaram as primeiras provas atléticas escolares e universitárias, quando em alguns</p><p>estabelecimentos de ensino foram introduzidos esportes como meio de educação corporal e</p><p>afirmação de valores sociais, ao lado das disciplinas intelectuais. Quem teve essa iniciativa de</p><p>forma mais destacada pelos historiadores foi o clérigo Thomas Arnold, quando esteve à frente da</p><p>escola pública de Rugby.</p><p>Arnold viu, apenas, nas manifestações desportivas, um meio excepcional de formar os alunos da</p><p>sua escola de Rugby, que dirigiu durante 14 anos, de 1828 até à sua morte. É verdade que, desde</p><p>sempre, os estudantes ingleses haviam praticado o desporto, mas em actividades um tanto</p><p>brutais, e apenas toleradas ou ignoradas pelos seus professores. A reforma de Arnold consistiu,</p><p>precisamente, em respeitar essa independência de organização dos alunos, mas dando</p><p>-lhe uma discreta vigilância e uma dignidade nova. [...] As relações e hábitos criados no desporto</p><p>seriam, assim, o melhor treino para o cumprimento das obrigações respeitantes à vida social. Ao</p><p>sairem da escola, para entrarem na sociedade, os alunos teriam de ser, como no desporto, não</p><p>expectadores, mas esclarecidos praticantes, homens já preparados nas relações de convivência,</p><p>de competição, de emulação, de esforço pessoal, no respeito dos seus iguais e das regras</p><p>estabelecidas. [...] Claro que, na originalidade destas concepções, havia, como sublinham os</p><p>historiadores do desporto, essa intenção manifesta: a da preparação de verdadeiros gentlemen,</p><p>para o serviço das instituições e do Rei. Daí a relevância do desporto, na formação do Império</p><p>Britânico (ESTEVES, 1975, p. 28).</p><p>Com isso, estavam criadas as condições para que os estudantes pudessem incorporar no seu dia-</p><p>a-dia, a prática de atividades desportivas, formando clubes escolares e associações atléticas</p><p>acadêmicas, que cuidavam da organização de provas internas e estimulavam o treinamento e</p><p>desenvolvimento de técnicas para cada esporte. Contudo, as rivalidades entre as diversas escolas</p><p>e universidades inglesas passaram, também, para o campo esportivo, originando campeonatos e</p><p>disputas que se tornariam clássicas. A presença do esporte nesses ambientes conduziu a uma</p><p>nova compreensão da prática desportiva, deixando de possuir apenas caráter recreativo, ao</p><p>agregar valores educacionais e pedagógicos. É o início do esporte educacional, escolar,</p><p>universitário.</p><p>5.5.7. O conceito de esporte amador: Apesar das apostas que nutriam as corridas de rua e em</p><p>hipódromos, as lutas de boxe e outras modalidades esportivas, uma parcela da sociedade</p><p>mantinha aspirações outras. Faziam parte desse universo os jovens da aristocracia, militares e</p><p>burgueses, habituais praticantes desportivos. E foi exatamente por iniciativa dessas pessoas que</p><p>se desenvolveu uma ideologia em prol da prática amadora, que repudiava qualquer ganho</p><p>material ou custeio de despesas do atleta. Assim, em sua defesa começaram a surgir associações</p><p>que enfatizavam o caráter amador de suas atividades, como o “Amateur Athletic Club”, fundado</p><p>em 1866, com sede em Londres, e que depois foi substituído pelo “Amateur Athletic</p><p>Association” (1880). Entretanto, apesar do rígido controle dessa associação, há relatos de casos</p><p>de falsos atletas amadores infiltrados em suas competições, sendo assim classificados aqueles</p><p>que viajavam por todo o país sem ter recursos para tanto. Conforme a Regra nº 1 da Amateur</p><p>Athletic Association (AAA): “Um amador é aquele que nunca competiu por prêmio em dinheiro</p><p>ou aposta, ou com ou contra um profissional por qualquer prêmio, ou quem nunca ensinou,</p><p>seguiu ou ajudou na prática de exercícios físicos como meio de vida”. Em outros esportes não foi</p><p>diferente, conforme relata a britânica “The Encyclopaedia of Sports” (1897), ao explicitar que no</p><p>críquete ficava evidente que muitos atletas não eram de fato amadores, já que não tinham</p><p>recursos para passar todo o verão em recreação, tendo seus gastos custeados por terceiros</p><p>interessados em suas qualidades atléticas em prol da equipe. No ciclismo era acusado que legiões</p><p>de atletas amadores proeminentes, direta ou indiretamente, recebiam dos produtores de</p><p>bicicletas, valores suficientes para manterem seus gastos através da temporada.</p><p>5.5.8. Atleta amador (cavalheiro-patrão) e profissional (empregado): Neste cenário a</p><p>organização do esporte na Europa avançou para o século XX sob três pilares distintos: um</p><p>assentado em bases econômicas e com espírito de lucro (profissional); outro enraizado nos</p><p>costumes dos primeiros praticantes (amador), e; finalmente, um esporte interiorizado nas escolas</p><p>e universidades, destinado à mocidade em formação. Os esportes praticados sem restrição ao</p><p>profissionalismo não enfrentavam muitos problemas de organização, logo iniciando um processo</p><p>de formalização e unificação de suas regras, como, por exemplo, o boxe, em 1743, quando um</p><p>grupo de “gentlemen’s” se colocou de acordo em alguns pontos, que depois passaram a ser</p><p>reconhecidos por toda a Inglaterra. Antes disso, aconteciam alguns confrontos com golpes</p><p>baixos, causando mortes com frequência, além do que as lutas não tinham uma limitação de</p><p>tempo, podendo chegar a dezenas de “rounds”, encerrando somente com o nocaute completo</p><p>(full knockout – K.O.), fato que muitas vezes acabava enquadrado como criminoso. Por sua vez,</p><p>a organização do esporte amador lutava para encontrar meios de garantir sua sobrevivência, já</p><p>que o profissionalismo substituía cada dia mais a excelência da pessoa, pela pessoa de</p><p>excelência.</p><p>Desde que os esportes existem na Inglaterra, existe uma classe de homens que os praticam como</p><p>meio de vida e para lucrar; estes homens foram sempre classificados de profissionais. (...)</p><p>Jóqueis profissionais, jogadores de críquete profissionais, nadadores e corredores sempre</p><p>estiveram conosco; e também, na maioria dos esportes, há cavalheiros de modos, que jogam não</p><p>como modo de vida, mas como divertimento, mesmo que, de vez em quando, eles não vejam</p><p>problema em montar, jogar e correr, por apostas ou pagamentos. Esta classe de homens foi</p><p>chamada, em distinção aos jogadores profissionais,</p><p>de cavalheiros, pois essa classe era formada,</p><p>totalmente, por homens de berço nobre. Com a rápida popularização, no entanto, de todos os</p><p>esportes e jogos, durante os últimos cinquenta anos e especialmente em consequência da</p><p>introdução de “apostas” nos jogos, a velha e vaga distinção, traçada entre o cavalheiro-patrão e o</p><p>profissional-empregado, ficou obsoleta; então, os seguidores dos mais diferentes esportes,</p><p>começaram a trabalhar por uma melhor divisão dos competidores em duas classes, os</p><p>profissionais, que competiam por dinheiro, e os amadores, que recusavam receber dinheiro,</p><p>tanto por remuneração como por prêmio, contudo são aqueles que praticam esportes somente por</p><p>praticar. (The Encyclopaedia of Sports, 1897 – N. do A.: Tradução de Pedro Della Rosa</p><p>Matheus).</p><p>5.5.9. “Football Association” (FA), “Rugby” e profissionalismo: O esporte levado para dentro</p><p>das escolas e universidades inglesas atraiu o interesse dos alunos e ganhou uma importância</p><p>especial, diante da rivalidade que existia entre as instituições. Logo, os encontros esportivos</p><p>foram uma boa oportunidade para o desfile de qualidades. Porém, muitas práticas desportivas</p><p>ainda eram calçadas apenas em tradições, sendo diversificadas as formas de manifestação, como</p><p>no caso do “football”, que era um jogo com regras dispares. Por conta disso, em 1863, reuniram-</p><p>se os estudantes ingleses, juntamente com alguns clubes privados e, depois de longos debates e</p><p>diferentes pontos de vista, criaram a “Football Association” (FA), cuidando do jogo de passe</p><p>com os pés (“dribbling game”), cujas regras pouco mudaram até os dias atuais. Não obstante, os</p><p>adeptos de uma forma diferente de jogar “football”, oito anos depois, fundaram a “Rugby</p><p>Football Union” (RFU), preservando uma forma distinta de jogo e que também se consolidou</p><p>como um esporte altamente difundido pelo mundo, cujas regras passaram a ser deliberadas pela</p><p>“International Rugby Board”, em 1886. Por sua vez, o “futebol americano” nada tem a ver com</p><p>essas iniciativas, tendo nascido no seio das universidades americanas, por volta de 1870.</p><p>La expresión “rugby americano” con la que se designa a veces el fútbol practicado en los Estados</p><p>Unidos, es impropia. Pues este juego no ha tenido nunca que ver nada con Rugby. Para los</p><p>europeos, este término ha nascido de un parecido que hay entre el rugby y el fútbol americano.</p><p>En ambos las pelotas son ovaladas (la americana es más pequeña), los terrenos rectangulares y</p><p>las porterías en forma de H. Pero la comparación dele acabar aquí (FLOC’HMOAN, 1965, p.</p><p>132).</p><p>O rubgy enfrentou sérias dificuldades de organização diante daqueles que defendiam sua prática</p><p>exclusivamente amadora, levando a uma divisão da RFU em 1895, que ficou conhecida como a</p><p>“grande cisma”, que dividiu os praticantes do Sul (amadores) mediante o afastamento dos clubes</p><p>do norte do país (adeptos do profissionalismo), que fundaram a “Northern Rugby Union” (NRU),</p><p>depois conhecida como “Rugby Football League” (1902). As entidades superaram suas</p><p>diferenças apenas em 1995, quando o profissionalismo impôs definitivamente sua força</p><p>econômica. Já o “futebol associação” encarou menos problemas neste sentido, vez que formado</p><p>por clubes em sua maioria sem vínculos com as universidades. Assim, em 1885, pouco mais de</p><p>duas décadas depois da sua fundação, a FA passou a reconhecer o profissionalismo. A França,</p><p>anos mais tarde, enfrentou os mesmos problemas com a popularização do rugby e depois do</p><p>futebol, sendo o profissionalismo aceito como um fato consumado, já que o amadorismo</p><p>clandestino era incontrolável. Uma das formas de profissionalismo que não tinha como ser</p><p>contornada era a contratação de funcionários por empresas para cargos fictícios, mas cuja</p><p>finalidade era sua atuação como jogador de equipes vinculadas a mecenas, comerciantes e</p><p>industriais (dirigentes de clubes).</p><p>5.5.10. Natureza jurídica profissional dos clubes ingleses: Depois da criação da FA (1863),</p><p>iniciou-se a realização da Copa da Inglaterra, em 1871, da qual podiam participar clubes com</p><p>atletas profissionais e amadores. “Em 1885, uma lei reconheceu como profissão jogar futebol”</p><p>(CASTRO, 1998, p. 20). Em 1888, doze clubes do norte da Inglaterra decidiram pela realização</p><p>de um campeonato estritamente profissional, formando assim a “Football League”, como um</p><p>apêndice da FA, aceitando as regras do jogo já instituídas, porém, propondo um estatuto dos</p><p>jogadores de ofício e sugerindo aos clubes que se transformassem em sociedades anônimas, fato</p><p>que se concretizou e definiu o futebol inglês nos moldes atuais. Esse modelo de organização</p><p>proposto na Inglaterra mostrou-se o mais coerente à realidade econômica do futebol profissional</p><p>no século XX, sendo que outros países, cuja difusão do futebol foi predominante, como Itália,</p><p>Espanha, Portugal e Brasil, ao seu tempo e modo, procuraram seguir esse exemplo, mas</p><p>enfrentando resistência de parte dos clubes tradicionalmente constituídos como associações de</p><p>fins não econômicos, além das questões culturais de cada país (torcer por uma empresa?).</p><p>5.5.11. As primeiras Federações Esportivas Internacionais: A concepção de uma federação</p><p>internacional, para congregar os praticantes de uma modalidade esportiva, acredita-se que</p><p>ocorreu pela primeira vez em 23 de julho de 1881, em Bruxelas (Bélgica), quando Nicolas</p><p>Cuperus e outros expoentes da ginástica idealizaram a Fédération Internationale de</p><p>Gymnastique (FIG), o que guarda todo sentido, diante da importância do movimento ginástico</p><p>nessa época, animado por educadores germânicos, franceses e nórdicos, sendo que na Suécia, em</p><p>1813, fundou-se o célebre Instituto Geral de Ginástica, e em 1839 foi publicado o trabalho do</p><p>também sueco Per Henrik Ling (1776-1839), denominado “Bases Gerais de Ginástica”, apurando</p><p>a complexidade de movimentos e equipamentos relacionados com sua prática.</p><p>Em 1808, sob a influência de Ling, deu a Suécia os primeiros passos no estabelecimento da</p><p>ginástica escolar. O regulamento da época determinou que, em todos os centros de educação,</p><p>fossem criadas condições favoráveis para a prática de exercícios de escalada, saltos, acrobacias,</p><p>natação etc., sob a direção de um monitor e durante as horas de liberdade. Em 1826, mais um</p><p>avanço foi dado, quando novo regulamento estabeleceu: “Nenhum jovem deve ser dispensado da</p><p>ginástica, salvo de provar que ela lhe é nociva” (RAMOS, 1982, p. 198-199).</p><p>Depois de cinco anos sistematizando as regras desse esporte, os representantes de associações de</p><p>ginástica de diversos países decidiriam pela constituição da FIG, tendo como objetivos: o</p><p>compartilhamento de publicações e documentos oficiais; diretivas sobre convites; isenção de fins</p><p>religiosos ou políticos, e; proibição do profissionalismo. Por último, houve divergência quanto à</p><p>finalidade de organização de competições internacionais, com forte oposição de Nicolas</p><p>Cuperus, que via nas competições algo supérfluo, defendendo os valores da ginástica atrelados</p><p>aos benefícios que trazia aos praticantes (saúde, força, flexibilidade, tenacidade), concepção</p><p>depois superada, já que em 1903 a FIG organizou seu primeiro torneio internacional, sediado em</p><p>Antuérpia. De todo modo, o ideal de Cuperus foi resgatado em 1953, quando se iniciou a</p><p>“Gymnaestrada Mundial”, um movimento de ginástica para todos. A segunda iniciativa de</p><p>constituição de uma entidade federativa desportiva ocorreu em 1892, quando os clubes de remo,</p><p>extremamente elitizados e unanimes em rechaçar o profissionalismo, decidiram pela fundação da</p><p>Fédération Internationale des Sociétés d’Aviron (FISA), sendo esta a primeira entidade admitida</p><p>pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), que surgiria dois anos mais tarde.</p><p>5.5.12. Fundação do Comitê Olímpico Internacional (COI): O jovem francês de família</p><p>aristocrática, Pierre de Frédy, depois conhecido pelo título nobiliárquico de Barão de Coubertin</p><p>(1863-1937), era um idealista que defendia a reforma do sistema educacional do seu país, com a</p><p>incorporação de atividades esportivas no plano pedagógico (“pédagogie sportive”), visando à</p><p>regeneração física dos</p><p>franceses, cuja educação era fundamentalmente intelectual, além de</p><p>elevar-lhes a autoestima. Isso depois de ser influenciado pelas ideias do educador inglês Thomas</p><p>Arnold (1795-1842), e conhecer seus efeitos propagados também nos EUA. Seus pais sonhavam</p><p>que ele seguisse a carreira militar, mas por falta de vocação acabou estudando Filosofia na</p><p>Sorbonne (Universidade de Paris). Dentre seus diversos planos, conseguiu concretizar a</p><p>ressurreição dos Jogos Olímpicos, entusiasmado pelas descobertas arqueológicas do alemão J.J.</p><p>Winckelmann (1717-1768), das ruínas do local onde eram realizados os Jogos da Antiguidade.</p><p>Com habilidade, Coubertin cercou-se de políticos, catedráticos e cientistas que apoiavam suas</p><p>ideias, que se cristalizavam com a realização das primeiras competições escolares em 1889, que</p><p>reuniram a fantástica cifra – para a época – de 800 jovens e se estenderam por toda a França</p><p>(COLLI, 2004, p. 11).</p><p>“O projeto de reviver o evento sofreu forte influência [também] de William Penny Brookes e de</p><p>Evangelis Zappas, que organizaram competições parecidas, respectivamente, na Inglaterra e na</p><p>Grécia, nos anos de 1859, 1870 e 1875” (FREITAS; BARRETO, 2012, p. 29). Com essa</p><p>inspiração Coubertin ventilou a ideia de restauração dos Jogos Olímpicos formalmente durante</p><p>encontro da Associação Francesa das Sociedades de Esportes Atléticos, realizado em 26 de</p><p>novembro de 1892, na Universidade de Sorbonne, tratando de promover dois anos depois, no</p><p>mesmo local, um congresso atlético internacional, entre os dias 16 a 23 de junho (depois</p><p>batizado de Congresso Olímpico), contando com a participação de representantes de 11</p><p>diferentes países convidados, “entre os quais o rei da Bélgica, o príncipe de Gales, o príncipe</p><p>herdeiro da Suécia e o duque de Esparta – sucessor da coroa grega [...]” (COLLI, 2004, p. 11),</p><p>decidindo-se ao final do encontro pela criação do Comitê Olímpico Internacional (COI),</p><p>convencidos que foram por Coubertin em restaurar os Jogos Olímpicos, fundando-se naquele</p><p>mesmo ano e país uma associação privada sem fins lucrativos, dotada de autogestão, sem</p><p>vinculação com governos e livre para nomear seus próprios membros e fixar suas diretrizes de</p><p>desenvolvimento.</p><p>Los principios fundamentales contenidos en las ideas de Coubertin fueron aceptados uno tras</p><p>otro: la celebración cuatrienal, el carácter moderno del programa, el cambio de lugar y la</p><p>participación de todos los pueblos. Se le confió la constitución del Comité Olímpico</p><p>Internacional, que debía ser en el futuro el portador de los Juegos, y que empezó por elegir el año</p><p>1896 y la ciudad de Atenas para el resurgir de los mismos (DIEM, 1966b, p. 402-403).</p><p>Defensor intransigente do amadorismo, ao redigir a Carta Olímpica, documento oficial de</p><p>constituição do COI, fez constar essa condição para admissão de atletas no evento, assim como</p><p>exigiu de todos os membros convidados a fazer parte da instituição, plena independência</p><p>espiritual e econômica, custeando seus próprios gastos e com trânsito suficiente em seus</p><p>respectivos países para levar adiante os ideais olímpicos, fato que elitizava sua composição. O</p><p>próprio Barão gastou quase toda sua fortuna para viabilizar o COI (seus pais eram do ramo</p><p>hoteleiro). Em princípio, não quis ser o seu presidente, ocupando o cargo de secretário-geral,</p><p>defendendo o critério de rodízio para exercício da presidência conforme o país sede dos Jogos,</p><p>de modo que o grego Demetrius Vikelas foi eleito para o cargo, exercendo a função pelo curto</p><p>período de dois anos (1894-1896), sendo Coubertin convencido depois pelos seus pares e eleito</p><p>presidente do COI em seguida, mantendo-se no cargo até 1925, quando renunciou, exaurido em</p><p>seus recursos, aos 63 anos de idade, um ano depois da celebração dos Jogos em Paris (1924),</p><p>assumindo a presidência o conde belga Henri de Baillet-Latour (1925-1942), conforme seu</p><p>desejo, permanecendo no cargo até o ano do seu falecimento. Alguns historiadores dizem que</p><p>Coubertin abriu mão do cargo devido ao esgotamento de seus recursos financeiros (aplicados em</p><p>prol do desenvolvimento da instituição), assim como também devido a uma série de decisões</p><p>adotadas em congressos que não o agradavam, a começar pela abertura da participação de</p><p>mulheres nas competições olímpicas. Faleceu em 2 de setembro de 1937, aos 74 anos, em</p><p>Genebra. Quanto à conhecida frase “O importante é competir”, a ele atribuída, observam Freitas</p><p>e Barreto (2012, p. 31), que “embora de uso corrente, é uma tradução abreviada de um trecho</p><p>que Pierre de Coubertin adaptou de um discurso do bispo inglês Ethelbert Talbot, proferido</p><p>durante os Jogos de Londres 1908: ‘O importante na vida não é a vitória, mas a luta; o</p><p>importante não é vencer, mas ter lutado bem’”.</p><p>5.5.13. O renascimento dos Jogos Olímpicos: Em sua primeira edição, ocorrida em 1896</p><p>(Atenas, Grécia), berço do evento na Antiguidade, contou com a participação de 14 países e 241</p><p>atletas, todos do sexo masculino, por imposição de Coubertin que, segundo Freitas e Barreto</p><p>(2012, p. 32), “dizia que era indecente ver uma mulher contorcendo-se no esforço físico do</p><p>esporte”, restrição que não perdurou por muito tempo, sendo aos poucos vencida sua posição. Na</p><p>ocasião foram disputadas nove modalidades esportivas (atletismo, ciclismo, esgrima, ginástica,</p><p>halterofilismo, lutas, natação, tênis e tiro). A segunda edição, realizada em Paris (1900), para</p><p>desgosto de Coubertin, além da participação de 22 mulheres, dentre 997 atletas de 24 países, foi</p><p>ofuscada pela equivocada decisão em realizar o evento simultaneamente à tradicional Exposição</p><p>Universal Internacional (Feira Mundial de Paris), aproveitando da sua estrutura, “em razão da</p><p>falta de dinheiro do COI e da falta de disposição do governo francês em liberar verbas para o</p><p>esporte” (FREIRE; RIBEIRO, 2006, p. 70), circunstância que acabou por comprometer sua</p><p>visibilidade, repetindo-se o erro em 1904 (Saint Louis/EUA), ao associar-se à Louisiana</p><p>Purchase Exhibition, quando as competições se arrastaram por cinco meses, em precárias</p><p>instalações e marcado pela desorganização geral. “O próprio Barão de Coubertin, que preferia</p><p>que Chicago tivesse sido a cidade-sede dos Jogos, recusou-se a participar da cerimônia de</p><p>abertura, apesar dos apelos do presidente americano, Theodore Roosevelt, que escolherá Saint</p><p>Louis” (FREITAS; BARRETO, 2012, p. 52). Em 1906 houve uma tentativa da Grécia em</p><p>decretar Atenas como sede permanente dos Jogos, enfrentando grave oposição do COI e de</p><p>representantes de outros países, não prosperando a iniciativa, cujos Jogos, apesar de realizados,</p><p>não foram oficialmente reconhecidos, seguindo-se com as Olimpíadas de Londres (1908) e a</p><p>quinta em Estocolmo (1912), ambas com pleno êxito, com participação de mais de 20 países e</p><p>2.000 atletas. Em 1914 foi adotado o símbolo olímpico, composto por cinco anéis entrelaçados,</p><p>que representam a união dos cinco continentes e o encontro dos atletas do mundo inteiro nos</p><p>Jogos Olímpicos. Em sequência, Berlim deveria sediar os Jogos de 1916, mas foram suspensos</p><p>devido ao desenrolar da 1ª Guerra que assolou a Europa, retornando em 1920, na Antuérpia</p><p>(Bélgica), apesar das animosidades pós-guerra (o Brasil participa pela primeira vez do evento),</p><p>quando Coubertin hasteia pela primeira vez a bandeira olímpica (cinco anéis entrelaçados),</p><p>propondo uma visão de paz e união mundial através do esporte. Daí por diante foi suspenso mais</p><p>duas vezes, também devido à Guerra (1940 - Helsinque e 1944 - Tóquio), assim como muitas</p><p>mudanças ocorreram em relação ao cerimonial e às modalidades disputadas. Os Jogos Olímpicos</p><p>de Inverno passaram a ser organizados a partir de 1924, sendo a sua primeira edição realizada em</p><p>Chamonix, França.</p><p>5.5.14. Surgimento da International Football Association Board (IFAB): Fato marcante na</p><p>história do desenvolvimento do esporte, como é o caso do futebol, a partir do século XIX,</p><p>decorre da força dos laços que unem as associações envolvidas com cada modalidade ao redor do</p><p>mundo, em que o reconhecimento e subordinação às regras do jogo têm caráter universal e</p><p>indiscutível.</p><p>355</p><p>11.6. Destinação prioritária de recursos públicos para o</p><p>desporto educacional .............................................................................. 364</p><p>11.7. Destinação especial de recursos públicos para o</p><p>desporto de alto rendimento .................................................................. 370</p><p>11.8. Tratamento diferenciado do desporto profissional</p><p>e não-profissional ................................................................................... 372</p><p>11.9. Proteção e incentivo às manifestações desportivas</p><p>de criação nacional ................................................................................. 374</p><p>11.10. Reconhecimento constitucional da Justiça Desportiva............... 374</p><p>11.11. Incentivo do poder público ao (desporto) lazer .......................... 375 11.12. Bases</p><p>constitucionais do direito de imagem e de arena ............. 376 11.13. Competência legislativa em</p><p>matéria desportiva.........................377 11.14. Lei nº 8.672/93 – Lei Zico</p><p>.......................................................380</p><p>Capítulo 12 – Normas gerais sobre desporto ..................................387</p><p>12.1. Considerações preliminares .......................................................387</p><p>12.2. Metodologia de estudo da legislação .........................................409</p><p>12.3. Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé ou LGSD)..........................................410</p><p>12.4. Das disposições iniciais e princípios fundamentais ...................419</p><p>12.5. Sistema Brasileiro do Desporto - SBD ......................................439</p><p>12.6. Proposta de reformulação do Sistema Brasileiro do Desporto ..442</p><p>12.7. Conselho Nacional do Esporte – CNE .......................................451</p><p>12.8. Da natureza e das finalidades do desporto .................................453</p><p>12.9. Desporto educacional ou esporte-educação ...............................457</p><p>12.10. Desporto de participação..........................................................464</p><p>12.11. Desporto de rendimento ...........................................................472</p><p>12.12. Desporto de formação ..............................................................473</p><p>12.13. As questões ideológicas do atleta amador e profissional .........474</p><p>Capítulo 13 – Da prática desportiva não-profissional ...................483</p><p>13.1. A finalidade de obter resultados e integrar pessoas.......................... 485</p><p>13.2. Regime jurídico do desporto profissional e não-profissional.......... 492</p><p>13.3. Dimensões da liberdade de prática do atleta não-profissional ....... 501</p><p>13.4. Precariedade do vínculo desportivo do modo não-profissional ...... 509</p><p>13.5. Os princípios do direito do trabalho e o atleta não-profissional...... 512</p><p>13.6. Direitos e deveres na organização da prática não-profissional........ 525</p><p>13.7. Obrigações das entidades de administração do desporto................528</p><p>13.8. As garantias ao atleta não-profissional ......................................540</p><p>13.9. Os compromissos da entidade de prática desportiva .................548</p><p>13.10. Os incentivos materiais ............................................................549</p><p>13.11. Instrumento (contrato) para concessão dos</p><p>incentivos materiais ............................................................................554 13.12. O patrocínio</p><p>.............................................................................575 13.13. Do contrato de licença de uso da</p><p>imagem do</p><p>atleta não-profissional .........................................................................580 13.14. Conclusão</p><p>.................................................................................585</p><p>Capítulo 14 – Da prática desportiva profissional ...........................587</p><p>14.1. Organização da atividade desportiva de modo profissional.......588</p><p>14.2. Elementos caracterizadores da competição profissional............589</p><p>14.3. Contrato especial de trabalho desportivo (CETD) .....................592</p><p>14.4. Limites de atuação dos agentes desportivos ..............................607</p><p>14.5. Regime jurídico especial do trabalho desportivo ....................... 611</p><p>14.6. Deveres do atleta profissional ....................................................613</p><p>14.7. Deveres do clube empregador ....................................................614</p><p>14.8. Direito de imagem e o atleta profissional ..................................619</p><p>14.9. Direito de arena ..........................................................................629</p><p>14.10. Direitos e deveres do clube formador de atletas ......................637</p><p>14.11. O atleta profissional autônomo ................................................651</p><p>14.12. Estatuto de Defesa do Torcedor - EDT ....................................653</p><p>14.13. Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte - LRFE ................666</p><p>Capítulo 15 – Origem e desenvolvimento da Justiça</p><p>Desportiva no Brasil .........................................................................671</p><p>15.1. Introito........................................................................................671</p><p>15.2. Código Brasileiro de Futebol – CBF .........................................675</p><p>15.3. Código Brasileiro de Justiça e Disciplina</p><p>Desportivas – CBJDD .........................................................................677</p><p>15.4. Código Brasileiro Disciplinar de Futebol – CBDF ....................679</p><p>15.5. Legislação sobre a Justiça Desportiva .......................................681</p><p>15.6. Conflitos entre a Justiça Desportiva e o Poder Judiciário..........684</p><p>15.7. A Justiça Desportiva e a Constituição Federal de 1988 .............689</p><p>15.8. Instância de poder disciplinar especial ......................................694</p><p>15.9. Direitos e garantias fundamentais na Justiça Desportiva ...........695 15.10. Competência</p><p>material da Justiça Desportiva ...........................698 15.11. Dimensão temporal da atuação da</p><p>Justiça Desportiva .............705 15.12. A Justiça Desportiva e a lei de normas gerais</p><p>..........................706 15.13. Princípios da Justiça Desportiva ..............................................708</p><p>15.14. Organização, funcionamento e atribuições</p><p>da Justiça Desportiva ..........................................................................710 15.15. Natureza jurídica</p><p>dos códigos de justiça desportiva ................716 15.16. Impugnação das decisões da Justiça</p><p>Desportiva ......................719 15.17. Direito comparado (Justiça Desportiva)</p><p>..................................723 15.18. Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJD-AD)</p><p>.........725</p><p>Referências Bibliográficas ..................................................................727</p><p>Parte I Da PrátIca DesPortIva</p><p>A prática da educação física e do esporte é um direito fundamental de todos (art. 1).</p><p>Carta Internacional da Educação Física e do Esporte da UNESCO (1978)</p><p>Capítulo 1</p><p>Bases conceituais do desporto</p><p>1.1. Considerações iniciais</p><p>Se no início do século passado a prática desportiva era um desfrute das classes dominantes,</p><p>destinada ao seu divertimento e deleite, o que vimos nas décadas seguintes foi sua ampla</p><p>popularização, na mesma medida de outras conquistas sociais. De tal sorte que embarcamos</p><p>neste século vivenciando o esporte como um acontecimento que merece destaque ininterrupto,</p><p>sendo bem mais comentado, por exemplo, que fatos políticos e econômicos (que afetam ipsis</p><p>facto a vida das pessoas), chegando a ser considerado por alguns críticos como escapismo social,</p><p>fuga da realidade, “ópio do povo”. De privilégio de classe a instrumento de alienação coletiva,</p><p>em tão pouco tempo, já se nota o quanto a prática desportiva demanda investigação, enquanto</p><p>fato social. Esse e outros extremos serão examinados no curso desta obra, como é o caso, por</p><p>exemplo, do seu aspecto lúdico e agonístico, da sua configuração sagrada e depois profana</p><p>(secularizada), da sua caracterização como formal e não-formal, da sua finalidade pedagógica,</p><p>social e econômica, do seu modo profissional e não-profissional (“amador”),</p><p>Esse ponto fundamental da doutrina esportiva muito se assemelha aos dogmas</p><p>religiosos, ao fazer das suas regras, normas “sagradas” a serem observadas no campo do jogo. E</p><p>os guardiões dessas regras são entes que detêm poderes delegados desde quando as modalidades</p><p>iniciaram seu processo de coesão, e um bom exemplo disso é a International Football</p><p>Association Board (IFAB), conselho que se reuniu pela primeira vez em 2 de junho de 1886, ou</p><p>seja, pouco mais de vinte anos depois da fundação da “Football Association” inglesa e que</p><p>motivou a constituição de associações do gênero por outros países do Reino Unido (Escócia,</p><p>Gales e Irlanda), tendo por missão uniformizar as regras deste jogo para fins de reger os</p><p>encontros entre eles, já que o futebol não era praticado da mesma maneira por todos. Assim foi</p><p>instituída a IFAB (por nós conhecida como International Board), cuja composição, em princípio,</p><p>previa a participação de dois representantes de cada uma das associações nacionais fundadoras,</p><p>sendo necessária unanimidade para alteração das regras do jogo. Até então não existia a FIFA.</p><p>5.5.15. Fundação da Federação Internacional de Futebol Association (FIFA): Seguindo o</p><p>exemplo dos dirigentes da ginástica e do remo, e também do ciclismo, que em 1900 constituiu a</p><p>Union Cycliste Internationale (UCI), Robert Guérin, secretário da Associação Francesa de</p><p>Futebol, segundo Castro (1998), procurou os dirigentes ingleses da precursora “Football</p><p>Association” (FA), que não se interessaram pela criação de uma Federação Internacional,</p><p>envolvidos que estavam com o seu campeonato (FA CUP), sucesso de público e de renda até</p><p>então jamais visto em atividades esportivas. Guérin não desanimou e sentiu-se livre para</p><p>convidar representantes de diversos países da Europa para o fim desejado, sendo que em 21 de</p><p>maio de 1904, em Paris, juntamente com delegados da Bélgica, Dinamarca, Holanda, Espanha,</p><p>Suécia e Suíça, decidiram pela fundação da “Fédération Internationale de Football Association”</p><p>(FIFA), sob a presidência de Robert Guérin, tendo a adesão também da associação nacional da</p><p>Alemanha. No estatuto da FIFA, de imediato, foi estabelecido a aceitação, por todos, das regras</p><p>da International Board (IFAB). Com isso, em menos de um ano os países do Reino Unido</p><p>juntaram-se à FIFA, que passou a ser presidida por um inglês (Daniel B. Woolfall) em 1906,</p><p>bem como em 1913 admitiram aumentar os quadros da IFAB com quatro representantes da</p><p>FIFA, já que tinham a entidade sob seu controle. A desordem provocada pela 1ª Guerra paralisou</p><p>as atividades da FIFA, que em seguida assistiu a morte de Woolfall (1918), passando a ser</p><p>administrada interinamente pelo presidente da Federação Francesa de Futebol, Jules Rimet, sem</p><p>apoio dos ingleses, que por razões políticas deixaram a entidade. Dirigente talentoso, o advogado</p><p>Rimet conseguiu ao longo do tempo contornar os conflitos com os ingleses, assumiu o controle</p><p>do futebol nos Jogos Olímpicos (1920) e idealizou a Copa do Mundo, cuja primeira edição</p><p>ocorreu em 1930, mantendo-se à frente da FIFA até 1954.</p><p>5.5.16. Hegemonia das Federações Internacionais (FIs) e suas exceções: O modelo de gestão</p><p>adotado pela ginástica, remo, ciclismo e futebol tornou-se referência e passou a orientar outros</p><p>dirigentes de diferentes modalidades esportivas, com poucos aceitando o profissionalismo do</p><p>atleta. A realização dos Jogos Olímpicos também estimulou a troca de experiências e fomentou a</p><p>constituição de federações internacionais. É nesse ambiente que surgiram a Fédération</p><p>Internationale d’haltérophilie (FIH) – 1905; Fédération Internationale d’Automobile (FIA) –</p><p>1906; International Union of National Shooting Federations and Associations (ISSF) – 1907;</p><p>International Yacht Racing Union (IYRU) – 1907; Fédération Internationale de Natation</p><p>(FINA) – 1908; International Amateur Athletics Federation (IAAF) – 1912; Fédération</p><p>internationale des Luttes Associées (FILA) – 1912; International Lawn Tennis Federation (ITF)</p><p>– 1913; Federation Internationale D’Escrime (FIE) – 1913; International Table Tennis</p><p>Federation (ITTF) – 1926, dentre outras. Exceção à regra de coesão internacional ficou por conta</p><p>do boxe, modalidade individual praticada desde muito cedo de modo profissional, alimentada</p><p>pelas bolsas de apostas e fortemente influenciada por promotores de lutas europeus e americanos,</p><p>que na disputa de mercado trataram de firmar contratos de exclusividade com os principais</p><p>boxeadores. Com isso, a gestão internacional do boxe assumiu feição complexa, organizada de</p><p>modo comercial na categoria profissional e apartada da categoria amadora, que por sua vez</p><p>integrava o programa dos Jogos Olímpicos desde 1904 (Saint Louis/EUA). Assim, tivemos a</p><p>constituição da Federação Internacional de Boxe Amador, em 1920, durante os Jogos Olímpicos</p><p>de Antuérpia, entidade esvaziada depois da 2ª Guerra, sendo que em 1946 é constituída a</p><p>International Boxing Association (AIBA), por iniciativa da inglesa Amateur Boxing Association,</p><p>juntamente com a Federação Francesa de Boxe. Em 1920 também foi constituída, nos Estados</p><p>Unidos, a National Boxing Association (convertida em Associação Mundial de Boxe – AMB, em</p><p>1962), cuidando do boxe profissional. Os cassinos de Las Vegas tornaram-se templo de lutas</p><p>memoráveis. Em contrapartida, os europeus organizaram a International Boxing Union (1935),</p><p>para promover campeonatos profissionais internacionais, sem depender dos americanos. Já em</p><p>1963, representantes de diversas organizações do mundo se reuniram no México, para fundar o</p><p>Conselho Mundial de Boxe (World Boxing Council – WBC), diante da crise de</p><p>representatividade em razão dessa pluralidade de direção, mas seguiram independentes. Não</p><p>bastasse, em 1988, é criada a Organização Mundial do Boxe (OMB), e surgem outras de menor</p><p>expressão.</p><p>5.5.17. Surgimento dos esportes de quadra: Por seu turno, os esportes de quadra, inventados a</p><p>partir do final do século XIX, como alternativa para o uso de ginásios que passaram a integrar o</p><p>panorama urbano, enquanto ambiente para prática de exercícios físicos e de ginástica,</p><p>especialmente por razões climáticas, espalharam-se pelo mundo, junto com as Young Men’s</p><p>Christian Association (YMCA), onde surgiu o basquetebol (1891), o voleibol (1895) e o futebol</p><p>de salão (1930), levando a fundação da International Basketball Federation (FIBA) – 1932, e;</p><p>Fédération Internatiolane de Volleyball (FIVB) – 1947. O handebol é iniciado na Alemanha, em</p><p>1919, em campo aberto e equipe de 11 jogadores, assumindo a feição atual (indoor e 7</p><p>jogadores), definitivamente, em 1946, sob comando da International Handball Federation (IHF),</p><p>fundada originalmente em 1927. Com relação ao futebol de salão, houve, em princípio (1971), a</p><p>constituição da Federação Internacional de Futebol de Salão (FIFUSA), com sede no Brasil e</p><p>João Havelange (comandante da CBD) na presidência do Conselho Executivo (até 1975), cujo</p><p>sucesso crescente anos depois despertou o interesse da FIFA (presidida por João Havelange</p><p>desde 1974), que iniciou gestões com o objetivo de incorporar a modalidade e esvaziar a</p><p>FIFUSA que antes ajudara a criar. Neste mesmo período houve tentativas frustradas de acordo e</p><p>aproximação entre as partes, mas a FIFUSA (que em 1985 altera o nome do jogo que conduz</p><p>para fut-sal, tentando manter seu controle) sucumbiu definitivamente em 2004, depois do COI ter</p><p>reconhecido a FIFA como entidade oficial para promover a modalidade nos jogos Pan-</p><p>Americanos de 2007 no Rio de Janeiro. Antes disso algumas associações sul-americanas criaram,</p><p>em 2002, em Assunção (Paraguai), a Associação Mundial de Futsal (AMF), mantendo-se</p><p>afastada da FIFA, atualmente com 26 países representados, sendo o Brasil por via da</p><p>Confederação Nacional de Futebol de Salão (http://www. cnfsfutsal.com.br/). Outros conflitos</p><p>podem ser identificados ao longo do tempo, como em esportes de origem asiática e sua</p><p>modelação aos padrões ocidentais, e formas alternativas de praticar uma modalidade tradicional</p><p>(ex.: Bicicross). Tem levado vantagem nessas ocasiões as federações centenárias, cuja tradição</p><p>pesa em seu favor, ainda mais quando gozam do status de modalidade olímpica, ou</p><p>arregimentam milhões de filiados pelo mundo, o que lhes dá melhores condições para firmar</p><p>posição, especialmente por se tratar de uma questão de aceitação social, e não, propriamente, um</p><p>conflito jurídico de propriedade intelectual ou comercial, já que o desporto é reconhecidamente</p><p>um patrimônio cultural da humanidade e direito de todos. Claro que sem deixar de respeitar às</p><p>marcas, siglas e eventos registrados. Sobre esse tema vamos avançar na segunda parte deste</p><p>livro.</p><p>5.5.18. Esporte e proletariado: É bem verdade que a prosperidade chegou para muitos na</p><p>Europa desde a Idade Moderna, entretanto, a esmagadora maioria da nova classe operária que</p><p>passou a habitar as cidades se viu à mercê de condições de vida degradantes. “As cidades que</p><p>cresciam eram sujas, e a maioria das casas eram pequenas” (BLAINEY, 2009, P. 265). A classe</p><p>obreira vivia miseravelmente, passava frio e fome, trabalhando nas fábricas à exaustão, inclusive</p><p>mulheres e crianças, quadro que só vai modificar a partir do final do século XIX com a</p><p>organização sindical (segundo teorias que se tornariam clássicas), obrigando governos a</p><p>adotarem leis trabalhistas assegurando direitos, dentre os quais, a redução progressiva da jornada</p><p>de trabalho e dia semanal de descanso, quando passam a ter tempo para praticar alguns esportes,</p><p>à semelhança da burguesia. Ironizando a soberba da elite quanto ao tema, comentava Russell:</p><p>A ideia de que os pobres devem ter direito ao lazer sempre chocou os ricos. Na Inglaterra do</p><p>início do século XIX, a jornada de trabalho de um homem adulto tinha quinze horas de duração.</p><p>Algumas crianças cumpriam, às vezes, essa jornada, e para outras a duração era de doze horas.</p><p>Quando uns abelhudos intrometidos vieram afirmar que a jornada era longa demais, foi-lhes dito</p><p>que o trabalho mantinha os adultos longe da bebida e as crianças afastadas do crime. (RUSSELL,</p><p>2002, p. 29).</p><p>Claro que a classe trabalhadora não possuía condições de praticar todas as modalidades,</p><p>especialmente aquelas que exigiam técnica apurada, local adequado e materiais dispendiosos. Por</p><p>sua vez, a facilidade de prática de modalidades como atletismo, boxe, rúgbi e futebol, difundidos</p><p>também profissionalmente, isto é, fora dos clubes de elite, atraíram a atenção, transformando este</p><p>último em esporte de grande popularidade (esporte-rei), com a fundação de clubes integrados por</p><p>trabalhadores. Entretanto, o sistema de organização do desporto que se firmava, por via das</p><p>Federações Internacionais e do COI, tinha uma nítida vocação elitista, inacessível ao</p><p>proletariado, de maneira que estes passaram a constituir suas próprias organizações, como a</p><p>francesa Federação Esportiva e Atlética Socialista (1909), dirigida por membros do Partido</p><p>Socialista, reunindo os clubes de obreiros e organizando competições entre si. Na Alemanha,</p><p>nasceu a Liga Atlética de Trabalhadores (1906). Na União Soviética, depois da Revolução de</p><p>1917 e início do governo socialista, as atividades físicas e desportivas passaram a receber do</p><p>governo um tratamento especial, mas diferente do formato adotado por países capitalistas, com a</p><p>abertura de cursos para a formação de monitores de cultura física, depois de institutos e</p><p>faculdades de educação física, assumindo características de esporte popular e com cunho</p><p>higienista, isto é, objetivando melhorar as condições de saúde da população urbana, diante de</p><p>doenças que assolavam cidades precariamente dotadas de saneamento básico. Assim a atividade</p><p>física e desportiva dotava os indivíduos de maior resistência. Segundo Diem (1966b, p. 31),</p><p>houve até a fundação da Internacional Desportiva Socialista de Trabalhadores, que organizou a</p><p>chamada “Olimpíada Obreira” (Frankfurt, 1925 e Viena, 1931), seguindo o dogma marxista de:</p><p>“nenhum contato com o mundo não socialista”, cessando esse movimento após a 2ª Guerra,</p><p>quando a sedução da vitória Olímpica assolou os soviéticos, que também se entregaram à busca</p><p>do alto rendimento no esporte, dentro do jogo da Guerra Fria. Conduzindo os países por detrás da</p><p>“Cortina de Ferro”, os russos aproximaram-se rapidamente dos norte-americanos, logo em sua</p><p>estreia, nos Jogos de 1952 (Helsinque), ameaçando sua hegemonia. “Foi nesse clima que surgiu</p><p>o chamado ‘chauvinismo da vitória’, que pode ser traduzido como a intenção da vitória a</p><p>qualquer custo, em detrimento do fair-play” (TUBINO, 1993, p. 18). Em uma das últimas obras</p><p>de sua lavra Tubino lembra:</p><p>Já nos Jogos de Helsinque, a mídia ocidental, ao perceber que os Estados Unidos (EUA) tinham</p><p>mais medalhas que a União Soviética, que pela primeira vez disputava os Jogos, convencionou</p><p>uma classificação priorizando as medalhas de ouro e, com isto, enalteceu uma frágil</p><p>superioridade esportiva capitalista. Devido à prática esportiva feminina, a então União Soviética</p><p>já era a primeira colocada nos Jogos Olímpicos do México (1968) e nos Jogos de Montreal</p><p>(1972); os EUA eram os terceiros colocados, atrás da ex-Alemanha Oriental e União Soviética.</p><p>Essa classificação também já acontecia nos Jogos Olímpicos de Inverno (TUBINO, 2010, p. 25).</p><p>Não por acaso, constata-se desde então casos de suborno e doping no esporte. Freitas e Barreto</p><p>(2012, p. 114) relatam que ex-atletas da Alemanha Oriental, depois da queda do Muro de Berlim,</p><p>“revelaram ser vítimas de um sistema estatal de doping que incluía injeções de testosterona”.</p><p>D’outro giro, quanto mais tempo de lazer adquiriam, mais se faziam presentes os operários em</p><p>atividades esportivas, desenvolvendo um conceito de esporte sindical, que no Brasil foi</p><p>concebido como desporto classista, na década de 1940, fomentado por meio de Associações</p><p>Desportivas Classistas (ADCs). Russell (2002, p. 27), defendendo o direito essencial ao lazer,</p><p>anota que “a moderna técnica trouxe consigo a possibilidade de que o lazer, dentro de certos</p><p>limites, deixe de ser uma prerrogativa de minorias privilegiadas e se torne um direito a ser</p><p>distribuído de maneira mais equânime por toda a coletividade”. Nesse quesito, o esporte sempre</p><p>foi visto como elemento de lazer das massas.</p><p>5.5.19. Esporte e política internacional: Em 1931, a cidade de Berlim foi escolhida como sede</p><p>dos XI Jogos Olímpicos de 1936. Até então, Adolf Hitler não havia ascendido como líder</p><p>supremo do Império Alemão, fato ocorrido em 1934. De início, o Führer não demonstrou</p><p>interesse pela competição, mas logo foi convencido pelo Ministro da Propaganda do III Reich,</p><p>Paul Joseph Goebbels, a usar o evento como forma de promoção da raça ariana, ferrenhamente</p><p>defendida por ele e seus ideais nazistas. Com isso, os Jogos Olímpicos receberam investimentos</p><p>jamais vistos, e uma atenção extraordinária do governo, com a construção do Estádio Olímpico e</p><p>capacidade de receber até 100.000 espectadores. A máquina estatal também se aplicou na</p><p>formação de instrutores e atletas (Juventude Hitlerista), com milhares de instalações e</p><p>equipamentos esportivos construídos no país. Imaginavam com isso, fazer dos Jogos um grande</p><p>palanque de propaganda nazista, e de exaltação da raça ariana, agindo fortemente nos bastidores</p><p>para afastar judeus do quadro de competidores, além de desprezar os negros. Mas a história dessa</p><p>Olimpíada foi marcada pelo extraordinário desempenho de um atleta negro, norte-americano,</p><p>Jesse Owens, ao conquistar quatro medalhas de ouro em provas de atletismo (100 e 200 metros</p><p>rasos, salto em distância e revezamento 4x100 metros), para desgosto de Hitler, que se recusou</p><p>em entregar-lhe as medalhas, como era de praxe. Dizia que jamais deixaria se fotografar</p><p>apertando as mãos de um negro. A importância atribuída ao esporte depois da consolidação do</p><p>Movimento Olímpico, e o gigantismo dos Jogos de 1936, atraíram definitivamente a atenção dos</p><p>governos pelo mundo, em que pese a não realização dos Jogos Olímpicos de 1940 e 1944, e da</p><p>Copa do Mundo de Futebol de 1942 e 1946, dentre outros eventos esportivos internacionais,</p><p>devido à 2ª Guerra Mundial. Voltando a paz, os Jogos são retomados em 1948 (Londres),</p><p>marcados pelo banimento</p><p>da Alemanha e Japão, e com muito sacrifício dos ingleses na sua</p><p>viabilização, mas retomando seu fôlego, edição após edição, inclusive com o início das</p><p>transmissões pela TV, apesar do pouco alcance da época. Comitês Olímpicos Nacionais foram</p><p>sendo aos poucos constituídos e fortalecidos, associações nacionais cada vez mais buscavam</p><p>vinculação com federações internacionais e leis passaram a tratar da organização do esporte em</p><p>seus países, algumas com caráter intervencionista. De outro lado, o Estado assumia cada vez</p><p>mais a condição de provedor de instalações esportivas e passou a subsidiar despesas de custeio</p><p>das seleções nacionais, bem como a crescente valorização da educação física em currículos</p><p>escolares permitiu o ensino do esporte dentro de uma perspectiva pedagógica e mais</p><p>democrática. A atração de olhares políticos fez dos Jogos Olímpicos palco de protestos, para</p><p>desespero do COI. Nos Jogos de 1956 (Melbourne), assistiu-se, pela primeira vez, a desistência</p><p>de participação por iniciativa política da Espanha, França e Suíça, em manifesto contra a invasão</p><p>da Hungria pela União Soviética. E não parou por aí. Atletas do Egito, Iraque e Líbano não</p><p>foram aos Jogos por decisão de seus governos, em protesto à tomada do Canal de Suez pelos</p><p>israelenses, amparados pela França e Inglaterra; sendo que a China, devido à aceitação de</p><p>Taiwan nos Jogos, também se recusou a participar. “Mas essas perdas foram parcialmente</p><p>compensadas pela inclusão – pela primeira vez – de uma equipe mista da Alemanha Ocidental e</p><p>Oriental” (COUSINEAU, 2004, p. 148). Avançando aos Jogos da cidade do México (1968), vê-</p><p>se que foi palco de protesto de atletas negros norte-americanos, ao baixarem a cabeça e</p><p>levantarem o braço com o punho cerrado vestindo uma luva preta cada um, quando estavam no</p><p>pódio, durante a cerimônia de premiação da corrida de 200 metros, na qual conquistaram o ouro</p><p>(Tommie Smith) e o bronze (John Carlos), fazendo referência à saudação “Black Power” dos</p><p>“Panteras Negras”, grupo político que fez história no combate à discriminação racial nos EUA,</p><p>ato não tolerado pelo COI, que sempre proibiu manifestações de cunho político, de maneira que</p><p>foram afastados dos Jogos, mas não perderam suas medalhas. Na edição seguinte (Munique -</p><p>1972), extremistas árabes do grupo “Setembro Negro”, pretendendo a libertação de 200</p><p>prisioneiros do Estado de Israel e um avião para fuga, atacaram atletas olímpicos israelenses na</p><p>Vila Olímpica, em ação que terminou com a morte de 11 deles, mais 5 terroristas e 1 policial, em</p><p>evento que ficou conhecido como o “Massacre de Munique”, paralisando por 34 horas todas as</p><p>competições e tomando o noticiário internacional. Segundo Freitas e Barreto (2012, p. 112),</p><p>cogitou-se seriamente o cancelamento definitivo dos Jogos Olímpicos, mas o então presidente do</p><p>COI, o norte-americano Avery Brundage, decidiu pela continuidade, pronunciando a frase: “The</p><p>Games must go on” (Os Jogos devem continuar). Já em Montreal (1976), 32 países, sendo 24</p><p>deles africanos, desistiram da competição, como forma de protesto ao intercâmbio desportivo</p><p>(disputa de uma partida entre seleções de rúgbi) da Nova Zelândia com a África do Sul (banida</p><p>dos Jogos em 1964), que mantinha Nelson Mandela aprisionado e impunha o regime de</p><p>segregação racial conhecido como apartheid (que perdurou de 1948 até 1994). Em 1980, o</p><p>boicote americano e de outros 64 países aliados aos Jogos de Moscou, devido à invasão do</p><p>Afeganistão pela União Soviética, no ano anterior, seguiu afetando a reputação do evento e seu</p><p>caráter apolítico, que por sua vez, junto com países do bloco socialista (13 países), retaliou a</p><p>edição seguinte, realizada em Los Angeles (1984). Depois disso, em Seul (1988) houve um</p><p>pequeno boicote liderado pela vizinha Coréia do Norte, e finalmente cessaram tais atos políticos,</p><p>diante de uma postura mais incisiva do presidente do COI, o espanhol Juan Antonio Samaranch,</p><p>empossado em 1980.</p><p>Ele usaria suas habilidades diplomáticas aguçadas para despolitizar a agenda, de modo que o</p><p>termo “boicote” pudesse ser banido do léxico olímpico e o câncer que minava os Jogos pudesse</p><p>ser curado. [...] Ele sentou-se e conversou pessoalmente com cada chefe de Estado e com um</p><p>leque de líderes de governos, explicando o papel do Movimento Olímpico. Explicou também</p><p>como os boicotes não apenas os prejudicavam, mas também abalavam o potencial dos Jogos</p><p>como uma ferramenta para a paz (PAYNE, 2006, p. 30).</p><p>Por este caminho, os Jogos Olímpicos retomaram seu rumo, voltando a cumprir o papel de</p><p>promover a paz mundial e unir os povos por meio do esporte, colocando de lado disputas</p><p>políticas. Além disso, abandonou-se o conceito de amadorismo e fortaleceu-se o combate ao</p><p>doping, de maneira que os Jogos passaram a condição de evento de elevadíssimo nível técnico</p><p>desportivo, também muito explorado comercialmente, o que para alguns, representou lançar</p><p>mão, definitivamente, dos ideais do Barão de Coubertin.</p><p>5.5.20. Do empirismo à ciência do esporte (Era da técnica): A participação do Estado no</p><p>ambiente esportivo provocou uma mudança de paradigma, em especial depois dos Jogos</p><p>Olímpicos de Berlim (1936). O investimento público em instalações e equipamentos esportivos e</p><p>a incorporação da educação física como área de formação acadêmica proporcionaram condições</p><p>jamais vistas para investigação científica da atividade desportiva, que deixou, aos poucos, de ser</p><p>conduzida empiricamente, somente com base em tradições. A corrida, frenética, pelo melhor</p><p>desempenho em competições internacionais, na busca por posições de destaque, modificou a</p><p>forma de seleção e treinamento dos atletas, que passaram a ser submetidos a métodos inovadores</p><p>e técnicas desenvolvidas com base em pesquisas científicas, cada vez mais frequentes, sempre</p><p>em busca da maximização de desempenho. O doping também apareceu neste momento, para</p><p>flagelo dos atletas, com aplicações de esteroides anabolizantes, testosterona em mulheres,</p><p>transfusões de sangue e outras anomalias. A Guerra Fria entre os países do bloco capitalista e</p><p>socialista, liderados pelos EUA e URSS, impulsionou investimentos em estruturas esportivas, na</p><p>formação de atletas e preparação das equipes, com seguidas quebras de recordes e feitos</p><p>extraordinários (ainda que sacrificando atletas pela especialização precoce e uso de doping),</p><p>atraindo cada vez mais a atenção do público e da mídia.</p><p>5.5.21. A segunda onda de mídia e transportes revoluciona o desporto: O clubismo e o</p><p>nacionalismo invocado pelo esporte fizeram dele um objeto de contemplação cotidiana por boa</p><p>parte da população mundial em meados do século vinte, quando então a recém-criada televisão já</p><p>se mostrava interessada pelo seu conteúdo vibrante e dinâmico, iniciando assim a transmissão de</p><p>eventos esportivos (videoteipes, e depois, ao vivo), aumentando a visibilidade de atletas, clubes e</p><p>competições, somando-se ao que já era veiculado amplamente pelo rádio comercial, jornais e</p><p>revistas especializadas. Os meios de transporte, mais evoluídos, inclusive a aviação aérea</p><p>comercial, facilitaram os deslocamentos para encontros esportivos continentais e mundiais. Em</p><p>Roma, 1960, “os Jogos começavam a se tornar o megaevento dos dias de hoje, com transmissão</p><p>pela TV para mais de cem países e recordes de participação – pela primeira vez, o número de</p><p>atletas passou de 5 mil” (FREITAS; BARRETO, 2012, p. 99). Na edição seguinte (Tóquio-64),</p><p>os japoneses gastaram três bilhões de dólares na organização do evento, contando com o apoio</p><p>dos Estados Unidos, em edição marcada pelo início das transmissões via satélite das</p><p>competições, alcançando um bilhão de telespectadores espalhados pelo mundo. Não demorou ao</p><p>COI perceber a força do evento que tinha em mãos, de modo que passou a exigir das emissoras</p><p>de televisão o pagamento pelos direitos de transmissão (broadcast) dos Jogos Olímpicos, sendo</p><p>fortemente combatido pelos executivos do ramo, já que não adotava a mesma postura com o</p><p>rádio e a mídia impressa, sofrendo inclusive retaliação na divulgação do evento. Com muita</p><p>dificuldade e sem alternativa de novas</p><p>receitas (baseada essencialmente na bilheteria dos Jogos),</p><p>frente ao crescente custo de organização, o COI soube resistir à pressão e conseguiu impor sua</p><p>vontade, sendo que a concorrência entre as emissoras foi determinante neste sentido,</p><p>estabelecendo um marco decisivo na evolução do esporte, já que a partir de então ficou claro que</p><p>os eventos esportivos não eram simplesmente um fato noticioso, mas um produto, passível de</p><p>comercialização, cuja titularidade pertencia aos seus promotores, originando o que depois viria a</p><p>ser definido como “direito de arena”. Analisando a evolução dos Jogos Olímpicos e da televisão,</p><p>Michael Payne conclui que: “Os Jogos deram à televisão alguns de seus momentos mais</p><p>emocionantes, estabelecendo regularmente novos recordes de audiência. Do trágico ao</p><p>verdadeiramente sublime, os Jogos Olímpicos continuam oferecendo a todos imagens notáveis e</p><p>inspiradoras” (PAYNE, 2006, p. 41). Todavia, a venda de direitos para TV cobra seu preço,</p><p>quando as emissoras passam a exercer influência massiva sobre os horários das competições,</p><p>nem sempre o mais agradável e saudável para os atletas.</p><p>O poder das emissoras é tal que, atualmente, é a rede norte-americana NBC quem decide em</p><p>grande medida o calendário das Olimpíadas, graças a bilionários contratos de exclusividade. Para</p><p>assegurar os direitos de transmissão dos Jogos Olímpicos até 2020, a emissora pagou ao Comitê</p><p>Olímpico Internacional US$ 4,38 bilhões já em 2011 (RIBEIRO JR; et al. 2014, p. 270).</p><p>Há casos até de modificação nas regras do esporte ( v.g. voleibol e basquete), para fazer da</p><p>modalidade algo viável de inserção controlada em grades de programação (tempo determinado),</p><p>bem como das inserções comerciais pelo fracionamento dos tempos de jogo ou instituição dos</p><p>tempos técnicos. Para determinados segmentos isso representou uma entrega do esporte ao</p><p>capitalismo selvagem, para outros, trata-se de um processo natural de mercantilismo que</p><p>representa a própria salvação do esporte (de alto rendimento), sendo uma ingenuidade imaginar</p><p>sua viabilidade sem recursos da iniciativa privada, exploração em mídia e por meio de ações de</p><p>marketing.</p><p>5.5.22. Surgimento da indústria e do marketing esportivo (mercantilização): Para</p><p>reconstruirmos um pouco mais da história do esporte contemporâneo, retornamos à década de</p><p>1920, na Alemanha, quando dois irmãos resolveram iniciar a produção de calçados esportivos,</p><p>dentro da pequena fábrica do pai, vendendo algumas sapatilhas para ginástica e o protótipo de</p><p>um calçado para corridas, tudo em caráter experimental. Eram Adolf (Ad) e Rudolf Dassler, que</p><p>depois iriam fundar a Adidas e a Puma, respectivamente, precursoras definitivas da indústria de</p><p>calçados e roupas esportivas.</p><p>Os dois tinham uma proposta inovadora: uma fábrica de calçados usados exclusivamente para</p><p>praticar esportes. Como esse ainda era um passatempo incomum, a ideia não parecia muito</p><p>realista. Apesar disso, os Dassler insistiram com tanto empenho que a fábrica começou a receber</p><p>pedidos de apaixonados por esportes de toda a Alemanha (SMIT, 2007, p. 13).</p><p>O sucesso da iniciativa acompanhava o crescente interesse das pessoas pelos esportes, cada vez</p><p>mais intenso. Com o pioneirismo no ramo e a febre do futebol, esporte bretão que invadiu a</p><p>Europa nesta mesma época, os irmãos Dassler começaram também a fabricar e vender chuteiras</p><p>(botinhas), para atender aos atletas e clubes que se formavam aos montes. Depois de enfrentar os</p><p>efeitos da “Crise de 1929” (Crash da Bolsa de Nova York), as insanidades de Hitler e do</p><p>nazismo beneficiaram os irmãos produtores de calçados esportivos, tanto mais pela realização</p><p>dos Jogos Olímpicos em Berlim (1936 – “Nazi-Olimpíadas”) e a política interna de estímulo à</p><p>prática de esportes pela “Juventude Hitlerista”, vitrine da propalada “raça ariana”, na visão do</p><p>Führer. A fábrica de calçados afundou com a Alemanha ao final da 2ª Guerra, os irmãos</p><p>romperam a sociedade em meio a intrigas familiares e Rudolf criou sua própria marca, a Puma,</p><p>depois de libertado da prisão pela acusação de vínculos com o nazismo, sendo que Ad Dassler</p><p>adotou as iniciais de seu nome para constituir a Adidas, passando em seguida a confrontarem-se</p><p>ferozmente na disputa pelo mercado que voltou a crescer depois da guerra. Dentre as estratégias</p><p>de divulgação das suas marcas destacou-se o patrocínio de atletas, equipes e eventos esportivos,</p><p>em princípio, apenas com a doação de calçados. É certo que antes da Adidas e da Puma já</p><p>existiam produtores de materiais esportivos, como a norte-americana A. G. Spalding & Bros, que</p><p>forneceu os aparelhos de ginástica dos Jogos Olímpicos de 1904 (Saint Louis), além de outros</p><p>concorrentes que podem ser mapeados pelo mundo, mas a ferrenha luta entre os irmãos Dassler,</p><p>que extrapolava questões comerciais, deu um tom de agressividade incomum àquela época,</p><p>encarecendo os contratos de patrocínio esportivo, para a alegria dos atletas, clubes e federações.</p><p>O mercado se expandiu para as roupas esportivas de passeio e calçados populares, de modo que</p><p>atingiu um mercado global e ditou a nova moda esporte (sportswear), com as pessoas</p><p>incorporando o spirit sports. Usar tênis e roupas esportivas tornou-se um hábito da população do</p><p>hemisfério ocidental. Por seu tempo, as Federações Internacionais foram baixando a guarda</p><p>quanto às restrições ao patrocínio de atletas, equipes e exibição das marcas do fornecedor nos</p><p>uniformes, já que todos necessitavam de financiamento para custeio da atividade atlética, cada</p><p>vez mais dispendiosa, inclusive as próprias entidades de administração. Na segunda metade do</p><p>século vinte, Horst Dassler, filho de Adolf, seguindo seus passos e valendo-se do trânsito</p><p>facilitado junto aos dirigentes do esporte mundial, passou a enxergar além da concorrida</p><p>indústria de materiais esportivos, iniciando atividade no ramo de formatação e captação de</p><p>patrocínios e negociação de direitos de transmissão dos principais eventos esportivos mundiais</p><p>que se consolidavam, culminando com a fundação, em 1982, da ISL (International Sports and</p><p>Leisure), atravessando os contratos da FIFA e do COI, rompendo laços de outras pioneiras</p><p>agências com as quais chegou a ter parceria de negócios.</p><p>Ao longo dos anos, Dassler construiu relacionamentos estreitos com os líderes das Federações</p><p>Esportivas internacionais. Ele os ajudou a entender o potencial por trás da parceria com a</p><p>comunidade empresarial e com empresas como a Coca-Cola, por exemplo, na promoção e</p><p>financiamento dos esportes no mundo inteiro. Primeiro nos anos 1970, com a agência de</p><p>marketing esportivo com sede na Grã-Bretanha, a West Nally, e depois na década de 1980, com</p><p>a ISL com sede na Suíça, Dassler mostrou visão e objetividade sem paralelos (PAYNE, 2006, p.</p><p>89-90).</p><p>Payne (2006, p. 101) defende que Horst “ajudou a estabelecer os parâmetros de um programa</p><p>que revolucionou o destino financeiro do COI e mudou a base de patrocínio de toda a indústria</p><p>do marketing esportivo”. Refere-se ao TOP (The Olympic Partner), um plano de cotas de</p><p>patrocínio exclusivo negociado pelo COI e que abrange ciclos olímpicos e não apenas os</p><p>períodos de realização dos Jogos quadrienais, muito disputado pelas principais corporações</p><p>multinacionais que buscam uma plataforma diferenciada de comunicação com o mercado</p><p>mundial de consumidores, constituindo-se assim como uma das principais fontes de receitas do</p><p>Movimento Olímpico, ao lado da comercialização dos direitos de transmissão do evento,</p><p>licenciamento de produtos e venda de ingressos. Outro personagem de destaque na consolidação</p><p>do marketing esportivo foi Patrick Nally, que atua até hoje no ramo (vide:</p><p>http://patricknally.com/).</p><p>Com a ajuda de Dassler e de Patrick Nally, então ainda sócio do dono da Adidas na área de</p><p>marketing esportivo, Havelange assinaria, no dia 13 de maio de 1976, em Londres, o primeiro</p><p>grande contrato de sua era à frente da Fifa. Previa desembolsos de 7 milhões de dólares a cada</p><p>quatro anos, em troca da presença ostensiva do logotipo da Coca-Cola nos espaços de</p><p>merchandising de todas as competições internacionais</p><p>da Fifa (RODRIGUES, 2007, p. 189).</p><p>Certo é que, desde então, adentramos em um período de patrocínio vigoroso de atletas, equipes e</p><p>eventos esportivos, inaugurando discussões sobre direito de arena, direito de imagem do atleta,</p><p>direito de nome (naming rights) e outros mecanismos e instrumentos de marketing ligados ao</p><p>esporte, viabilizando novas receitas para incremento da sua prática, com ênfase no alto</p><p>rendimento. Essa grandiosa dimensão financeira, no âmbito das até então frágeis entidades</p><p>transnacionais de administração do desporto, trouxe consigo sérias questões de abuso de poder,</p><p>corrupção e outros desvios de conduta de dirigentes e executivos, ávidos em obter para si uma</p><p>parte dessa riqueza, lembrando que as entidades desportivas, em sua essência, foram constituídas</p><p>como associações sem fins lucrativos, tornando impraticável a distribuição de lucros aos seus</p><p>dirigentes (não são acionistas).</p><p>5.5.23. Abuso de poder, corrupção e outros desvios de conduta no esporte: Muitos dos</p><p>negócios conduzidos pela ISL, de Horst Dassler, foram depois denunciados como de</p><p>administração temerária, envolvendo fraudes, tráfico de influência e corrupção, incluindo o</p><p>pagamento de volumosas propinas para dirigentes esportivos. Cautelosa, Barbara Smit (2007, p.</p><p>185) afirma: “Em algumas negociações feitas por Horst, era difícil estabelecer uma linha</p><p>divisória entre o que era cortesia e o que era suborno”. Bem mais incisivo, David Yallop (1998,</p><p>p. 27), concluía que: “Se alguém fosse alguém no mundo dos esportes nas décadas de 1970 e</p><p>1980, e Dassler julgasse que valia a pena comprá-lo, comprava-o”. Horst, com câncer, faleceu</p><p>prematuramente em 1987, aos 51 anos de idade, seguindo a empresa por ele deixada com suas</p><p>práticas, agora sob o comando de Jean-Marie Weber, conhecido como o “homem da mala” de H.</p><p>Dassler, encarregado por ele de distribuir propinas em busca de acordos comerciais junto aos</p><p>dirigentes desportivos por mais de duas décadas, em favor da Adidas e depois da ISL. “Por</p><p>muitos anos a ISL tinha obtido sucessivos e lucrativos contratos com a Fifa, e por anos a empresa</p><p>fez pagamentos secretos a dirigentes do futebol, incluindo a própria Fifa” (JENNINGS, 2011, p.</p><p>262). Mas sem Horst não tardou para que a empresa perdesse completamente o controle da</p><p>situação diante desse ambiente nefasto de negócios, e somado ao fechamento apressado de</p><p>contratos que não deram o retorno esperado em outras modalidades esportivas, viu-se a falência</p><p>da empresa, decretada em maio de 2001, com dívidas acumuladas estimadas em 300 milhões de</p><p>dólares. “Na história da Suíça, ficou atrás apenas do desmoronamento da Swiss Air” (RIBEIRO</p><p>Jr. et al.; 2014, p. 274). No Brasil e no mundo, outras modalidades e organizações já foram alvo</p><p>de denúncias de fraude, corrupção, manipulação de resultados, favorecimentos de terceiros,</p><p>desvios de dinheiro, entre outras mazelas, sendo o mais recente o escândalo de corrupção na</p><p>FIFA. De se lembrar que um dos casos de grande repercussão até então foi a escolha da cidade-</p><p>sede dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2002, vencido por Salt Lake City (EUA), sendo depois</p><p>descoberto que no processo de seleção foram distribuídas vantagens aos membros do COI com</p><p>direito a voto, como a concessão de bolsas de estudos em universidades americanas, benefícios</p><p>médicos e terrenos em loteamentos na cidade, além de dinheiro, atraindo mais de setenta</p><p>membros em visita in loco em meio a candidatura. Após denúncia foram abertas investigações</p><p>pelo Departamento de Justiça americano, pelo Comitê Organizador Local (COL) e pelo COI,</p><p>motivando a expulsão de sete membros, dentre outras sanções aos demais envolvidos.</p><p>Com a imagem extremamente arranhada, o COI propôs e introduziu uma série de mudanças no</p><p>processo de candidaturas olímpicas e em seu próprio modus operandi. Limitou os presentes a</p><p>seus membros, estabelecendo tetos de preços, restrição para mandatos de presidente e criou</p><p>normas de transparência. Seu presidente à época, o espanhol Juan Antonio Samaranch, que</p><p>estava no poder desde 1980, decidiu não tentar novo mandato – o belga Jacques Rogge ascendeu</p><p>à presidência em 2001, de onde só saiu em 2013. O COI batalhou anos para resgatar sua</p><p>credibilidade depois do escândalo, mas manteve os Jogos de Inverno de 2002 em Salt Lake City.</p><p>De certa forma, a polêmica também serviu para a entidade lançar em 2014 a Agenda 2020,</p><p>pacote de 40 itens para modernizar e lhe tornar mais transparente. (Fonte com acesso em jun/15:</p><p>http://olimpicos.blogfolha.uol. com.br/2015/06/08/coi-tambem-passou-por-escandalo-que-gerou-</p><p>investigacao-da-justica-dos-eua/).</p><p>Diante desses fatos, é preciso reconhecer que o “mundo do esporte” também possui suas</p><p>vicissitudes, e nem tudo é fair-play. Como já disse Esteves (1975, p. 11): “O que há de</p><p>característico e fundamental, no desporto, é, justamente, o que define e caracteriza a sociedade</p><p>em que ele se realiza”, isto é, refletindo suas estruturas sociais. Na mesma linha Tubino (1993, p.</p><p>48) pontua que “o esporte, como em qualquer área de atuação humana, possuí vícios, questões e</p><p>grandes problemas”. Logo, depõe contra o esporte a descoberta e comprovação de casos de</p><p>corrupção envolvendo dirigentes do mais alto escalão de entidades representativas nacionais e</p><p>internacionais; desvio de finalidade de recursos públicos; gestão temerária; manipulação de</p><p>resultados envolvendo árbitros e atletas com a “máfia das apostas”; o doping desmascarando</p><p>ídolos consagrados; formação precoce e pedofilia; a violência de grupos de torcedores fanáticos,</p><p>provocando tragédias em estádios e fora deles; dentre outras máculas. Reações da sociedade e</p><p>dos governos acontecem, enrijecendo a legislação desportiva e promovendo ações no âmbito do</p><p>Poder Judiciário, visando inibir tais condutas e punir os transgressores. Os dirigentes de</p><p>entidades, acuados, tendem a aprimorar suas relações institucionais e comerciais, adotando</p><p>princípios de transparência administrativa. Já os atletas de alto nível, de tempos em tempos,</p><p>também demonstram seu descontentamento, individualmente ou reunidos em grupo, como é o</p><p>caso recente, no Brasil, dos movimentos Atletas pelo Brasil e Bom Senso FC. Por outro lado, os</p><p>desvios de conduta de alguns dirigentes, por mais que sejam investigados e punidos, acaba por</p><p>abalar a credibilidade das instituições esportivas em geral, comprometendo apoios e patrocínios.</p><p>5.5.24. Os esportistas sem patrocínio: Se por um lado abunda e jorra dinheiro em alguns</p><p>setores da elite do esporte de alto rendimento, outros, em sua esmagadora maioria, vivem à</p><p>míngua do interesse de patrocinadores e veículos de comunicação, dependendo de suporte e</p><p>investimentos públicos, senão pagando suas próprias despesas. Neste ponto, frise-se, a ativação</p><p>do patrocínio esportivo e a exploração do direito de arena é proporcionalmente vinculada à</p><p>capacidade de um atleta, equipe ou evento, atrair a atenção do grande público (consumidores</p><p>potenciais), e pouco leva em consideração questões filantrópicas, senão com o raro intuito de</p><p>promover ações de responsabilidade social, cujas verbas e finalidades são infinitamente menores</p><p>e distintas, se comparadas ao marketing esportivo. Tal marco de seletividade dos patrocinadores</p><p>e da mídia em geral afeta o ânimo dos competidores em fases iniciais da carreira, ou por toda a</p><p>vida em modalidades cuja projeção não atinja proporções significativas (esportes pouco</p><p>difundidos), incluindo-se os eventos de categoria secundária (fora do eixo adulto/ principal,</p><p>como, por exemplo: categorias de base ou máster; divisões intermediárias e de acesso;</p><p>competições locais e regionais). Quanto ao esporte educacional e de participação, menos ainda se</p><p>pode esperar em termos de marketing esportivo, senão ações de responsabilidade social. Em</p><p>razão disso, existe uma permanente escassez de recursos aos não abrangidos pela grande mídia,</p><p>frustrando e criando um círculo vicioso que achata os circuitos “não comerciais”, na mesma</p><p>medida em que dilata e encarece os investimentos na ponta das competições de alto impacto</p><p>midiático. Nesse cenário, a perspectiva</p><p>de financiamento da atividade desportiva passa a</p><p>depender, quase que exclusivamente, do apoio governamental (bolsas, repasses e convênios) e de</p><p>instrumentos de incentivo “fiscal” ao esporte, estimulando empresas a apoiarem o segmento, ao</p><p>permitir deduções no recolhimento de impostos. Em último caso, resta ao desportista financiar</p><p>sua atividade com recursos próprios. Neste sentido, observa Coleman:</p><p>[...] na sociedade moderna, o esporte representa mais do que a erupção espontânea da energia</p><p>lúdica. O esporte é patrocinado e financiado por empresas comerciais, inculcado nas escolas,</p><p>regulamentado por comissões esportivas e mesmo supervisionado pelo próprio Estado. Órgãos</p><p>da sociedade alocam verbas para o esporte e determinam se os orçamentos contemplam esportes</p><p>para todos ou apenas esportes para uma elite de atletas (in: Rev. Concilium, 1989, p. 26).</p><p>5.5.25. Manifestos sobre o desporto e sua democratização: Nos últimos quarenta anos, diante</p><p>das forças atuantes do poder econômico e todo seu viés de seletividade na escolha dos melhores</p><p>produtos esportivos, foram-se relegando as práticas de interesse educacional e social, restando ao</p><p>Estado atuar neste sentido, ao assegurar o desporto como um direito social, dentro das políticas</p><p>públicas de promoção do bem</p><p>-estar social. Essa perspectiva foi se consolidando nos países mais desenvolvidos desde a</p><p>segunda metade do século vinte, acompanhado da progressiva ampliação do tempo de lazer da</p><p>classe trabalhadora, sendo o esporte um dos bens culturais de interesse de boa parte da</p><p>população, que por meio da sua prática encontra satisfação física e psíquica, em busca da</p><p>almejada qualidade de vida, ou mesmo em busca de excitação, como defendia Elias e Dunning</p><p>(1985).</p><p>O quadro esportivo negativo do Período histórico do uso político-ideológico do Esporte gerou</p><p>reações importantes, que aos poucos foram criando as bases do Esporte Contemporâneo. Entre as</p><p>reações, podem-se citar: a) a criação do Movimento “Esporte para Todos” (EPT); b) os</p><p>Manifestos das organizações internacionais; c) a adesão da intelectualidade internacional às</p><p>questões do esporte (TUBINO, 2010, p. 26).</p><p>No plano do direito internacional a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação,</p><p>a Ciência e a Cultura), criada em 1945 para disseminar uma cultura de paz no mundo após a 2ª</p><p>Guerra, alguns anos depois passou a debater assuntos relacionados ao desporto, realizando</p><p>estudos sobre sua função educativa em diversos países-membros, culminando na realização de</p><p>uma Conferência Internacional, em 1959 (Finlândia), que germinou a constituição do Conselho</p><p>Internacional de Educação Física e Desportos (CIEPS), levado a efeito em 1960, por ocasião dos</p><p>Jogos Olímpicos (Roma). Já nos Jogos seguintes (Tóquio/1964) o CIEPS apresentou sua</p><p>primeira manifestação sobre o desporto, formalizada em 1968, por meio do documento</p><p>denominado MANIFESTO MUNDIAL DO ESPORTE. Destaca Noronha Feio (1978, p. 186)</p><p>que “deste estudo salienta-se a importância do desporto para toda a vida e o papel relevante da</p><p>escola na formação de hábitos e gostos pelas práticas desportivas e, ainda, os problemas da alta</p><p>competição e a ameaça ao espírito do fair-play”. Em seguida tivemos o primeiro MANIFESTO</p><p>MUNDIAL DA EDUCAÇÃO FÍSICA (1970), da Federação Internacional de Educação Física</p><p>(FIEP); e o MANIFESTO DO FAIR PLAY (1972), do Comité Internacional para o Fair Play</p><p>(CIFP) da UNESCO.</p><p>Em 1976, durante a I Reunião de Ministros de Esporte (em Paris), ficou decidido que até o final</p><p>da década a UNESCO se responsabilizaria pela publicação e divulgação de um documento com</p><p>diretrizes efetivas para que governos e populações em geral se referenciassem nas questões</p><p>relativas ao esporte, para um mundo melhor. Esse documento foi a Carta Internacional de</p><p>Educação Física e Esporte (UNESCO/1978). Nessa Carta, logo no artigo primeiro, ficou o</p><p>reconhecimento de que as práticas esportivas são direito de todas as pessoas. Esse pressuposto</p><p>rompeu com a perspectiva anterior do Esporte Moderno de que o Esporte era uma prerrogativa</p><p>dos talentos e anatomicamente indicados, isto é, fez o Esporte sair da perspectiva única do</p><p>rendimento para a perspectiva do direito de todos às práticas esportivas. Nesta nova perspectiva,</p><p>o Esporte passou, na sua ampliada abrangência social, a compreender todas as pessoas,</p><p>independentemente das suas idades e de suas situações físicas. Depois da Carta da UNESCO,</p><p>todos os documentos do Esporte (Carta Olímpica, Agendas, Conclusões de Congressos,</p><p>Manifestos etc.) passaram a também reconhecer o direito de todos às práticas esportivas,</p><p>defendendo a inclusão social no esporte (TUBINO, 2010, p. 28).</p><p>Seguindo com afirmações intensas em favor dos benefícios da prática regular de esportes pela</p><p>população em geral, tivemos, em 1975, a divulgação da CARTA EUROPÉIA DO ESPORTE</p><p>PARA TODOS, expedida pelo Conselho da Europa, incorporando a iniciativa da Noruega e seu</p><p>movimento “Trimm”, “que visa essencialmente a manutenção da condição física das populações</p><p>por uma prática auto controlada realizada em instalações desportivas ao alcance de todos,</p><p>normalmente integradas em zonas verdes e o convencimento dos não praticantes sobre os</p><p>benefícios da cultura física” (FEIO, 1978, p. 187), repercutindo em muitos países, como no</p><p>Brasil, que iniciou o movimento “Esporte para Todos” em 1977. Entretanto, as estruturas sociais</p><p>desenvolvidas até a década de 1970, notadamente o sistema federativo e olímpico internacional,</p><p>contemplavam atendimento a um perfil de indivíduos com foco no rendimento e destinado à</p><p>participação em competições de alto nível técnico. Sobre isso, comentava Cazorla Prieto:</p><p>El deporte popular desborda las estructuras clásicas de la organización deportiva, que se</p><p>muestran incapaces de comprender los requerimientos del deporte en la sociedad de casi el siglo</p><p>XXI. La gran explosión del deporte popular, que irá creciendo inevitablemente, demuestra, ante</p><p>todo, que las estructuras deportivas están obsoletas y anticuadas, al no ser capaces de albergar a</p><p>todos los estamentos sociales que tienen algo que decir en la materia, por lo que estos tienen que</p><p>buscar su forma de expresión al margen del entramado oficial, y después que habitualmente la</p><p>política deportiva no apunta a las metas ansiadas por la sociedad, que es cada vez más sensible</p><p>hacia el deporte y que se siente desatendida en sus aspiraciones, al ver “mimadas” otras parcelas</p><p>y desatendida la que hemos llamado expresión popular del deporte (CAZORLA PRIETO, 1979,</p><p>p. 91).</p><p>Foi assim que, buscando abrir trincheiras para o desenvolvimento do esporte além do alto</p><p>rendimento, definiram-se conceitos e metodologias de esporte-lazer, esporte-popular, esporte-</p><p>social, esporte-cidadania e esporte-participação, com os governos cada vez mais tendo que</p><p>assumir o papel de fomento da atividade enquanto direito social, protegido pela UNESCO em</p><p>seu Manifesto, desdobrando-se em previsão constitucional em diversos países do mundo, como</p><p>no caso do Brasil, por força da Constituição Federal de 1988, ao assegurar que é dever do Estado</p><p>fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um (art. 217). Com o</p><p>passar dos anos, novos documentos de apoio ao movimento esportivo foram estabelecidos, além</p><p>da atualização dos anteriores, sendo os de maior repercussão a CARTA INTERNACIONAL DA</p><p>EDUCAÇÃO FÍSICA E DO ESPORTE (UNESCO/1978), e o MANIFESTO MUNDIAL DA</p><p>EDUCAÇÃO FÍSICA (FIEP/2000).</p><p>5.5.26. Ciclo de desenvolvimento humano desportivo (homo sportivus): Partindo da</p><p>reconceituação do desporto firmada nesta fase, sua dinâmica passou a ser interpretada de um</p><p>modo completamente novo (ampliada), pela qual todo indivíduo tem o direito de vivenciar um</p><p>ciclo de desenvolvimento esportivo, que se inicia através de processos educacionais, quando irá</p><p>assimilar as diversas modalidades (movimentos corporais, forma de jogar, regras, técnicas, etc.),</p><p>especialmente na fase escolar e dentro das aulas de educação física, de tal modo que pode fazer</p><p>disso uma atividade de lazer e recreação, manifesta na forma do desporto</p><p>de participação, ou,</p><p>finalmente, lançar-se à prática de rendimento, em busca do aperfeiçoamento físico, técnico e</p><p>tático, destinado à atuação em competições e obtenção de resultados, podendo alcançar o</p><p>profissionalismo. Quanto mais oportunidades o indivíduo vivenciar neste período de formação,</p><p>maiores serão as chances de fazer do desporto um elemento cotidiano em sua vida, extraindo da</p><p>atividade o que melhor lhe convier, dentro daquilo que Tubino conceituava como sendo a síntese</p><p>do homo sportivus.</p><p>Fig. 5.1. Ciclo de desenvolvimento humano desportivo.</p><p>Ocorre que, proporcionar esse ciclo de desenvolvimento esportivo, com qualidade e abrangência,</p><p>requer grandes investimentos, especialmente quando se reconhece o desporto como um direito</p><p>social. No Brasil, o esporte nas escolas é uma constante nas aulas de educação física. Contudo,</p><p>são amplamente conhecidas as limitações de infraestrutura e de recursos para o seu</p><p>desenvolvimento eficaz, quase sempre restrita a uma quadra poliesportiva aberta, precariamente</p><p>conservada e equipada, permitindo o contato com modalidades básicas deste tipo de espaço</p><p>(vôlei, handebol, futsal e basquete), isso quando existam materiais adequados para a prática</p><p>(bolas específicas, traves, redes, tabelas, postes). Com muito idealismo os profissionais de</p><p>educação física engajados buscam levar adiante conteúdos mais abrangentes, todavia, a limitação</p><p>de horários de aulas, a falta de exames médicos regulares e os problemas nutricionais da</p><p>população de baixa renda prejudicam maior efetividade nesse processo de desenvolvimento</p><p>esportivo. Quanto ao contexto do esporte social (de participação), milhares de praças esportivas e</p><p>playgrounds foram construídos ao longo do tempo no país, porém, a falta de manutenção</p><p>adequada e de programas regulares de atividades, sob supervisão de profissionais de educação</p><p>física, com a diversidade, intensidade e frequência desejada, faz com que a grande maioria delas</p><p>fique subocupada, quando não, abandonadas e sucateadas. Ou seja, a incapacidade do governo</p><p>em atender demandas sociais básicas (v.g. saúde, educação, segurança) se estende, com maior</p><p>gravidade, para o esporte, isso quando não visto por alguns como investimento supérfluo e</p><p>desnecessário. Quanto ao esporte de rendimento, sendo um setor devidamente organizado e</p><p>articulado por via de um Sistema Nacional próprio (Lei nº 9.615/98, art. 13), as bolsas,</p><p>convênios, repasses de loterias e ações de patrocínio de empresas públicas são mais bem</p><p>concebidos, ainda que debaixo da crítica de favorecer poucos privilegiados, sendo mais eficiente</p><p>também na elaboração de projetos e captação de recursos através das leis de incentivo fiscal ao</p><p>esporte.</p><p>5.5.27. Conclusão: Se até o final do século 19 o esporte “amador” (elitizado) era financiado pela</p><p>classe dominante e em seu proveito próprio, ao lado das práticas profissionais e seu custeio</p><p>baseado nas apostas e bilheteria dos espetáculos esportivos, esse quadro vai mudar no início do</p><p>século seguinte, com a introdução do esporte nas escolas e universidades, marcando o início da</p><p>ação e financiamento público da atividade, que vai se ampliando aos poucos pela sociedade, com</p><p>justificativas higienistas ou em busca de projeção política internacional, incrementado depois da</p><p>2ª Guerra, com o advento da televisão e o sucesso dos eventos esportivos mundiais, como os</p><p>Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo de Futebol. No final da década de setenta do século</p><p>passado, já anotava Prieto que a trajetória econômica do desporto sempre foi ascendente. “Si en</p><p>sus primeras manifestaciones el deporte no necesitaba para su desarrollo desembolsos ni</p><p>intereses económicos de importancia, hoy en día constituye una actividad económica de gran</p><p>relieve” (CAZORLA PRIETO, 1979, p. 26). Dizia ele que as questões econômicas relativas ao</p><p>desporto tomavam maior relevância conforme se incrementava sua prática, sendo fator</p><p>determinante da sua viabilidade em sociedades capitalistas, assim como qualquer outra atividade</p><p>humana, de tal sorte que a presença do Estado também passou a ser cada vez mais necessária e</p><p>justificável, para atender aos anseios sociais, animados pela disseminação do desporto em nível</p><p>mundial, inclusive para fins de viabilizar estruturas destinadas à prática pelos estudantes de</p><p>escolas públicas e pela classe trabalhadora (e não apenas restrita aos atletas e associados de</p><p>clubes de elite), além de dotá-las de equipamentos, manutenção e profissionais habilitados para</p><p>coordenação das atividades. Contudo, os recursos públicos sempre escassos, e demandas sociais</p><p>de natureza primária, como saúde, educação, saneamento básico, segurança, habitação, dentre</p><p>outros, impõem-se em qualquer orçamento público, ficando o esporte relegado a um segundo</p><p>plano e dotado com residuais de orçamentos públicos, sendo sempre o primeiro a sofrer cortes e</p><p>contingenciamento em tempos de maior dificuldade econômica. Essa é uma realidade do</p><p>desporto com a qual temos que conviver, levando à conclusão de que o esporte reflete a situação</p><p>econômica e o grau de desenvolvimento educacional e social das nações, por mais que eventos</p><p>pontuais possam sugerir o contrário.</p><p>5.6. A crise existencial do esporte no século 21 e os desafios de um novo tempo</p><p>Se por um lado, vinte foi o “Século do Esporte” (de rendimento), os ventos de um novo tempo</p><p>parecem soprar em outra direção. Já na última década do século passado nota-se que o esporte</p><p>perdeu espaço para outras formas de atividade física, em especial diante da incapacidade do</p><p>Estado em oferecer programas de alto nível para a comunidade ao lado do surgimento das</p><p>academias de ginástica, acompanhado do desenvolvimento de equipamentos domésticos,</p><p>permitindo a realização de exercícios sem ter que sair de casa. No modo de vida atual as famílias</p><p>se sentem mais seguras dentro de suas próprias moradias. Por outro lado há uma forte agregação</p><p>do público feminino e o conceito de esporte fitness é explorado ao máximo, dentro de um</p><p>mercado em expansão, agregando consumidores com o apelo do estilo de vida saudável e os</p><p>benefícios da atividade física regular, além, é claro, da conquista de um corpo esbelto, sem a</p><p>exigência do domínio de técnicas esportivas ou o envolvimento com jogos e competição, que</p><p>demandam especial comprometimento, formação de grupos coesos, treinamentos e seguimento</p><p>de horários rígidos. Quanto a isso, não há o que opor, ao contrário, é um movimento de</p><p>excelência. Uma volta aos tempos da Antiguidade, de culto ao corpo e ao belo, tão presente na</p><p>Grécia antiga e tão saudável para a humanidade, quando o processo é bem conduzido.</p><p>5.6.1. A prática de esportes em um mundo de relações virtuais (gamificação): Por sua vez, a</p><p>sedução dos jogos esportivos, que sempre exerceu especial fascínio sobre crianças e jovens,</p><p>ganha a concorrência dos chamados jogos eletrônicos, hobby executado em computador (PC) ou</p><p>através de consoles de videogame, tabletes, smartphones, acompanhando o ritmo alucinante de</p><p>desenvolvimento dos microprocessadores e seus recursos gráficos inovadores. Com isso, a</p><p>excitação provocada pelos jogos esportivos pode ser vivida de uma forma diferente, por meio de</p><p>jogos eletrônicos intuitivos, cuidadosamente arquitetados, que criam ambientes virtuais viciantes,</p><p>desafiadores e incrivelmente atraentes, muitos deles mimetizando jogos e eventos esportivos,</p><p>como no caso da série de games licenciado pela FIFA, que inclusive promove o FIFA Interactive</p><p>World Cup, oficialmente reconhecido como o maior torneio de videogame do mundo. Outra série</p><p>de sucesso é o “basketball games”, com licenciamento da Liga norte-americana NBA. Isso sem</p><p>dizer dos jogos de fantasia, de guerra, policiais, lutas, corridas, espaciais, circuitos, fases, dentre</p><p>tantos outros desenvolvidos para todas as idades e perfis de público, concorrendo diretamente</p><p>com os jogos esportivos e recreações, que sempre serviram à animação das pessoas. Através do</p><p>videogame os jogadores podem assumir papeis, que pela classificação dos jogos de Caillois</p><p>(1990), se assemelham aos da categoria “Mimicry” (mimetismo), caracterizado</p><p>pela encarnação</p><p>de um personagem ilusório e adoção do respectivo comportamento, “o prazer é o de ser um outro</p><p>ou de se fazer passar por outro” (CAILLOIS, 1990, p. 41), que apazigua qualquer animus</p><p>agonístico, fascínio até então exercido com vigor pelas atividades esportivas. O circuito de</p><p>recompensas em jogos eletrônicos, devidamente programados e divididos em níveis de</p><p>dificuldade, é bem mais fantástico e extasiante que os jogos esportivos na vida real (as</p><p>gratificações na tela envolvem a liberação de dopamina, precursora natural da adrenalina e</p><p>noradrenalina, outras catecolaminas com função estimulante do sistema nervoso central), de</p><p>maneira que a movimentação física é substituída por comandos eletrônicos executados, em geral,</p><p>com os dedos das mãos (controle remoto manual), expandindo para formas mais interativas a</p><p>cada novo ciclo tecnológico (realidade virtual). A integração dos jogadores “on-line” permite</p><p>encontros intermináveis a qualquer momento, estimulando a formação de grupos por meio das</p><p>conhecidas redes sociais e estabelecimento de rankings (classificações) que induzem uma</p><p>permanência constante nesses ambientes, de modo que as perspectivas de atração e manutenção</p><p>de jogadores fazem desse mercado um filão promissor para a indústria do entretenimento. Esse</p><p>processo de gamificação do desporto tem retirado multidões de praticantes das quadras, campos,</p><p>pistas, piscinas e outras praças esportivas, ainda que os relatos de crises de ansiedade e</p><p>“transtornos por jogos de internet” sejam cada vez mais frequentes. Enfim, temos que admitir</p><p>que o esporte já não é mais a primeira opção para atividade física e recreativa, como foi em um</p><p>passado recente.</p><p>5.6.2. Transtornos de jogo pela internet e “gambling”: O psicólogo Flávio Ferreira, tratando</p><p>do assunto, expõe o seguinte:</p><p>É o hábito persistente e recorrente da internet no uso em jogos, de modo solitário ou com outros</p><p>jogadores. Há sofrimento significativo indicado por cinco (ou mais) das características ou</p><p>sintomas abaixo, em um período de 12 meses:</p><p>1. Preocupação com os jogos por meio da internet. O indivíduo pensa nas partidas, o que se torna</p><p>a atividade dominante na vida diária. Obs.: o Transtorno do Jogo pela Internet é diferente dos</p><p>jogos de azar pela internet, que estão inclusos no transtorno de jogo. 2. Sintomas de abstinência:</p><p>ansiedade, irritabilidade, tristeza.</p><p>3. Vontade de passar quantidades crescentes de tempo envolvido nos jogos pela internet.</p><p>4. Tentativas sem sucesso de controlar a participação nos jogos pela internet.</p><p>5. Perda de interesse por outros passa tempos anteriores.</p><p>6. Uso continuado de jogos pela internet, mesmo com o conhecimento dos problemas</p><p>psicossociais. 7. Enganar pessoas da família, terapeutas, colegas de trabalho, amigos, em relação</p><p>à quantidade do jogo pela internet.</p><p>8. Uso de jogos pela internet para aliviar ou evitar sentimentos ruins.</p><p>9. Colocar em risco ou perder relacionamentos, empregos, oportunidade educacional ou de</p><p>carreira devido à participação em jogos pela internet. (Fonte:</p><p><http://www.psicologia10.com.br/artigos/transtorno-do-jogo-pela-internet/>; acesso em</p><p>05/03/2015).</p><p>Alguns centros de pesquisa chegam a afirmar que a dependência tecnológica, sob o ponto de</p><p>vista neurológico, é comparável ao da dependência do álcool, ou mesmo da cocaína. Outro</p><p>aspecto relevante refere-se ao fenômeno das apostas esportivas online, que tendem a crescer</p><p>exponencialmente nos próximos anos, diante das facilidades tecnológicas, aumentando os riscos</p><p>de “gambling” (vício em apostas), sendo fundamental a constituição de agências ou comissões de</p><p>controle, como já ocorre em alguns países, como é o caso da Inglaterra (http://www.</p><p>gamblingcommission.gov.uk/Home.aspx). Temos a convicção que as apostas online em eventos</p><p>esportivos vão representar uma terceira onda de desenvolvimento dos esportes pelo mundo,</p><p>aumentando o abismo entre a prática desportiva profissional e todas as demais manifestações, ao</p><p>movimentar, diariamente, cifras milionárias, muitas vezes maior que os investimentos operados</p><p>nas tradicionais bolsas de valores.</p><p>5.6.3. Geração Z (Nativos digitais): A chamada “Geração Z” (nascidos depois de 1995 e que</p><p>não conhecem o mundo desconectado e desplugado), adeptos da instantaneidade (“tudo ao</p><p>mesmo tempo agora”) do mundo virtual, são naturalmente impacientes e avessos aos métodos</p><p>tradicionais de ensino-aprendizagem, o que inclui os esportes. Nativos digitais são multitarefas e</p><p>autodidatas dos infindáveis e inovadores recursos da informática, seus programas (softwares) e</p><p>aplicativos (apps), incluídos os games. Aprendem sozinhos a utilizá-los, de forma cada vez mais</p><p>intuitiva, dispersa e fragmentada, quando não passando a desenvolvê-los, transmitindo os</p><p>conhecimentos adquiridos por meio de tutoriais que produzem e disponibilizam sem muita</p><p>cerimônia na teia mundial (“World Wide Web”), muitas vezes tornando-se populares no mundo</p><p>virtual e podendo extrair ganhos expressivos com isso, utilizando os recursos tecnológicos</p><p>disponíveis ou por meio das chamadas companhias startups, para os projetos mais elaborados,</p><p>obtendo recursos financeiros de investidores externos atentos a esse novo mercado, apesar de</p><p>mais seletivos depois do estouro da “bolha da internet” na virada do século. A proliferação de</p><p>plataformas móveis (tablets e smartphones) e da internet rápida tem conferido novo impulso ao</p><p>setor e permite uma interação permanente no mundo virtual, de modo que ficar off-line vira</p><p>motivo de grande preocupação para essa geração, podendo adquirir contornos patológicos,</p><p>conhecido como FOMO (Fear of Missing Out). Não é de estranhar, portanto, que prefiram jogar</p><p>games em lugar de praticar esportes, conforme comprovam todas as pesquisas recentes sobre</p><p>esse público. Preferem o esforço intelectual ao físico, ainda que preocupados com sua saúde,</p><p>recorrendo os mais conscientes às academias de ginástica, “quando dá tempo”. Assim, o esporte</p><p>corre o sério risco de se transformar, neste século, em atividade virtual de lazer, e no mundo real,</p><p>algo voltado para atletas profissionais e uns poucos apaixonados (amadores ou não</p><p>profissionais), a exemplo da música, dança e artes em geral. Cultivamos tudo isso, mas em regra</p><p>não somos músicos, dançarinos ou artistas, bem como estamos cada vez mais, deixando de ser</p><p>esportistas, senão vorazes consumidores de espetáculos do gênero, como temia Dumazedier, em</p><p>meados do século passado, quando sequer cogitava as interações sociais estabelecidas pela rede</p><p>mundial de computadores. Dizia ele:</p><p>Será impossível julgar os resultados benéficos e maléficos do lazer e prever seu conteúdo, se</p><p>abstrairmos a influência sobre ele exercida de certos determinantes técnicos, tradicionais e sócio-</p><p>econômicos. A exploração comercial dos grandes meios de divertimento e informação, procura</p><p>sempre no homem um cliente fácil e ao oferecer-lhe a fruição de um mundo limitado,</p><p>desvirtuado e falso, tornar-se-á não só um empecilho para o desenvolvimento humano como</p><p>também contribuirá para a sua estagnação e regressão (DUMAZEDIER, 1973, p. 91).</p><p>O compromisso que envolve a presença em atividades culturais e esportivas exige tempo,</p><p>dedicação e comprometimento, que parece não termos mais. Ou simplesmente não queremos</p><p>mais. Essa ilusão ou desculpa da falta de tempo, é um contrassenso da sociedade hodierna, que</p><p>não se incomoda em fruí-lo, passivamente, diante de uma parafernália de aparelhos eletrônicos</p><p>conectados em rede. É o lazer virtual, cibernético, gozado na ponta dos dedos, consumindo</p><p>tempo sem muito esforço, ao contrário do esporte e das atividades culturais tradicionais. Presos a</p><p>esta nova forma de viver, que aos poucos vai substituindo as interações humanas da vida real</p><p>(sociabilidade eletrônica), não sabemos o que o futuro nos reserva, deixando tudo para depois,</p><p>como se tivéssemos esse tempo, sendo pouco provável uma mudança de comportamento no curto</p><p>prazo, fascinados que estamos com o “admirável mundo novo” digital. Será preciso muita</p><p>criatividade e determinação, daqueles encarregados pela gestão do esporte (e de outros</p><p>setores</p><p>culturais), para mantê-lo no mesmo ritmo de ascensão visto no século passado. Talvez retorne</p><p>como oportunidade de reconexão dos indivíduos ao mundo real e combate ao sedentarismo</p><p>(desintoxicação digital), já que em breve a inatividade vai cobrar seu preço da atual e das</p><p>próximas gerações. Jayr Jordão Ramos (1982, p. 15) já previa que “o indivíduo, preso à máquina,</p><p>cada vez mais a ela se escravizará”, trazendo em sua obra uma importante observação do filósofo</p><p>espanhol Ortega y Gasset (1883-1957), de que estamos (e continuamos) no século do homem</p><p>“sentado”, advertindo: “a sociedade moderna industrial está ameaçada de perder sua vitalidade”</p><p>(p. 235). De acordo com pesquisa recente (2015) encomendada pelo Ministério do Esporte, entre</p><p>8.902 entrevistados distribuídos pelos 27 Estados brasileiros, perto da metade (45,9%) declara-se</p><p>sedentária, o que equivale proporcionalmente a um universo de 67,3 milhões de habitantes (de</p><p>acordo com a metodologia empregada, considerando a faixa de 14 a 75 anos). De outro lado,</p><p>apenas 25,6% informam praticar regulamente um esporte, enquanto 28,5% dizem fazer</p><p>atividades físicas também de maneira regular. A pesquisa completa, denominada “Diagnóstico</p><p>Nacional do Esporte” (Diesporte), está disponível no site do Ministério do Esporte</p><p>(www.esporte.gov.br).</p><p>Parte II</p><p>Do DIreIto DesPortIvo</p><p>Que el deporte sea siempre instrumento de intercambio y superación y nunca de violencia y</p><p>odio. Jorge Mario Bergoglio (Papa Francisco)</p><p>Capítulo 6</p><p>Introdução</p><p>Estabelecida em linhas gerais a origem, evolução, fundamentos, conceitos, dimensões e</p><p>transcendência política, econômica e social do desporto, ainda que limitada à tradição cultural do</p><p>Ocidente, temos agora condições de seguir adiante, tratando da importância e correspondente</p><p>aplicação da Ciência do Direito no seu processo institucional e instrumental (constituição,</p><p>organização e funcionamento das entidades do setor), corroborando a impressão de Leal Amado</p><p>(2002, p. 20), quando afirma que “o direito cria a actividade desportiva, pois esta não se concebe</p><p>sem aquele, não faltando inclusive quem afirme que o desporto talvez seja, de entre todas as</p><p>actividades humanas, aquela em que a regra jurídica ocupa um lugar de maior relevo”. Mas que</p><p>deve ser colocado em prática com a mesma inspiração de Carl Diem (1966, p. 8), ao vislumbrar:</p><p>“sin alegría de vivir y sin comprensión, no hay que acercarse al mundo del deporte, por más que</p><p>su sentido vital sea hondo e serio”. Esse é o desafio permanente daqueles que atuam na área do</p><p>Direito Desportivo, saber modular em fina sintonia a razão jurídica, sem subjugar o imaginário</p><p>do jogo, sob pena de desfigurá-lo. Ter plena consciência dos limites da atuação do Direito sobre</p><p>o Desporto, mas com firmeza suficiente para mantê-lo dentro de princípios éticos, morais e</p><p>disciplinares, impedindo que sirva de palco para atos de violência ou corrupção, perpetrados por</p><p>predadores que o rodeiam, assim como ocorre em qualquer outro setor da sociedade, lembrando</p><p>Álvaro Melo Filho (in: RBDD n. 8, 2005, p. 7) que hoje vivemos “numa sociedade mundializada</p><p>e mediatizada em que o desporto passou de ócio (lazer) para negócio (Sport business), juntando</p><p>aqueles que vivem o desporto e os que vivem do desporto”. Desta forma, o que se pretende nesta</p><p>segunda parte é contribuir no processo de construção de uma Teoria Geral do Direito Desportivo,</p><p>de maneira que esse tema possa ser tratado com rigor científico pela comunidade jurídica e</p><p>desportiva, conferindo maior estabilidade e segurança (previsibilidade) nas relações sociais e</p><p>econômicas decorrentes.</p><p>6.1. Definições e acepções do Direito Desportivo</p><p>6.1.1. Direito e desporto: Destaca Nader (2013, p. 25) que “a interação social se apresenta sob</p><p>as formas de cooperação, competição e conflito e encontra no Direito a sua garantia, o</p><p>instrumento de apoio que protege a dinâmica das ações”. Tal assertiva é muito apropriada na</p><p>análise da proteção do Direito infirmada ao fenômeno esportivo, ambiente no qual cooperação,</p><p>competição e conflito se desenrolam simultaneamente, no cercado mágico do jogo, provocando</p><p>complexas relações sociais, em que razão e emoção caminham lado a lado. Nesse ponto, é</p><p>sempre bom lembrar que a prática desportiva, em que pese seu caráter agonístico (competitivo),</p><p>orienta-se na direção de “contribuir para a formação e aproximação dos seres humanos ao</p><p>reforçar o desenvolvimento de valores como a moral, a ética, a solidariedade, a fraternidade e a</p><p>cooperação, o que pode torná-lo um dos meios mais eficazes para a convivência humana”</p><p>(TUBINO, 2007, p. 37). É assim que, por meio do Direito, se constrói o Desporto, dentro de uma</p><p>intrincada fórmula que combina jogo, competição e método, este último operando-se não apenas</p><p>no aspecto técnico (regras do jogo) e organizacional (normas orgânicas), mas também como</p><p>“instrumento de apoio que protege a dinâmica das ações”, por via das regras de justiça (normas</p><p>disciplinares), assegurando a não violência em meio ao desenrolar dos confrontos (conflitos) e a</p><p>sanção aos infratores, de modo que, ao final da competição, vencedores e vencidos aprimorem</p><p>laços de convivência humana pacífica (cooperação), ideário máximo do fair-play, que implica</p><p>“sempre na modéstia da vitória, na serenidade da derrota e numa disposição suficiente para criar</p><p>relações humanas, cordiais e duradouras” (WEY NETTO, 2013, p. 13), por mais utópico que,</p><p>para alguns, possa parecer. Intensificada essa forma de interação social, em tempos modernos, o</p><p>desporto passou a ser objeto também de regulação estatal, ampliando o rol de proteção jurídica,</p><p>de tal sorte que essa diversidade de fontes passa a constituir o arcabouço do proclamado “Direito</p><p>Desportivo”, formando um subsistema jurídico inserido dentro do amplo contexto social-</p><p>normativo, a demandar cada vez mais estudos e técnicas, aprimorando seu manuseio por aqueles</p><p>que estão envolvidos com a dinâmica do desporto.</p><p>6.1.2. Direito ao desporto : Reportando à primeira parte deste livro é cediço que o universo de</p><p>praticantes desportivos no século XIX reduzia-se às classes dominantes (aristocratas, burgueses e</p><p>militares) que detinham condições financeiras ou funcional para envolvimento em atividades</p><p>atléticas, ginásticas e desportivas, seja para fins de diversão, preparação física ou treinamento</p><p>militar. No mesmo período, a incorporação do esporte no ambiente escolar, iniciada na</p><p>Inglaterra, ampliou a base de praticantes, induzindo também outros países nessa direção. Por</p><p>outro lado, apostas e interesses comerciais serviram para estimular a prática esportiva de modo</p><p>profissional, manifestando o interesse pelo resultado sobre uma atividade antes tão somente</p><p>lúdica, dentro de uma sociedade cada vez mais competitiva e liberal, impulsionada pela</p><p>locomotiva da Revolução Industrial seguida da Francesa (Burguesa), quando então assistimos</p><p>indivíduos de talento (atletas) serem pagos por suas exibições, quanto mais por suas vitórias,</p><p>traçando os contornos de um novo tipo de espetáculo público nos centros urbanos que foram se</p><p>formando. Nessas circunstâncias, o esporte passou a ter um fim em si mesmo, extrapolando o</p><p>interesse apenas do praticante. É quando o resultado se tornou mais importante que o atleta.</p><p>Assim, entramos no século XX com o esporte elitizado de um lado, estanque a alguns setores</p><p>sociais e sem fins econômicos (amador e educacional), e de outro mercantilizado, guiando a</p><p>prática desportiva profissional e orientada pela busca do resultado e do lucro, bem ao sabor das</p><p>doutrinas liberais. Em contraposição à socialista União Soviética, que desde a década de vinte do</p><p>século passado incorporou o esporte no raio de ação do Estado, nos regimes capitalistas essa</p><p>expansão social só alcançou êxito significativo depois da 2ª Guerra Mundial, com o progressivo</p><p>aumento do tempo livre da classe média, diante de reivindicações trabalhistas e de melhores</p><p>condições de vida da população em geral, culminando em manifestações de diversas</p><p>organizações internacionais em defesa do esporte como um direito de todos, invocando proteção</p><p>do Estado. Assinala Cazorla Prieto (1979, p. 28) que: “El ciudadano exige al Estado cada vez</p><p>más que le dé posibilidades de realizar deporte, con el deseo de recuperar parte de lo que le es</p><p>negado por el ‘modo vivendi’ presente”. É nesse contexto que o esporte assumiu posição de um</p><p>direito social e se consolidou o direito ao desporto. Tratando do assunto Meirim (1993, p. 9) é</p><p>taxativo: “O fenómeno desportivo não é mais movido pelo interesse particular, nem pode receber</p><p>do Estado uma resposta fundada numa “utilização abusiva” e “paternalista”. Quer para a</p><p>sociedade, quer para o indivíduo, o desporto representa um elemento de desenvolvimento”.</p><p>6.1.3. Assunção da natureza tridimensional do desporto: É assim que, nos anos 70/80 do</p><p>século passado, definitivamente, o desporto inscreveu-se como um direito social, rompendo os</p><p>limites do sistema federativo e sua determinação ao rendimento, recomendando a revisão de</p><p>muitos de seus conceitos, arraigados que estavam estritamente no viés competitivo restritivo das</p><p>Federações Internacionais e dos Comitês Olímpicos. Isso foi concretizado, no Brasil, a partir da</p><p>Constituição Federal de 1988 (art. 217). “O direito ao desporto é um direito público subjetivo, ou</p><p>seja, é conferido pela Constituição contra o Estado. Este tem o dever de promover o desporto, de</p><p>incentivá-lo e protege-lo” (BASTOS; MARTINS, 1998, p. 740). Mais precisamente, com a</p><p>publicação da primeira lei de normas gerais sobre desporto (Lei 8.672/93) sob o regime da atual</p><p>Constituição, adotou-se uma nova sistematização dos conceitos fundamentais atrelados à prática</p><p>por meio de uma divisão tridimensional e intersetorial do desporto, conforme exposto na fig. 6.1,</p><p>em especial utilizando conceitos emanados pela UNESCO na Carta Internacional da Educação</p><p>Física e do Esporte (1978), na qualidade de documento informador de muitas outras legislações</p><p>de diversos países.</p><p>Fig. 6.1. Natureza tridimensional e relações intersetoriais do desporto.</p><p>Interessa notar, na figura acima, que as manifestações desportivas não se desenvolvem de</p><p>maneira isolada, muito ao contrário. Assim, o desporto de rendimento (prática formal) tem sua</p><p>porção educacional e de participação, da mesma maneira que o desporto educacional aplica</p><p>elementos do desporto de rendimento e tende a qualificar o indivíduo para o desporto de</p><p>participação, que reciprocamente pode ser utilizado como instrumento de lazer, recreação ou</p><p>afirmação de valores comuns ao rendimento, mas fora do circuito do sistema federativo (prática</p><p>não-formal).</p><p>O esporte, em suas mais diversas e variegadas manifestações, é uma instituição multifuncional,</p><p>já que atende, a um só tempo, a interesses [e cumpre finalidades] inerentes à saúde, à educação, à</p><p>sociabilidade e à cultura, para além de desencadear a circulação de valores e riquezas (Luís</p><p>Geraldo Sant’Ana Lanfredi, in: BASTOS et. al.; 2009; p. 215).</p><p>Daí porque afirmamos da natureza tridimensional e relações intersetoriais do desporto na sua</p><p>concepção atual, cuja integração é dever de todos que atuam na área. Não há dúvida de que o</p><p>Direito Desportivo se ocupa, grandemente, do esporte de rendimento (profissional e não-</p><p>profissional), mas já não é possível tratar qualquer questão neste campo sem antes definir a</p><p>manifestação que estamos abordando, de maneira que procuramos tomar esse cuidado, sempre</p><p>que necessário. Sobre a natureza e finalidades de cada manifestação desportiva, e seus subtipos,</p><p>vamos tratar, em detalhes, no Cap. 12, item 12.8.</p><p>6.1.4. Direito no desporto: A partir das transformações finalísticas da prática desportiva, que</p><p>deixou de ser uma atividade meramente lúdica, começou a se fazer necessária a sua</p><p>regulamentação, especialmente ressaltando seu caráter competitivo, que demanda igualdade de</p><p>condições dos contendores para que se tenha, ao final de cada encontro desportivo, um resultado</p><p>justo e aceitável, bem como inibindo atos de violência na prática da atividade, já que, como</p><p>prevenia Jean Loup (1930, p. 28) “le désir immodéré de la victoire engendre la brutalité”. É por</p><p>este caminho que o Direito passou a penetrar, cada vez com mais intensidade, no ambiente</p><p>esportivo. Boxe, golfe, hipismo e atletismo são as primeiras modalidades praticadas de modo</p><p>profissional, caracterizada, à época (Séc. XIX), pela cobrança de ingressos, organização de</p><p>apostas ou pelo pagamento de prêmios em dinheiro aos atletas (pecuniam ludere), levando à</p><p>fixação de métodos e regras de prática para legitimar o resultado das competições e disciplinar a</p><p>conduta dos jogadores, em que pese o boxe, no início, admitir muita violência no seu exercício.</p><p>No mesmo período outras modalidades não profissionalizadas começaram a se articular,</p><p>iniciando pela ginástica e remo, mediante a reunião dos praticantes em associações, passando a</p><p>codificar os meios de execução de cada modalidade e constituindo organizações centrais,</p><p>designadas de federação esportiva, cuidando dos seus métodos de prática e promovendo</p><p>competições cada vez mais abrangentes, especialmente na Europa, mas sem interesse de lucro</p><p>financeiro (animus ludendi). A introdução do esporte nas escolas, iniciada na Inglaterra, também</p><p>estimulou os estudantes na unificação de regras de prática que permitiram a realização de</p><p>competições entre instituições educacionais, com ênfase no football association e football rugby.</p><p>Assim temos, a partir do século XIX, a penetração definitiva do Direito no Desporto, em</p><p>princípio de cunho estritamente privado, emanado pelas organizações que se formavam para</p><p>unificação e gestão das atividades e competições, sendo que depois de sedimentado no seio da</p><p>sociedade moderna (muito em razão da organização de competições internacionais e do</p><p>renascimento dos Jogos Olímpicos), diversos países também passaram a legislar sobre desporto,</p><p>em alguns casos afetando a liberdade de associação, justificada pela “ordem pública” em</p><p>disciplinar a organização desportiva em seus territórios e garantir coesão de representação</p><p>mundo afora, fato verificado no Brasil. Isso quando não transformando o desporto em aparelho</p><p>ideológico do Estado, como foi o caso da Alemanha governada por Hitler. Em contrapartida, as</p><p>entidades representativas internacionais sempre buscaram defender um espaço soberano</p><p>(autônomo) de não intervenção estatal, notadamente no âmbito das competições e gestão</p><p>corporativa das suas atividades e associações, incluída a designação e eleição de seus</p><p>administradores (poderes internos).</p><p>6.1.5. Direito do desporto: Instruído por regras, normas, regulamentos, usos e costumes sociais,</p><p>adicionado depois de legislação estatal, forma o desporto em seu entorno um complexo</p><p>ordenamento jurídico, de tal maneira que o Direito passa a ser sua base de sustentação.</p><p>Conforme destaca Cazorla Prieto (1979, p. 21): “El deporte es un fenómeno que se produce</p><p>dentro de una sociedad; que como tal está forzosamente incorporado a unas normas sociales de</p><p>tipo general, económicas y jurídicas, sin perjuicio de su propia peculiaridad”. Esse aparato de</p><p>princípios e normas, internacionais e nacionais, privadas e estatais, que constituem e regem as</p><p>relações decorrentes da prática desportiva, forma um conjunto peculiar na área das Ciências</p><p>Jurídicas, cuja estrutura, particularíssima, impõe técnicas especiais de manejo e a formulação de</p><p>uma dogmática interpretativa própria, de tal modo que surge uma doutrina classificando a</p><p>existência do “Direito do Desporto”.</p><p>São três as teses que são sustentadas quanto ao conteúdo do Direito do Desporto. Para uns, nele</p><p>se incluem exclusivamente normas jurídicas emanadas do “poder desportivo”, ou seja, o Direito</p><p>do Desporto teria como únicas fontes os regulamentos e outros actos normativos que são</p><p>produzidos no domínio das federações desportivas. Em sentido totalmente inverso, sustentam</p><p>outros que o Direito do Desporto, se basta com as normas provenientes dos poderes públicos,</p><p>nomeadamente do Estado. Uma terceira posição, que vem ganhando terreno, abandonando o</p><p>extremismo das anteriores, vem englobando no conceito agora em causa, ambos os tipos de</p><p>normas. Para este</p><p>do seu caráter</p><p>particular e do interesse público, da sua regulação privada e estatal, da sua dimensão comunitária</p><p>e universal (micro e macrocosmo), da sua ativação com ou sem fins lucrativos; e todas as</p><p>consequências jurídicas dessas diferentes configurações. Na análise dos significados da prática</p><p>desportiva, muitas são as dicotomias e contrastes que encontramos, constituindo um grande</p><p>desafio científico a sua sistematização e compreensão enquanto fenômeno humano de múltiplas</p><p>dimensões.</p><p>1.1.1. O desporto como fato social: Todos os dias, invariavelmente, temos à disposição notícias</p><p>sobre esportes diversos na mídia impressa, no rádio, na televisão e na internet. Como já foi dito</p><p>por Cazorla Prieto (1979, p. 16): “Pocas cosas hay tan cotidianas como el deporte”. Não pensava</p><p>diferente Jayr Ramos (1982, p. 233), destacando na mesma época: “Hoje o Desporto é um fato</p><p>social que, sem medo de errar, caracteriza nosso tempo”. Muito do que acontece nesse meio vem</p><p>sendo noticiado diuturnamente há mais de um século pela imprensa e consumido por boa parte</p><p>da população mundial. Nesse ritmo, mesmo aqueles que não acompanham diretamente os</p><p>eventos esportivos, acabam tocados por informações sobre competições as mais diversas e, até</p><p>com certa naturalidade, passam a reconhecer personalidades do meio, como atletas, técnicos e</p><p>dirigentes, cuja imagem se relaciona com clubes (entidades de prática) e outras organizações do</p><p>setor (entidades de administração). Filmes e livros, aos milhares, tratam de temas esportivos.</p><p>Não nos cansamos de recordar, ler, falar, comentar, discutir, debater fatos esportivos, fascinados</p><p>pela mitologia do homo sportivus. Sejam heróis ou vilões, é sempre um encanto vê-los em</p><p>atividade, e muitos são cativamos por toda a vida, quanto mais fama e glória tenham alcançado</p><p>na atmosfera do esporte. A imagem de um atleta, assim, adquire especial valor, passa a ser</p><p>patrocinada. Mais que isso, não raro paga-se para assistir um jogo e, sem ressalvas, na</p><p>atualidade, aceitamos que o atleta seja pago para jogar, quando não extraordinariamente</p><p>remunerado, afinal, é um ser especial, astro, mito, cuja carreira é curta e exige os melhores anos</p><p>da sua vida dedicados aos treinamentos, para dar o espetáculo que deles esperamos. Além disso,</p><p>são “espelhos” para novas gerações, por isso, são “vigiados” e cobrados quanto às suas atitudes,</p><p>a todo instante. Qualificamos um bom número de competições como sendo “oficial”, invocando</p><p>um ritual antes do jogo, que invariavelmente é marcado pela execução do Hino Nacional, perante</p><p>pavilhões hasteados, fazendo do esporte uma exaltação permanente à pátria e à nacionalidade,</p><p>ainda mais intensa em competições de dimensão internacional.</p><p>1.1.2. Multiplicidade de sentidos (polissemia): Animados pelo fulgor do desporto, nos</p><p>identificamos com grifes sportswear, quando não adotamos um próprio estilo de vida esportivo,</p><p>descontraído, fitness, levando a uma diversidade de acepções e derivações de sentido desta</p><p>palavra para identificar não apenas as modalidades em si (futebol, vôlei, basquete, natação, etc.),</p><p>mas também para indicar um modo de vestir, um estilo de vida e de comportamento, até um</p><p>estado de espírito, fazendo do esporte um conceito polissêmico, múltiplo de sentidos. Por</p><p>exemplo, no campo da moda e etiqueta social, a indicação de traje esporte, ou esporte fino,</p><p>recomenda o uso de roupas não tão formais e sóbrias, como o simbólico terno e gravata, ou o</p><p>clássico black-tie (trajes a rigor). Um estilo de vida esportivo remete a uma pessoa mais</p><p>descontraída, despojada e determinada em praticar atividades físicas. A encarnação do espírito</p><p>esportivo é a tradução do fair play, assim como o Olimpismo é “uma filosofia de vida, que exalta</p><p>a combinação de qualidades em equilíbrio com o corpo e a mente” (FREIRE; RIBEIRO, 2006, p.</p><p>34). Já o “fazer por esporte” é um comportamento atribuído a quem realiza determinada</p><p>atividade que exija comprometimento, esforço e dedicação (que pode ser leve, moderado ou</p><p>intenso), mas sem dela esperar senão o prazer e a satisfação pessoal, desprovido de interesse</p><p>material ou econômico. É o caso, por exemplo, de alguém que decide percorrer determinada</p><p>trilha, aventurar-se por uma floresta, escalar uma montanha ou mesmo envolver-se em atividades</p><p>de colecionismo. Tudo isso evidencia a importância do esporte na vida das pessoas e no conjunto</p><p>da sociedade. Como destaca John A. Coleman e Gregory Baum, “poucos fenômenos modernos</p><p>provocam tão intensa atração e laços emocionais como os esportes” (in: Rev. Concilium, 1989,</p><p>p. 6).</p><p>1.1.3. Do lúdico ao desportivo: Desde os primeiros meses de vida já manifestamos e somos</p><p>estimulados ao lúdico, aliás, o brincar é visto como um direito e uma necessidade de primeira</p><p>ordem na infância. Na escola, desde o início somos integrados na prática de variados jogos,</p><p>sempre em busca de experiências que permitam vivenciar situações de alvorecer cognitivo e</p><p>social, tomar contato com a natureza, os objetos, bem como reconhecer o próprio corpo, suas</p><p>possibilidades e limitações, despertando sentidos e nos integrando ao mundo e à sociedade.</p><p>Enfim, desenvolvendo nossas potencialidades biopsicossociais. Quando começa o processo de</p><p>alfabetização, também somos iniciados na Educação Física, enquanto componente curricular da</p><p>Educação Básica, e passamos a ter um contato mais pedagógico em relação aos esportes,</p><p>especialmente as modalidades tradicionais, além das possibilidades de aprendizado em centros</p><p>esportivos, clubes e academias. Nesse ritmo, atravessamos a infância e seguimos na juventude,</p><p>completamente envolvidos e aculturados pela prática desportiva, seja pela vivência dos jogos,</p><p>pela ação educacional ou pela repercussão social que já encetamos. É nessa fase, também, que</p><p>muitos revelam aptidão e gosto especial pela prática de esportes, considerando suas inúmeras</p><p>modalidades, com oportunidades de competição em diversos níveis, na comunidade local, dentro</p><p>da escola ou mesmo atingindo proporções maiores, pelo envolvimento em um sistema maior e</p><p>eficientemente organizado (sistema federativo desportivo), representado por clubes, ligas,</p><p>federações, confederações e federação internacional. Aqui se abre o caminho para o universo</p><p>esportivo de alto rendimento, passando a ser desejado até como carreira por muitos jovens</p><p>(quando não por influência dos próprios pais), entusiasmados pelas notícias que circulam</p><p>ininterruptamente pelos meios de comunicação. E este ciclo se renova infinitamente, sempre</p><p>nutrido por talentos que despontam, quebra de recordes e outras façanhas, garantindo brilho,</p><p>fascínio e excitação junto aos espetáculos esportivos, exigindo cada vez mais empenho,</p><p>determinação, obstinação. Quando bem conduzido é um processo estimulante e que traz</p><p>resultados positivos para os indivíduos e para a sociedade em geral, entretanto, como em</p><p>qualquer outra atividade humana, está sujeito a descaminhos, subvertendo toda uma ideologia</p><p>construída ao longo do tempo sobre os nobres valores da prática desportiva.</p><p>Afirma-se também frequentemente que o esporte forma o caráter e o testa, em pequena escala,</p><p>para prepará-lo para provas e crises maiores da vida. Insiste-se também que o esporte fomenta e</p><p>melhora a boa vontade entre as nações. Mas as notícias sobre o uso ilegal de drogas e de</p><p>esteroides pelos atletas [...] e os escândalos envolvendo suborno para “entregar” um jogo [...]</p><p>levantam sérias questões quanto a um nexo necessário e indissolúvel entre esporte e formação de</p><p>caráter (John A. Coleman e Gregory Baum. In Rev. Concilium, 1989, p. 7).</p><p>1.1.4. O desporto passivo (objeto de contemplação): Cabe admitir também, que devido a</p><p>tantos outros compromissos e obrigações sociais, especialmente na fase adulta, passamos mais à</p><p>condição de apreciadores do que efetivos praticantes de esportes. Desta forma, vivenciamos a</p><p>excitação da competição desportiva sem precisar exercitá-la, bastando para tanto a identificação</p><p>com determinada modalidade, atleta ou clube. A sensação de “fazer parte” já se estabelece a</p><p>partir de então, sendo suficiente para estimular os sentidos,</p><p>entendimento o Direito do Desporto não arranca apenas de um “sistema</p><p>público” – demonstrativo do mito da omnipresença das normas jurídicas estatais – nem se baseia</p><p>num mero fundamento privado – resposta que não leva em linha de conta o facto do fenómeno</p><p>desportivo estar inserido numa determinada sociedade, determinando esta inclusão um leque</p><p>extenso de interferencias que é necessário regular (MEIRIM, 1995, p. 76-77).</p><p>O mesmo campo de investigação delimitado pela expressão “Direito do Desporto” é intitulado</p><p>por outra corrente doutrinária como sendo “Direito Desportivo”, predominante no Brasil.</p><p>6.1.6. Direito Desportivo: Historicamente, alguns autores começaram a utilizar essa</p><p>denominação por volta da década de trinta do século passado, para identificar um âmbito de</p><p>atuação jurídica que cuidava da formulação e interpretação de normas vinculadas ao universo</p><p>esportivo, em especial de origem privada, mas já comportando intervenção estatal em alguns</p><p>países. Em 1930, verifica-se na França a publicação da obra Les sports et le droit, de Jean Loup,</p><p>sendo que em 1940, na Itália, começa a ser publicada a revista Diritto Sportivo, cumprindo</p><p>destacar ainda a obra de Ugo Gualazzini (1965), da Università di Parma, denominada Premesse</p><p>Storiche al Diritto Sportivo, cuidando de “lo studio del formasi e dell’evolversi del diritto</p><p>sportivo” desde a Antiguidade, passando pela legislação medieval e seus ideais ético-religiosos,</p><p>até chegar a Era Moderna, sob influência da Renascença, Iluminismo e positivismo jurídico.</p><p>Muitas outras publicações se contam desde então. No Brasil, a obra literária que inaugurou o</p><p>estudo do tema é de autoria de João Lyra Filho, publicada em 1952, com o título “Introdução ao</p><p>Direito Desportivo”, na qual defendia:</p><p>O fenômeno desportivo, como fato permanente, através de povos e civilizações, com seu caráter</p><p>de instituição arraigada na sociedade moderna, “criou um verdadeiro direito desportivo, como</p><p>regras e princípios mais ou menos definidos, cuja existência é reconhecida e que se concretiza</p><p>com práticas e leis que se aplicam rigorosamente a quantas incidências se sucedem na vida do</p><p>desporto” (LYRA FILHO, 1952, p. 105).</p><p>Já na atualidade, muitos são os autores que abordam temáticas do Direito Desportivo,</p><p>destacando-se a extensa doutrina de Álvaro Melo Filho, cuja presença é marcante também no</p><p>processo legislativo brasileiro em matéria desportiva, notadamente a partir da Constituição</p><p>Federal de 1988, que passou a dispor de um “artigo do desporto” (art. 217), por ele defendido.</p><p>Ao longo dos últimos quarenta anos, encontramos diversas manifestações em prol do Direito</p><p>Desportivo, elaboradas por expoentes desta disciplina, merecendo destaque:</p><p>Por mais que se pretenda, por mais que se queira, não há como negar a realidade do Direito</p><p>Desportivo que leva, inclusive, os governos, interessados na evolução dos desportos, sobretudo o</p><p>futebol, fator indiscutível de promoção de todos os países, a instituir leis adequadas e organismos</p><p>de justiça especializada, encarando um fato que, em verdade, se sobrepôs a toda estrutura social,</p><p>do qual resultaram problemas que passaram a exigir soluções específicas e adequadas (PERRY,</p><p>1973, p. 218).</p><p>Para fins exclusivamente operacionais, pode dizer</p><p>-se que Direito Desportivo é o conjunto de técnicas, regras, instrumentos jurídicos sistematizados</p><p>que tenham por fim disciplinar os comportamentos exigíveis na prática dos desportos em suas</p><p>diversas modalidades (MELO FILHO, 1986, p. 12).</p><p>Direito desportivo é a parte ou ramo do direito positivo que regula as relações desportivas, assim</p><p>entendidas aquelas formadas pelas regras e normas internacionais e nacionais estabelecidas para</p><p>cada modalidade, bem como as disposições relativas ao regulamento e à disciplina das</p><p>competições (M. R. KRIEGER, in: RBDD, 2002a, p. 40).</p><p>Entendemos que por “direito desportivo” devamos considerar o conjunto de normas jurídicas</p><p>(construídas a partir da leitura de enunciados prescritivos) que regulamentam toda a conduta</p><p>humana relacionada ao desporto (enquanto atividade humana que depende de esforço físico ou</p><p>intelectual). Incluímos, aqui, não somente as regras do jogo, mas toda e qualquer norma que, de</p><p>forma ou outra, esteja relacionada ao desporto. O segundo conceito, Direito Desportivo, a seu</p><p>turno, é metalinguagem, sendo, portanto, Ciência do Direito. Sua função é descrever o direito</p><p>positivo relacionado ao desporto. Não se confunde, desta forma, com o próprio direito</p><p>desportivo. Este é plexo de normas (proposições prescritivas). Aquele, linguagem constituída de</p><p>enunciados descritivos. (SILVA; 2009, p. 39).</p><p>Direito desportivo é a área do conhecimento jurídico que estuda as normas públicas e privadas</p><p>destinadas a regular as relações entre os agentes desportivos e disciplinar os comportamentos</p><p>exigíveis na prática dos desportos em suas diversas modalidades (CAÚS; GÓES, 2013, p. 17).</p><p>(...) o Direito Desportivo organiza-se como “um conjunto de princípios e regras que projetam</p><p>consequências diferenciadas para a equação dos eventos tipicamente desportivos, assim</p><p>entendidos os acontecimentos e situações que decorrem do universo da prática organizada das</p><p>diferentes modalidades do esporte” (Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi; in: OLIVEIRA, 2014,</p><p>notas introdutórias).</p><p>Nesta obra, como regra, utilizamos as iniciais em maiúscula (Direito Desportivo) por ser o objeto</p><p>central de estudo.</p><p>Capítulo 7</p><p>O Direito Desportivo na dogmática jurídica</p><p>Diante da realidade do Direito Desportivo, passa a ser objeto de estudo posicioná-lo no contexto</p><p>epistemológico jurídico, examinando sua abrangência bem como o lugar que ocupa no campo da</p><p>Ciência Jurídica. Esse tratamento propedêutico e ontológico é fundamental e indispensável para</p><p>definir e contextualizar seu conjunto de normas, produzindo uma sistematização e o</p><p>estabelecimento de princípios teóricos, conceitos gerais e contornos integrativos básicos,</p><p>delimitando seu escopo com segurança jurídica suficiente para dar correto tratamento às relações</p><p>havidas no ambiente esportivo, isto é, no que se refere à aquisição, modificação, eficácia e</p><p>extinção de direitos e obrigações desportivas, compondo um objeto de investigação particular,</p><p>matizado em suas características, fundamentos, valores e princípios, conduzindo ao alinhamento</p><p>e formulação de um sistema geral de ideais, que permitam a proposição de metodologias</p><p>jurídicas para sua adequada assimilação e eficiente manuseio pelos operadores do Direito, com</p><p>segurança e objetividade.</p><p>7.1. Fontes e tipos de normas jurídicas desportivas</p><p>Afirma Nader (2013, p. 83) que “conhecer o Direito é conhecer as normas jurídicas em seu</p><p>encadeamento lógico e sistemático”. Assim, cabe de antemão mapear os tipos de normas que</p><p>vamos encontrar no contexto do Direito Desportivo, cuja singularidade é que, de um lado, temos</p><p>aquelas de natureza não estatal, e de outro, as estatais. Essa divisão de fontes ou núcleos de</p><p>emanação normativa (privada/estatal) e seus efeitos, bem como os meios de integração possíveis,</p><p>estarão sempre presentes na análise do Direito Desportivo, sendo que, por ora, faremos tão</p><p>somente um breve resumo, para em seguida, tratando-o de forma unitária (ordenamento jurídico-</p><p>desportivo), introduzi-lo na setorização clássica dos “ramos do Direito”.</p><p>7.1.1. Ordenações jurídicas não estatais (fontes privadas): Já não é novidade que o Direito</p><p>Desportivo incorpora na sua dinâmica as normas originadas de fontes não estatais, como é o caso</p><p>daquelas formuladas pelas entidades privadas de administração do desporto (Comitê Olímpico</p><p>Internacional e Comitês Olímpicos Nacionais, Federações Internacionais e suas coligadas pelo</p><p>mundo afora), cujo fundamento de legalidade decorre da liberdade de associação, autonomia</p><p>privada e licitude do objeto, que conduzem ao poder de autorregulação. Sobre isso, já lecionava</p><p>de longa data Miguel Reale, quanto às regras negociais produtos da autonomia da vontade,</p><p>corporificada em uma estrutura normativa de poder (fonte de direito). Dizia o emérito jurista e</p><p>professor de Direito da Universidade de São Paulo</p><p>(USP):</p><p>Como contestar a juridicidade das organizações esportivas? Não possuem elas uma série de</p><p>normas, e até mesmo de tribunais, impondo a um número imenso de indivíduos determinadas</p><p>formas de conduta sob sanções organizadas? [...] Há, em suma, todo um Direito “grupalista” que</p><p>surge ao lado ou dentro do Estado (REALE, 2002, p. 77).</p><p>Não era diferente a opinião de André Franco Montoro, ao reconhecer a existência e distinguir</p><p>entre o direito estatal e não estatal, também chamado de direito grupal ou direito social:</p><p>[...] ao lado do direito estatal, existem outras normas obrigatórias, elaboradas por diferentes</p><p>grupos sociais e destinadas a reger a vida interna desses grupos. Estão nesse caso, pelo menos em</p><p>grande parte, o direito universitário, o direito esportivo, o direito religioso (canônico, muçulmano</p><p>etc.), os usos e costumes internacionais etc. [...] A atividade esportiva está, entre nós, como em</p><p>outros países, regulamentada não pelo Estado, mas pelas próprias organizações do esporte. Estas</p><p>elaboram normas e até mesmo códigos, que regulam, com força obrigatória, a atividade</p><p>esportiva. Existem, inclusive, tribunais esportivos, incumbidos da aplicação de tais normas</p><p>(MONTORO, 1999, p. 35-36).</p><p>Esse poder de estabelecer regras jurídicas internas (dirigidas ao grupo), na visão de Pedroso</p><p>(1993, p. 136), configura atos corporativos, “realizados pelas associações e corporações para a</p><p>regulamentação de suas decisões convivenciais. Visam à realização dos bens dessas sociedades”.</p><p>Outros autores classificam esse poder como de ordem negocial ou discricionária, caracterizando</p><p>um direito convencional ou direito corporativo, que dá origem a normas especiais, particulares</p><p>ou individualizadas. Leal Amado (2002, p. 149), citando Gomes Canotilho, lembra que “o</p><p>Estado democrático é um Estado povoado por normas de origem muito diferente, o cosmos</p><p>normativo dos modernos sistemas jurídicos é constituído, não apenas por normas emanadas de</p><p>entidades públicas, mas também por normas, que aliás assumem importantes funções regulativas,</p><p>oriundas de outros ordenamentos (por exemplo: o ‘ordenamento desportivo’)”. Porém, neste</p><p>momento, ainda não vamos avançar sobre o conteúdo das normas não estatais, já que o objetivo</p><p>presente é apenas apontar a diversidade de fontes que instruem o Direito Desportivo, bastando,</p><p>por ora, dizer que tais normas emanam do poder de direção, seguidos os fundamentos de</p><p>constituição, organização e funcionamento das entidades de administração do desporto, sendo o</p><p>Estatuto ou Contrato Social (v.g. Carta Olímpica) seu instrumento mais importante em escala</p><p>hierárquica interna, exercendo papel fundamental na atribuição de poderes internos e sua</p><p>distribuição por meio de organizações vinculadas. Desses poderes emanam, além das regras</p><p>desportivas (lex ludica), também as de ética e disciplina, tomando forma de códigos de ética e de</p><p>justiça desportiva, bem como as organizacionais, corporificadas em regulamentos de competição,</p><p>critérios para transferência de atletas entre clubes, dentre tantas outras voltadas para o</p><p>disciplinamento das atividades desportivas (lex sportiva). Podem ter caráter transnacional,</p><p>nacional, regional ou mesmo local, articulando-se em sistemas (gestão em rede) ou atuando de</p><p>forma isolada, de natureza formal ou não-formal, conforme veremos em detalhes neste livro.</p><p>Seja como for, Pontes de Miranda (1999, p. 435) já há muito tempo advertia: “Toda teoria que</p><p>empreste às regras estatutárias natureza de lei, regra jurídica, exorbita”.</p><p>7.1.2. Legislação nacional (fontes estatais): Ao enredo de tudo quanto já foi exposto, o século</p><p>vinte assinalou uma verdadeira explosão mundial da prática de esportes os mais variados, por</p><p>efeito da universalização das regras de cada modalidade, sob os auspícios de uma Federação</p><p>Internacional e dinamizado pela organização dos Jogos Olímpicos em proporções mundiais,</p><p>sendo considerado por muitos autores como o “Século do Esporte”. O ânimo da humanidade em</p><p>praticar esportes e ver seu país representado em competições internacionais se traduz na</p><p>fundação de milhares de entidades desportivas pelo mundo, de administração e de prática, em</p><p>especial visando articulação com as Federações Internacionais e com o Comitê Olímpico</p><p>Internacional (COI), surgindo intensas disputas pelo direito de filiação e representação. Nesse</p><p>ponto, é importante lembrar que a precariedade das comunicações, à vista do que conhecemos</p><p>hoje, impedia uma dinâmica de solução rápida e efetiva dos litígios de representatividade, de</p><p>maneira que por razões de ordem ou interesse público, muitos governos passaram a legislar sobre</p><p>a matéria, disciplinando a integração das suas associações nacionais no sistema federativo</p><p>desportivo internacional, bem como dos atletas em sua peculiar condição de profissional ou</p><p>amador (não-profissional). No Brasil foi assim, iniciando com a edição do Decreto-lei nº</p><p>3.199/41, apesar de existirem outros interesses políticos em jogo naquela ocasião. Com isso,</p><p>assistimos no transcorrer do século passado uma crescente intervenção estatal na organização</p><p>desportiva, fato que, com o passar do tempo, incomodou as Federações Internacionais e o COI,</p><p>que alegavam invasão da autonomia privada, além do risco de aparelhamento estatal das</p><p>instituições e a desconstrução da isenção política e ideológica do desporto, especialmente num</p><p>mundo, à época, dividido em blocos (socialista e capitalista), agravado por crises econômicas e</p><p>duas grandes guerras mundiais. A propósito, o esporte desempenhou um papel importante na</p><p>reconstrução de laços entre países separados pelos conflitos mundiais, reforçando seu prestígio,</p><p>ainda que vitimado, em algumas ocasiões, por atos terroristas e boicotes. Essa dimensão</p><p>agregadora do desporto dá ainda mais força e credibilidade ao sistema federativo internacional,</p><p>de maneira que a grande maioria dos países manifesta interesse em tomar parte das suas</p><p>atividades, por meio de associações nacionais de igual natureza (Federações Nacionais), visando</p><p>fortalecer alianças de relações amistosas entre diferentes comunidades e, subliminarmente,</p><p>demonstrar a capacidade, força e vigor da sua população, induzindo a destinação de recursos de</p><p>toda ordem para o fomento interno da prática desportiva, como repasses financeiros, construções</p><p>de instalações desportivas, formação de recursos humanos, custeio de despesas de atletas,</p><p>desenvolvimento de pesquisas científicas, promoção de competições, introdução nos sistemas de</p><p>ensino etc. Essa movimentação leva a uma crescente atividade legislativa voltada para a</p><p>regulamentação dessas questões esportivas, inclusive no trato da prática desportiva profissional,</p><p>formando assim um inovador ordenamento jurídico desportivo em cada país, conforme figura</p><p>abaixo.</p><p>Fig. 7.1. Estrutura normativa do Direito Desportivo.</p><p>A figura 7.1 diz respeito ao ordenamento jurídico desportivo, reunindo suas formas de expressão,</p><p>cujas fontes nascem privadas e avançam para as estatais, sendo desafio permanente dos</p><p>estudiosos do Direito Desportivo, de cada país, promover adequadamente sua integração,</p><p>contribuindo para a consolidação de um singular sistema normativo do desporto.</p><p>7.2. Posicionamento frente ao direito público e privado</p><p>Em face da multiplicidade de fontes informadoras, o Direito Desportivo não pode ser enquadrado</p><p>como pertencente à esfera do direito público ou do direito privado, e essa não é uma</p><p>particularidade sua, já que, no magistério de Luís Roberto Barroso (2002, p. 556): “Os domínios</p><p>do direito privado e do direito público convivem, modernamente, com grandes espaços de</p><p>superposição, marcados pela publicização das relações privadas, notadamente pela introdução de</p><p>normas de ordem pública na sua disciplina”. É por isso que se pode afirmar que o Direito</p><p>Desportivo é misto, a exemplo do Direito do Trabalho, como defendem alguns autores,</p><p>lembrando que muito do Direito Desportivo refere-se ao Contrato Especial de Trabalho</p><p>Desportivo, sem deixar de anotar a advertência de Amauri Mascaro Nascimento:</p><p>É correta essa concepção quando aponta a existência</p><p>de normas públicas e privadas no direito do</p><p>trabalho. Não considera, todavia, a preponderância destas em face daquelas. As normas públicas,</p><p>no direito do trabalho, existem em função dos vínculos de natureza privada (NASCIMENTO;</p><p>2002, p. 72).</p><p>O mesmo raciocínio serve ao Direto Desportivo. No Brasil, quando</p><p>O mesmo raciocínio serve ao Direto Desportivo. No Brasil, quando 1988), concluía Catharino</p><p>(1969) que o Direito Desportivo tinha forma heterônoma, ao sujeitar terceiros a uma norma</p><p>exterior ou à vontade de outrem, caractere próprio das regras e regulamentos de origem</p><p>internacional privada, sem deixar de obedecer também à legislação e normas administrativas do</p><p>país. Situação que na visão de Valente (1956, p. 27) conferia uma forma híbrida ao Direito</p><p>Desportivo, atendendo, simultaneamente, a princípios do direito público e do direito privado.</p><p>Jimézez Soto, ao analisar a realidade jurídico-desportiva da Espanha, prega a existência de um</p><p>“Derecho Público del Deporte”, como uma ramificação do Direito Administrativo Especial, já</p><p>que “buena parte del conjunto de las normas que constituyen el Derecho Público del Deporte,</p><p>pertenecen al ámbito del Derecho Administrativo, sin olvidar la presencia indubitada de las</p><p>normas penales, tributarias...” (in: SOTO; GARCIA, 2005, p. 61). Voltando ao Brasil, depois da</p><p>promulgação da Constituição Federal de 1988, que reconheceu expressamente “a autonomia das</p><p>entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento” (art.</p><p>217, inc. I), atenuou-se bastante a regulamentação estatal do desporto, mas sem deixar de</p><p>reservar à União competência para estabelecer normas gerais (art. 24, inciso IX c/c § 1º). Ou</p><p>seja, o denominativo Direito Desportivo é extremamente amplo e, apesar de ter um caráter</p><p>predominantemente de direito privado (natureza contratual e fundado na autonomia da vontade),</p><p>alberga normas estatais que regulam as relações entre particulares e entre Estado e indivíduos</p><p>(peculiar do direito público), até considerando o fato de a atividade desportiva depender de</p><p>recursos públicos para que tenha viabilidade enquanto direito social, como se verifica, por</p><p>exemplo, nas relações entre Estado/atleta em razão da Lei nº 10.891/04 (que institui a Bolsa-</p><p>Atleta); relações Estado/ entidades desportivas, em razão da Lei nº 11.438/06 (que dispõe sobre</p><p>incentivos ao desporto), e, mais recentemente, da Lei nº 12.868/13, que dispõe sobre repasse de</p><p>recursos da administração pública federal direta e indireta, para entidades desportivas.</p><p>7.3. Relação com os ramos clássicos do direito</p><p>Diante do afirmado até aqui, resta evidenciado que o Direito Desportivo reúne matérias</p><p>relacionadas a diversos ramos do Direito, segundo a divisão clássica doutrinária, já que sua</p><p>perspectiva é de construção de soluções jurídicas para viabilização da prática desportiva no</p><p>contexto territorial de cada país, senão vejamos.</p><p>7.3.1. Direito constitucional: Como norma fundamental, a Constituição Federal se impõe em</p><p>qualquer relação jurídica. No caso das atividades desportivas merece destaque as implicações</p><p>decorrentes dos direitos e garantias fundamentais, tutela das liberdades e ordem social. Ademais,</p><p>o fomento ao desporto foi compreendido constitucionalmente como “dever do Estado e direito de</p><p>cada um”, segundo a matriz do art. 217, além de atribuir competência legislativa em matéria</p><p>desportiva, dentre elas, a da União editar normas gerais, materializada na Lei nº 9.615/98, que</p><p>logo em seu art. 1º proclama: “O desporto brasileiro abrange práticas formais e não-formais e</p><p>obedece às normas gerais desta Lei, inspirado nos fundamentos constitucionais do Estado</p><p>Democrático de Direito”.</p><p>7.3.2. Direito civil e empresarial: A prática desportiva, por sua própria natureza, suscita uma</p><p>enormidade de relações sociais que invariavelmente remetem a implicações de ordem civil,</p><p>abrigadas pela Lei nº 10.406/02 (Código Civil), com destaque para os conteúdos relacionados à</p><p>personalidade e capacidade jurídica das pessoas naturais em adquirir direitos e contrair</p><p>obrigações; contratos em geral; responsabilidade civil; critérios para constituição e</p><p>funcionamento das associações, especialmente considerando ser dessa natureza jurídica as</p><p>entidades de administração e de prática do desporto, admitindo ainda o clube-empresa, também</p><p>regulado pelo Direito Civil (parte comercial), cuja importância levou Carlezzo (2004, p. 58) a</p><p>qualificar a existência de um “Direito Societário Desportivo”. 7.3.3. Direito trabalhista: Um</p><p>dos principais objetos de regulamentação da lei de normas gerais sobre desporto refere-se ao</p><p>praticado de modo profissional, atuando como legislação especial ao estatuído pela Consolidação</p><p>das Leis do Trabalho (CLT) e na legislação previdenciária. Martins Castro cita um exemplo</p><p>marcante dessa interdisciplinaridade:</p><p>Nas normas gerais do Direito do Trabalho, o contrato por prazo determinado é exceção e poder</p><p>viger no máximo por dois anos; no Direito Desportivo, o contrato de trabalho de um atleta</p><p>profissional tem que ser obrigatoriamente por prazo determinado e com duração nunca inferior a</p><p>três meses e nunca superior a cinco anos (in: RBDD n 1; 2002, p. 15).</p><p>Ou seja, a atividade do atleta profissional no Brasil (e no mundo), possui características próprias</p><p>e muitas são as implicações de ordem trabalhista que precisam ser singularizadas por via de</p><p>legislação especial, regulando questões como: contrato especial de trabalho desportivo (CETD);</p><p>cláusula indenizatória desportiva; cláusula compensatória desportiva; jornada de trabalho; férias;</p><p>prêmios; etc. Evidencia-se, neste caso, que o Direito Desportivo segue o regime jurídico do</p><p>Direito do Trabalho, mas com a observância das regras especiais inseridas na lei de normas</p><p>gerais sobre desporto (princípio da especialidade). Ante suas especificidades, temos inclusive a</p><p>cunhagem, por alguns doutrinadores, da expressão Direito do Trabalho Desportivo, ou, Direito</p><p>Desportivo Trabalhista. Trata-se de uma área muito concorrida e com forte demanda de</p><p>processos na esfera da Justiça do Trabalho, sendo do mesmo modo farta a jurisprudência.</p><p>7.3.4. Direito penal: Não havia na legislação penal brasileira (Decreto-Lei nº 2.848/40 – Código</p><p>Penal) a tipificação especial de crimes vinculados à atividade esportiva. Em 2006, Heloisa H. B.</p><p>dos Reis, já chamava a atenção neste sentido, escrevendo:</p><p>(...) é necessário estabelecer leis claras que disponham sobre a segurança do público, as</p><p>condições de infraestrutura dos equipamentos esportivos (no caso do futebol, os estádios) as</p><p>responsabilidades civis e criminais e as punições em caso de desobediência e/ou transgressão.</p><p>Todos esses itens são muito pouco elaborados ou inexistentes na Lei n. 10.671/03 (REIS, 2006,</p><p>p. 99).</p><p>A lacuna foi preenchida em 2010, com a publicação da Lei nº 12.299, alterando a redação da Lei</p><p>nº 10.671/03, conhecida como Estatuto de Defesa do Torcedor – EDT, incluindo o Capítulo XI-</p><p>A, que cuida da tipificação dos crimes e suas penas, como medida de prevenção e repressão aos</p><p>fenômenos de violência por ocasião de competições esportivas, mas que carece de maior</p><p>efetividade, conforme veremos adiante. Outra questão delicada no tocante ao Direito Penal e o</p><p>Direito Desportivo está relacionada com o doping, flagelo do atleta e “negação dos valores</p><p>intrínsecos do desporto, como, por exemplo: a ética, o fair play, a honestidade e porque não dizer</p><p>a própria saúde” (PUGA, 2008, p. 141), ao lado da violência entre atletas, especialmente no caso</p><p>de lutas e esportes de contato mais intenso, suscitando indagações quanto às suas consequências</p><p>penais, como limites de tolerância e consentimento do ofendido. Capez (2003) oferece uma série</p><p>de exemplos neste sentido:</p><p>Se alguém consente em participar de um esporte e vem a morrer em decorrência dos riscos</p><p>normais derivados de sua prática, qual a consequência? O fato é típico e deve ser investigado em</p><p>inquérito policial e, depois, ser objeto de processo criminal? A polícia deve interromper uma</p><p>partida de futebol para efetuar a prisão em flagrante de um atleta</p><p>que efetua uma jogada violenta</p><p>e desleal, de que resultem lesões graves no outro esportista? Competições de violência submetida</p><p>a regras constituem infrações penais ou devem ser consideradas irrelevantes? Até que ponto o</p><p>direito penal pode interferir preventiva (prevenção geral) e repressivamente (prevenção especial),</p><p>limitando a liberdade desportiva? (CAPEZ, 2003, p. 120-121).</p><p>Sobre doping, homicídio e lesões no desporto já escrevia Serrano Neves na década de sessenta</p><p>do século passado, desfraldando as teorias então vigentes, concluindo que o “fato do esporte”</p><p>não pode ser confundido com “fraude no esporte; com deslealdade no esporte; com jogadas e</p><p>golpes violadores de regras esportivas; com agressões, com vias de fato, com rixa, com ofensas</p><p>aviltantes, etc.” (NEVES, 1976, p. 134). Por seu turno, o Direito Desportivo serve-se</p><p>naturalmente do Direito Penal para instrumentalização da Justiça Desportiva, valendo-se de suas</p><p>técnicas e princípios na redação de códigos disciplinares e sua aplicação, em área classificada</p><p>pela doutrina como Direito Penal Desportivo, ou Direito Desportivo Disciplinar.</p><p>7.3.5. Direito tributário: A persecução ou não de fins econômicos, por meio da atividade</p><p>desportiva, e a remuneração de atletas e gestores de entidades do setor, é determinante para uma</p><p>série de incidências tributárias, ou, ao contrário, de isenções. A própria Lei nº 9.615/98</p><p>estabelece que a exploração e a gestão do desporto profissional constituem exercício de atividade</p><p>econômica sujeitando, especificamente, a observância de princípios como: transparência</p><p>financeira e administrativa e da responsabilidade social de seus dirigentes, dentre outros (art. 2º,</p><p>par. único). O Conselho Federal de Contabilidade (CFC) dispõe, inclusive, de normas específicas</p><p>para entidades desportivas profissionais (NBC T 10.13). Já as entidades de fins não econômicos</p><p>possuem regras próprias para escrituração de receitas e despesas, devendo ficar atentas quanto ao</p><p>desenvolvimento de atividades paralelas ao seu fim social, sob pena de desenquadramento da</p><p>condição de isenção de tributos e contribuições que lhe são, em princípio, asseguradas pela</p><p>legislação brasileira. Essas e outras questões fazem o direito tributário ter sérias implicações no</p><p>âmbito consagrado pelo Direito Desportivo.</p><p>7.3.6. Direito administrativo: Sendo a prática desportiva um direito social e, portanto, objeto de</p><p>ações governamentais para o seu fomento, são muitas as ações e recursos públicos carreados ao</p><p>setor, podendo ser citado os provenientes de receitas oriundas de concursos de prognósticos</p><p>(loterias); incentivos fiscais previstos em lei; programas de bolsa-atleta; convênios e outros</p><p>instrumentos de repasse de recursos públicos para entidades desportivas. Nessas situações, o</p><p>Direito Desportivo aproxima-se muito do Direito Administrativo, exigindo conhecimento da</p><p>organização administrativa brasileira, seus órgãos e instâncias, os princípios da administração</p><p>pública, atos e contratos administrativos, licitação pública, prestação de contas, órgãos de</p><p>controle, etc. A Lei de Incentivo ao Esporte (Lei nº 11.438/06), implica em uma série de</p><p>obrigações administrativas pelas entidades desportivas beneficiárias, conforme Termo de</p><p>Compromisso a ser firmado com o Ministério do Esporte. O mesmo se diga em relação aos</p><p>beneficiários do Programa Bolsa-Atleta do Governo Federal e os partícipes de convênios e</p><p>repasses de recursos públicos para execução de objetos desportivos. Logo, os operadores do</p><p>Direito Desportivo também devem conhecer a doutrina do Direito Administrativo.</p><p>7.4. Institutos jurídicos próprios (lex specialis)</p><p>Conforme estamos expondo, o Direito Desportivo caracteriza-se pela formulação de institutos</p><p>próprios, por via de legislação especial, como a Lei nº 9.615/98 e Lei nº 10.671/03, adequando a</p><p>prática desportiva no contexto social, ou seja, instituindo regras e princípios jurídicos específicos</p><p>que cuidam de situações de direito no meio esportivo, como, por exemplo: categorização das</p><p>entidades de administração e prática desportiva; do atleta profissional e não-profissional; do</p><p>contrato de formação desportiva; do direito de arena e dos direitos do torcedor. Tudo isso</p><p>repousa ao lado das tradições, usos, costumes e normas emanadas pelas entidades de</p><p>administração do desporto nacionais e internacionais, demandando suporte jurídico-científico</p><p>para estabelecer suas conexões e alcançar com precisão e segurança seu sentido, eficácia e</p><p>validade.</p><p>7.4.1. Princípios de natureza diversa e regime especial de interpretação: Ante a diversidade</p><p>de fontes informadoras e diferentes implicações jurídicas, torna-se evidente que a definição dos</p><p>princípios aplicáveis no âmbito do Direito Desportivo, e do consequente regime jurídico</p><p>pertinente na sua interpretação, deve levar em conta a norma aplicável ao caso concreto, partindo</p><p>do isolamento do fato jurídico, quando então poderemos adequadamente posicioná-lo, por</p><p>exemplo, como um fato imputável ou não criminalmente; com incidência ou não tributária; como</p><p>uma relação de consumo ou não; como um direito civil ou trabalhista. Essa dicotomia jurídica já</p><p>revela o quão desafiador é o Direito Desportivo. Inobstante, a legislação sobre desporto no Brasil</p><p>está recheada de princípios, os quais, como aponta Sundfeld (2001, p. 143), “são as ideias</p><p>centrais de um sistema, ao qual dão sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a</p><p>compreensão de seu modo de organizar-se”. Neste sentido, podemos destacar: (1) Princípios</p><p>constitucionais do desporto (CF/88, art. 217); (2) Princípios sociais do desporto (Lei 9.615/98,</p><p>art. 2º, I a XII); (3) Princípios do desporto profissional (Lei 9.615/98, art. 2º, par. único, I a V);</p><p>(4) Princípios da Justiça Desportiva (Lei nº 10.671/03, art. 34; CBJD, art. 2º). Valendo-se da</p><p>lição de Celso A. B. de Mello (2013, p. 97), atinentes ao Direito Administrativo, mas</p><p>perfeitamente cabíveis para o Direito Desportivo: “Todos estes princípios vigoram segundo</p><p>determinadas condições, regulamentação e limites, admitindo variantes, temperamentos e</p><p>qualificações particulares à vista do significado singular que assumem em função da legislação</p><p>concernente aos diversos institutos do Direito”. Logo, em cada caso será preciso conjuminar os</p><p>princípios de cada ramo do direito em sintonia com os princípios que são próprios do desporto,</p><p>dando efetividade a lex specialis. Por exemplo, no direito do trabalho vigora o princípio da</p><p>primazia da realidade, porém, em face da legislação desportiva, há de se considerar o princípio</p><p>da primazia da realidade desportiva (vide 13.5.1), levando-se em conta o princípio geral de</p><p>direito pelo qual lex specialis derogat legi generali. Nesse passo, revela-se a importância da</p><p>hermenêutica na aplicação do Direito Desportivo.</p><p>7.5. Hermenêutica e aplicação do Direito Desportivo</p><p>Como estamos vendo, as formas de expressão do Direito Desportivo predicam a essa disciplina</p><p>um caráter de internormatividade singular, que obriga ao estudo de diversos ramos do Direito</p><p>(constitucional, civil, trabalhista, administrativo, tributário, etc.) à luz de normas especiais e</p><p>institutos próprios criados para organização e disciplinamento da atividade esportiva em cada</p><p>território nacional, pareado de normas jurídicas privadas (lex ludica e lex sportiva), emanadas</p><p>pelas entidades de administração do desporto internacionais, nacionais e regionais, assumindo</p><p>um caráter formal ou não-formal, assim como destinadas a cumprir fins de natureza educacional,</p><p>de participação ou de rendimento (profissional e não-profissional). Logo, torna-se imprescindível</p><p>estabelecer métodos de integração e contextualização dessa pluralidade de ordenamentos e</p><p>conceitos jurídicos, à luz da ciência do Direito, que leve à propositura de um coerente sistema</p><p>normativo do desporto. Isto é, um todo orgânico, instrumentalizado por técnicas, processos e</p><p>argumentos de sistematização suficientes para atender reclamos de ordem prática, didática e</p><p>científica, revelando por um lado sua correspondência e harmonia, e por outro identificando</p><p>eventuais incompatibilidades</p><p>e consequências jurídicas, em busca de uma compreensão lógica da</p><p>sua plenitude, sendo imperativo para o manuseio mais seguro, objetivo e eficiente do chamado</p><p>Direito Desportivo, por todos aqueles que dedicam atenção ou atuam no segmento, combatendo</p><p>o empirismo muitas vezes reinante, sem perder de vista a advertência de João Lyra Filho:</p><p>Não será possível definir direito e aplicar justiça, em função de matéria desportiva, fora do</p><p>mundo do desporto, sem o espírito da verdade desportiva, sem o sentimento da razão desportiva.</p><p>Aquele que decidir questão originária do desporto, imbuído do pensamento formalizado nas leis</p><p>gerais, terá distraído a consciência da justiça (LYRA FILHO, 1952, p. 97).</p><p>7.5.1. Elementos e métodos de interpretação : Como em qualquer área do Direito, o domínio</p><p>de técnicas de interpretação de textos jurídicos é indispensável para que se possa compreender</p><p>adequadamente o conteúdo das normas e dar-lhes a aplicabilidade almejada, ainda que obscuro,</p><p>impreciso, incompleto, contraditório ou ambíguo. Como dito por Maximiliano (1979, p. 14), o</p><p>jurista, esclarecido pela Hermenêutica, que é a teoria científica da arte de interpretar, “explica a</p><p>matéria, afasta as contradições aparentes, dissipa as obscuridades e faltas de precisão, põe em</p><p>relevo todo o conteúdo do preceito legal, deduz das disposições isoladas o princípio que lhes</p><p>forma a base, e desse princípio as consequências que do mesmo decorrem”. É pacifico na</p><p>doutrina a identificação dos processos ou elementos: (a) gramatical; (b) lógico; (c) sistemático;</p><p>(d) histórico, e; (e) teleológico, na dinâmica interpretação do Direito. Todos esses elementos, de</p><p>alguma forma, contribuem no processo de determinação do sentido e do alcance dos postulados</p><p>normativos, sendo que em matéria desportiva ganha destaque o resgate histórico, já que o seu</p><p>desenvolvimento é marcado por grandes transformações sociais ao longo do tempo, em especial</p><p>no transcorrer do século vinte, renovando a ação do Direito nas suas considerações e</p><p>proposituras, sendo que muitos dos institutos vigorantes nesta área justificam-se no passado,</p><p>como a cláusula compensatória desportiva e cláusula indenizatória desportiva, em substituição</p><p>ao “passe”, por exemplo. Logo, é preciso conhecer historicamente a evolução dos direitos</p><p>desportivos. Não obstante, é através da análise histórico-evolutiva que vamos identificar as</p><p>origens do poder normativo exercido pelas Entidades Transnacionais de Administração do</p><p>Desporto (ETADs) e seus efeitos sobre as nações pelo mundo, a partir da incorporação do</p><p>desporto como fato social universal e presente no cotidiano da sociedade hodierna, de modo que</p><p>o elemento sistemático também assume papel relevante na contextualização deste processo de</p><p>integração normativa estatal e não estatal. Como observa Nader (2013, p. 278), o elemento</p><p>sistemático opera-se com suporte dos elementos gramatical e lógico, e “consiste na pesquisa do</p><p>sentido e alcance das expressões normativas, considerando-as em relação a outras expressões</p><p>contidas na ordem jurídica, mediante comparações”, permitindo chegar</p><p>-se a conclusões sobre seu caráter cogente ou dispositivo, principal ou acessório, comum ou</p><p>especial. De fato, essa é uma das operações mais importantes quando estamos a tratar de</p><p>questões desportivas, à vista da concorrência da legislação estatal e não estatal em algumas</p><p>circunstâncias. Por fim, a advertência que se faz é quanto ao que a moderna hermenêutica</p><p>classifica de elemento teleológico, que persegue os fins colimados pela lei, ou razão de ser da lei</p><p>(ratio legis), superando a corrente tradicionalista, que defendia a busca da mens legis ou</p><p>legislatoris (vontade, intenção, pensamento do legislador), calçada na ideia de que a lei era um</p><p>produto de convicção pessoal que deveria ser perseguido sem considerar qualquer outro</p><p>elemento; ou simplesmente da occasio legis (fatos históricos da legislação). Contudo, o elemento</p><p>teleológico não pode ser subvertido ao sabor da discricionariedade do intérprete, ancorado no</p><p>subjetivismo dos princípios (regras) da proporcionalidade e da razoabilidade, tão em voga na</p><p>atualidade, querendo extrair da lei um significado que ela não tem, ou mesmo tencionando</p><p>corrigi-la, invadindo a competência do Poder Legislativo e lançando mão de perigoso expediente</p><p>de insegurança jurídica, como bem observa Eros Grau (2013, p. 138), “endeusando princípios, a</p><p>ponto de justificar, em nome da Justiça, uma quase discricionariedade judicial”, sem métodos,</p><p>colocando em risco a “estabilidade, regularidade, normalidade e a harmonia do sistema jurídico”.</p><p>Não há dúvida quanto à pertinência e adequação do moderno elemento teleológico na</p><p>interpretação do Direito Positivo, o temor é quanto ao intérprete (comentador) astuto, de discurso</p><p>fácil, que despreza parâmetros básicos e fundamentais da dogmática jurídico-tradicional, cuja</p><p>linha de pensamento foi determinante para estabelecer as premissas da previsibilidade e</p><p>calculabilidade que asseguraram a racionalidade na aplicação do Direito no século vinte,</p><p>garantindo o desenvolvimento econômico, a estabilidade política e pelo qual se construiu a</p><p>sociedade hodierna. Renunciar aos métodos tradicionais em nome tão somente de uma efêmera</p><p>razoabilidade e proporcionalidade, destituída de quaisquer outras premissas axiológicas, é</p><p>rasgar códigos e pretender fazer justiça ao seu modo (ao invés de aplicar o Direito posto),</p><p>atendendo interesses particulares ou convicções pessoais ambíguas em abandono da dogmática</p><p>jurídica elementar. É dizer, anarquizando o Direito, fragilizando as instituições e a segurança</p><p>jurídica. Neste sentido, convém recordar que a Lei de introdução às normas do Direito Brasileiro</p><p>– LINDB, em seu art. 5º, dispõe que: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que</p><p>ela se dirige e às exigências do bem comum”. Ou seja, na aplicação “da lei”. Como diz Eros</p><p>Grau (2013, p. 20): “O intérprete está vinculado pela objetividade do direito. Não a minha ou a</p><p>sua justiça, porém o direito. Não ao que grita a multidão enfurecida, porretes nas mãos, mas ao</p><p>direito”. Sendo o Direito Desportivo suscetível de paixões inconfessáveis, animadas pelo amor</p><p>clubístico e interesses econômicos os mais diversos, devem sempre seus operadores estar atentos</p><p>à exegese forçada, ou lógica da preferência, sustentada em falsas premissas, quando se caminha,</p><p>por via do contorcionismo jurídico, do teleológico ao teratológico, segundo teses pela qual se</p><p>apaixona o intérprete no afã de defender interesse próprio, muitas vezes desapegado da lei,</p><p>quando não praguejando contra a letra fria da lei “de sorte que vislumbra no texto ideias apenas</p><p>existentes no próprio cérebro, ou no sentir individual, desvairado por ojerizas e pendores,</p><p>entusiasmos e preconceitos” (MAXIMILIANO, 1998, p. 103). Já disse Nader (2013, p. 262) e</p><p>merece ser repetido: “para a formação do intérprete é exigível, além de conhecimento técnico</p><p>específico, uma gama de condições pessoais, que deve ornar a sua personalidade e cultura”,</p><p>como a probidade, serenidade, equilíbrio e diligência, sem descuidar da curiosidade científica, já</p><p>que, em última análise, “interpretação é um ato de inteligência, cultura e sensibilidade” (p. 263).</p><p>7.5.2. Preenchimento das lacunas: Sendo abundante em correlações e princípios jurídicos, é</p><p>preciso ter especial cuidado, no âmbito do Direito Desportivo, também quanto à constatação e</p><p>preenchimento das lacunas, imanentes às codificações, que concerne a um estado incompleto do</p><p>sistema, ou seja, não encontra satisfação na ordem normativa estabelecida (vazio jurídico). Logo,</p><p>demandando por meios para sua integração, diante do postulado da plenitude da ordem jurídica,</p><p>“pelo qual o Direito Positivo é pleno em respostas e soluções para todas as questões que surgem</p><p>no meio social” (NADER, 2013, p. 194). De se observar que o Direito Desportivo é operado</p><p>efusivamente no ambiente privado das relações sociais, não cabendo ao Poder Judiciário, em</p><p>primeiro plano, solucionar questões do gênero, cumprindo aos administradores de entidades</p><p>desportivas e aos integrantes</p><p>da Justiça Desportiva, e mesmo de Câmaras de resolução de</p><p>conflitos, conforme o caso, agir neste sentido, demandando especial atenção e acurada técnica</p><p>para cumprir esse desiderato com eficiência e segurança jurídica, o que nem sempre se verifica</p><p>na prática. As lacunas não são um problema isolado do Direito Desportivo, posto que, de um</p><p>modo geral, o sistema jurídico, como construção humana, é dinâmico, multifário, progressivo,</p><p>aberto, incompleto e prospectivo, cuja divisão em ramos ou áreas de estudo (subsistemas) tem</p><p>por base unidades epistemológicas, “por isso pode haver tantos sistemas quantos forem os modos</p><p>de observar a realidade jurídica” (DINIZ, 1989, p. 76). Contudo, sempre se apoiando uns aos</p><p>outros. Nessa ordem de ideias, o preenchimento das lacunas no Direito Desportivo será sempre</p><p>em vista do caso concreto (individualizado), ou seja, partindo do isolamento do problema,</p><p>definindo sua localização em relação aos diversos ramos do Direito e eventual aplicação de lex</p><p>specialis (v.g. Lei nº 9.615/98 e Lei nº 10.671/03), construindo soluções vinculadas ao respectivo</p><p>regime jurídico (civil, trabalhista, penal, etc.), fundamentadas em razão suficiente, válida,</p><p>legítima e proporcional, com apoio na doutrina e jurisprudência. Deste modo, quando</p><p>identificamos um contrato civil, um benefício tributário, um convênio com a União ou uma</p><p>relação trabalhista, por exemplo, será à luz do conhecimento de cada ramo, consorciado ao</p><p>elemento especial da legislação de conteúdo desportivo, que indicará os caminhos a serem</p><p>seguidos na perquirição da lacuna e busca da norma completiva. Reporte-se, nesse ponto, que a</p><p>Justiça Desportiva no Brasil, instrumentalizada pelo Código Brasileiro de Justiça Desportiva</p><p>(CBJD), possui comandos próprios para a solução de lacunas, ao dispor, no art. 283, que: “Os</p><p>casos omissos e as lacunas deste Código serão resolvidos com a adoção dos princípios gerais do</p><p>direito, dos princípios que regem este Código e das normas internacionais aceitas em cada</p><p>modalidade, vedadas, na definição e qualificação de infrações, as decisões por analogia e a</p><p>aplicação subsidiária de legislação não desportiva” (redação dada pela Resolução CNE nº 29 de</p><p>2009). No mais, a Lei de introdução às normas do Direito Brasileiro - LINDB (antes designada</p><p>de Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro - LICC), qual seja, o Decreto-Lei nº 4.657, de 4</p><p>de setembro de 1942 (alterado pela Lei nº 12.376/10), é importante diploma para referendar</p><p>considerações gerais no âmbito do Direito Desportivo, em especial por este congregar normas do</p><p>Direito nacional e Direito internacional privado. Quanto às lacunas, dispõe o art. 4º da referida</p><p>lei que: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e</p><p>os princípios gerais de direito”. Perceba-se como é oscilante o Direito Desportivo, a exigir</p><p>profundo conhecimento técnico e legislativo de seus operadores e domínio de diferentes ramos</p><p>do Direito, para se chegar a uma solução justa de conflitos e litígios.</p><p>7.5.3. Conflitos normativos: Outra questão de grande voga na seara do Direito Desportivo</p><p>relaciona-se com a presença de antinomias no conjunto do seu sistema normativo, isto é, a</p><p>presença de proposições contraditórias, em especial considerando a articulação de normas</p><p>estatais (nacionais) e não estatais (internacionais e nacionais), quando os critérios da</p><p>anterioridade, especialidade e hierarquia não resolvem a situação, em alguns casos parecendo</p><p>impossível uma solução jurídica. Porém, é preciso observar que inexiste, stricto sensu, uma</p><p>hierarquia entre ordenamentos de fundamento distinto, senão condições de eficácia de um</p><p>perante o outro, como é o caso do direito internacional privado em relação ao direito estatal</p><p>nacional, ou seja, vale o que este admitir, já que o princípio da soberania nacional implica</p><p>vigência prevalente do seu ordenamento sob qualquer outro. Em sentido oposto, indaga-se</p><p>frequentemente sobre a legitimidade da aplicação de sanções externas a entes nacionais</p><p>motivadas pelo descumprimento de normativas de entidades estrangeiras, concebido como uma</p><p>ofensa à soberania nacional. Sobre este assunto vamos dedicar especial atenção no próximo</p><p>capítulo, por ocasião da análise da internormatividade público-privada e transnacionalidade do</p><p>sistema jurídico do desporto, mas antecipando que se trata de um debate estéril diante de um</p><p>conflito aparente, pois, conforme explica Maria Helena Diniz (1987, p. 26), não se pode “falar</p><p>em conflito jurídico ou incompatibilidade jurídica entre duas normas de ordenamentos</p><p>diferentes”. Ferraz Jr. (1994, p. 211) define antinomia jurídica “como a oposição que ocorre</p><p>entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridade competente</p><p>num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência</p><p>ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento</p><p>dado”.</p><p>7.5.4. Teoria do diálogo das fontes: Mais apropriado que falar em hierarquia das normas de</p><p>direito nacional estatal e de direito internacional privado, em matéria desportiva, é invocar</p><p>métodos que permitam construir uma ordem de ideias factível e proativa, assim como proposto</p><p>pelo professor alemão Erik Jayme, no tocante à Teoria do Diálogo das Fontes, estudada por</p><p>Claudia Lima Marques (2012), que adverte:</p><p>Reconstruir a coerência do sistema de direito ou de uma ordem jurídica nacional, em tempos pós-</p><p>modernos, de fragmentação, internacionalização e flexibilização de valores e hierarquias, em</p><p>tempos de necessária convivência de paradigmas e métodos, de extrema complexidade e</p><p>pluralismo de fontes, não é tarefa fácil e exige muita ciência e sensibilidade dos juristas</p><p>(MARQUES, 2012, p. 19).</p><p>O diálogo das fontes suscitado por Erik Jayme, para Claudia L. Marques, “pode ser usado em</p><p>várias áreas e disciplinas jurídicas, onde os direitos fundamentais e os valores constitucionais</p><p>iluminarem a aplicação – simultânea e coerente – de várias fontes” (p. 30), servindo assim de</p><p>base conceitual para proposições de ordem sistemática de coerência, de complementaridade e</p><p>subsidiariedade, e de influências recíprocas de adaptação ou coordenação. Essa técnica parece</p><p>bastante oportuna de aplicação ao Direito Desportivo, e de certo modo são albergadas quando</p><p>tratamos da relação de aproximação que o ordenamento nacional proporciona ao reconhecer a</p><p>existência de regras e normas internacionais de prática desportiva (supralegais), referendando sua</p><p>legislação sob tal perspectiva (vide: art. 1º, § 1º da Lei nº 9.615/98), promovendo a convivência</p><p>normativa “com campos de aplicação diferentes, mas convergentes, em um mesmo sistema</p><p>jurídico, plural, fluido, mutável e complexo” (MARQUES, 2012, p. 28). Vale dizer, entre as</p><p>normas das Entidades Transnacionais de Administração do Desporto (ETADs) e a legislação</p><p>estatal de cada país, a rigor, não há uma relação de hierarquia propriamente dita, já que aquelas</p><p>não retiram desta, seu fundamento de legalidade (senão apenas do Estado-sede da ETAD). Logo,</p><p>não há de se falar em norma fundante e norma fundada, como tradicionalmente se opera a análise</p><p>de legalidade dentro de um ordenamento jurídico, partindo sempre da norma fundamental</p><p>(constitucional), dentro do conceito de hierarquia normativa, ao estilo da “Pirâmide de Kelsen”.</p><p>Nessas condições, o conteúdo das normas não estatais em matéria desportiva, não vem</p><p>predeterminado pela norma estatal. O que existe é uma regulação estatal, em cada país, no</p><p>tocante ao reconhecimento das normas não estatais desportivas (emanadas pelas ETADs). Pode-</p><p>se dizer então que existe certa reciprocidade normativa entre as ETADs e os Estados, baseada na</p><p>contingência de arbitrariedades, isto é, evitando-se excessos normativos de ambos os lados, cada</p><p>qual reconhecendo seu espaço de ação, proporcionando a viabilização de um sistema jurídico</p><p>desportivo internacional, de valores transcendentes às próprias instituições, com fundamento no</p><p>reconhecimento mútuo do direito humano ao desporto. Ou seja, é preciso que haja solidariedade</p><p>e diálogo normativo entre os Estados e as ETADs, para que se possa fazer do desporto um</p><p>instrumento de convivência humana universal, superando dogmáticas e incontinências jurídicas</p><p>do poder estatal, ao reconhecer a dimensão criadora das ETADs de normas cogentes desportivas</p><p>de caráter internacional, bem ao estilo do diálogo das fontes, proposto por Erik James, findando</p><p>correlação entre a norma estatal e a não estatal, por via da eficácia que esta última poderá ter, ou</p><p>não, em cada país, à luz da sua legislação de regência. Certo é que, quanto mais as ETADs atuem</p><p>com integridade, transparência, moralidade e eficiência, menor será a necessidade de atuação dos</p><p>poderes estatais (executivo, legislativo e judiciário) na contenção de abusos e arbitrariedades, e</p><p>vice-versa, sendo o assunto melhor desenvolvido no próximo capítulo.</p><p>7.5.5. Direito Desportivo comparado: Diante da indissociável vinculação do Direito</p><p>Desportivo às regras e normas das ETADs, e a construção de diferentes soluções para sua</p><p>incorporação no cotidiano social e jurídico das nações pelo mundo, o estudo das bases jurídicas</p><p>adotadas pelos diversos países é de suma importância, em nosso caso, especialmente as</p><p>experiências filiadas à tradição do Direito Romano (“Civil Law”), de natureza formal e dedutiva,</p><p>que predomina na Europa continental e foi adotado pelos países da América do Sul, em</p><p>detrimento do sistema anglo-americano, ou “Common Law”, que leva a cabo um método</p><p>indutivo e desenvolve “uma interpretação dinâmica ou operacional do Direito, porque nele</p><p>prevalece o momento da aplicação da norma, implicando a fundamentação das novas decisões</p><p>em função de um precedente jurisprudencial, em contraste com a abstração normativa legal que</p><p>domina o sistema romanístico, onde normas escritas preordenam a atividade dos advogados e dos</p><p>juízes” (REALE, 1981, p. 4). Ensina Paolo Grossi (2010, p. 87) que “common law e civil law</p><p>constituem planetas jurídicos plantados em fundações diferentes e portadoras de diferentes</p><p>mentalidades: dois costumes jurídicos, senão opostos, certamente muito diversificados”. De se</p><p>observar, nesse ponto, que o Direito Desportivo brasileiro foi inicialmente construído com base</p><p>na experiência italiana, segundo Carlos Miguel C. Aidar ao afirmar que “o Decreto-lei nº</p><p>3.199/41 era uma cópia da legislação italiana vigente naquela época de 1941, era, portanto, uma</p><p>legislação fascista, ou seja, de um regime autoritário como era o regime da ditadura militar que</p><p>se vivia no Brasil” (AIDAR et al; 2000, p. 18). Depois da promulgação da Constituição Federal</p><p>de 1988, verificam-se contribuições do Direito Desportivo português e espanhol, até por motivos</p><p>de ordem linguística, histórica, cultural e mesmo jurídica, recomendando-se a leitura dos</p><p>doutrinadores da Península Ibérica e dos axiomas da civil law. Questão que se levanta</p><p>contemporaneamente é sobre a necessidade de uma coalizão estatal internacional, em busca de</p><p>soluções que impliquem no combate aos esquemas de corrupção infiltrados nas ETADs,</p><p>principalmente depois dos acontecimentos relacionados ao “escândalo da FIFA”, sendo que a</p><p>UNESCO, pelos papeis que já desempenhou em relação ao tema desporto, parece atender a esses</p><p>reclamos, conforme será explanado mais adiante.</p><p>7.6. A questão da autonomia científica do Direito Desportivo</p><p>Objeto de indagação desde o surgimento da locução Direito Desportivo versa sobre o seu</p><p>enquadramento autônomo, ou não, dentro do que a dogmática jurídica costuma classificar como</p><p>ramos do Direito, determinando seus pressupostos propedêuticos e epistemológicos,</p><p>especialmente para “fazê-lo prático ao conhecimento, às investigações científicas, à metodologia</p><p>do ensino e ao aperfeiçoamento das instituições jurídicas” (NADER, 2013, p. 349).</p><p>7.6.1. Ramo do Direito: Martins Castro (in: RBDD n 1, 2002, p. 16), examinando o assunto,</p><p>destaca posicionamentos favoráveis e contrários ao enquadramento do Direito Desportivo como</p><p>um ramo distinto, identificando-se com uma corrente intermediária, que o relaciona a “uma fase</p><p>pré-existencial, pois enseja a necessidade de formação, desenvolvimento e posterior solidificação</p><p>de sua efetiva existência”, apesar de Jean Loup, desde 1930, proclamar o Direito Desportivo</p><p>como um fato. Por sua vez Ferreira Silva (2009, p. 50) conclui que o “direito desportivo não</p><p>pode ser tratado como ramo autônomo do direito, a não ser que seja para fins didáticos”. Do</p><p>mesmo modo Cazorla Prieto (1992, p. 25) foi taxativo ao afirmar que “las normas jurídico-</p><p>deportivas no constituyen materia de conocimiento singular de una rama del Derecho</p><p>científicamente autónoma, ya que carecen de elementos imprescindibles para que pueda hablarse</p><p>de tal [...] a pesar de no dar pie a una disciplina científica autónoma”, predicando seus motivos</p><p>na 1ª edição da Revista Española de Derecho Deportivo (1993), em artigo intitulado</p><p>”Reflexiones acerca de la pretensión de autonomía científica del Derecho del deporte” (p. 21-25),</p><p>que em sequência do debate, na edição nº 5 (1995), reporta tese contrária de Granado Hijelmo,</p><p>em estudo denominado “La fundamentación sistemática del Derecho Deportivo” (p. 59-80). Isso</p><p>dá uma ideia das divergências doutrinárias que circundam o Direito Desportivo, mas que em</p><p>última análise conduzem ao mesmo fim da sua natureza didática, afinal, conforme Bastos e</p><p>Britto (1982, p. 10) acentuam, “falar de ‘ramos’ do direito, como habitualmente se fala, não</p><p>traduz senão singela metáfora de caráter e efeitos didáticos; metáfora que simplesmente enuncia</p><p>a existência de campos factuais singularizados, sobre os quais incidem as normas jurídicas”. O</p><p>que, de certa forma, revela o traço estéril do debate que se trava sobre a qualificação do Direito</p><p>Desportivo como ramo ou disciplina de estudo, já que a finalidade é a mesma, seja considerado</p><p>como for.</p><p>7.6.2. Disciplina acadêmica : No simbolismo da “árvore jurídica” pensamos que o Direito</p><p>Desportivo, ao reunir temáticas de inserção do desporto no contexto fático-normativo, melhor se</p><p>enxerga como fruto, que brota em diversos ramos tradicionalmente conhecidos (público/ privado,</p><p>constitucional, civil, trabalhista, penal, tributário, etc.), nutrindo-se dos seus princípios,</p><p>readaptados (transformados) ao sabor da lex specialis, como é o caso da Lei nº 9.615/98, ao</p><p>instituir normas gerais sobre desporto. Daí porque o Direito Desportivo não tem um regime</p><p>jurídico específico, à exceção da Justiça Desportiva, que possui codificação autêntica e</p><p>princípios próprios, chegando a ser classificada por alguns autores como direito desportivo</p><p>“puro” (Martins Castro, in RBDD nº 1, 2002), ou direito processual desportivo, como defende</p><p>Scheyla Althoff Decat (2013). Portanto, o Direito Desportivo é caracterizado pela</p><p>transversalidade de temas jurídicos que conjuga, em complexa profusão da razão do Direito com</p><p>o imaginário lúdico-agonístico que conduz à prática desportiva, criando um universo paralelo de</p><p>relações sociais que demandam suporte da ciência do Direito, assegurando aos indivíduos,</p><p>conforme seus anseios e aspirações, a realização de grandes ideais, como: educação, saúde,</p><p>sociabilização, qualidade de vida, lazer, trabalho e negócio. Todos esses fatores impõem uma</p><p>visão particularizada do Direito Desportivo, pelo qual se ofereça um tratamento diferenciado e</p><p>uma interpretação cuidadosa para cada caso, de maneira que, por via da prática esportiva, a</p><p>sociedade realmente alcance seus objetivos. Por tudo isso, o Direito Desportivo delimita uma</p><p>área de estudo e intervenção bastante ampla, significativa e importante socialmente, conduzindo</p><p>à sua categorização como disciplina acadêmica, cátedra, que há muito tempo importa seu</p><p>conhecimento não apenas por advogados e magistrados, mas também por dirigentes esportivos,</p><p>gestores públicos, atletas e seus agentes, profissionais de educação física, dentre tantos outros</p><p>intervenientes diretos e indiretos, oferecendo aos estudantes e profissionais do ramo, estudos e</p><p>pesquisas que contribuam na formação de especialistas, aptos a operá</p><p>-lo com eficiência e segurança jurídica. Assim sendo,</p><p>aos doutrinadores cumpre a missão de</p><p>elaborar e difundir métodos e técnicas que facilitem a compreensão do Direito Desportivo, ou</p><p>seja, propondo um “conjunto de procedimentos por meio dos quais se tornam mais fáceis e</p><p>eficientes a criação e aplicação do direito [desportivo], bem como se torna mais fácil, mais</p><p>adequado e completo o seu conhecimento” (GUSMÃO, 1986, p. 20). No século corrente já são</p><p>diversos os cursos de pós-graduação em Direito Desportivo, ao lado da criação de institutos e</p><p>outras associações de especialistas, em todo o mundo, diante da universalidade do fato social</p><p>desportivo. Aliás, aqueles que desconhecem seus fundamentos e dinâmica transdisciplinar, sua</p><p>internormatividade público-privada, sua peculiar jurisprudência, diversidade de princípios, usos e</p><p>costumes, dificilmente têm condições de atuar no segmento, quando não desdenhando frente sua</p><p>incapacidade de dominá-lo. Logo, o Direito Desportivo releva-se como área densamente</p><p>complexa, demandando por profissionais altamente especializados, mais ainda considerando a</p><p>sempre crescente relevância política, econômica e social do esporte, cuidando de assuntos como:</p><p>contratos de atletas profissionais e não-profissionais; direito de arena; direito de imagem; suporte</p><p>jurídico para gestão de eventos esportivos e gerenciamento de entidades de administração e</p><p>prática desportiva; elaboração de contratos de investimento, de patrocínio, licenciamentos,</p><p>naming rights; formatação de projetos com suporte em leis de incentivo e convênios;</p><p>atendimento de questões tributárias; acompanhamento de demandas judiciais e administrativas;</p><p>atuação na Justiça Desportiva; articulação com organizações internacionais, e por ai afora. Sob</p><p>outro aspecto, o profissional atuante na área do Direito Desportivo pode ser exigido no que se</p><p>refere ao domínio da técnica legislativa, diante do reconhecido poder legiferante das entidades de</p><p>administração do desporto, e mesmo por necessidade de órgãos governamentais, como</p><p>Ministério e Secretarias de Esporte, sendo requisitado para suporte na produção legislativa (leis),</p><p>de atos administrativos (decretos, portarias, resoluções, etc.) ou normas não estatais de conteúdo</p><p>desportivo (lex ludica e lex sportiva), quando precisará de conhecimento e habilidade suficiente</p><p>para dar tratamento esquemático às ideias diretrizes e assim prescrever normas de segura</p><p>precisão e perfeita compreensão, levando aos comportamentos desejados, em linguagem</p><p>acessível aos destinatários. Finalizamos esse capítulo com a impressão do catedrático italiano</p><p>Paolo Grossi, que bem se encaixa aos operadores do Direito Desportivo:</p><p>Hoje, o jurista vive um momento fértil e difícil: fértil, porque seu papel é por demais ativo e</p><p>estimulador; e difícil não somente pelas graves responsabilidades que pesam sobre suas costas,</p><p>mas também pelo extenso quociente de incerteza que envolve sua ação cognitivo-aplicada</p><p>(GROSSI, 2010, p. 86).</p><p>Capítulo 8</p><p>Sistema normativo do desporto</p><p>Estabelecer a articulação e precisar os efeitos do ordenamento jurídico em relação ao fato</p><p>desportivo, com rigor científico, em busca da solução adequada para cada caso, é naturalmente o</p><p>objeto central de estudo e aplicação do Direito Desportivo, respaldando o tratamento acadêmico</p><p>e a atividade profissional não apenas dos bacharéis em Direito, advogados e magistrados</p><p>(habituados à hermenêutica jurídica), mas também – e principalmente – dos dirigentes das</p><p>entidades de administração e prática desportiva, além de gestores públicos e outros</p><p>intervenientes, ladeado dos que integram os quadros da Justiça Desportiva e exercem uma</p><p>atividade permanente de interpretação derivada da função judicante. Ou seja, são eles que</p><p>executam os comandos jurídico-desportivos, funcionando como intérpretes primários das</p><p>referidas normas, isso quando não são os próprios responsáveis por sua elaboração, diante da</p><p>reconhecida competência legiferante das entidades de administração do desporto, manancial de</p><p>normas especiais, criadora da atividade desportiva, mas que deverá ser conduzida, sempre, de</p><p>acordo com as leis de cada país, já que “o poder do Estado é o mais alto existente dentro do</p><p>Estado, é a summa potestas” (AZAMBUJA, 1986, p. 50), exteriorizando sua soberania. Como</p><p>observado por Diniz (1989, p. 27): “É indubitável que a tarefa mais importante do jurista</p><p>consiste em apresentar o direito sob uma forma ordenada ou ‘sistemática’, para facilitar o seu</p><p>conhecimento, bem como seu manejo por parte dos indivíduos que estão submetidos a ele,</p><p>especialmente pelos que o aplicam”. Compreende, assim, “várias operações que tendem a exibir</p><p>as propriedades normativas, fáticas e axiológicas do sistema, bem como seus defeitos formais:</p><p>lacunas e antinomias, mas também a reformulá-los para alcançar um sistema harmônico” (p. 82-</p><p>83). Nesse contexto, e considerando a natureza mista do sistema jurídico em questão, propomos</p><p>o seguinte quadro de esquematização, em especial considerando a realidade brasileira da prática</p><p>desportiva formal (desporto de rendimento).</p><p>Fig. 8.1. Moldura do Sistema Normativo Brasileiro do Desporto de prática formal.</p><p>8.1. Internormatividade público-privada e transnacionalidade</p><p>A fig. 8.1 indica que no plano global (dimensão maior do quadro), existem regras e normas</p><p>editadas por Entidades Transnacionais de Administração do Desporto (ETADs), com destaque</p><p>para as Federações Esportivas Internacionais, o Comitê Olímpico Internacional (COI) e,</p><p>subsidiariamente, a Agência Mundial Antidoping (AMA/WADA) e o Tribunal Arbitral do</p><p>Esporte (TAS/CAS). Por sua vez, como já foi amplamente colocado na primeira parte deste livro,</p><p>diante da relevância econômica, social e política alcançada pelo desporto no transcurso do século</p><p>vinte, entenderam os governos mundo afora que não poderiam ficar alheios a esse fenômeno,</p><p>passando a legislar sobre a matéria (lex specialis) em nome do interesse público e/ou da ordem</p><p>pública (quando a soberania nacional sobreleva a liberdade individual), de maneira que a lei</p><p>passou a assumir um caráter mitigador da autonomia da vontade, justificada no sentido de</p><p>melhor organizar a prática desportiva dento de cada país. “Por isso, o intervencionismo estatal,</p><p>além do dever de garantir a força normativa da autonomia da vontade, passou a limitá-la em</p><p>favor de uma prevalência e preponderância do interesse social sobre o particular” (TÔRRES,</p><p>2005, p. 564). Houve, por assim dizer, o reconhecimento do desporto como um direito social,</p><p>dentro de um processo evolutivo marcado internamente pelos caracteres da tradição cultural,</p><p>regime de governo, desenvolvimento econômico, convicções sociais e ideais políticos de cada</p><p>Estado, limitando em diferentes graus a liberdade de ação dentro do respectivo território,</p><p>podendo chegar ao extremo da estatização em regimes totalitários. É assim que se vai</p><p>desenhando as formas e meios de integração do desporto dentro de cada país, tendo em comum o</p><p>reconhecimento (com maior ou menor intensidade) do sistema federativo e olímpico</p><p>internacional, e consequentemente dos seus ordenamentos jurídicos, induzindo um processo de</p><p>articulação (ou repulsa) de distintas ordens jurídicas, partindo do princípio de que: “Todas as</p><p>ordens jurídicas visam essencialmente à justiça, cada uma à sua maneira, com os seus métodos</p><p>próprios” (CUNHA; DIP, 2001, p. 40). Por esse caminho vai se formando um composto de</p><p>matéria jurídica desportiva (repertório), integrado pelos ordenamentos emanados das entidades</p><p>privadas, simultaneamente às leis de cada país, em uma superestrutura que produz efeito sui</p><p>generis, e que apesar da sua importância, como já destacado, não mereceu grandes estudos pelos</p><p>doutrinadores do Direito Internacional. Mas, enfim, este passa a ser um dos objetos centrais da</p><p>teoria do Direito Desportivo, indagar a integração da prática desportiva ao meio social e seu</p><p>sistema jurídico, articulando-o com os diversos ramos do Direito e a realidade de cada país, cujo</p><p>resultado é de diferentes direitos desportivos. Por assim dizer, temos o direito desportivo</p><p>brasileiro, o português, o espanhol, o francês,</p><p>o norte-americano, etc. Cada qual com suas</p><p>características e peculiaridades.</p><p>8.1.1. Sistema normativo do desporto brasileiro: No Brasil, a prática desportiva é considerada,</p><p>desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, como um direito social, expressamente</p><p>definido pelo art. 217 e seus parágrafos, no qual se reafirma a autonomia das entidades</p><p>desportivas dirigentes e associações, quanto à sua organização e funcionamento, dentre outros</p><p>comandos. Além disso, a Carta Maior, em seu art. 24, inciso IX, estabelece a competência da</p><p>União, Estados e Distrito Federal para legislar concorrentemente sobre desporto. No âmbito da</p><p>legislação concorrente, a competência da União limita-se a estabelecer normas gerais (§ 1º), não</p><p>podendo os demais entes públicos contraria-las, tampouco entidades privadas. Aos municípios é</p><p>permitido, além de legislar sobre assuntos de interesse local, suplementar a legislação federal e a</p><p>estadual no que couber, o que inclui a regulação da atividade desportiva, especialmente no</p><p>sentido de fomento e criação de sistemas municipais de esporte. Na Constituição de 1967,</p><p>referida competência era exclusiva da União (art. 8º, XVII, “Q”). Já nas Constituições do Brasil,</p><p>anteriores, não havia qualquer referência ao desporto, fato que não impediu o estabelecimento de</p><p>normas dessa natureza, como prova o Decreto-Lei nº 3199/41. A atividade legiferante estatal em</p><p>matéria desportiva, em qualquer país, pode ser convergente ou divergente dos ordenamentos das</p><p>instituições privadas desportivas, no todo ou em parte, com o fito de assegurar comportamentos</p><p>dentro dos ideais políticos e institucionais defendidos pelo governo, e esse é um dos pontos de</p><p>maior reflexão no âmbito do Direito Desportivo. Pelo mundo, ao longo do tempo, se observa</p><p>uma variação que vai do liberalismo amplo ao excessivo controle das instituições e atividades</p><p>desportivas. No Brasil, vivemos um período de quase absoluta abstenção legislativa até 1941,</p><p>seguido de grande intervencionismo a partir de então, inaugurado pelo DL nº 3.199, depois</p><p>substituído pela Lei nº 6.251/75, que perdurou até 1988, quando, dentro do processo de</p><p>redemocratização do país o legislador constituinte, influenciado pela comunidade esportiva,</p><p>demarcou um novo modelo organizacional para o desporto, mais liberal, desregulamentado,</p><p>deixando de submeter entidades locais à alta orientação e fiscalização de órgãos governamentais,</p><p>mas que aos poucos vem sendo retomado por meio de marcos regulatórios específicos, frente a</p><p>renovadas aspirações sociais, que defendem mecanismos de controle que assegurem a</p><p>integridade, moralidade e democratização na gestão das organizações desportivas, especialmente</p><p>quando há destinação de recursos públicos ou concessão de benefícios em seu favor.</p><p>Fig. 8.2. Sistema Normativo do Desporto (de rendimento) no Brasil.</p><p>Em termos atuais pode-se identificar o presente quadro de articulação do sistema normativo do</p><p>desporto no Brasil (fig. 8.2), em que dois ordenamentos (público e privado) vigoram</p><p>simultaneamente, estabelecendo direitos e deveres das entidades de administração e prática</p><p>desportiva e seus dirigentes, atletas, agentes, árbitros, técnicos, torcedores, dentre outros</p><p>destinatários, ressaltando que neste momento estamos a tratar da prática desportiva formal,</p><p>manifesta na forma de desporto de rendimento (profissional e não profissional), sendo que a</p><p>legislação brasileira também faz referência à prática desportiva não-formal, ao desporto</p><p>educacional e de participação, que não estão submetidos diretamente às normas e regras</p><p>internacionais, diante de outras finalidades propostas para tais manifestações, conforme veremos</p><p>no Capítulo 12 (Normas gerais sobre desporto). O problema que se coloca no âmbito da prática</p><p>formal, não apenas no Brasil, mas em qualquer outro país, é a existência de comandos diferentes</p><p>para uma mesma situação, em aparente conflito da legislação estatal com os ordenamentos</p><p>privados jusdesportivos. Além disso, como se tratam de ordenamentos distintos, cada um tem seu</p><p>próprio meio de resolução de conflitos, configurando outro grande desafio a ser enfrentado na</p><p>sistematização normativa do desporto de rendimento. Assim, quanto maior for a antinomia</p><p>(aparente), tanto mais complexa se torna solucioná-la, sendo conhecido o movimento das ETADs</p><p>na defesa da intervenção mínima do Estado, deixando-as livres para resolverem seus problemas</p><p>internos e solucionar seus litígios, em especial por se tratarem de relações privadas.</p><p>8.1.2. Limites da regulação estatal e autonomia desportiva: Nessa linha de pensamento,</p><p>quanto mais relevância social e legitimidade de ação adquiriram as ETADs ao longo do tempo,</p><p>mais incisivo se tornou o posicionamento contra ingerências governamentais no tocante aos</p><p>assuntos desportivos, e também em relação à autodeterminação das associações coligadas,</p><p>demarcando um modelo geopolítico inovador de “soberania desportiva” no “mundo do esporte”,</p><p>rompendo as tradicionais fronteiras jurídicas territoriais do Estado-nação, que não consegue,</p><p>sozinho, isolado, atender aos anseios de uma civilização transnacional e globalizada, ávida em</p><p>dinâmicas e complexas relações sociais, que passa a manejar cada vez mais habilmente meios e</p><p>instrumentos próprios para exercício de interações além de suas fronteiras, mantidas as tradições</p><p>do modelo associativo de fins não econômicos (apesar da crescente mercantilização do</p><p>desporto), estabelecendo uma cadeia de relações que criam um vínculo jurídico particularizado</p><p>entre seus aderentes. Tudo isso sem excluir formas de parcerias institucionais, financeiras e</p><p>operacionais com o setor público, como ocorre, por exemplo, na organização de competições</p><p>mundiais, quando países participam de compromissos formais no processo de candidatura para</p><p>sediá-los, assumindo obrigações legais e executivas de cooperação mútua, ao lado de</p><p>patrocinadores da iniciativa privada. Com isso, assistimos a um exercício de poder crescente das</p><p>organizações desportivas, na mesma medida do que já ocorria, há muito mais tempo, com as</p><p>sociedades empresárias de atuação mundial e sua expansão por via de conglomerados</p><p>multinacionais, donde vigora o liberalismo econômico e a finalidade de obtenção e distribuição</p><p>dos lucros entre os acionistas (fortemente regulamentado quanto ao seu regime tributário), sendo</p><p>esse o traço distintivo em relação ao modelo associativo de fins não econômicos, que implica na</p><p>impossibilidade (ilicitude) da distribuição dos lucros entre os associados, permitindo tão somente</p><p>a aplicação de eventuais saldos positivos ao final de cada exercício fiscal, na consecução dos</p><p>seus fins sociais. Inclusive, em razão disso gozam de certas imunidades e isenções tributárias</p><p>(regime especial). Quanto ao rechaço ao dirigismo estatal e a afirmação do “liberalismo</p><p>esportivo” pode-se enxergá-lo com vigor na Carta Olímpica, quando estabelece os princípios</p><p>fundamentais do Olimpismo, dentre os quais se destaca:</p><p>Item 5: Reconhecendo que o desporto ocorre no contexto da sociedade, as organizações</p><p>desportivas no seio do Movimento Olímpico devem ter direitos e obrigações de autonomia, que</p><p>incluem a liberdade de estabelecer e controlar as regras da modalidade desportiva, determinar a</p><p>estrutura e governança das suas organizações, gozar do direito a eleições livres de qualquer</p><p>influência externa e a responsabilidade de assegurar que os princípios da boa governança são</p><p>aplicados”. [...] Item 16(1.5): Os membros do COI não podem aceitar da parte de governos,</p><p>organizações ou demais terceiros, quaisquer instruções passíveis de interferir com a sua liberdade</p><p>de ação e voto (Carta Olímpica, de 08/07/11. Trad. do Inst. Português do Desporto e Juventude).</p><p>Isso revela que, face à supremacia territorial própria do poder estatal, outra solução não tinha as</p><p>organizações transnacionais do desporto, na orquestração de um sistema mundial de prática,</p><p>senão por via da sacralização da regra geral da não intervenção (ou mínima intervenção) estatal</p><p>sobre os assuntos do seu domínio (diante do primado da liberdade de associação consagrado</p><p>nos</p><p>“Estados de Direito”), naquilo que se define como matéria interna corporis, cimentando em suas</p><p>normas de regência que invasões de caráter legislativo, executivo ou judiciário, podem levar, em</p><p>última análise, à exclusão da entidade representativa daquela nação que assim agir, como</p><p>máxima reprimenda de natureza social, levando por consequência ao isolamento (ostracismo) do</p><p>país no cenário internacional desportivo. Em outras palavras, identificada uma ação entendida</p><p>como interferência indevida, instala-se um imbróglio que, em regra, é conduzido pela ameaça de</p><p>desfiliação da entidade representativa do país do respectivo sistema desportivo e consequente</p><p>exclusão de interação no ambiente internacional (reprimenda máxima). E aqui, não estamos</p><p>diante de uma questão de Direito Público Internacional ou de ameaça à soberania de um Estado,</p><p>tratando-se tão somente de relações políticas conflitantes entre uma ETAD em desacordo com</p><p>um Estado soberano, cujo desfecho, em geral, caminha para negociações amistosas e o</p><p>entendimento entre as partes, já que é de interesse comum manter essa coesão, sem prejuízo do</p><p>atleta-cidadão. Por esse ângulo evidencia-se que não existe, stricto sensu, conflito de normas</p><p>estatais e não estatais, já que transitam em paralelo (impossível colidirem), apenas expressando</p><p>posicionamentos políticos distintos, isto é, demarcando os limites das relações que podem existir</p><p>entre si e os meios de reação nos desacordos, ainda que de forma indireta, já que não há</p><p>enfrentamento jurídico entre Estados e organizações não-governamentais internacionais. Isso</p><p>revela a absoluta legitimidade regulatória tanto de um como de outro, na defesa de seus</p><p>interesses (que quanto mais convergirem melhor), em esferas e raios de ação diferenciados, mas</p><p>que alcançam os mesmos indivíduos (destinatários das normas). De um lado, em razão da</p><p>territorialidade (vínculo às normas estatais), e de outro, em face da liberdade de associação e</p><p>autonomia da vontade (vínculo às normas não estatais), permissivo de relações internacionais,</p><p>fundada em direito convencional, isto é, aquele livremente pactuado entre as partes, mas que</p><p>pode sofrer restrições pela ordem jurídica nacional. As ETADS, como destaca Mingst (2009, p.</p><p>180-181), “são protagonistas versáteis e cada vez mais poderosas”, mas que “não detém formas</p><p>tradicionais de poder”, logo, “recorrem ao poder suave (‘soft power’), o que significa</p><p>informações críveis, experiência, conhecimento técnico e autoridade moral que atraem a atenção</p><p>e a admiração dos governos e do público”. Vulneradas essas qualidades (v.g.: por abuso de</p><p>direito, casos de manipulação de resultados, fraudes e desvios de finalidade), apequena-se o</p><p>prestígio social da entidade, que tende a ver enfraquecidas as suas lideranças e ordenamentos de</p><p>suporte, dentro de um processo de corrosão e perda de credibilidade perante governos e a</p><p>sociedade em geral, e que pode levar à divisão ou ruptura do respectivo sistema transnacional,</p><p>conquanto os dirigentes não reconheçam seus erros e adotem, com seriedade e efetividade,</p><p>providências de transparência, afastamento e punição dos transgressores (preservando a</p><p>integridade da instituição), além de abrir espaço para a ação de concorrentes, sob as mais</p><p>variadas formas de organização e métodos de expansão, ainda que venham a enfrentar as</p><p>dificuldades naturais da migração de sistemas, somado a resistência do poder constituído</p><p>(establishment), ancorado em interesses comerciais já estabelecidos, especialmente vinculados</p><p>aos grupos de mídia (relativos a direitos de transmissão), e que exercem um grande poder de</p><p>influência sobre os fãs do esporte (consumidor final). A propósito, não se pode deixar de</p><p>observar que o padrão jurídico associativo de fins não econômicos, prevalente no início do</p><p>século passado no ato de constituição das ETADs, mostra-se atualmente desgastado e esgotado,</p><p>diante do fenômeno da ampla mercantilização do desporto de alto rendimento (vide p. I, itens</p><p>5.5.22-23-24), principalmente por não ter sido capaz de “distribuir renda” de maneira justa e</p><p>equilibrada, posto que no cenário atual temos, em regra, entidades de administração (nacionais e</p><p>internacionais) superavitárias, quando não abundantes em recursos; entidades de prática (clubes)</p><p>deficitários e endividados em grande parte, e; poucos atletas e profissionais do esporte muito</p><p>bem remunerados, em detrimento de uma esmagadora maioria de desafortunados e</p><p>desamparados ao final de suas carreiras. Esse desequilíbrio, inclusive, pode afetar as bases de</p><p>organização do desporto neste século.</p><p>8.2. Unidade do direito nacional e internacional desportivo</p><p>Como salientado, um dos aspectos que mais notabiliza o Direito Desportivo é o pluralismo de</p><p>instituições privadas que emanam normas não estatais, de um lado, e de outro, a normatização</p><p>estatal da atividade em cada país, caracterizando um ambiente jurídico de internormatividade</p><p>público-privada, ou, melhor dizendo, de unidade de Direito nacional e de Direito internacional</p><p>privado, demandando que sejam estabelecidos critérios de integração, de validade e de eficácia</p><p>(elementos de conexão), de modo a compreendê-lo como um todo harmonioso, ainda que</p><p>contenha incompatibilidades, apontando suas consequências e derivados de solução. Convém</p><p>recordar, no entanto, que essa autonomia e independência na produção de direito interno por</p><p>particulares, tem como marco a Revolução Francesa e seus caros ideais de liberdade, igualdade e</p><p>fraternidade, pareada de interesses da sociedade burguesa de cunho individualista e liberal,</p><p>marcando o início da Era Contemporânea e de novas formas de organização social, frente ao</p><p>progressivo reconhecimento da autonomia da vontade, da livre iniciativa e da liberdade de</p><p>associação, quando se passou a debater, então, “a questão de saber se essas entidades coletivas</p><p>podem tornar-se verdadeiros interlocutores do Estado e desempenhar eventualmente um papel</p><p>direto na produção de direito, da qual o Estado detém o monopólio” (BILLIER; MARYIOLI,</p><p>2005, p. 309).</p><p>[...] com relação às transformações sociais que estão a ponto de serem produzidas no fim do</p><p>século XIX, os indivíduos se constituem cada vez mais em associações, a fim de melhor</p><p>defender seus interesses. Associações mutualistas, profissionais, artísticas, científicas, literárias</p><p>estão a ponto de se multiplicar no final do século XIX. Elas demandam ao Estado que as</p><p>reconheça como entidades coletivas relativamente autônomas e que disponham, como todo</p><p>sujeito de direito, de capacidade jurídica (BILLIER; MARYIOLI, 2005, p. 308).</p><p>8.2.1. Teoria do Estado (monista): Ante o processo contínuo de positivação do Direito e</p><p>superposição do jusnaturalismo ao fim da Idade Média e que perpassou uma nova era de</p><p>transformações sociais com o advento do Estado soberano, depois repactuado pela Revolução</p><p>Francesa (tornando-se menos tirânico e despótico), destacam-se as teses desenvolvidas pelo</p><p>jurista e filósofo austríaco Hans Kelsen (1881-1973), que influenciaram sobremaneira na</p><p>reformulação da Ciência do Direito, em especial por obra da sua “Teoria Pura do Direito”</p><p>(1934), e depois a “Teoria Geral do Direito e do Estado” (1945), sustentadas também por outros</p><p>doutrinadores, e que tem na figura da instituição estatal o fundamento de validade de qualquer</p><p>ordem jurídica (monopólio da produção jurídica), quando o conceito de nação muda o paradigma</p><p>do “império do rei” pelo “império da lei”, e os indivíduos, progressivamente, migram da</p><p>condição de “súdito” para “cidadão”, sendo que a transação jurídica, como ato criador e</p><p>aplicador do Direito, na perspectiva da autonomia privada, era vista por Kelsen como uma</p><p>concessão de ordem secundária.</p><p>Ao dar aos indivíduos a possibilidade de regular a sua conduta recíproca através de transações</p><p>jurídicas, a ordem jurídica garante aos indivíduos certa autonomia jurídica. É na função criadora</p><p>de Direito da transação jurídica que se manifesta a chamada “autonomia privada” das partes. Por</p><p>meio de uma transação jurídica são criadas normas individuais e, às vezes, até mesmo gerais, que</p><p>regulam</p><p>seja presencialmente na arquibancada</p><p>da arena de jogos, seja no conforto da sala de nossas casas ou no convívio com amigos,</p><p>acompanhando os jogos pela TV. Atentas ao fato as redes de televisão criaram programas e</p><p>canais específicos, com transmissões abertas e pelo sistema pay-per-view, para atender essa</p><p>importante faixa de consumo, resultando na valorização crescente dos direitos de transmissão</p><p>detidos pelos clubes e entidades de administração do desporto. Com isso, e diante da cultura do</p><p>desporto assimilada, os fatos desportivos passam a fazer parte do contexto diário das nossas</p><p>relações sociais.</p><p>1.1.5. Investigação científica do desporto: A par de tudo isso, deve-se levar em conta, ainda,</p><p>que colocar pessoas em processo de competição, como ocorre permanentemente no ambiente</p><p>esportivo, envolve uma complexidade de estímulos e reações, tanto em seus protagonistas como</p><p>em relação aos espectadores (fãs do esporte), que demanda profunda investigação científica do</p><p>comportamento humano nessas condições, inclusive para que não haja o desvirtuamento de suas</p><p>finalidades (ex.: doping, violência no esporte, especialização precoce, corrupção e manipulação</p><p>de resultados). Deste modo, no transcorrer do século vinte, o desporto passa a ser cada vez mais</p><p>objeto de investigação científica por diversas áreas de conhecimento, como: Educação Física,</p><p>Sociologia, Psicologia, Medicina, Propaganda & Marketing, Administração etc. No âmbito da</p><p>ciência jurídica o desporto também lança seus desafios, passando a ser estudado com maior</p><p>ênfase depois da criação do Comitê Olímpico Internacional e da consolidação das Federações</p><p>Internacionais, unindo pessoas, instituições e países pelo mundo, numa crescente evolução em</p><p>importância política, social e econômica, demandando por maior estabilidade contratual, fomento</p><p>de políticas públicas e segurança jurídica das situações que produz, conforme iremos averiguar</p><p>na segunda parte desta obra.</p><p>1.2. Origem da palavra: desporto/esporte</p><p>1.2.1. Etimologia: Todos os historiadores convergem para a mesma origem da palavra</p><p>desporto/esporte, sendo que o alemão Carl Diem (1882-1962), influente doutrinador e dirigente</p><p>esportivo (Secretário geral dos Jogos Olímpicos de Berlim – 1936), atribuiu à França os créditos</p><p>de invenção da palavra no século XIII, “que habría de dar la vuelta al mundo” (DIEM, 1966a, p.</p><p>387). Contudo, foi o espanhol Miguel Piernavieja Del Pozo, Diretor do Centro de Investigação,</p><p>Documentação e Informação do Instituto Nacional de Educação Física e Desportos, quem mais</p><p>se aprofundou nesse estudo, buscando decifrar o enigma da sua gênese (“¿De donde viene la</p><p>palabra ‘deporte’ y qué significó originariamente?”), e que resultou no livro “‘Depuerto’,</p><p>‘Deporte’ protohistoria de una palabra” (1967). Sua obra tem por base documentos arcaicos</p><p>medievais e as formas ortográficas primitivas dessa palavra, especialmente com base nos idiomas</p><p>provençal (dialeto falado na antiga Provença, no Sul da França), antigo castelhano (que deu</p><p>origem ao moderno espanhol), catalão (língua românica falada na Catalunha, principalmente) e</p><p>francês, sendo incontroversa a origem mediterrânea ocidental da expressão, com os primeiros</p><p>registros datando do século XI e XII, nas formas: Deportare, desportare, déporter, déport,</p><p>deportus, desportus, disporto, disportum, depuerto, assim como na forma verbal deportar-se,</p><p>tendo como significado, fundamentalmente, divertir-se, recreio, regozijo (intensa sensação de</p><p>prazer, de alegria), exercício físico, sendo que: “Este significado originario ha perdurado hasta</p><p>nuestros días y figura en la base de todas las definiciones modernas que de la palabra ‘deporte’</p><p>se han propuesto” (DEL POZO, 1967, p. 35). Em glossários medievais, admitidas as grafias</p><p>apontadas e outras variações, ainda possui significados como: apoio, proteção, passear,</p><p>passatempo, jogar pelota, escárnio (burla), transporte, caça e pesca, divertido (deportoso). Temos</p><p>ainda o significado de jogo amoroso e diversão obscena, sempre por obra de poetas medievais.</p><p>“El uso de la metáfora amoroso-deportiva entre los griegos y latinos fue de uso bastante</p><p>corriente. La imagen lírica de Cupido con su arco y flecha perdura todavía en la expresión</p><p>popular del ‘flechazo’” (DEL POZO, 1967, p. 176). Intrigante é a definição do Dicionário de</p><p>Autoridades (1726-1739), da Real Academia Espanhola, para a palavra “deporte”, também</p><p>catalogada por Del Pozo, merecendo destaque:</p><p>DEPORTE. S. m. Diversión, holgúra, passatiempo. Es compuesto de la preposición De y la voz</p><p>Porte: y como esta signifique el trabájo de portear ò pasar las cosas de unos paráges à otros,</p><p>puede ser se dixesse Deporte para explicar se deponia absolutamente todo lo que era cuidado y</p><p>fatiga para divertirse mejor.</p><p>cuidado y fatiga para divertirse mejor.</p><p>1957), difundida no Brasil por Tubino (1993). Segundo o filósofo espanhol: “La palabra</p><p>‘deporte’ ha entrado en la lengua común procedente de le lengua gremial de los marineros</p><p>mediterráneos, que a su vida trabajosa en la mar oponían su vida deliciosa en el puerto. ‘Deporte’</p><p>es ‘estar de portu’”. Miguel Piernavieja reporta-se, ainda, à grafia arcaica “disportus”, que</p><p>“procede del inglés Disport y tiene el sentido de diversión, de solaz en el ejercicio físico,</p><p>concretado en la caza (montería y cetrería, venare y aucupare) y la pesca” (DEL POZO, 1967, p.</p><p>42). Mais adiante, observa que a consolidação da palavra “Sport”, em inglês, é “originada dicha</p><p>palabra sajona por el sentido de economía de ese pueblo, mediante la abreviación de disport,</p><p>levada a Inglaterra por los normandos […] (p. 54). Diante do contexto semântico e lexicográfico</p><p>delineado por Del Pozo, podemos resumir que a palavra em questão traduzia uma atividade</p><p>ociosa, espontânea, recreativa e liberadora, em clara oposição às atividades obrigatórias e</p><p>onerosas. Mas com o passar do tempo, em especial nas décadas de 1960-70, observa José Maria</p><p>Cagigal (1972) que alguns estudiosos – pela observação da realidade social e psicológica do</p><p>praticante – começam a prescindir o elemento lúdico anteriormente patente, para ressaltar outras</p><p>essências encontradas no esporte moderno, principalmente diante de novas direções tomadas</p><p>com a internacionalização da sua prática (por obra do surgimento das Federações Desportivas</p><p>Internacionais, no final do século XIX), ocasião em que esporte e jogo passam a ser tratados</p><p>como coisas distintas. Convém lembrar que, com o passar do tempo e o desenvolvimento dos</p><p>idiomas modernos, França e Itália adotam o termo em inglês, assumindo feição transnacional. Na</p><p>Espanha, a forma arcaica “depuerto”, a partir do século XV, cede lugar a “deporte”, sendo que</p><p>em Portugal usa-se “desporto”.</p><p>1.2.2. Morfologia: Seguindo agora com a análise morfológica da palavra, cabe destacar que, no</p><p>Brasil, não há consenso doutrinário quanto à adoção de uma forma como sendo mais correta em</p><p>detrimento de outra (esporte / desporto), com defesa de posições para ambos os lados. Nesta</p><p>seara, merece registro duas análises peculiares e reveladoras do conflito de posições, ambas do</p><p>século passado e externadas por ilustres estudiosos, de diferentes épocas. Defendia Américo R.</p><p>Netto, em artigo datado de outubro de 1938, o seguinte (mantida linguagem da época):</p><p>O ABRASILEIRAMENTO DOS TERMOS ESPORTIVOS: Data de 1921 o movimento</p><p>unânime que se produziu na imprensa de São Paulo para abrasileirar os termos esportivos que até</p><p>então eram usados nas suas línguas de origem: o francez e o inglez, principalmente. [...] AS</p><p>ORIGENS DA QUESTÃO: Portugal foi um dos últimos países a adotar a prática geral dos</p><p>esportes, motivo porque a língua portuguesa é tão falha de termos técnicos para as diferentes</p><p>modalidades das atividades esportivas. [...] No Brasil os esportes que adotamos foram trazidos da</p><p>Inglaterra e da França, diretamente na maioria dos casos, e com eles o seu vocabulário próprio</p><p>que não cuidamos, desde logo, de adaptar ao gênio e ao caráter da língua aqui falada, por</p><p>temermos, talvez, fazer com isso uma adulteração prejudicial aos próprios interesses do esporte</p><p>nascente. Desaparecia</p><p>a conduta recíproca das partes. (KELSEN; 2005, p. 199).</p><p>Em suas obras Kelsen faz uma análise da ordem jurídica estatal e sua peculiar condição de</p><p>superioridade dentro do território que emana, sendo que as normas criadas por transação jurídica</p><p>não passariam de espécies subalternas, “porque elas dão origem a deveres e direitos jurídicos</p><p>apenas em conexão com as normas gerais primárias que vinculam uma sanção à quebra de uma</p><p>transação” (KELSEN, 2005, p. 200). Entretanto, essa teoria é insuficiente para atender aos</p><p>reclamos de um arranjo transnacional, característico da ordem jurídico-desportiva na esfera da</p><p>prática formal (desporto de rendimento), ao reunir predicados de direito nacional e direito</p><p>internacional privado, o que não significa dizer que seja inválida, longe disso, mas apenas que</p><p>tem outro objeto de estudo, específico, monista, qual seja, o direito estatal, já que “a norma</p><p>jurídico-negocial [desportiva] não pode resultar da simples dedução more geométrico, do</p><p>princípio gradualístico da pirâmide [de Kelsen]” (PEDROSO, 1993, p. 109). Em busca de uma</p><p>solução para essa questão encontramos, primeiro, a “Teoria da Instituição” (1925), do francês</p><p>Maurice Hauriou, e depois a “Teoria do Ordenamento Jurídico”, do italiano Santi Romano</p><p>(1946), que, de acordo com Norberto Bobbio (1909-2004), discípulo de Kelsen e seu maior</p><p>defensor, não excluem, mas incluem a teoria normativa kelsiana, até mesmo funcionando como</p><p>seu pressuposto de validade. Caminho pelo qual se passa a conceber as ordenações da sociedade,</p><p>como unidades autônomas, constituindo também sistemas jurídicos, ao lado do estatal, ainda que</p><p>sua imperatividade seja relativa.</p><p>8.2.2. Teoria da Instituição (pluralista): É dentro do contexto social efervescente da Era</p><p>Contemporânea que Maurice Hauriou (1856-1929) teorizou sobre instituições e fundações,</p><p>dissecando os atos de comunhão que engendram uma “operação fundadora” por vontade comum</p><p>de diferentes indivíduos, constituída pela elaboração e aprovação de estatutos próprios de</p><p>regência de suas atividades, incluída a eleição dos administradores dessa nova criatura, dotada de</p><p>personalidade jurídica distinta de seus membros.</p><p>As grandes linhas dessa teoria são as seguintes: uma instituição é uma ideia de obra ou de</p><p>empresa que se realiza e dura juridicamente num meio social; para a realização dessa ideia,</p><p>organiza-se um poder que lhe confere órgãos; por outro lado, entre os membros do grupo social</p><p>interessado na realização da ideia, produzem-se manifestações de comunhão dirigidas pelos</p><p>órgãos do poder e regulamentadas por procedimentos (HAURIOU, 2009, p. 19).</p><p>Assim, de acordo com o ensaísta francês do vitalismo social, o despertar de uma instituição</p><p>resulta de uma operação jurídica, que constitui por si mesma um estado de direito, exercido por</p><p>meio de poderes estatutários e disciplinares sobre aqueles que voluntariamente desejarem e</p><p>venham a ser admitidos a participar do grupo e suas atividades, sendo este um dos reflexos da</p><p>Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. “É somente o poder organizado que</p><p>pode criar situações jurídicas e somente ele pode mantê-las” (Hauriou, 2009, p. 38). Na mesma</p><p>direção, Maria Helena Diniz (1989, p. 101), reportando-se a um direito vivodireito vivo 1922)</p><p>“entende que a realidade jurídica é composta de três categorias de direito: a) normas abstratas de</p><p>direito estatal; b) normas da sociedade extra-estatal; c) regras de decisão dos tribunais, em casos</p><p>de conflito”. Trazendo a matéria para o contexto do Direito Desportivo, Serrano Neves (1963, p.</p><p>18) já invocava a teoria institucionalista de Hauriou para avalizar o poder de auto deliberação das</p><p>associações desportivas e a inconveniência da intromissão estatal nas suas questões internas, em</p><p>vista da legislação vigente à época (DL nº 3.199/41), advertindo:</p><p>O que está vigorando entre nós, como se vê, apesar de todas as franquias democráticas, alçadas a</p><p>mandamentos constitucionais, é a estatização do desporto, só admissível nos países totalitários.</p><p>É uma estatização velada, sub-reptícia, de certa forma imperceptível, mas tremendamente</p><p>atuante, que age como um polvo, a estender seus tentáculos restritivos da liberdade de</p><p>associação, pois interfere, até, na economia doméstica das associações menores, tirando-lhes a</p><p>autonomia, desde que se atribui a um órgão do Estado funções jurisdicionais (NEVES, 1963, p.</p><p>24)</p><p>Dentro de uma perspectiva mais ampla, analisava o procurador de justiça e professor Antonio</p><p>Carlos de Campos Pedroso:</p><p>Deve haver uma área reservada pelo Estado para a atuação do ser humano que, em virtude de seu</p><p>próprio estatuto ontológico, necessita de uma esfera de liberdade de ação para a sua auto-</p><p>realização e seu desenvolvimento. Ao poder de constituir relações jurídicas deve corresponder o</p><p>de regular o conteúdo dessas mesmas relações, sempre em harmonia com o sistema legal. Logo,</p><p>a atividade negocial é fonte normativa (PEDROSO, 1993, p. 106).</p><p>As leis e constituições modernas e democráticas, de fato, consagraram esse princípio da</p><p>liberdade de associação e autogestão, vedando somente as de cunho ilícito. Neste sentido,</p><p>encontramos na vigente Constituição brasileira os seguintes dispositivos:</p><p>Art. 5º (...) XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter</p><p>paramilitar; XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem</p><p>de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento; XIX – as associações</p><p>só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão</p><p>judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado; XX – ninguém poderá ser</p><p>compelido a associar-se ou a permanecer associado; XXI – as entidades associativas, quando</p><p>expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou</p><p>extrajudicialmente.</p><p>Não bastasse, o art. 217, inciso I da CF/88 reafirma a autonomia das entidades desportivas</p><p>dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento, tema que vamos tratar mais</p><p>adiante.</p><p>8.2.3. Teoria do ordenamento jurídico: Voltando no tempo, para aprofundar o estudo do poder</p><p>normativo das entidades de administração do desporto, tratando de questão próxima à Teoria da</p><p>Instituição, Santi Romano (1875-1947) - aclamado como um dos principais construtores do</p><p>direito administrativo italiano - defendia que “as instituições não constituem fontes de direito às</p><p>quais deve acomodar-se o direito estatal, como pensava M. Hauriou, mas verdadeiras ordens</p><p>jurídicas coexistentes com aquela do direito estatal” (BILLIER; MARYIOLI, 2005, p. 312). Para</p><p>ele, “a instituição é um ordenamento jurídico, uma esfera em si mesma, mais ou menos</p><p>completa, de direito positivo” (ROMANO, 2008, p. 89), pois “o direito, antes de ser norma, antes</p><p>de se referir a uma simples relação ou a uma série de relações sociais, é organização, estrutura,</p><p>atitude da mesma sociedade em que é vigente e que para ele se constitui como unidade, como um</p><p>ser existente por si mesmo” (p. 78). Mais adiante conclui: “A instituição é um ente fechado que</p><p>pode ser examinado em si e por si, justamente porque tem uma individualidade própria” (p. 86).</p><p>Essa perspectiva romaniana abre oportunidade para o estudo do Direito Desportivo de uma</p><p>forma bem mais estruturada, centrada na existência de um pluralismo jurídico e de pluralidade</p><p>de ordenamentos jurídicos, como enfatiza J. J. G. Canotilho, professor lusitano catedrático da</p><p>Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, ao observar que: “No plano teórico, as bases</p><p>do discurso da internormatividade [desportiva] procuram-se na produção de cultores da teoria do</p><p>Estado nos começos do séc. XX, sobretudo na conhecida obra do jurista italiano Santi Romano</p><p>intitulada L’Ordinamento Giuridico (in: LEAL AMADO; COSTA, 2011, p. 8). Segundo Bobbio</p><p>(2010, p. 22): “A teoria da instituição rompeu o círculo fechado da teoria estadista do direito, que</p><p>considera direito somente o direito estatal, e identifica o âmbito do direito com o âmbito do</p><p>Estado”, atuando assim em concomitância</p><p>essa necessidade inicial de tolerância, não se extinguiu, entretanto, no que</p><p>diz respeito ao público, o uso quase generalizado de estrangeirismos dispensáveis. EXPOSIÇÃO</p><p>DE MOTIVOS: A aceitação, parcial ou total, de estrangeirismos desnecessários – e quase todos</p><p>os são – é um verdadeiro crime contra a língua pátria dos que assim procedem e, no caso</p><p>particular dos brasileiros, é, também, um crime contra a própria nacionalidade. [...] PORQUE</p><p>“ESPORTE”? [...] A Associação de Chronistas Esportivos não agiu arbitrariamente quando</p><p>decidiu, por proposta nossa, para aportuguesar a palavra “Sport” escrevê-la Esporte. Perguntar-</p><p>se-á, preliminarmente, porque se apelou para esse aportuguesamento, quando tínhamos a palavra</p><p>Despôrto, a favor da qual militam, como dissemos acima, séculos de vernaculidade. Diremos que</p><p>Despôrto é, por sua vez, uma adaptação, já antiga, da palavra italiana “Disporto” e que não</p><p>corresponde absolutamente, ao sentido atual, moderno, da palavra inglesa “Sport” tanto assim</p><p>que os próprios italianos desprezam o “Disporto” pelo “Sport”. Essa foi a principal razão do</p><p>aportuguesamento, também baseado na repulsa que o povo mais de uma vez tem demonstrado</p><p>pelo termo Despôrto, que não parece soar bem. Agora demos os motivos da grafia Esporte, que</p><p>se firma em dois princípios de adaptação de palavras estrangeiras à língua portuguesa e que são</p><p>os seguintes: Primeiro</p><p>– O “S” inicial das palavras estrangeiras que começam por essa letra seguida de consoante passa</p><p>para o português como “ES”, o que sucede até com as palavras derivadas do latim e do grego. Os</p><p>termos latinos “Spatha”, “Schola”, “Scutum”, “Sphaera”, deram, respectivamente, Espada,</p><p>Escola, Escudo, Espera. [...] [N. do A. – Segue com exemplos em germânico, escandinavo,</p><p>holandês, italiano, grego, polaco, russo e inglês]. O “E” inicial da palavra Esporte (adaptação de</p><p>“sport”) acha-se portanto justificado. Justifiquemos o seu “E” final. Segundo – É um fato</p><p>constante na língua portuguesa que as palavras estrangeiras terminadas com “B”, “C”, “D”, “F”,</p><p>“K”, “G”, “T” e “V”, são aportuguesadas mediante uma vogal final. Assim é com as palavras</p><p>francesas “Jarret”, “Colchet”, “Bivouac”, “Brulot”, “Sirop”, “Babouin”, “Parc”, deram Jarrete,</p><p>Colchete, Bivaque, Brulote, Xarope, Babuino e Parque. [...] [N. do A. – Segue com exemplos em</p><p>germânico, turco e inglês]. Tudo isso significa, à luz da lógica o “E” final de “Sport”. [...]</p><p>Anote-se que Américo R. Netto foi professor de História da Educação Física na Escola Superior</p><p>de Educação Física de São Paulo, autor de diversas obras na área, dentre as quais a</p><p>“Nacionalização da Terminologia Esportiva” (1920), diretor da seção esportiva do jornal Estado</p><p>de São Paulo e também chefe da delegação esportiva brasileira nos VIII Jogos Olímpicos (1924),</p><p>em Paris (NETTO, 1937). Entretanto, pensava diferente João Lyra Filho, escritor e advogado</p><p>com forte atuação no serviço público, e que foi presidente do CONSELHO NACIONAL DE</p><p>DESPORTOS – CND por seis anos, cujas contribuições na normatização do desporto no Brasil</p><p>encontram-se espraiadas até os dias de hoje, ao externar o seguinte:</p><p>DESPORTO, SPORT OU ESPORTE? Pedi uma resposta ao saudoso mestre Antenor Nascentes,</p><p>que se manifestou assim: - “Nem desporto nem sport, esporte. Desporto é um arcaísmo que</p><p>Coelho Neto procurou reviver quando se criou a respectiva Confederação [Brasileira de</p><p>Desportos – CBD]. Coelho Neto era muito amante de neologismos. [...] A palavra inglesa há</p><p>muito tempo está aportuguesada e bem aportuguesada; é usada por toda a gente. Devemos usar</p><p>a linguagem de todos, para não nos singularizarmos. Não está de acordo?” Respondi</p><p>-lhe, com a vênia devida, que permaneço na dúvida. Não desconheço a influência do goto [sic]</p><p>popular e estimo deveras as dominantes da literatura oral. Mas, indo às origens do nosso</p><p>vernáculo, identifico o uso da palavra desporto nas letras e na boca de Portugal. Não só os</p><p>quinhentistas, inclusive Sá de Miranda, empregavam desporto. Não tem havido outra opção no</p><p>escrever e no falar dos portugueses. A palavra desport já era de uso no francês antigo,</p><p>significando prazer, descanso, espairecimento, recreio; com este sentido, figura em poesias de</p><p>Chaucer. Os ingleses a tomaram por empréstimo, convertendo-a, depois, no vocábulo sport. Uma</p><p>nova razão faz-me permanecer adepto do vocabulário arcaico: ele foi atraído à própria</p><p>Constituição desta nossa República Federativa. O art. 8º, sobre a competência da União, dispõe</p><p>na alínea “q” do item XVII: “legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional; normas</p><p>gerais sobre desportos.” Não desejo ser denunciado como infrator da nossa carta Magna... Mas</p><p>a denúncia pode prosperar, com mudança de acusado, pois não são raras, na legislação do país,</p><p>as vezes em que os autores dos respectivos textos oficializam o vocábulo esporte (LYRA</p><p>FILHO, 1973, p. 13).</p><p>Essa questão era tão polêmica à época que, por força do DL nº 3.199/41 (estabelecendo as bases</p><p>de organização dos desportos no Brasil), foi definido no art. 45 o seguinte: “Será constituída,</p><p>pelo Ministro da Educação e Saúde, uma comissão de especialistas que estude e organize um</p><p>plano de nacionalização e uniformização das expressões usadas nos desportos”. Em nossa</p><p>Constituição Federal de 1988, continuou grafada a palavra “desporto” (seis vezes), já na</p><p>legislação infraconstitucional – como acusara anteriormente Lyra Filho – ora encontramos</p><p>desporto, ora esporte. A Administração Pública por sua vez, seja no âmbito federal, estadual ou</p><p>municipal, utiliza preponderantemente a palavra “esporte”, para designar órgãos afins</p><p>(Ministério do Esporte, Secretaria Estaduais e Municipais de Esporte, além de departamentos,</p><p>divisões e seções de esporte). Na mídia, consagrou-se a vontade dos cronistas esportivos,</p><p>seguindo e reafirmando o uso popular da palavra na forma “esporte”. Enfim, querer encontrar</p><p>distinção entre tais expressões, afigura-se como exercício de mera retórica, sendo inócuo quanto</p><p>a efeitos transformadores do seu significado e entendimento comum. Pois que se use a que mais</p><p>agradar: “desporto” ou “esporte”, restando a expressão em inglês sport para uso publicitário ou</p><p>simpatia pelo estrangeirismo, sem deixar de considerar a manutenção das tradições,</p><p>especialmente dos clubes fundados a partir do final do século XIX, que adotaram o Sport Club</p><p>na sua identificação, influenciados pela presença de estrangeiros em seus quadros.</p><p>1.3. Conceito: o que é esporte/desporto?</p><p>1.3.1. Definições objetivas, subjetivas e mistas: Na análise de J. O. Bento, sempre que tratamos</p><p>sobre desporto, estamos diante de um termo “concebido e interpretado como fenômeno</p><p>polissêmico e realidade polimórfica, múltipla e não singular” (in: TANI; BENTO; PETERSEN;</p><p>2006; p. 3). Além disso, no plano conceitual, “esporte/ desporto” é definido em termos objetivos,</p><p>subjetivos e mistos. É objetivo quando parte de uma descrição funcional e finalística da</p><p>atividade, tendo como exemplo a definição trazida no bojo da antiga Lei nº 6.251/75, que</p><p>instituía normas gerais sobre desportos no Brasil, ao estabelecer o seguinte:</p><p>Art. 2º. Para os efeitos desta Lei, considera-se desporto a atividade predominantemente física,</p><p>com finalidade competitiva, exercitada segundo regras pré-estabelecidas.</p><p>Essa objetivação direta do desporto, como atividade predominantemente física e com finalidade</p><p>competitiva, delimitava seu escopo tão apenas para o que hodiernamente reconhecemos como</p><p>sendo uma prática desportiva de rendimento, pelo que, desconsiderava outras formas de</p><p>manifestação. Referida norma foi expressamente revogada em 1993, com substituição pela Lei nº</p><p>8.672 (Lei Zico), na qual se adota uma definição mista, isto é, delimitando seu aspecto objetivo,</p><p>mas que, de acordo com o sujeito, poderia atender distintas finalidades, quais sejam, de caráter</p><p>educacional, de participação ou de rendimento, conforme segue:</p><p>Art. 3º. O desporto como atividade predominantemente física e intelectual pode ser reconhecido</p><p>em qualquer das seguintes manifestações: I - desporto educacional [...]; II - desporto de</p><p>participação [...]; III - desporto de rendimento [...].</p><p>Note-se que a definição de desporto, nesta ocasião, é ampliada para “atividade</p><p>predominantemente física e intelectual” em substituição ao conceito anterior de “atividade</p><p>predominantemente física”, ou seja, passando a contemplar os esportes intelectivos (ex.: xadrez,</p><p>damas). Não obstante, a Lei nº 8.672/93 foi revogada e substituída pela atual Lei nº 9.615/98 (Lei</p><p>Pelé), na qual se deixa de definir o desporto do ponto de vista objetivo, identificando tão somente</p><p>as características pertinentes à sua forma de manifestação (caráter subjetivo: dirigida ao sujeito e</p><p>não à atividade). Com isso, exclui-se do texto do art. 3º o trecho “como atividade</p><p>predominantemente física e intelectual”, conforme segue:</p><p>Art. 3o O desporto pode ser reconhecido em qualquer das seguintes manifestações: I - desporto</p><p>educacional [...]; II - desporto de participação [...]; III - desporto de rendimento; IV – desporto de</p><p>formação [...].</p><p>1.3.2. Delimitação de seus elementos: Não havendo na legislação brasileira, atualmente, uma</p><p>definição objetiva do que seja “esporte”, cabe interpretá-lo com base em documentos</p><p>informadores e na doutrina, sem antes deixar de consultar um dicionário, onde encontramos:</p><p>ESPORTE (c1880) 1. prática metódica, individual ou coletiva, de jogo ou qualquer atividade que</p><p>demande exercício físico e destreza, com fins de recreação, manutenção do condicionamento</p><p>corporal e da saúde e/ou competição; desporte, desporto (praticar e. faz bem à saúde física e</p><p>mental). 2. [Derivação: por metonímia] cada uma ou o conjunto dessas atividades; desporte,</p><p>desporto (o vôlei é e. popular no Brasil). 3. [Derivação por extensão de sentido] atividade lúdica</p><p>ou amadora; hobby, passatempo (fazer jardinagem por (ou como) e.). (HOUAISS, 2009, p. 822)</p><p>Já no especializado Dicionário Enciclopédico Tubino do Esporte (2007), temos a definição do</p><p>catedrático Manoel José Gomes Tubino, que contempla aspectos consagrados pelo</p><p>MANIFESTO MUNDIAL DA EDUCAÇÃO FÍSICA, documento aprovado no ano de 2000 pela</p><p>Fédération Internationale D’Educacion Physique (FIEP), a qual presidiu durante os anos de</p><p>2000 a 2004, fazendo-o nos seguintes termos:</p><p>ESPORTE CONTEMPORÂNEO: Fenômeno sociocultural cuja prática é considerada direito de</p><p>todos e que tem no jogo o seu vínculo cultural e na competição seu elemento essencial, o qual</p><p>deve contribuir para a formação e aproximação dos seres humanos ao reforçar o</p><p>desenvolvimento de valores como a moral, a ética, a solidariedade, a fraternidade e a cooperação,</p><p>o que pode torná-lo um dos meios mais eficazes para a convivência humana (TUBINO, M;</p><p>GARRIDO; TUBINO, F; 2007. p. 37).</p><p>Ainda no Dicionário Enciclopédico Tubino do Esporte encontram</p><p>-se colacionados documentos históricos que abordam o tema, dentre os quais, o MANIFESTO</p><p>MUNDIAL DO ESPORTE, aprovado pelo Conseil Internationale D’Education Physique et</p><p>Sport (CIEPS), 1968, no qual temos a seguinte definição:</p><p>Do Esporte: (1) Toda atividade física, com caráter de jogo, que toma a forma de um luta de seu</p><p>executante consigo mesmo, ou de uma competição com outros, é um Esporte. (2) Se essa</p><p>atividade se opõe a outrem, deve ser praticada com espírito de leal e cavalheiresco. Não pode</p><p>haver esporte sem Fair Play (in: TUBINO, M; GARRIDO; TUBINO, F; 2007. p. 594).</p><p>Outras organizações e inúmeros estudiosos do desporto, em todo o mundo, também buscaram</p><p>definir e delimitar essa atividade humana em termos conceituais, havendo diversas correntes de</p><p>pensamento e defesas de teses. Observa Rudolf Lencert (in: DIECKERT, 1984, p. 13), que</p><p>muitas vezes na fundamentação do esporte: “as razões de ser apresentadas são geralmente de</p><p>natureza heterogênea”. Isto é, indicando os benefícios da sua prática, como: manutenção da</p><p>saúde e combate ao sedentarismo, sociabilização, transmissão de valores como disciplina, ética,</p><p>respeito, etc. Não obstante, propõe seja adotada uma justificativa autônoma, concluindo que isso</p><p>somente será possível se apoiada na própria regulamentação das inúmeras modalidades</p><p>esportivas, da qual se poderá então extrair suas razões de ser (finalidade). Enfrentando essa</p><p>questão referido autor identifica que a dinâmica das modalidades é, invariavelmente,</p><p>condicionada a solução de problemas que exigem aprimorada motricidade corporal, ou seja,</p><p>ativando funções nervosas e musculares na realização de movimentos precisos e eficazes, para o</p><p>alcance de um objetivo, por exemplo: marcar gols no futebol; cestas no basquete; pontos no</p><p>vôlei; correr mais rápido; saltar ou arremessar mais longe; executar movimentos calculados na</p><p>ginástica. E essas possibilidades são inesgotáveis no contexto esportivo, ao fazer da solução do</p><p>problema uma competição, esse é o jogo. Assim, o esporte é um culto permanente à eficiência</p><p>(pelo movimento), nutrido pela eterna expectativa de superação e aprimoramento. Essa índole</p><p>pelo êxito e pelo progresso faz do homem um ser em constante ascensão e melhor condição de</p><p>vida na terra. O esporte permite exercitar essa inclinação. Segundo Lencert, “em oposição aos</p><p>animais a aquisição e o domínio da motricidade constituem, para o homem, um problema de</p><p>primeira grandeza” (in: DIECKERT, 1984, p. 15). Logo, pela definição objetiva, identificamos,</p><p>em regra, três elementos fundamentais na composição do esporte, que são o jogo, a competição e</p><p>o método; que se fundem e se tramam em imaterial consórcio, em maior ou menor grau de</p><p>intensidade, e que, somada à justificativa autônoma (culto ao movimento), permite formular o</p><p>seguinte conceito: ESPORTE</p><p>- Criação humana que conjuga os elementos jogo, competição e método, para fins de interação</p><p>social através do movimento.</p><p>Capítulo 2</p><p>A fórmula do esporte: jogo, competição e método</p><p>Admitida essa ordem de ideias, propõe-se o reconhecimento da prática desportiva a partir dessa</p><p>combinação elementar, correspondendo a uma fórmula padrão, que confere estrutura orgânica a</p><p>qualquer que seja a modalidade em questão, ao conter: (I) caráter de jogo; (II) elementos de</p><p>competição (busca de um resultado), e; (III) método (conjunto de regras e princípios normativos</p><p>que regulam sua prática), tendo por finalidade, promover a interação social através do</p><p>movimento.</p><p>Fig. 2.1 – Fórmula do esporte.</p><p>A interpretação do esporte como um meio de “interação social”, decorre do fator competitivo</p><p>atrelado à execução do movimento, sendo que muitas modalidades só podem ser praticadas em</p><p>grupo (esportes coletivos) ou na presença de um adversário (esportes de combate). Mesmo</p><p>aquelas que dependem de uma ação individual, como no tiro com arco, salto em altura ou</p><p>distância, só tem sentido em razão da comparação dos resultados em face de outros</p><p>competidores. O lema do Panathlon Club International, “ludis iungit” (o esporte une), retrata</p><p>bem esse significado social.</p><p>2.1. O jogo</p><p>Iniciamos a análise da fórmula do esporte pelo seu elemento “jogo”, adotando, em princípio,</p><p>uma divisão antiga e simplificada, relativa à prática de atividades esportivas, conforme anotado</p><p>por Pereira Dacosta (1980, p. 18):</p><p>Os esportes dividem-se em dois grandes grupos: os de meta objetiva e os de meta opositora. No</p><p>primeiro caso busca-se um desempenho pessoal contra uma marca qualquer, seja</p><p>individualmente (lançamento, saltos, tiro ao alvo); seja na presença de outros competidores</p><p>(natação, ciclismo, corridas). No segundo, o desempenho depende não só de uma atuação</p><p>individual, mas também do comportamento dos participantes opositores (futebol, voleibol, polo</p><p>aquático).</p><p>Portanto, ainda que não exista um confronto direto entre dois opositores, individual ou</p><p>coletivamente, forma clássica de um jogo, assim também o consideramos quando uma ação</p><p>individualizada seja destinada a atingir um objetivo para fins de comparação de resultados, de</p><p>maneira a determinar um vencedor. Feito isso, seguimos com Huizinga (1993, p. 10), que</p><p>defendia ser através do “jogo e pelo jogo”, enquanto atividade voluntária, que a civilização surge</p><p>e se desenvolve, observando ainda que, “sujeito a ordens, deixa de ser jogo, podendo no máximo</p><p>ser uma</p><p>imitação forçada”. Partindo dessa premissa, já fica evidenciado que o jogo, ao ser</p><p>praticado na forma desportiva, se despe da voluntariedade, já que submetido a métodos (regras</p><p>de prática), em que pese continuar a ser tratado como um jogo, neste caso, mais propriamente,</p><p>um jogo desportivo. Logo, o jogo pode ser entendido como uma prática desportiva (como de fato</p><p>o é), contudo, nem todo jogo é uma prática desportiva, ou, quando muito, é uma prática</p><p>desportiva emulada.</p><p>2.1.1 . Ludus, jocus, jogos e sua tradução como desporto: Del Pozo (1967), após estudar</p><p>documentos medievais, em especial relativos aos primórdios da organização do sistema judicial</p><p>espanhol, como o “Forum Conche” ou “Fuero de Cuenca” (dezembro de 1189), destinado a</p><p>estabelecer normas de convivência social em diversas comunidades locais e provocando sua</p><p>repercussão, como o “Fuero de Heznatoraf” (“Libro de San Fernando”), faz uma observação das</p><p>mais surpreendentes e reveladoras:</p><p>Conviene consignar que la voz latina ludus, juego, ha sido traducida como depuerto por el</p><p>adaptador de Heznatoraf. La versión del Valentino, en cambio, sólo habla de juego. Esta dúplice</p><p>interpretación de un mismo original confiere gran valor a la voz depuerto, que sobrepasa la</p><p>diversión en sentido estricto para abarcar plenamente el significado de ejercicio físico a</p><p>semejanza de hoy. (DEL POZO, 1967, p. 156)</p><p>A tradução que Del Pozo se refere, trata de trecho da legislação espanhola que cuida de casos de</p><p>ferimentos em situações de “juegos (depuertos)”, determinando: “La exención de culpa, en</p><p>determinadas circunstancias fijadas por las leyes, con referencia a acciones deportivas” (DEL</p><p>POZO, 1967, p. 153), já que naquela época havia a prática de esportes medievais como o</p><p>“lançamento de pedras” e o “tiro com arco”, ao ponto de exigir normas públicas vinculadas ao</p><p>seu exercício. Mas o que chama a atenção no texto é o intercâmbio entre as palavras jogo e</p><p>esporte, especialmente quando Del Pozo atesta que a palavra latina “ludus” (juego), no século</p><p>XII, começa a ser traduzida como depuerto. Essa dupla interpretação confere um grande valor a</p><p>atual palavra desporto, que sobrepassa o mero conceito de diversão para abarcar, plenamente, o</p><p>significado de exercício físico, à semelhança de hoje. Diante dessa importante informação, e</p><p>considerando a separação conceitual atual entre jogos desportivos e aqueles que se mantém na</p><p>esfera do lúdico, pode-se concluir que tal bifurcação teve como referencial essa prevalência</p><p>física, abarcando depois também os jogos que exigem apurada intelecção, como xadrez, damas e</p><p>gamão. Já os jogos cuja possibilidade de resolução é limitada e simples (especialmente</p><p>apreciados pelas crianças por essa razão), não possuem apelo para desportivização, pelo que</p><p>continuam lúdicos (jogos infantis), como, por exemplo: amarelinha, jogo da velha, pular corda e</p><p>pique esconde.</p><p>2.1.2 Delimitações do jogo: Em que pese reconhecer a importância da obra de J. Huizinga na</p><p>análise de “numerosas características fundamentais do jogo e de ter demonstrado a importância</p><p>do seu papel no próprio desenvolvimento civilizacional”, o sociólogo e ensaísta francês Roger</p><p>Caillois (1990, p. 23), não deixa de criticá-lo, pela demasia na definição de jogo e ausência de</p><p>métodos de classificação. Deste modo, propõe delimitações, definindo essencialmente o jogo</p><p>como uma atividade:</p><p>(1) livre : uma vez que, se o jogador fosse a ela obrigado, o jogo perderia de imediato a sua</p><p>natureza de diversão atraente e alegre; (2) delimitada: circunscrita a limites de espaço e de</p><p>tempo, rigorosa e previamente estabelecidos; (3) incerta: já que o seu desenrolar não pode ser</p><p>determinado nem o resultado obtido previamente, e já que é obrigatoriamente deixada à</p><p>iniciativa do jogador uma certa liberdade na necessidade de inventar; (4) improdutiva: porque</p><p>não gera nem bens, nem riqueza nem elementos novos de espécie alguma; e, salvo alteração de</p><p>propriedade no interior do círculo dos jogadores, conduz a uma situação idêntica à do início da</p><p>partida; (5) regulamentada: sujeita a convenções que suspendem as leis normais e que instauram</p><p>momentaneamente uma legislação nova, a única que conta; (6) fictícia: acompanhada de uma</p><p>consciência específica de uma realidade outra, ou de franca irrealidade em relação à vida normal</p><p>(CAILLOIS, 1990, p. 30-31, grifo nosso).</p><p>2.1.3. Classificação dos jogos: Para Caillois (1913-1978), que chegou a morar no Brasil, “a</p><p>extensão e variedade infindas dos jogos provocam de início o desespero na procura de um</p><p>princípio de classificação que permita reparti-los a todos num pequeno número de categorias</p><p>bem definidas” (CAILLOIS, 1990, p. 31). Com essa consciência, mas sem hesitação, propõe</p><p>uma divisão em 04 categorias fundamentais, a saber:</p><p>Agôn [competição]: Há todo um grupo de jogos que aparece sob a forma de competição, ou</p><p>seja, como um combate em que a igualdade de oportunidades é criada artificialmente para que os</p><p>adversários se defrontem em condições ideais, susceptíveis de dar valor preciso e incontestável</p><p>ao triunfo do vencedor. [...] É está a regra das provas desportivas [...]. É a razão pela qual a</p><p>prática do agôn supõe uma atenção persistente, um treino apropriado, esforços assíduos e</p><p>vontade de vencer. Implica disciplina e perseverança (CAILLOIS, 1990, p. 33-35).</p><p>Alea [sorte]: Em latim, é o nome para um jogo de dados. Utilizo-o aqui para designar todos os</p><p>jogos baseados, em clara oposição ao agôn, numa decisão que não depende do jogador, e na qual</p><p>ele não poderia ter a menor das participações, e em que, consequentemente, se trata mais de</p><p>vencer o destino do que um adversário. [...] Contrariamente ao agôn, a alea nega o trabalho, a</p><p>paciência, a habilidade e a qualificação; elimina o valor profissional, a regularidade, o treino. [...]</p><p>Determinados jogos como o dominó, o gamão e a maioria dos jogos de cartas, combinam agôn e</p><p>alea: o acaso preside a composição das “mãos” de cada jogador e estes, em seguida, exploram, o</p><p>melhor que puderem e com o vigor que tiverem o quinhão que uma sorte cega lhes reservou</p><p>(CAILLOIS, 1990, p. 36-37).</p><p>Mimicry [mimetismo]: [Neste caso o jogo caracteriza-se pela] encarnação de um personagem</p><p>ilusório e na adopção do respectivo comportamento. [...] Esquece, disfarça, despoja-se</p><p>temporariamente da sua personalidade para fingir ser outra. [...] Mímica e disfarce são assim os</p><p>aspectos fundamentais desta classe de jogos. [...] O prazer é o de ser um outro ou de se fazer</p><p>passar por outro. Mas, e uma vez que se trata dum jogo, a questão essencial não é ludibriar o</p><p>espectador [...] (CAILLOIS, 1990, p. 39-41). (N. do A.: Nos dias atuais podemos incluir os jogos</p><p>eletrônicos (videogames) nesta categoria, muito difundido e praticado por centenas de milhões</p><p>de pessoas por todo o mundo, no qual assumem a personalidade virtual (avatar) de jogadores de</p><p>futebol, pilotos de automobilismo, soldados, entre outros).</p><p>Ilinx [vertigem]: Um último tipo de jogos associa aqueles que assentam na busca da vertigem e</p><p>que consistem numa tentativa de destruir, por um instante, a estabilidade da percepção e infligir à</p><p>consciência lúcida uma espécie de voluptuoso pânico. Em todos os casos, trata-se de atingir uma</p><p>espécie de espasmo, de transe ou de estonteamento que desvanece a realidade com uma imensa</p><p>brusquidão (CAILLOIS, 1990, p. 43). (N. do A.: É o caso dos brinquedos de parques de</p><p>diversões).</p><p>2.2. A competição</p><p>Aceitando a divisão proposta por Caillois, delimita-se o jogo - enquanto elemento estruturante do</p><p>desporto - sobre aqueles da categoria de competição (agonísticos). Reconhecer a intenção</p><p>competitiva de um jogo significa adicionar-lhe valor, a ponto de despertar o interesse em obtê-lo</p><p>(vencer), mesmo que a recompensa seja imaterial ou irrisória (ex.: um simples título de</p><p>“campeão” e/ou o recebimento de um troféu simbólico), mas sempre carregado de valor</p><p>psicológico e social. Mais pragmático e racionalista R. Lencert defende que “talvez o maior</p><p>atrativo do esporte seja o fato de se poder tornar mensurável o nível alcançado de se solucionar</p><p>problemas de motricidade”</p><p>(in: DIECKERT, 1984, p. 16), especialmente diante da</p><p>imponderabilidade do jogo e das oscilações de performance, tornando a competição sempre um</p><p>momento instigante, ainda mais quando o equilíbrio entre os competidores se faz presente,</p><p>situação em que a genialidade ou sorte podem surgir para determinar um vencedor e construir</p><p>uma história esportiva. “Goste-se ou não, a competição e a concorrência são a alma e o grande</p><p>motor do desporto e da vida” (in: TANI; BENTO; PETERSEN; 2006; p. 14). E, quanto maior a</p><p>rivalidade e/ou valor da disputa em jogo, mais se impõe formalizar as condições da competição,</p><p>isto é, determinando seus métodos de prática (modus operandi), para que se torne coerente, justa,</p><p>aceitável e, portanto, legítima, decalcando assim a redução da espontaneidade do jogador, que</p><p>passa a ser limitado por regras, elevando o jogo ao patamar de uma atividade desportiva</p><p>(processo de racionalização do jogo).</p><p>2.2.1. Impulso competitivo (agonista/atleta): Agón é um termo de origem grega, tendo</p><p>significado de luta, disputa, conflito, discussão, combate. Freire e Ribeiro (2006, p. 22) incluem</p><p>nessa lista o sentido de “prova, concurso, jogo, e ainda assembleia, além de processo judiciário”.</p><p>Ensina o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa que na Grécia antiga, um indivíduo que se</p><p>dedicava à ginástica para fortalecer o físico ou como preparação para o serviço militar, era um</p><p>agonista; lutador. Outra forma de designá-lo era como atleta (athlete), sendo que athlon tem o</p><p>significado de luta. Já a palavra competição, em sua origem, de acordo com Lawther (1973, p.</p><p>32), vem do latim, “competere”, que significa “buscar juntos” (com = juntos e petere = buscar).</p><p>Na Idade Moderna, com o advento da industrialização seguida do liberalismo econômico e do</p><p>capitalismo, o conceito de competição passa por uma transformação, assemelhando-se ao de</p><p>concorrência, logo adotado no nascente ambiente esportivo, assimilando seus ideais de</p><p>rendimento e eficiência na incessante busca por melhores resultados (desempenho), tanto que na</p><p>atualidade o esporte de alto nível, cujo foco é a competição, é conceituado, ao menos no Brasil</p><p>(Lei nº 9.615/98, art. 3º, III), como desporto de rendimento, tendo por finalidade “integrar</p><p>pessoas e comunidades” (como era na Antiguidade) e “obter resultados”.</p><p>2.2.2. Do divertimento à seriedade: Se o jogo é algo que “ultrapassa a esfera da vida humana”,</p><p>nos dizeres de Huizinga, o esporte, enquanto formulação, é eminentemente uma criação humana</p><p>(racional), evoluindo, por consequência, no mesmo ritmo do processo civilizatório. Ou seja, a</p><p>partir da atribuição de valor ao resultado do jogo, estimulando a competição e exigindo a</p><p>formalização das suas regras de exercitação, é certo que toda a ação decorrente deixa de ser livre,</p><p>na mesma plenitude do jogo puramente descompromissado, isto é, encorajando posições mais</p><p>firmes e determinadas (sérias) em busca de um resultado favorável. Portanto, é atuando sobre</p><p>essa matriz de competitividade que se pode elevar o jogo ao extremo da seriedade, no qual é</p><p>exigido o máximo comprometimento do indivíduo (rendimento). Nessa escala de valores, entre o</p><p>jogo voluntário e aquele elevado ao máximo da competitividade, naturalmente repousam</p><p>finalidades distintas, principiando pelos objetivos educacionais, que podem ser alcançados</p><p>através dos jogos em que o aprendizado é a tônica, passando pelas oportunidades de ampla</p><p>interação social, recreação e lazer através do esporte (participação), até chegar ao grau de</p><p>máxima eficiência e técnica (alto nível). Essa dosagem é que irá demarcar a prática desportiva</p><p>educacional, de participação e de rendimento, conforme será objeto de estudo neste livro.</p><p>2.2.3. Desportivização do jogo (“desludificação”): A esse processo de valorização do resultado</p><p>do jogo conforme regras predefinidas (formalizadas) pode-se denominar “desportivização”. Em</p><p>dois momentos da história da humanidade identifica-se sua ocorrência, sendo a primeira no auge</p><p>da Antiguidade, com a desportivização das práticas atléticas e lutas, que deram origem aos Jogos</p><p>Olímpicos e outras competições do gênero (Jogos Píticos, Dóricos, Nemeus, etc.), porém, com</p><p>finalidade sagrada, sendo depois revivido, já como “desporto” propriamente dito, a partir do</p><p>século XII, encampando tais práticas sob um contexto profano de divertimento, e não mais de</p><p>culto ao sagrado. Segue, no limiar da Era Moderna, com o surgimento das associações privadas</p><p>de cunho declaradamente esportivo, que consolidam, de forma desmistificada (secularizada), a</p><p>institucionalização das regras de prática de diversos jogos espontaneamente surgidos e cultivados</p><p>pela sociedade (que aos poucos foram sendo classificados como “esporte”), cuidando da</p><p>organização de competições e da disciplina dos envolvidos, induzindo, mormente, sua</p><p>disseminação pelo mundo, inclusive ressuscitando os Jogos Olímpicos, estabelecendo os</p><p>contornos do sistema desportivo vigente nos dias atuais, cujas normas emanadas pelas entidades</p><p>constituídas são um dos principais objetos de estudo do Direito Desportivo, além de provocar</p><p>toda uma movimentação legislativa estatal, no sentido de harmonização com sua realidade</p><p>jurídica (diálogo das fontes), em face da projeção social alcançada por essa atividade no</p><p>transcorrer do século XX. Para Elias e Dunning (1985, p. 42-43), “a “desportivização”, se é que</p><p>posso utilizar esta expressão como abreviatura de transformação dos passatempos em desportos,</p><p>ocorrida na sociedade inglesa, e a exportação de alguns em escala quase global, é outro exemplo</p><p>de avanço da civilização”.</p><p>2.2.4. A produtividade do esporte: Partindo da definição de Caillois, de que o jogo é uma</p><p>atividade livre, delimitada, incerta, improdutiva, regulamentada e fictícia, caminhamos no</p><p>sentido de definir o desporto como uma atividade igualmente delimitada, incerta e fictícia,</p><p>porém,</p><p>parcialmente livre, muito regulamentada e estrategicamente produtiva . É parcialmente livre</p><p>exatamente pelo fato de se encontrar submetida a métodos formais (regras de prática). Quanto à</p><p>lógica da produtividade, temos que esse fato decorre da busca por um resultado, trazendo um</p><p>benefício ao vencedor. No ambiente esportivo, ao contrário da atmosfera lúdica e informal, não</p><p>se joga de forma espontânea e desinteressada, em verdade, joga-se de acordo com regras</p><p>estandardizadas e em busca de um resultado que, inexoravelmente, é a vitória, estimulada pela</p><p>concessão de honras, condecorações e premiações dos mais diversos gêneros, o que pode ser</p><p>taxado como um fim utilitário. Pelo que, tais atributos conferem, a nosso sentir, produtividade ao</p><p>jogo quando transformado em desporto. E quanto maior importância o jogo desportivo adquire</p><p>na sociedade, mais se valoriza enquanto produto.</p><p>2.2.5. A influência do capitalismo na prática do desporto (rendimento): Não se pode duvidar</p><p>que a metamorfose do jogo em desporto, isto é, de esplendida diversão para alta competição,</p><p>operou-se na mesma medida da transformação da economia feudal em capitalista, cujos valores</p><p>estão assentados na livre iniciativa e livre concorrência (os mesmos que sustentam o esporte</p><p>contemporâneo), ambiente no qual se destacam os melhores. Segundo Russell (2002, p. 32),</p><p>nesta fase: “A antiga propensão para a despreocupação e o divertimento foi de certo modo</p><p>inibida pelo culto da eficiência”. Tanto mais o capitalismo evoluía no mundo, enquanto sistema</p><p>econômico baseado na afirmação da iniciativa privada, mais reflexos causava na prática</p><p>desportiva, absorvendo seus princípios e refletindo na valorização da eficiência em meio à</p><p>concorrência (competição), premiando aqueles que alcançam melhor desempenho. Para Esteves</p><p>(1975, p. 11), “a competição desportiva do “homem-contra-o-homem”, em que uns ganham o</p><p>que os outros perdem, é, exactamente, a mesma que sabemos do processo económico e da</p><p>estratificação social. A vida é uma só, e o fenónemo social uma totalidade”. Essa cultura de</p><p>rendimento impregnou a prática desportiva e culminou na sua reorganização social, por via de</p><p>associações (clubes e federações) que até hoje estimulam</p>