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<p>A função de proteger e promover a saúde e Q bem-estar dos cidadãos é uma das mais GEORGE ROSEN importantes do Estado moderno, e representa a concretização de uma série de deliberações políticas, econômicas, sociais e éticas. Conhecer a História ilumina o interesse público pela saúde. Uma História da Saúde Pública conta a história da ação comunitária nesse campo, desde seu começo nas mais UMA HISTÓRIA antigas civilizações, até seu estado atual em países de economia e tecnologia DA George Rosen para um vasto círculo de leitores, profissionais de saúde e leigos, acreditando que uma conscientização crescente quanto aos problemas de saúde que afetam todas as camadas da população res- soaria a antiga máxima romana, e que nós L brasileiros também desejamos se consolide: A saúde do povo é a suprema lei. ISBN 85-7139-06 NESP Abrasco</p><p>Obra co-editada com a FUNDAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DA UNESP George Rosen Presidente do Conselho Arthur Roquete de Macedo Amilton Ferreira Diretora de Fomento à Pesquisa Hermione Elly Melara de Campos Bicudo Diretor de Publicações José Castilho Marques Neto EDITORA UNESP Diretor Castilho Marques Neto UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA Conselho Editorial José Gonçalves Anna Maria Martinez Corrêa Antonio Carlos Massabni Antonio Celso Wagner Zanin Antonio Manoel dos Santos Silva Tradução Carlos Erivany Fantinati MARCOS FERNANDES DA SILVA MOREIRA Fausto Foresti José Ribeiro com a colaboração de Roberto Kraenkel JOSÉ RUBEN DE ALCÂNTARA BONFIM Editores Assistentes José Aluysio Reis de Andrade Maria Apparecida F. M. Bussolotti Tulio Y. Kawata NESP Abrasco São Paulo, 1994</p><p>1958, by MD Publications, Inc. New York, U.S.A. Direitos de tradução (do original norte- americano A History of Public Health) e de publicação reservados pela Editora- de Humanismo, Ciência e Tecnologia "Hucitec" Ltda., Rua Gil Eanes, 713 - 04601-042 São Paulo, Telefo- nes: (011)543-0653 e 530-9208 (011)535-4187. Foi feito o depósito legal. Dedicado à memória de meu irmão Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasieleira do Livro, SP, Brasil) Jack Rosen (1912-1952) Rosen, George, 1910-1977. Uma história da saúde pública / George Rosen ; tradução Marcos Fernando da Silva Moreira com a colaboração de José Ruben de Bonfim, - São Paulo : Hucitec : Editora da Universidade Estadual Paulista ; Rio de Janeiro : Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, 1994. - (Saúde em Debate 74) Bibliografia ISBN 85-271-0262-5 (Hucitec) ISBN 85-7139-63-0 (UNESP) 1. Saúde Pública - História I. II. 94-2116 Índices para catálogo sistemático: 1. Saúde pública : História 614.09 Obra co-editada com a Av. Rio Branco, 1.210, Campos Elíseos CEP 01206-904, São Paulo, Brasil e com a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva Rua Leopoldo Bulhões, 1.480, Manguinhos CEP 21041, Rio de Janeiro; Brasil 703</p><p>NOTA SOBRE O AUTOR George Rosen nasceu em 1910, no Brooklin, cidade de Nova Dedicatória do Tradutor Obteve seu grau de doutor em Medicina em 1935, pela Faculdade de Medicina da Universidade de Berlim. A José Ruben Ferreira de Alcântara Bonfim Em 1945 recebeu título de doutor em Filosofia pela Faculdade de Eduardo Navarro Stotz e Ciências Políticas, e, em 1947, de mestre em Saúde Pública, ambos pela Pedro Gouveja Teixeira Universidade de Colúmbia. Agradecimentos do Tradutor Ocupou diversos postos junto do Departamento de Saúde da Cidade À Fundação Municipal de Saúde de na pessoa de de Nova York. Em 1951 tornou-se professor de Educação em Saúde da Aluísio Gomes da Silva Junior Escola de Saúde Pública e Medicina Administrativa da Universidade de A Rogério Cosme Vieira de Castro, pela digitação Colúmbia. Em 1959 passou a fazer parte do corpo docente da Escola A José Carlos Martins Barbosa Médica da Universidade de Yale. Editor, durante muitos anos, do American Journal of Public Health e do Journal of History of Medicine, sua obra escrita é extensa e valiosa. Citam-se os livros The History of Miner's Diseases: a Medical and Social Interpretation (Uma História das Doenças dos Mineiros: uma interpretação médica e social), de 1943, A History of Public Health (Uma História da Saúde Públi- ca), de 1958, Madness and Society: Chapters in the Historical Sociology of Mental (Loucura e Sociedade: Capítulos na Sociologia Histórica da Doença Mental), de 1968; From Medical Police to Social Medicine. Essays on the History of Health Care (Da Polícia Médica à Medicina Social Ensaios sobre a História da Assistência Médica), de 1974 (ed. brasileira: Graal, 1980, trad. de Loureiro) e Preventive Medicine in the United States, 1900-1975 (Medicina Preventiva nos Estados Unidos, 1900-1975), de 1976. George Rosen morreu em 1977. 9</p><p>Apresentação da edição brasileira 17 Prefácio da edição brasileira 19 Prefácio da edição norte-americana 25 Agradecimentos 27 AS ORIGENS DA SAÚDE PÚBLICA Saneamento e Habitação 31 Limpeza e Religiosidade 32 Doença e Comunidade 33 Notas do Tradutor 34 IT SAÚDE E COMUNIDADE NO MUNDO GRECO-ROMANO Grécia Problemas de doença 35 Difteria 35 Malária 36 A natureza da doença 37 Ares, águas e lugares 37 Colonização e assistência médica 37 Higiene e Educação em Saúde 39 Saúde ocupacional 39 Administração da Saúde Pública Roma O legado da Grécia 4 Suprimento de água e saneamento 4 Clima, solo e saúde 4. Doenças endêmicas e epidêmicas 4 A saúde dos trabalhadores 4 A assistência médica 4 Banhos, além de pão e circo 4 Administração da Saúde Pública 4 Notas do Tradutor 4 11</p><p>12 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA SUMÁRIO 13 108 III Notas do tradutor A SAÚDE PÚBLICA NA IDADE MÉDIA (500-1500 d.C.) V O de Roma 51 A SAÚDE EM UMA ERA DE ILUMINISMO E A Idade Média 52 REVOLUÇÃO (1750-1830) O crescimento das cidades 53 113 Um tempo seminal Problemas sanitários da vida urbana 54 114 Iluminismo e razão A proteção do consumidor 56 115 Do bem-estar humano Doenças 57 117 Aumenta a população Lepra, a grande praga 59 118 A campanha contra gim Os mortos-vivos 61 118 Uma chacina de inocentes A Morte Negra 61 120 Todos os males do ser e estados dos homens Quarentena 62 122 Lunáticos e conscientes As causas das epidemias 64 124 Hospitais e dispensários A organização da Saúde Pública 65 127 Melhorias da vida urbana A assistência médica 66 133 A saúde na política nacional Hospitais e instituições beneficentes 67 133 Um código de saúde para déspotas esclarecidos O regime de saúde 69 137 A saúde e os direitos do homem A façanha sanitária medieval 71 140 Uma política de saúde das freguesias Notas do Tradutor 71 141 Os registros da vida e da morte 144 IV Uma geografia da saúde e da doença 146 O MERCANTILISMO, O ABSOLUTISMO E A Conselhos ao povo 147 SAÚDE DO POVO (1500-1750) Um perfil de doenças Variolização o semelhante cura o semelhante 148 Admiráveis mundos novos 75 151 Causas e 76 A vacina e um médico rural 152 A antiga Saúde Pública e a Nova Ciência 77 Um mundo de carvão e ferro 153 Doenças novas para um mundo novo 78 Notas do Tradutor suor inglês 79 VI A febre das cadeias e os tribunais negros 79 O INDUSTRIALISMO E O MOVIMENTO SANITÁRIO (1830-1875) A moléstia rubra 157 O raquitismo, ou a doença inglesa As rodas satânicas 81 158 Escorbuto a morte negra do mar 82 A antiga Lei dos Pobres 159 As doenças dos trabalhadores A mobilização da força de trabalho 83 160 A grande pústula A doutrina da necessidade filosófica 85 161 A pequena pústula A visão da economia política 87 161 Malária e outras doenças Bentham e os filósofos radicais 88 162 Contágio ou constituição epidêmica? Entra o Sr. Chadwick 90 162 Leeuwenhoek e seus "pequenos animais" A nova Lei dos Pobres 93 Crescimento urbano e problemas da cidade 163 Fundações da administração em Saúde Pública 94 167 Aritmética política: os registros do Estado Menos doenças, menos impostos! 95 170 Uma Política Nacional de Saúde As condições sanitárias do povo 98 173 A cidade e a saúde pública A Comissão da Saúde das Cidades 101 176 Limpeza das ruas e drenagem Conselho Geral de Saúde 103 177 Suprimento de água: empreendimento privado Sai o Chadwick 104 179 aleijado, 0 manco e o cego "Que estranhas as vias do paradoxo!" 106 181 Uma de transição Dois passos à frente, um passo atrás 108</p><p>14 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA Eppur, si 182 Bibliografia selecionada O urbanismo e as origens da Saúde Pública americana no século XIX Um livreiro se torna cruzado 190 Figuras memoráveis História da Saú O Inquérito Sanitário de Nova York, de 1864 192 Um Departamento Nacional de Saúde 195 Índice de assuntos Revolução social, industrialismo e higiene pública na França 197 Unificação nacional e reforma sanitária na Alemanha 199 Índice onomástico Uma era de entusiasmo estatístico 203 Mulheres e crianças primeiro 206 Um período de grandes epidemias 214 E algumas menores 216 Miasma versus contágio: um enigma epidemiológico 222 Primeiros passos para uma Organização Internacional de Saúde 224 Notas do Tradutor 226 VII A ERA BACTERIOLÓGICA E SUAS (1875-1950) elemento específico na doença 231 "Um relato mais racional da sarna" 232 Uma doença de bichos-da-seda 232 Um anatomista revolucionário defende uma idéia ultrapassada 233 Fermentos e micróbios 236 A doença do bicho-da-seda e a teoria microbiana 238 Um botânico recebe um médico desconhecido 241 Anti-sepsia e assepsia na cirurgia 246 A Bacteriologia e a Saúde Pública 248 As doenças evanescentes 260 Notas do Tradutor 266 VIII A ERA BACTERIOLÓGICA E SUAS (CONCLUSÃO) Tendências econômicas e sociais em uma sociedade mutante 267 O bem-estar de mães e crianças 270 A saúde da criança em idade escolar 281 Surge uma nova enfermeira 287 Ação voluntária pela saúde 293 Ensinando saúde ao povo 300 A ascensão da Nutrição científica 308 A saúde e 0 bem-estar do trabalhador industrial 319 Melhor assistência médica para o povo 332 A responsabilidade do governo na melhoria da saúde 349 "Nenhum homem é uma 359 "Aquele mundo invisitado, cujas margens se afastam " 365 Notas do Tradutor 371</p><p>TABELAS APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO BRASILEIRA 1. Taxas médias de mortalidade para Hospital Britânico de Partos 120 2. Percentagem da população, da Inglaterra e do País de Gales, em Comunidades Urbanas 164 3. Descoberta de organismos patogênicos 245 Artrópodes responsáveis pela transmissão de doenças humanas 254 5. Taxas de mortalidade geral na Inglaterra e no País de Gales, e na França, por 1.000 hab 262 6. Taxa de mortalidade média anual por febre tifóide (por 1 milhão de pessoas, na Inglaterra e Gales) 263 É com grande prazer que apresentamos ao leitor de língua 7. Países, ano de nomeação e nomes dos primeiros inspectores médicos 322 portuguesa, destas bandas e, eventualmente, d'além-mar, a primeira edi- 8. A importância dos fatores econômicos e sociais na saúde do povo 360 ção brasileira do livro de George Rosen A History of Public Convi- dado pelos editores da coleção "Saúde em Debate" da Editora "Huci- tec", para escrever o prefácio da obra, transferimos, de comum acordo, a honrosa imcumbência a José Ricardo Ayres, companheiro do Departa- ILUSTRAÇÕES mento de Medicina Preventiva, FMUSP, por estar ele mais qualificado (entre Cap. 7 e Cap. 8) para fazer uma concisa análise do texto do que nós, uma vez que, em sua tese de mestrado (J. R. Ayres, A Epidemiologia Projeto Emancipador nas Práticas de São Paulo: dissertação de mestrado, Departamento de Múmia egípcia (c. 1000 a.C.) Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, USP, 1991) ele desenvol- Ruínas de uma latrina comunitária em Corinto veu, em um dos capítulos, uma excelente análise histórica das origens e Estátua de Hipócrates do desenvolvimento da Saúde Pública a partir do movimento da Reforma Cloaca Maxima Sanitária do Estado Liberal Inglês de meados do século XIX. Encanamento de chumbo ao lado de uma casa romana Ficamos, portanto, com a tarefa mais fácil, a de recomendar aos leitores Estátua de Galeno o livro que está sendo lançado. Esta recomendação, contudo, deve mere- Ruínas dos banhos de Caracala, em Roma cer alguma fundamentação. Com este objetivo, e para não correr o risco Xilogravura de Razes de de realçar apenas alguns dos aspectos que Monges e monjas cuidando de pacientes justificam a tradução e publicação do livro. Interior do hospital Hôtel-Dieu, Paris O primeiro refere-se à densidade do conteúdo da obra, em termos de citações, de crônicas e análise histórica, fundamentado Thomas Sydenham numa extensa bibliografia que está fora do alcance dos pobres leitores Bernardino Ramazzini nesta parte do mundo subdesenvolvido. Em segundo lugar, esta, e a Johann Peter Frank extensa produção intelectual adicional de George Rosen, marcam uma Frontispício do livro Disquisitio, de Jenner (Viena, 1799) rotura com a historiografia tradicional, quando, por exemplo, o auto Vacinação de pobres identifica nos movimentos da Medicina Social, da Reforma Sanitária, Enfermeira visitadora em outros, "uma infinita variedade de projetos e planos para a reconstru Pintura de Dean Cornwell ção das instituições sociais" em momentos de profundas mudanças estru 17 16</p><p>18 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA turais. Por exemplo, Rosen identifica na Encyclopédie "não apenas o mais importante empreendimento literário" do Iluminismo, mas também "a manifestação ideológica mais completa" de uma classe social em ascen- PREFÁCIO são (a burguesia), onde já se encontra esboçada a proposta da Medicina Social, reescrita, pouco depois, em linguagem planfletária pelos jacobinos DA EDIÇÃO BRASILEIRA na Assembléia Constituinte, durante a Revolução Francesa, e retomada nos momentos revolucionários dos meados do século XIX, na França (cf. Villermé e outros) e na Alemanha (Virchow e Neumann). Aponta o caráter utópico das propostas, afirmando que "(...) a filosofia da história estava [no Iluminismo] impregnada e dominada pela idéia de progresso e a história da humanidade era considerada como uma linha ascendente e Ultrapassando fronteiras históricas e geográficas, A History of contínua que ia da barbárie à Distingue claramente a especificidade dessa determinação ideológica Public Health chega ao público em sua primeira edição brasileira. Atual e fecunda, após as quase quatro décadas que a separam da da do plano econômico, quando aponta, ao analisar movimento sanitário inglês, que "a economia (...) estava reivindicando a transformação da primeira edição norte-americana, esta instigante jornada pela "História da Saúde Pública" é, antes de mais nada, um convite. Com efeito, cada mão-de-obra em mercadoria", colocando como questão social fundamen- um de nós, novo ou antigo leitor desta obra, é chamado por Rosen a tal a do trabalhador pobre... e doente, num momento em que a acumula- ção capitalista passava a exigir uma oferta de mão-de-obra, a um só tempo integrar a "atemporal" comunidade sanitária em que nos torna a todos, elástica e compatível com as necessidades da industrialização. quando, com rigor empírico e sensibilidade, logra apreender necessida- Um terceiro motivo é que não se trata de uma obra perfeita, encerrando des ao mesmo tempo contingenciais e transcendentes na história das algumas contradições, que estimulam o debate e a reflexão. Dentre práticas sanitárias. Contingenciais porque determinadas por realidades e outros defeitos ressalta-se a impressão de que nos dá o autor de um práticas delimitadas no tempo e no espaço; transcendentes porque dota- desenvolvimento natural linear das idéias, no transcorrer dos distintos das da capacidade de esses limites, ao deles emergirem na forma momentos: "(...) da Polícia Médica à Medicina social" e à Saúde Pública, de valores do gênero humano. Sob o cuidadoso trabalho do historiador está, portanto, a inconfundível como "uma linha ascendente e contínua", que vai da proposta mercanti- lista do Estado Absolutista até os tempos modernos do Estado Liberal e presença do humanista acaso não é esse o característico traço humano, da emergência do Movimento Sanitário na Europa. romper as barreiras do tempo e do espaço ao extrair da matéria trabalhada A publicação do livro de Rosen será de grande valia para os nossos a forma que a transcende, a criação na qual Homem reconhece e estudiosos da história da Saúde Coletiva, como para os que almejam constrói o próprio ser? Na presente obra o leitor encontrará um trabalho que se distingue da transformar a atual organização social dos serviços sanitários nacionais. média de seus similares pela iniciativa extraordinariamente bem-sucedi- São Paulo, 30 de junho de 1993. da em Rosen, de levar para o âmago da reconstrução objetiva do passado a perspectiva crítica do historiador, o que a torna uma historiografia efetivamente interessada no Homem. Essa postura é Guilherme Rodrigues da Silva Departamento de Medicina Preventiva descrita por Rosen, em seus escritos metodológicos, como uma ativa Faculdade de Medicina, USP renúncia àquilo a que chama de uma "historiografia Francamente predominante na historiografia médica, a perspectiva iatrocêntrica faz a história das práticas de saúde equivaler, segundo o médico e historiador norte-americano, a um suposto "progresso linear das trevas para a luz por meio das descobertas científicas e inovações técni- cas". Transmitindo e aperfeiçoando as lições que recebera de Henry 19</p><p>20 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA PREFÁCIO DA EDIÇÃO BRASILEIRA 21 Sigerist, seu mestre e precursor, Rosen contrapõe a este evolucionismo dou doenças transmissíveis agudas. Estudou a relação entre estresse e tecnicista a noção de que a natureza dos problemas de saúde e do modo doença mental. Contudo, sem sombra de dúvida, objeto a que dedicou de enfrentá-los em cada sociedade decorrem de condições políticas, a maior parte de suas energias intelectuais e profissionais foi a Saúde econômicas e sociais, assim como dos conhecimentos disponíveis e das Pública. concepções de saúde e doença nela prevalentes. É da interpretação dos Embora não seja uma "doença", na acepção da palavra, é na condição problemas de saúde à luz destas condições objetivas de vida que, segundo de objeto coletivo de uma intervenção "médica" estatal, em sentido lato, o autor, surge a teoria capaz de dar inteligibilidade e significado aos fatos que Rosen a toma para É essa condição de elemento de relação de que se ocupa a história da medicina. entre necessidades humanas e meios de satisfazê-las que Rosen privile- Entre as alternativas metodológicas desenvolvidas por Rosen para gia quando estuda a Saúde Pública. fugir à abordagem estritamente técnica da análise uma De onde vem a preocupação com a saúde e o bem-estar de grupos de delas merece destaque especial, não só pela importância a ela conferida cidadãos? Como esta preocupação está relacionada com cada cidadão pelo próprio historiador, mas pelo seu particular interesse para a adequa- individual? Estas são as questões com que nos "arma" Rosen, já nas da compreensão do trabalho que o leitor tem em mãos. Trata-se do primeiras linhas de seu prefácio à primeira edição norte-americana de A privilégio da doença, na eleição do substrato historiográfico da medicina. History of Public Nestas perguntas aparentemente simples há bem Enquanto a historiografia iatrocêntrica restringia-se, quase exclusi- mais que questões teóricas a serem respondidas na longa jornada da vamente, às biografias e biobibliografias dos expoentes da ciência e da investigação proposta. Elas são também instrumentos do resgate de um prática médica, Rosen divisou na "história da doença" um ângulo parti- passado ainda ameaçado pelo futuro que temos estado construindo. São, a cularmente favorável à apreensão das diversas conjunturas através das um só tempo, interrogação e conclamação, atestação e queixa: salus publi- quais a medicina vem desenvolvendo sua trajetória. Na condição de ca suprema lex. objeto das práticas de saúde, afirmava em diversos artigos, a doença A argüição pela origem confirma o profundo sentido de historicidade configura a base sobre a qual se estruturam as relações entre, de um lado, de que Rosen dota sua historiografia, que, por paradoxal que possa necessidades socialmente postas e, de outro lado, instrumentos para sua parecer, não é tão comum assim. A historiografia que ele tão satisfação. A doença permite, dessa forma, distinguir com mais acurácia agudamente criticava, restringe a apreensão (histórica?) da variabilidade que a técnica, isoladamente, os determinantes e os valores que explicam da medicina aos meios da intervenção médica ou dos aspectos circunstan- as diferentes conformações dessas práticas ao longo da história. ciais de seus objetos, nunca à possibilidade mesma desses objetos. É Em uma conferência sobre história da medicina, em 1967, Rosen como se as necessidades postas para a intervenção médica estivessem sintetizou da seguinte forma este aspecto metodológico: "O padrão de sempre estado dadas de antemão, ainda que só potencialmente. De modo adoecimento que caracteriza qualquer grupo de pessoas nunca é casual. diverso, Rosen busca, através da análise crítica de seus dados empíricos, Em termos gerais, ele está associado com o nível de desenvolvimento "datar os tempos", "localizar os lugares", "subjetivar os sujeitos", para social e técnico da população e está significativamente relacionado com dar inteligibilidade à particularidade dos diversos objetos das práticas de os valores prevalescentes no grupo. Desse modo, na medida em que as saúde. doenças são resultantes, ou interferentes, das condições sociais ou das Assim é que Rosen explica pela emergência do Estado capitalista o relações sob as quais os homens vivem e trabalham, elas se tornam surgimento das primeiras preocupações com a saúde pública em suas fenômenos sociais, só sendo completamente compreensíveis em um feições modernas. Ao mesmo tempo, conferindo unidade dialética à contexto biossocial. Nestes termos, a história da doença pode ser vista diversidade da trajetória que vai da ocupação hipocrática com o ambiente como mais do que o estudo de entidades particulares, independentes; ela até o internacionalismo sanitário do século XX, Rosen divisa nestas se torna o delineamento de padrões de adoecimento característicos de preocupações o devir de uma necessidade que se incorpora à existência certas épocas e sociedades assim como dos fatores e processos que condu- humana. zem às suas transformações no tempo e no espaço". O leitor poderá distinguir, nesse sentido, três momentos a um só George Rosen trilhou este caminho historiográfico em diversos empre- tempo discriminados e inter-relacionados na reconstituição roseniana da endimentos seus. Estudou a saúde ocupacional, escrevendo um trabalho história da saúde pública: o pré-capitalista, o revolucionário e o moderno. sobre mineradores americanos que se tornou um clássico da área. Estu- O primeiro período engloba a Antiguidade e a Idade Média. Aqui a</p><p>22 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA PREFÁCIO DA EDIÇÃO BRASILEIRA 23 dimensão pública da saúde aparece pulverizada em concepções e práticas normatividade relativa à dimensão pública da saúde. No lastro dos enor- de diferentes ordens, sempre baseadas em concepções naturalistas ou mes progressos científicos e êxitos práticos obtidos pela Microbiologia e metafísicas, até serem superadas por ocasião do Renascimento. Da pers- pela Imunologia, essa "regulação bacteriológica" das relações sociais "con- pectiva dos novos saberes e práticas que então emergirão, Rosen refere- taminou" científica e metaforicamente todo o sanitarismo das primeiras se a todos os anteriores como "a velha Saúde décadas deste século. O segundo período, período revolucionário da Saúde Pública, é Sob o paradigma bacteriológico, Rosen localiza algumas das mais ex- descrito por Rosen como a configuração de uma espécie de "consciência pressivas conquistas jamais obtidas pela humanidade em quantidade e médica", digamos assim, do caráter social da saúde pública. Em outros qualidade de vida, assim como vai mapeando o surgimento das diversas termos, todas as manifestações da saúde e da doença que transcendiam os frentes em que o cidadão, em associação ou isoladamente, vai construin- sujeitos individuais, que desde a Antiguidade até o Renascimento só do a sua "vida asséptica". Conduzidos por descrições cheias de transpa- tiveram em comum o fato de serem interpretadas como aspectos extra- rente entusiasmo, somos levados a conhecer a emergência, especialmente orgânicos (as relações com a natureza, contágio, as entidades patológi- nos Estados Unidos, das primeiras práticas de puericultura, assistência cas, as influências os miasmas), passam pré-natal, educação sanitária, saúde escolar, ações comunitárias, cuidados agora a ser relacionadas entre si e entendidas como resultantes da vida em nutricionais, saúde ocupacional e assistência médica previdenciária. sociedade. Mais que isso, passam a ser vistas como determinantes funda- Coerente com os ideais e com os princípios que mentais dos resultados dessa vida em sociedade. A partir dessa transfor- orientam toda a sua obra, Rosen mantém, todavia, o seu entusiasmo a mação vão surgindo, como forma de conhecer e interferir racionalmente uma segura distância de qualquer tipo de triunfalismo imobilizador. Ao sobre essa dimensão pública da saúde, a Polícia Médica, a Higiene Públi- contrário, sua profunda e fundamentada crença na Saúde Pública serve- ca, e, por fim, a moderna Saúde Pública. lhe de instrumento para apontar aspectos ainda hoje críticos neste campo, As mesmas transformações sociais que explicam a emergência da cons- como as desigualdades na distribuição social das conquistas do capitalis- ciência sanitária colocam no centro da cena um personagem fundamental mo, a debilidade das condições de saúde nos países subdesenvolvidos, os na historiografia roseniana: o cidadão. O "citoyen", o indivíduo civica- aspectos extramédicos envolvidos no implemento da Saúde Pública e a mente emancipado pela Revolução, é, para Rosen, como pode ser ante- emergência de novas questões sanitárias, como os acidentes, as doenças visto na segunda pergunta do Prefácio, um elemento nuclear da sua crônicas, o câncer, o problema ecológico etc. compreensão do desenvolvimento da Saúde Pública em sua terceira fase. Rosen faleceu em 1977. Não chegou a presenciar os mais recentes A esse terceiro momento Rosen identifica o processo de institucionali- movimentos da história que com tanta riqueza reconstituiu. Não chegou zação e pluralização da intervenção sobre a dimensão pública da saúde, sequer a conhecer a crise do welfare state, estreitamente associado ao que sob a égide da recém-consolidada "sociedade dos cidadãos" Este proces- julgava ser a vocação do sanitarismo. Este seu trabalho, escrito em época so inicia-se no terceiro quartel do século passado e corresponde ao perío- ainda anterior, na década de cinqüenta, não logrou alcançar as rápidas e do em que se estabilizaram as modernas relações econômicas e políticas profundas transformações pelas quais tem passado o mundo da ordem social capitalista. neo. Embora já presentes como tendência, elas não tinham ainda os Pode parecer curioso que Rosen dê a denominação de "era bacterioló- contundentes perfis de hoje, especialmente para quem vivia no ambiente gica" a um processo tão amplo e diversificado como o que ele descreve de otimismo e onipotência da mais poderosa nação a emergir do pós- minuciosamente nos seus dois últimos capítulos, abordando aspectos que guerra. não parecem associados, ao menos imediatamente, com a Bacteriologia. Revisitar a construção histórica de Rosen em nossos dias, suscita, por Contudo, se formos rigorosamente "rosenianos", não deveremos estra- isso, profundos Em um mundo no qual, por um lado, nhar o fato, dado o profundo impacto da teoria bacteriológica na conjun- radicaliza-se a redução do espaço público à concorrência utilitarista dos tura ideológica e sanitária da Saúde Pública durante a maior parte de sua interesses privados e, por outro lado, invade-se privado com uma vida acadêmica e profissional. poderosíssima, sofisticada e monopolizada "mass-media"; em um modo Essa espécie de álter, a bactéria (ou a ausência dela), por meio do qual de produção cuja força produtiva mais importante tornou-se a tecnologia, o indivíduo reconhece sua "cidadania passou, de fato, a mono- uma tecnologia cada vez mais autônoma em relação ao homem; e na era polizar, a partir do fim do século XIX, toda a interpretação e toda a de uma razão que tudo penetra, a tudo regula e que, ao mesmo tempo,</p><p>24 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA desautoriza, em sua autocompreensão, os valores humanós como fonte legítima de racionalidade, caberá certamente indagar "Quem é o cidadão hoje?", "Por onde está transitando a dimensão pública da saúde?", "O PREFÁCIO que significam concretamente, na atualidade, as promessas libertadoras da Modernidade?" DA EDIÇÃO NORTE-AMERICANA Longe, porém, de significar uma limitação, essa aptidão para instigar questionamentos e renovar-se neles é, talvez, a maior evidência do vigor desta obra. Num contexto já tão diferente daquele em que foi concebida e realizada, sua capacidade de fomentar esses questionamentos é, por si só, prova de sua efetiva fecundidade. Ainda que não se compartilhe do "O homem é a realidade que torna possível todas as coisas, e também a si mesmo." mesmo quadro explicativo, ainda que se questione o tratamento dado a Hugh M'Diarmid algum elemento empírico, ainda que se divirja de uma ou outra solução metodológica. a capacidade desta História Saúde Pública de gerar interlocução com o presente vem demonstrar que Rosen já conquistou seu próprio lugar na história que não cessa de contar. A função de proteger e promover a saúde e o bem-estar dos Não devemos, então, reter por mais tempo o leitor. Deixemo-lo somar- cidadãos é uma das mais importantes do Estado moderno, e representa a se, com seus próprios questionamentos e valores, à vida desta obra, pois consubstanciação de uma série de considerações políticas, econômicas, se há algum reconhecimento que faça jus à estatura intelectual de George sociais e éticas. Mas, desde quando essa preocupação com a saúde de Rosen é acolher aberta e criticamente o seu nos resta, grupo existe? E como se relaciona com a vida de cada cidadão, de cada portanto, parabenizar os editores pela louvável iniciativa desta publicação indivíduo? A história da comunidade e de seus problemas de saúde nos e endossar a exortação de Rosen à continuidade do enriquecimento humano do legado histórico da saúde pública. ajuda a responder a essas perguntas. A História, como memória de grupo humano, ajuda a moldar, para o "And may the outcome be a happy one!" bem ou para o mal, a consciência coletiva, e desperta a atenção do São Paulo, 30 de junho de 1993. indivíduo para o mundo, mesmo o de ontem e o de Um entendimento significativo do presente exige que se o enxergue à José Ricardo de C. M. Ayres luz do passado de onde veio e do futuro, que está nascendo em seu interior. Todo desafio enfrentado pelo homem, todo problema que preci- Departamento de Medicina Preventiva sou resolver, tem origem histórica. Mais ainda, nosso modo de agir é, em Faculdade de Medicina, USP grande medida, determinado por nossas imagens mentais do passado. Assim, para entendermos os problemas de nossa sociedade e desempe- nharmos um papel inteligente na construção de nossa civilização, precisa- mos possuir um senso de continuidade no tempo, devemos ter a cons- ciência de ser impossível avançar para o futuro, inteligentemente, sem a disposição de olhar para o passado; devemos, enfim, conhecer o passado, saber como veio a originar-se o presente. Conhecer a História ilumina o interesse público pela saúde. Os ho- mens tiveram sempre que enfrentar problemas de saúde nascidos de atributos e carências de sua natureza. E com base nessa necessidade da vida social, se desenvolveu, com uma clareza crescente, o reconhecimen- to da importância notável da comunidade para promover a saúde, e 1 "Possa o resultado ser venturoso!" 25</p><p>26 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA prevenir e tratar a doença. A suma dessa consciência é o conceito de Saúde Este livro tem por finalidade contar a história da ação comunitária no campo da saúde, desde seu começo, nas mais antigas civilizações, até seu AGRADECIMENTOS estado presente em países de economia e tecnologia avançadas. Por este motivo, a narrativa, sobretudo para período moderno, se refere aos centros principais da moderna Saúde Pública, em especial Grä-Bretanha, França, Alemanha e Estados Unidos. E se mencionam apenas alguns fatos, de interesse maior, em outros países, porque, por várias razões, uma Quem empreende uma obra de síntese histórica fica, inevitavel- larga parte do mundo- na Ásia, na África, no Oriente Médio por volta mente, com muitas dívidas; nem todas podem ser reconhecidas, em de 1400 parou de se desenvolver econômica, política e cientificamente, detalhe, em um espaço limitado. precisamente no momento em que nações ocidentais entravam em um A bibliografia selecionada não é, em nenhum sentido, uma lista de período de crescimento extraordinário. Em só hoje asiáti- todas as fontes que usei. Minha intenção é a de auxiliar leitor interes- cos e africanos começam a efetivar mudanças necessárias à superação de sado em aprofundar-se em algum tópico. Por essa razão, a esmagadora um vazio de séculos, em um processo cujas implicações para a Saúde maioria das referências é em inglês, e disponível na maioria das biblio- Pública também nos empenhamos em avaliar. tecas. Várias linhas contribuíram, e continuam a se somar, na construção de Esse livro se sustenta em cerca de vinte anos de trabalho em História, trabalho comunitário em saúde. Seguir essa evolução, no entanto, não é Medicina e Saúde Pública. Durante esse período, uma série de homens e um fim em si mesmo. A finalidade maior dessa minha análise reside em mulheres me estimulou e instruiu. Nesta ocasião, lhes desejo exprimir lançar luz sobre os processos de formação e de mudanças da política meu reconhecimento. sanitária, e de conhecimento, e suas aplicações, em cada momento his- O finado Henry E. Sigerist ajudou-me a dar meus primeiros passos em direção à Clio médica, em 1933. E por vinte e quatro anos se revelou um Este livro foi escrito para um vasto círculo de leitores, pensado com a professor estimulante e um amigo igualmente caro. Meu amigo e colega, intenção de interessar profissionais de saúde e leigos. E se puder contri- H. Ackernecht, tem sido, ao longo do tempo, uma influência intelectual buir para uma conscientização crescente quanto aos problemas de saúde inspiradora. comunitária terá alcançado seu objetivo. Pois concordamos com a antiga Do campo da Saúde Pública, desejo mencionar, em especial, Marga- máxima romana: Salus publica suprema reth W. Barnard e Sophie Rabinoff; elas me mostraram como transformar idealismo em realidade prática e serviço público. Não posso esquecer os George Rosen, M. ensinamentos em ação em saúde comunitária, em teoria e prática, recebi- dos de Henry S. Mustard e do finado Charles-Edward Amory Winslow. Gostaria de agradecer a minha esposa, Beate, pela paciência e pela indulgência durante a gestação deste livro. Cuidar de autores continua a ser uma arte aprendida de modo empírico. Por fim, desejo agradecer a Mrs. Walton M. Smith, minha secretária, por seu interesse nesta obra e pelo cuidado em preparar manuscrito. Pela concepção e pela execução do livro, e pelos erros porventura existentes, sou, decerto, o único responsável. George Rosen, M.D. Cidade de Nova York, 1 Frase de Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), orador, escritor, e político romano, em 31 de março de 1957. Das Leis, III, 9 (apud Rónai, Paulo. Não Perca seu Latim. Nova Fronteira, Rio, 1980) 27 (NT).</p><p>UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA</p><p>I AS ORIGENS da SAÚDE PÚBLICA Ao longo da história humana, os maiores problemas de saúde que os homens enfrentaram estiveram relacionados com a natureza da vida comunitária. Por exemplo, o controle das doenças transmissíveis, o controle e a melhoria do ambiente físico (saneamento), a provisão de água e comida puras, em volume suficiente, a assistência médica, e o alívio da incapacidade e do desamparo. A ênfase relativa sobre cada um desses problemas variou no tempo. E de sua inter-relação se originou a Saúde Pública como a conhecemos hoje. SANEAMENTO E Encontraram-se evidências de ativida- des ligadas à saúde comunitária nas mais antigas civilizações. Cerca de quatro mil anos atrás, um povo, do qual pouco se sabe, desenvolveu uma grande civilização no norte da India. Sítios escavados em Mohenjo-Daro, no vale da e em Harappa, no Punjab, indicam serem essas antigas cidades indianas planejadas em blocos retangulares, segundo, aparente- mente, leis de construção. Banheiros e esgotos são comuns nas constru- ções escavadas. As ruas eram largas, pavimentadas e drenadas por esgotos cobertos. Esses canais de escoamento ficavam cerca de dois pés, ou menos, abaixo do nível da rua, e consistiam, em sua maior parte, de tijolos cimentados com uma argamassa de barro. Usavam-se materiais superio- res no interior das casas e, ao menos em uma ocasião, se mencionam canos de drenagem feitos de cerâmica, embutidos, para evitar-se vazamento, em emplastro de gesso. Achados do Médio Império (2100-1700 a.C.) oferecem alguma idéia das condições no Egito. O arqueólogo Flinders Petrie descobriu as ruínas da cidade de Kahum, construída, por ordem do faraó, segundo um plano unificado. Houve cuidado de se fazer a água escoar, através de uma 31</p><p>32 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA AS ORIGENS DA SAÚDE PÚBLICA 33 calha de pedra mármore implantada no centro da As ruínas de Tel-el- DOENÇA E A doença tem sempre afligido o homem, Amarna, do século XIV a.C., são, em essência, iguais às de Kahum. Um pois a enfermidade é inerente à vida; por toda parte o homem se esforça detalhe, no entanto, merece menção: os restos de um banheiro, em uma para enfrentar essa realidade do melhor modo possível. Estudos de paleo- das casas menores. patologia mostram não só a antiguidade da doença, mas sua ocorrência nas Dois mil anos antes da era já se tinha resolvido, em parte, mesmas formas essenciais infecção, inflamação, distúrbios do desen- problema do suprimento de água para comunidades maiores. A cultura volvimento e do metabolismo, traumatismos e tumores. Encontrou-se a creto-micênica, por exemplo, dispunha de grandes aquedutos. Escava- esquistosomose, existente no Egito ainda hojc, em rins de 3.000 anos de ções revelaram, em Tróia, um sistema de suprimento muito engenhoso. idade, e se diagnosticou a tuberculose da espinha em restos de esqueletos Em toda parte em que existiam sistemas de abastecimento de água de de índios pré-colombianos. Evidência pictórica, do Egito, sugere a exis- beber, regulamentava-se também destino dos dejetos e se desenvolvia tência de poliomielite e nanismo acondroplástico. Se, no entanto, os tipos o sistema de esgotamento. Em palácios, como de Cnossos, em Creta, do básicos não mudaram, a incidência e a prevalência das enfermidades segundo milênio pré-cristão, havia não apenas magníficas instalações para variaram muito no tempo e no espaço. Conhecer essas mudanças é o banho, como também descargas para os lavatórios. Instalaram-se tornei- essencial para a compreensão dos problemas de saúde e das teorias e ras cujos vestígios ainda se vêem entre as ruínas de Priene, na Ásia práticas relativas à enfermidade, no curso da História. Menor em casas particulares, muito cedo, mesmo sendo usual, Enfrentando doenças endêmicas ou epidêmicas, as comunidades e em muitos lugares, retirar a água de poços públicos. indivíduos agem segundo alguns conceitos acerca da natureza da mo- Impressionantes ruínas de sistemas de esgoto e de banhos atestam as léstia. Essa ação, no nível primitivo de conhecimento, se sustentava, façanhas dos quéchuas em engenharia sanitária. Eles ergueram cidades quase sempre, em termos sobrenaturais. A Medicina moderna, por ou- drenadas, e com suprimento de água, garantindo, assim, um terreno tro lado, tenta entender as doenças através do estudo das estruturas e seguro para a saúde da comunidade. Estavam cônscios, ainda, da dos processos mórbidos, no corpo, e as identifica e diferencia, em ter- cia possível de outros elementos do ambiente físico sobre a saúde e mos de sintomas, local e causa, com a maior clareza possível. O concei- reconheceram a conexão entre aclimatação e má saúde; assim, as tropas to de doenças distintas tem, no entanto, uma origem relativamente re- oriundas dos planaltos serviam nos vales quentes em um sistema de cente. rodízio, permanecendo ali apenas alguns meses de cada vez. Os médicos antigos e medievais, em geral, não distinguiam as diferen- tes doenças e se preocupavam, ao invés, com vários grupos de sintomas. LIMPEZA E Ainda hoje os povos primitivos se ocu- Explicavam-se as evidências de desordem na saúde por meio de teorias pam da limpeza e da higiene pessoal, como o faziam os homens pré- sobre a mistura anormal dos fluidos do corpo (humoralismo) ou acerca dos históricos e do início da história. Esses povos em geral dispõem de suas estados, constritos ou relaxados, das partes sólidas do corpo (solidismo). excreções de uma maneira sanitária; suas razões para agir assim, no Enquanto essas concepções de saúde prevaleciam, os médicos não po- entanto, não são necessariamente idênticas às nossas. No decorrer de diam concentrar-se em sítios específicos da enfermidade. No entanto, longos períodos da História, crenças e práticas religiosas avizinharam notou-se a transmissibilidade de certas moléstias muito antes de se co- limpeza e religiosidade. As pessoas se mantinham limpas para se apresen- nhecerem suas causas, e se reconhecem algumas doenças comunicáveis tarem puras aos olhos dos deuses, e não por razões higiênicas. Egípcios, há muitos séculos. mesopotâmios e hebreus, e outros povos, davam valor a esses hábitos. Não há dúvida de que epidemias visitaram mundo antigo repetida- Um exemplo interessante da conexão entre limpeza e religião é uma mente. M. A. Ruffer sugere a possível existência de varíola, no Egito, por festa quéchua, a citua. A cada ano, em setembro, início da estação chuvo- volta de 1000 a.C.; ele examinou uma múmia, da vigésima dinastia, cuja sa, o povo, liderado pelo inca, realizava a cerimônia da saúde; além da pele era "a sede de uma peculiar erupção vesicular ou bolhosa, na forma e oração, de oferendas propiciatórias aos deuses, e de outras práticas reli- na distribuição geral muito semelhante à varíola". Na Ilíada, Apolo lança, giosas, limpavam-se todos os lares. com seus dardos, uma epidemia sobre o exército acampado diante de E Velho Testamento da Bíblia, no livro I de Samuel, nos conta</p><p>34 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA estar a mão do Senhor contra os filisteus, seriamente atingidos e "feridos com Por milhares de anos, se consideravam as epidemias julgamentos divi- II nos sobre a perversidade do ser humano. Apaziguando-se os deuses irados, evitar-se-iam as punições. No Egito, por exemplo, Sekhmet, deusa da pestilência, provocava epidemias, se irritada, e as extinguia Saúde e Comunidade quando acalmada. Essa teoria teúrgica da doença perdurou por vários no milênios. Mas a seu lado se aos poucos, a idéia de dever-se a pestilência a causas naturais, ligadas, em especial, a clima e ambiente Mundo Greco-Romano físico. Essa grande liberação do pensamento teve lugar na Grécia e culminou, durante os V e IV séculos antes de Cristo, nas primeiras tentativas de se criar uma teoria científica, racional, a respeito da causação de doença. Isso não implica dizer que o pensamento médico grego esti- vesse completamente destituído de aspectos religiosos. Mais e mais, GRÉCIA porém, os grandes médicos e pensadores da Grécia se orientaram segun- do o mundo natural. PROBLEMAS DE Os primeiros relatos nítidos acerca de doenças agudas comunicáveis ocorrem na literatura da Grécia clássica. NOTAS DO TRADUTOR narra de modo vívido uma epidemia, em Atenas, no segundo Na Ilíada, Canto I (41-67), Apolo lança suas setas sobre um exército acampado, ano da guerra do Curiosamente, no entanto, a maioria das matando primeiro mulas e cachorros e depois homens e mulheres; é a doenças transmissíveis parecem ausentes nos escritos do Corpo Hipocrá- Samuel I, 5 (6). Não se mencionam varíola, ou sarampo, nem há referência segura a difteria, varicela ou escarlatina. A grande peste de Atenas não aparece nos escritos hipocráticos. Mas, no livro conhecido como Epidemias I, existe uma inconfundível descrição clínica da caxumba. Nas obras hipocráticas, a atenção se concentra, mormente, em doenças endêmicas, entre as quais resfriados, pneumonias, febres maláricas, inflamações dos olhos, e várias moléstias não identificadas. DIFTERIA. A literatura médica clássica contém numerosas referências a graves dores de garganta que muitas vezes se terminavam em morte. Devido à ambigüidade dos termos empregados, no entanto, é difícil asseverar qual a doença envolvida. Aplicava-se a palavra grega a várias formas de doença inflamatória aguda da garganta e do laringe, caracterizadas por dificuldades de engolir e de respirar, que chegavam à sufocação. era termo equivalente em latim. Ainda que sejamos incapazes de tirar alguma conclusão definitiva louvando-nos nos sintomas descritos, é possível incluir a entre essas formas. Vários tratados hipocráticos oferecem relatos aterradores que sugerem difteria e suas seqüelas. Em Epidemias II, o escritor menciona certas complicações da kynanche, entre as quais voz anasalada, dificuldade em 35</p><p>36 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA SÁUDE E COMUNIDADE NO MUNDO GRECO-ROMANO 37 engolir, saída de fluido pelas narinas durante a ingestão de líquido e nes Empédocles livrou de uma epidemia o povo de Selinute, inabilidade para ficar de pé. Duas afirmações presentes na coleção aforís- na Sicília, desviando dois rios para os pântanos, com o intuito de prevenir tica Sobre a Dentição parecem sugerir difteria; em uma se diz que "em a estagnação das águas e salubrificá-las. casos de amígdalas ulceradas, a formação de uma membrana semelhante a uma teia de aranha não é um bom sinal" (XXIV). Em outra, "úlceras em A NATUREZA DA DOENÇA. Os grandes médicos da Grécia eram tam- amígdalas, que se espalham até a úvula, alteram a dos que se recupe- bém filósofos naturais. Eles não tinham como objetivo apenas lidar com ram" (XXXI). Esses comentários talvez se refiram à difteria e à voz problemas de saúde, mas desejavam também sondar a constituição do anasalada típica da paralisia diftérica. universo e entender as relações entre homem e natureza. Apoiando-se no Embora haja dúvida quanto à presença da difteria nos escritos hipo- raciocínio filosófico, e em observações empíricas, e respondendo a neces- cráticos, pode-se identificar, com mais certeza, o quadro clínico da úl- sidades práticas, os gregos desenvolveram concepções e explicações na- cera egípcia, ou síria descrito por Areteu, o no século II turalistas acerca da doença, atribuíram saúde e doença a processos natu- d.C. como difteria. Ele apresenta uma descrição clara de uma séria rais. Assim, o autor da obra hipocrática A Sagrada (provavelmente doença inflamatória da garganta, que acomete, em particular crianças, a epilepsia) diz, no início de seu texto, "não é, em minha opinião, mais e se acompanha de formação de uma membrana esbranquiçada, des- divina ou sagrada do que outras doenças, mas tem uma causa natural. A colorida, sobre a garganta; essa membrana pode-se estender até a boca, falta de saúde originar-se-ia da desarmonia entre homem e ambiente. ou descender até a traquéia, causando dificuldade de respirar ou sufo- cação. Areteu diz ser a doença originária do Egito e da Síria, em particular ARES, ÁGUAS E LUGARES. A crença na harmonia entre homem e da Celesíria; por isso o nome úlcera egípcia ou síria. Anotou, ainda, ambiente se evidencia muito no livro hipocrático Ares, Águas que, em casos muito graves, antes da ocorrência de morte, advinham Nunca é demais superestimar essa obra, o primeiro esforço sistemático regurgitação de alimentos e bebidas através das narinas, rouquidão, per- para apresentar as relações causais entre fatores de meio físico e doença da da fala e grande dificuldade de respirar; a morte aliviava esses pa- e, por mais de dois mil anos, o texto epidemiológico essencial, o sustentá- cientes. culo teórico para a compreensão das doenças endêmicas e epidêmicas. Esse autor, quase sem dúvida, observou casos de difteria e assinalou A esse respeito, não se deu nenhuma mudança fundamental até o final do várias de suas seqüelas. A doença parece ter sido endêmica na área do século XIX, quando as novas ciências da Bacteriologia e da Imunologia se ocorrendo na Itália, na Grécia, na Síria e no Egito, em instituíram. especial em torno de suas costas leste e sudeste. O autor de Ares, Águas e Lugares reconhecia a presença contínua de certas doenças na população; chamava-as endêmicas, termo que ainda MALÁRIA. A malária8 era muito familiar aos médicos gregos do século V usamos. Sabia, ainda, que a de outras doenças, nem sempre a.C. Referências a febres maláricas são abundantes nos escritos hipocráti- presentes, por vezes aumentava em demasia; chamou-as epidêmicas, um cos, cujos autores conheciam a periodicidade das febres, falavam em termo também corrente. No livro, tenta-se responder à pergunta: "Quais terçãs e e se referiam ao caráter benigno da última. É notável a são os fatores responsáveis pela endemicidade local?". Os oito parágrafos observação de serem as crianças, nas áreas endêmicas, as mais atingidas. introdutórios apresentam e resumem esses fatores essenciais: clima, solo, Esses escritores observaram, e anotaram, o caráter sazonal da doença e água, modo de vida e também as negativas de primaveras úmidas e verões se- cos. Associaram, ainda, pântanos e febres maláricas, embora entendessem COLONIZAÇÃO E ASSISTÊNCIA MÉDICA. Ares, Águas C Lugares não é, mal essa relação e pensassem ser a causa das febres a ingestão de água no entanto, apenas um tratado teórico; possui também um aspecto muito pantanosa, prático, e ilumina a atitude das comunidades gregas diante de certos Uma história sobre o filósofo Empédocles de Agrigento (c. 504-443 problemas de saúde. a.C.)9 indica que muito cedo os gregos estabeleceram uma associação Movimentos extensivos de colonização caracterizam a história grega racional entre malária e pântanos. Segundo a tradição, relatada por Dióge- antiga. A partir de cerca de 1000 a.C., os gregos se expandiram para leste</p><p>38 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA SÁUDE E COMUNIDADE NO MUNDO GRECO-ROMANO 39 e oeste, além da Grécia continental propriamente dita e das costas do livre vontade, oferecer assistência à cidade. Mas, não sendo licenciados os Egeu. Plantaram-se colônias nas costas da Trácia e do mar Negro, na médicos, como distinguir um profissional competente de um charlatão? Itália e na Sicília, mesmo na Espanha e na Gália, Ao estabelecer uma nova Ademais, como podia médico ganhar a confiança do público? comunidade, necessitava-se garantir não apenas que o sítio satisfizesse As cidades já conheciam médicos de reputação estabelecida. Outros, exigências religiosas e militares, mas também a sua salubridade. Ares, novos para a comunidade, precisavam ganhar a confiança de seus pacien- Águas e Lugares pretende servir de guia nessa Assim, autor tes, de maneira rápida, predizendo o curso futuro da moléstia; se os aconselha consultar os médicos, antes de se colonizar um lugar, e subme- eventos sua previsão, sua reputação se estabelecia. ter caráter do solo a uma investigação minuciosa. Consideravam-se A condição social de médico grego, no século V, explica a ênfase no nocivas as planícies encharcadas e as regiões pantanosas e supunha-se prognóstico. Ares, Águas Lugares pretende ajudar médico a entrar em que seria melhor erguer as casas em áreas elevadas, aquecidas pelo sol, uma cidade desconhecida, orientando-o a enfrentar as doenças locais e a para que entrassem em contato somente com ventos saudáveis. fazer prognósticos acertados. Existia também a intenção de ajudar o médico a iniciar sua prática em uma cidade desconhecida. Esse propósito se liga à maneira grega de HIGIENE E EDUCAÇÃO EM SAÚDE. Ao longo de sua história, a Medi- oferecer assistência médica a seus membros, e às peculiares condições da cina grega nunca se apenas à curação. Desde início, a preserva- prática médica no século a.C. ção da saúde pareceu ser a tarefa mais importante, e os problemas de Como as outras artes e ofícios na Grécia antiga, a Medicina era uma higiene the mereceram muita consideração. Uma velha canção dionisíaca, vocação itinerante. Havia um número pequeno de médicos, e o médico da reza ser "A saúde é o primeiro bem emprestado ao homem". O hipocrático, como outros profissionais, por exemplo o sapateiro ou o poeta Árifron, em um peã, elogiou "A saúde, mais velho dos deuses", artista, praticava seu ofício indo de uma cidade a outra. Nas cidades com quem deseja viver para resto de sua vida. menores, só esses profissionais itinerantes prestavam serviços. Ao chegar Para o médico grego, a saúde exprimia a condição de equilíbrio entre as à cidade, o médico batia nas portas, oferecendo seus serviços. Se encon- várias forças, ou elementos constituintes, do corpo humano; a perturba- trava bastante trabalho, abria sua loja e se estabelecia por um ção do equilíbrio resultava em doença. Importava, portanto, manter um tempo. Comunidades maiores tinham médicos municipais permanentes. modo de vida capaz de reduzir esses distúrbios ao mínimo. Como os Cerca de 600 a.C., certas cidades começaram a nomear médicos. Se uma elementos externos facilmente perturbavam a harmonia, merecia muita comunidade desejasse ter um médico, oferecia-lhe um salário anual e se atenção a influência de fatores físicos e da nutrição sobre o corpo humano. reunia dinheiro para pagá-lo através de uma taxa especial; ao fim do Para os médicos, no modo ideal de vida equilibravam-se excre- século V, esse procedimento se generalizou pelas cidades gregas. Garan- ção, exercício e descanso. Além disso, dever-se-ia levar em conta, em cada tia-se ao médico algum provento mesmo quando não havia muito traba- indivíduo, a idade, o sexo, a constituição e as estações. Em suma, necessi- lho. Em larga medida, médico de comunidade atendia os necessitados. tava-se organizar toda a vida segundo esse fim. Durante o período helenístico, essa prática era comum em toda região Poucas pessoas, no entanto, podiam seguir esse regime, apenas uma dominada pela cultura grega. pequena classe que dispunha de lazer uma classe sustentada por uma Numerosos decretos de agradecimento testemunham a satisfação das economia escravagista. Essa higiene era, portanto, uma higiene aristocrá- comunidades com muitos médicos. O médico municipal não era rico, o tica. A massa do povo, disse o escritor do livro hipocrático Sobre a Dieta, único salário de que se tem notícia é de cerca de cento e oitenta dólares "necessariamente deve levar uma vida sujeita aos acasos e, como negli- por ano. Muitos agiam como Damíades, de Esparta, de quem se dizia gencia tudo, não pode cuidar de sua saúde". "não fazer diferença entre rico e pobre, livres e escravos". Existia um nível alto de devoção ao dever entre esses homens, e muitas vezes, SAÚDE OCUPACIONAL. A em uma higiene aristocrática se durante epidemias, eles abriam mão de seus salários. Apolônio, de Mileto, reflete na falta de atenção aos problemas de saúde dos necessitados de lutou contra a peste nas ilhas, sem recompensa. E quando todos os trabalhar para viver. Alusões à saúde do trabalhador não aparecem com médicos de caíram vítimas de uma epidemia, Xenótimos veio, de na literatura médica da Grécia clássica; não obstante, ocorriam</p><p>40 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA SÁUDE E COMUNIDADE NO MUNDO GRECO-ROMANO 41 doenças ocupacionais. Há, por exemplo, imagens de tocadores de flauta usando uma bandagem de couro em volta das bochechas e dos lábios, no Todas as cidades antigas dependiam, em algum grau, de poços e intuito, aparentemente, de prevenir a dilatação excessiva das bochechas cisternas de água de chuva para se abastecer. Cedo, algumas cidades evitar uma eventual relaxação dos músculos. Nas minas dos gregos, e gregas se determinaram a reforçar esse suprimento com fontes externas. escravos e convictos labutavam por longas horas em galerias estreitas, Em algum momento do século VI a.C., a água foi trazida, das colinas até pobremente ventiladas. Ainda assim, nos escritos hipocráticos, só existe Atenas, para aumentar suprimento da cidade. Escavações em Olinta, uma única referência a um mineiro: um caso de envenenamento datadas do século V a.C., revelaram um elaborado sistema: trazia-se a chumbo, ou de pneumonia. Antes do período romano não se encontram por água de uma montanha, a dez milhas de distância, e se levava o líquido, menções comuns à saúde ocupacional. por canos, até banheiros e uma fonte pública. O sistema desenvolvido pela cidade de Pérgamo, na Ásia Menor, cerca de 200 a.C., se aproximava ADMINISTRAÇÃO DA SAÚDE Os serviços públicos ofereci- ainda mais da prática romana. Nesse caso, estabeleceu-se um aqueduto dos pelas cidades gregas a seus habitantes variavam, nos objetivos e na segundo verdadeiros princípios hidráulicos. A fonte de suprimento se magnitude, de acordo com o tamanho e a riqueza das cidades. Na Anti- situava em um reservatório de alto nível, a uma altura de cerca de mil, guidade, não há muitas menções aos serviços municipais hoje associados duzentos e vinte pés, no monte Hagios Georgios. Daí se carregava a água, Saúde Pública. Mas havia funcionários específicos, à através de um terreno intermediário, mais baixo, até uma cisterna, a veis pela drenagem e pelo suprimento de água: os atenienses, responsá- trezentos e sessenta e nove pés acima do nível do mar. Outras cidades plo, tinham dez astynomi, cinco para Atenas e cinco para o por Nas gregas também desenvolveram sistemas semelhantes. No entanto, mes- cidades do período a administração se tornou mais complexa mo reconhecendo essas façanhas, não há dúvida de que os romanos em e, em geral, mais uniforme com a prática romana. muito ultrapassaram seus antecedentes. Devemos nosso conhecimento do suprimento de água de Roma a um relato abrangente de Sexto Frontino (c. 40-104 Depois de ROMA servir como cônsul, em 73 e 74, e como governador da Bretanha, Frontino O LEGADO DA Quando Roma conquistou o mundo mediter- foi designado comissário de água de Roma, em 97, sob Imperador râneo e assumiu o legado da cultura grega, aceitou também a Medicina e Ele serviu nesse posto até sua morte, em 103 ou 104, e durante as idéias sanitárias No entanto, imprimiu às idéias férteis sua gestão preparou o livro De Aquis Urbis Romae (Os aquedutos da cidade Como Grécia seu próprio caráter e as amoldou segundo interesses próprios. da de Roma). Essa obra é, primariamente, uma fonte de informação sobre o clínicos, os romanos não passaram de imitadores dos gregos; suprimento de água de Mas é, também, primeiro relato completo como de engenheiros e administradores. construtores de sistemas de mas acerca de um ramo importante da administração da Saúde Pública. E e banhos, e de suprimentos de água e outras instalações sanitárias, esgotos revela, ademais, as motivações e os ideais, as fontes de conduta de um ofereceram grande exemplo ao mundo, e deixaram sua marca na História. servidor público zeloso e consciencioso, orgulhoso de que, graças a seus esforços, Roma não só se tornou uma cidade mais limpa, e de mais SUPRIMENTO DE ÁGUA E Segundo sendo puro, mas também se removeram as causas de doenças responsáveis pela abundantes as fontes e correntes, os gregos não se esforçaram trazer má reputação da cidade. água, de longe, até suas cidades. Coube aos romanos introduzir para um Segundo Frontino, por quatrocentos e quarenta e um anos depois da sistema de aquedutos e de suprimento de água organizado. fundação de os habitantes obtinham água do rio Tibre e de poços Essa afirmação carece de precisão. Os romanos provavelmente particulares. Em 312 a.C., no entanto, o censor Ápio Cláudio Crasso, deram com os etruscos, pois esse povo sabia como transportar e utilizar apren- a construtor da primeira das grandes estradas romanas, a Via Ápia, trouxe a água à distância. Não obstante, levando-se em conta os níveis de desen- água através de um aqueduto. A esse primeiro passo rumo a um supri- volvimento tecnológico e as realizações de seus predecessores. o sistema mento público se sucederam outros. Na época de Frontino, nove aquedu- romano de suprimento de água não encontra paralelo na História. tos traziam água até a cidade, e mais tarde se construíram outros quatro. Não se pode precisar a capacidade total desses aquedutos, e as várias</p><p>42 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA SÁUDE E COMUNIDADE NO MUNDO GRECO-ROMANO 43 estimativas diferem muito. Com base em números de Frontino, Ashby restos existentes, torna-se clara a existência, em muitas cidades ao longo deduziu que o sistema total seria capaz de lançar não menos de duzentos do Império Romano, de sistemas semelhantes ao de Roma, em escala e vinte e dois milhões de galões em vinte e quatro horas. Segundo menor. Em geral, o suprimento de água se destinava a prédios públicos, estimativa de F. W. Robins, os onze aquedutos principais (presumivel- como os banhos, e a fontes de rua. Suprimentos particulares existiam, sob mente no século III século d.C.) despejariam cerca de quarenta milhões variados graus, em diferentes cidades. Em Antióquia, muitas casas parti- de galões por dia. Como no auge do a população de Roma culares usufruíam desse luxo; Esmirna desfrutaria das mesmas condições. chegava a um milhão de habitantes, o consumo total seria de, no mínimo, Vestígios de cerca de duzentos aquedutos romanos ainda existem em quarenta galões por pessoa a cada dia, e possivelmente mais, números não uma área que se estendia da Espanha à Síria, e de Roma ao norte da inferiores aos das condições modernas; números recentes para um grupo África. de cidades americanas mostram variações de um mínimo de quarenta e Muitas cidades antigas, entre as quais Atenas e Roma, tinham sistemas cinco a um máximo de trezentos e e sete galões, as cidades de esgoto. Cidades avançadas dos períodos helenístico e romano pos- maiores se situando entre cem e cento e cinqüenta galões por pessoa. suíam um sistema regular de canos, sob as ruas, para eliminar a água de A pureza da água merecia atenção. Em pontos específicos ao longo do superfície e a dos esgotos. por exemplo, elogia o moderno aqueduto, em geral perto do meio e do final, havia bacias de assentamen- sistema instalado por em Cesaréia. Estrabão anota, com sur- to (piscinae) nas quais o sedimento se podia depositar. Em Roma, a água presa, na construção da Nova Esmirna, a ausência de canos, de modo que alcançava grandes reservatórios (castella) de onde fluía até reservatórios a água dos esgotos corria em valas abertas. menores, e saía, em canos, para o uso. Por causa da pureza, se reservava a A manutenção e a limpeza dos canos eram encargo dos astynomi, já água de alguns aquedutos para beber, ao passo que o suprimento de mencionados. Escravos públicos se desincumbiam dessas tarefas e limpa- outros, poluídos, servia para aguar jardins. vam, também, as instalações públicas oferecidas por Pérgamo e outras Inicialmente, a manutenção dos aquedutos e a distribuição da água cidades grandes. ficavam sob a responsabilidade dos censores e dos edis. Sob Durante período sistema de esgotos romano recebia nomeou-se uma comissão, composta de um curador, de nível consular, e a supervisão de censores. Sob Augusto, nomearam-se funcionários espe- dois assistentes, de nível senatorial. Sob criou-se o cargo de ciais, os curatores alvei et riparum aos quais se ajuntou, mais tarde, procurator aquorum; seus ocupantes, provavelmente, faziam a maior parte um comes do trabalho A comissão dispunha de um quadro perma- Atribui-se a construção do grande esgoto de Roma, a cloaca maxima, ao nente de, no início, duzentos e quarenta escravos especializados, legados rei romano essa obra, porém, se origina, provavelmen- por Augusto; a esses, Cláudio adicionou quatrocentos e sessenta outros. te, dos primeiros tempos republicanos. A cloaca drenava solo encharca- Entre esses trabalhadores havia pedreiros, ladrilheiros, castellarii, para os do aos pés da colina do Capitólio e o esvaziava no Tibre, onde atingia dez reservatórios, villici para os canos, e supervisores. pés de largura e doze de altura. A cloaca maxima ainda é parte do sistema Existia suprimento geral para fontes, banheiros e outras estruturas de drenagem da moderna Roma, e o sistema de esgotos no qual se incluía públicas. Só se podia obter um suprimento privado por meio de uma é tão valioso quanto o suprimento de água romano. Roma dispunha permissão imperial. De início, não se atendiam todas as seções da cidade; também de latrinas públicas, cento e no mínimo, na época de sob o reinado de os habitantes da margem direita do rio Tibre Nos mais pobres, no entanto, as ruas fediam ainda dependiam de poços. Em geral, só havia suprimento particular para por causa do conteúdo dos urinóis, esvaziados dos andares superiores das cidadãos prósperos, ao passo que os outros empregavam os serviços de casas de cômodos. Apesar das conquistas dos romanos, não se deve carregadores ou buscavam sua própria água. O usufruto de um suprimen- negligenciar os lados sombrios da saúde pública, visíveis nos apinhados to privado de água dependia do pagamento de uma taxa, ou honorários, ao cortiços; nem sempre se permitia às massas usufruir das instalações tesouro imperial. higiênicas existentes. escrevendo no segundo século d.C., via no suprimento público de água uma das necessidades essenciais da vida civil. Pelos CLIMA, SOLO E SAÚDE. Mesmo antes de o pensamento grego vir a ser</p><p>44 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA SÁUDE E COMUNIDADE NO MUNDO GRECO-ROMANO 45 dominante em Roma, já se reconhecia a necessidade de se construir em sítios salubres. Segundo o arquiteto romano Vitrúvio usava-se devastou a África do Norte, a partir de 125 d.C. Não se conseguiu inspeção do fígado, pelos com esse propósito. Sacrificavam-sc determinar a natureza dessas duas epidemias, nem tampouco sabemos animais que haviam pastado na terra examinada para assentamento e se muito acerca da série de epidemias seguintes, no século II, durante o observavam seus fígados; se a víscera se apresentasse amarelo-esverdea- reinado de Marco Conhecida como pestilência longa, ou anto- da, considerava-se a terra insalubre para o homem. Essa atenção à estreita essas epidemias começaram em 164 e se estenderam até 180 d.C., relação entre ambiente e saúde se reforçou, mais tarde, com idéias gregas, por todo o Império, da Síria ao Ocidente. Ainda se discute a natureza das assentadas sobre a obra hipócrática Ares, Águas C Lugares. Vitrúvio, em seu pestilências, mas suposições sugerem três diagnósticos: livro De Architectura (Sobre Arquitetura), acentua a importância de se tifo exantemático, peste bubônica ou varíola. Provavelmente se deveu à determinar a salubridade de um sítio e oferece indicações precisas para a varíola a peste de de 251 a 266 d.C. Em 312 ocorreu nova e seleção de lugares apropriados à fundação de cidades e à construção de grave epidemia da mesma doença. Sem dúvida também ocorreram, sob forma epidêmica, de tempos em prédios. Vitrúvio confere, ademais, muita atenção à à orientação e ao sistema de drenagem das moradias. tempos, difteria, malária, febre tifóide, disenteria, e, talvez, influenza. A Dignas de nota são as observações empíricas dos romanos sobre a tuberculose estava presente no mundo antigo, e Vitrúvio menciona "frio relação entre pântanos e doenças, em especial a No primeiro na traquéia, tosse, pleurisia, tísica, cuspir sangue" como "doenças que se século antes de Cristo, Marco Terêncio Varro (116-27 havia alerta- curam com dificuldade" em regiões onde o vento sopra a partir do norte e do noroeste. Os autores clássicos descrevem várias dores de garganta e do contra construírem-se fazendas em lugares encharcados, "(...) porque ali são geradas diminutas criaturas, que os olhos não podem ver e entram parece plausível que algumas delas tenham sido causadas por infecção estreptocócica. As superpovoadas as casas de cômodo nas quais o no corpo através da boca e do nariz, e causam sérias doenças". Seu contemporâneo Vitrúvio e o agricultor no século I d.C., proletariado romano vivia, se prestavam admiravelmente à difusão de seguiram essa visão. Vitrúvio, percebeu, ainda, que cidades situadas perto doenças transmissíveis. Não obstante, cuidado dispensado pela Roma de charcos podem permanecer sadias se se consegue misturar a água imperial ao suprimento de água, e ao destino da água de esgoto, provavel- salgada à do charco. Hoje se pode entender essa fina observação, pois mente ajudou a prevenir surtos de febre tifóide e de disenteria. O apreço sabemos não se reproduzirem na água salgada certos mosquitos. dos romanos pelo banho, e a diminuição do Pediculus corpo- ris, talvez tenha evitado surtos de tifo exantemático. DOENÇAS: ENDÊMICAS E A despeito das importantes observações de Vitrúvio, Varro e outros, e das notáveis realizações dos A SAÚDE DOS Os romanos sabiam da relação entre romanos em engenharia sanitária, os problemas de doenças endêmicas e ocupações e enfermidades. diz que algumas doenças são mais epidêmicas de Roma se assemelhavam aos de outros povos da bacia do comuns entre os escravos. Vários poetas fazem referências incidentais aos Roma vivenciou irrupções epidêmicas de doença em vá- perigos de certas ocupações. menciona as doenças peculiares rias épocas de sua história, desde 707 a. C. até o tempo de aos que trabalham com enxofre; fala das veias varicosas dos Infelizmente, a informação existente é inadequada, sendo impossível áugures e das doenças dos ferreiros; e se refere à dura sorte dos sugerir um diagnóstico para a doença, ou doenças, responsável, ou res- mineradores de ouro. ponsáveis, pela maioria dessas epidemias. Em certas instâncias, é possível Em verdade, há mais referências a mineiros do que a qualquer outro arriscar uma suposição, e ao menos em uma epidemia se pôde reconhe- grupo ocupacional. Vários autores comentam a palidez da compleição do mineiro. fala do pálido buscador de ouro, das Astúrias. Sílio cer, como peste bubônica, a doença que devastou o Império Oriental e só encontrou rival, em gravidade, na Morte Negra. No entanto, com Justi- Itálico, durante o reinado de se refere ao avarento niano já chegamos ao limiar da Idade Média. asturiano, pálido como o ouro que arranca da terra. Quando que Imediatamente em seguida à erupção do Vesúvio, em 79 d.C., uma viveu no tempo de iguala a lividez do mineiro, ao retornar intensa epidemia se espalhou pela romana e uma pestilência do seu labor, à do ouro que ele coleta, repercute essa mesma idéia. A palidez assinalada por essas citações como característica dos mineiros</p><p>46 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA SÁUDE E COMUNIDADE NO MUNDO GRECO-ROMANO 47 espanhóis, devia-se, provavelmente, à pobre ventilação das minas. É que eles recebiam de quem pudesse pagar, mas esperava-se tratassem de também possível que estivesse ligada à ancilostomíase (amarelão), hoje graça os que não o pudessem. Eram estimulados, ademais, a assumir a existente na Espanha e talvez também em tempos antigos. preparação de estudantes de Medicina. tinha experiência pessoal dos riscos ocupacionais dos mi- Na Roma imperial havia várias formas de assistência médica, além da Em uma de suas viagens, ele visitou a ilha de Chipre e por al- oferecida pelos clínicos municipais. Muitos médicos exerciam uma práti- gum tempo inspecionou as minas das quais se retirava sulfato de cobre. ca privada. Havia também outros grupos de assalariados, ligados à corte Os mineiros trabalhavam em uma atmosfera sufocante e Galeno men- imperial, e outros, às escolas de gladiadores ou aos banhos. Quando foi ciona ter sido ele mesmo quase subjugado pelo fedor. Os trabalhado- imperador (222-235 d.C.), Alexandre Severo organizou serviço médico res encarregados de levar fluido vitriólico para fora da mina o faziam o da casa imperial. Em alguns casos, médicos se ligavam a famílias, que lhes mais rápido possível, para evitar a sufocação. Galeno relata ainda traba- pagavam uma soma, anual, pelo atendimento durante ano inteiro. os mineiros despidos, pois os vapores vitriólicos destruíam suas Outra importante contribuição de Roma romana à assistência médica roupas. organizada é o hospital. ou salas de cirurgia, eram comuns entre os Nada se fazia para proteger esses trabalhadores; parece, no entanto, gregos, como lojas ou consultórios dos médicos individuais. Templos, que eles mesmos se ajudavam. Usavam-se respiradores primitivos para como o de Asclépio, em Epidauro55, ofereciam acomodações para os que evitar a inalação de poeira. Plínio menciona o uso, por refinadores de procuravam ajuda junto aos deuses. Durante a República, os romanos não mínio, de membranas de pele de bexiga, como máscaras. Júlio Pólux dispunham de mais nada. No século I d.C., no entanto, Columela men- narra que os mineiros de sua época se cobriam com sacos e ciona a existência de valetudinaria, ou enfermarias, para escravos, e Sêne- capas, ou se valiam de bexigas para tapar suas bocas e se proteger contra a nos relata usarem os romanos livres essas instalações. Escavações em inalação de poeira. Pompéia parecem indicar que os clínicos privados dispunham de algo como uma moderna casa de convalescença, ou de enfermagem. Algumas A ASSISTÊNCIA Os romanos realizaram pouco em teoria e passagens de Galeno parecem sugerir, nas províncias, a transformação de prática médicas; sua contribuição para a organização dos serviços médicos estabelecimentos privados em hospitais sustentados por fundos públicos. teve muito maior importância. A criação de hospitais públicos para civis encontra paralelo na institui- Nos primeiros dias da república romana, a Medicina esteve, principal- ção de hospitais militares em pontos estratégicos. Nesses acampamentos, mente, nas mãos dos sacerdotes. Praticavam-na os escravos e, mais tarde, ou em cidades provinciais próximas, criaram-se também, para os oficiais homens livres. Os médicos gregos começaram a migrar para Roma no do império e suas famílias, instituições similares. Eventualmente, sob a século III a.C. e logo passaram a ser muito requisitados. Depois de 91 influência do cristianismo, razões humanitárias influenciaram no surgi- a.C., médicos estiveram sempre presentes em Roma. Durante a Repúbli- mento de hospitais públicos em muitas localidades. Uma mulher cristã, ca, e no início do Império, no entanto, o conhecimento e a técnica da de nome Fabíola, estabeleceu a primeira instituição de caridade em Medicina beneficiavam apenas os abastados; os pobres se confiavam à Roma, no século IV. A fundação, durante a Idade Média, de hospitais medicina folclórica popular e aos deuses. para pobres e indigentes nasceu das valetudinaria romanas. No século II d.C., porém, criou-se um serviço público. Nomearam-se médicos públicos, conhecidos como para várias cidades e insti- BANHOS, ALÉM DE PÃO E CIRCO. O apreço dos romanos pela higiene tuições. Essa prática se espalhou da Itália à Gália, e às outras províncias. pública e particular se revela não apenas nos vestígios dos sistemas de Por volta de 160 d.C., Antonino regulamentou a nomeação desses água e esgoto, mas também nos dos banhos. Durante o Império havia o oficiais médicos. Ele decretou que as cidades grandes não deviam ter costume de se in aos banhos regularmente. Os maiores são os banhos de mais do que dez médicos municipais, e as médias e as pequenas, não mais Caracala, também um ponto de encontro para vadios e atletas. Junto aos do que sete e cinco, respectivamente. banhos havia restaurantes, e existiam salas para banhos frios, mornos e Esses médicos tinham como principal função a de atender aos cidadãos quentes, e para massagens. pobres. Os decuriones, ou conselheiros, fiscalizavam seus salários. Parece Em 33 a.C., Agripa promoveu um censo dos banhos, e contou cento e</p><p>48 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA SÁUDE E COMUNIDADE NO MUNDO GRECO-ROMANO 49 setenta. O número cresceu constantemente e mais tarde se aproximou de 6 A palavra portuguesa difteria vem do grego diphtera, membrana. 7 Areteu, Capadócio (c. 80-138 d.C.). Estudou Medicina em Alexandria. Restam-nos mil. Cobrava-se, em geral, meio centavo, e as crianças entravam de graça. duas de suas obras, cada uma em quatro livros: Das Causas e Sinais das Doenças Até a época de Trajano não se proibia o banho misto, embora existissem Agudas e Crônicas e Da Terapêutica das Doenças Agudas e Crônicas. balneae só para mulheres. Entre 117 e 138 d.C., um decreto de Adriano57 A palavra portuguesa malária vem do italiano malaria, ar insalubre, de mala, má, separou os sexos. Nos últimos anos do Império, muitas práticas anti- insalubre e aria, A palavra grega para malária é elonosia, de elos, pântano e nosos, higiênicas, como por exemplo comer demais e beber, aconteciam nos doença. banhos. Mas, no geral, essa instituição trouxe imensos benefícios ao povo 9 Empédocles de Agrigento. Ver em "Figuras Memoráveis". 10 Diógenes Laércio viveu na segunda metade do século III d.C. Escreveu Vitae romano. A higiene pessoal fazia parte da agenda diária, e era acessível ao Philosophorum (Vidas de Filósofos). mais humilde romano. 11 Aeron Hidron Topon, na língua grega. 12 O médico, na língua grega, é iatrós; o lugar onde o iatrós exerce sua profissão é o ADMINISTRAÇÃO DA SAÚDE Apenas sob Augusto a admi- iatreion. nistração dos vários serviços públicos de saúde se organizou em um 13 Cós, a cidade natal de Hipócrates, é a segunda maior ilha do Dodecaneso, um sistema. Durante a República, por exemplo, nenhum departamento per- arquipélago grego a sudeste do mar Egeu. 14 adjetivo ático se refere a Ática, a Atenas, aos atenienses. manente se responsabilizava pela manutenção dos aquedutos, que foram 15 Peri Diaites, na língua grega. Dieta, em grego, significa regime, ou modo de dilapidados. 16 Astynomi (asty, cidade e nemein, governar), palavra grega, significa em Augusto criou uma Câmara de Água para cuidar do suprimento de Ou seja, aquele que governa, ou protege, a cidade. água. A inscrição em uma moeda de prata, M'Acilius triumvir 17 O período helenístico se estendeu da conquista da Ásia por Alexandre, o Grande indica a existência de uma comissão de saúde com uma função específica. (356-323 a.C.), até a conquista da Grécia pelos romanos e início do Império Romano, em 27 a.C. Havia, ainda, oficiais próprios para os banhos. Agripa, ministro de Augus- 18 Estrabão (c. 63-c. 24 a.C.). Geógrafo e historiador grego. to, foi edil em 33 a.C. Tinha como deveres a supervisão dos banhos 19 Frontinus (ver Figuras Memoráveis). públicos, incluído o teste dos aparelhos de aquecimento, e a limpeza e o 20 Marcus Cocceius Nerva (c. 32-98). Imperador de 96 a 98. policiamento. No tempo de os aediles supervisionavam a limpeza 21 Considera-se que se fundou Roma por volta de 750 a.C. das ruas, pelas quais se responsabilizavam os proprietários das casas. O Império Romano se estendeu de 27 a.C. a 476 d.C. Seu auge se situou nos dois Cabia-lhes, ainda, cuidar das ruas e mantê-las planas. Controlar supri- primeiros séculos da era cristã. 23 Augustus Octavianus (63 Primeiro imperador romano (27 d.C.). mento de alimentos também era função dos edis; eles inspecionavam os 24 Tiberius Claudius Drusus (10 a.C.-54 d.C.). Imperador de 41 a 54 d.C. mercados e tinham o direito de proibir a venda de estragados. A 25 Marcus Ulpius Trajanus (56-117 d.C.). Imperador de 98 a 117 d.C. máquina criada por Augusto e seus sucessores para manter e administrar 26 Pausânias (143-176). Viajante e geógrafo grego. os serviços públicos no interior do Império absorveu essas funções. 27 Flavius Josefus (37-c. d.C.). Historiador judeu. Entre as glórias de Roma esteve a criação de serviços públicos de saúde 28 Herodes (c. 73-4 a.C.). Rei da Judéia de 37 a 4 a.C. 29 A República Romana durou de cerca de 509 a.C. a 27 a.C., quando se iniciou o em um sistema administrativo eficiente. Esse sistema continuou a fun- Império. cionar mesmo quando o Império decaiu e se 30 Curatores alvei e Em latim, zeladores, ou administradores, dos canais e das margens do NOTAS DO TRADUTOR 31 Comes cloacarum. Em latim, atendentes, ou zeladores, das cloacas. 1 Tucídides (c. 471-c. 399 a.C.). Historiador e estadista ateniense. 32 Tarquinius Priscus foi o quinto rei de Roma. Etrusco. 2 A Guerra do Peloponeso se estendeu de 431 a 404 a.C. e opôs Atenas e Esparta. 33 Constantino I, Flavius Valerius Aurelius (c. 280-337). Fez do Cristianismo a religião 3 O Corpo Hipocrático (Corpus Hippocraticum) é a coleção onde se reúnem os oficial do Império romano sendo, assim, o primeiro imperador cristão de Roma. escritos atribuídos a Hipócrates e a seus discípulos. Esses escritos começaram a ser 34 Marcus Vitruvius Pollio. Arquiteto, engenheiro militar e escritor do século a.C. reunidos na Biblioteca de Alexandria, no século II a.C. Hipócrates de Cós (c. 460- 35 À inspeção do fígado dos animais pelos se denomina 377 a.C.), é considerado o Pai da Medicina. 36 Varro (ver Figuras Memoráveis). 4 Kynanche é uma palavra grega e significa coleira. 37 Lucius Junius Moderatus Collumella. Sábio agrônomo e agricultor, dono de vastas 5 Angina é uma palavra latina e vem do verbo angere, apertar. extensões de terra. Viveu no século I d.C. Escreveu De Re Rustica (Das coisas do</p><p>50 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA campo), em doze livros, a obra mais completa sobre a agricultura que nos legou a Antiguidade. 38 Justiniano (483-565). Imperador romano do Oriente, de 527 a 565. Codificou as leis III romanas (Código de Justiniano). 39 A Campanha é uma planície que circunda a cidade de Roma. A Saúde Pública 40 Marcus Aurelius Antoninus (121-180). Filósofo estóico. Imperador de 161 a 180. 41 Essa pestilência se chama em virtude do último nome do imperador Marco na 42 São Cipriano (200-258). Padre da igreja latina, bispo de Cartago. quando Idade Média Valeriano (c. 193-c. 260) era imperador de Roma 254-c. 260). 43 Insulae, ilhas, em latim. (500-1500 d.C.) 44 Gaius Plinius Secundus (23-79). Naturalista romano. 45 Marcus Valerius Martialis (c. 40-c. 100). Epigramista latino. 46 Decimus Junius Juvenalis (c. 60-c. 140). Poeta 47 Titus Lucretius Carus (c. 96-55 a. C.). Poeta e filósofo Autor de De Natura Rerum (Da Natureza das Coisas), poema filosófico em que expõe, em versos latinos, a doutrina de Epicuro (c. 342-c. 270), filósofo grego. O DECLÍNIO DE ROMA. A desintegração do mundo greco-romano, a 48 Marcus Annaeus Lucanus (39-65). Poeta romano. 49 Titus Flavius Vespasianus (9-79). Imperador romano de 69 a 79. partir de seu interior e sob o impacto das invasões bárbaras, levou a um 50 Publius Papinius Statius (c. 45-c. 96). Poeta declínio da cultura urbana e a uma decadência da organização e da prática 51 Titus Flavius Domitianus Augustus (51-96). Imperador romano de 81 a 96. da Saúde Pública. Isso não se pode atribuir apenas à destruição infligida 52 Galeno (ver Figuras Memoráveis). às cidades pelas tribos invasoras; as cidades declinaram em 53 Archiatri, ou chefes dos médicos, ou médicos principais, em grego. riqueza e importância mesmo onde continuaram habitadas, como na 54 Antoninus Pius (86-161). Imperador de Roma, de 131 a 161. Itália, ou nas antigas províncias do Império. 55 mais célebre templo do culto a (Esculápio é o nome latinizado), o deus- herói grego da Medicina, ficava em Epidauro, na Grécia, construído sobre a sepultura Esse processo é muito evidente na própria Roma. Depois de Constan- do próprio A Medicina praticada nos templos de era, em sua tino mudar-se para em 330 d.C., declínio político e econômi- essência, religiosa e sacerdotal. À entrada do templo de Epidauro estava gravada uma CO da cidade se acelerou. Durante os séculos V e VI, Roma sofreu várias mensagem: pilhagens e intensas devastações. Em 410 d.C., tomou e saqueou Puro deve ser aquele que entra no templo perfumado. a cidade que havia dominado o mundo. Enquanto sitiada pelos godos, em E pureza significa ter pensamentos sadios. 537 d.C., danificaram-se os onze principais aquedutos da cidade, que Os templos de se compunham de um santuário (Abaton), de um bosque depois não receberam reparos e ainda mais, pois Roma, empo- sagrado e de uma fonte de água. No Abaton os pacientes dormiam o sono (enkofmesis, brecida, não tinha meios para financiar as obras necessárias. Essa situação incubatio) durante o qual haviam de ser curados. persistiu até 776, quando o Papa Adriano iniciou uma restauração 56 Lucius Annaeus Seneca (c. 3 a.C.-65 d.C.). Romano. Filósofo estóico, estadista e parcial dos aquedutos. dramaturgo trágico. O destino das instalações de higiene nas cidades provinciais não foi 57 Publius Aelius Adrianus (76-138). Imperador romano de 117 a 138. diferente: acabaram destruídas, ou se arruinaram pouco a pouco. 58 M'Acilius Triumvir Valetudinis (Acilius, um dos três homens da saúde.) 59 Nero Claudius Caesar Drusus Germanicus (37-68). Imperador romano de 54 a 68. Essas mudanças, no entanto, não tiveram o mesmo impacto em todas 60 ano da queda do Império Romano, do Ocidente, é 476 d.C. Essa data assinala as partes do Império. Enquanto na Europa Ocidental, sob a pressão da também o início da Idade Média. Em 1453, com a tomada de Constantinopla pelos anarquia e das invasões, a máquina do governo ruiu e o declínio econômi- turcos, e fim do Império Romano do Oriente, chega-se ao fim da era CO se acentuou, a oriental do Império continuou relativamente medieval. inalterada. As prósperas cidades da Ásia Menor, da Síria e do Egito permaneciam, ainda no século V, quase imperturbadas pelos invasores. Seus produtos e riquezas continuavam a fluir para Bizâncio. Com o 51</p><p>52 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA A SAÚDE PÚBLICA NA IDADE MÉDIA 53 estabelecimento dos reinos bárbaros, a organização administrativa roma- árabe. Por essa época, os árabes, e os que viviam sob o seu já na desapareceu da Europa Ocidental. Em Bizâncio, no entanto, conti- estavam contribuindo, originalmente, para a Medicina e a Saúde Pública. nuou a existir um governo central capaz de lidar com os complexos No Ocidente, durante o primeiro período medieval a chamada problemas de um Estado civilizado. Por outro lado, exceto na Itália, onde "Idade das Trevas" (500-1000 a.C.) - em geral enfrentavam-se os pro- alguns elementos da organização romana se mantiveram, essa administra- blemas de saúde em termos mágicos e religiosos. Fontes pagãs e cristãs ção ultrapassava alcance dos invasores germânicos. forneciam terreno para o supernaturalismo da Idade Média ocidental. Em 476 d.C., houve a deposição do último imperador fantoche, no Velhos costumes e ritos pagãos sobreviviam, e eram usados para resolver e ao fim do século V o processo de separação de Roma e problemas de saúde dos indivíduos e da comunidade. Ao mesmo tempo, Bizâncio se completou. Com a queda do regime romano no Ocidente, e o cristianismo afirmava a existência de uma conexão fundamental entre estabelecimento de novas formas políticas, econômicas e sociais, inaugu- doença e pecado: a doença seria uma punição pelo pecado. Considerava rou-se um novo período: a Idade Média. também, como causas de doenças, a possessão pelo diabo e a Em diante de problemas de saúde usavam-se a oração, a A IDADE MÉDIA. O período chamado pelos historiadores de Idade penitência e a invocação dos santos. No entanto, sendo o corpo vaso da Média cobre um lapso de tempo de cerca de mil anos, iniciando-se cerca alma, ganhava importância fortalecê-lo fisicamente, para que pudesse de 500 e findando por volta de 1500 d.C. A Idade Média não se revelou, suportar melhor os ataques do Entre esses limites se moviam a no entanto, mais homogênea que qualquer outra era histórica. Assim, é de Higiene e a Saúde Pública na Idade Média. extraordinária importância perceber a imensa diversidade, em tempo e Sob essa luz, não é surpresa realizarem a Igreja e, em particular, as espaço, incluída no termo "medieval". Nesses mil anos, um agitado ordens monásticas, as atividades comunais de saúde. Na ruína geral da panorama se estendeu contra o colorido e variegado fundo geográfico, civização greco-romana no Ocidente, os mosteiros eram o último refúgio etnológico, político e cultural do palco europeu. do saber. O conhecimento de saúde e higiene sobrevivente se preservou O mundo medieval enfrentava o desafio de fundir a cultura dos invaso- em claustros e igrejas e foi usado na organização e nas regras das comuni- res bárbaros com a herança clássica do extinto Império e com os ensina- dades Instalações higiênicas importantes, como água encana- mentos da religião cristã. Esse amálgama dos novos elementos pagãos da, latrinas apropriadas, aquecimento, ventilação própria nos cômodos, já com a cultura da velha Europa durou muitos séculos e passou por várias existiam no início da Idade Média, sobretudo onde se erigiam grandes fases. Outrossim, nem tudo que hoje consideramos medieval caracteri- prédios de moradia, segundo um plano uniforme; ou seja, principalmente zou, realmente, o período inteiro, ou ocorreu em toda a Europa. As nos mosteiros. Localizados em importantes estradas, serviam também condições e os padrões de saúde, em épocas diferentes, ilustram de modo como albergues para viajantes, cuja recepção representava um ato de particular essa situação. caridade cristã. Todas essas circunstâncias levaram, já no século IX, ao A Roma Oriental, ou Império Bizantino, conservou a tradição e a aparecimento de mosteiros número muito grande de recursos cultura de Roma, e assim a perspectiva do mundo clássico pôde sobrevi- higiênicos. Essas construções, sem dúvida, serviram de modelo para as ver no ambiente medieval. Com a transferência do centro de cultura para comunidades urbanas que, por volta do século X, começaram a se desen- o leste, Bizâncio, ou Constantinopla, como passou a ser nomeada a cida- volver na Europa. de, tornou-se também a sede da cultura médica da Europa. Assim legado greco-romano se preservou e a partir desse centro transmitiu-se, CRESCIMENTO DAS CIDADES. As origens das cidades medievais primeiro aos árabes, a leste, e depois aos povos do oeste. variaram. Umas se desenvolveram de antigas colônias romanas, outras se Os árabes se iniciaram no reino da filosofia e da ciência gregas por meio ergueram nos vaus de rios ou em importantes rotas comerciais. Outras, de traduções sírias, preparadas por cristãos ou ainda, floresceram em torno de sés episcopais fortificadas, ou de castelos Expulsos do Bizantino por causa de suas heresias, esses sectários de senhores feudais, poderosos o suficiente para protegê-las contra ini- vieram a se instalar na Pérsia. No século X, todos os escritos médicos migos. gregos essenciais tinham sido traduzidos para o sírio, o hebraico ou o Toda cidade tinha necessidade de se defender da agressão, pois sua</p><p>A SAÚDE PÚBLICA NA IDADE MÉDIA 55 54 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA segurança dependia de seus cidadãos e das fortificações circundantes. sistema incluía uma rede completa, pois condutos subterrâneos supriam Muitos problemas de saúde pública resultavam da circunstância de ser a fontes públicas, e outras vazões, em cruzamentos de ruas importantes. cidade incapaz de acomodar, no interior de suas paredes fortificadas, uma Colhia-se o líquido em um reservatório fora da cidade e se a conduzia até população crescente. As fortificações, necessárias para proteger a vida e a a Casa da Água; a água, então, até uma cisterna, no alto, por meio de uma cadeia de baldes sobre roda, método antigo já usado no propriedade, dificultavam a expansão urbana e tornavam imperioso usar a terra por trás das paredes ao máximo possível. Como resultado, deu-se a Egito e em Roma. Canos a conduziam até cisternas, na cidade. aglomeração característica das cidades medievais. Garantir a pureza da água necessária para beber e cozinhar se revelou A maioria dos habitantes das cidades, além disso, conservou por um um constante problema das autoridades municipais. Quando se colhia longo tempo hábitos da vida rural. Por exemplo, mantinham-se dentro da água de rios, pedia-se aos cidadãos para não lançar animais mortos, ou cidade animais grandes e pequenos e se ajuntavam montes de excremen- refugos, na corrente. Não se permitia aos curtidores lavar suas peles no tos onde houvesse espaço. Por muito tempo as ruas não tiveram calça- rio, proibia-se aos tintureiros de vazar nessa água os resíduos de corantes, mento e receberam toda sorte de refugos e imundícies. Diante desses, e como também a lavagem de linho ou roupas (Douai, 1271; Augsburgo, de outros problemas relativos à saúde da comunidade, todas as institui- 1543; Roma, 1468). Para a provisão de água de beber, distribuíam-se, ao ções necessárias a um modo de vida higiênico precisaram ser recriadas longo da cidade, poços, em torno dos quais se centrava a multifária pelas municipalidades medievais. Nesse meio urbano a Saúde Pública, na atividade do povo. Em algumas partes da Europa, em especial na Alema- teoria e na prática, reviveu. E evoluiu. nha e na Itália, essas fontes tinham grande beleza e várias cidades as elegiam como seus sinais distintivos. Mas também aqui a administração PROBLEMAS SANITÁRIOS DA VIDA URBANA. Como aconteceu nas municipal precisava prestar atenção constante ao problema da poluição. primeiras comunidades, oferecer aos habitantes um suprimento adequa- Regulamentos, e severas penalidades, surgiram, em sucessão rápida, para do de água se apresentou como tarefa urgente da cidade medieval. De disciplinar essas matérias. E se tornaram a base de um código sanitário oficial. Na maioria das comunidades nomeavam-se, ou elegiam-se, ofi- início, cisternas, fontes naturais, poços cavados, representaram as únicas fontes. Quando suprimento se mostrou insuficiente, tornou-se indis- ciais específicos para cuidar do suprimento de água. Em Bruges, zelador pensável assegurar novas, mesmo à distância. da Casa da Água jurava ser diligente e consciencioso, vigiar tudo que dizia No Oriente, onde o grau de continuidade com a civilização romana se respeito ao suprimento e nunca, em nenhuma circunstância, divulgar conservava maior do que no Ocidente, o uso de água encanada apareceu seus segredos. antes. Ao término do século IX, sultão Ahmed, do Egito, trouxe água Outros problemas eram a limpeza das ruas e destino do lixo. Remo- para suprir a nova cidade do Cairo: seu engenheiro, Ibn Katib al Faighani, ver o lixo revelou-se desafio importante de higiene, de difícil solução um cristão, conduziu o líquido através de um aqueduto arqueado, de um técnica no período medieval. Não se deve esquecer que nas casas medie- poço profundo cavado no deserto, ao sul. vais se ajuntavam muito mais refugos do que em uma casa moderna. O modo de vida na cidade ainda não se afastava muito da vida no campo e, No Ocidente, em especial no início da Idade Média, essas atividades resultavam, muitas vezes, da iniciativa eclesiástica ou monacal. South- no começo, as casas urbanas se assemelhavam às da aldeia. Além da ampton, na Inglaterra, recebeu em 1290 um suprimento de água para o abundância de refugos, o fato de muitos habitantes criarem grande quan- uso de um convento de franciscanos. Vinte anos depois, os frades conce- tidade de animais como porcos, gansos e patos representava outra deram à cidade o uso da água excedente. Em meados do século XIII, no causa relevante do aumento da sujeira das ruas. Em Paris, o palácio real, e entanto, Dublin, já se vangloriava de possuir um suprimento custeado também inúmeras casas particulares, tinham estábulos. Só no início do pelos Talvez se tenham usado canos de chumbo, embora eles século XV, em várias cidades como Breslau e Frankfurt, proibiu- não sejam mencionados, com certeza, antes do século XV. Usaram-se se a construção de chiqueiros de porcos de frente para a rua. Proibição também condutos de pedra e canos de madeira, os últimos em Basiléia, semelhante só se promulgou em Berlim, em 1641. Por vezes, a imundície em 1266. Um belo exemplo de um sistema de suprimento de água assumia proporções tamanhas que padres não conseguiam oficiar cerimô- puramente secular é o de Bruges, instalado ao fim do século XIII. O nias e funcionários municipais não podiam comparecer a reuniões.</p><p>56 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA A SAÚDE PÚBLICA NA IDADE MÉDIA 57 A luta das autoridades municipais contra essa situação se reflete no Proibia-se lançar refugos a menos de mil passadas9 do mercado, e uma grande número de regulamentos e editos, e, também, nos repetidos rígida sanção recaía em quem transgredia essa regulação. avisos, ameaças e apelos dirigidos aos cidadãos. Houve, ademais, várias O vigor da inspeção dos alimentos nas comunidades medievais é um ações de resultados positivos. Algumas cidades criaram matadouros mu- aspecto impressionante da administração de Saúde Pública. Ao mesmo nicipais, a que a matança dos animais maiores se restringiu. A mais antiga tempo, é notável que, em geral, só se protegesse consumidor nativo. referência a essa matéria está contida em um documento de Augsburgo, Caveat emptor (o comprador que se cuide) continuou a ser a regra para datado de 1276. estrangeiros. Introduziu-se a pavimentação das ruas, com a finalidade de mantê-las Eis uns poucos exemplos das inumeráveis regulamentações referentes limpas, em Paris, em 1185. Praga viu as primeiras ruas calçadas em 1331, aos alimentos. Em 1276, Augsburgo ordenou a venda da carne considera- Nurembergue em 1368, Basiléia em 1387, Augsburgo em 1416. da suspeita, em uma bancada especial. Em Basiléia, no início do século A canalização, ou seja, o escoamento dos dejetos para poços cobertos, XIII, vendiam-se restos de peixe, em uma bancada onde se negociava representou outro passo importante. Em Paris, se exigia a existência, em alimento de qualidade inferior, só para estrangeiros. Em Zurique, em toda casa grande, de um cabinet destinado a drenar os dejetos até 1319, ordenava-se aos peixeiros se livrarem, ao anoitecer, de peixe morto os Severas penalidades aguardavam os que não respeitassem a lei. que não tivessem conseguido negociar. Os florentinos proibiam vender, Em ordenações municipais de do século XIV, merecem muita às segundas-feiras, carne posta à venda no sábado precedente. atenção esgotos e cloacas, a serem construídos em lugares aprovados Nessa área, no entanto, como em outras, o cenário medieval tinha lados pelas autoridades, e cavados até uma profundidade em que não emitis- sombrios e lados luminosos. Certas cidades, como Estrasburgo, em 1435, sem o mínimo odor. Em Londres, lançavam-se os esgotos no rio Tâmisa. enviavam para hospitais a carne de animais doentes. Não obstante, essas Mas, sendo limitada a capacidade de depuração do rio, uma série de aparentes inconsistências não devem causar muito espanto. Em especial ordens e regulamentações, a partir de 1309, indica a necessidade contínua se tivermos em mente se sustentarem essas medidas não no moderno de se resolver melhor o problema. No entanto, mesmo quando se contra- conhecimento científico, mas em observações empíricas e teorias médi- taram limpadores de rua para retirar da cidade entulhos e imundícies, cas originárias do saber da Antiguidade clássica. usando-se carroças, os habitantes continuaram a jogar refugos no rio DOENÇAS. Como uma espada de a doença pendia acima da cabeça do homem medieval. Duas epidemias marcam começo e o A PROTEÇÃO DO A vida urbana na Idade Média se ocaso da Idade Média: a peste de Justiniano (543) e a Morte Negra (1348). concentrava em torno da praça do mercado. Aí, política, comércio, reli- Entre essas duas datas, maiores ou menores surtos de doença visitaram, e gião, arte se encontravam e se misturavam. Reuniões sociais, conspira- arruinaram, a Europa e o litoral mediterrâneo. Lepra, peste bubônica, ções, cerimônias solenes e todas as demais manifestações de vida pública difteria, sarampo, influenza, ergotismo, tuberculose, escabiose, aconteciam nesse palco. Oferecia-se à venda uma larga variedade de erisipela, antraz, tracoma, miliária e a mania dançante podem-se identi- artigos, como alimentos, roupas, sapatos, cerâmica, artigos de Em ficar. virtude da crença difusa de que perigosos focos de doença poderiam O medo da pestilência não abandonava a mente do homem medieval. surgir, rapidamente, em lugares de venda de alimento, em especial estra- Esse temor, no entanto, não levava à passividade. Agindo segundo a gado, havia grande cuidado em se manter mercado limpo. Por essa mentalidade reinante, ele tentava proteger-se. Assim, suas medidas de razão, as autoridades municipais se preocupavam em policiar a praça do proteção resultavam da união de idéias médicas e religiosas. mercado e em proteger os cidadãos contra a venda de alimento adultera- Não há nenhuma dúvida quanto à existência de na Idade do, ou deteriorado. Em Florença, por exemplo, ao anoitecer os mercados Média. Um tratado de Razes do início do século X, contém a precisavam estar livres de ossos, e outros restos. Toda noite de quinta, e primeira descrição da moléstia. Mesmo considerando-os parte de um nas vésperas de feriados religiosos, mesas, bancos e barracas tinham que único processo mórbido, ele distingue varíola e sarampo. Razes alude à de ser removidos, de modo a se poder limpar completamente o lugar. disseminação da moléstia pelo Oriente, opinião compartilhada por Avice-</p><p>58 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA A SAÚDE PÚBLICA NA IDADE MÉDIA 59 e outros escritores dos séculos X e XI. Esses relatos mia parecida, em Roma, no ano de 1039. Gilberto escreveu, na tornam evidente ser a varíola conhecida, e estar sedimentada, no Oriente passagem do século XII para o XIII, sobre uma squinantia, às vezes Próximo, já antes do século VII. Estudiosos de sua história parecem responsável por morte por sufocação. No século XIV, John de concordar que ao fim do século VI a doença se tenha tornado epidêmica ao que parece, observou, na Inglaterra, casos similares de uma doença, a na Arábia e se espalhado, através da área até a Europa. As que chamou de esquinência. Uma grave epidemia de dor-de-garganta epidemias relatadas, para Itália e França, em 570, por Marius, bispo de ocorreu na Holanda, em 1337. Uma peste, fatal para muitas crianças, Avenches, e por Gregório, de Tours (em 581), para sua cidade, depois de grassou em 1382 em diversos países europeus, entre os quais a Inglaterra, 573, se deveram, quiçá, a surtos de varíola. O termo variola aparece pela a Alemanha e a França. Não há dúvida quanto à natureza diftérica de primeira vez no relato de Marius, significando simplesmente "pintado", algumas dessas epidemias. "pontilhado". Quase todos os escritores médicos da época se referem a O ergotismo, conhecido durante o período medieval como ignis essa moléstia, e a maior parte dos autores ocidentais sustenta seus relatos ou fogo de Santo Antônio, se revelou como outra séria doença, sob a for- nos escritos muçulmanos. Na Inglaterra, conhecia-se a varíola; fundando- ma de intensas epidemias. Mencionada pela primeira vez por volta de se nas poucas referências existentes, porém, é impossível fazer alguma 857, nas crônicas do convento de Zanten, irrompeu em pelo menos seis suposição quanto aos números da doença. epidemias, até 1129. Em 1128 e 1129 aconteceram irrupções difusas na É muito provável a larga disseminação do pela Europa e França, na Inglaterra, na Alemanha e nos Países Baixos. Hirsch alista pela Ásia, desde a Idade Média, ou antes. Razes o descrevera, e conside- trinta e sete surtos na Europa, entre 857 e 1486, a maioria antes do século rava sarampo e varíola duas condições originárias de um processo mórbido XIV. É provável a inclusão de erisipela e outros exantemas sob termo comum. Médicos da Idade Média seguiram essa doutrina, persistente ignis sacer. pelo século XVIII adentro. também aconteceu em vários países europeus; entre 1173 e O nome measles é, em si mesmo, produto de confusão semântica e 1427 relatam-se surtos na Itália, na Alemanha, na Inglaterra, na França e nosográfica. No período medieval, aproximavam-se varíola e sarampo, nos Países Baixos. variolae e O último termo diminutivo de morbus indicava ser o sarampo, diante da varíola, a doença menor. Segundo Charles LEPRA, A GRANDE PRAGA. A despeito da importância das doenças Creighton, John de Gaddesden introduziu a palavra inglesa mencionadas, duas outras ocupam lugares de maior relevo na saúde para sarampo measles como equivalente ao termo latino pública da Idade Média: lepra e peste bubônica. Essa palavra derivava do latim miselli e diminutivo de miser A representou a grande praga, a sombra sobre a vida diária da e originariamente se referia ao leproso. Em um esforço de imaginação, humanidade medieval. O medo de todas as outras doenças, juntas, dificil- Gaddesden associou as chagas das pernas dos "pobres e dos debilitados" mente pode comparar-se ao terror desencadeado pela lepra. Nem mesmo ao morbilli dos escritores médicos. Finalmente, termo measles perdeu a Morte Negra, no século XIV, ou o aparecimento da sífilis, ao final do sua conexão com a lepra e se associou à doença hoje conhecida por século XV, produziram estado de pavor semelhante. No mundo antigo, hebreus, gregos e romanos conheceram a lepra, no Dos séculos VI a XVI, a difteria esteve encoberta pela escuridão, entanto relativamente incomum. No início da Idade Média, durante os apenas vacilantemente iluminada por relatos, escassos e incompletos, de séculos VI e VII, a enfermidade começou a se espalhar pela Europa, epidemias de dor-de-garganta. passando a ser um sério problema social e sanitário. em Segundo a crônica de São de 580 d.C., a uma grande en- especial entre os pobres, alcançou um pico aterrador nos séculos XIII chente seguiu-se uma praga chamada esquinência e XIV. narra a ocorrência, em Roma, no ano de 856, de uma epidemia de A lepra assumiu proporções epidêmicas em decorrência, provavelmen- dor-de-garganta (pestilentia faucium). observou uma moléstia te, dos grandes deslocamentos de população resultantes das epidêmica, conhecida como cynanche, em 1004, em algumas províncias do pois, ao retornar do Oriente, os cruzados trouxeram casos. Depois do Bizantino, fatal. Barônio menciona uma epide- século XIV, a doença aos poucos cedeu, talvez porque a foice da Morte</p><p>60 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA A SAÚDE PÚBLICA NA IDADE MÉDIA 61 Negra tenha levado a vida de muitos leprosos. Não obstante, só no século mil. O terceiro Concílio de Latrão, em 1179, ocupou-se, em detalhes, da XVI a lepra perdeu sua importância prática. enfermidade, e as políticas então estabelecidas vieram a prevalecer pelo Cedo se reconheceu a necessidade de controlar a enfermidade e se resto do período medieval. desenvolveu uma forma de ação de Saúde Pública ainda presente entre nós: o isolamento de pessoas vítimas de doenças contagiosas. Quando MORTOS-VIVOS. Um leproso representava uma ameaça pública. pessoas que sofrem de moléstias transmissíveis podem ameaçar, direta- Assim, a comunidade, no intuito de proteger seus membros sadios, o mente, a saúde dos que as circundam, a comunidade, agindo através de expulsava. Sendo a doença incurável, ele se tornava um proscrito para suas instituições, sente-se no direito, para proteger-se, de sujeitar o resto da vida. Muito antes de receber a bênção misericordiosa da morte indivíduo a restrições, e até mesmo a sanções. Assim, surgiu a obrigação física, já se o destituía de seus direitos civis e se considerava, socialmen- de notificar algumas doenças comunicáveis, e, em algumas ocasiões, a te, morto. liberdade do indivíduo pôde ser severamente limitada. O caso mais Não se decidia de modo leviano se um indivíduo sofria de lepra. conhecido é o de Mary Examinava a pessoa suspeita uma comissão especial, a qual, no início da Essa face do trabalho em Saúde Pública começou a aparecer no início Idade Média, se compunha de um bispo, vários outros clérigos e um da Idade Média, quando a lepra passou a ser um importante problema de leproso, considerado especialista na matéria. Mais tarde, essa comissão saúde. Como os médicos não tivessem nada a oferecer, a Igreja assumiu a incluiu vários eminentes médicos e barbeiros da cidade. liderança do processo, usando como princípio orientador o conceito de O isolamento dos leprosos tinha regras muito minuciosas e precisas. A contágio do Velho Testamento. Em todo o mundo antigo, e em particular realização do serviço funerário, com a participação da vítima, simbolizava no Oriente, se considerava contagiosa a impureza espiritual. Essa idéia, e a terrível exclusão da sociedade humana. leproso vinha vestido com suas práticas, se definem com grande clareza no livro do uma mortalha, lia-se a missa solene para os mortos, jogava-se terra sobre no qual se mencionam não só a impureza espiritual mas doente; então os padres o conduziam, acompanhado de parentes, amigos também processos fisiológicos como a menstruação ou condições e vizinhos, até uma choupana, ou um leprosário, fora dos limites da patológicas como a descarga uretral através dos quais um indivíduo comunidade. Um relato dessa cerimônia encontra-se em A mão dourada, se torna impuro. Deviam-se isolar essas pessoas do resto da comunidade de Edith Simon, famosa novela da Inglaterra no século XIV. Compeliam- até elas se submeterem a ritos de purificação específicos. Muito mais se os leprosos a usar um traje característico, a anunciar sua aproximação severo era o isolamento prescrito aos infelizes afligidos por uma doença por meio de corneta, guizo, badalo de sino, se os proibia de aparecer no de pele chamada zara'ath; uma vez se confirmasse essa moléstia, segrega- mercado e de entrar em hospedarias ou tavernas. Não se permitia a va-se e excluía-se da comunidade o paciente: "Todos os dias em que a nenhum barbeiro ou lhes cortar os cabelos. Não obstante, é peste estiver nele, estará manchado, ele é impuro, deverá morar sozinho, espantoso constatar serem essas medidas abolidas em ocasiões especiais. sua habitação deverá ser fora do acampamento", dizia Velho Testa- Com revogavam-se as de entrar na cidade, no Natal ou em Pentecostes, para permitir aos leprosos pedir esmolas e Seguindo os preceitos apresentados no Levítico, a Igreja assumiu o receber os benefícios da caridade pública. Essas porém, aconte- encargo de combater a lepra. O Concílio de Lião, em 583, restringiu a ciam em pequeno número, e mal atenuavam o isolamento a que a pessoa associação livre dos leprosos com pessoas sadias, política seguida, e refi- se via condenada. nada, por concílios posteriores. Em 644, Rotário, rei lombardo, lançou um edital para regulamentar o isolamento dos leprosos. Gregório de Tours30 A MORTE NEGRA. As tentativas de controlar a lepra levaram à primeira descreve uma casa de leprosos em Paris, no século VI; estabelecimentos grande façanha na profilaxia direta: tornar os enfermos inofensivos como similares se ergueram em Metz, Verdun e Maestricht, no século seguinte. portadores do elemento causal e, assim, a erradicar a doença. A analogia Depois do século X, o número de leprosários cresceu enormemente; no com as campanhas mais recentes contra tuberculose e doenças venéreas é início do século XIII existiam, só na França, cerca de duas mil casas de evidente. Ampliou-se e estendeu-se esse princípio de Medicina Preven- leprosos, ao passo que em toda a Europa chegavam a cerca de dezenove tiva a outro grande flagelo da Idade Média: a peste</p><p>62 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA A SAÚDE PÚBLICA NA IDADE MÉDIA 63 Existem registros de três grandes pandemias de peste no curso da todos que tivessem tido contato com o paciente a permanecer isolados; história humana. A peste de Justiniano, a primeira, a Morte Negra, a por meio de mensageiros especiais, as autoridades municipais atendiam segunda, e as difusas epidemias de nosso século. suas necessidades de alimento, e outras. A peste humana é, em essência, um problema de comunidades urba- Retiravam-se os mortos das casas pelas janelas e removiam-se seus nas. Por conseguinte, não é surpreendente encontrarem-se poucos relatos corpos para fora da cidade, em carroças; também lugar do enterramento de surtos, difusos, no início do período medieval, depois de cederem as tinha a finalidade de prevenir a extensão da epidemia. Quando morria um ondas epidêmicas na esteira da peste de Justiniano. Não obstante, entre paciente de peste, arejavam-se e fumigavam-se os cômodos e queima- os séculos VI e XIV há registros de surtos no Iraque, na Pérsia, e em vam-se seus pertences. outras partes do Levante, como também alguns questionáveis, na Europa Além dessas medidas no interior da comunidade, urgia também evitar e nas Ilhas Britânicas. a entrada da peste. Para se alcançar esse objetivo, e assim salvaguardar o Embora não possa haver certeza, parece provável ter-se originado a grupo, usava-se o método de isolar e observar pessoas e objetos por um pandemia do século XIV em algum ponto do interior da Ásia Central, período específico e sob condições se estabelecer que não região onde, entre roedores selvagens das estepes, um reservatório da estivessem com a peste. Assim nasceu a quarentena, contribuição funda- infecção ainda hoje persiste. A partir de seu foco original, a doença se mental à prática da Saúde Pública. espalhou para o oeste até atingir, na primavera de 1346, as costas do mar Deu-se primeiro passo nesse sentido em Veneza, principal porto de Negro. Do mar Negro, navios a carregaram até Constantinopla, Gênova, entrada para o comércio do Oriente. Seguindo a crença de que a peste se Veneza e outros portos europeus. introduzia, principalmente, através de artigos trazidos em navios, os ve- A peste alcançou a Europa logo no início de 1348, disseminando-se nezianos criaram um sistema para segregar embarcações, mercadorias e pelo interior. Atingiu Florença e outras regiões do norte da Itália e em pessoas suspeitas. Já a 20 de março de 1348, estabeleceu-se um Conselho, abril estava em Avinhão, e, em Valência e Barcelona, no início de maio. de três homens, para supervisionar a saúde da comunidade e tomar A imensa onda da peste levou três anos para varrer a Europa. E outras, quaisquer medidas julgadas necessárias (os venezianos parecem ter se- sucessivas, de menor altura, se seguiram, em intervalos variáveis, até guido um padrão institucional, pois já no ano 1000 teriam existido super- cerca de 1388. visores de Saúde Pública, designados para servir durante epidemias). Esses funcionários tinham autorização para isolar, em uma ilha, na laguna, QUARENTENA A primeira reação ao aparecimento da Morte Negra foi embarcações, mercadorias e pessoas infectadas. muitas vezes pânico. Buscava-se a salvação na fuga, mas nem todos A partir de 1348, o povo de Veneza, e de outras comunidades, desen- podiam, ou queriam, fugir. Primeiro, porque a antiga concepção da pesti- volveu sistema de quarentena. Em 1374, Bernabo Visconti, Duque de lência como sinal da ira divina vigia, e sentiam serem a oração e a Milão, promulgou um decreto para prevenir a introdução e a difusão da penitência os únicos remédios; e, segundo, porque as comunidades se peste. Pelo edito, ordenava-se a remoção de todos os pacientes da cidade negavam a admitir pessoas vindas de áreas onde grassava a peste. Em para um campo, onde morreriam, ou se recuperariam. Quem tivesse tornou-se imperioso tomar medidas para proteger os sadios atendido um paciente de peste, deveria ser isolado, por quatorze dias, e ajudá-los a evitar o temido mal. antes de reassumir suas relações sociais com outras pessoas. O mesmo A experiência ganha com o isolamento dos leprosos influenciou as período de observação valia para viajantes ou mercadores infectados, ou medidas adotadas contra a Morte Negra. Sendo a doença considerada simplesmente suspeitos de ter a doença. No mesmo ano 1374, Veneza, comunicável, seguiam-se os mesmos princípios do combate à lepra. Como novamente ameaçada, negou entrada a todos viajantes, veículos e navios, a defesa essencial fosse evitar a infecção, princípio do isolamento se suspeitos ou infectados. Três anos depois, em 27 de julho de 1377, desenvolveu rápido, e se generalizou. Notificavam-se as autoridades da conselho municipal de Ragusa, na costa dálmata, ordenou um período de existência de pacientes; depois de examinados, isolavam-se os pacientes isolamento de trinta dias, para os oriundos de áreas atingidas pela peste. em suas casas, enquanto durasse a enfermidade. Sobre toda casa que Mais tarde estendeu-se esse período para quarenta dias, origem do termo abrigasse uma vítima de peste recaía um impedimento. Compeliam-se quarentena, derivado de quarantenaria. (Segundo Clemow, mencionou-se</p><p>A SAÚDE PÚBLICA NA IDADE MÉDIA 65 64 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA pela primeira vez um período, de quarenta dias, em Veneza, em 1127.) A estagnadas, de cemitérios, de estábulos de animais de carga. Evite esses seguir, em 1383, Marselha construiu suas primeiras estações de quarente- lugares". Acreditava-se que o ar corrompido, por causa de sua natureza na, nas quais, depois de rígida inspeção das embarcações, todos os passa- alterada, atacava, se inalado, os humores do corpo e assim produzia a geiros e cargas de navios infectados, ou suspeitos, ficavam detidos por doença. Surtos em massa ocorriam quando uma conjuração maligna dos quarenta dias, expostos ao ar e à luz solar. astros conferia à corrupção da atmosfera uma virulência especial. Na Segundo Hecker, a razão para o estabelecimento de um período de tentativa de explicar por que, no curso de uma epidemia, algumas pessoas quarenta dias residia na crença, generalizada nos séculos XIII e XIV, de se viam atingidas e outras não, muitos escritores salientavam a importân- ser o quadragésimo dia o da separação entre as formas agudas e crônicas cia da predisposição individual. A no indivíduo caminhava junto das doenças. Também se recorria à Bíblia para atribuir ao número quaren- com aquela no valor da higiene pessoal. ta um significado especial. O dilúvio, por exemplo, durou quarenta dias, e Apoiada nessas doutrinas, a população medieval se esforçou, coletiva e também outros episódios bíblicos. Também na alquimia se considerava individualmente, para enfrentar seus urgentes problemas de saúde. Es- importante o número quarenta, pois se acreditava na necessidade de ses pontos de vista, no entanto, são importantes não apenas por fornecer quarenta dias para certas transmutações. Assim, compelidos pela Morte um edifício teórico para a prática da Saúde Pública; com base nessas Negra de meados do século XIV, funcionários públicos, na Itália, no sul concepções se desenvolveram as teorias epidemiológicas dominantes no da França e na área vizinha, criaram um sistema de controle sanitário para período moderno, até a última parte do século XIX. combater doenças contagiosas, com estações de observação, hospitais de isolamento e procedimentos de desinfecção. Durante Renascimento, e A ORGANIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA. Embora não dispusesse de um em períodos posteriores, se desenvolveu esse sistema, ainda hoje instru- sistema de Saúde Pública organizado, no sentido de hoje, a comunidade mento da prática de Saúde Pública. medieval tinha uma máquina administrativa para prevenção de enfermi- dades, supervisão sanitária para a proteção da saúde comunitária, em AS CAUSAS DAS EPIDEMIAS. Para explicar a origem da peste, e modo geral. A natureza desse sistema está muito ligada à natureza da adminis- de combater a enfermidade, um vasto corpo de literatura médica e leiga tração da municipalidade medieval. rapidamente apareceu na maioria dos países europeus. Fundando-se A despeito de variações menores, as primeiras administrações munici- nessa literatura, podem-se deduzir as principais teorias relativas à causa- pais costumavam seguir um plano simples. Dirigia a cidade um conselho, ção desse flagelo e entender sustentáculo teórico das atividades cujos membros se podem comparar aos homens das cidades da administrativas. Essas concepções derivavam, em parte, da tradição hipo- Nova Inglaterra. O título outorgado a esses cavalheiros variava de lugar crática, com sua ênfase na importância dos fatores físicos do ambiente na para lugar, mas seu ofício era o mesmo. Na Itália, e no sul da França, conheciam-nos como consuls, ao norte da França e nos Países Baixos causação da doença. Admitia-se e aceitava-se, em geral, ser a peste uma doença comunicá- chamavam-nos échevins e, na Inglaterra, vereadores. vel. Essa idéia se apoiava na observação direta, mas não respondia a todas Cabia ao conselho a administração rotineira da comunidade. Assim, as questões relativas à origem e à natureza das epidemias. Assim, se a cuidava das finanças, organizava abastecimento da cidade, ordenava e peste tinha uma natureza contagiosa, qual era, e de onde vinha, o elemen- supervisionava obras públicas. Ocupava-se também de problemas de to comunicável? saúde e bem-estar. Geralmente, atribuíam-se esses assuntos a um ou As respostas a essas perguntas advinham da tradição hipocrática, na mais membros do conselho, que passavam a agir como um No forma sistematizada por Galeno e transmitida aos médicos medievais. século XIV, em Milão, por exemplo, seis funcionários se encarregavam da Alguma alteração atmosférica, uma corrupção do ar, trazia a doença; limpeza das ruas e do saneamento ambiental. Em Amiens, no século XV, matéria orgânica em decomposição, águas estagnadas e pútridas etc., designaram-se dois échevins para supervisionar o mercado de peixe, dois corrompiam o ar. Em seu tratado da peste, Johannes de Tornamiera, diz: para a venda de carne a varejo, dois outros para vigiar cozimento e a "Em tempos de epidemia deve-se, sobretudo, evitar o an corrompido, que venda de pão, outros para inspecionar as atividades de e pode vir de lugares pantanosos, enlameados e fétidos, de águas e valas boticários, e assim por diante.</p><p>66 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA A SAÚDE PÚBLICA NA IDADE MÉDIA 67 O mandato desses funcionários durava um ano. Ao fim de cada dia, um degrau diferente na escada social, relegando-se os cirurgiões a um relatavam seus achados, para que, se necessário, se pudesse agir imediata- nível inferior. mente. As guildas integravam governo da cidade medieval e, em nume- Porém, tanto os quanto os cirurgiões reconhecidos negligen- rosas comunidades, como em Florença, funcionários da guilda desempe- ciavam quase completamente os doentes que só pudessem ser tratados nhavam essas funções. Perto do fim da Idade Média, esse padrão admi- mediante cirurgias arriscadas. Em ao lado dos médicos nistrativo ganhou em complexidade; em essência, porém, seu caráter se reconhecidos e estabelecidos, surgiu uma classe de empiristas itineran- tes; eles faziam operações difíceis e sérias, como cataratas, redução de Em geral, os leigos, e não os médicos, cuidavam da administração da e retirada de pedras da bexiga. Embora esses oculistas, litotomis- Saúde Pública. Empregavam-se médicos em cargos específicos, como tas e operadores de hérnias não ocupassem lugar social alto, havia neces- o de cuidar dos indigentes e prisioneiros, o de diagnosticar a lepra e outras sidade de seus serviços. Assim, se fizeram vários acertos para se poder condições, e o de servir como conselheiro técnico, em tempos de pesti- usar suas habilidades e, no período medieval tardio, além dos práticos lência, ou em assuntos médico-legais. itinerantes existiam os que se estabeleciam em uma comunidade. Men- ciona-se um oculista em 1366, em Speyer, e em 1372 havia outro em A ASSISTÊNCIA MÉDICA. Na comunidade medieval, a natureza da Esslingen, na Alemanha. Em cidades onde não residiam médicos, as sociedade determinou, além de outras características da Saúde Pública, a autoridades se esforçavam por empregar os serviços desses práticos, mes- assistência médica. A sociedade era estática, as classes sociais demarca- mo se apenas por um período do ano. Em geral, essa situação persistiu das. Assim, os grupos se organizavam e se moviam em esferas delimitadas durante os séculos XVII e XVIII. com rigidez. No início da Idade Média, os médicos eram, em geral, clérigos. Como a HOSPITAIS E INSTITUIÇÕES A idéia da necessidade igreja lhes garantisse a subsistência, eles podiam exercer a Medicina de assistência social, em casos de moléstia, ou outro infortúnio, se desen- como caridade; podiam aceitar presentes mas não se esperava que cobras- volveu muito durante a Idade Média, tanto no Oriente, islâmico, quanto sem. A partir do século XI, no entanto, os leigos começaram a entrar na no Ocidente, cristão. E tal fato é muito evidente na criação dos hospitais, profissão em número crescente. Em 934, por exemplo, os arquivos floren- em que motivos religiosos e sociais tiveram muita importância. tinos mencionam um Amalpertus, diácono da Igreja e também médico. No Oriente, soberano e funcionários públicos criaram hospitais nos Na primeira metade do século XIII, sessenta médicos se organizavam, centros urbanos. No século IX, durante reinado do califa Harun Al- em Florença, em uma poderosa guilda. Rachid, ergueu-se um hospital em E um outro, na mesma cidade, Como não fossem sustentados pela Igreja, os médicos leigos preci- no século seguinte, graças ao califa Al-Muktadir, e um terceiro, em 970, savam ganhar a vida de outra maneira. Aceitavam, então, um posto com um corpo de vinte e cinco médicos, em que se ensinava a Medicina. assalariado seja de médico de algum senhor, ou de uma cidade Ao todo, existem registros de trinta e quatro hospitais em países de ou se entregavam à prática privada. Em qualquer caso, estipulavam-se governo Em geral, essas instituições refletiam alto nível da seus deveres e sua remuneração. Os médicos municipais tratavam dos Medicina nas terras No Cairo, por exemplo, um hospital, pobres, investigavam a ocorrência de doenças incomuns ou epidêmicas, fundado em 1283, tinha seções separadas para pacientes com doenças orientavam sobre o que fazer nessas situações, e supervisionavam as febris, para os feridos e para aqueles com doenças dos olhos, além de boticas. acomodações especiais para mulheres. Um diretor e um corpo de médicos A maioria dos médicos assalariados também exercia a prática privada. prestavam assistência e havia enfermeiros e enfermeiras. Não se deve, no No tratamento dos pacientes particulares seguiam rígidos códigos, e entanto, considerar os estabelecimentos islâmicos modelo para os hospi- cobravam segundo tabelas elaboradas pelas guildas. tais do Ocidente. Hospitais erguidos pela Igreja cristã se espalhavam pelo Durante a Idade Média, uma nítida separação entre médicos e cirur- Oriente Próximo, e quando essa área caiu sob a influência do Islão, os giões se desenvolveu. Trabalhando com as mãos, o continuou a os desenvolveram. ser um artífice, a aprender seu ofício com um mestre. Cada grupo ocupava No Ocidente, os hospitais também se originaram da Igreja. A mais</p><p>A SAÚDE PÚBLICA NA IDADE MÉDIA 69 68 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA continuaram a cuidar dos enfermos. Administrativamente no entanto, a significativa contribuição a seu desenvolvimento veio das ordens monás- responsabilidade passou às autoridades municipais. Em Amiens, no sé- ticas medievais, servindo o tratamento dos monges a seus companheiros culo XV por exemplo, a comunidade elegia o diretor do mas doentes de exemplo para os leigos. bispo residente o empossava. A municipalidade escolhia e pagava o Os mosteiros possuíam um infirmitorium lugar do tratamento médico do hospital, monges e freiras atendiam às necessidade dos pa- uma farmácia e, com uma horta de plantas medicinais. E além cientes. de cuidar dos companheiros doentes, os monges abriam as portas do Ao fim do século XV, uma rede de hospitais cobria a Europa. Só na claustro a viajantes e peregrinos, prática cujos primórdios se desconhe- Inglaterra, por exemplo, instalaram-se, dos séculos XII ao XV, mais de cem, mas que recuam, talvez, ao início da Idade Média. setecentos e sendo duzentos e dezesseis para leprosos. Esses hospitais monásticos tinham pouco em comum com as modernas Algo similar aconteceu no continente. No início do século XIV, Paris instituições de mesmo nome, e muitas vezes não passavam de pequenas tinha cerca de quarenta hospitais e quase tantas casas de leprosos. Segun- casas onde se oferecia alguma espécie de assistência de enfermagem. Em do o cronista Villani, em 1300, a cidade de Florença, com uma população virtude da dualidade de sua natureza e de sua função, é difícil estimar em torno de noventa mil habitantes, possuía trinta hospitais e instituições quanto realmente serviram para cuidado dos doentes. É provável a de assistência, capazes de fornecer socorro médico e abrigo a mais de mil existência de todos os graus de variação, desde enfermarias destinadas pessoas doentes, ou indigentes; mais de trezentos monges, ou outras quase exclusivamente ao tratamento dos doentes, até simples alojamen- pessoas, compunham sua equipe de enfermagem. Na última parte do tos. Em suma, porém, desde o século VIII e até século XII, o hospital século XV, sob Lourenço, o existiam em Florença ao menos monástico representou quase a única instituição, na Europa, cuja função quarenta hospitais, de vários tipos. Em verdade, não é exagero conside- principal residia no cuidado do doente. rar-se a criação do hospital uma das grandes façanhas, em Saúde Pública, Outro importante impulso para a criação de hospitais se deu em mea- da Idade Média. dos do século XII, com a fundação do hospital do Espírito Santo, em Montpellier, em 1145. Sancionada em 1198 pelo Papa Inocêncio III, a O REGIME DE SAÚDE. A educação em saúde e a higiene pessoal Ordem do Espírito Santo estabeleceu e manteve hospitais por toda a representaram outras áreas da Saúde Pública a receber importantes con- Europa. Também ao longo das vias usadas pelos cruzados surgiram tribuições na Idade Média. hospitais. Várias ordens de cavaleiros, criadas durante as guerras santas, O homem medieval cuidava de seu corpo muito mais do que se assumiram a missão de fundá-los e mantê-los. A mais conhecida dessas imagina. Embora em geral se considerasse vã a existência terrena, e ordens, os Cavaleiros de São João dos Hospitalários, os instituiu em existisse a crença na punição, ou na salvação, no outro mundo, havia lugares tão distantes quanto Malta e Alemanha. também a convicção de que, seguindo-se um regime correto, poder-se-ia Na Idade Média tardia, as cidades, em particular através das guildas, estender a vida até três vintenas e mais dez anos. participaram ativamente da fundação de hospitais e de outras instituições A necessidade de viver originou toda uma literatura sobre a preserva- de assistência médica e social. Orgulhosos de suas comunidades, cidadãos ção da saúde, fundada, em essência, em fontes clássicas. Durante a Idade ricos procuravam superar-se uns aos outros na promoção e no adornamen- Média, esses escritos eram escassos, mas suficientemente comuns para to de suas amadas cidades. Ainda no século XII, mercadores destinavam oferecer regras de conduta aos interessados. Todas as ordens monásticas uma porção de seus ganhos a seus Criaram-se hospitais, possuíam regulamentações referentes à higiene pessoal, e sua influência asilos e abrigos para todas as espécies de homens, mulheres e crianças. As talvez tenha penetrado nas fileiras leigas. guildas reuniam fundos para socorrer seus membros doentes, ou incapaci- Quase sempre, o tratado de higiene se dirigia a uma pessoa de classe Guildas prósperas construíam seus próprios hospitais, outras paga- alta, aconselhando-a como viver de modo a permanecer sadia. Do século vam a hospitais monásticos para cuidar de seus associados. XII ao XV escreveu-se um grande número desses livros, em latim ou em A partir do século XIII, hospital medieval começou a sair das mãos de várias línguas vernaculares. A mais conhecida obra é, sem dúvida, o religiosos e a passar para a jurisdição secular, em especial nas cidades. Isso Regimen Sanitatis Salernitanum (O Regimento de Saúde de não implica a completa substituição do clero, pois monges e freiras</p><p>A SAÚDE PÚBLICA NA IDADE MÉDIA 71 70 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA provavelmente escrito durante o século XII e ainda publicado, na Ingla- provavelmente também em aldeias maiores. A presença de comida, bebi- terra, na Itália e na Alemanha, em meados do século XIX. Escrito em das, mulheres e música levou-as a se tornarem, cada vez mais, um lugar versos, podia facilmente ser guardado na memória. Os versos introdutó- de divertimento. Ao longo do período medieval, no entanto, representou rios da tradução isabelina de Sir John Harrington ilustram sólido senso o centro higiênico da cidade. Ao final do século XV, quando a sífilis surgiu comum presente nesse clássico da Educação em Saúde: como um novo problema de saúde, banho comunal caiu em desgraça; considerado um foco de infecção, aos poucos sumiu do cenário urbano. Por essas linhas a Escola de Salerno deseja Toda a saúde ao Rei dos Ingleses e aconselha. A FAÇANHA SANITÁRIA MEDIEVAL. Ao examinarmos os numerosos A mente mantenha livre de cuidados, e da ira o coração, empreendimentos da Saúde Pública medieval - os esforços para lidar Não beba muito vinho, ceie pouco, levante cedo, com os problemas sanitários da vida urbana, para criar medidas adminis- Depois de comer, ficar sentado causa danos; trativas (como a quarentena), para criar o hospital e oferecer cuidados Depois do almoço, mantenha aberto seus olhos médicos e assistência social é impossível não reconhecer a magnitude Quando sentir as Necessidades da Natureza, dessa façanha. Essas tentativas de criar um sistema racional de Higiene não as retenha, pois isso é muito perigoso, Pública se distinguem ainda mais se lembrarmos que tiveram lugar em E use ainda três médicos, primeiro o Doutor Descanso, um mundo de superstições abundantes e em que muito de conhecimento Depois o Doutor Alegria, e o Doutor Dieta. científico necessário para enfrentar os problemas de saúde estava ausen- te. Revela-se mais significativo ainda, do ângulo histórico, desenvolvi- Esse didático poema médico, e seus sucessores literários os livros de mento de padrões de pensamento e de prática em cujo interior a Saúde saúde e almanaques populares que inundaram os países europeus pouco Pública nos dois séculos e meio seguintes. após a invenção da tratavam de cada detalhe da vida diária NOTAS DO TRADUTOR e indicavam como cuidar de cada parte do corpo. Entre os assuntos Quando Constantino se mudou para Bizâncio, esta cidade passou a se chamar incluídos na higiene pessoal estavam a habitação, a alimentação e a Constantinopla; hoje Istambul. limpeza corporal. A limpeza da casa ocupava pouco espaço nos tratados 2 Alarico (c. 370-410). Rei dos visigodos. medievais de higiene, sendo muito maior o interesse pelo regime nutri- 3 O Papa Adriano I foi o chefe da Igreja de 772 a 795. cional necessário para se manter a saúde; exaltava-se a virtude da modera- 4 O ano de 476 marca final do Império Romano do Ocidente, quando Odoacro, rei ção na Também se aborda, em minúcias, o assunto sono; segundo a dos hérulos, depôs o último imperador, Romulus Augustulus. 5 Os nestorianos eram sectários de Nestor, patriarca sírio de Constantinopla, fundador visão medieval, o sono profundo previne a doença e promove a composi- de uma seita herética, no século V. Sustentavam a necessidade de se distinguir duas ção apropriada dos humores. naturezas em Cristo: uma, humana, e a outra, divina, distintas. A crença popular de que a eliminação dos humores corrompidos preve- 6 Os monofisistas pertenciam a uma seita oriental, bizantina, do século V. niria as doenças estava amplamente espalhada e coincidia com a opinião Afirmavam a existência, em Cristo, de uma só natureza, a divina, sozinha, ou de uma médica. Para conservar a saúde, fazia-se portanto necessário seguir três única natureza composta, e não de duas naturezas. 7 Então, mundo árabe já era Para os ou seguidores do procedimentos, de que barbeiros e serventes dos banhos se desincum- islamismo, só existe um Deus (como no judaísmo e no cristianismo, mais antigos); O biam: purgações, ventosas e sangrias. Almanaques, notícias e cartas de deus dos é Alá, e Maomé é seu profeta. A palavra árabe significa sangrias informavam ao público a melhor época para deixar-se sangrar; submissão (à vontade divina). Maomé (570-632), líder religioso e militar dos árabes, isso só devia acontecer em certas estações e sob constelações astrológicas é o fundador do islamismo e autor do Corão, ou Coran, livro sagrado de sua especiais. 8 Cabinet d'aisance é privada, em 9 Cerca de oitocentos metros. Devemos mencionar, por fim, outra instituição municipal importante 10 Segundo a Jenda grega, Dâmocles, um cortesão, elogiou em demasia a felicidade do na cidade medieval, usada com propósitos de higiene e de prazer: a casa tirano de Siracusa, Dionísio, o Velho (430-367 a.C.). Em Dionísio de banhos. Licenciada pela municipalidade, oferecia banhos de vapor e levou a um banquete e fez suspender sobre sua cabeça uma espada, presa por um de água. Durante o século XIII, casas de banho já existiam em cidades, e único fio de cabelo, na intenção de mostrar-lhe a natureza perigosa dessa</p><p>72 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA A SAÚDE PÚBLICA NA IDADE MÉDIA 73 A espada de Dâmocles, assim, representa qualquer perigo, ou calamidade, antigo lepre, liepre, derivado do latim lepra. Esta, por sua vez, deriva do grego lepros, 11 A palavra portuguesa vem da francesa variole, originada, por sua vez, do baixo escamoso. Lepos, em grego, é escama, e o verbo significa descascar. Sob a latim variola, de varius, mancha ou marca pequena, salpico (Cunha, Antônio Geraldo denominação lepra, na Antiguidade e na Idade Média, se incluíam várias afecções de da, Dicionário Fronteira Portuguesa, 1982). pele, entre as quais a Como salienta Abrahão Rotberg in Noções de 12 Razes (c. 850-923/926). Nasceu no Filósofo, físico, músico e alquimista muçul- Hansenologia, Paulo, Fundação Paulista Contra a 1977: "Na realida- mano, na idade madura se dedicou ao estudo da Medicina. Sua principal obra médica de, as 'lepras' da Bíblia não eram hanseníase e sim manchas, de natureza variada da recebeu, latim, nome de Liber Essa obra é uma grandiosa enciclopé- pele humana ou animal, vestuário, muros e paredes. Cooperando para resolver dia da Medicina e da Cirurgia, em vinte e cinco volumes, resultante da reunião, grave problema médico-social causado pela indevida aplicação do termo 'lepra' a uma póstuma, de seus escritos (ver Figuras Memoráveis). única enfermidade humana, a última edição da Nova Inglesa (1970) substituiu- 13 Avicena (980-1037). Médico, poeta, teólogo, astrônomo, filósofo, músico, matemáti- a no Levítico por 'uma doença co, naturalista e estadista nascido no Em Medicina, imortalizou-o 26 As Cruzadas foram expedições militares dos cristãos europeus, que se estenderam de monumental em que se encontra, codificado e ordenado, todo o 1096 a 1291. Tinham a intenção de reintegrar à Cristandade a Terra Santa, em poder saber médico de seu tempo, apresentado em cinco livros. dos Houve Cruzadas, também, para retomar a Península Ibérica aos Cânon foi considerado uma espécie de bíblia da Medicina. Exigia-se seu estudo mouros. nas Universidades da Europa. 27 nome real de Mary Tifóide é Mary Identificada, em 1907 como portadora 14 A palavra portuguesa sarampo vem do castelhano sarampion, e esta, do latim sirimpio; de Salmonella typhi, ela passou a trabalhar como cozinheira na cidade de Nova York, esta viria do grego xerampélinos, de xeros, seco, e relativo a ampelos, vinha. sob vários nomes fictícios, mudando-se sempre de casa, até ser apanhada, e detida, Assim, as manchas do sarampo teriam a con das folhas secas, da uva (Nascentes, em 1925. Mary Mallon ficou detida até sua morte, em 1938. Considera-se que ela Antenor, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Rio, 1956). ocasionou, no mínimo, dez surtos de febre tifóide, com 51 casos e 3 mortes. 15 John de Gaddesden (c. 1280-1361). Médico, professor de Medicina em Oxford. 28 Em Levítico (13, 14) há referências à lepra. Escreveu um tratado prático de Medicina e Cirurgia, Rosa Medicinae, ou Rosa 29 Levítico 13, 46. ca, o primeiro tratado médico de um autor inglês a ser impresso, em 1492. 30 Gregório de Tours (c. 544-594), bispo católico, da cidade de Tours, e historiador 16 A palavra inglesa measles, é o plural de masel (baixo alemão), bolha, pústula, francês. Escreveu a História dos Francos. (Funk & Wagnalls, Britannica World Language Dictionary, 1962). 31 A palavra portuguesa peste vem do latim pestis-es, como pestilência vem de pestilen- A palavra portuguesa mazela, parecida com masel e measles, vem do latim vulgar macella, diminutivo de macula, mancha, nódoa (Cunha, obra citada). adjetivo bubônica vem de bubão, oriundo do francês bubon e este do grego bubon, 17 A partir de 1274, os religiosos do mosteiro de São Dênis, na França, começaram a tumor na virilha, tumor, pústula (Cunha, obra citada). divulgar as chamadas Grandes Chroniques de Essas"crônicas" eram escritas em A palavra inglesa para peste, plague, vem do latim tardio plaga-ae, praga (Funk & prosa, em francês, e resultavam, em grande parte, de crônicas Wagnalls, obra citada). 18 A palavra portuguesa significa inflamação das amígdalas; vem do italiano 32 Os homens seletos (selectmen) eram membros de um conselho de funcionários da schinanzia, por intermédio do grego kynanche, coleira. cidade (town), eleitos a cada ano, na Nova Inglaterra, para exercer a autoridade 19 Cesare Baronius (1538-1607), sacerdote italiano. Escreveu os Anais executiva em assuntos locais. publicados de 1588 a 1607. 33 As palavras portuguesas cirurgião e cirurgia vêm do latim médio chirurgia, derivado do 20 Georges Cedrenus foi um cronista bizantino do século XI. grego cheirourgia, operação manual, do grego cheir, mão, e trabalho (Cunha, obra Gilberto Ânglico (1180-1250). Inglês, formado em Medicina na Escola de Salerno. citada). Escreveu um Compendium Medicinae, também conhecido por Lilium 34 As palavras portuguesas clínico, clínica vêm do grego klinos, leito. Compendium é dividido em sete livros e Gilberto se apóia em clássicos gregos e em 35 Hôtel-Dieu significa, aproximadamente, Santa Casa da Misericórdia (Rónai, Paulo, seus mestres salemitanos. Gilberto reconhece a contagiosidade da varíola e oferece Dicionário Nova Fronteira, 1989). uma notável descrição da lepra. 36 Lourenço, o Magnífico (1449-1492) governou Florença de 1469 a 1492. 23 John de Arderne (c. 1307-1390). Cirurgião inglês. 37 Existe uma versão portuguesa de Regimen Sanitatis (Regimento de Saúde 23 Ignis sacer significa, em latim, fogo sagrado. de Salerno. Tradução de Maria Helena Rocha Pereira, segundo o texto de Acker- 24 A palavra portuguesa influenza vem da inglesa influenza e esta, da italiana influenza. mann. Prolóquio de de Pina. Coleção Amphiteatrum, VII. Centro de Estudos Todas derivam do latim influere, de in, para dentro, e fluere, correr, escorrer, fluir Humanísticos, Porto, 1963). (Cunha, obra citada). Em Salerno, cidade ao sul da Itália, floresceu, nos séculos XI e XII a primeira Escola 25 A palavra portuguesa lepra vem do latim lepra-ae, derivado do grego lépra-as (Cunha, de Medicina do Ocidente. Salerno foi o único lugar, na Europa capaz de obra citada). oferecer uma formação médica regular antes que, no século XII e, sobretudo, no Segundo Funk & Wagnalls (obra citada) a palavra inglesa leper vem do francês XIII, o ensino passasse às mãos das universidades.</p><p>74 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA 38 Gutemberg, Johann (c. 1397-1468) impressor alemão, é tido como o inventor da tipografia, a impressão com caracteres móveis, agrupados, por volta de 1438. Aponta- se a data de 1450 como a do início da comercialização da tipografia. IV O Mercantilismo, Absolutismo Saúde do Povo (1500-1750) ADMIRÁVEIS MUNDOS NOVOS. Durante o pontificado de Leão Girolamo famoso médico, cientista e poeta italiano, escreveu um poema didático sobre a sífilis, publicado em 1530, em Verona. A descrição dessa temível e repugnante doença o levou a comentar os males da época, a examinar a proporção de bem e mal em seu tempo e a compará-la com períodos anteriores. "Embora uma tempestade cruel se agite", ele refletiu, "e a conjunção dos astros seja perniciosa, a divina não nos abandonou completamente. Se esse século viu uma nova doença, devastações da guerra, saques de cidades, enchentes e secas, também soube navegar por oceanos negados aos antigos, e ultrapassou os limites do mundo antes conhecido". Quando Fracastoro compara a expansão do horizonte e as devastações de doenças e guerras, ouve-se poderoso impulso de uma nova era, "a era da descoberta do mundo e do homem", a era do Para o leitor médio, o Renascimento é um período de fascínio histórico. Em geral, esse termo traz à imaginação uma era de príncipes cultos e impiedosos de pintores e escultores geniais, de eruditos clás- sicos, de assassinos de aluguel; um tempo, em suma, de versáteis super- homens a viver a vida como uma obra de arte. Contém muita verdade essa imagem. Na história da Saúde Pública, no entanto, Renascimento é significativo não por seu brilhantismo e por sua cor, mas por representar a aurora de um novo período da História, o período moderno, no qual a Saúde Pública como a conhecemos hoje se desenvolveu. Desse ponto de vista, pode-se ver o Renascimento como uma fase no processo de desaparecimento da civilização medieval, de sua transformação em mundo moderno. Ademais, esse período de ascensão 75</p><p>76 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA O ABSOLUTISMO E A SAÚDE DO POVO 77 da civilização moderna testemunhou também os primórdios da ciência desejo de riqueza como motivo da guerra, e a consciência da utilidade da moderna como um de seus elementos essenciais, e de profunda cia sobre a Saúde Pública. tecnologia para alcançar-se o poder, levaram soberanos e estadistas a incentivar homens de engenhosidade inventiva e saber técnico. A revolução tecnológica da Idade Média representou um papel de CAUSAS E Esse processo de mudança, em que a extraordinária importância na abertura do caminho para período moder- Renascença representou a primeira fase, se deu de modo lento e desigual no. Sem o progresso tecnológico acumulado nos quatro séculos preceden- e se estendeu por um período de mais de dois séculos. Em geral se tes, muito provavelmente os criadores da ciência moderna teriam sido concorda em situar as raízes dessa transformação nos séculos XIV e XV, e incapazes de alcançar seus objetivos. A criação de minas, salinas, fundi- a relacioná-las a mudanças vivenciadas pela Europa ocidental, em parti- ções, vidrarias, e de outros empreendimentos industriais, teve especial cular pela Itália. Em resumo, mudanças que vinham acontecendo, e significado na formação de um novo clima intelectual, propício ao cultivo amadurecendo lentamente, no interior da ordem medieval, enfim encon- da ciência. A invenção da imprensa, no fim do século XV, permitiu traram expressão decisiva. E, em um país após outro, inauguraram uma emancipar esse conhecimento prático da tradição oral, e estendê-lo, e nova ordem política, social e científica. Para entender por que isso aconteceu é necessário recuar na Idade aperfeiçoar sua natureza. Ao mesmo tempo, eruditos começaram a se interessar pelas atividades técnicas dos artífices: isso se evidencia em De Média, recuar até antes da Primeira Por esse tempo, como Re Metallica (1556), um erudito tratado sobre mineração, de autoria do vimos, e pelos séculos XII e XIII adentro, surgiram muitas cidades na Europa, mais numerosas, e mais vigorosas no norte da Itália e em Flan- médico Georg Agricola acentua não só a relação entre teoria e dres. Empenhados no comércio e na indústria, os habitantes desses aplicação, como também a utilidade social da mineração. O impacto dessas tendências começou a se fazer sentir sobre a educa- centros desenvolveram uma nova classe social, a classe média, ou burgue- sia, cujas origens próprio nome já indica. Com essa classe, nasceu uma ção, e o currículo das escolas passou a receber mais atenção. Apoiando-se nessas manifestações, e alimentada pelas condições favoráveis, a ciência nova noção de riqueza, a noção da riqueza mercantil, não mais fundada na natural alcançou um progresso notável nos séculos XVI e XVII. terra, mas em dinheiro, ou em artigos de comércio, mensuráveis em dinheiro. Além disso, à proporção que a posição social e a força política da A ANTIGA SAÚDE PÚBLICA E A NOVA CIÊNCIA. Para entender-se a classe média se manifestavam, e aumentavam, os métodos de comércio e história da Saúde Pública durante o período de transformação iniciado os ofícios manuais começaram lentamente a merecer a dignidade da com a é preciso examinar suas faces, a teórica e a prática. indagação intelectual. A atenção a problemas de comércio e indústria Enquanto essa época se caracteriza pela rápida evolução e difusão da desempenhou papel muito importante na criação do ambiente em cujo ciência, em vários campos, a Saúde Pública, como atividade prática, interior a moderna ciência pôde vir à luz. Com efeito, um sociólogo alemão, expressou a opinião de que "a economia monetária foi a pouco, ou nada, se beneficiou desses avanços. Não obstante, acumulava- se um conhecimento, e sobre esse terreno a moderna Saúde Pública primeira a despertar o ideal da calculabilidade numérica" e de que "a eventualmente erigir-se-ia. interpretação quantitativamente exata da natureza é a contraparte teórica O avanço científico não é nunca uniforme, ou simultâneo, ao longo de das finanças". Não é acidental existirem informações estatísticas detalha- uma frente inteira, mas ocorre, segundo tempos diferentes, de várias das, sobre as cidades, na Itália nos séculos XIV e (ver pág. maneiras, em áreas de conhecimento específicas. Em algumas ocasiões 69). Essa evolução, além do mais, estava ligada de modo indissolúvel à são necessárias a descoberta e a definição de dados elementares; em evolução do Estado nacional; em larga medida, a atividade econômica das outras, quando um conhecimento já existe, pode ocorrer um avanço cidades permitiu o crescimento e a consolidação de governos centrais. E a frutífero através da criação e da aplicação de um conceito integrador, ou atividade intelectual de grupos urbanos, muitas vezes encorajados e atacando-se um problema mais complexo e contribuindo-se para sua orientados pelo patrocínio real, teve as influências mais profundas sobre o florescimento da cultura secular, característica do E da resolução. Relativamente à Saúde Pública, no Renascimento, todos esses qual a nova ciência se constituía em um dos elementos mais notáveis. O aspectos estiveram presentes. André seus contemporâneos e seus sucessores, lançaram as</p><p>78 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA MERCANTILISMO, O ABSOLUTISMO E A SAÚDE DO POVO 79 fundações de um saber acurado da estrutura do corpo humano. Igualmen- latina e varicela. E a que veio a se tornar um problema de saúde maior, te fundamental revelou-se a descoberta da circulação do sangue, por desde o Renascimento até nossos dias: sífilis. William Harvey8, um solo finalmente firme para a visão do corpo como uma unidade funcional. O SUOR No início de agosto de 1485, Henrique Tudor, Conde A ciência natural se caracterizava, na época, não apenas pelo uso de Richmond, vindo da França, desembarcou na enseada de Milford; crescente do método experimental, mas também pela disposição de tratar ainda naquele mês, derrotou Ricardo no campo de Bosworth. Mal o matematicamente os fenômenos naturais. Essa tendência se exprimiu em vencedor tinha entrado em Londres, para ascender ao trono como Henri- diversos sentidos, entre os quais a criação da aritmética política, por que um pálio de medo e terror cobriu a capital; uma doença William Petty9 teve extraordinária fecundidade para o futuro da Saúde comunicável, aparentemente desconhecida, irrompeu em meio aos solda- Pública. De igual, senão de maior importância para seu crescimento, se dos do exército vitorioso e rapidamente se espalhou entre a população. mostraram a evolução da Epidemiologia e da observação clínica, durante Essa enfermidade tinha como principais características a febre alta os séculos XVI e XVII. Crescia a tendência para individualizarem-se as com calafrios, nas extremidades e dores em várias partes do doenças, segundo a observação clínica; descreveram-se várias pela pri- corpo uma sensação de profunda angústia, dificuldade de respirar e meira vez, como coqueluche, febre tifóide e escarlatina. E Girolamo irregularidade do pulso. Em casos graves instalavam-se delírio, alucinação Fracastoro elaborou a primeira teoria científica, consistente, sobre a con- e estupor. A moléstia durava de algumas poucas horas até um dia, e como tagiosidade das moléstias. o restabelecimento acontecesse após suores profusos, recebia o nome de Mas a organização e a administração da Saúde Pública praticamente suor inglês. não mudaram. Não existem contrastes absolutos entre períodos suces- A moléstia dos suores se espalhou agilmente a outras partes da Ingla- sivos na História, pois cada era carrega instituições, e modos de pensar e terra, mas não invadiu a Escócia, a Irlanda ou o continente. agir, de períodos precedentes. Assim, o padrão de Saúde Pública criado Incidiu com extrema gravidade, milhares de pessoas pereceram. Em pela comunidade urbana medieval continuou em uso do século XVI ao Londres, matou, em uma semana, dois prefeitos e seis vereadores. Em século XVIII. Com desenvolvimento de Estados nacionais, de quando poucas semanas, porém, a força da onda epidêmica se debilitou, e a em quando governos centrais assumiam as ações. No geral, porém, cabia à doença sumiu por cerca de vinte anos, para reaparecer, ainda na Inglater- comunidade local cuidar dos problemas de Saúde Pública. E quando ra, em 1508, e de novo, em 1517, 1528 e 1551. novos problemas surgiam, ajustavam-se ao modelo existente. O surto mais grave aconteceu em 1528, e não apenas se difundiu celeremente mas alcançou o continente, assolando Alemanha, Áustria, DOENÇAS NOVAS PARA UM MUNDO NOVO. Em 1849, o patologista Países Baixos, Dinamarca, Suécia, Polônia e Rússia. Houve centenas de elaborou uma teoria segundo a qual a doença epidêmica mortes em Estrasburgo, e relata-se a morte, em Hamburgo, de mil pes- seria uma manifestação de desajustamento social e cultural. Ele salientou em poucos dias. Depois de 1551, não se registrou mais nenhuma que, na aurora de novos períodos históricos, "doenças epidêmicas, exibin- epidemia de suor inglês, nem na Inglaterra nem na Europa continental. do um caráter até então desconhecido, aparecem e desaparecem, muitas Em 1552, John publicou um relato clássico da doença, em Um vezes sem deixar traço algum. Como exemplos, tomemos a lepra e o suor Livro, ou Conselho Contra a Doença Comumente Chamada de Suor, ou Molestia Para ilustrar sua teoria, Virchow escolheu duas doenças opostas, dos mas podia ter usado outras, pois, com a entrada do período moderno, o Nunca se esclareceu suficientemente a natureza dessa enfermidade. quadro patológico da Europa mudou muito. Doenças de vasta prevalên- Segundo alguns autores, teria sido uma forma de influenza, segundo cia, como a lepra, diminuíram em importância e deram lugar a flagelos outros, um tifo atípico, ou uma infecção viral. novos, ou não percebidos antes. Nos séculos XVI e XVII, entre as doen- ças epidêmicas observadas pela primeira vez, ou pela primeira vez estu- A FEBRE DAS CADEIAS E TRIBUNAIS NEGROS. Enquanto a molés- dadas de modo mais preciso, estavam suor inglês, o tifo exantemático, o tia dos suores permaneceu um enigma fascinante, outras doenças, por escorbuto, e algumas enfermidades exantemáticas agudas como escar- causa do morticínio da população, tiveram mais importância. Entre elas</p><p>80 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA MERCANTILISMO, ABSOLUTISMO E A SAÚDE DO POVO 81 estava o tifo exantemático, descrito pela primeira vez, clara e precisamen- reconhecer a escarlatina. Em 1553, no entanto, Giovanni Filippo Ingras- te, por Fracastoro, em seu clássico tratado sobre contágio, de 1546. sia interessado por problemas de Saúde Pública e de Medi- Embora considerada, na uma nova doença, provavelmen- cina Legal, descreveu uma doença de crianças. Diferençou-a do sarampo te o não era novidade na Europa. Não obstante, apesar de notícias e, afirmou ser a enfermidade conhecida, comumente, por rossania ou de surtos no final da Idade Média, sem dúvida sua presença aumentou rossalia. A erupção cobria o corpo inteiro e consistia de muitos pontos muito durante, e após, o século XVI. grandes e pequenos, de uma ígnea cor rubra, e assim o corpo parecia estar O tifo sempre esteve intimamente ligado a guerras, fome e pobreza. em chamas, descreveu Ingrassia. E embora não mencionasse a dor de Quando as pessoas se ajuntam e não conseguem manter-se limpas, e garganta, ele se referia, evidentemente, à escarlatina. assim se expõem ao piolho transmissor, passa a ser uma ameaça. Em Não obstante, a individualização clínica dessa moléstia só se consumou a doença continua a ser em acampamentos no século XVII. De início, a atenção se concentrou, ao que parece, em militares em especial nas guerras em prisões, em navios e em surtos epidêmicos de uma doença, na Alemanha. Em escritos populares hospitais. aparecem referências ocasionais, a uma "moléstia rubra" (Rotsucht). E em Ao longo dos séculos XVI e XVII, tifo teve participação constante e 1624, G. Horst publicou um livro em que distinguia a rubra" de temida nas campanhas militares que se seguiram, em sucessão quase sarampo e (possivelmente rubéola). Relatos de epidemias, ininterrupta. Durante o cerco de Granada (1489-1490), uma epidemia em Wittenberg e Breslau, em 1627, de autoria de Daniel Sennert (1572- dizimou o exército de Fernando e levando dezessete mil vidas. 1637) e Michael Döring (morto em 1644) contêm a primeira descrição Naquele tempo, já se usava a palavra espanhola moderna para a doença, clara da enfermidade, com todas as suas feições distintivas. Sennert não Também se conhecia o tifo como febre pintada ou petequial, apenas foi o primeiro a anotar a descamação que se segue à erupção, mas e, por vezes, pela designação de um país, como, por exemplo, doença também a relatar as sérias complicações da escarlatina, em particular a húngara, morbus hungaricus. Em 1529, tifo atacou exército francês, que hidropisia resultante da inflamação do rim. sitiava Nápoles, devastando-o quase completamente. E durante a guerra Durante a última parte do século XVII a escarlatina teria estado pre- dos Trinta contribuiu muito para a desnorteante assolação e o sente, de maneira habitual, em várias regiões da Europa e das Ilhas sofrimento inútil infligidos à indefesa massa do povo. Britânicas. De fato, recebeu na Inglaterra o nome pelo qual a conhecemos A tradição de espalhar ervas doces nos tribunais, na Inglaterra, é uma até hoje. Em 1676, Thomas Sydenham incluiu, na terceira relíquia da história da Epidemiologia, testemunho mudo de uma antiga edição de seu Observationum Medicarum um curto capítulo intitulado denominação dessa moléstia: febre das cadeias. O tifo era, quase inevita- "Febris scarlatina". Aparentemente, seu uso do termo é a simples tra- velmente, uma de se ir para a cadeia. Uma série de surtos, dução, para o latim, de um nome de utilização comum na época. Uma designados na história da Inglaterra como Tribunais ilustra anotação de Samuel Pepys em seu diário, de 10 de novembro de 1664, admiravelmente essa vinculação. reforça essa hipótese: "Minha filhinha Susan adoeceu, nós suspeitamos O primeiro ocorreu em Cambridge, em 1522, e se seguiram outros, em de sarampo, ou, ao menos, de uma febre escarlate". Oxford, em 1577 e em Exeter, em 1586; os últimos aconteceram em Sydenham a descreveu como uma doença muito branda, pouco mais Taunton, em 1730, e em Londres, em 1750. Em cada um, uma infecção que um nome, como ele afirmava, mesmo se, por vezes, houvesse mortes. fatal, provavelmente o tifo, se espalhou, dos prisioneiros trazidos diante No geral, sua descrição condiz com o caráter da doença como a conhece- da corte, para os juízes e outras pessoas presentes. mos hoje. Dos dias de Sydenham até cerca da metade do século XVIII, tem-se a impressão de que a escarlatina se manifestou de modo benigno. A MOLÉSTIA RUBRA. O Renascimento se caracteriza pela crescente E, a despeito dessas descrições, até o fim do século XVIII continuou a ser individualização da doença fundada na observação clínica e epidemiológi- confundida com o sarampo. ca. Essa tendência se evidencia não só com a moléstia dos suores e o tifo, mas também na descrição da escarlatina e de outros exantemas agudos. O RAQUITISMO, OU A DOENÇA INGLESA. Nos primeiros anos do Antes do século XVI, não existe nenhuma descrição em que se possa século XVII surgiu uma ameaça aparentemente nova à infância sadia.</p><p>82 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA MERCANTILISMO, O ABSOLUTISMO E A SAÚDE DO POVO 83 "Existe uma doença de crianças", escreveu Dr. Fuller em 1649, "(e uma esse libreto se refere a escorbuto, tifo, e, possivelmente, febre amarela, doença-criança, que até agora não recebeu um nome próprio em latim) intermação, calor pruriginoso e disenteria, a que os marinheiros estavam chamada (...) a cabeça aumenta muito, ao passo que as sujeitos nos trópicos. pernas e partes inferiores mínguam demais". Nas longas viagens, porém, marinheiro encontrava seu grande inimi- Era o raquitismo realmente novo? Há alguma evidência de que, com go no enfermidade devida, essencialmente, a uma dieta outro nome, se o tenha conhecido muito antes, decerto até mesmo na deficiente em, ou destituída de, vitamina C. Não se estava diante de uma doença Durante a Idade Média, Antiguidade clássica. No século XVI, Ambroise descreveu defor- escorbuto tinha sido observado em cidades sitiadas, quando se cortava midades valgas e varas das pernas, provável sinal da presença dessa moléstia na França. Não obstante, na Inglaterra o raquitismo apareceu, suprimento de provisões frescas, ou em tempos de escassez. Tornou-se pela primeira vez, nos boletins de mortalidade de 1664, e só em meados um problema agudo, no entanto, ao se aventurarem os marujos da Europa do século XVII passou a atrair a atenção pública como problema de saúde. Ocidental pelo A primeira descrição publicada do que hoje conhecemos como raqui- Os portugueses estiveram entre os primeiros a enfrentar as devasta- tismo veio a lume em 1645, na dissertação apresentada por Daniel Whis- ções do escorbuto. Em sua viagem de 1498, Vasco da perdeu tler, em Leiden, para obtenção de seu diploma de doutor em Medicina. cinqüenta e cinco de seus marinheiros para a temível doença. Quando "Cerca de vinte e seis anos atrás", ele escreveu, "pela primeira vez se Jacques explorou Canadá, em 1535, uma violenta forma da moléstia atacou seus homens. A experiência inglesa com esse flagelo de observou a doença em nosso país". Esse ponto de vista coincide com a homens do mar se iniciou em meados do século XVI, nas primeiras opinião expressa por Drummond e Wilbraham em seu estudo A Alimen- tação do Pois, se o raquitismo se manifestou em períodos ante- viagens à África. Por mais de duzentos anos escorbuto continuou a ser uma enfer- riores de escassez, um aumento marcante de sua incidência ocorreu midade disseminada entre marinheiros, embora os holandeses, já no meio durante as duas primeiras décadas do século XVII, graças à severa de- do século XVI, tivessem reconhecido o valor de vegetais frescos e sucos pressão econômica e à pobreza, em especial no sul da Inglaterra. Desemprego e preços em alta sem dúvida levaram a uma diminuição no de frutas em sua prevenção. Purchas, em 1601, Lancaster, em 1605, consumo de leite e à conseqüente queda de ingestão de cálcio, fósforo e Woodall, em 1617, Cockburn, em 1696, e Mead, em 1749, todos afirma- ram o valor dos sucos de limão e de laranja. Até a metade do século XVIII, vitamina D. Desde então, e por um período de mais de dois séculos, vieram à luz mais de oitenta publicações sobre escorbuto, e em muitas cresceu muito a da enfermidade e o raquitismo se tornou um se recomendava o uso de frutos ácidos, ou de seus sucos. Não obstante, importante problema de saúde pública. Esse aumento também estaria relacionado ao crescimento da vida urbana, quando era difícil consumir as apenas em 1795 o almirantado britânico editou a sua famosa ordem para "carnes brancas", em particular leite, e tomar sol. que todos os marinheiros recebessem uma provisão de suco de limão. AS DOENÇAS DOS TRABALHADORES O interesse pelas doenças dos ESCORBUTO, A MORTE NEGRA DO MAR. A história das grandes marinheiros não era um fenômeno isolado; problemas de saúde de outros descobertas geográficas dos séculos XV e XVI é um tema familiar, mas um mundo mais espaçoso trouxe também problemas novos e inespe- grupos de trabalhadores também atraíam atenção. Em verdade, nesse rados. período se lançaram as fundações da Medicina Ocupacional, que permi- As rotas marítimas para o Extremo Oriente e Novo Mundo implica- tiu a publicar, em 1700, o primeiro tratado amplo sobre as enfermidades dos trabalhadores. vam viagens maiores, e dirigiram a atenção para novos problemas de saúde. Assim, não por acaso apareceu, no século XVI, uma literatura Em virtude de avanços econômicos e tecnológicos, os mineiros e os ligada às necessidades de saúde dos marinheiros. O primeiro trabalho, em metalúrgicos estiveram entre os primeiros grupos ocupacionais a merecer estudos. O volume aumentado de negócios, resultante do crescimento inglês, dedicado à Medicina Naval, se publicou em Londres, em 1598, sob o título As Curas dos Doentes nos Empreendimentos da Nação Inglesa no das empresas comerciais no século XV, criou uma demanda de expansão Aparentemente obra de George Whetstone, soldado e poeta, das moedas correntes e de capital. Durante os séculos XV e XVI só por</p><p>84 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA MERCANTILISMO, ABSOLUTISMO E A SAÚDE DO POVO 85 meio de um suprimento maior de ouro e prata se podia atender a essa necessidade, e, assim, as minas da Europa Central começaram a trabalhar mencionar apenas alguns, J. R. Glauber escreveu sobre a saúde dos com esse objetivo. Aprofundaram-se as minas, e a precisão de cavar mais marítimos (1657), L. Antonio Porzio (1685) e Heinrich Screta (1687), fundo na terra afetou a saúde dos mineiros. Quanto mais fundas as minas, sobre a dos soldados, G. Lanzoni, sobre a dos salineiros e F. Plemp, sobre maiores os riscos ocupacionais. O surgimento dos primeiros livros relacio- a dos advogados. nados com doenças e acidentes de mineiros reflete essas circunstâncias. Essa tendência, plena de significados para o futuro, alcançou sua Contudo, a primeira publicação sobre os riscos de um grupo ocupa- primeira afirmação clássica com De Morbis Artificum Diatriba (Discurso cional uma pequena brochura de oito páginas, escrita em 1472 por sobre as doenças dos artífices), de Bernardino Ramazzini, de Módena, um Ulrich Ellenbog, médico de Augsburgo, e impressa em 1523 ou 1524 médico de grande saber e encanto pessoal. Sua atraente personalidade se se referiu a ourives, e não a mineiros. Intitulava-se Sobre Venenos revela no poema introdutório de seu livro, quando diz estar a obra se Vapores Gases de Metais, como Prata, Mercúrio, Chumbo e Outros coçando e ardendo para ser publicada e a adverte quanto a triste sina que que Valioso Negócio do Ourives e de Outros Trabalhadores Compele a Usar: a espera. Como Devem Eles Agir e Como Dissipar Veneno (Von den gifftigen besen Publicada em 1700, essa obra representa, para a evolução da Higiene tempffen und reuchen...). O autor tinha intenções profiláticas. Ocupacional, o mesmo que o livro de Vesálio para a Anatomia, e o de O primeiro relato de doenças e acidentes de mineiros apareceu em para a Patologia. Percebendo a grande importância social da 1556, no compendioso tratado sobre mineração de Georg Agricola (1494- saúde ocupacional, Ramazzini se dedicou não apenas a estudar as condi- 1555). Ele dividiu os padecimentos dos mineiros em quatro grupos (os ções mórbidas das profissões, mas também a chamar atenção para a que atacam as juntas, os pulmões, os olhos e, finalmente, os fatais) e aplicação prática desse conhecimento. Na primeira edição, ele discutiu discutiu a prevenção e o tratamento de cada um desses estados. O relato quarenta e dois grupos de trabalhadores, entre os quais mineiros, doura- dos padecimentos, porém, é apenas incidental à descrição da mineração, dores, farmacêuticos, parteiras, padeiros e moleiros, pintores, oleiros, mais longa. cantores e soldados. E ampliou a segunda edição, de 1713, para incluir Em 1567, onze anos depois da publicação do tratado de Agricola, veio a mais doze grupos, entre os quais impressores, amoladores e lume, em Dillinger, Alemanha, a primeira monografia dedicada exclusi- cavadores de poços. vamente às doenças ocupacionais de mineiros e fundidores. Teve como A obra de Ramazzini tem uma significação dual; é síntese de todo o autor Theophrastus von Hohenheim, usualmente conhecido como Para- conhecimento sobre a doença ocupacional, desde os primeiros tempos, e, Intitulava-se Von der Bergsucht und anderen Bergkrankheiten (Sobre a também, um solo para novas investigações; assim, um olhar ao passado tísica dos mineiros e outras doenças das montanhas). e uma intimação a um desenvolvimento futuro. Traduzido para o francês, Consiste de três livros. O primeiro, sobre as doenças, principalmente alemão e o inglês, o livro de Ramazzini perdurou como o texto funda- pulmonares, dos mineiros; o segundo, sobre as moléstias dos fundidores e mental desse ramo da Medicina Preventiva até o século XIX, quando a metalúrgicos; terceiro, enfermidades causadas por mercúrio. Paracelso Revolução Industrial lançou ao cenário novos problemas. discutiu etiologia, patogênese, prevenção, diagnóstico e tratamento, e sua monografia exerceu influência definitiva sobre a Medicina Ocupacional. A GRANDE PÚSTULA. Entre as doenças novas, ou aparentemente Agricola e Paracelso puseram sobre solo firme o estudo dos problemas novas, características dos séculos XVI e XVII, sobressaiu a sífilis. Qual- de saúde dos mineiros e a crescente literatura moderna sobre o assunto quer que seja sua origem e não cabe discuti-la aqui não há dúvidas reconhece o valor de suas contribuições. Embora os séculos XVII e XVIII de que a doença apareceu na Europa, sob a forma epidêmica, no fim do não tenham trazido descobertas importantes, a compilação de observa- século XV. Apareceu em Nápoles, de onde se disseminou para o resto do ções, por vários autores, valeu por si mesma. Simultaneamente, outros continente. Em 1495 a sífilis estava na Alemanha, na França e na Suíça, médicos escreveram sobre os riscos de diferentes ocupações. Desde em 1496 na Holanda e na Grécia, em 1497 na Inglaterra e na Escócia, em Marsilio Ficino (1497)30 e passando por G. Horst (1615) e Grataroli (1652), 1499 na Hungria e na Rússia. Como os médicos a considerassem uma existia uma literatura sobre a saúde dos eruditos. No século XVII, para nova doença, recebeu vários nomes; os franceses a chamavam de doença napolitana, ao passo que os italianos a ela se referiam como doença</p><p>MERCANTILISMO, ABSOLUTISMO E A SAÚDE DO POVO 87 86 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA francesa, morbus gallicus, nome que se tornou mais comum na Europa. contatos com pessoas sadias. Em 1496, barbeiros de Roma receberam a Em alguns países tinha também denominações vernaculares: a pústula proibição de servi-los. Muito cedo se criaram hospitais, e outras instalações para tratamento grande, ou francesa, em inglês, la grosse em francês, e die de sifilíticos. As autoridades municipais de Würzburg, em 1496, de Fri- em alemão. Em 1530, porém, Fracastoro publicou seu poema Syphilis Sive Morbus poema que logo ganhou popularidade e mereceu burgo, em 1497, e de Hamburgo, em 1507, tomaram providências para a muitas edições. Conta a lenda de Sífilo, um pastor bonito e jovem. Sífilo, hospitalização e o tratamento. Em 1505, a Confraternidade de Ferrara recebeu licença para estabelecer um hospital. Um alvará veneziano, de por ter insultado o deus Apolo, recebeu como punição uma 1552, ordenava a todos os doentes a procurar o Hospital dos Incurables. moléstia, a doença francesa. Segundo o modelo das Geórgicas, de Vir- Muitas comunidades, além disso, ofereciam tratamento médico, de graça, Fracastoro apresentou os sintomas, curso e tratamento da e, na maioria das vezes, se pedia aos clínicos a notificação dos casos às doença em refinados versos latinos. A fama do poema levou à generali- zação do nome autoridades. Nos séculos XVII e XVIII, possivelmente como resultado dessas me- Naquela época, a sífilis exibia muito mais sintomas agudos do que hoje, e se a considerava doença epidêmica. Como a tolerância sexual didas, e também do enérgico tratamento pela unção mercurial, e do desenvolvimento de algum grau de imunidade, a sífilis se tornou uma caracterizasse o período entre Renascimento e o século XVIII, a doença não estigmatizava e assim foi possível levar a cabo ingentes esforços para doença de natureza mais crônica. Não obstante, continuou a se difundir e combatê-la. Ninguém pensava em esconder uma infecção sifilítica, e a ser um problema de saúde maior. E quando a moralidade da classe Ulrich von Hutten, cavaleiro fidalgo alemão, chegou a publicar um relato média passou a dominar, caiu sobre a doença estigma social. Em de seu caso, de modo a que outros se pudessem beneficiar de sua a sífilis se escondeu e isso muito prejudicou os esforços experiência. Em o conhecimento sobre a sífilis suas para controlá-la, até recentemente. manifestações clínicas, sua contagiosidade, seu tratamento- se difundiu A PEQUENA PÚSTULA. O aparecimento de novas doenças não impli- rapida e amplamente. Por volta de 1530, já se reconhecia caráter sexual da enfermidade e se agia com vigor para controlar fontes de infecção. cou desaparecimento das antigas. Ao contrário, algumas cresceram em Algumas medidas de controle tiveram como alvo as prostitutas. importância como problemas de saúde comunitária. Não há dúvida quanto à existência da varíola na Idade Média. Ao fim bordel era uma instituição aceita e a prostituição uma profissão ampla- mente praticada; ao fim do século XV Roma possuía mais de seis mil e do período medieval, contudo, essa moléstia parece ter-se espalhado pela oitocentas prostitutas públicas. Em Veneza, no censo de 1509, se conta- Europa, como também por Ásia, África e Américas, onde exploradores e colonizadores europeus a tinham introduzido. Em geral, a varíola aparece, ram não menos de onze mil e seiscentos e cinqüenta e quatro femene da em uma população de trezentos mil habitantes. Já em 1496 as na Europa, de forma branda e raramente fatal. Em seu livro sobre prostitutas haviam sido expulsas de Bolonha, Ferrara e outras cidades. contágio, Fracastoro a considera uma doença leve, à qual se sujeitavam Em 1507, uma lei de Faenza ordenava o exame das mulheres desejosas quase todos. Existem vários relatos de epidemias na Itália, no século XVI, de se prostituir e a proibição de exercer a profissão para as encontradas como, por exemplo, em Mântua, em 1567, e em Brescia, em 1570, 1577 e 1588. Ambroise se refere à varíola na França e descreve casos que com a doença francesa. Em geral, as medidas se originavam das desenvolvidas para enfrentar viu em 1586 e em outros anos. O termo smallpox apareceu na Inglaterra no início do século XVI outras doenças contagiosas, em particular lepra e peste. Expulsavam-se, ou impediam-se de entrar na comunidade, os não residentes doentes, ou como contraparte ao termo francês la petite vérole, usado em oposição a suspeitos. Cidadãos enfermos tinham que tratar-se em hospitais espe- la grosse vérole, a sífilis. Os termos implicam o reconhecimento de al- ciais. Em 1496, Besançon expulsou prostitutas e estrangeiros acometidos guma semelhança entre as duas condições, sendo a erupção elemento pela doença napolitana. Zurique, nesse mesmo ano, e Nurembergue, em comum. No fim do período a varíola começou a ser reconhecida 1497, tomaram atitudes similares. Ainda em 1497, Bamberg proibiu os como uma doença habitual na Inglaterra. Em 1629, os primeiros boletins sifilíticos de entrar em hospedarias e igrejas e de manter quaisquer</p><p>88 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA MERCANTILISMO, ABSOLUTISMO E A SAÚDE DO POVO 89 de mortalidade impressos para Londres a registraram como uma enfermi- particular, em 1657 e 1644, epidemias visitaram a Inglaterra. Cromwell40 dade distinta, que, ano a ano, se manteye com regularidade nos registros. teria morrido de malária. Ao longo do período fazem-sé referências à varíola, Durante esse período a enfermidade se introduziu no Novo Mundo, em particular em Londres, e sua crescente gravidade se reflete na alta nos Sua incandescência, nessa época, teria ocorrido por causa das contínuas números dos boletins de mortalidade; mais de mil e quinhentas pessoas guerras e da grande expansão do comércio marítimo. Os europeus esta- pereceram, só em Londres, durante a epidemia de 1659. vam em permanente contato com alguns dos maiores focos da doença na Pelo fim do século XVII, já se considerava a varíola quase uma parte África, na India e na Ásia Oriental. A importação de novas linhagens do inevitável da Os recém-nascidos e crianças mais novas contrai- parasito e a disseminação da moléstia pela Europa, por portadores, são riam uma forma branda da doença, mais fatal em crianças mais velhas, e prováveis. em adultos. Nessa época se fizeram duas contribuições significantes à profilaxia da Pelo início do século XVIII, era endêmica nas cidades da malária. Entre 1630 e 1640, se importou a quina peruana, ou cinchona, nha, e uma das principais causas de morte. A Rainha Maria morreu em para a Europa, assim se conseguindo um remédio específico contra a 1694, durante uma epidemia. Ao longo daquele século, no continente e doença. E em 1717, Giovanni Maria Lancisi um conhecido na Inglaterra, ardendo endemicamente nas cidades e se inflamando em clínico, publicou um volume intitulado De Noxiis Paludum Effluviis (Sobre surtos epidêmicos, a varíola representou uma ameaça contínua à saúde as emanações nocivas dos pântanos). Ele acreditava produzirem os pânta- pública. nos duas espécies de emanações, animadas e inanimadas, capazes de Penetrou no Novo Mundo pouco depois da descoberta. Desde então originar malária. As animadas eram os mosquitos. Estes, segundo Lancisi, apareceu em ondas, de tempos em tempos, em uma ou mais localidades, podiam carregar, ou transmitir, matéria patogênica ou animálculos. Lan- mas com uma magnitude nunca comparável às da ou Eu- cisi, portanto, se aproximou do conceito de vetor e antecipou, em parte, a ropa. Não obstante, evocava um terror vívido. A necessidade de infor- solução do enigma da malária, conseguida apenas no final do século XIX. mar o público quanto à natureza da doença e aos meios para enfrentá-la, Outras doenças já conhecidas também apareceram, sob formas epidê- levou Thomas Thacher a publicar, em 1677-1678, Uma Breve Regra para micas, das mais graves da História, durante os séculos XVI e XVII. Guiar as Pessoas Comuns da Nova Inglaterra a se Conduzirem, e aos Seus, No século XVI, a difteria emergiu, na Europa, como uma séria doença Diante da Varíola ou o primeiro documento médico impresso epidêmica, primeiro nos Países Baixos e ao longo do Reno e na França, na ao norte do depois na área ocidental do na Península Ibérica e na Por toda reconhecia a necessidade de uma prevenção efetiva. Itália. Observações de médicos forneceram as primeiras descrições clíni- E graças à varíola se chegou, no século XVIII, à vacinação de Jenner, um cas apropriadas da enfermidade. Uma série de epidemias mortíferas dos grandes triunfos da Medicina Preventiva. Os primórdios dessa faça- varreu Espanha e Itália a partir do fim do século XVI e levou os médicos nha se situam no início do século XVIII. desses países a aceitar o caráter comunicável da moléstia. Lenta, mas seguramente, a diferenciação clínica da difteria se processava. No entan- MALÁRIA E OUTRAS DOENÇAS. A malária, como a estava to, como, mais para o final do século XVII, a violência da doença arrefe- presente na Europa na Idade Média. Mas só no século XVI dispomos de cesse, o interesse dos médicos diminuiu. Pelo século XVIII adentro, alguma informação sobre sua intensidade e distribuição. porém, a difteria de novo cresceu na Europa, irrompendo também na Dos séculos XVI a XVIII, a malária se manifestou de modo endêmico, e na América. Mas em nenhuma parte com a mesma e com epidêmico, em largas faixas da Europa. A primeira virulência das epidemias espanholas e italianas do século anterior. pandemia européia conhecida se refere aos anos 1557 e 1558. A peste bubônica continuou a arder ao longo da Europa durante o Durante o século XVII, Inglaterra, Espanha, Itália, França, Países século XVI. Com o avanço do século, contudo, parece ter-se espalhado, e Baixos, Alemanha e Hungria sofreram importantes infecções. De acordo atingido cidades antes poupadas. Também a letalidade se Mas só com G. B. Cavallari, a malária matou, na Itália, em 1602, não menos de no século XVII a doença recrudesceu, com a maior virulência desde a quarenta mil pessoas. Durante a segunda metade do século XVII, em Morte Negra.</p><p>90 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA MERCANTILISMO, O ABSOLUTISMO E A SAÚDE DO POVO 91 Sob os Tudor e os Stuart, a peste visitou a Inglaterra a intervalos constituições, atmosféricos, ao longo das estações e durante vários anos, atingindo o auge durante a grande epidemia de 1665. Tam- entre 1570 e 1579. Anotou, por exemplo, ter sido úmida- a primavera de bém o continente sofreu de modo intenso; a epidemia de 1628 e 1571, quando muitas pessoas tiveram resfriados, pleurisia e dor de gar- 1629 dizimou quase a metade da população de Lião. Movendo-se para o ganta. norte, ao longo do vale do Saona, a peste invadiu a zona de Dijon; em Sydenham (1624-1689), o grande clínico inglês, aprofundou 1636 aconteceu um surto assustador, que quase despovoou a região. essa maneira de ver. Em sua visão, as doenças febris agudas caíam em Entre 1629 e 1631 a Itália passou por uma experiência similar; segundo dois grupos principais: as desordens epidêmicas produzidas por mu- Corradi, entre 1630 e 1631 a peste causou um milhão de mortes só no danças atmosféricas e as doenças intercorrentes dependentes da norte. Milão, em 1630, perdeu oitenta e seis mil pessoas e relatam-se não suscetibilidade do corpo. Peste, varíola e disenteria pertenciam ao pri- menos de quinhentas mil mortes na República de Veneza. Ao fim da meiro grupo; escarlatina, amigdalite, pleurisia e reumatismo, ao segundo. Guerra dos Trinta Anos, a peste se espalhou pela Alemanha e pelos As doenças intercorrentes agudas podiam aparecer independentemente Países Baixos. De 1654 a 1656 os povos da Europa Oriental sofreram seu do estado atmosférico, mas as desordens epidêmicas também as influen- impacto. Ao fim do século XVII, porém, a intensidade dos surtos amai- ciavam. Sydenham sustentava ser uma feição proeminente de um distúr- nou, e embora a peste bubônica continuasse, no século XVIII, a afligir'a bio epidêmico a assim chamada "febre estacionária", capaz de enxertar- Europa, não representava mais problema opressivo dos séculos prece- se sobre doenças intercorrentes. Existiria, assim, uma marca característica dentes. em todas as enfermidades de uma determinada constituição atmosférica. Ao estado da atmosfera e às mudanças hipotéticas em que se produziam CONTÁGIO OU CONSTITUIÇÃO EPIDÊMICA? Os médicos tinham doenças, Sydenham chamou de "constituição epidêmica". muitas oportunidades de'estudar e observar doenças pestilenciais. Acu- Os distúrbios epidêmicos aumentavam em gravidade e violência en- mulou-se, assim, muito conhecimento, origem de considerável especula- quanto a constituição epidêmica crescia e levava sua força ao máximo, e ção sobre a gênese das epidemias e de várias doenças febris agudas. se atenuavam à proporção que os elementos atmosféricos cediam lugar a Esforços para explicar esses fenômenos levaram ao desenvolvimento de uma nova constituição. Esta prevaleceria por um certo período e a ela conceitos conflitantes, influentes no pensamento e na prática da Saúde associar-se-iam outras doenças epidêmicas. Sydenham não tinha certeza Pública até nossos dias. Um, a constituição epidêmica, outro, o contágio. quanto à natureza da mudança atmosférica, mas a atribuía a um miasma Nenhum inteiramente novo, pois cada um se originava, ao menos em que se elevava da terra. E chegava a pensar em uma origem astrológica parte, de pontos de vista anteriores. das epidemias. A idéia de serem as epidemias causadas por uma constelação de con- A influência da concepção atmosférico-miasmática perduraria muito dições climáticas e circunstâncias locais, presente nos escritos hipocráti- longamente, e esse conceito desempenharia um importante papel no cos, é um dos princípios da Epidemiologia medieval. Hipócrates distin- avanço da Saúde Pública no século XIX. Edwin Chadwick, como o guiu as variações meteorológicas e caráter das estações como os elemen- veremos, aderiu à teoria miasmática das febres epidêmicas. E, embora tos determinantes da ascensão e do declínio das doenças epidêmicas, e não estivesse certa, essa idéia forneceu um terreno para a ação sanitária. das variações em sua incidência sazonal e anual. Esse conceito de consti- Assim vemos que, no curso da História, muitas vezes as coisas não são tuição epidêmica um estado da atmosfera produtor de certas doenças completamente claras ou completamente escuras, e idéias erradas podem capazes de se espalharem enquanto persistir a constituição particular ser usadas de modo produtivo. se desenvolveu mais durante os séculos XVI e XVII. Coube a Guillaume Ao mesmo tempo, porém, outros médicos, e leigos, viam no contágio o de Baillou (1538-1616), médico francês, autor da primeira descrição clíni- principal fator responsável pelo aumento e pela difusão da doença epi- ca da coqueluche e introdutor da noção de reumatismo, ser o primeiro dêmica. advogado eminente dessa idéia. No livro Epidemiorum et Ephemeridum Em 1546, Girolamo Fracastoro (1478-1533), no tratado De Contagione, (Sobre epidemias e efemérides), publicado em 1640, em Contagiosis Morbis et Eorum Curatione (Sobre contágio, doenças contagio- Paris, Baillou tomou Hipócrates como modelo e discutiu os estados, ou sas e suas curas), apresentou uma teoria sistematizada do contágio. Esse</p><p>MERCANTILISMO, ABSOLUTISMO E A SAÚDE DO POVO 93 92 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA LEEUWENHOEK E SEUS "PEQUENOS ANIMAIS". Embora Fracastoro livro representa um dos marcos na evolução de uma teoria científica da tenha elucidado o mecanismo do contágio, as sementes da doença perma- doença comunicável. A obra de Fracastoro se sustenta em um estudo neceram envoltas em mistério. E até o século XVII não se levou em vasto, e prático, da peste, do tifo, da sífilis e de outras doenças epidê- conta, seriamente, a idéia de que diminutos organismos vivos pudessem micas. Seu tratado compreende três livros: no primeiro, expõe sua teoria ser a causa do contágio. A verdade só se insinuou, e muito lentamente, do contágio; no segundo, discute várias doenças contagiosas; no terceiro, quando microscópio começou a revelar suas maravilhas. Com a evolu- trata de suas curas. ção das lentes de aumento simples, e a aparição do microscópio composto, Fracastoro teve a primazia de apresentar, com clareza, uma teoria da no século XVI, pôde-se investigar a natureza das diminutas seminaria de infecção, no sentido moderno do termo. E apreendeu o fato de ser a Fracastoro. infecção a e não a causa. Apoiando-se na observação objeti- Mesmo quando se aprendeu que diminutas formas de vida, pequenas va, e em um raciocínio sagaz, ele concluiu serem as doenças epidêmicas demais para serem vistas a olho nu, pululavam na natureza no ar, na causadas por diminutos agentes infecciosos, que são transmissíveis e se água e no solo - não se consumou a ligação entre essas minúsculas reproduzem por si mesmos. Essas sementes, ou seminaria, são específicas criaturas e a causação da doença. O primeiro a observar bactérias e outros para doenças individuais; determinadas sementes geram determinadas organismos microscópicos foi Antony van Leeuwenhoek doenças. A doença se instalava quando as sementes alteravam os humores negociante de linho de Delft. Na famosa carta de 9 de outubro de 1676, e princípios vitais do corpo. ele comunicou sua descoberta à Real Sociedade de Londres. Leeuwe- É difícil precisar como Fracastoro concebia as seminaria, mas é im- nhoek descreveu as formas hoje conhecidas como cocos, bacilos e espiri- possível igualá-las aos micróbios vivos, no sentido moderno. Seremos los, mas, aparentemente, não ocorreu uma possível conexão entre mais fiéis a seu pensamento se considerarmos suas sementes de doença seus "pequenos animais" e as doenças. Como ele os encontrou em meios como substâncias químicas, ou fermentos. Como as sementes pudessem inofensivos tais como água de chuva, solo e excreções humanas sadias variar em sua habilidade de invadir o corpo, ou de persistir no ambiente, isso não chega a surpreender. essas variações ajudariam a explicar o caráter cíclico de certas doenças. Se havia fascínio em observar essas pequenas criaturas, era infinita- Fracastoro, por fim, reconheceu três modos de contágio: por contato mente mais excitante perguntar de onde vinham e como viviam. Muitos direto de pessoa a pessoa; por agentes intermediários, como os fômites; e criam em geração espontânea e outros, entre os quais Leeuwenhoek, à distância, através do ar, por exemplo. Ele postulava que, sob condições sustentavam sua origem em germes preexistentes. Em torno dessa ques- incomuns, a atmosfera geral se infecta e produz pandemias. Conjunções tão, e dos problemas da fermentação e da putrefação, evoluiu uma notá- atmosféricas e astrológicas anormais favorecem a infecção; como muitos vel controvérsia. de seus predecessores e Fracastoro cria em astrologia. Encontravam-se organismos diminutos em substâncias de decompo- Algumas das idéias de Fracastoro não eram nem novas nem originais. sição fácil - em leite azedo, carne podre, caldo de carne estragado em Outros, entre os quais Varro, Columela e Paracelso, haviam aventado as que, em suma, ocorressem deterioração ou fermentação. Outrossim, quan- doutrinas de um contágio animado e de sementes específicas de doenças. do se punha matéria orgânica que se estragava facilmente em um lugar Fracastoro tampouco descobriu, ou previu, a existência de bactérias. Sua quente, por curto tempo, surgiam enxames de organismos onde antes não façanha, porém, se revelou tão ou mais significativa. Raciocinando de existia nenhum. Parecia razoável supor, portanto, a geração dos microor- modo lógico, fundando-se em fatos, e, quando carecia de observações, ganismos a partir da matéria inanimada. Seguindo essa linha de pensa- valendo-se de analogias, ele conformou as idéias difusas de seus prede- mento, também parecia lógico considerar os organismos microscópicos cessores e Fracastoro chegou à concepção da natureza produtos, ao invés de causas das doenças geradas nas febres pútridas. particulada do elemento contagioso e delineou um relato, claro, e, em Assim, a crença na geração espontânea representou um obstáculo à acei- essência, acurado, sobre a maneira de agir das sementes de doença. tação da teoria dos germes. Tentativas de entender a geração espontânea Assim, criou uma teoria contagionista, rival, até finais do século XIX, da e a natureza da fermentação acabariam por levar ao entendimento do doutrina problema da doença comunicável. Mas apenas no século XIX.</p><p>94 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA MERCANTILISMO, ABSOLUTISMO E A SAÚDE DO POVO 95 Durante esse período, contudo, aumentou lentamente o número de mos considerá-las partes de um esquema de política e administração cujo observadores que atribuíam a essas criaturas microscópicas a causa das fim supremo estava em pôr a vida social e econômica a serviço do Estado. doenças contagiosas. Como o sabemos, a teoria de que organismos vivos Esse sistema veio a ser conhecido como mercantilismo, ou, em sua forma pudessem ser os agentes da doença comunicável não representava novi- como cameralismo. dade. Em 1557, Girolamo Cardano43 sugeriu serem as sementes das Do ponto de vista político, tem-se descrito mercantilismo como a doenças animais minúsculos, capazes de se reproduzir; outros cientistas política do poder. A idéia do mercantilismo, porém, não se exaure nessa exprimiram visões Mas só em 1658, Athanasius um descrição de seu conteúdo. O mercantilismo significou muito mais do que pela primeira vez reivindicou a observação de diminutos organis- isso: era também uma concepção de sociedade. Olhava-se bem-estar da mos vivos como a causa da peste. E, a despeito do seu caráter incipiente e sociedade como idêntico ao bem-estar do Estado. Como se considerava contraditório, seu trabalho atraiu atenções em toda a Europa e micros- que o poder fosse interesse supremo do Estado, se justificavam a copistas entusiasmados começaram a caçar os germes das doenças. Entu- maioria dos elementos da política mercantilista como fortalecimento do siasmo, porém, não bastava para compensar as deficiências técnicas e poder do império; o fulcro da política social, portanto, era a raison teóricas com as quais esses investigadores trabalhavam. Em Para os políticos, em todos os países, em monarquias ou cidades- cia, seus relatos, confusos e contraditórios, rapidamente levaram a uma Estado, havia uma questão importante: que rumo deve o governo seguir reação contra a teoria dos germes. para aumentar poder e a riqueza nacionais? Segundo o entendiam os Durante o século XVIII não faltaram defensores dessa teoria, entre os soberanos e seus conselheiros, antes de tudo fazia-se necessária uma quais o inglês Benjamin Marten (morto em 1720) e o austríaco M. A. von população grande; em segundo lugar, cuidar dessa população, no sentido Plenciz (1705-1786). Mas não se chegou a evidências suficientes para material; e em terceiro, controlá-la, de maneira a se poder utilizá-la confirmar suas opiniões. E só em 1830 e 1840 a teoria dos germes veio a segundo os interesses da política pública. E embora a aplicação da doutri- reviver, apoiada em novos achados. na mercantilista recebesse variadas, em diferentes tempos e lugares, se reconhecia, em qualquer país, para se poder usar uma popula- FUNDAÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO DA SAÚDE Em seus ção, a exigência de alguma atenção aos problemas de saúde. estudos, o historiador da Saúde Pública deve levar em conta dois compo- Com o crescimento da indústria, na Inglaterra do século XVII, come- nentes. Um, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia médicas, pois o çou-se a considerar a produção como central na atividade entendimento da natureza e da causa da doença fornece o solo para a ação Assim, o trabalho um dos mais importantes fatores de produção e o controle preventivos. Mas, como a aplicação efetiva desse conheci- passou a ser elemento essencial na geração da riqueza nacional; qualquer mento depende de uma variedade de elementos não científicos em perda na produtividade de trabalho, decorrente de enfermidade ou mor- essência, de fatores políticos, econômicos e sociais esse é outra grande te, tornava-se um problema econômico. Além do mais, sendo a população linha no tecido da Saúde Pública. um fator de produção, saber número e "valor do povo", em particular Do século XVI ao XVII, duas tendências fundamentais moldaram a os dos grupos ocupacionais mais produtivos, tornava-se vital. O reconhe- atividade de Saúde Pública. De um lado, a administração permaneceu cimento dessa necessidade, na Inglaterra, no século XVII, levou às pri- centralizada em uma unidade local, em particular a cidade, conservando- meiras tentativas de usar métodos estatísticos nesse campo. E a aplica- se, assim, o caráter de freguesia do período medieval. Do outro lado, ção de métodos numéricos à análise de problemas de saúde veio a ren- como tendência compensatória, veio a emergência do grande o der frutos extraordinários para o estudo e desenvolvimento da Saúde Estado Moderno, cujos contornos lentamente se elevaram acima do Pública. tempestuoso mar da política como uma baleia vinda à superfície. Com passar do tempo, cada vez mais o Estado caminhou em direção a um ARITMÉTICA POLÍTICA: OS REGISTROS DO ESTADO. De início, os governo nacional centralizado, com um conjunto de doutrinas políticas e que se incumbiram de usar a abordagem estatística se interessavam, econômicas que influenciaram a administração da Saúde Pública. Para sobretudo, pelo que se podia chamar de registros do Estado. Fizeram-se apreciar, com justiça, a relevância dessas doutrinas para a prática, deve- esforços para apurar os dados quantitativos principais da vida nacional, na</p><p>96 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA ABSOLUTISMO E A SAÚDE DO POVO 97 crença de que se pudesse utilizar esse conhecimento para aumentar o tica política, "arte de raciocinar com cálculos sobre coisas relacionadas poder e prestígio do Estado. a esse novo campo de com o governo", prosseguiu durante o século XVII e princípios do XVIII, trabalho se nomeou "aritmética Essa evolução teve anteceden- em especial com Gregory King, Charles Davenant, Edmund Halley, John tes. A importância do conhecimento estatístico relativo às cidades tinha Arbuthnot, Sebastien de Vauban, e Johann Peter Süssmilch. A população sido claramente reconhecida na Renascença italiana, em particular em continuou a ser o objeto central da política aritmética, e houve esforços Florença e Veneza (ver págs. 69, 71), mas esse conhecimento não tinha engenhosos para se calcular o tamanho e determinar o estado de diversas evoluído como método para análise de problemas de saúde. populações. O interesse se voltou para vários elementos, incluindo-se as A paternidade da aritmética política coube a William Petty (1623- doenças, capazes de causar aumento ou declínio no número de pessoas. 1687), médico, economista e cientista, que inventou o termo e era profun- Esses esforços, contudo, levaram a pouco progresso substancial. Não damente sensível à importância de uma população sadia como fator de obstante, esse período produziu algumas contribuições, práticas e teóri- opulência e poder nacionais. Repetidamente, Petty insistiu em que se cas, plenas de significação futura. colhessem dados sobre população, educação, doenças, renda e muitos No lado prático, isso é verdade quanto à tábua de vida, ou de mortalida- outros tópicos. Dominado pela idéia de, analisando esses dados, lançar luz de. O esforço incipiente de Graunt repercutiu em outros países e, uma sobre matérias de interesse e de política nacionais, sempre que geração a partir de sua morte, homens de negócios já tentavam, através do ele se valeu de cálculos matemáticos. uso da tábua da vida, pôr seguro de vida sobre um terreno firme. Em Embora Petty tivesse reconhecido a importância de um estudo quanti- 1669, sete anos após a publicação do livro de Graunt, Christian Huygens49 tativo de problemas de saúde, e sugerido muitos temas de investigação, a trabalhava com o problema de determinar, matematicamente, a provável primeira contribuição sólida nesse campo veio de seu amigo John Graunt expectativa da vida humana, em qualquer idade. Mais valiosa, porém, se Seu clássico (Observações Naturais e Políticas por Meio dos mostrou a tábua de vida publicada em 1693 por Edmund Halley50, de Boletins de apareceu em 1662. Usando número das mor- aplicação direta no cálculo de anuidades de vida. Vale a pena mencionar o tes, em Londres, durante último terço do século, Graunt os interpretou, uso, pelas primeiras companhias de seguros de vida a se estabelecerem por raciocínio indutivo, e demonstrou a regularidade de certos fenômenos em Londres no século XVIII da tábua de Halley. A administração sociais e vitais, assim iluminando uma série de fatos. Ele notou, por de qualquer plano de seguro de vida implica conhecer as taxas de morta- exemplo, que as mortes devidas a vários distúrbios físicos e emocionais, e lidade e a expectativa de vida. No curso do século XVIII, fizeram-se até a certos incidentes, "guardam, no número total de enterros, uma algumas melhorias na construção dessas tábuas e, em as proporção constante". Graunt também indicou o excesso de nascimentos operações de seguro se assentaram sobre linhas atuariais mais confiáveis. de homens em relação a mulheres, e a eventual igualdade numérica, Estimularam essa evolução, também, os interessados em ensinar os po- aproximada, dos sexos; a proporção de nascimentos e mortes na cidade e bres, por meio de esquemas voluntários de seguro de doenças as no campo, e a da taxa de mortes na cidade sobre o campo; e as chamadas "sociedades de mútuo socorro" a cuidarem de si mesmos. variações da taxa de mortes segundo as estações. E, por fim, foi o primeiro Por fim, depois da metade do século XVIII, a tábua da vida encontrou a tentar construir uma tábua de vida. algum uso em testes da eficácia da inoculação contra a varíola. A obra de Graunt é mais significativa, ainda, por conter os princípios do No lado teórico, surgiu a primeira sugestão de se aplicar o cálculo de método estatístico de análise. Ele reconheceu ser a acurácia das deduções probabilidade ao estudo da aritmética política. Em 1713, seguindo a obra matemáticas inevitavelmente limitada pela adequação e precisão das pioneira de e Huygens, apareceu a Ars Conjectandi, a próprias observações em si mesmas. Os defeitos do material escasso e importante obra póstuma de Jakob na qual ele desenvolveu a imperfeito com que trabalhou levaram Graunt a testar a confiabilidade de teoria matemática da probabilidade e se pôs o problema de aplicá-la a seus E assim a poder mostrar que mesmo dados imperfeitos, se "condições civis, morais e econômicas". Na maior parte dos escritos sobre cuidadosa, lógica e honestamente interpretados, podem resultar em in- cálculos de probabilidade, contudo, não se prestava quase nenhuma formação útil. atenção às reveladas pelo material estatístico existente. Não Apoiando-se no promissor início de Graunt e Petty, o cultivo da aritmé- obstante, já no início do século XVIII se haviam reconhecido as possibili-</p><p>MERCANTILISMO, ABSOLUTISMO E A SAÚDE DO POVO 99 98 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA calcular as perdas econômicas devidas às doenças. Da mesma forma, dades inerentes à teoria matemática da probabilidade em relação aos tendo em mente, em particular, as mulheres grávidas e solteiras, ele fenômenos vitais, possibilidades desenvolvidas no século XIX. advogou a fundação de maternidades. Ele estava convencido, também, da conveniência de certos grupos de trabalhadores merecerem uma aten- UMA POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE. A aritmética política era ape- ção direta do Estado; coerentes com esse ponto de vista são suas suges- nas um meio para um fim, a saber, a prosperidade e o poder nacionais. A tões de se realizarem estudos da morbidade e da mortalidade ocupacio- população figurava como um interesse central dos aritméticos políticos nais. Petty, por fim, compreendeu a necessidade de um número adequa- porque sua importância política e econômica representava um axioma da do de pessoal médico. Em ele propôs que, usando-se os arte de governar. Qualquer dano a esse recurso causava muita preocupa- métodos de Graunt, se analisassem as necessidades de saúde e se calcu- ção. Olhavam-se os problemas de saúde e doença, principalmente, com o lasse o número de clínicos, cirurgiões, e outros, suficiente para fim de se manter e aumentar uma população sadia, em termos, portanto, Petty não estava sozinho na tentativa de lidar com problemas de saúde de seu significado para o fortalecimento político e econômico do Estado. pública em uma escala nacional, ou no esforço de analisá-los quantitativa- Legisladores, estadistas, administradores, médicos, homens de negócio, mente. Esses interesses se revelavam, também, entre seus compreenderan que não bastava simplesmente reconhecer a fertilidade neos e sucessores. Três merecem menção: culto reformador educacio- natural e a população como condições principais da prosperidade nacio- nal Samuel Hartlib, o clínico Nehemiah Grew (1641-1712) e o negociante nal. Aceitar essa premissa implicava aceitar também a responsabilidade de tecidos e filantropista John Bellers (1654-1725), um quacre. Realmen- de remover impedimentos à plena expansão desses recursos. Criar condi- te notável é o plano para um serviço nacional de saúde lançado por ções e oportunidades para promover a saúde, prevenir a doença e oferecer Bellers, em 1714, em seu Ensaio para 0 Melhoramento da A cuidados médicos aos necessitados, constituía um aspecto maior dessa substância de seus argumentos e de suas propostas se pode assim sinteti- responsabilidade. Essa visão implicava um conceito de política nacional zar: enfermidade e morte prematuras significam desperdício de recursos de saúde, aceito, e levado adiante, tanto na Inglaterra quanto no conti- humanos; a saúde das pessoas é de extrema importância para a comunida- nente. de, e não pode ser largada à incerteza da iniciativa individual, inadequada Na Inglaterra, embora a idéia de uma política nacional de saúde ao para lidar com esse problema (como o indica a alta incidência de doenças longo de linhas teóricas sistematizadas não se desenvolvesse, acontece- curáveis). Por esses motivos, urge estabelecer hospitais e laboratórios ram ousadas e penetrantes análises de problemas de saúde e lançaram-se centros de treinamento e pesquisa criar um instituto de saúde nacio- propostas de uma ação nacional. William Petty, o versátil pai da aritmética nal e oferecer assistência médica aos doentes pobres. política, ao perceber que controle das doenças comunicáveis, e a salva- A despeito de suas grandes potencialidades, as idéias desses pensado- ção da vida das crianças, concorreriam muito para impedir a diminuição res não produziram resultados imediatamente tangíveis. Suas propostas da população, contribuiu de modo notável. Petty, enxergou, ademais, a não levaram a ações concretas porque corriam em sentido contrário ao de necessidade, para se atingir esse fim, de elevar o conhecimento médico ao importantes tendências políticas e administrativas. Sua efetiva execução mais alto grau possível. Em 1676, em uma conferência, em Dublin, ele exigiria a existência de uma administração local desenvolvida, com con- salientou ser dever do Estado promover o progresso médico. Quase trinta trole centralizado. Mas precisamente essa rede de administração, depois anos antes, ele tinha reconhecido a importância crucial do hospital no da Revolução Inglesa do século tinha desaparecido. treinamento dos médicos e no estímulo à pesquisa médica. Além de Funcionários locais eram, em teoria, representantes do governo central recomendações gerais, Petty ofereceu propostas específicas; assim, em e, sob os primeiros Stuart, se tinha desenvolvido um aparelho administra- 1687, ele propôs a criação de um Conselho de Saúde, para Londres, que tivo centralizado. A Guerra Civil, no entanto, rompeu a ligação entre as se ocuparia de assuntos de saúde pública. No mesmo ano, sugeriu a autoridades locais e a Coroa e nem a União, nem a monarquia restaurada, criação de um hospital de mil leitos, também em Londres. Recomendou, conseguiram restabelecer velho sistema. De fato, a feição mais notável ainda, o estabelecimento de hospitais de isolamento, para receber doen- da administração inglesa, do meio do século XVII até o ato de emenda da tes de peste. Com o fito de apoiar a utilidade dessa recomendação, e a de Lei dos Pobres, em 1834, é seu caráter intensamente local. Essa tendên- todas as medidas de combate às devastações da peste, ele se incumbiu-de</p><p>100 UMA HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA MERCANTILISMO, ABSOLUTISMO E A SAÚDE DO POVO 101 cia teve importantes para o desenvolvimento da Saúde Pública, pois não existiam mecanismos para atender às necessidades da Durante os séculos XVII e XVIII as obrigações do Estado quanto à comunidade local e, ao mesmo tempo, levar em consideração país como saúde receberam ainda mais atenção. Como na Inglaterra, vários adminis- um Ao longo do século XVIII, continuou-se a administrar os proble- tradores, médicos e filósofos apresentaram propostas relativas à admi- mas de saúde pública, na Grä-Bretanha, no âmbito das freguesias. E só no nistração da Saúde Pública. Assim, em suas atividades variadas, em inú- XIX, com o advento da nova civilização, industrial e urbana, o meras ocasiões o grande filósofo, cientista e político Gottfried Wilhelm problema de organizar uma comunidade maior para proteger sua saúde se von Leibniz (1646-1716) se referiu à relação entre problemas de saúde e tornou matéria de interesse nacional. atuação do governo. Um dos primeiros a valorizar a investigação Ainda por essa época, a posição mercantilista quanto à saúde também tica na década de 1680, Leibniz publicou vários ensaios salientando a se desenvolveu no continente, em particular nos estados germânicos; necessidade de estatísticas adequadas da população e da mortalidade. nesses estados, no entanto, floresceu como um elemento da teoria da Pela mesma época, sugeriu também a criação de um Conselho de Saúde, monarquia absoluta. Concebia-se a relação entre o soberano e seus súdi- para cuidar da saúde pública. Também Conrad Berthold Behrens (1660- tos como a de um pai e seus filhos. Em fidelidade a essa teoria paternalis- 1736), um médico de Hildesheim, defendeu, ao final do século XVII, a ta, se reconhecia como um dever do Estado absolutista a proteção da. supervisão governamental da saúde pública. Seguindo a premissa de saúde do povo. O povo, porém, não passava de ser o objeto do cuidado estarem as autoridades governamentais obrigadas, pela lei da natureza, a governamental; em matéria de saúde, e em outras esferas de atividade, cuidar da saúde de seus súditos, Behrens argüiu que se assentassem esses soberano sabia o melhor para seu povo, e, por meio de leis e medidas cuidados sobre duas principais formas de ação; a prevenção das doenças, e administrativas, lhe ordenava o que devia, ou não, fazer. Nesse contexto, seu tratamento; na prevenção, mereceriam atenção a constituição do ar e a idéia de "polícia" é um conceito-chave para o entendimento de proble- a nutrição. Behrens também se ocupou das doenças infecciosas e de mas de saúde e doença. outras matérias de interesse da saúde pública. Esses esforços, e numero- Os escritores alemães já usavam, no século XVII, termo "polícia" SOS outros, culminaram, ao final do século XVIII, com a monumental obra Policey, derivado da palavra grega politeia - a constituição ou administra- de Johann Peter Frank sobre polícia médica. ção de um A teoria e a prática da administração pública vieram a A despeito dessa evolução no plano teórico, nem a Inglaterra, nem ser conhecidas como a ciência da polícia, e o ramo do qualquer dos países continentais, realmente criou uma política nacional campo da administração da Saúde Pública recebeu a designação de Medi- de saúde. Decretaram-se poucas medidas práticas de Saúde Pública no zinalpolizei, ou Polícia Médica. plano nacional. Merecem menção as várias ordens sobre a peste, editadas Em 1655, Veit Ludwig Seckendorff (1626-1692), um contemporâneo pelo governo inglês durante os séculos XVI e XVII. Na Prússia, em 1685, de William Petty, que serviu em vários postos administrativos nas cortes agiu-se de outra maneira, possivelmente como resultado da proposta, de ducais de Gotha Sachsen-Zeits, sistematizou, de modo precoce mas Leibniz, de supervisão médica da saúde pública, e se estabeleceu um fecundo, a maneira mercantilista alemã de ver a Saúde Pública. Segundo Collegium Sanitatis, um conselho de saúde. Vale a pena anotar, ainda, que, Seckendorff, a finalidade própria do governo seria a de estabelecer orde- em 1688, o Grande Eleitor incumbiu-se de determinar o número de nações capazes de assegurar o bem-estar da terra e do povo; como a casamentos, nascimentos e mortes nas cidades e aldeias prussianas. Na prosperidade e o bem-estar se manifestam através do crescimento da França, a prática de ajuntar dados estatísticos estabeleceu-a Colbert, mas população, é necessário tomar medidas para resguardar a saúde do povo, só ao fim do século XVII se empreendeu um levantamento de toda a para.o número das pessoas aumentar. Um programa de saúde do governo população francesa. No geral, os governos careciam do saber e da máqui- deve manter e supervisionar as parteiras, cuidar dos mé- na administrativa capazes de levar adiante qualquer política nacional de dicos e cirurgiões, oferecer proteção contra a peste e outras doenças saúde. Em continuou-se a enfrentar os problemas de saú- contagiosas e contra o uso excessivo de tabaco e de bebidas alcoólicas, de pública a partir de comunidades locais. Essa situação persistiu pelo inspecionar os alimentos e a água, fazer limpar as cidades e garantir sua século XIX adentro. drenagem, manter os hospitais e dar assistência aos pobres. A CIDADE E A SAÚDE PÚBLICA. Quando examinamos os esforços de</p>