Prévia do material em texto
<p>O último Papa: Uma conspiração diabólica para destruir o Vaticano</p><p>Malachi Martin</p><p>1ª edição — outubro de 2023 — cedet</p><p>Título original: Windswept House: A Vatican Novel.</p><p>Gra�a atualizada segundo o Acordo Ortográ�co da Língua Portuguesa de 1990,</p><p>adotado no Brasil em 2009</p><p>Os direitos desta edição pertencem ao cedet — Centro de Desenvolvimento</p><p>Pro�ssional e Tecnológico</p><p>Av. Comendador Aladino Selmi, 4630— Condomínio gr2, galpão 8</p><p>cep: 13069-096 — Vila San Martin, Campinas (sp)</p><p>Telefone: (19) 3249-0580</p><p>E-mail: livros@cedet.com.br</p><p>CEDET LLC is licensee for publishing and sale of the electronic edition of this book</p><p>CEDET LLC</p><p>1808 REGAL RIVER CIR - OCOEE - FLORIDA - 34761</p><p>Phone Number: (407) 745-1558</p><p>e-mail: cedetusa@cedet.com.br</p><p>EDITORES</p><p>Ulisses Trevisan Palhavan</p><p>TRADUÇÃO</p><p>Igor Barbosa</p><p>REVISÂO</p><p>Samuel Trindade</p><p>PREPARAÇÃO DE TEXTO</p><p>Daniel Araújo</p><p>DIAGRAMAÇÃO</p><p>Virgínia Morais</p><p>CAPA</p><p>Lucas Gabriel Goes de Macêdo</p><p>LEITURA DE PROVA</p><p>Andressa Gotierra da Silva</p><p>Mariana Souto Figueiredo</p><p>Natalia R. Colombo</p><p>CONSELHO EDITORIAL</p><p>Adelice Godoy</p><p>César Kyn d’Ávila</p><p>Silvio Grimaldo de Camargo</p><p>FICHA CATALOGRÁFICA</p><p>Martin, Malachi (1921–1999).</p><p>O último Papa: Uma conspiração diabólica para destruir o Vaticano/ Malachi</p><p>Martin;</p><p>tradução de Igor Barbosa — 1ª ed. — Campinas, sp: Editora Sétimo Selo, 2023.</p><p>Título original: Windswept House. A Vatican Novel.</p><p>isbn: 978-65-88732-77-9</p><p>1. Literatura americana — 810</p><p>2. Romance — 813</p><p>cdd — 810/ 813</p><p>ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO</p><p>1. Literatura brasileira — B869</p><p>2. Romances — 869.3</p><p>Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta</p><p>edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia,</p><p>gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor e</p><p>do detentor dos direitos autorais.</p><p>Sumário</p><p>A HISTÓRIA COMO PRÓLOGO:</p><p>SINAIS DO FIM</p><p>PARTE I | ENTARDECER PAPAL</p><p>O� ������ ���� ��� ������…</p><p>A����� �� �����</p><p>A ���� ������� ����� ������</p><p>…�� ����� � ��������</p><p>PARTE II | CREPÚSCULO PAPAL</p><p>L������� ������</p><p>R��������� ����������� � ��������� �� ��������</p><p>PARTE III | NOITE PAPAL</p><p>O P�������� �� R�������</p><p>Q�� ������</p><p>NOTAS DE RODAPÉ</p><p>Ao Papa São Pio �. Em honra de Maria, Rainha do</p><p>Sacratíssimo Rosário.</p><p>O</p><p>A História como prólogo: sinais do</p><p>�m</p><p>1957</p><p>s diplomatas, forjados por tempos difíceis e pelas mais duras</p><p>trilhas das �nanças, do comércio e das rivalidades internacionais,</p><p>não são muito dados a presságios. Ainda assim, suas perspectivas</p><p>eram tão promissoras que os seis ministros das relações exteriores</p><p>reunidos em Roma, no dia 25 de março de 1957, sen tiam que tudo</p><p>ao seu redor — a sólida centralidade da principal cidade da Europa,</p><p>os ventos puri�cadores, o céu aberto, o clima do dia em seu sorriso</p><p>benigno — era o próprio manto da bênção da Fortuna que os cobria</p><p>enquanto lançavam a pedra fundamental de um novo arranjo para as</p><p>nações.</p><p>Como sócios na criação de uma nova Europa, que varreria o</p><p>violento nacionalismo que por tantas vezes havia dividido este antigo</p><p>delta, esses seis homens e seus governos comungavam na fé de que</p><p>seus países estavam prestes a se abrir para um mais amplo horizonte</p><p>econômico e um céu político mais elevado do que jamais havia sido</p><p>contemplado. Eles estavam prestes a assinar os tratados de Roma.</p><p>Estavam prestes a criar a Comunidade Econômica Europeia.</p><p>Até onde chegava a memória recente, nada além de morte e</p><p>destruição havia prosperado em suas capitais. Passara apenas um ano</p><p>desde que os soviéticos haviam a�rmado sua determinação</p><p>expansionista com o sangue derramado na tentativa de levante na</p><p>Hungria, e o exército soviético poderia invadir a Europa a qualquer</p><p>momento. Ninguém esperava que os ��� e seu Plano Marshall</p><p>carregassem para sempre o fardo da construção da nova Europa.</p><p>Nenhum governo europeu queria ver-se atrelado à rivalidade entre os</p><p>��� e a ����, que, nas próximas décadas, só poderia crescer.</p><p>Como se já estivessem acostumados a agir unidos diante dessa</p><p>realidade, todos os seis ministros assinaram como fundadores da ���:</p><p>os três representantes das nações do Benelux, porque Bélgica,</p><p>Holanda e Luxemburgo tinham sido o próprio cadinho em que fora</p><p>tentada a ideia de uma nova Europa e se havia comprovado que era</p><p>certa, ou ao menos bastante certa; o ministro que representava a</p><p>França, porque o seu país seria o coração pulsante da nova Europa,</p><p>como sempre fora da velha Europa; o da Itália, porque o seu país era</p><p>a alma viva do continente; e o da Alemanha Ocidental, porque o</p><p>mundo nunca mais deixaria o seu país de lado.</p><p>E assim nasceu a Comunidade Europeia. Brindou-se os visionários</p><p>geo- políticos que tornaram este dia possível: Robert Schuman e Jean</p><p>Monnet da França; Konrad Adenauer da Alemanha Ocidental; Paul-</p><p>Henri Spaak da Bélgica. A congratulação foi geral. Não demoraria</p><p>muito para que Dinamarca, Irlanda e Inglaterra notassem como era</p><p>inteligente a nova empreitada. E, embora pudessem precisar de</p><p>alguma ajuda paciente, Grécia, Portugal e Espanha também</p><p>adeririam. Naturalmente, ainda havia a questão de manter afastados</p><p>os soviéticos, assim como a de encontrar um novo centro de</p><p>gravidade. Mas não restava dúvida: a nascente ��� era a vanguarda</p><p>da nova Europa, que precisava surgir para que a Europa pudesse</p><p>sobreviver.</p><p>Quando todas as assinaturas, rati�cações e brindes terminaram,</p><p>chegou o momento do ritual tipicamente romano e do privilégio dos</p><p>diplomatas: uma audiência com o Papa, já octogenário, no Palácio</p><p>Apostólico da Colina do Vaticano.</p><p>Sentado em seu tradicional trono papal, com todo o cerimonial do</p><p>Vaticano, em uma sala ornamentada, Sua Santidade o Papa Pio ���</p><p>recebeu os seis ministros e suas comitivas com semblante sorridente.</p><p>Suas boas-vindas foram sinceras. Suas observações, breves. Sua</p><p>atitude, a de um antigo proprietário e morador de uma vasta</p><p>propriedade dando algumas dicas a recém-chegados e futuros</p><p>habitantes.</p><p>A Europa, recordou o Santo Padre, teve seus tempos de grandeza,</p><p>quando uma fé comum animava os corações de seus povos. A Europa,</p><p>insistiu ele, poderia recuperar sua grandeza geopolítica, renovar-se e</p><p>brilhar de novo, se conseguisse criar um novo coração. A Europa,</p><p>insinuou, poderia forjar de novo uma fé sublime, comum e vinculante.</p><p>Os ministros estremeceram por dentro. Pio apontara a maior</p><p>di�culdade que a ��� tinha à frente, no dia de seu nascimento. Por</p><p>trás de suas palavras estava a advertência de que nem o socialismo</p><p>democrático, nem a democracia capitalista, nem a perspectiva de uma</p><p>boa vida, nem a “Europa” mística dos humanistas poderiam servir</p><p>como o motor para impulsionar o sonho deles. Em termos práticos, a</p><p>nova Europa carecia de um centro irradiante, de uma força ou</p><p>princípio superior para uni-la e impulsioná-la. A Europa deles carecia</p><p>do que este Papa tinha; carecia do que ele era.</p><p>Feitas as suas observações, o Santo Padre traçou três cruzes no ar,</p><p>dando a tradicional bênção papal. Alguns poucos se ajoelharam para</p><p>recebê-la. Alguns dos que permaneceram de pé curvaram suas</p><p>cabeças. Mas, para eles, havia se tornado impossível associar o Papa</p><p>ao bálsamo curador do Deus que ele a�rmava representar como</p><p>vigário, ou reconhecer aquele bálsamo como o único fator coesivo que</p><p>poderia consertar a alma do mundo. Também não poderiam</p><p>reconhecer que os tratados econômicos e políticos não são a cola que</p><p>une os corações e as mentes da humanidade.</p><p>E, no entanto, não podiam deixar de invejar esse dignitário solitário</p><p>e entronizado, em toda a sua fragilidade. Pois, como posteriormente</p><p>observou o belga Paul-Henri Spaak, ele presidia uma organização</p><p>universal. E era mais do que um representante eleito daquela</p><p>organização: era o detentor de seu poder. Seu centro de gravidade.</p><p>•</p><p>Da janela de seu escritório no terceiro andar do Palácio Apostólico, o</p><p>Santo Padre observava os arquitetos da nova Europa embarcando em</p><p>suas limusines lá embaixo, na praça.</p><p>— O que Sua Santidade acha? A nova Europa deles pode chegar a</p><p>ter força su�ciente para deter Moscou? Pio voltou-se para seu</p><p>companheiro, um jesuíta alemão, amigo</p><p>o Papa tinha direito a todos os documentos da</p><p>Secretaria; mas para Vincennes ele não havia mostrado nenhuma</p><p>curiosidade no assunto. E então, o que o segundo Papa tinha visto?</p><p>Teria obtido todo o dossiê dos papéis do velho Pontí�ce — teria lido</p><p>todos? Ou apenas aquele envelope com a data crucial de 29 de junho</p><p>de 1963, agora escrita à mão na face? Se fosse essa a verdade, como o</p><p>envelope voltara aos documentos do velho Papa? E de qualquer</p><p>maneira, quem recolocara tudo na mesa do cardeal-secretário,</p><p>exatamente como estava antes? Quando alguém poderia ter feito isso</p><p>sem chamar a atenção? Vincennes �xou novamente a data �nal escrita</p><p>no envelope pela mão do segundo Papa. 28 de setembro.</p><p>Abruptamente, ele se levantou da cadeira, atravessou a sala até sua</p><p>mesa, pegou seu diário e folheou as páginas até aquela data. Sim, ele</p><p>tivera a costumeira sessão matinal de planejamento com o Santo</p><p>Padre; mas suas anotações não lhe diziam nada de relevante. Houvera</p><p>uma reunião à tarde com os cardeais superintendentes do Banco do</p><p>Vaticano; nada de interessante lá também. Outra nota chamou sua</p><p>atenção, no entanto. Ele havia participado de um almoço oferecido,</p><p>na Embaixada de Cuba, a seu amigo e colega, o embaixador, que</p><p>estava deixando o cargo. Depois do almoço, ele �cara para uma</p><p>conversa particular.</p><p>O cardeal pegou o interfone e pediu à secretária que veri�casse a</p><p>lista. Quem estava de plantão naquele dia na recepção da Secretaria?</p><p>Ele teve de esperar apenas um momento pela resposta; e quando</p><p>chegou, ele ergueu um par de olhos opacos para a mesa oval. Nesse</p><p>momento, o Padre Aldo Carnesecca tornou-se, para Sua Eminência,</p><p>muito mais do que um representante da classe subalterna do Vaticano.</p><p>No tempo que levou para recolocar o fone no gancho e retornar à</p><p>mesa, uma certa luz fria penetrou na mente do cardeal-secretário. Luz</p><p>sobre o passado; e sobre seu futuro. Seu grande corpo até relaxou um</p><p>pouco enquanto ele encaixava todas as peças. Os dois dossiês papais</p><p>em sua mesa aguardando a triagem. Sua longa ausência de seu</p><p>escritório em 28 de setembro. Carnesecca trabalhando sozinho</p><p>durante a hora da sesta. Vincennes viu tudo. Ele havia sido</p><p>ultrapassado e enganado pela astúcia inocente. Agora, a sua aposta</p><p>estava encerrada. O melhor que podia fazer era certi�car-se de que o</p><p>envelope papal lacrado nunca chegasse às mãos do Papa eslavo.</p><p>— Vamos terminar nosso trabalho! Olhando o rosto pálido do</p><p>estridente Aureatini, e em seguida para o imperturbável Carnesecca, o</p><p>cardeal tinha a mente clara e estava totalmente concentrado. No tom</p><p>que sempre usava com os subordinados, enumerava uma série de</p><p>decisões que encerravam a triagem dos papéis do velho Papa.</p><p>Carnesecca providenciaria o envio dos quatro envelopes particulares</p><p>endereçados aos parentes do Pontí�ce. Aureatini levaria os outros</p><p>papéis ao arquivista do Vaticano, que cuidaria para que juntassem</p><p>poeira em algum recanto devidamente obscuro. O próprio cardeal</p><p>cuidaria da questão do envelope duplamente lacrado.</p><p>Rapidamente, então, Sua Eminência começou a triagem dos</p><p>relativamente poucos papéis que o segundo Papa havia acumulado em</p><p>um reinado tão breve. Certo de que o documento mais signi�cativo</p><p>deixado por aquele Papa já estava diante de si, folheou rapidamente o</p><p>conteúdo do dossiê. Dentro de um quarto de hora, ele os havia</p><p>passado para Aureatini, destinando-os ao arquivista.</p><p>Sozinho em uma daquelas janelas compridas em seu escritório,</p><p>Vincennes observou o Padre Carnesecca deixar a secretaria e sair no</p><p>pátio de São Dâmaso lá embaixo. Acompanhou a marcha daquela</p><p>�gura esquelética por toda a Praça de São Pedro em direção ao Santo</p><p>Ofício, onde aquele padre passava a maior parte de suas horas de</p><p>trabalho. Por uns bons dez minutos contemplou o andar lento, mas</p><p>sempre seguro e decidido de Carnesecca. Se algum homem já mereceu</p><p>um lugar no Campo do Oleiro, ele concluiu, certamente era Aldo</p><p>Carnesecca. Ele nem precisaria fazer uma anotação em seu diário para</p><p>se lembrar.</p><p>Por �m, o cardeal-secretário voltou à sua mesa. Ele ainda tinha de</p><p>lidar com aquele infame envelope duplamente lacrado.</p><p>Não era desconhecido na história papal que, antes da disposição</p><p>�nal dos papéis de um Papa morto, alguém em posição de fazê-lo</p><p>poderia dar uma olhada rápida até mesmo em documentos marcados</p><p>como Personalissimo e Con�denzialissimo. Neste caso, no entanto, as</p><p>inscrições de não um, mas dois papas afastavam o conteúdo de</p><p>quaisquer olhos que não fossem pontifícios. Havia barreiras capazes</p><p>de manter afastado até mesmo Vincennes. E, de qualquer forma, ele</p><p>estava con�ante de que conhecia a substância do assunto.</p><p>No entanto, re�etiu Sua Eminência, era possível interpretar a</p><p>admoestação bíblica “Que os mortos enterrem os mortos” de mais de</p><p>uma maneira. Sem humor ou autopiedade, mas tendo por certo em</p><p>sua mente o seu próprio destino, ergueu o telefone com uma das mãos</p><p>e o envelope com a outra. Quando o Arcebispo Aureatini atendeu,</p><p>ouviu suas instruções �nais sobre a triagem.</p><p>— O senhor esqueceu um item para o arquivista, Excelência. Venha</p><p>buscá-lo. Vou falar com ele pessoalmente. Ele saberá o que fazer.</p><p>A morte prematura de Sua Eminência, o Cardeal Jean-Claude de</p><p>Vincennes, secretário de Estado, ocorreu em um infeliz acidente</p><p>automobilístico perto de sua cidade natal, Mablon, no Sul da França,</p><p>em 19 de março de 1979. Entre as notas que contaram ao mundo essa</p><p>tragédia, certamente a mais seca estava contida no Anuário Pontifício</p><p>de 1980. Naquele gordo e utilitário diretório do pessoal da Igreja do</p><p>Vaticano e outros dados úteis, o nome do cardeal, e nada mais,</p><p>aparecia em ordem alfabética na lista dos príncipes da Igreja</p><p>recentemente falecidos.</p><p>PARTE I | ENTARDECER PAPAL</p><p>N</p><p>Os planos mais bem feitos…</p><p>I</p><p>o Vaticano do início de maio ninguém se surpreendeu com a</p><p>partida do Santo Padre para mais uma visita pastoral ao</p><p>exterior. A�nal, era apenas mais uma das muitas visitas que ele</p><p>�zera até então a cerca de 95 países nos cinco continentes, desde a sua</p><p>eleição em 1978.</p><p>Nesses mais de dez anos, de fato, esse Papa eslavo parecia ter</p><p>transformado o seu ponti�cado em uma longa peregrinação pelo</p><p>mundo. Ele havia sido visto ou ouvido, pessoal ou eletronicamente,</p><p>por mais de três bilhões de pessoas. Sentara-se com literalmente</p><p>dezenas de líderes governantes. Estava muito bem informado acerca</p><p>de seus países e possuía um domínio incomparável de suas línguas.</p><p>Impressionara a todos como um homem sem maiores preconceitos</p><p>contra ninguém. Fora aceito por esses líderes, e por homens e</p><p>mulheres de toda a parte, como um líder também; como um homem</p><p>preocupado com os desamparados, os sem-tetos, os desempregados,</p><p>os destroçados pela guerra. Um homem preocupado com todos os que</p><p>tiveram negado até mesmo o seu direito de viver: os bebês abortados</p><p>ou nascidos apenas para morrer de fome e doenças. Um homem</p><p>preocupado com os milhões que viviam apenas para morrer pela fome</p><p>imposta pelos governos na Somália, Etiópia e Sudão. Um homem</p><p>preocupado com as populações do Afeganistão, Camboja e Kuwait,</p><p>cujos territórios estavam agora arbitrariamente salpicados com mais</p><p>de 80 milhões de minas terrestres.</p><p>Em suma, esse Papa eslavo tornara-se um espelho cristalino, voltado</p><p>para o mundo real, re�etindo as misérias verdadeiras de seus povos.</p><p>Em comparação com tais esforços sobre-humanos, a excursão papal</p><p>marcada para começar na manhã daquele sábado seria curta. Uma</p><p>visita pastoral ao santuário da gruta de Sainte-Baume, no alto dos</p><p>Alpes Marítimos franceses. Lá o Pontí�ce conduziria as tradicionais</p><p>devoções em honra de Santa Maria Madalena, que, segundo a lenda,</p><p>havia passado, como penitente, trinta anos de sua vida naquela gruta.</p><p>Houvera um certo humor discretamente irônico nos bastidores da</p><p>Secretaria de Estado sobre “outra das piedosas excursões de Sua</p><p>Santidade”. Mas no Vaticano de hoje, isso era natural, dado o</p><p>trabalho extra — pois assim era considerado — necessário para tais</p><p>incessantes perambulações papais mundo afora.</p><p>O sábado da partida do Papa para Baume amanheceu fresco e claro.</p><p>Quando o cardeal secretário de Estado, Cosimo</p><p>Maestroianni,</p><p>emergiu com o Papa eslavo e sua pequena comitiva de um dos portais</p><p>traseiros do Palácio Apostólico e prosseguiu pelos jardins em direção</p><p>ao heliporto do Vaticano, nenhum humor, irônico ou não,</p><p>transparecia no comportamento de Sua Eminência. O secretário não</p><p>era conhecido como um homem bem-humorado, mas sentia um certo</p><p>alívio feliz pois, uma vez que visse o Santo Padre em segurança a</p><p>caminho de Sainte-Baume, como o dever e o decoro exigiam, ele teria</p><p>alguns dias de tempo valioso para si mesmo.</p><p>Não havia nenhuma crise real à espera de Maestroianni. Mas, em</p><p>certo sentido, o tempo, agora, lhe era escasso. Embora a notícia ainda</p><p>não tivesse se tornado pública, por acordo prévio com o Papa eslavo,</p><p>o cardeal estava prestes a deixar o cargo de secretário de Estado.</p><p>Mesmo após a aposentadoria, suas mãos não �cariam longe das</p><p>alavancas mais altas do poder do Vaticano; ele e os seus colegas</p><p>haviam cuidado disso. O sucessor de Maestroianni, já escolhido, era</p><p>uma aposta garantida; não o homem ideal, mas administrável. No</p><p>entanto, era melhor realizar algumas coisas enquanto ainda estava</p><p>o�cialmente no poder. Antes de terminar o seu mandato o�cial como</p><p>chefe da Secretaria, Sua Eminência tinha três tarefas particularmente</p><p>importantes a cumprir. Cada uma era, à sua maneira, delicada. Ele</p><p>havia conduzido todas as três até um certo ponto crucial. Com um</p><p>pouco mais de progresso a ser feito aqui, mais algumas etapas a serem</p><p>iniciadas ali, ele poderia ter certeza de que sua agenda seria</p><p>irrefreável.</p><p>A agenda era tudo nesse momento. E o tempo corria.</p><p>No início da manhã daquele sábado, ladeado pelos sempre presentes</p><p>guardas de segurança uniformizados, seguido pelos seus</p><p>companheiros de viagem e com o secretário pessoal do Pontí�ce,</p><p>Monsenhor Daniel Sadowski, fechando a retaguarda, o Papa eslavo e</p><p>o seu cardeal secretário de Estado caminharam sob as sombras ao</p><p>longo do caminho como dois homens amarrados em uma corda</p><p>bamba. Correndo ao lado do Santo Padre — suas pernas curtas o</p><p>obrigavam a dar dois passos para cada um do Papa —, Sua Eminência</p><p>fez uma rápida revisão dos principais pontos da agenda do Pontí�ce</p><p>em Sainte-Baume e despediu-se: — Peça à santa para nos cobrir de</p><p>graças, Santidade.</p><p>Refazendo os seus passos em bendita solidão, rumo ao Palácio</p><p>Apostólico, o Cardeal Maestroianni permitiu-se alguns momentos</p><p>extras de re�exão dentro desses belos jardins. Re�etir era natural para</p><p>um homem acostumado ao Vaticano e ao poder global, especialmente</p><p>na véspera de sua saída do cargo; nada tinham de perda de tempo,</p><p>pois as suas re�exões eram úteis. Re�exões sobre mudança. E sobre</p><p>unidade.</p><p>De uma forma ou de outra, parecia a Sua Eminência que tudo em</p><p>sua vida, tudo no mundo, sempre estivera ligado ao processo e ao</p><p>propósito da mudança, e às faces e usos da unidade. Na verdade —</p><p>tendo a faculdade do entendimento tão aguda como sempre —</p><p>parecia a Sua Eminência que já na década de 1950, quando ele, então</p><p>um jovem e ambicioso clérigo, entrou pela primeira vez no serviço</p><p>diplomático do Vaticano, a mudança já havia penetrado no mundo</p><p>como sua única constante.</p><p>Maestroianni deixou sua mente viajar de volta à última longa</p><p>conversa que tivera com o seu mentor de longa data, o Cardeal Jean-</p><p>Claude de Vincennes. Tinha sido bem aqui nestes jardins, em um dia</p><p>claro, no início do inverno de 1979. Vincennes estava então imerso</p><p>nos planos para a primeira viagem para fora do Vaticano do recém-</p><p>eleito Papa eslavo, a viagem que levaria o novo Papa em uma visita à</p><p>sua Polônia natal, após a sua inesperada eleição para o Trono de</p><p>Pedro.</p><p>A maior parte do mundo vira aquela viagem, antes e depois de sua</p><p>conclusão, como o nostálgico retorno do Papa à sua terra natal, para</p><p>a devida e de�nitiva despedida de um vitorioso �lho da terra.</p><p>Vincennes, no entanto, não. O estado de espírito de Vincennes</p><p>durante aquela conversa, tantos anos atrás, parecera curioso a</p><p>Maestroianni. Como costumava fazer quando queria enfatizar um</p><p>ponto particularmente importante ao seu protegido, Vincennes</p><p>conduzira o que parecia uma conversa quase descontraída. Ele havia</p><p>falado sobre o seu dia no serviço do Vaticano. “Dia Um”, assim o</p><p>chamara. O longo e tedioso dia da Guerra Fria. O curioso era que o</p><p>seu tom parecia conscientemente profético; parecia, por mais de um</p><p>modo, predizer o �m daquele Dia.</p><p>— Francamente — Vincennes con�denciara a Maestroianni —, o</p><p>papel da Europa durante este Dia Um era o de um supremo mas</p><p>indefeso peão no jogo letal das nações. O jogo da Guerra Fria. O</p><p>medo sempre foi de que a qualquer momento surgisse uma explosão</p><p>de chamas nucleares.</p><p>Mesmo sem a retórica, Maestroianni havia entendido tudo isso. Ele</p><p>sempre fora um ávido estudante de história. E no início de 1979, já</p><p>acumulara experiência prática em lidar com os governos da Guerra</p><p>Fria e os poderosos do mundo. Ele sabia que o pressentimento da</p><p>Guerra Fria perseguia a todos, dentro e fora do governo. Mesmo as</p><p>seis nações da Europa Ocidental cujos ministros haviam assinado os</p><p>tratados de Roma em 1957 e, por meio deles, se unido</p><p>admiravelmente à Comunidade Europeia — até mesmo seus planos e</p><p>movimentos eram limitados a todo momento por aquele presságio</p><p>constante durante a Guerra Fria.</p><p>Baseado no que Maestroianni tinha visto naqueles primeiros dias de</p><p>1979, aquela realidade geopolítica — a realidade do que Vincennes</p><p>chamava de “Dia Um” — em nada havia mudado. O que</p><p>principalmente o surpreendia, portanto, era a convicção de Vincennes</p><p>de que o Dia Um estava prestes a terminar. Mais surpreendente ainda,</p><p>ocorreu a Maestroianni, era que Vincennes realmente esperava que</p><p>esse eslavo intruso no papado fosse o que ele chamava de “um anjo</p><p>da mudança”.</p><p>— Não se engane sobre isso — Vincennes havia sido enfático nesse</p><p>ponto. — Esse homem pode ser visto por muitos como um poeta-</p><p>�lósofo trapalhão que entrou no papado por engano. Mas ele pensa,</p><p>come, dorme e sonha com a geopolítica. Eu vi os rascunhos de alguns</p><p>dos discursos que ele planeja fazer em Varsóvia e Cracóvia. Fiz</p><p>questão de ler alguns de seus discursos anteriores. Desde 1976 ele fala</p><p>sobre a inevitabilidade da mudança. Sobre a corrida iminente das</p><p>nações para uma Nova Ordem Mundial.</p><p>Em sua surpresa, Maestroianni havia parado ao lado de Vincennes.</p><p>— Sim — de sua altura imponente, Vincennes espiava o seu diminuto</p><p>companheiro. — Sim. Você ouviu direito. Ele também vê uma Nova</p><p>Ordem Mundial chegando. E se eu estiver correto em minha leitura de</p><p>sua intenção nesse retorno à sua terra natal, ele pode ser o arauto do</p><p>�m do Dia Um. Agora, se isso for verdade, então o Dia Dois</p><p>começará muito em breve. Quando isso acontecer, a menos que eu</p><p>tenha errado o meu palpite, esse novo Papa eslavo será o líder da</p><p>matilha. Mas você, meu amigo, deve correr mais rápido. Você precisa</p><p>dar voltas ao redor desse nosso Santo Padre.</p><p>Maestroianni �cara mudo em sua confusão. Primeiro, porque</p><p>Vincennes parecia estar se pondo de fora do Dia Dois; parecia estar</p><p>dando instruções a Maestroianni como a um sucessor. E também</p><p>porque Vincennes pensava que esse eslavo, que parecia tão</p><p>inadequado para o papado, podia desempenhar um papel</p><p>fundamental na política do poder mundial.</p><p>Era um Maestroianni muito diferente, aquele que fazia uma pausa</p><p>algo mais longa antes de passar pelo portal dos fundos do Palácio</p><p>Apostólico. A voz de Vincennes se calara, naqueles doze últimos anos.</p><p>Mas esses mesmos jardins, inalterados, eram testemunhas da precisão</p><p>de sua profecia.</p><p>O Dia Dois havia começado tão sutilmente que os líderes do Leste e</p><p>do Oeste perceberam apenas lentamente o que Vincennes havia</p><p>vislumbrado naqueles primeiros discursos desse eslavo que agora era</p><p>Papa. Lentamente, os mais brilhantes entre os �lhos de Mamon</p><p>começaram a entender o que esse Pontí�ce lhes dizia naquele seu</p><p>estilo que, sem condenar, não deixava de insistir.</p><p>Ao viajar para a sua terra natal e desa�ar, com sucesso, os líderes do</p><p>Oriente, em seu próprio território, esse Papa dera partida em uma das</p><p>mais profundas mudanças geopolíticas da história. No entanto, os</p><p>líderes dos governos ocidentais tiveram</p><p>di�culdades em seguir para</p><p>onde o Papa eslavo apontava. Eles tinham certeza absoluta de que o</p><p>fulcro terrestre da mudança seria o seu próprio delta europeu,</p><p>minúsculo e arti�cialmente disforme. Era difícil acreditar que o</p><p>epicentro da mudança estivesse nas terras cativas entre o rio Oder, na</p><p>Polônia, e as fronteiras orientais da Ucrânia.</p><p>Se não foram convencidos pelo que o Pontí�ce dizia, esses líderes</p><p>foram, no entanto, en�m convencidos pelos acontecimentos. E uma</p><p>vez convencidos, não havia como parar a corrida dos que queriam se</p><p>juntar à nova marcha da história. Em 1988, a outrora minúscula</p><p>Comunidade Europeia havia aumentado para doze Estados e uma</p><p>população total de 324 milhões, estendendo-se da Dinamarca, ao</p><p>norte, a Portugal, ao sul, e das Ilhas Shetland, a oeste, a Creta, a leste.</p><p>Poder-se-ia esperar, razoavelmente, que em 1994 seu número de</p><p>membros aumentasse em pelo menos mais cinco Estados e outros 130</p><p>milhões de pessoas.</p><p>Mesmo assim, a Europa Ocidental permaneceu um pequeno delta</p><p>teimoso e sitiado, com medo de que sua antiga civilização pudesse ser</p><p>incinerada na maior de todas as guerras. O inimigo ainda ocupava os</p><p>horizontes de sua visão e limitava sua ambição.</p><p>Por �m, porém, com a queda do Muro de Berlim no início do</p><p>inverno de 1989, todas as vendas foram retiradas. Os europeus</p><p>ocidentais experimentaram a sensação visceral de uma grande</p><p>mudança. No início dos anos noventa, essa sensação havia se</p><p>solidi�cado em uma profunda convicção em si mesmos como</p><p>europeus. A Europa Ocidental em que nasceram havia desaparecido</p><p>para sempre. Sua longa noite de medo acabara. Nascera o Dia Dois.</p><p>Por mais inesperado que tenha sido, a força do novo dinamismo na</p><p>Europa Central arrebatou todos em sua órbita. Preocupou o rival da</p><p>Europa no Extremo Oriente, o Japão, e se impôs às duas</p><p>superpotências. De modo muito semelhante ao mensageiro dos</p><p>dramas gregos clássicos, que sobe ao palco para anunciar a um</p><p>público incrédulo o que acontecerá a seguir, Mikhail Gorbachev</p><p>entrou em cena, como presidente soviético, para dizer ao mundo que</p><p>sua União Soviética “sempre tinha sido parte integrante da Europa”.</p><p>A meio mundo de distância, o presidente dos Estados Unidos, Bush,</p><p>falou de sua América como “uma potência europeia”.</p><p>Enquanto isso, na Roma papal, o Dia Dois também havia nascido.</p><p>Ele foi amplamente ignorado no tumulto da mudança que corria</p><p>como um f luxo de lava entre a sociedade das nações. No entanto, sob</p><p>a mão inteligente de Maestroianni e seus muitos associados, uma mais</p><p>rápida e ainda mais profunda corrente de mudança tomou conta da</p><p>condição e das fortunas terrenas da Igreja Católica Romana e da</p><p>própria Roma papal.</p><p>A Roma do velho Papa, que resistira à Segunda Guerra Mundial, já</p><p>não existia. Sua Roma papal, uma organização hierárquica fortemente</p><p>unida, havia desaparecido. Todos aqueles cardeais, bispos e padres,</p><p>aquelas ordens e institutos religiosos espalhados por dioceses e</p><p>paróquias em todo o mundo — todos unidos em �delidade e</p><p>obediência a um Sumo Pontí�ce, a uma persona papal individual —</p><p>tudo isso era passado. Também não havia mais a Roma</p><p>pentecostalmente animada do “Papa Bom”, que abrira as portas e as</p><p>janelas de sua antiga instituição, permitindo que os ventos da</p><p>mudança varressem todos os cômodos e corredores. Sua Roma papal</p><p>se foi, levada pelos mesmos ventos que ele havia invocado. Nada de</p><p>seu sonho permaneceu, exceto algumas memórias distorcidas e</p><p>representações deformadas e a inspiração que ele dera a homens como</p><p>Maestroianni.</p><p>Até a turbulenta Roma papal do infeliz Pontí�ce que adotara o nome</p><p>do Apóstolo se foi. Nenhum traço restou, nem mesmo do pathos dos</p><p>protestos ine�cazes daquele Santo Padre contra a descatolicização</p><p>gradual do que antes se considerava os mais sagrados mistérios da</p><p>Roma papal. Graças a Vincennes, e a tão hábeis e dedicados</p><p>discípulos como o próprio Maestroianni, entre outros, quando o</p><p>Pontí�ce atendeu o chamado da morte após quinze anos na cátedra de</p><p>Pedro, uma nova Roma já estava surgindo. Um novo corpo católico já</p><p>estava sendo formado.</p><p>No frescor calmo desta manhã, o Cardeal-secretário Maestroianni</p><p>ergueu os olhos para os jardins e os céus, em um olhar intencional.</p><p>Era adequado — um prenúncio, até —, pensou ele, que nenhum sinal</p><p>ou som restasse do helicóptero que levara o Papa embora. Pois a nova</p><p>Roma não se limitava a enfrentar esse Papa eslavo. Essa Roma era</p><p>antipapal. Na realidade, não apenas isso, mas dedicada a desenvolver</p><p>uma Igreja antipapal.</p><p>Uma nova Igreja em uma Nova Ordem Mundial. Essa era a meta na</p><p>nova Roma, na Roma de Maestroianni.</p><p>Ainda era um curioso acaso, para Maestroianni, que o único grande</p><p>obstáculo na realização plena dessa tarefa acabasse sendo esse Papa,</p><p>considerado por muitos como nada mais do que uma “relíquia de</p><p>tempos passados”. Uma pena, pensou ele, que as coisas chegassem a</p><p>esse ponto; pois, nos primeiros dias de seu ponti�cado, o cardeal se</p><p>vira encorajado pelo comportamento do Papa. Ele se �zera e se</p><p>proclamara o defensor do “espírito do Vaticano ��”; em outras</p><p>palavras, um patrocinador das vastas mudanças introduzidas na Igreja</p><p>em nome daquele concílio. Ele havia concordado com a nomeação do</p><p>próprio Maestroianni como seu secretário de Estado, por exemplo. E</p><p>havia deixado o Cardeal Noah Palombo em sua posição de poder. Ele</p><p>ainda consentira em promover outros que abominavam a</p><p>religiosidade desse Santo Padre. Também não perturbara os bons</p><p>maçons que trabalhavam na Chancelaria do Vaticano. Esses pareciam,</p><p>pelo menos, sinais esperançosos da obediência papal, se não de sua</p><p>cumplicidade. E o quadro geral era promissor. Não só em Roma, mas</p><p>em todas as dioceses do catolicismo, uma dedicada falange de clérigos</p><p>estava no comando, e um novo catolicismo já f lorescia.</p><p>Claro, a autoridade romana foi evocada para propagar esse novo</p><p>catolicismo. Esse era o papel do lado de Maestroianni na ilusão. E a</p><p>lei canônica, devidamente revisada, foi brandida para fazer cumprir</p><p>seus preceitos. Esse era o valor do engenho do lado de Maestroianni</p><p>na lista de funcionários do Vaticano. Mas a intenção sempre foi</p><p>promover um catolicismo que não reconhecesse vínculos efetivos com</p><p>o catolicismo anterior.</p><p>É verdade que o Cardeal-secretário Vincennes havia conduzido esse</p><p>processo de mudança até um ponto avançado do caminho. O que</p><p>restava fazer agora era transformar o próprio papado em uma serva</p><p>complacente, até mesmo cooperativa, a serviço de uma nova criação,</p><p>um novo habitat terrestre; uma verdadeira Nova Ordem Mundial.</p><p>Quando essa transformação estivesse completa, o Dia Três nasceria</p><p>sobre um paraíso terrestre.</p><p>Consequentemente, como qualquer homem razoável esperaria, esse</p><p>Papa que tão deliberadamente havia explorado as forças geopolíticas</p><p>ocultas que precipitaram a corrida iminente de nações para uma Nova</p><p>Ordem Mundial devia ser a pessoa mais adequada para completar a</p><p>transformação da organização católica romana na competente serva</p><p>da Nova Ordem Mundial, para colocar a instituição eclesial em</p><p>perfeito alinhamento com a globalização de toda a cultura humana.</p><p>No entanto, como o cardeal e seus colegas — dentro e fora da Igreja</p><p>— haviam descoberto, esse Papa eslavo agora se interpunha</p><p>intransigentemente no caminho do progresso necessário.</p><p>Pois esse Papa não cederia em certas questões essenciais — questões</p><p>morais e doutrinárias. Ele se recusava terminantemente a considerar a</p><p>ordenação sacerdotal de mulheres e o relaxamento da regra do</p><p>celibato sacerdotal. Opunha-se a toda experimentação no campo da</p><p>genética que envolvesse o uso de embriões humanos. Não sancionaria</p><p>nenhuma forma de contracepção e muito menos o aborto em</p><p>O</p><p>nenhuma circunstância. Defendia o direito de sua Igreja de educar os</p><p>jovens. Acima de tudo, defendia o direito de sua Igreja de se opor a</p><p>qualquer legislação civil à qual ele e seus clérigos decidissem se opor</p><p>por razões morais e doutrinárias. Em suma, esse Papa eslavo não</p><p>abriria mão de algumas das mais importantes e tradicionais posições</p><p>da Igreja Católica Romana.</p><p>Por isso, enquanto ele permanecesse Papa não se poderia realizar</p><p>qualquer</p><p>progresso real em direção aos magní�cos objetivos da Nova</p><p>Ordem Mundial. Ou, pelo menos, o progresso seria tão lento que, se</p><p>as coisas progredissem no ritmo atual, um prazo importante deixaria</p><p>de ser cumprido. Esse prazo havia sido apresentado ao cardeal por</p><p>seus colegas seculares da política, �nanças e macroeconomia como</p><p>uma data de importância mundial, na qual a conversão total da</p><p>organização institucional católica romana deveria ser um fato</p><p>consumado.</p><p>Inevitavelmente, então, o Papa eslavo tornara-se o principal alvo da</p><p>mudança. Na verdade, o alvo de�nitivo.</p><p>Maestroianni �nalmente encerrou suas re�exões no jardim. Havia</p><p>trabalho a ser feito. Antes que o dia terminasse, se não houvesse</p><p>interrupções, ele esperava fazer progressos reais em cada uma das três</p><p>tarefas fundamentais para a fase �nal da transformação. Ele �zera</p><p>honra ao legado que Vincennes lhe deixara. E aposentado ou não, ele</p><p>ainda não havia terminado a tarefa. Nem pela metade.</p><p>Em todos os aspectos importantes, o pequeno Cosimo Maestroianni</p><p>agora se considerava o gigante.</p><p>II</p><p>Papa eslavo relaxou assim que entrou no helicóptero, e se viu por</p><p>um momento totalmente a sós com o seu secretário particular,</p><p>Monsenhor Daniel Sadowski, que conhecia a sua posição quase</p><p>impossível como Pontí�ce. Ele estava longe da vigilância de seu astuto</p><p>secretário de Estado. Quando o helicóptero decolou, nem o Papa nem</p><p>o secretário olharam para trás na direção do Cardeal Maestroianni,</p><p>tão obviamente ansioso para voltar ao seu escritório e a seus afazeres</p><p>do dia no Palácio Apostólico. Quaisquer que fossem esses afazeres, os</p><p>dois homens tinham certeza de que não pressagiavam nada de</p><p>agradável para o Santo Padre.</p><p>Em meia hora, seu helicóptero chegou a Fiumicino. Em terra houve o</p><p>cerimonial usual — dignitários religiosos e cívicos, um pequeno coro</p><p>de crianças cantando um hino papal, um breve discurso do Papa</p><p>eslavo, um discurso formal do governador da província. Em seguida,</p><p>o Papa e sua comitiva foram transferidos para o ��-10 branco da</p><p>Alitalia e ocuparam seus lugares na cabine papal. Um pequeno grupo</p><p>pré-selecionado de repórteres e cinegra�stas já estava a bordo, no</p><p>salão de passageiros principal. Em pouco tempo, o avião decolou e em</p><p>poucos minutos estava sobre o Mar Tirreno, voando na direção</p><p>Noroeste, para Marselha.</p><p>— Sabe — disse o Papa a Sadowski —, quando nós, o cardeal e eu,</p><p>fomos a Roma para o Conclave de outubro de 1978, ambos</p><p>pensávamos saber o que essa missão incluía.</p><p>Para o Papa eslavo, “o cardeal” era e sempre seria o já falecido</p><p>Stefan Wyszynski, então chefe da Igreja na Polônia, apelidado de</p><p>Raposa da Europa. Mesmo antes de terem entrado naquele Conclave,</p><p>o segundo em poucos meses, estava claro para ambos os cardeais</p><p>eslavos que a liderança papal havia sido fundamentalmente, se não</p><p>fatalmente, comprometida pelo que se tornara então “o espírito do</p><p>Vaticano ��”. Quando chegaram as horas �nais do Conclave, e o</p><p>jovem clérigo polonês se viu diante da probabilidade de ser convidado</p><p>a se tornar Papa, os dois homens tiveram um encontro reservado.</p><p>— Se você aceitar ser feito Papa — o cardeal sênior havia dito</p><p>naquele dia — você será o último Papa desta era católica. Como o</p><p>próprio Simão Pedro, você estará na linha que separa uma era que</p><p>está terminando de outra que está começando. Você presidirá uma</p><p>disputa pontifícia inimaginável. E fará isso no exato momento em que</p><p>as facções antipapais dentro da Igreja tiverem praticamente assumido</p><p>o controle de suas instituições, em nome do próprio Concílio do</p><p>Vaticano ��.</p><p>Ambos os cardeais entendiam, portanto, que o que se pedia ao jovem</p><p>prelado era que avançasse �elmente, enquanto Papa, aquele tão</p><p>alardeado espírito do Vaticano ��. Mas aceitar assim a eleição papal</p><p>seria concordar em che�ar uma Igreja já �rme, irremediável e</p><p>burocraticamente comprometida com uma agenda sociopolítica global</p><p>que a grande maioria de seus predecessores papais veria como</p><p>totalmente alheia à missão divinamente estabelecida da Igreja.</p><p>E isso ainda não era tudo. Os dois cardeais também se defrontavam</p><p>com o fato de que, no ano de 1978, a organização eclesiástica e a vida</p><p>pública da Igreja Católica Romana, como existiriam até o século ��,</p><p>haviam sido extintas para sempre. Ambos os cardeais percebiam sua</p><p>irrestaurabilidade. Antes mesmo de voltar ao Conclave para aceitar</p><p>sua eleição ao papado, esse futuro Papa sabia que a mudança já</p><p>realizada na organização eclesiástica era irreversível. A estrutura</p><p>tradicional da Igreja Universal como instituição visível e organização</p><p>de trabalho tinha sido transformada. Seu irmão mais velho no</p><p>cardinalato, a Raposa da Europa, concordava plenamente com essa</p><p>análise. Mas, então, os dois cardeais descobriram que divergiam</p><p>quanto ao melhor curso de ação a ser empreendido pelo cardeal mais</p><p>jovem se, de fato, fosse eleito Papa nesse Conclave.</p><p>— Eu sei, Eminência — disse o homem mais velho, com �rmeza —,</p><p>que o único outro com possibilidade de ser eleito Papa neste Conclave</p><p>é nosso irmão Cardeal de Gênova. E nós dois sabemos qual seria a</p><p>solução dele para a atual confusão que envolve nossa instituição</p><p>religiosa. Hum? O cardeal mais jovem sorriu.</p><p>— Fechar as escotilhas. Exortar o recalcitrante. Expulsar os</p><p>obstinados. Puri�car as �leiras…</p><p>— E, acima de tudo, Eminência — o ancião interrompeu —, pegar</p><p>cada documento importante do Concílio Vaticano�� e interpretá-lo</p><p>estritamente à luz do Concílio Vaticano � e do Concílio de Trento. Um</p><p>forte e vigoroso retorno ao essencial, apoiado por todas as sanções</p><p>tradicionais da Mãe Igreja, da Santa Igreja Católica Apostólica</p><p>Romana… — O homem mais velho se interrompeu ao notar que o</p><p>cardeal mais jovem estremecia.</p><p>— Concordo — disse o homem mais jovem após uma pausa. — Mas</p><p>as perdas e danos às almas e às nossas instituições seriam</p><p>incalculáveis. Como um Papa poderia arcar com essa</p><p>responsabilidade, Eminência?</p><p>— Como ele não poderia? — foi a réplica rápida.</p><p>— Mas, Eminência — o jovem persistiu —, nós dois concordamos: a</p><p>Igreja velha e tradicional foi… foi, como dizer? Fuzilada! Destruída,</p><p>irreparavelmente! Sob tal política papal, nossa amada Igreja entraria</p><p>no século ��� mancando, como um pobre marginalizado. Nós</p><p>passaríamos para o segundo milênio como um remanescente</p><p>esqueletizado de um colosso religioso outrora vibrante, mas agora em</p><p>desacordo com toda a família das nações.</p><p>— Parecia-me — a Raposa da Europa tinha um brilho zombeteiro</p><p>nos olhos — que, de uma forma ou de outra, nosso dever pro�ssional</p><p>seria estar em desacordo com este mundo; cruci�cados para o mundo,</p><p>na verdade, nas palavras de São Paulo. Mas, falando sério, diga-me:</p><p>qual seria a ideia central de sua política papal, se amanhã nossos</p><p>irmãos cardeais o escolhessem?</p><p>— A política central que o senhor iniciou e que eu segui, quando</p><p>deparados com os stalinistas poloneses…</p><p>— Especi�camente?</p><p>— Não se afastar. Não se isolar. Não se furtar à conversa, à</p><p>negociação. Aceitar toda e qualquer pessoa em um diálogo, quer ela</p><p>queira ou não. Eu participei da redação de todos os principais</p><p>documentos do Concílio Vaticano ��. Eu e os outros os formulamos de</p><p>modo a incluir todos… — Essa palavra, ele repetiu. — Todos,</p><p>Eminência. Pois Cristo morreu por todos. Todos estão salvos, de fato,</p><p>em um sentido ou outro. Por mim, eu viajaria pelo mundo, visitando</p><p>nação após nação, seria visto em todos os lugares, ouvido em todos os</p><p>idiomas possíveis… — Seus olhos brilhavam enquanto ele falava. —</p><p>Essa foi nossa solução eslava para nossa terrível condição na Polônia</p><p>sob os soviéticos. Conversa e diálogo. Nunca ser posto para fora.</p><p>— A solução eslava. Hum… A solução eslava. — O cardeal mais</p><p>velho tinha o olhar distante, perdido em suas re�exões. Sua voz</p><p>falhou.</p><p>— Tenho certeza — disse o cardeal mais jovem em um tom de voz</p><p>manso, mas �rme, com os olhos no mais velho — de que o papado e a</p><p>Igreja são chamados agora a se preparar para uma vasta colheita de</p><p>almas nas últimas décadas deste milênio… É o velho sonho do bom</p><p>Papa João.</p><p>O cardeal mais velho levantou-se, rindo baixinho.</p><p>— Da sua boca aos ouvidos de Deus, Eminência.</p><p>— Ele olhou no seu</p><p>relógio, e continuou: — Vai tocar o sinal para a próxima sessão.</p><p>Vamos. Tivemos uma boa discussão. E não tenhamos medo. Cristo</p><p>está com a sua Igreja.</p><p>De acordo com esse princípio como o centro de sua política papal, o</p><p>Papa eslavo havia declarado em seu primeiro ano no Trono de Pedro:</p><p>— Seguirei os passos de meus três predecessores. Tomarei como meu</p><p>encargo, enquanto Papa, implementar o espírito e a letra do Concílio</p><p>Vaticano ��. Trabalharei com meus bispos, como qualquer bispo</p><p>trabalha com seus colegas, eles em suas dioceses, eu como Bispo de</p><p>Roma, todos nós governando a Igreja Universal juntos e</p><p>colegialmente.</p><p>Ele permanecera violentamente �el a essa promessa. Por mais de uma</p><p>dúzia de anos como Papa, não importava quão indolente, herética ou</p><p>profanamente seus bispos governassem suas dioceses — ele não</p><p>interferiu.</p><p>Quando os bispos, aos milhares, começaram a introduzir</p><p>ensinamentos não tradicionais em seus seminários, a permitir que a</p><p>praga da homossexualidade f lorescesse entre seu clero, a adaptar as</p><p>cerimônias católicas romanas a qualquer uma de meia dúzia de</p><p>“inculturações” — a rituais da Nova Era; a uma “hinduização”, a</p><p>uma “americanização” — o Papa eslavo não perseguiu os</p><p>perpetradores das heresias e das imoralidades insinuadas ou</p><p>descaradas. Ao contrário; ele os deixou em paz.</p><p>Os bispos procuravam se juntar à construção de novas estruturas</p><p>seculares para governar suas nações individuais e a emergente</p><p>sociedade das nações? O Papa fez o mesmo, com todo o peso</p><p>preponderante do papado. Seus bispos se associavam a cristãos não</p><p>católicos como seus sócios e iguais na evangelização do mundo? O</p><p>Papa também o fez, com toda a pompa e cerimônia do Vaticano.</p><p>Enquanto a organização institucional de sua Igreja se afundava cada</p><p>vez mais no entulho resultante de sua própria implosão, ao se</p><p>apresentar ao mundo como apenas mais um “�lho da humanidade” e</p><p>aos seus bispos como apenas mais um irmão, bispo em Roma, o Papa</p><p>eslavo permaneceu �el à solução eslava.</p><p>Ele repetia que governava sua Igreja junto com seus bispos e como</p><p>apenas mais um entre eles. Mesmo quando foi chamado a exercer sua</p><p>conhecida e bem estabelecida autoridade petrina em questões</p><p>doutrinais, ele confundiu seus amigos, enfureceu os tradicionalistas e</p><p>alegrou os corações dos inimigos do papado ao declarar brandamente:</p><p>“Pela autoridade conferida a Pedro e seus sucessores e em comunhão</p><p>com os bispos da Igreja Católica, eu con�rmo que” etc. —</p><p>mencionando, nesse ponto, o tema doutrinal em questão.</p><p>Ele visitou todo e qualquer tipo de templo, santuário, bosque</p><p>sagrado, gruta sagrada, bebendo bebidas mágicas, comendo alimentos</p><p>místicos, recebendo sinais de divindades pagãs em sua testa, falando</p><p>em pé de igualdade com patriarcas heréticos, bispos cismáticos,</p><p>teólogos doutrinariamente errantes, inclusive admitindo-os na Basílica</p><p>de São Pedro e concelebrando com eles uma liturgia sagrada.</p><p>Mas, por mais ultrajantes que fossem suas ações como Papa, ele</p><p>nunca se explicou, e nunca se desculpou por não se explicar. Ele</p><p>raramente mencionava o santo nome de Jesus Cristo ao falar para</p><p>grandes audiências públicas; ele voluntariamente afastava o cruci�xo</p><p>e até o Santíssimo Sacramento da Eucaristia, quando seus convidados</p><p>não católicos e não cristãos achavam esses sinais do catolicismo</p><p>romano muito desagradáveis. Na verdade, ele nunca se referiu a si</p><p>mesmo como um católico romano ou a sua Igreja como a Igreja</p><p>Católica Romana.</p><p>Um dos principais resultados da permissividade e da</p><p>“democratização” do Papa eslavo foi uma diminuição geral de sua</p><p>autoridade papal sobre os bispos. Em um relatório con�dencial, por</p><p>exemplo, vários bispos reclamaram abertamente, se não</p><p>publicamente, que “se esse Papa parasse de falar sobre o aborto,</p><p>parasse de enfatizar a contracepção como um mal e parasse de</p><p>condenar a homossexualidade, a Igreja poderia se tornar uma alegre e</p><p>bem-sucedida auxiliar na emergente sociedade das nações”. Nos</p><p>Estados Unidos, o estiloso Bispo Bruce Longbottham, de Michigan,</p><p>declarou:</p><p>— Se ao menos esse ator amador que temos como Papa reconhecesse</p><p>o igual direito das mulheres ao sacerdócio, ao episcopado, e mesmo</p><p>ao papado, a Igreja entraria em seu glorioso estágio �nal de</p><p>evangelização.</p><p>O decano dos cardeais da América concordava:</p><p>— De fato, se ao menos esse Papa deixasse de lado sua bobajada</p><p>piedosa sobre as visitas da Virgem Maria e se dedicasse a dar poder</p><p>real a mulheres reais na Igreja real, todo o mundo tornar-se-ia cristão.</p><p>De uma forma ou de outra — quer viessem de súplicas humildes de</p><p>homens e mulheres de boa vontade, quer daqueles que ele sabia</p><p>desejarem o mal e o fracasso do seu papado —, todas as objeções e</p><p>C</p><p>críticas chegaram aos ouvidos do Papa; e ele as mencionava</p><p>continuamente em suas orações ao Espírito Santo.</p><p>— Diga-me, Daniel — ele se voltou para seu secretário após cerca de</p><p>trinta minutos de voo. — Por que você acha que estou indo em</p><p>peregrinação ao santuário de Maria Madalena em Baume, e</p><p>justamente agora? — Ele ergueu um olhar interrogativo para</p><p>Sadowski, e completou: — Isto é, qual é o verdadeiro motivo?</p><p>— Santidade, só posso supor que seja mais por devoção pessoal do</p><p>que por razões eclesiais gerais.</p><p>— Correto! — O Papa olhou pela janela. — Em poucas palavras,</p><p>quero falar a uma santa que partiu para o exílio por causa da glória</p><p>que viu no rosto de Cristo no dia de sua Ressurreição. Quero honrá-la</p><p>de maneira especial, na esperança de que ela interceda junto a Cristo e</p><p>me dê forças para suportar meu próprio exílio, que agora começa</p><p>para valer.</p><p>III</p><p>omo secretário do todo-poderoso Cardeal Maestroianni, um</p><p>descontente Monsenhor Taco Manuguerra estava sentado em seu</p><p>escritório, guardando o santuário de Sua Eminência. Envolvido pelo</p><p>silêncio do �m de semana que reinava no andar do secretariado do</p><p>Palácio Apostólico, o monsenhor folheava os jornais da manhã,</p><p>resmungando consigo mesmo pelo fato de o cardeal o ter convocado,</p><p>outra vez, para o serviço de sábado. Seria um dies non, dissera</p><p>Maestroianni: um dia em que o cardeal não estava no escritório para</p><p>atender ninguém, nem para nenhum telefonema.</p><p>À entrada abrupta do cardeal, o monsenhor sabiamente esqueceu-se</p><p>dos seus murmúrios, deixou cair os jornais e saltou da cadeira. Com</p><p>nada mais que um gesto admonitório de sua mão como cumprimento,</p><p>Sua Eminência fez uma pausa su�ciente apenas para uma pergunta</p><p>concisa.</p><p>— Chin? O Padre Chin Byonbang era o assunto do interesse do</p><p>cardeal. Coreano de habilidades notáveis e estenógrafo especial de Sua</p><p>Eminência, Chin também havia sido escalado para trabalhar nesta</p><p>manhã. Manuguerra acenou com a cabeça em resposta. Chin estava</p><p>em um escritório próximo, esperando ser chamado. Satisfeito,</p><p>Maestroianni atravessou a porta de seu escritório particular.</p><p>Dentro desse escritório, o cardeal-secretário esfregou as mãos</p><p>vigorosamente em antecipação ao trabalho vital e complexo que</p><p>realizaria na manhã deste sábado. Ocupando o venerável cargo de</p><p>secretário de Estado, ele administrara os ruidosos estertores de uma</p><p>organização católica mundial que se deslovacava de uma ordem</p><p>mundial decadente para uma Nova Ordem Mundial. Sob a sua</p><p>direção, de fato, as coisas sempre haviam corrido, a cada passo, como</p><p>o planejado. Ninguém poderia dizer que Cosimo Maestroianni não</p><p>estava apegado à sobrevivência da Igreja Romana como instituição.</p><p>Pelo contrário, ele sabia que o caráter universal dessa organização e a</p><p>estabilidade cultural que a acompanhava estavam destinados a ser</p><p>bens inestimáveis no novo habitat terrestre do homem.</p><p>Ao mesmo tempo, aquela organização era agora che�ada por um</p><p>Papa que, apesar de todo o seu desamparo e postura pública, não</p><p>toleraria a puri�cação mais importante de todas — a puri�cação do</p><p>cargo que ocupava. Esse cargo tinha de ser limpo e expurgado de</p><p>qualquer autoridade pessoal, e seu ocupante — o Papa —, de ser</p><p>incluído na assembléia de bispos, exercendo a mesma autoridade que</p><p>todos os bispos juntos, e como nada mais que um deles.</p><p>Em teoria, a solução para esse problema era simples: o</p><p>desaparecimento, da cena papal,</p><p>do atual ocupante do cargo. A</p><p>remoção de um Papa vivo não é uma coisa fácil. Como a remoção de</p><p>explosivos ativos, deve ser realizada com paciência; sempre</p><p>con�dencialmente; sempre com mão delicada. Como esse Papa em</p><p>particular construíra para si um lugar tão sólido como líder mundial,</p><p>exigia-se cuidado para que sua remoção não derrubasse o equilíbrio</p><p>aceito e essencial nos assuntos das nações.</p><p>Dentro da própria estrutura da hierarquia da Igreja, entretanto,</p><p>havia a questão crucial da unidade. Dado que a unidade do Papa e</p><p>dos bispos é considerada absolutamente necessária para a estabilidade</p><p>da Igreja como organização institucional, dever-se-ia tomar cuidado</p><p>para que a ruína do Papa eslavo não des�zesse a unidade. O trabalho</p><p>desta manhã tinha em vista a preocupação do cardeal com a unidade.</p><p>Com Taco Manuguerra a defendê-lo de interrupções e com Chin</p><p>Byonbang como estenógrafo, Sua Eminência calculava que tudo</p><p>estaria pronto por volta do meio-dia.</p><p>Momentos após a sua chegada, o cardeal já havia disposto todos os</p><p>materiais relevantes em sua mesa. Quase imediatamente, e como se</p><p>fosse uma deixa, Chin bateu de leve na porta e, sem alarde ao</p><p>cumprimentá-lo, sentou-se em seu assento habitual em frente ao</p><p>cardeal, ligou seu estenógrafo e esperou.</p><p>Maestroianni revisou cuidadosamente suas notas preliminares. Era</p><p>uma carta delicada, a que ele tinha de escrever. Seu objetivo era</p><p>sondar os representantes diplomáticos da Santa Sé em oitenta e dois</p><p>países ao redor do mundo, para determinar o quanto os 4 mil bispos</p><p>da Igreja Universal se sentiam unidos ao atual Santo Padre. Segundo a</p><p>teologia do cardeal, as respostas recebidas seriam de grande</p><p>importância. Pois essa teologia sustentava que a unidade era um</p><p>poder de mão dupla. O Papa deveria unir os bispos; e os bispos</p><p>deveriam saber aceitá-lo como “um Papa da unidade”.</p><p>Claro, o cardeal-secretário pretendia que suas perguntas não</p><p>passassem de um levantamento de opiniões informais. Como um</p><p>passo, pode-se dizer, na formação de um diálogo mais realista entre a</p><p>Santa Sé e os bispos. Ele sentiu que era importante, por exemplo,</p><p>explorar exatamente que tipo de unidade era desejável. Descobrir até</p><p>que ponto o Papa eslavo desfrutava dessa unidade desejada e</p><p>necessária com seus bispos — ou, se a unidade estivesse em perigo,</p><p>determinar o que deveria ser feito para alcançar a desejada e</p><p>necessária unidade. O cardeal jamais usaria uma expressão</p><p>parlamentar como “um voto de con�ança” para descrever o objetivo</p><p>de sua pequena pesquisa. No entanto, se por acaso a maioria dos</p><p>bispos não considerasse Sua Santidade um Papa da unidade, outras</p><p>medidas poderiam ser tomadas para forjar um consenso e�caz sobre</p><p>sua necessária remoção do alto cargo do papado.</p><p>O truque, agora, era direcionar a situação de um modo favorável</p><p>para a nova Igreja, sem insinuar nem remotamente que o atual Papa</p><p>não fosse, de fato — nem mesmo potencialmente — um Papa da</p><p>unidade. O�cialmente falando, não poderia haver expressão de</p><p>ambiguidade nesse ponto. O�cialmente falando, o Papa e os bispos</p><p>nunca haviam estado tão unidos. Ao mesmo tempo, era perfeitamente</p><p>possível, e até provável, que houvesse uma razoável quantidade de</p><p>bispos que, embora sentissem uma certa ambivalência, nunca tivessem</p><p>tido a oportunidade de falar francamente sobre a questão da unidade.</p><p>O cardeal pretendia que os bispos �zessem as duas coisas.</p><p>Nenhum cardeal secretário de Estado em seu perfeito juízo abordaria</p><p>diretamente os bispos sobre tal assunto. Maestroianni tinha em mente</p><p>uma espécie de esquema de pirâmide. Sua carta desta manhã seria</p><p>enviada ao seu pessoal diplomático, homens cujas políticas eram</p><p>ditadas pelo secretário: núncios, delegados, emissários apostólicos,</p><p>vigários adhoc, 2 emissários especiais. Seguindo as linhas que ele</p><p>estabeleceria nesta carta, esses diplomatas, por sua vez, trabalhariam</p><p>através das várias Conferências Episcopais Nacionais em todo o</p><p>mundo. Pois o padrão agora era que os bispos, que durante o</p><p>Concílio Vaticano �� tinham vivido cercados de consultores</p><p>especializados, haviam passado a con�ar nesses especialistas, mesmo</p><p>em suas casas.</p><p>Em suma, a carta a seus colegas diplomatas que o cardeal-secretário</p><p>redigiria na manhã deste sábado era apenas um passo no caminho.</p><p>Mas era um passo crucial e delicado, que exigia o uso habilidoso de</p><p>uma linguagem decorosa para apresentar perguntas que eram, no</p><p>fundo, brutais.</p><p>Ao trabalharem juntos esta manhã, a taciturnidade rochosa do Padre</p><p>Chin era o contraponto perfeito à intensidade ardente de</p><p>Maestroianni. Seu fraseado parecia perfeito — ambivalente, mas não</p><p>ambíguo — para sugerir, sem parecer que o fazia, que a unidade podia</p><p>ser rede�nida para ser renovada, sem, ao mesmo tempo, deixar</p><p>dúvidas de que o objetivo de Sua Eminência sempre fora preservar e</p><p>fomentar essa preciosa unidade.</p><p>Precisamente nesse momento de concentração, quando para ele nada</p><p>no mundo existia exceto as palavras diante de seus olhos, uma batida</p><p>na porta soou, aos ouvidos do cardeal-secretário, como o rugido de</p><p>um trovão. Ainda curvado sobre o maço de notas na mão, com o</p><p>rosto avermelhado, Maestroianni olhou por entre as sobrancelhas e os</p><p>óculos. Taco Manuguerra, assustado demais para entrar, esticava o</p><p>pescoço desajeitadamente no batente da porta, gaguejando as palavras</p><p>que se lhe havia ordenado não dizer nessa manhã.</p><p>— O telefone, Eminência.</p><p>— Eu pensei ter deixado claro que não devia haver interrupções…</p><p>— É Sua Santidade, Eminência — Taco gaguejou.</p><p>Um choque elétrico não poderia ter endireitado a espinha do cardeal</p><p>mais rapidamente.</p><p>— Sua Santidade! — Ele deixou os papéis caírem de sua mão. Raiva</p><p>e exasperação levaram sua voz a uma altura de falsete. — Ele devia</p><p>estar nas montanhas francesas, rezando! Sempre consciente de seu</p><p>lugar e do valor da discrição, Chin já estava fora de sua cadeira e a</p><p>meio caminho da porta. Mas o cardeal estalou os dedos e indicou ao</p><p>estenógrafo que voltasse ao seu lugar. A carta continuaria!</p><p>Obedientemente, Chin voltou a sentar-se e, por hábito, �xou os olhos</p><p>na boca do cardeal.</p><p>Maestroianni parou por alguns segundos, para recuperar melhor a</p><p>compostura e, em seguida, levantou o receptor do telefone.</p><p>— Santidade! Seu servo!… Não, Santidade, de jeito nenhum. Apenas</p><p>colocando em dia algumas pendências… Sim, Santidade. Como é?</p><p>Chin observou os olhos do cardeal arregalados de espanto.</p><p>— Entendo, Santidade. Entendo. Maestroianni pegou uma caneta e</p><p>um caderno.</p><p>— Bernini? Deixe-me anotar o nome. Noli Me Tangere… Não,</p><p>Santidade, não posso dizer que já vi. Eu achava que Bernini havia</p><p>executado, principalmente, obras grandes. Colunas; altares; esse tipo</p><p>de coisa… Onde, Santidade?… Ah, sim. O Angelicum… Vossa</p><p>Santidade o viu ali? Posso perguntar quando foi isso, Santidade?…</p><p>Sim. Em 1948. Sim. É claro. Um triunfo de poder artístico… O</p><p>cardeal revirava os olhos para o céu como se dissesse “Veja, Senhor, o</p><p>que tenho que suportar!”.</p><p>— Vou tratar disso imediatamente… Eu disse imediatamente,</p><p>Santidade. A ligação deve estar falhando… Pode repetir, Santidade?</p><p>Sim, claro, ainda deve estar lá… Com certeza, Santidade, Sainte-</p><p>Baume também ainda está lá. Re�ro-me à estátua de Bernini… Com</p><p>certeza, Santidade. Estátuas não saem andando… Como, Santidade?</p><p>Vossa Santidade disse duas horas? Maestroianni olhou para o relógio.</p><p>— Perdão, Santidade. Ajuda de quem? Dos cães, Santidade? Ah,</p><p>entendi. Os cães do Senhor. Domini Canes. Os dominicanos,</p><p>encarregados do Angelicum. O senso de humor de Vossa Santidade foi</p><p>aguçado pelos ares frescos da montanha… Sua Eminência conseguiu</p><p>soltar uma risada nada convincente no telefone. Mas pelas linhas de</p><p>tensão ao redor de sua boca, Chin podia adivinhar o esforço que</p><p>aquela risada exigia.</p><p>— Sim, Santidade, temos o número do fax… duas horas… Com</p><p>certeza, Santidade… Todos nós esperamos o retorno de Vossa</p><p>Santidade… Obrigado, Santidade… Faça um bom retorno.</p><p>O cardeal recolocou o fone no gancho. Com o rosto congelado em</p><p>profunda raiva e frustração, ele �cou sentado, imóvel, por um tempo,</p><p>elaborando em sua mente a maneira mais rápida e prática de</p><p>cumprir</p><p>as instruções do Pontí�ce e depois voltar ao assunto verdadeiramente</p><p>importante de sua carta sobre a unidade. De repente, e talvez um</p><p>pouco a contragosto, Maestroianni decidiu que o Papa estava certo.</p><p>Se essa estátua, esse — olhou de relance para o nome rabiscado em</p><p>seu bloco de notas — essa Noli Me Tangere de Bernini estava no</p><p>Angelicum, e o Angelicum pertencia aos dominicanos como</p><p>residência, por que não passar toda essa ridícula questão para eles?</p><p>Sua Eminência apertou o interfone.</p><p>— Monsenhor. Encontre o mestre-geral dos dominicanos. Ligue para</p><p>ele imediatamente.</p><p>Com a raiva um tanto apaziguada por sua decisão, Maestroianni</p><p>retomou o rascunho de sua carta de unidade e fez um esforço para</p><p>recuperar a concentração. Mas assim que as palavras perfeitas</p><p>estavam prontas em sua mente, Manuguerra tocou novamente no</p><p>interfone.</p><p>— O mestre-geral está fora, Eminência.</p><p>— Fora, onde?</p><p>— Eles não sabem com certeza, Eminência. É sábado.</p><p>— Sim, monsenhor. Eu sei que dia é hoje.</p><p>O tom do cardeal não tinha nada de resignado. Maestroianni tinha</p><p>certeza de que quem quer que tivesse atendido a ligação de</p><p>Manuguerra no Angelicum sabia exatamente onde estava o mestre-</p><p>geral. De fato, no estado de espírito que tinha agora, ele estava pronto</p><p>para acreditar que toda a Ordem dos Dominicanos sabia onde</p><p>encontrar o Mestre-geral Damien Slattery. Que todos no mundo,</p><p>exceto o cardeal-secretário, sabiam onde encontrar Slattery.</p><p>O cardeal se acalmou. A questão era como achar aquele astuto</p><p>gigante irlandês sem perder tempo com porteiros e telefonistas. Tendo</p><p>treinado sua mente na logística do problema, a resposta óbvia para</p><p>qualquer situação como essa nasceu como uma manhã.</p><p>A</p><p>— Traga-me o Padre Aldo Carnesecca. Aqui mesmo. Agora. Ele</p><p>provavelmente está no Santo Ofício, mesmo em uma manhã de</p><p>sábado. Em seguida, reserve um carro com motorista em nome dele,</p><p>para estar na porta principal abaixo em dez minutos. Agora,</p><p>monsenhor! Agora!</p><p>— Sì, sì, Eminenza! Subito! Subito! Chin duvidava de que o cardeal</p><p>tentasse se concentrar novamente em seu ditado até que tivesse se</p><p>livrado totalmente dessa interrupção. Ele se recostou na cadeira para</p><p>esperar. Em sua posição privilegiada como estenógrafo especial do</p><p>secretário de Estado, o coreano compreendia que há muito tempo as</p><p>adagas haviam sido desembainhadas entre Sua Eminência e Sua</p><p>Santidade. Observando a agitação que ainda inundava Sua Eminência,</p><p>ele registrou um pequeno ponto em favor de Sua Santidade.</p><p>IV</p><p>s tentações do Padre Aldo Carnesecca provavelmente não eram</p><p>como as dos outros homens.</p><p>Durante todos os doze anos desde que fora convocado pelo cardeal</p><p>secretário de Estado — na época, Jean-Claude de Vincennes — para a</p><p>dupla triagem dos documentos papais, Carnesecca entendera que</p><p>Vincennes provavelmente havia sondado o quebra-cabeça daquele</p><p>envelope duplamente selado e marcado por dois papas como</p><p>“pessoalíssimo e con�dencialíssimo”. Por mais sábio que fosse o</p><p>Padre Carnesecca, ele também entendia que, para homens como</p><p>Vincennes e seu sucessor, a vingança podia ser um prato que se come</p><p>frio; mas que, um dia, será servido.</p><p>No entanto, Carnesecca também sabia que o conhecimento e a</p><p>experiência singulares que cultivara ao longo de tantas décadas como</p><p>subordinado pro�ssional eram úteis para homens como Vincennes e</p><p>seu sucessor, assim como para a Santa Sé. Subordinados treinados e</p><p>experientes eram raros. Assim, as linhas de utilidade e de retorno �nal</p><p>poderiam correr simultaneamente por anos, até que o momento</p><p>crucial chegasse, de repente e sem aviso prévio. Até lá, ele poderia se</p><p>mover com uma certa impunidade cautelosa.</p><p>Mesmo assim, o Padre Carnesecca continuava cuidadoso. Mas em</p><p>seus anos avançados — atualmente na casa dos setenta, ainda que em</p><p>forma e razoavelmente ágil — ele era o que sempre fora. Com a sua</p><p>integridade intacta, e ainda valorizado por aqueles que lhe</p><p>importavam como “um homem de con�dencialidade”, ele continuava</p><p>um sacerdote �el da Roma Eterna. Era cuidadoso, portanto, não à</p><p>maneira de algum espião mundano. Em vez disso, era cuidadoso</p><p>como um sacerdote. Ele vigiava menos o perigo às suas costas do que</p><p>o perigo para a sua alma imortal.</p><p>No geral, então, Carnesecca atendeu o súbito chamado do Cardeal-</p><p>secretário Maestroianni nesta manhã de sábado como sempre fazia:</p><p>prontamente e sem surpresa ou alarme. As instruções do cardeal para</p><p>ele foram peremptórias e concisas: Carnesecca deveria encontrar o</p><p>mestre-geral dominicano Damien Slattery onde quer que estivesse e,</p><p>imediatamente, conectar o mestre-geral, por telefone, com a Secretaria</p><p>de Estado. Na ausência de instruções mais explícitas, a tentação de</p><p>Carnesecca, nesta manhã, foi usar o mandato urgente do cardeal para</p><p>justi�car uma excursão agradável. Sentar-se confortavelmente no</p><p>carro que o cardeal-secretário lhe havia providenciado e dizer ao</p><p>motorista que se dirigisse ao quartel-general o�cial — a sede, como é</p><p>chamada em Roma — deste e de todos os mestres-gerais dominicanos:</p><p>o Mosteiro de Santa Sabina, nas encostas do Monte Aventino, na</p><p>parte sudoeste da cidade.</p><p>O único problema dessa ideia tão tentadora era que Carnesecca</p><p>sabia que não encontraria o Padre Damien Slattery no Mosteiro de</p><p>Santa Sabina. Pois, de fato, o Cardeal-secretário Maestroianni estava</p><p>absolutamente correto em sua crença de que toda a Ordem dos</p><p>Dominicanos sabia onde encontrar o mestre-geral. E Aldo Carnesecca</p><p>também. Dada a urgência que Maestroianni lhe havia transmitido,</p><p>portanto, e com um pequeno suspiro de pesar, o Padre Carnesecca fez</p><p>com que seu motorista o levasse a um restaurante subterrâneo, perto</p><p>do Panteão, chamado Springy’s.</p><p>O próprio Carnesecca não frequentava o Springy’s. Mas se você</p><p>conhecesse Damien Slattery tão bem quanto ele, certamente</p><p>conheceria o Springy’s. E se você conhecesse Roma tão bem quanto</p><p>Carnesecca, certamente conheceria Harry Springy. Como o próprio</p><p>Mestre-geral Damien Slattery, Harry Springy havia se tornado uma</p><p>lenda local. Australiano, viera para Roma nos anos 70 como se tivesse</p><p>uma missão. “Os rapazes precisam de um café da manhã decente”,</p><p>Harry dizia sempre. Com esse lema por credo e guia, ele preparava</p><p>cafés da manhã cheios de ovos fritos, bacon crocante, linguiças de</p><p>porco, chouriço branco e preto, rins e fígados de frango, pilhas de</p><p>torradas com manteiga e marmelada e rios de chá preto forte para</p><p>ajudar tudo isso a descer.</p><p>Naturalmente, os rapazes que se tornaram frequentadores regulares</p><p>do Springy’s ao longo dos anos incluíam toda a população clerical e</p><p>estudantil de língua inglesa de Roma. E entre esses frequentadores, o</p><p>rapaz favorito de Harry era o Padre Damien Duncan Slattery. Se</p><p>havia dois homens mais adequadamente destinados a uma amizade</p><p>longa e frutífera do que Harry Springy e Damien Slattery, o Padre</p><p>Carnesecca não os conhecia.</p><p>O Padre Damien era um homem de extraordinário apetite, com as</p><p>dimensões pertinentes. Com mais de dois metros de altura e pesando</p><p>quase trezentos quilos. O mestre-geral era um daqueles grandiosos</p><p>espécimes físicos da população masculina, que todo alfaiate e</p><p>armarinho em sua Irlanda natal adorariam vestir com tweeds de</p><p>Donegal. Felizmente, porém, pelo menos do ponto de vista de</p><p>Carnesecca, Damien Slattery havia optado pelas vestes cor de creme</p><p>da Ordem Dominicana. Envolvido pelas dobras rodopiantes do amplo</p><p>hábito, e com seus braços em forma de viga, suas mãos parecidas com</p><p>pás, sua ampla circunferência de cintura e peitoral, tudo encimado</p><p>por um rosto rubicundo e uma coroa de cabelos brancos rebeldes,</p><p>Slattery parecia um arcanjo desajeitado, perdido entre os mortais.</p><p>Com o passar dos anos, porém, Carnesecca passou a reconhecer</p><p>Damien Slattery como o mais gentil dos homens. Na sua idade —</p><p>cerca de cinquenta e cinco anos, calculava Carnesecca —, Slattery</p><p>caminhava, falava e ostentava seu posto de mestre-geral dominicano</p><p>com grandiosa dignidade. Seu porte físico bastava como passaporte</p><p>para que ele fosse aprovado e aceito. Ele não precisava usar a força;</p><p>ele era força, e parecia a autoridade encarnada, uma montanha em</p><p>movimento.</p><p>As habilidades</p><p>do Padre Slattery como atacante de rúgbi em seus</p><p>dias de escola — seus irmãos benevolentes o chamavam de “quebra-</p><p>ossos” — acrescentaram dimensões maravilhosas tanto à sua</p><p>popularidade quanto à sua lenda. Nos estudos, tivera um sucesso</p><p>similarmente fácil. Quando a sua ordem o enviou para estudos</p><p>posteriores em Oxford, Slattery recebeu todas as honras acadêmicas</p><p>possíveis. Também recebeu outra coisa: sua primeira experiência com</p><p>uma possessão demoníaca. Como disse certa vez a Carnesecca,</p><p>haviam “apostado” nele como exorcista nos primeiros dias de seu</p><p>sacerdócio. De fato, ele fora responsável, naqueles dias, pela limpeza</p><p>de toda uma família na área residencial de Woodstock.</p><p>— Então, veja, Padre Aldo — rira Slattery, com aquele risada grave</p><p>de barítono, ao contar a Carnesecca de seu passado —, sou mais do</p><p>que apenas um rostinho bonito! Depois de Oxford, e depois de mais</p><p>quinze anos na Irlanda como professor de teologia e superior local,</p><p>Slattery fora nomeado superior da Universidade Dominicana do</p><p>Angelicum. Nos primeiros dias do Padre Slattery em Roma, eram os</p><p>italianos que mais provavelmente caíam na gargalhada quando o viam</p><p>pela primeira vez, pois, sendo italianos, deram largas à própria</p><p>imaginação a respeito das dimensões dele. Muito em breve, porém,</p><p>eles o aceitaram em seus corações, com admiração de donos, como “il</p><p>nostro colosso”. Assim foi que, embora nem todos estivessem</p><p>satisfeitos, ninguém �cou surpreso quando, em 1987, os religiosos</p><p>irmãos de Damien Slattery o elegeram, por votação unânime, mestre-</p><p>geral da sua ordem. O que surpreendeu muitos daqueles irmãos</p><p>dominicanos foi que o Padre Slattery lhes impôs uma condição</p><p>estranha antes de aceitar a sua eleição. Embora fosse trabalhar</p><p>durante o dia no escritório do mestre-geral no Mosteiro de Santa</p><p>Sabina, no Monte Aventino, ele não residiria lá, como sempre fora o</p><p>costume. Ele manteria sua residência nos aposentos do reitor, no</p><p>Angelicum.</p><p>Em 1987, Aldo Carnesecca já havia entrado em contato com o Padre</p><p>Slattery. De fato, naquela época o próprio Papa eslavo havia</p><p>conhecido o irlandês e lhe con�ado alguns trabalhos delicados e</p><p>onerosos. Padre Carnesecca não sabia de todos os detalhes. Mas sabia</p><p>que Slattery havia se tornado o confessor e teólogo particular do</p><p>Pontí�ce; isso não era segredo. Ele sabia que o dominicano viajava um</p><p>ou dois meses por ano em missões papais particulares; e sabia que a</p><p>tarefa mais desagradável e perigosa que Slattery havia recebido do</p><p>Santo Padre lhe fora dada por causa do seu antigo sucesso como</p><p>exorcista. Na verdade, ele sabia que o Padre Slattery havia sido</p><p>chamado como consultor de exorcismo pelos cardeais arcebispos de</p><p>Turim e Milão, as duas cidades mais infestadas de satanismo ritual e</p><p>possessão demoníaca na Europa.</p><p>Com o tempo, como Carnesecca havia trabalhado com Damien</p><p>Slattery em diferentes ocasiões, por motivos diversos, ele aprendera</p><p>que havia certas coisas que nunca mudavam no homem. A primeira</p><p>— e a mais importante para o Padre Carnesecca — era que Damien</p><p>Slattery permanecia �rme em sua fé católica romana em Deus e no</p><p>poder inerente à Divindade. Isso era absolutamente crucial para o</p><p>sucesso em seus confrontos contínuos com o demoníaco. Poucas</p><p>pessoas jamais souberam, entretanto, nem Carnesecca lhes diria, que</p><p>o motivo do Mestre-geral Slattery para manter sua residência nos</p><p>aposentos do reitor do Angelicum era atuar como um antídoto contra</p><p>uma antiga infestação demoníaca naqueles quartos.</p><p>A segunda característica constante e inabalável de Damien Slattery</p><p>era que ele permanecia irlandês até o âmago. Seu sotaque de Oxford</p><p>raramente falhava; mas quando isso acontecia, Slattery normalmente</p><p>despejava uma torrente de injúrias gaélicas com um puro sotaque de</p><p>Donegal. A terceira coisa que nunca mudava era sua devoção a Harry</p><p>Springy e seu restaurante subterrâneo. Lá ele podia ser encontrado em</p><p>qualquer manhã de sábado, sentado em sua mesa exclusiva, separado</p><p>dos outros clientes, cercado por pratos cuidadosamente preparados</p><p>pelo próprio Harry Springy para o seu rapaz favorito.</p><p>— Ah! — Slattery levantou a cabeça. — É você, Padre Aldo. —</p><p>Damien largou a faca e o garfo em um grandioso �oreio de mangas</p><p>esvoaçantes e calma dignidade, e fez ao padre um gesto para que se</p><p>sentasse em frente à sua enorme fachada. — Veio se juntar a mim</p><p>para um pequeno café da manhã, não foi? Ciente da passagem do</p><p>tempo, Carnesecca recusou o convite. Ele transmitiu a mensagem</p><p>urgente do cardeal de que o mestre-geral deveria ligar para Sua</p><p>Eminência na Secretaria.</p><p>— Imediatamente, padre-geral. Um assunto urgente relativo ao Santo</p><p>Padre. Sua Eminência preferiu não me dizer nada mais.</p><p>Isso bastou para o dominicano. Ele colocou o restante de seu café da</p><p>manhã no forno para mantê-lo aquecido e fresco. Então dirigiu-se ao</p><p>único telefone de Springy, localizado ao lado da movimentada e</p><p>barulhenta cozinha. O Padre Damien nunca conversava com Cosimo</p><p>Maestroianni por vontade própria. Os dois homens se encontravam,</p><p>na maioria das vezes, em ambientes formais e se conheciam como</p><p>ocupantes de lados opostos da atual gangorra da política do poder</p><p>romano. Mas, mesmo nessa selva de partidarismo, havia algo muito</p><p>mais profundo e pessoal do que as lealdades políticas a separar esses</p><p>dois. Damien sabia disso. E o cardeal também.</p><p>O Padre Slattery ligou para o escritório do cardeal-secretário. Taco</p><p>Manuguerra passou-o imediatamente para Sua Eminência. Nem o</p><p>cardeal nem o dominicano se entregaram a mais do que as</p><p>preliminares sociais necessárias. Mas, como sempre, cada um foi �el a</p><p>seus deveres formais no sistema.</p><p>— Sua Santidade está em Sainte-Baume, padre-geral. No santuário</p><p>da gruta de Santa Maria Madalena, o�ciando nas celebrações de lá.</p><p>Ele acabou de me ligar para dizer que precisa que enviemos por fax</p><p>uma fotogra�a de uma certa estátua de Bernini de Maria Madalena.</p><p>Chama-se Noli Me Tangere.</p><p>— Sim, Eminência. Como podemos ajudar Sua Santidade? Vossa</p><p>Eminência sabe que estamos sempre prontos…</p><p>— Basta obter uma fotogra�a da estátua e enviá-la por fax ao Santo</p><p>Padre em Sainte-Baume, padre-geral. Dentro de uma hora, por favor.</p><p>Para Slattery, o tom de exasperação na voz do cardeal quase</p><p>compensava a interrupção do café da manhã. Ainda assim, ele não</p><p>tinha ideia de por que o cardeal fazia tal pedido a ele.</p><p>— Mas é claro que estamos dispostos a agir imediatamente,</p><p>Eminência. Mas uma fotogra�a de… Sua Eminência parecia não</p><p>entender o problema do mestre-geral.</p><p>— O senhor terá nosso fotógrafo o�cial à sua disposição. Minha</p><p>secretária já o avisou. Mas eu insisto, padre-geral. Sua Santidade</p><p>insiste. Comece a providenciar isso agora.</p><p>— Mas é claro, Eminência. É claro. A única di�culdade…</p><p>— Que di�culdade, padre-geral? Não é preciso convocar o Capítulo</p><p>Geral para votar esse assunto.</p><p>Slattery torceu o nariz para a farpa. Como o principal corpo</p><p>governante da Ordem Dominicana, o Capítulo Geral era conhecido</p><p>por se mover com a velocidade de uma tartaruga doente.</p><p>— De boa vontade! — O Padre Damien ergueu a voz profunda por</p><p>causa de um súbito tilintar de pratos. — Imediatamente! Mas eu</p><p>nunca vi essa… como é mesmo? Noli.</p><p>— Noli Me Tangere, de Bernini, padre-geral. Lembra da cena do</p><p>Evangelho? Cristo e a Madalena no jardim? Depois da Ressurreição?</p><p>Noli Me Tangere. “Não me toques”, palavras de Cristo. Lembra? A</p><p>estátua está no pátio da casa religiosa da qual o senhor é superior,</p><p>padre-geral. Ou o senhor não frequenta as instalações? Não havia</p><p>como negar a irritação crescente do cardeal. Mas Slattery estava</p><p>totalmente perplexo agora. Assim como muitas casas religiosas em</p><p>Roma, o Angelicum ostentava um lindo pátio interno; um jardim</p><p>sossegado com uma agradável fonte ao centro, onde, de fato, Padre</p><p>Damien costumava recitar seu breviário. Mas nunca em todos os seus</p><p>anos no Angelicum ele tinha visto uma estátua de Bernini lá. E ele</p><p>disse isso a Maestroianni.</p><p>— Impossível, padre-geral — insistiu o secretário. — O próprio</p><p>Santo Padre a viu lá.</p><p>Em sua confusão conjunta, provavelmente um dos poucos</p><p>sentimentos que compartilhariam, Slattery e Maestroianni deixaram</p><p>o</p><p>modo formal de falar.</p><p>— O Santo Padre a viu lá? Quando?</p><p>— No �nal dos anos 40, ele disse.</p><p>— No �nal dos anos 40.</p><p>— Você ouviu certo. Mas estátuas não andam. Uma estátua de</p><p>Bernini não derrete.</p><p>— Com isso, eu concordo. Mas, hoje em dia, ela não está mais lá.</p><p>Depois de um momento de pausa, a voz do cardeal-secretário</p><p>suavizou-se um pouco.</p><p>— Olhe, padre-geral. Cá entre nós e Santa Maria Madalena, você</p><p>não tem ideia de como esse pedido ridículo devastou os negócios</p><p>o�ciais esta manhã. A estátua deve estar em algum lugar. Certamente</p><p>você pode encontrá-la.</p><p>— Sua Santidade disse por que quer essa fotogra�a com tanta</p><p>urgência?</p><p>— Para inspiração, ao que parece — uma nota de sarcasmo in�ltrou-</p><p>se na voz do cardeal. — O Santo Padre valoriza a expressão de</p><p>piedosa devoção que Bernini esculpiu no rosto de Maria Madalena. É</p><p>uma questão de inspiração para a homilia desta noite em Sainte-</p><p>Baume.</p><p>— Eu entendo.</p><p>Damien realmente entendia. E agora foi ele quem fez uma pausa,</p><p>enquanto tentava encontrar alguma linha de ação para o problema.</p><p>— Alguém deve saber onde está a estátua — insistiu o cardeal. —</p><p>Você não pode perguntar aos monges mais velhos que vivem no</p><p>Angelicum?</p><p>— Não em um �m de semana. O clero está fora. Todos os residentes</p><p>habituais estão espalhados, visitando seus parentes na Campânia.</p><p>Além de mim, há um monge cego e idoso dormindo em sua cama; um</p><p>visitante de nossa missão taitiana cuja especialidade, aparentemente, é</p><p>fazer receitas com banana; um grupo de irmãs chinesas ensaiando</p><p>uma peça em mandarim em nosso pátio; e um jovem americano…</p><p>Espere um momento, Eminência! É isso. Acho que posso ter o nosso</p><p>homem. É esse jovem padre americano; ele vem aqui todos os anos,</p><p>no segundo semestre. Ensina teologia dogmática. Tipo tranquilo. Atua</p><p>como arquivista da casa. Ele está sempre em casa nos �ns de semana;</p><p>e ainda ontem me pediu os registros da casa desde 1945.</p><p>Maestroianni aproveitou a possibilidade.</p><p>— Esse é o homem. Coloque o telefone em espera e chame-o. Eu</p><p>espero.</p><p>Slattery fez uma careta para Harry Springy, passando por ele da</p><p>cozinha.</p><p>— Na verdade, não estou ligando do Angelicum.</p><p>— Ah — o cardeal satisfez sua curiosidade. — Eu tinha �cado</p><p>surpreso com essa barulheira que ouço ao fundo.</p><p>— Apenas um súbito a�uxo de paroquianos, Eminência — Slattery</p><p>ergueu novamente a barreira do discurso formal. — Presumo que o</p><p>Padre Carnesecca tenha todas as informações? O número do telefone</p><p>do fotógrafo e o número do fax em Sainte-Baume?</p><p>— Ele tem tudo, padre-geral.</p><p>Em seu evidente alívio — e tendo o sucesso por garantido, como</p><p>frequentemente fazia — o cardeal-secretário deu uma série de ordens</p><p>a Slattery.</p><p>— Quando seu homem localizar a estátua, peça para ele me ligar. Do</p><p>jeito que as coisas estão indo esta manhã, acho que ainda vou estar</p><p>aqui. Direi a Monsenhor Manuguerra que o coloque na linha. Na</p><p>verdade, quando ele enviar a fotogra�a para o Santo Padre por fax,</p><p>peça a ele para trazer o original para mim aqui. Qual é o nome do seu</p><p>homem?</p><p>— Gladstone, Eminência. Padre Christian Thomas Gladstone.</p><p>Quando seu carro chegou ao Angelicum, Carnesecca subiu os gastos</p><p>degraus de mármore branco do Priorado. Lá dentro, na central, o</p><p>porteiro estava ocupado ao telefone, fofocando com a namorada, pelo</p><p>jeito. Depois de alguns minutos de atraso excruciante e várias</p><p>tentativas de administrar a situação educadamente, o Padre</p><p>Carnesecca, normalmente manso e nada mandão, escolheu uma</p><p>abordagem mais direta: estendeu a mão e habilmente desligou a</p><p>ligação do jovem.</p><p>— Estou aqui para tratar de assuntos relacionados ao Papa. Fui</p><p>enviado pelo Mestre-geral Slattery; e pelo cardeal secretário de</p><p>Estado, o Reverendo Cardeal Monsenhor Cosimo Maestroianni. Aqui</p><p>está a minha identi�cação. Ligue para este número para veri�car. Mas</p><p>então considere-se a nosso dispor até o �m do dia.</p><p>O porteiro estava atordoado demais para �car bravo pelo corte na</p><p>ligação.</p><p>— Sì, reverendo. O que deseja?</p><p>— Estou aqui para ver o Padre Christian Gladstone. Onde posso</p><p>encontrá-lo?</p><p>— Sinto muito, padre — o pobre sujeito estava pálido. — Não posso</p><p>ligar para o professor. Ele está no telhado rezando. Não há telefone lá</p><p>em cima. Sinto muito, reverendo.</p><p>— Onde �ca o elevador? As feições do jovem se iluminaram, e ele</p><p>�cou de pé. Borbulhando uma torrente de “per favore” e</p><p>“s’accomodi”, ele conduziu Carnesecca até o elevador. Chegando ao</p><p>telhado, Carnesecca imediatamente avistou uma �gura alta e esguia</p><p>vestida de preto, destacada contra a paisagem da cidade. Ele</p><p>caminhava lentamente de um lado para o outro, seus lábios movendo-</p><p>se silenciosamente, sua cabeça curvada sobre seu livro de orações. A</p><p>visão de um jovem padre recitando suas orações obrigatórias era rara</p><p>hoje em dia. Carnesecca lamentou ter de se intrometer.</p><p>O clérigo parou e se virou; sentira a presença de Carnesecca. Padre</p><p>Aldo se viu escrutinado por um par de �rmes olhos azuis. O rosto</p><p>ainda parecia jovem, mas já marcado por linhas nítidas ao redor da</p><p>boca. O americano provavelmente satis�zera alguma questão em sua</p><p>própria mente, pois fechou o livro de orações e avançou com as mãos</p><p>estendidas.</p><p>— Eu sou Christian Gladstone, reverendo — disse ele, em um</p><p>italiano aceitável, com um leve sorriso nos cantos da boca.</p><p>— Carnesecca — o aperto de mão entre os dois clérigos foi �rme e</p><p>sincero. — Aldo Carnesecca, da Secretaria de Estado. Acabo de falar</p><p>com o mestre-geral no… Um largo sorriso se abriu no rosto de</p><p>Gladstone.</p><p>— No Springy’s! Bem-vindo, padre. Qualquer um que seja tanto</p><p>amigo quanto corajoso o su�ciente para interromper o mestre-geral</p><p>em uma manhã de sábado no Springy’s deve ser recebido de braços</p><p>abertos! Embora desacostumado a tamanha abertura, Carnesecca</p><p>respondeu no mesmo tom, quando começou sua breve explicação</p><p>sobre a missão que lhe fora con�ada. Mais uma vez, porém, o jovem</p><p>americano estava à frente de seu visitante. O padre-geral o informara</p><p>por telefone, explicou.</p><p>Enquanto caminhavam em direção à porta do telhado e depois</p><p>desciam no elevador, Gladstone repetiu para Carnesecca o que o</p><p>Padre Slattery lhe dissera sobre o desaparecimento da obra de Bernini</p><p>e sobre o estranho pedido do Pontí�ce ao cardeal-secretário, de que</p><p>uma fotogra�a da estátua lhe fosse enviada por fax em Baume. Ele</p><p>achava interessante, con�denciou Gladstone, que o Santo Padre</p><p>procurasse inspiração em uma estátua de Bernini — ou em qualquer</p><p>obra de arte.</p><p>— Achei que ele tinha uma inclinação mental mais mística — disse</p><p>Gladstone. — Mas eu devia ter percebido, a partir de alguns de seus</p><p>escritos, que ele tem percepções humanistas muito profundas.</p><p>Carnesecca ouviu aquela opinião sobre o Papa eslavo com algum</p><p>interesse, mas não interrompeu a exposição de Christian.</p><p>— De qualquer forma — continuou o americano —, depois que o</p><p>Mestre-geral Slattery me disse qual era o problema, veri�quei alguns</p><p>registros da casa, que ontem mesmo havia pedido a ele. Acho que</p><p>podemos atender, com bastante facilidade, ao pedido do Santo Padre</p><p>de uma foto da Noli Me Tangere. Se ligar para o fotógrafo do cardeal,</p><p>podemos partir. Assim que enviarmos a foto por fax a Sua Santidade,</p><p>parece que devo levar a original ao cardeal ou à Secretaria. Se me</p><p>perguntar, Padre Carnesecca, isso é o que acho mais estranho. O</p><p>senhor parece o homem apropriado para esse trabalho, não acha?</p><p>Ainda por cima, sendo um funcionário da Secretaria… O interesse do</p><p>cardeal por qualquer pessoa remotamente associada a Damien</p><p>Slattery não surpreendia Carnesecca. Mas este não era o momento,</p><p>nem eram essas as circunstâncias, para entrar em tais águas políticas</p><p>com seu novo conhecido. Tudo tem sua hora. Quando o caso de</p><p>Bernini fosse resolvido, talvez ele procurasse esse jovem interessante</p><p>para um momento desse tipo.</p><p>“G</p><p>Mais uma vez no andar de baixo, atento à passagem do tempo e à</p><p>necessidade do Santo Padre, Carnesecca dirigiu-se ao telefone, e</p><p>voltou-se para Gladstone:</p><p>— Onde devo dizer ao fotógrafo para nos encontrar? Onde você</p><p>encontrou a Noli Me Tangere?</p><p>— Se os registros estiverem corretos, está escondida. Pode imaginar</p><p>uma estátua de Bernini</p><p>escondida seja onde for, padre? Está em uma</p><p>capela no porão da nossa sede, o Mosteiro de Santa Sabina no</p><p>Aventino.</p><p>V</p><p>ladstone. Christian Thomas”. O secretário, Cardeal</p><p>Maestroianni, leu o título do arquivo à sua frente. Graças à sua</p><p>determinação pro�ssional e ao seu poder de concentração, Sua</p><p>Eminência salvara, a�nal, a sua ocupada agenda de sábado.</p><p>Ele não gostava de falar com o Mestre-geral Damien Slattery. O uso</p><p>de “nós” pelo dominicano, quando conversava, era particularmente</p><p>irritante. Mesmo assim, o sacrifício de uma conversa com o chefe dos</p><p>dominicanos pelo menos resolvera o assunto. Esse jovem protegido</p><p>dele, esse Padre Gladstone, cumprira a palavra do mestre-geral. Ele</p><p>havia telefonado rapidamente, para dizer que a estátua de Bernini</p><p>havia sido localizada e que ele e Carnesecca estavam a caminho para</p><p>conseguir a fotogra�a e enviá-la por fax para Baume. Salvo</p><p>complicações, o cardeal esperava que Gladstone lhe trouxesse o</p><p>original aqui na Secretaria, em menos de uma hora.</p><p>Garantido o sucesso dessa missão, a determinação de Maestroianni</p><p>de não atrasar sua carta tão importante sobre a unidade da Igreja</p><p>prevaleceu. O rascunho �nal da carta estava seguro em suas mãos</p><p>para uma revisão �nal. Depois de falar com o jovem clérigo</p><p>americano, o que não exigiria mais do que alguns minutos, ele</p><p>precisaria fazer um telefonema sobre o assunto da unidade. Por �m,</p><p>poderia voltar para a sua residência.</p><p>O interesse de Maestroianni por Christian Gladstone era</p><p>essencialmente pro forma, mas não casual. O cardeal mantinha um</p><p>certo interesse pelos aspirantes mais jovens dentro da estrutura</p><p>eclesiástica. A�nal, eles faziam a maior parte do trabalho; e</p><p>inevitavelmente os seus nomes surgiam para uma possível nomeação.</p><p>Como parte da própria burocracia do Vaticano nos últimos cinquenta</p><p>anos, o cardeal-secretário sabia como �car de olho no contingente</p><p>promissor, assim como sabia escrutinar tanto seus iguais quanto seus</p><p>superiores dentro do sistema. Dessa forma, enquanto ainda estava</p><p>terminando seu trabalho com Chin, ele fez com que Taco Manuguerra</p><p>obtivesse, nos registros de pessoal, o arquivo do padre-professor</p><p>americano.</p><p>“Gladstone. Christian Thomas”. O cardeal repetiu o nome para si</p><p>mesmo ao abrir o dossiê. Outro anglosassone com que lidar, para mal</p><p>de seus pecados. Com um olhar rápido e experiente, Sua Eminência</p><p>veri�cou os papéis que traçavam um per�l da carreira do clérigo</p><p>americano.</p><p>Trinta e nove anos. Doze anos em sua carreira eclesiástica, se</p><p>incluídos os seus anos de estudo. Trabalho universitário inicial feito</p><p>na Europa. Estudou para o sacerdócio no Seminário de Navarra, na</p><p>Espanha. Graus conquistados com honras em teologia e �loso�a.</p><p>Ordenado em 24 de março de 1984. Eclesiasticamente falando, o lar</p><p>do Padre Gladstone era a Diocese de Nova Orleans, sob a jurisdição</p><p>do Cardeal Arcebispo John Jay O’Cleary. Durante a segunda metade</p><p>do ano acadêmico, atuava principalmente como professor titular de</p><p>teologia no Seminário Maior de Nova Orleans.</p><p>Assim como Slattery havia dito esta manhã, atualmente ele passava a</p><p>outra metade do ano em Roma, ensinando no Angelicum, enquanto</p><p>trabalhava em seu doutorado em teologia. Embora Gladstone não</p><p>fosse dominicano, parecia que o próprio Padre-geral Slattery dirigira</p><p>o trabalho em sua tese de doutorado. Não admira que Maestroianni</p><p>tenha lido com acidez a anotação que indicava que a cadeira de</p><p>Gladstone no Angelicum lhe fora dotada com o dinheiro de sua</p><p>família. Slattery nunca perdia um truque.</p><p>Ao todo, as informações no arquivo de Gladstone, incluindo uma</p><p>carta de recomendação elogiosa do próprio Cardeal O’Cleary,</p><p>constituíam um currículo imaculado como padre e teólogo. No</p><p>entanto, um rescrito papal especial do atual Pontí�ce marcou uma</p><p>ruga na testa do cardeal. Com a mesma data da ordenação de</p><p>Christian Gladstone, 24 de março de 1984, ele permitia ao padre</p><p>rezar a ancestral Missa tridentina. Uma nota do cardeal prefeito do</p><p>Banco do Vaticano esclarecia que este privilégio de Gladstone era</p><p>resultado da insistência de sua mãe, que a isso condicionara seu</p><p>investimento de cerca de cinco milhões de dólares capazes de resgatar</p><p>uma empresa francesa em di�culdades, cujo principal acionista era o</p><p>mesmo Banco do Vaticano.</p><p>Não havia nada incomum em tal arranjo. O próprio Maestroianni</p><p>poderia recitar uma série de compensações semelhantes e ainda mais</p><p>caras do Vaticano.</p><p>No entanto, a preferência de qualquer padre pelo formato</p><p>tradicional e desgastado da Missa romana era problemática para Sua</p><p>Eminência. No mínimo — admitindo-se inocência política — era sinal</p><p>de um certo atraso; uma incompreensão quanto ao caráter negativo e</p><p>divisivo da velha Igreja Romana e seus maneirismos elitistas. Dado o</p><p>per�l inócuo que emergia dos documentos de seu arquivo, o cardeal</p><p>supôs que a preferência de Gladstone pela Missa antiga não passava</p><p>de um pouco de bagagem pessoal deixada por seus dias no Seminário</p><p>de Navarra.</p><p>“Semplice”, observou o cardeal consigo mesmo. “O homem é um</p><p>inocente. Não é político. Não está comprometido com o carreirismo.</p><p>Não se inscreveu em nenhuma das facções em Roma ou na América.</p><p>É um operário, um plebeu”.</p><p>Ainda assim, não faria mal gastar mais alguns minutos em uma</p><p>rápida veri�cação dos dados da família do sujeito. Muitas vezes, as</p><p>conexões dizem mais sobre a utilidade de um homem do que seu</p><p>próprio histórico. A residência da família, ao que parecia, era um</p><p>lugar em Galveston, Texas, chamado Casa Windswept, “a casa</p><p>varrida pelos ventos”. Um toque romântico, esse; como algo saído de</p><p>um desses romances ingleses que os americanos tanto amam. Pai:</p><p>falecido. Mãe: Signora Francesca Gladstone. Os dados após o nome</p><p>eram sobressalentes. Mas o que havia — somado ao resgate francês de</p><p>cinco milhões de dólares e à dotação integral, feita pela boa senhora,</p><p>de uma cátedra no Angelicum — tinha o cheiro forte de fortuna.</p><p>Dinheiro antigo e ainda forte. Uma irmã: Patricia Gladstone. Nada de</p><p>importante aí. Solteira. Uma artista algo notável, aparentemente, que</p><p>morava em Galveston, na casa da família.</p><p>Um irmão, Paul Thomas Gladstone, era mais interessante para</p><p>Maestroianni. Ele também havia feito alguns trabalhos no seminário,</p><p>mas aparentemente havia mudado para Harvard. Sua residência</p><p>principal agora era em Londres. Paul era considerado um especialista</p><p>em relações internacionais e atualmente trabalhava no prestigioso</p><p>escritório de advocacia multinacional de Crowther, Benthoek, Gish,</p><p>Jen & Ekeus.</p><p>Que feliz coincidência. A �rma de Cyrus Benthoek.</p><p>Durante anos, Maestroianni considerara Cyrus Benthoek um</p><p>associado particularmente valioso em seus esforços para colocar sua</p><p>Igreja na vanguarda da Nova Ordem Mundial. Na verdade, como seu</p><p>trabalho naquela mesma tarde exigia um telefonema para Benthoek,</p><p>ele apenas precisaria de uma anotação em seu diário para perguntar</p><p>sobre Paul Thomas Gladstone. Era apenas um detalhe, mas não lhe</p><p>custaria nada ser minucioso. Como o Cardeal Vincennes costumava</p><p>dizer, os detalhes importam.</p><p>Voltando para o dossiê, Maestroianni examinou rapidamente os</p><p>poucos documentos restantes. Sua meticulosidade foi recompensada</p><p>pelo mais interessante de todos os dados. Os Gladstone, ao que</p><p>parecia, eram classi�cados no Vaticano como privilegiati di Stato.</p><p>Havia, em outras palavras, um “Cartão Gladstone” permanente no</p><p>próprio arquivo da Secretaria de pessoas importantes do Vaticano; e a</p><p>família Gladstone tinha um arquivo só para si nos arquivos o�ciais da</p><p>Secretaria.</p><p>Compreensivelmente, havia poucos detalhes anotados no arquivo</p><p>pessoal de Christian Gladstone. Mas o signi�cado prático de ser</p><p>privilegiati di Stato era bastante claro para alguém tão experiente</p><p>quanto o cardeal secretário de Estado. Em termos gerais, o</p><p>envolvimento da família Gladstone nas �nanças da Santa Sé</p><p>signi�cava que a Santa Sé, por sua vez, prestava todos os serviços</p><p>�nanceiros que podia aos Gladstone. O chefe titular da família,</p><p>portanto, estava sem dúvida entre os poucos — não mais do que</p><p>cinquenta ou sessenta no total, provavelmente — a gozarem de</p><p>facilidades no banco interno do Vaticano, estabelecido</p><p>de longa data e confessor</p><p>favorito.</p><p>— O marxismo ainda é o inimigo, padre. Porém, os anglo-saxões</p><p>têm a iniciativa. — Na boca deste Papa, anglo-saxão signi�cava o</p><p>establishment anglo-americano. — A Europa deles vai crescer, e</p><p>rapidamente. Mas o grande dia da Europa ainda não amanheceu.</p><p>O jesuíta não conseguiu acompanhar a visão papal.</p><p>— Qual Europa, Santidade? O grande dia para a Europa de quem?</p><p>— Para a Europa nascida hoje — respondeu o Papa, sem hesitação.</p><p>— No dia em que esta Santa Sé for atrelada à nova Europa dos</p><p>diplomatas e políticos, à Europa centrada em Bruxelas e Paris… Nesse</p><p>dia, os infortúnios da Igreja começarão para valer.</p><p>E, virando-se novamente para observar as limusines que partiam da</p><p>Praça de São Pedro, acrescentou:</p><p>— A nova Europa terá seu pequeno dia, padre. Mas não mais que</p><p>um dia.</p><p>1960</p><p>N unca estivera em jogo um empreendimento tão promissor, nem trat</p><p>o Papa de assunto tão importante com seus conselheiros, como</p><p>a questão da súmula papal naquela manhã de fevereiro de</p><p>1960. Desde o dia de sua eleição para o papado, pouco mais de um</p><p>ano antes, Sua Santidade João ����� — João, o Papa Bom, como</p><p>rapidamente passou a ser chamado — havia movido a Santa Sé, o</p><p>governo papal e a maior parte do mundo diplomático e religioso</p><p>externo para uma nova órbita. Agora ele também queria,</p><p>aparentemente, levantar o mundo.</p><p>Já com 77 anos de idade na época de sua eleição, esse camponês</p><p>rechonchudo havia sido escolhido como Papa interino para um</p><p>inofensivo e breve mandato que serviria para ganhar tempo — quatro</p><p>ou cinco anos, calculava-se — até encontrar um sucessor adequado</p><p>para guiar a Igreja durante a Guerra Fria. Mas, poucos meses depois</p><p>de sua entronização e para espanto de todos, ele abriu o Vaticano com</p><p>uma surpreendente convocação para um concílio ecumênico. Na</p><p>verdade, a maioria dos funcionários do Vaticano — incluindo todos</p><p>os conselheiros que haviam sido convocados para esta reunião</p><p>con�dencial nos aposentos papais, no quarto andar do Palácio</p><p>Apostólico — já estavam profundamente envolvidos nos preparativos</p><p>daquele concílio.</p><p>Com uma franqueza que lhe era natural, o Papa compartilhou sua</p><p>opinião com o punhado de homens que ele havia reunido para esse</p><p>propósito: aproximadamente uma dúzia de importantes cardeais,</p><p>além de vários bispos e monsenhores da Secretaria de Estado.</p><p>Também estavam presentes dois excelentes tradutores portugueses.</p><p>— Temos uma escolha a fazer — con�denciou Sua Santidade aos</p><p>conselheiros. — E preferimos não fazê-la sozinhos.</p><p>A questão, disse ele, girava em torno de uma carta, já famosa em</p><p>todo o mundo, recebida por seu predecessor no Trono de Pedro. A</p><p>história em torno daquela carta era tão conhecida, disse ainda, que</p><p>para a conversa naquela manhã bastava-lhes um simples esboço.</p><p>Fátima, outrora uma das aldeias mais obscuras de Portugal, tornara-</p><p>se repentinamente famosa em 1917 como o lugar onde três crianças</p><p>camponesas, duasmeninaseummenino, receberamseisvisitas, ouvisões,</p><p>da Bem-Aventurada Virgem Maria. Juntamente com muitos milhões</p><p>de católicos, todos na sala sabiam que as crianças de Fátima haviam</p><p>recebido três segredos da Virgem. Todos sabiam que, como previra a</p><p>visitante do Céu, duas das crianças haviam morrido na infância;</p><p>apenas a mais velha, Lúcia, havia sobrevivido. Todos sabiam que</p><p>Lúcia, agora uma freira enclausurada, há muito revelara os dois</p><p>primeiros segredos de Fátima. Mas era desejo da Virgem, disse Lúcia,</p><p>que o terceiro segredo fosse publicado pelo “Papa reinante em 1960”</p><p>e que, simultaneamente, o mesmo Papa organizasse uma consagração</p><p>mundial da “Rússia” à Virgem Maria. Essa consagração deveria ser</p><p>realizada por todos os bispos do mundo no mesmo dia, cada um em</p><p>sua própria diocese, usando as mesmas palavras. Tal consagração</p><p>seria equivalente a um ato mundial de condenação pública da União</p><p>Soviética.</p><p>A Virgem havia prometido que se a consagração fosse feita, dissera</p><p>Lúcia, a “Rússia” se converteria e deixaria de ser uma ameaça.</p><p>Porém, se o seu desejo não fosse cumprido “pelo Papa reinante em</p><p>1960”, então “a Rússia espalharia os seus erros por todas as nações”,</p><p>haveria muito sofrimento e destruição e a fé da Igreja estaria tão</p><p>corrompida que só em Portugal “o dogma da fé” seria preservado</p><p>intacto.</p><p>Durante a sua terceira aparição em Fátima, em julho de 1917, a</p><p>Virgem prometera selar o seu mandato com uma prova tangível de</p><p>sua autenticidade como mensagem divina. No dia 13 de outubro ao</p><p>meio-dia, ela faria um milagre. E exatamente naquele dia e naquela</p><p>hora, em presença de 75 mil pessoas, algumas vindas de muito longe,</p><p>inclusive jornalistas e fotógrafos, cientistas e céticos, bem como</p><p>numerosos clérigos de con�ança, as crianças testemunharam um</p><p>milagre surpreendente.</p><p>O Sol violara todas as leis naturais possíveis. Rompendo uma chuva</p><p>forte e implacável que encharcara a todos e transformara o chão</p><p>daquele lugar remoto em um lamaçal, ele havia literalmente dançado</p><p>nos céus. Havia se derramado numa inundação irisada e</p><p>brilhantemente colorida. Havia despencado até parecer que iria cair</p><p>sobre a multidão. Então, repentinamente, recuara para a sua posição</p><p>normal e brilhara com a mesma benignidade de sempre. Todos</p><p>estavam atordoados. Suas roupas estavam tão imaculadas como se</p><p>tivessem acabado de ser lavadas e passadas. Todos saíram totalmente</p><p>ilesos. Todos tinham visto o balé do Sol; mas apenas as crianças</p><p>tinham visto a Virgem.</p><p>— Certamente — disse o bom Papa João antes de tirar um envelope</p><p>de uma caixa, semelhante em tamanho a de um umidor, que estava</p><p>sobre a mesa ao lado dele —, deve ser óbvio qual é a primeira coisa a</p><p>ser feita nesta manhã.</p><p>Espalhou-se uma excitação entre os seus conselheiros. Haviam sido</p><p>chamados, então, para uma leitura privada da carta secreta de Lúcia.</p><p>Não é exagero dizer que dezenas de milhões de pessoas em todos os</p><p>lugares esperavam a notícia de que “o Papa de 1960” revelaria as</p><p>partes do terceiro segredo que haviam sido tão bem guardadas até</p><p>agora e obedeceria ao mandado da Virgem. Com esse pensamento em</p><p>mente, Sua Santidade enfatizou que, de fato, ao dizer “privada” ele</p><p>falava sério. Certi�cado da clareza de sua advertência de sigilo, o</p><p>Santo Padre entregou a carta de Fátima aos dois tradutores</p><p>portugueses; e eles, por sua vez, traduziram o texto secreto para o</p><p>italiano, de viva voz.</p><p>Terminada a leitura, o Papa indicou rapidamente a escolha que</p><p>preferia não fazer sozinho:</p><p>— Pois bem. Devemos confessar que, desde agosto de 1959, estamos</p><p>em negociações delicadas com a União Soviética. Nosso objetivo é que</p><p>pelo menos dois prelados da Igreja Ortodoxa da ���� compareçam ao</p><p>nosso concílio.</p><p>O Papa João frequentemente se referia ao vindouro Concílio</p><p>Vaticano ��</p><p>como “nosso concílio”.</p><p>O que ele deveria fazer, então? Era isso que Sua Santidade</p><p>perguntava aquela manhã. A Providência quis que ele fosse “o Papa</p><p>de 1960”. E, no entanto, se ele obedecesse ao que a Irmã Lúcia</p><p>claramente dissera ter sido mandado pela Rainha do Céu — se ele e</p><p>seus bispos declarassem pública, o�cial e universalmente que a</p><p>“Rússia” estava cheia de erros funestos — isso signi�caria a ruína de</p><p>sua iniciativa soviética. Mas, além disso, além de seu desejo fervoroso</p><p>de ter a Igreja Ortodoxa representada no concílio, se o Pontí�ce</p><p>usasse toda a autoridade de seu papado e sua hierarquia para cumprir</p><p>a ordem da Virgem, isso equivaleria a apontar a União Soviética e o</p><p>seu atual ditador marxista, Nikita Khrushchev, como criminoso. Em</p><p>sua fúria, os soviéticos não iriam retaliar? O Papa não seria</p><p>responsável por uma nova onda de perseguições, pelo horror de um</p><p>massacre de milhões de pessoas em toda a União Soviética, seus</p><p>Estados satélites e aliados? Para enfatizar o que o preocupava, Sua</p><p>Santidade mandou ler novamente uma parte da carta de Fátima. Ele</p><p>viu compreensão — e em alguns casos, choque — em todos os rostos</p><p>ao seu redor. Se todos nesta sala tinham entendido com tanta</p><p>facilidade aquela passagem-chave do terceiro segredo, perguntou-se</p><p>ele, os soviéticos não seriam igualmente rápidos? Não tirariam disso a</p><p>informação estratégica que lhes daria uma</p><p>pela Santa Sé</p><p>na década de 1940. E estava entre os poucos que podiam, por motivos</p><p>especiais, obter um passaporte da Santa Sé.</p><p>Maestroianni fechou o dossiê e se levantou da cadeira. Olhando para</p><p>nada em particular sobre a Praça de São Pedro, ele re�etiu sobre</p><p>Christian Gladstone com um interesse que não havia previsto. Ou,</p><p>para ser mais preciso, ele especulou sobre a contradição das</p><p>circunstâncias em torno de Christian. Por um lado, havia um irmão</p><p>que estava associado — até que ponto, ele descobriria — com o muito</p><p>vanguardista, e até mesmo visionário, Cyrus Benthoek. Por outro</p><p>lado, havia o que parecia ser uma velha e bem estabelecida família</p><p>católica que ostentava credenciais impecáveis junto à Santa Sé.</p><p>O próprio Christian Gladstone não parecia grande coisa.</p><p>Pessoalmente, ele provavelmente era herdeiro de milhões. Como</p><p>padre, parecia alguém simples. Devoto ao ponto de ser retrógrado,</p><p>com toda a probabilidade; ainda rezava a antiga Missa romana, mas</p><p>não fazia grande alarde a respeito. Talvez ele se revelasse um tipo</p><p>interessante, a�nal. Para o Cardeal Maestroianni, “interessante” era</p><p>sinônimo de “útil”. Plebeus piedosos, mas poderosamente conectados,</p><p>como esse — crus, maleáveis e inocentes como costumam ser — mais</p><p>de uma vez se haviam mostrado um material adequado para ajudar a</p><p>fortalecer as pontes entre a velha e estéril ordem das coisas e a</p><p>novidade progressista.</p><p>Não, ele concluiu; não haveria surpresas nesse jovem e monótono</p><p>sacerdote. Na melhor das hipóteses, ele seria o tipo de anglosassone</p><p>que olha você diretamente nos olhos. Seus gestos cerimoniais seriam</p><p>atos desajeitados de comportamento romano que os americanos não</p><p>trazem de berço e com os quais nunca se acostumam.</p><p>Misericordiosamente, ele não faria longos discursos, nem enfeitaria</p><p>seus comentários com referências devocionais a Deus, à Igreja ou aos</p><p>santos.</p><p>A batida suave de Taco Manuguerra na porta encerrou toda</p><p>necessidade de que o cardeal continuasse especulando.</p><p>— Padre Christian Gladstone, Eminência.</p><p>Maestroianni examinou seu visitante. Sua batina, embora feita de</p><p>tecido de boa qualidade, era tão indistinta quanto o cardeal esperava.</p><p>Mas usar batina parecia tão natural para o americano quanto para</p><p>qualquer clérigo romano. Num movimento tão automático quanto</p><p>autoritário — agudo, mas nada exagerado — Sua Eminência estendeu</p><p>a mão que trazia o anel de bispo.</p><p>— Eminência — Gladstone caiu sobre um joelho e beijou o anel de</p><p>leve. Então, levantando-se, continuou: — Perdoe a demora.</p><p>Preparamos as impressões o mais rápido que pudemos.</p><p>Com o seu melhor sorriso de an�trião, Maestroianni pegou o</p><p>envelope que o americano lhe estendeu. O italiano do jovem era</p><p>tolerável. Nada estranho em seus gestos cerimoniais, nada confuso ou</p><p>hesitante em seu uso de títulos eclesiásticos. Gladstone estava um ou</p><p>dois degraus acima das expectativas do cardeal.</p><p>— Não podemos agradecer adequadamente, reverendo.</p><p>O cardeal-secretário cedeu ao visitante um lento e deliberado aperto</p><p>de mão. Mãos fortes; nem peixe frio nem espaguete mole. Palmas</p><p>secas, nenhum sinal de nervosismo. Maestroianni deu outro sorriso a</p><p>Christian e apontou uma cadeira próxima.</p><p>— Sente-se, padre. Por favor, sente-se por um momento.</p><p>Sua Eminência sentou-se atrás de sua mesa. Ele removeu as imagens</p><p>do envelope que Padre Gladstone lhe estendera, e deu-lhes uma</p><p>olhada super�cial. Havia três fotos diferentes do Noli Me Tangere.</p><p>Quanta diligência do sujeito. Um plebeu bom e con�ável: faz o que se</p><p>lhe manda e um pouco mais.</p><p>— Presumo que já tenham sido mandadas para Sainte-Baume,</p><p>padre?</p><p>— Meia hora atrás, Vossa Eminência.</p><p>— Entendi. Tudo está bem quando termina bem, não é? — O cardeal</p><p>pôs as fotos de lado, e continuou: — Fiquei sabendo, Padre</p><p>Gladstone, que você tem um irmão que trabalha para um velho amigo</p><p>meu, Cyrus Benthoek.</p><p>— Sim, Eminência — Gladstone disse, olhando o cardeal-secretário</p><p>diretamente nos olhos, à moda anglo-saxônica. — Paul está muito</p><p>entusiasmado com seu trabalho. Ele prometeu vir a Roma para uma</p><p>visita enquanto eu ainda estiver aqui.</p><p>— Enquanto você ainda estiver aqui, padre? Você planeja nos deixar,</p><p>então?</p><p>— Nada de�nido, Eminência. Nada imediato, quero dizer. Ainda</p><p>tenho trabalho a fazer para concluir minha tese. Mas descobri que,</p><p>por natureza, não sou romano.</p><p>— Sim. Realmente.</p><p>Outra característica esperada con�rmada. E, no entanto, havia algo</p><p>diferente nesse anglosassone em particular. Algo que, a�nal, não se</p><p>encaixava no molde. Não era tanto o que Gladstone fazia ou dizia,</p><p>mas o que ele era. É verdade que nele não havia fogo mediterrâneo;</p><p>isso seria esperar demais. Mas o cardeal-secretário quase invejava a</p><p>reserva tranquila e segura desse jovem. Ele não era subserviente; no</p><p>fundo não o era. Suas maneiras iam além do comportamento</p><p>“quando em Roma” da maioria dos anglo-saxões. Ele era um sujeito</p><p>surpreendentemente polido.</p><p>— Diga-me, padre — Maestroianni passou os dedos pelas fotogra�as</p><p>novamente, mas seus olhos nunca se desviavam do rosto de Gladstone</p><p>—, onde você encontrou a Noli Me Tangere?</p><p>— Em uma capela no porão, Eminência. Na sede dos dominicanos.</p><p>— Bem — o secretário levantou-se de sua mesa —, não podemos</p><p>agradecer adequadamente. Quando seu irmão vier a Roma, eu</p><p>gostaria muito de conhecê-lo, padre.</p><p>Seguindo o cardeal, Gladstone se levantou.</p><p>— Obrigado, Eminência.</p><p>Quando Christian Gladstone fechou a porta, o cardeal murmurou</p><p>para si mesmo: “Interessante, um espécime interessante”. O homem</p><p>não tinha paixões no coração, com certeza. Não é su�cientemente</p><p>político para lidar com Roma. Ouve com bastante benignidade. Era</p><p>difícil dizer, ouvindo- o em conversa, se ele era alguém sem</p><p>imaginação ou apenas evasivo. Mais polido do que a maioria de sua</p><p>raça; até mesmo dotado de um toque surpreendente de so�sticação,</p><p>pode-se dizer. Mas polido ou não, como a maioria dos anglo-saxões,</p><p>ele podia ser manipulado.</p><p>O fato de Maestroianni ter algum interesse por Gladstone, no</p><p>entanto, era quase inteiramente devido à contradição evidente nas</p><p>indubitáveis e poderosas conexões familiares do padre. Ele vinha de</p><p>uma linhagem que ainda estava atolada no velho catolicismo papal. O</p><p>que está no sangue aparece na pele, dizem os ingleses. No entanto, o</p><p>irmão de Gladstone fora atraído pela operação de Cyrus Benthoek,</p><p>que não tinha, para a Santa Sé, qualquer utilidade discernível pelo</p><p>olho desatento. Quem diria? Talvez o Pontí�ce tenha feito a</p><p>Maestroianni um pequeno favor involuntário, a�nal, com seu pedido</p><p>de fotos da estátua de Bernini. O cardeal pegou o interfone em sua</p><p>mesa e chamou o sofredor Taco Manuguerra.</p><p>— Monsenhor, ligue para a Diocese de Nova Orleans. Quero falar</p><p>com o cardeal arcebispo.</p><p>Veri�cou-se que Sua Eminência, o Cardeal O’Cleary, estava</p><p>inacessível.</p><p>— De férias no Oeste da Irlanda, Eminência —, relatou Manuguerra.</p><p>Bem, não importa. Por ora, o cardeal-secretário já havia gastado</p><p>muito de seu precioso tempo com aquele assunto. De qualquer forma,</p><p>se houvesse algo de real interesse a ser investigado, ele sem dúvida</p><p>obteria mais informação com Cyrus Benthoek do que com o Cardeal</p><p>O’Cleary. Era melhor terminar o rascunho �nal de sua carta sobre a</p><p>unidade da Igreja.</p><p>Sua Eminência virou-se para seu telefone antiescuta e discou um</p><p>número na Bélgica. Ao ouvir na linha a voz familiar do Cardeal Pier</p><p>Svensen, o secretário se alegrou. Aqui, pelo menos, havia alguém com</p><p>quem se podia contar; um homem de julgamento inquestionável. O</p><p>Cardeal Svensen era um conhecido antigo e con�ável. Agora</p><p>aposentado de seu cargo o�cial, assim como o próprio Maestroianni</p><p>logo o seria, Svensen era ainda um líder inquestionável, especialista</p><p>em ecumenismo e no movimento carismático. E, residindo em</p><p>Bruxelas, ele ostentava alguns laços impressionantes com os escalões</p><p>mais altos da Comunidade Econômica Europeia.</p><p>Em nenhuma medida um amigo do Papa eslavo, Svensen tinha sido</p><p>totalmente contrário à eleição desse Pontí�ce. Em reuniões privadas</p><p>do Conclave, havia advertido seus colegas cardeais eleitores de que</p><p>um homem como esse eslavo não poderia resolver os duros problemas</p><p>da Igreja.</p><p>Na carta de Maestroianni, portanto, ninguém entenderia</p><p>melhor do que o cardeal belga a necessidade urgente de conduzir os</p><p>bispos com delicadeza, mas com �rmeza, a uma compreensão mais</p><p>frutífera de sua unidade episcopal com o Santo Padre.</p><p>— Na mosca, Eminência! — Svensen proclamou sua aprovação</p><p>depois de ouvir a leitura de Maestroianni de seu rascunho de carta. —</p><p>Na mosca! Verdadeiramente uma obra-prima. E sua sensibilidade em</p><p>sondar os bispos sobre a questão da unidade indiretamente, por meio</p><p>de sua equipe diplomática, pelo os núncios e outros, é genial. Certeiro</p><p>para conscientizar os bispos de sua própria capacitação pelo Espírito</p><p>Santo!</p><p>— Grazie, Eminenza — Maestroianni disse, colocando a carta da</p><p>unidade em cima da mesa. — Mas só o bom Deus sabe o que sofri,</p><p>nesta manhã, para conseguir isso.</p><p>Com apenas um leve estímulo do belga, o cardeal-secretário</p><p>produziu um relato pitoresco do urgente apelo do pontí�ce pela</p><p>localização da estátua de Bernini.</p><p>— Gottverdummelte! — Esse palavrão belga resumia o julgamento</p><p>de Svensen sobre todo o caso. Em sua opinião, era típico desse Papa</p><p>não apenas causar tamanho incômodo, como também a escolha por</p><p>uma excursão papal a Sainte-Baume. — Esse santuário não passa de</p><p>uma farsa piedosa, Eminência. Eu adoraria apresentar a nosso Santo</p><p>Padre alguns de meus associados mais próximos, eminentes</p><p>estudiosos, devo acrescentar, que têm a opinião bem-informada de</p><p>que Maria Madalena nunca pôs os pés fora da Palestina. E estaríamos</p><p>todos melhores, Eminência, se o nosso Pontí�ce nunca tivesse posto os</p><p>pés fora de Cracóvia! Meditações piedosas, mesmo de um Papa, não</p><p>resolverão os problemas da Igreja.</p><p>— Na verdade — con�denciou o cardeal-secretário, tendo</p><p>concordado plenamente —, todo o incidente com o Pontí�ce esta</p><p>manhã apenas reforçou a minha convicção pessoal de que temos</p><p>apenas duas alternativas. Ou o Papa muda de opinião e de política em</p><p>relação à sacrossanta primazia do ofício papal, ou… — O cardeal</p><p>respirou fundo e de modo teatralmente audível, e prosseguiu: — Ou</p><p>seguimos a ideia que mencionamos em conversas anteriores. A ideia</p><p>de uma mudança de pontí�ces.</p><p>Para Svensen, não havia necessidade de teatralidade.</p><p>— Absolutamente, Eminência. Ainda mais porque os nossos amigos</p><p>em Estrasburgo e aqui em Bruxelas estão �cando nervosos. Eles</p><p>sentem fortemente que as observações constantes do Papa, sua</p><p>insistência de que não pode haver uma Europa sem a fé como alicerce,</p><p>vão contra a sua profunda preocupação com a primazia da força</p><p>econômica e �nanceira como alicerce fundamental da nova Europa.</p><p>Na verdade, como tenho pensado seriamente em todo esse assunto</p><p>desde a última vez que conversamos sobre isso, gostaria de saber se</p><p>posso fazer uma pequena sugestão.</p><p>— Não se acanhe, Eminência.</p><p>— A carta que você teve a gentileza de compartilhar comigo agora</p><p>está perfeita. Dada a sua arte de redação, tenho toda a esperança de</p><p>que seu resultado será agradável para nós. Mas mesmo assim, como</p><p>capitalizar a situação? Suponha que os bispos estejam insatisfeitos</p><p>com seu relacionamento atual com a Santa Sé; e não tenho dúvidas de</p><p>que a carta de Vossa Eminência deixará clara essa insatisfação. Ainda</p><p>precisaremos trabalhar esses dados em um plano de ação concreto. O</p><p>conceito que tenho em mente é simples. Os próprios bispos se</p><p>tornarão o instrumento de que precisamos para forçar a questão com</p><p>o atual Pontí�ce. Como tenho certeza de que o senhor sabe, os bispos</p><p>europeus desejam desesperadamente fazer parte da Comunidade</p><p>Econômica. Eles entendem que, com o passar dos anos, a �� só pode</p><p>crescer e se tornar mais importante do que a política nacional. E,</p><p>como diz a nova frase popular, eles precisam ser politicamente</p><p>corretos e socialmente aceitáveis; ou pensam que precisam, o que dá</p><p>no mesmo. O que importa é que os bispos querem a sua fatia do bolo.</p><p>Eles precisam de hipotecas, assim como as grandes corporações.</p><p>Precisam de empréstimos de longo prazo e juros baixos. Precisam de</p><p>variações de zoneamento para seus projetos de construção. Suas</p><p>escolas e universidades precisam de fundos públicos. Eles precisam de</p><p>orientações sobre seus investimentos. Precisam que as autoridades</p><p>olhem para o outro lado quando os clérigos cometem seus errinhos.</p><p>— Então, Vossa Eminência? — Maestroianni olhou para o relógio.</p><p>O belga havia se destacado no decorrer da sua longa carreira por um</p><p>certo triunfalismo prolixo ao propor as suas ideias.</p><p>— Aguente mais um pouco, Eminência — continuou Svensen. —</p><p>Considere os elementos que temos trabalhando para nós. Por um</p><p>lado, com alguma orientação, os bispos terão de ver os benefícios</p><p>para a Igreja de sua cooperação com a ��, que neste momento é um</p><p>poder emergente na Europa. Todos esses pequenos favores e</p><p>considerações que os bispos exigem, a�nal, dependem da boa vontade</p><p>política dos países da ��. Por outro lado, temos o Pontí�ce. Ele é</p><p>insistente e consistente em três tópicos. Primeiro, ele insiste em suas</p><p>antidemocráticas demandas petrinas sobre a primazia da autoridade</p><p>papal. Em segundo lugar, insiste na importância do “vínculo de</p><p>união”, como o chama, entre ele e seus bispos. Ele aceitará muita</p><p>coisa antes de permitir ou admitir uma ruptura aberta com eles. E em</p><p>terceiro lugar, a nova Europa é tão preciosa aos olhos desse Papa que,</p><p>atualmente, ele mal diz um parágrafo sem se referir a ela. Ora, se</p><p>pudermos levar um passo adiante a ideia capital de Vossa Eminência</p><p>de sondar os bispos, se pudermos fazer com que os bispos europeus</p><p>realmente forjem uma mentalidade comum baseada em nosso</p><p>pensamento sobre a Europa, se pudermos aguçar sua compreensão de</p><p>como eles se bene�ciarão de uma união mais estreita com a �� e seus</p><p>objetivos, então posso prever os próprios bispos forçando uma</p><p>mudança nas atitudes da Santa Sé. De fato, este é o ponto, Eminência:</p><p>se a Santa Sé permanecer obstinada, posso ver os próprios bispos</p><p>forçando-a a qualquer mudança que julgarmos aconselhável.</p><p>A resposta inicial de Maestroianni foi cética.</p><p>— Sim, entendo o que o senhor quer dizer. Mas a “forja de uma</p><p>mentalidade comum entre os bispos”, como o senhor se expressou,</p><p>seria como fazer gatos e ratos coabitarem paci�camente. E seria uma</p><p>operação complexa, Eminência; ela exigiria uma avaliação cuidadosa</p><p>das necessidades de cada bispo, e de como cada um se posiciona em</p><p>questões cujas soluções são muito mais difíceis do que a da unidade.</p><p>— Concordo — Svensen conhecia os problemas. — Na verdade,</p><p>signi�caria mais do que avaliar a situação de cada bispo. Seria</p><p>necessário encontrar um caminho para a �� em um nível, por assim</p><p>dizer, que se ajustasse aos interesses mais práticos dos bispos. Seria</p><p>necessário um vínculo entre eles e a �� que garantisse uma certa dose</p><p>da civilizada lavagem mútua das mãos.</p><p>Maestroianni teve de sorrir à repentina delicadeza do belga.</p><p>— Interesses práticos, como excelentes hipotecas, empréstimos a</p><p>juros baixos e os outros que Vossa Eminência mencionou</p><p>anteriormente.</p><p>— Precisamente. Eu concordo com o ponto de Vossa Eminência, no</p><p>entanto. Seria uma operação complexa. E podemos não conseguir.</p><p>Nesse caso, entretanto, a�rmo que não �caríamos em uma posição</p><p>pior do que a nossa neste momento. Contudo, se conseguíssemos</p><p>realizar um milagre tão grande quanto o de forjar uma desejável</p><p>“mentalidade comum” entre os bispos, teríamos o instrumento de que</p><p>precisamos. De fato, Eminência, se sua carta evoca uma expressão de</p><p>insatisfação entre os bispos quanto à questão geral de sua unidade</p><p>com o atual Papa, então a formação de uma “mentalidade comum”</p><p>entre eles traria dentes ágeis e muito a�ados para o assunto.</p><p>Estaríamos na melhor posição possível para, de uma vez por todas,</p><p>forçar a questão com o Pontí�ce.</p><p>— Sim. Percebo — Maestroianni concordou com o ponto de vista de</p><p>Svensen. — Pode funcionar. Desde que os americanos se ajustem aos</p><p>europeus, é claro. Só pelos cento e oitenta bispos residentes, sem</p><p>contar os bispos auxiliares e todo o resto, os americanos têm um peso</p><p>considerável. E eles respondem por uma parte considerável do</p><p>dinheiro que entra no Vaticano. Sem eles, a barganha seria pouco</p><p>convincente.</p><p>— Concordo. Por mais que falte teologia, cultura e tradição aos</p><p>nossos irmãos americanos, sua in�uência �nanceira o compensa mais</p><p>que su�cientemente e, convenhamos, o status de superpotência de seus</p><p>Estados Unidos também. Diplomaticamente e geopoliticamente, eles</p><p>contam na equação geral.</p><p>— Poderia funcionar — admitiu �nalmente o cardeal secretário de</p><p>Estado. Mas ele mantinha a mesma cautela. — Deixe-me explorar</p><p>mais a ideia com alguns de nossos colegas. Talvez possamos conversar</p><p>mais nas comemorações do Memorial Anual de Robert Schuman em</p><p>Estrasburgo, no mês que vem. Pretende estar lá, Eminência?</p><p>— Vou �car esperando, meu amigo.</p><p>Quando o Cardeal Maestroianni desligou o telefone, não havia em</p><p>sua mente nenhuma frase que se parecesse com “incitar os bispos a</p><p>um motim generalizado”. Os bispos corriam pela mesma estrada,</p><p>ainda que ao seu modo briguento e desunido. Pelo contrário, parecia</p><p>apropriado que tal ideia revolucionária — um plano concreto para</p><p>transformar os bispos em um instrumento de promoção de uma nova</p><p>unidade mundial inconsútil — fosse discutida em meio às celebrações</p><p>anuais em homenagem à memória e realizações do grande Robert</p><p>Schuman.</p><p>Schuman tinha sido um dos primeiros europeus a conceber uma</p><p>Europa Ocidental unida. Já na década de 1940, de fato, como</p><p>ministro das relações exteriores da França, foi ele quem começou a</p><p>construir as primeiras pontes entre a França e a Alemanha como os</p><p>Estados-chave de qualquer unidade futura. Sua memória,</p><p>compreensivelmente, era reverenciada por muitos. Na mente de</p><p>Maestroianni, e na frase romana, Robert Schuman era classi�cado</p><p>como nada menos que um “pai fundador”.</p><p>Agora verdadeiramente absorto na poderosa ideia de Svensen de</p><p>fomentar uma “mentalidade comum” entre os bispos, o cardeal</p><p>começou a juntar seus papéis, pronto para se dirigir ao silêncio de</p><p>seus aposentos na Via Aurélia. Lá ele estaria livre para pensar e</p><p>trabalhar em paz. Nada de telefones barulhentos. Nada de entrevistas</p><p>C</p><p>inesperadas. Chega de assuntos insigni�cantes, como a piedade do</p><p>Papa e estátuas desaparecidas. Pela última vez nesse dia, Maestroianni</p><p>chamou Monsenhor Manuguerra e fez os arranjos para que sua carta</p><p>de unidade fosse despachada pela mala diplomática. Então, ao se</p><p>levantar para sair, seu olhar caiu sobre o arquivo pessoal de Christian</p><p>Gladstone. Ele tinha quase esquecido.</p><p>Devolveu o dossiê a Manuguerra.</p><p>— Devolva isso ao departamento de pessoal, monsenhor. E mais uma</p><p>coisa. Pegue o arquivo da família Gladstone nos arquivos da</p><p>Secretaria e deixe-o na minha mesa na segunda-feira de manhã.</p><p>VI</p><p>hristian Gladstone estava, ao mesmo tempo, divertido e perplexo</p><p>com a sua curiosa entrevista com o Cardeal-secretário de Estado</p><p>Maestroianni. Balançando a cabeça em uma paródia de descrença, ele</p><p>atravessou as portas da Secretaria e se expôs à forte luz do meio-dia</p><p>de Roma que agora se derramava sobre o Pátio de São Dâmaso. O</p><p>Padre Carnesecca estava parado ao lado do carro com o motorista.</p><p>— Esses romanos! — Gladstone acomodou-se no banco traseiro, ao</p><p>lado de Carnesecca. — Eu sei que o senhor trabalha na Secretaria,</p><p>reverendo</p><p>— Christian sorriu um pedido de desculpas para seu companheiro.</p><p>— Mas espero que não se ofenda por eu dizer que, depois de um</p><p>aperto de mão com Sua Eminência, vem uma tentação de contar os</p><p>dedos para ver se ainda estão no lugar.</p><p>— Não me ofendo com isso — Carnesecca respondeu calmamente.</p><p>Enquanto o carro avançava cuidadosamente em meio à multidão de</p><p>visitantes de sábado na Praça de São Pedro, um Mercedes-Benz</p><p>avançava lentamente na direção oposta, indo para a Secretaria.</p><p>— Aparentemente, reverendo, você foi o último assunto na agenda</p><p>do secretário esta manhã. Esse é o carro dele, chegando para levá-lo</p><p>para casa, sem dúvida. Sua Eminência estará inacessível, exceto à</p><p>segurança, até as sete da manhã de segunda-feira.</p><p>Christian olhou para a limusine.</p><p>— Acho que devo me sentir honrado por um personagem tão</p><p>importante do Vaticano ter atrasado sua agenda por minha causa.</p><p>Mas se o senhor quer saber a verdade, a entrevista com o cardeal-</p><p>secretário me abriu o apetite. Em vez de voltar direto para o</p><p>Angelicum, será que você gostaria de almoçar comigo? Carnesecca,</p><p>surpreso com o sorriso quase infantil no rosto de Gladstone, �cou</p><p>encantado. E ele sabia exatamente que lugar sugerir.</p><p>— Casa Maggi, é assim que se chama. Cozinha milanesa. Isso lhe</p><p>dará um pouco de descanso da opressão romana sobre nós. E de lá até</p><p>o Angelicum não é uma caminhada muito longa.</p><p>Quando os dois clérigos se acomodaram em suas cadeiras no</p><p>agradável frescor da Casa Maggi, já haviam deixado para trás as</p><p>formalidades da Roma o�cial e conversavam sobre a aventura do dia</p><p>que os reunira para ajudar o Santo Padre. O empertigado reverendo</p><p>rapidamente deu lugar ao muito mais familiar padre, e os primeiros</p><p>nomes substituíram os sobrenomes. Agora eram Aldo e Christian.</p><p>— Embora eu seja parco de recursos — Carnesecca zombou um</p><p>pouco de si mesmo —, talvez você me deixe pedir para nós dois.</p><p>Conheço bem este cardápio.</p><p>Era pouco dizer, como se viu, que ele conhecia bem o cardápio. Os</p><p>gnocchi milanesi e o aipo com rémoulade que ele pediu ao garçom</p><p>estavam entre os melhores que Christian havia provado, fosse em</p><p>Roma ou em Milão. Um outro mundo, comparados com as salsichas</p><p>de porco e chouriços do Springy, os dois concordaram. Dizendo isso,</p><p>nenhum dos dois pretendia al�netar Damien Slattery; pois como eles</p><p>rapidamente descobriram, uma das coisas que tinham em comum era</p><p>uma grande consideração pelo mestre-geral dominicano, tanto como</p><p>sacerdote quanto como homem.</p><p>Christian �cou fascinado ao conhecer uma enciclopédia viva da</p><p>tradição vaticana como Padre Aldo, e foi recompensado por seu</p><p>interesse. Carnesecca revelou-se um mestre em contar memórias dos</p><p>antigos papas e da política. Seus per�s de alguns dos visitantes mais</p><p>ilustres do Palácio Apostólico deram vida a nomes familiares aos</p><p>ouvidos de Christian, e algumas de suas anedotas de excruciantes</p><p>erros administrativos na Secretaria �zeram o jovem rir até as lágrimas.</p><p>Por seu lado, o Padre Aldo �cou igualmente fascinado ao conhecer o</p><p>passado de um jovem padre tão simpático. Ao contrário da maioria</p><p>dos americanos que conhecera, Christian estava imerso na história de</p><p>sua família. Parecia que a família de Christian, como o próprio</p><p>Carnesecca, sempre estivera envolvida na agitação da Igreja. Ou, pelo</p><p>menos, essa era a parte da história de sua família que sempre o havia</p><p>interessado mais.</p><p>— Os Gladstone originais eram ingleses — disse Christian a seu</p><p>companheiro. — Ou, para ser mais exato, normando-saxões que, por</p><p>volta de 1300, se estabeleceram na Cornualha. Eles se casaram ao</p><p>longo dos séculos com Trevelyans, com Pencanibers e com Pollocks,</p><p>mas nunca esqueceram que eram de origem normando-saxã. E, acima</p><p>de tudo, nunca esqueceram que eram católicos romanos. A Mansão</p><p>Gladstone �cava em Launceston, na Cornualha. Eles eram</p><p>proprietários hereditários de grandes fazendas, pesqueiros e minas de</p><p>estanho em Camborne. Eram católicos pré-Reforma, cuja religião era</p><p>muito in�uenciada pela tradição celta da Irlanda.</p><p>Quando chegou o século ���, os Gladstone previsivelmente se</p><p>recusaram a aceitar o rei Henrique ���� como chefe espiritual da</p><p>Igreja. Fiéis ao seu catolicismo romano e ao lema da família, No</p><p>Quarter (Sem quartel), eles mantiveram sua mansão e terras em</p><p>Launceston e suas minas de estanho em Camborne. Ajudados pela</p><p>distância entre Londres e a Cornualha e pela lealdade inabalável dos</p><p>criados da família, de seus trabalhadores e arrendatários, todos</p><p>católicos na muito católica Cornualha, eles resistiram praticamente</p><p>intactos até a segunda metade do século ����. Por causa da ferocidade</p><p>da perseguição isabelina aos católicos, a sobrevivência não fora uma</p><p>conquista fácil. Por �m, suas alternativas tornaram-se sombrias.</p><p>Podiam sentar-se em sua mansão como muitos outros velhos católicos</p><p>faziam, envoltos em taciturna nostalgia de seu passado, esperando</p><p>para serem arrastados pelos túneis até à Árvore de Tyburn, em</p><p>Londres, para serem enforcados;</p><p>ou eles poderiam fugir.</p><p>Sem quartel signi�cava que eles não aceitariam uma barganha. Mas</p><p>pretendiam viver e lutar outro dia. Então pegaram seu dinheiro e suas</p><p>armas, embarcaram em um de seus próprios navios mercantes e</p><p>navegaram para o novo mundo da América. Eles chegaram a St.</p><p>Augustine, na Flórida, em 1668. No início do século ���, os membros</p><p>da família haviam se espalhado em várias direções. Um pequeno</p><p>núcleo, liderado por Paul Thomas Gladstone, estabeleceu-se com a</p><p>primeira leva de colonos americanos na Ilha de Galveston.</p><p>Naquela época, a Ilha de Galveston era pouco mais que um banco de</p><p>areia paralelo à costa. Com escassos vinte e sete quilômetros de</p><p>comprimento e variando de um a três quilômetros de largura, protegia</p><p>a baía e o continente das águas e dos ventos do golfo mexicano. A</p><p>própria baía de Galveston, no entanto, era o atrativo. Os americanos</p><p>— Paul Thomas Gladstone entre eles — viram vastas possibilidades</p><p>para o transporte comercial. Com dezessete milhas de largura e trinta</p><p>de comprimento, alimentada por numerosas lagunas e dois rios</p><p>principais, a baía oferecia aos colonos um bom calado para navios</p><p>oceânicos. Era protegida pela Ilha de Galveston e pela Península de</p><p>Bolívar. E, como Nova Orleans e a mexicana Veracruz, dava acesso</p><p>viável ao lucrativo comércio marítimo da América Central e do Sul.</p><p>Paul Thomas Gladstone já havia investido sua parte da herança</p><p>familiar em proporções apreciáveis, se não principescas, na compra de</p><p>áreas lucrativas de vinhedos no Sul da França. Uma vez estabelecido</p><p>em Galveston, ele começou a aumentar a sua fortuna ano após ano</p><p>por meio de seu novo empreendimento de importação de vinhos. Mas</p><p>o favorito de Christian entre seus antepassados era seu avô, também</p><p>Paul Thomas.</p><p>— Velho Glad, todos o chamavam —, Christian disse ao Padre Aldo</p><p>com evidente deleite. — Na verdade, ainda o chamam. Ainda hoje, ele</p><p>é uma lenda em Galveston. Ele mantinha um diário, tinha verdadeiro</p><p>talento para isso. Em dias de tempestade, quando éramos crianças na</p><p>Casa Windswept, eu costumava passar horas em nossa biblioteca com</p><p>minha irmã e meu irmão, que também se chama Paul Thomas, e</p><p>líamos esses diários em voz alta um para os outros.</p><p>— Casa Windswept? — perguntou Carnesecca, muito deleitado com</p><p>esse pequeno passeio descontraído pela história anglo-americana.</p><p>Christian riu.</p><p>— Esse é o nome da casa que o Velho Glad construiu. Eu diria que é</p><p>mais um castelo do que uma casa, construído bem no coração da Ilha</p><p>de Galveston. É mesmo um edifício bem grande e antigo… Seis</p><p>andares de altura. Retratos de família em todos os lugares. Temos até</p><p>uma réplica do grande salão original da Mansão Launceston e uma</p><p>sala de jantar com vigamentos. E há uma torre circular no alto de</p><p>tudo, com uma maravilhosa capela onde o Santíssimo Sacramento</p><p>está guardado. Pode-se dizer que seja a nova Mansão Gladstone. Todo</p><p>mundo diz que Casa Windswept, “a casa varrida pelos ventos”, é um</p><p>nome romântico. Mas não era para ser romântico. Tem um</p><p>signi�cado muito diferente, que vem de uma época pouco romântica</p><p>da Roma papal.</p><p>Os diários de seu ancestral favorito, que sempre fascinaram</p><p>Christian mais do que todos os outros, cobriam os anos de 1870 em</p><p>diante. Naquele ano, o Velho Glad tinha trinta e sete, era solteiro e se</p><p>havia tornado multimilionário. Ele menciona em suas anotações</p><p>como, no mesmo ano, o Vigário de Cristo na Terra, o Papa Pio ��,</p><p>tinha sido privado de todas as suas propriedades italianas e</p><p>efetivamente trancado no Palácio Apostólico do Vaticano pelos</p><p>nacionalistas italianos, liderados por Garibaldi e pelo Conde Cavour.</p><p>Essa notícia chocante e a notícia de um apelo internacional para</p><p>oferecer apoio �nanceiro a um papado subitamente isolado e</p><p>empobrecido chegaram a Galveston em 1871. Imediatamente, Paul</p><p>Gladstone levantou cartas de crédito no valor de um milhão de</p><p>dólares dos Estados Unidos, obteve uma carta pessoal de apresentação</p><p>do Arcebispo de Nova Orleans e partiu para Roma, onde chegou no</p><p>domingo de Páscoa de 1872.</p><p>— Gostaria que você pudesse ler o relato do Velho Glad sobre</p><p>aquela época — os olhos de Christian brilharam com a mesma</p><p>empolgação que deve ter sentido quando, ainda menino, leu aqueles</p><p>diários pela primeira vez. — Eles são maravilhosos; repleto de</p><p>detalhes e entusiasmo resoluto.</p><p>Dizer que o Velho Glad foi bem recebido no Vaticano de Pio �� seria</p><p>muito pouco. O Papa fez de seu salvador americano um Cavaleiro do</p><p>Santo Sepulcro, conferiu a ele e a sua família o direito perpétuo a uma</p><p>capela privada em sua casa, com o Santíssimo Sacramento guardado</p><p>nela, e deu-lhe uma relíquia de primeira classe da Verdadeira Cruz</p><p>para a pedra d’ara da capela. Pio também estabeleceu um vínculo</p><p>perpétuo entre o papado e o chefe da família Gladstone, quem quer</p><p>que o fosse no futuro. Daí em diante, sempre haveria um “Cartão</p><p>Gladstone” no arquivo de pessoas importantes na Secretaria do</p><p>Vaticano. Os Gladstone seriam descritos breve e perpetuamente como</p><p>privilegiati di Stato, prestando livremente quaisquer serviços</p><p>�nanceiros que pudessem à Santa Sé e recebendo as facilidades que a</p><p>Santa Sé pudesse fornecer em troca.</p><p>O Papa concedeu a Paul Thomas duas longas audiências privadas e</p><p>uma visita guiada por ele mesmo, que incluiu uma das salas mais</p><p>privadas e curiosas do Vaticano. A Torre dos Ventos, era chamada; ou</p><p>a Sala do Meridiano. Fora construída por um Papa no século ���, no</p><p>meio dos jardins do Vaticano, como um observatório astronômico.</p><p>Na segunda metade do século ���, o observatório foi transferido para</p><p>outro lugar. Durante os distúrbios em Roma na década de 1870, o</p><p>Pontí�ce manteve ali, por razões de segurança, o Santíssimo</p><p>Sacramento.</p><p>O relato do Velho Glad sobre aquele lugar estava entre os registros</p><p>mais vívidos de seus diários. Ele descrevia as paredes com afrescos, o</p><p>relógio solar no chão, o cata-vento, o telhado cônico, o sussurro</p><p>constante dos oito ventos. O lugar parecia-lhe um símbolo do tempo e</p><p>da eternidade; pois Deus estava lá, presente no Sacramento. Mas</p><p>também afetava sua imaginação como uma lembrança de um tempo</p><p>fugidio. Pois, assim como a torre era varrida por seus ventos</p><p>constantes e sussurrantes, a Igreja também estava sendo varrida</p><p>naqueles dias pelos fortes ventos da perseguição e da inimizade.</p><p>Ali mesmo, com o Santo Padre ao seu lado, o Velho Glad decidiu</p><p>construir a sua capela privilegiada, onde o Santíssimo Sacramento</p><p>seria guardado para sempre, como uma réplica daquela mesma torre.</p><p>E construiria uma casa adequada, encimada por essa capela, para que</p><p>todos em Galveston pudessem olhá-la e saber que Deus estava com</p><p>eles. Sua capela seria a Torre dos Ventos de Galveston. E sua casa</p><p>seria a Casa Windswept.</p><p>Carnesecca, que acompanhava a história de Christian com interesse</p><p>crescente, comentou:</p><p>— Então a Casa Windswept sempre foi um vínculo para você; um</p><p>vínculo com Roma. Com o Vaticano. Com o papado.</p><p>— Com tudo isso — Christian assentiu. — E com o Velho Glad</p><p>também. Sempre que vou para casa, para a Casa Windswept, rezo a</p><p>Missa naquela réplica que ele construiu da Torre dos Ventos.</p><p>Em seu testamento, Paul Thomas ordenara que se mantivesse uma</p><p>lâmpada vermelha acesa dia e noite na janela da capela que dava para</p><p>o noroeste, em direção ao território continental do Texas. Atualmente,</p><p>aquela luz de vigília estava acesa há mais de cem anos, e os texanos</p><p>que viviam tão a oeste quanto em Victoria e tão ao norte quanto</p><p>Orange juravam que podiam vê-la piscando nas noites abertas.</p><p>— O Olho de Glad: assim eles chamavam aquela luz — Christian</p><p>ergueu sua taça de espumante em um leve gesto de carinho e</p><p>homenagem.</p><p>— E ainda hoje, ela é chamada assim: o Olho de Glad.</p><p>Essa também não era a única tradição local que havia crescido em</p><p>torno da Capela da Torre em Windswept. O Velho Glad havia</p><p>colocado, na parede que dava para o mar, um vitral importado da</p><p>Itália. Com quase três metros de altura, representava Cristo</p><p>acalmando as marés furiosas do Lago da Galiléia, pisando,</p><p>milagrosamente, as ondulantes montanhas das águas varridas pela</p><p>tempestade, em seu caminho até o barco cheio de discípulos</p><p>aterrorizados. Desde o dia em que o Velho Glad morreu, os</p><p>pescadores de Galveston contavam como às vezes viam a �gura</p><p>fantasmagórica do velho atrás daquela janela, ainda que fosse um</p><p>vitral, dando-lhes o necessário apoio nas noites de tempestade.</p><p>O Padre Carnesecca arriscou um palpite lógico e preciso.</p><p>— E, imagino, dando também à sua família o apoio necessário,</p><p>Padre Christian.</p><p>Criado e educado como havia sido na Igreja Católica Romana que se</p><p>des�zera em pó durante o Concílio Vaticano �� do “Papa Bom”,</p><p>Christian reconhecia que a sua vantagem para sobreviver como</p><p>católico romano fora assegurada principalmente por duas condições,</p><p>que ele e a sua família deviam à providencial perspicácia do Velho</p><p>Glad: a fortuna e o catolicismo papal dos Gladstone.</p><p>Os alicerces �nanceiros da família, construídos pelo velho Paul</p><p>Thomas, tinham uma força de tão grandes proporções que poucos,</p><p>dentro ou fora da Igreja, optariam por ignorar os Gladstone. A</p><p>fortuna da família continuava a crescer como cresce o dinheiro antigo:</p><p>constantemente.</p><p>Da mesma forma, porém, a vantagem de Christian como católico</p><p>romano havia sido garantida pela determinação de sua mãe, Cessi.</p><p>Seu nome de batismo, herdado da esposa do Velho Glad, era</p><p>Francesca. Mas, assim como sua fortuna �nanceira, o caráter de Cessi</p><p>vinha direto do próprio Paul Thomas. Na verdade, ela era tão</p><p>Gladstone que, depois de ter �cado prematuramente viúva, voltara a</p><p>usar o nome de sua família para ela e seus �lhos.</p><p>— Ela é católica romana da cabeça aos pés — o tom caloroso de</p><p>Christian tornava óbvia a sua afeição por Cessi. — É por causa dela</p><p>que hoje acredito nas mesmas verdades e pratico a mesma religião que</p><p>aprendi com ela. Enquanto os três �lhos de Cessi cresciam, a Igreja,</p><p>em todas as dioceses dos Estados Unidos, se afogava no que ela</p><p>chamava de “adaptações inovadoras”.</p><p>Mudanças apareciam por atacado, como espécimes híbridas</p><p>cultivadas por “peritos litúrgicos” e “mestres de catequese”. Em tais</p><p>circunstâncias, e enquanto foi possível, em face dos requisitos</p><p>altamente tecnológicos da educação moderna, Cessi educara os �lhos</p><p>em casa. Quando essa opção se tornou inviável, ela garantiu que os</p><p>frades da escola para onde mandou os dois meninos e as freiras da</p><p>escola para onde mandou a irmã deles, Tricia, entendessem que opor-</p><p>se aos desejos ou criticar abertamente Francesca Gladstone colocaria</p><p>em risco o forte patrocínio oferecido por ela e do qual dependiam.</p><p>Quando se tratava de prática e formação religiosas, era praticamente</p><p>a mesma história. Aulas particulares de religião tomaram o lugar dos</p><p>expurgados “encontros de catequese” oferecidos nas igrejas da cidade.</p><p>Sempre que possível, a família evitava as igrejas locais, que Cessi via</p><p>como contaminadas por ritos não católicos. Em vez disso, eles</p><p>assistiam a Missas privadas na Torre dos Ventos do Velho Glad.</p><p>Por volta de 1970, porém, os padres tradicionalistas, padres em</p><p>quem Cessi, como ela costumava dizer, podia con�ar para celebrar</p><p>uma Missa romana válida e autêntica, estavam se tornando cada vez</p><p>mais escassos e difíceis de encontrar. Ela �cou muito feliz, então,</p><p>quando um grupo de cerca de sessenta famílias católicas romanas de</p><p>Galveston e do continente se aproximou dela com a ideia de formar</p><p>uma nova congregação. Com o apoio �nanceiro de Cessi e suas</p><p>próprias contribuições, e com os perpétuos privilégios dos Gladstone</p><p>em Roma, a ideia era que eles pudessem se estabelecer como</p><p>econômica e canonicamente independentes da diocese local. A questão</p><p>foi decidida na hora. Uma velha capela foi encontrada em Danbury e</p><p>comprada de seus proprietários originais, metodistas. Chamaram-na</p><p>Capela de São Miguel Arcanjo. E como não podiam esperar dos</p><p>padres diocesanos ou do bispo que oferecessem uma Missa válida,</p><p>contataram o Arcebispo Marcel Lefebvre da Suíça e providenciaram</p><p>que sua capela fosse adotada pela Fraternidade Pio �. Mas nem</p><p>mesmo a organização de Lefebvre foi capaz de fornecer um padre</p><p>para a capela com regularidade.</p><p>Esse problema foi superado, no entanto, quando a recém-organizada</p><p>assembleia de Danbury encontrou o Padre Angelo Gutmacher.</p><p>— Padre Angelo — Christian meditou no nome como quem medita</p><p>numa boa memória. — Ele foi uma dádiva de Deus para todos nós,</p><p>um homem estranho e maravilhoso. Humanamente falando, está</p><p>sozinho no mundo. Quando menino, em Leipzig, foi o único membro</p><p>de sua família a sobreviver ao incêndio criminoso que uma noite</p><p>envolveu a sua casa. Ele ainda carrega, no rosto e no corpo, as</p><p>cicatrizes daquele terrível incêndio. Escapou da Alemanha Oriental</p><p>comunista e �cou sob os cuidados de parentes na Alemanha</p><p>Ocidental. Com o tempo, entrou em um seminário que ainda era bom</p><p>e saiu como a mais rara de todas as raças hoje em dia: um padre</p><p>ortodoxo sem ser in�amado. Na época em que chegou à Capela de</p><p>São Miguel em Danbury, ele havia sido notado pela organização de</p><p>Lefebvre. Ele tem esse jeito: Sem nunca pretender fazê-lo, ele chama a</p><p>atenção das pessoas.</p><p>Não demorou muito para que Gutmacher ganhasse o respeito de sua</p><p>pequena assembleia em Danbury, e o amor dela também. Sem jamais</p><p>abrir mão de sua ortodoxia, revelou-se sábio o su�ciente para �car</p><p>acima de todas as controvérsias que assolavam a Igreja. E mostrava-se</p><p>gentil o su�ciente para acalmar até os mais radicais do grupo de �éis</p><p>da cidade. Da mesma forma, ganhou o respeito e o amor de todos os</p><p>Gladstone. Era padre, confessor e amigo de todos eles. Costumava</p><p>dizer Missa na Capela da Torre da Casa Windswept. Sua mão segura</p><p>e gentil ajudou na formação dos três �lhos de Cessi. Para a própria</p><p>Cessi, ele se tornou um amigo pessoal e um conselheiro</p><p>profundamente valioso. E para Christian, tornou-se um guia e mentor</p><p>especial.</p><p>É</p><p>É claro que, em meio à dura política na Igreja após o Concílio</p><p>Vaticano ��, uma con�guração tão ostensivamente ortodoxa como a</p><p>Capela de São Miguel Arcanjo provavelmente não escaparia sem sua</p><p>cota de problemas. A Chancelaria local considerou “um escândalo</p><p>diocesano” que a principal família católica do sudoeste do Texas, na</p><p>pessoa de Francesca Gladstone, apoiasse abertamente a São Miguel e,</p><p>assim, ostentasse sua falta de con�ança nos ritos o�cialmente</p><p>aprovados pela Igreja. De fato, a diocese local apelou ao cardeal</p><p>arcebispo de Nova Orleans, para que ele ajudasse no assunto, pois os</p><p>Gladstone sempre tiveram fortes vínculos com essa diocese.</p><p>Mas quando começou a guerra entre a proprietária da Casa</p><p>Windswept e o Cardeal Arcebispo de Nova Orleans, Sua Eminência</p><p>decidiu que a atitude mais sensata seria delegar o assunto ao seu</p><p>vigário-geral. E o vigário-geral, confrontado pela brilhante e bem</p><p>fundamentada defesa de Cessi Gladstone do valor e legalidade da</p><p>Missa romana tradicional, pelo apoio �nanceiro ainda fornecido a</p><p>Sua Eminência pelos Gladstone e pelo status que os Gladstone</p><p>desfrutavam perpetuamente no Vaticano, decidiu que a atitude mais</p><p>sensata seria se retirar desse campo de batalha com toda a dignidade</p><p>que pudesse salvar. Francesca Gladstone saíra vitoriosa, e nem por um</p><p>momento intimidada pela briga.</p><p>— Por tudo isso, Padre Aldo — Christian acenou para o garçom,</p><p>pedindo a conta —, por tudo isso, confesso que, quando trato com</p><p>um homem como Sua Eminência, o Cardeal Maestroianni, costumo</p><p>me acautelar.</p><p>E foi assim, naturalmente — tão natural quanto tudo o mais entre</p><p>eles havia se tornado —, que a conversa entre Christian Gladstone e</p><p>Aldo Carnesecca voltou-se, novamente, para a Roma dos anos 1990.</p><p>Para a Roma que era pelo menos tão anticatólica e antipapal quanto a</p><p>Roma sobre a qual o Velho Glad havia escrito em seus diários.</p><p>— Francamente — Christian con�denciou quando terminaram seu</p><p>último cappuccino e partiram para o Angelicum, a passo lento. —</p><p>Não consigo me decidir sobre clérigos como Sua Eminência. E, para</p><p>dizer-lhe a verdade, acho que não quero tentar. Nele não vi nada de</p><p>sacerdotal. Nem sequer de sincero. Ele tem um jeito de falar sem dizer</p><p>nada.</p><p>Apesar da seriedade — e precisão — das observações do americano</p><p>sobre um homem tão importante para a Igreja, Carnesecca teve de</p><p>sorrir.</p><p>— Para um homem que não</p><p>consegue se decidir, você me parece mais</p><p>do que decidido, padre.</p><p>— Suponho que você esteja certo — o americano assentiu. — Quem</p><p>eu acho que estou enganando, com minha encenação de mente</p><p>aberta? Garanto-lhe que a minha pequena visita ao cardeal-secretário</p><p>foi breve. Mas a parte mais sincera dela foi o escrutínio aberto de Sua</p><p>Eminência de cada movimento meu.</p><p>Christian contou a maior parte de sua breve conversa com</p><p>Maestroianni. Ficara impressionado com o olhar desinteressado do</p><p>cardeal para as fotos de Bernini. E com o seu interesse evidente na</p><p>ligação de Christian, através de seu irmão Paul, com Cyrus Benthoek.</p><p>Na verdade, a aposta de Gladstone era que o convite de Sua</p><p>Eminência a ele tinha mais a ver com Paul do que com o próprio</p><p>Christian.</p><p>— Eu me senti como um espécime sob um microscópio. Sua</p><p>Eminência pareceu tão interessado no corte de minha batina que</p><p>quase lhe dei o nome de meu alfaiate. Ou talvez eu devesse ter</p><p>perguntado o nome do alfaiate do cardeal! Padre Aldo também �cou</p><p>curioso ao saber que o irmão de Christian trabalhava com Cyrus</p><p>Benthoek. Qualquer pessoa intimamente ligada à Santa Sé certamente</p><p>conhecia Benthoek, pelo menos pela sua reputação. E qualquer pessoa</p><p>intimamente ligada à Secretaria de Estado conhecia Cyrus Benthoek</p><p>de vista, como um visitante frequente do escritório do Cardeal</p><p>Maestroianni. Americano de nascimento, Benthoek tornara-se um</p><p>homem internacional. Suas fortes conexões entre os mais altos líderes</p><p>da Maçonaria global não eram surpresa, nem seu profundo</p><p>envolvimento pessoal no funcionamento da Comunidade Europeia,</p><p>bem como sua dedicação vitalícia ao seu tipo exclusivamente</p><p>secularista de globalismo.</p><p>Na cabeça de Aldo Carnesecca, portanto, o interesse que</p><p>Maestroianni demonstrara por Paul Gladstone era quase tão claro</p><p>quanto uma equação matemática à espera de uma resolução. O</p><p>cardeal estava sempre ampliando a sua rede; sempre pronto para</p><p>atrair peixinhos e aproveitá-los em sua causa. Se o irmão de Christian</p><p>tinha alguma importância para Cyrus Benthoek, era plausível que o</p><p>próprio Christian se dotasse de um interesse maior do que o comum</p><p>para Cosimo Maestroianni. Ainda assim, a conexão Gladstone-</p><p>Benthoek e seu interesse pelo cardeal-secretário não passavam de</p><p>especulação. E, em todo caso, a não ser violando assuntos altamente</p><p>con�denciais, não era algo que Carnesecca pudesse encontrar uma</p><p>maneira de tratar com Christian.</p><p>Se Christian percebeu a reserva de Padre Aldo nesse ponto, foi uma</p><p>coisa passageira. O jovem parecia mais interessado em sua própria</p><p>convicção crescente de que, como o Velho Glad em sua época, estava</p><p>na hora de este Gladstone voltar para sempre à sua casa, uma ideia</p><p>que ele abordou com um sorriso irônico e maroto nos lábios, como</p><p>um homem pronto para se desfazer de um investimento arriscado.</p><p>— Acho que o cardeal me identi�cou exatamente pelo que sou,</p><p>padre. Como outro nordico. Um straniero. Um estrangeiro deslocado</p><p>no palácio dos camareiros romanos. Oh, admito que a Igreja não está</p><p>indo melhor nos Estados Unidos do que aqui. Mas na América, pelo</p><p>menos, eu entendo o que está acontecendo.</p><p>Carnesecca percebeu a tristeza na voz desse jovem padre.</p><p>Impulsionado por aquela tristeza, e por sua própria convicção de que</p><p>Padre Christian era exatamente o homem do calibre necessário nesta</p><p>Roma dos anos 1990, Padre Aldo o rebateu imediatamente.</p><p>— É verdade, você ainda tem toda a sua vida pela frente. Mas você</p><p>chegou ao estágio de sua carreira em que as escolhas que �zer como</p><p>padre de�nirão o padrão para você enquanto viver. Você fala sobre</p><p>seguir os passos do Velho Glad, voltando à América. Mas, no</p><p>entendimento deste velho padre, quando o Velho Glad foi para casa,</p><p>ele estava comprometido a lutar em um dos lados de uma guerra</p><p>espiritual. Agora, a menos que eu esteja muito enganado, você está</p><p>igualmente comprometido com a mesma guerra. E a menos que eu</p><p>esteja novamente muito enganado, ambos entendemos que é no</p><p>espírito que reside a verdadeira vitória… ou a verdadeira derrota. —</p><p>E continuou: — Acho que não cometo nenhuma indiscrição ao dizer</p><p>que, em seu rápido encontro com Sua Eminência esta manhã, você</p><p>conheceu um dos líderes do que eu chamaria de lado negro dessa</p><p>guerra. E você chegou à conclusão certa. O Cardeal- secretário</p><p>Maestroianni é um maestro da mentalidade burocrática em Roma. E</p><p>essa mentalidade tem tanto a ver com a salvação das almas quanto</p><p>Mamon tem a ver com a Santíssima Trindade. Você diz que, na</p><p>América, a Igreja vai tão mal quanto aqui. Mas o verdadeiro ponto é</p><p>que as coisas estão indo mal em todas as paróquias, dioceses,</p><p>mosteiros e chancelarias de todos os bispos do mundo. A mesma</p><p>batalha está sendo travada em todos esses lugares. E a burocracia com</p><p>a qual você se deparou esta manhã tem de�nido toda a estratégia e</p><p>todas as táticas nesta guerra espiritual global. No entanto, meu jovem</p><p>amigo, pode ter certeza disto: o epicentro da batalha é em Roma.</p><p>Carnesecca tinha ido até onde a prudência permitia. Ele explicou que</p><p>o Papa eslavo não havia escolhido Cosimo Maestroianni como seu</p><p>secretário de Estado porque os dois se davam bem ou porque</p><p>compartilhavam dos mesmos objetivos políticos. Em vez disso,</p><p>Maestroianni havia sido exigido, em 1978, pelos cardeais veteranos</p><p>do Vaticano, e Sua Santidade não queria abrir novas frentes de</p><p>batalha. Suas forças já estavam empenhadas em uma frente mais</p><p>ampla e urgente naquele momento crítico.</p><p>Realisticamente, mesmo com a aposentadoria iminente de</p><p>Maestroianni, as coisas não melhorariam do ponto de vista do Santo</p><p>Padre. O homem já nomeado para substituir Maestroianni, Sua</p><p>Eminência Cardeal Giacomo Graziani, estava mais comprometido</p><p>com o avanço de sua própria carreira do que com o apoio de qualquer</p><p>lado em qualquer luta. Ele pretendia estar junto do lado vencedor,</p><p>fosse qual fosse. A sua escolha como secretário de Estado não</p><p>signi�cava uma vitória para o Pontí�ce, mas sim um cessar-fogo</p><p>temporário.</p><p>Gladstone assentiu sua compreensão. Mas ao mesmo tempo ergueu</p><p>as mãos em um gesto de frustração.</p><p>— Você tirou as palavras da minha boca, Padre Aldo. É a propensão</p><p>de Sua Santidade a estratégias assim que deixou toda a sua Igreja em</p><p>tal confusão.</p><p>Christian parou de repente. Depois continuou:</p><p>— Explique-me se puder, padre, por que o Papa eslavo aceita lidar</p><p>com tais estratégias! Talvez Sua Santidade se veja pescando em águas</p><p>mais profundas.</p><p>Mas, tenho certeza, não há água mais profunda do que a vida</p><p>espiritual, ou a morte espiritual, de milhões de �éis. Ou mesmo a vida</p><p>ou morte espiritual de um país, ou uma cidade, ou um indivíduo.</p><p>Explique-me por que esse Santo Padre simplesmente não dispensa de</p><p>nossos seminários todos os teólogos que ensinam heresias e erros</p><p>morais abertamente. Por que ele não faz nada a respeito das Missas</p><p>blasfemas, das reverendas madres que praticam bruxaria, das freiras</p><p>que abandonaram qualquer aparência de vida religiosa, dos bispos</p><p>que vivem com mulheres, dos padres declaradamente homossexuais</p><p>ministrando a congregações de homens e mulheres declaradamente</p><p>homossexuais, dos cardeais que participam de ritos satanistas, das</p><p>chamadas anulações de casamento que são, sinceramente, disfarces do</p><p>que na verdade são divórcios, das chamadas universidades católicas</p><p>que empregam pesquisadores e professores ateus e anticatólicos. Não</p><p>se pode negar que tudo isso é verdade, padre. E é impossível que meu</p><p>desconforto o surpreenda.</p><p>— Claro que é tudo verdade — Carnesecca empalideceu com o</p><p>desa�o de Christian. — E é claro que não me surpreende o seu</p><p>desconforto. Mas, dadas as condições que você mesmo vê na Igreja</p><p>que viemos servir aqui, o desconforto é um preço pequeno. Ele não se</p><p>compara a um martírio. Você se descreveu há alguns minutos como</p><p>um estrangeiro no palácio dos camareiros de Roma; eu poderia</p><p>assinar embaixo dessa declaração, Padre Christian. Assim como o</p><p>Mestre-geral Damien Slattery. E também qualquer pessoa no</p><p>Vaticano, ou em qualquer outro lugar, que ainda pertença ao apóstolo</p><p>Pedro.</p><p>E depois de uma pausa:</p><p>— Mas há um ponto maior a ter em mente. Diante da oposição</p><p>aberta,</p><p>o próprio Santo Padre não é apenas um estrangeiro, como</p><p>você se sente. Homens como o Cardeal Maestroianni e seus</p><p>associados tornaram Sua Santidade virtualmente um prisioneiro no</p><p>Vaticano, tão prisioneiro quanto foi Pio �� nos dias em que seu amado</p><p>Velho Glad esteve aqui. Só que desta vez as paredes do Palácio</p><p>Apostólico não servem de defesa; porque desta vez o cerco é feito de</p><p>dentro da própria estrutura do Vaticano.</p><p>Carnesecca se conteve para não ir longe demais. Mas isso já foi o</p><p>su�ciente para deter Christian. Ele �cou surpreso com a noção de que,</p><p>apesar de suas constantes viagens ao redor do mundo, esse Papa</p><p>eslavo fosse, de alguma forma, um prisioneiro em seu próprio</p><p>Vaticano.</p><p>No entanto, mesmo que Carnesecca estivesse certo, talvez ele tivesse</p><p>tocado o problema que preocupava Gladstone tão profundamente.</p><p>— O comportamento do Santo Padre, o tipo de decisão política que,</p><p>como você descreve, permitiu-lhe aceitar o Cardeal Maestroianni</p><p>como seu secretário de Estado… Esse tipo de coisa não ajuda muito.</p><p>Se ele é um prisioneiro no palácio como você a�rma, talvez seja</p><p>porque ele simplesmente tem concordado desde sempre. Talvez seja</p><p>porque ele permite a continuidade de tantos abusos de poder e desvios</p><p>do dever apostólico em Roma e em todas as províncias da Igreja.</p><p>Em meio às sombras que se alongavam ao �nal da tarde, Christian</p><p>parou e olhou para trás na direção da Colina do Vaticano. Carnesecca</p><p>viu as lágrimas que brilhavam nos olhos de Gladstone e percebeu que</p><p>elas deviam ter brotado ali há algum tempo.</p><p>— Não me entenda mal, Padre Aldo. Pertenço ao apóstolo Pedro e</p><p>ao seu sucessor tanto quanto você. Tanto quanto o Padre Damien ou</p><p>qualquer outro. É que há algo tão radicalmente desequilibrado em</p><p>tudo isso… Fazendo um gesto súbito, que abrangia toda Roma,</p><p>Christian continuou:</p><p>— Eu não consigo �rmar meus pés aqui. Não sei quem é quem. Os</p><p>modos pseudopolidos, as vozes aveludadas e os costumes da romanità</p><p>se agarram a tudo, como um grude pernicioso. Metade do tempo não</p><p>sei quem é inimigo ou amigo. Mas até eu posso ver que tudo em</p><p>Roma está tão torto, tão desequilibrado, que não há mais vocabulário</p><p>para descrevê-lo.</p><p>Nesse momento, Carnesecca teria dado muito pela liberdade de dar a</p><p>Christian Gladstone um tão necessário lugar onde �rmar os pés; pois</p><p>ele tinha certeza de que era isso que seu jovem amigo, à sua maneira,</p><p>estava pedindo. Ele queria algum motivo sólido para �car nesta</p><p>cidade. Ou, como os Gladstone da Cornualha, algum motivo sólido</p><p>para deixá-la e fazer o que quer que fosse em outro lugar, por sua fé e</p><p>sua Igreja.</p><p>Caso se sentisse livre para fazê-lo, Carnesecca teria dado a Christian</p><p>motivos de sobra para �car. Ele lhe revelaria alguns dos caldeirões do</p><p>Vaticano que borbulhavam com suas conspirações antipapais, e</p><p>partilharia pelo menos um pouco do que sabia sobre a marcação tão</p><p>�rmemente cerrada contra o Papa eslavo. Homem de sigilo que era,</p><p>no entanto, Padre Carnesecca sabia que não era livre para partilhar</p><p>nada nesse sentido com Christian. Assim, foi com o silêncio por</p><p>companhia que os dois padres simplesmente retomaram sua</p><p>caminhada lenta em direção ao Angelicum, cada um deles imerso em</p><p>seus próprios pensamentos.</p><p>Preenchido agora com sua própria tristeza, o Padre Carnesecca</p><p>pensou na observação que Damien Slattery lhe �zera uma vez, de que</p><p>“a marca registrada do mal é o vazio”. E se pegou pensando em como</p><p>era inaceitável que Roma fosse esvaziada de padres como Christian</p><p>Gladstone. Pelo menos em termos gerais, ele não apenas compreendia</p><p>A</p><p>a batalha travada, mas havia sido criado para ela, por seus ancestrais</p><p>e por sua formação pessoal. Nesse sentido, o Padre Christian já era</p><p>mais romano do que a maioria dos clérigos que se diziam romanos.</p><p>Não restava dúvida de que, para Gladstone, tratava-se de uma</p><p>batalha pela fé. Também não havia dúvida de que o jovem, hoje, tinha</p><p>visto o su�ciente para saber que, para mãos vaticanas como as de</p><p>Cosimo Maestroianni, tratava-se de uma batalha pelo poder.</p><p>Se Carnesecca aprendeu alguma coisa durante sua carreira romana,</p><p>foi a ter paciência. Mas paciência requer tempo, e ele não tinha</p><p>certeza, no caso de Christian Gladstone, de quanto tempo havia antes</p><p>que a Santa Sé pusesse outro papista sólido a perder. Tempo</p><p>su�ciente, com toda a probabilidade, Padre Carnesecca suspirou</p><p>consigo mesmo, para o Cardeal Maestroianni determinar se a</p><p>conexão de Paul Gladstone com Cyrus Benthoek justi�caria um maior</p><p>interesse de Sua Eminência pelo Padre Christian. Nesse caso,</p><p>Carnesecca imaginou que Christian acabaria posicionado em Roma,</p><p>gostando ou não.</p><p>VII</p><p>chave que abria as impressionantes portas duplas da ampla casa</p><p>do Cardeal Cosimo Maestroianni, longe do Palácio Apostólico,</p><p>também abria a porta da ampla visão globalista — o Processo,</p><p>como ele e seus associados mais íntimos o chamavam — que inspirara</p><p>sua vida e seu trabalho durante a maior parte de seus cinquenta anos</p><p>de serviço no Vaticano.</p><p>Como os mais sábios entre os cardeais próximos do Papa,</p><p>Maestroianni mantinha sua residência privada a uma distância</p><p>confortável do centro de Roma e da colina do Vaticano, mas com fácil</p><p>acesso às rotas que conduzem à Cidade do Vaticano. No caso de Sua</p><p>Eminência, o lar era a cobertura situada acima do Collegio di</p><p>Mindanao, na Via Aurelia. No mais alto de doze andares — seis dos</p><p>quais serviam às atividades diárias dos alunos do clero que viviam e</p><p>estudavam no Collegio, enquanto os seis restantes serviam como salas</p><p>de professores —, a maioria dos cômodos do cardeal-secretário</p><p>oferecia-lhe uma vista panorâmica da Cidade Santa, das colinas</p><p>Albanas e, em um dia claro, dos brilhantes re�exos da luz sobre as</p><p>águas do mar Tirreno, ao redor de Ostia. O vestíbulo semicircular que</p><p>dava acesso ao apartamento de Sua Eminência tinha sido devidamente</p><p>decorado com pinturas a óleo de papas anteriores. Mas, na verdade, o</p><p>foyer e os retratos serviam como um pequeno ponto de transição do</p><p>mundo o�cial da Roma papal.</p><p>O mundo que realmente animava o espírito do secretário — o</p><p>mundo lá fora, o mundo real — havia sido vividamente resumido por</p><p>uma incrível série de fotogra�as que cobria quase cada centímetro das</p><p>longas e altas paredes do corredor imediatamente após o foyer,</p><p>percorrendo toda a largura da cobertura. As mais impressionantes</p><p>dessas fotos, paisagens urbanas de Helsinque, na Finlândia, indo do</p><p>chão ao teto, eram tão grandes que ofuscavam a pequena estatura de</p><p>Sua Eminência. Mas elas também ampliavam sua mente. Habilmente</p><p>iluminados por cima, os prédios de granito branco de Helsinque</p><p>pareciam ter uma aura, um manto imaculado a envolver a cidade</p><p>inteira. Não espantava o Cardeal Maestroianni o fato de os</p><p>escandinavos chamarem aquele lugar de “a grande cidade branca do</p><p>Norte”. Para ele, a qualidade física da cidade — aquela leveza</p><p>imaculada — tornara-se também sua qualidade espiritual. De fato,</p><p>sempre que caminhava por este corredor, ou visitava Helsinque, ele se</p><p>lembrava de um hino medieval à Jerusalém Celeste. “Cidade Celestial</p><p>de Jerusalém, abençoada visão de paz”.</p><p>A ocasião que havia inspirado tão duradoura reverência na alma de</p><p>Sua Eminência fora a assinatura dos Acordos de Helsinque por trinta</p><p>e cinco nações em 1º de agosto de 1975. Essa era a data de</p><p>nascimento do que veio a ser conhecido como o Processo de</p><p>Helsinque, ou a Conferência Europeia de Segurança e Cooperação —</p><p>a ����. Fora um evento culminante na vida de Maestroianni; um</p><p>evento que ele havia registrado nos mínimos detalhes no que Cyrus</p><p>Benthoek certa vez chamara, apropriadamente, de seu “corredor de</p><p>Helsinque”. Pois, agrupadas em todos os espaços ao redor das</p><p>enormes fotogra�as de Helsinque, estavam outras de proporções um</p><p>tanto mais modestas que formavam um registro indelével do grande</p><p>evento histórico e das memórias que o cardeal prezava como entre as</p><p>mais signi�cativas de sua produtiva carreira.</p><p>Os Acordos de Helsinque, o�cialmente intitulados de Ato Final,</p><p>tinham sido o resultado de uma longa e laboriosa busca por uma nova</p><p>estrutura europeia, iniciada em meados dos anos 1950. Para</p><p>encontrar uma nova alma, como</p><p>o cardeal pensava, para abraçar</p><p>todas as nações e culturas daquela extensão territorial que ia desde</p><p>Galway, à beira do Atlântico na Irlanda, até Vladivostok, no Mar do</p><p>Japão. Os gregos deram um nome a essa massa de terra. Europa. Os</p><p>romanos pensaram possuí-la toda. Caucasianos, principalmente, a</p><p>povoaram e governaram. Muitas nações e impérios desejaram</p><p>dominá-la, mas, no século ���, ela se dividira em uma colcha de</p><p>retalhos de Estados con�itantes.</p><p>Na grande cidade branca do Norte, no momento da assinatura do</p><p>Ato Final, o antigo sonho da Europa era mais uma vez dado à luz por</p><p>todas as principais nações daquela grande extensão territorial. O</p><p>próprio Cosimo Maestroianni participara do parto. Assim, até hoje o</p><p>cardeal sempre achava reconfortante e inspirador — talvez algo</p><p>semelhante a visitar um santuário — passar por esse corredor a</p><p>caminho de seu escritório na extremidade da cobertura.</p><p>Ele já era arcebispo em 1975, servindo como chefe da Segunda Seção</p><p>da Secretaria, sob o comando do secretário anterior, o Cardeal Jean-</p><p>Claude de Vincennes. De bom grado, ele havia conduzido a delegação</p><p>da Santa Sé àquela histórica conferência. O Ato Final trazia sua</p><p>própria assinatura, em nome da Cidade-Estado do Vaticano. Quem,</p><p>então, podia culpar Maestroianni se mesmo em seus dias mais</p><p>movimentados ele parava nesse corredor; se costumava contemplar,</p><p>por um momento ou dois, esse registro precioso de um sonho tornado</p><p>realidade? As fotogra�as eram uma doce con�rmação de que todas as</p><p>nações seriam unidas — ou melhor, reuni�cadas — na unidade</p><p>original da humanidade.</p><p>Como não deixar o olhar vagar por algumas das fotomontagens que</p><p>marcavam momentos especiais naqueles dias agitados da Conferência</p><p>de Helsinque? Maestroianni com o presidente da Itália, Giovanni</p><p>Leone, e o ministro das relações exteriores, Mariano Rumor,</p><p>alimentando os pombos na Esplanada de Helsinque. Maestroianni</p><p>com o presidente �nlandês Urho Kaleva Kekkonen, durante sua</p><p>audiência especial no palácio presidencial. Maestroianni durante sua</p><p>visita ao primeiro-ministro Keijo Liinemaa no Eduskunta, o</p><p>parlamento da Finlândia. Uma foto de grupo, em particular, era um</p><p>símbolo vívido da unidade. Lá estava ele, tendo a um lado o chanceler</p><p>Helmut Schmidt e o ministro das relações exteriores Hans-Dietrich</p><p>Genscher, da Alemanha, e o presidente Valéry Giscard d’Estaing, da</p><p>França, do outro. Apropriadamente, os quatro estavam parados na</p><p>ponte que liga o continente à ilha rochosa de Katajanokka.</p><p>Uma foto particularmente bela mostrava Cyrus Benthoek passeando</p><p>ao lado de Maestroianni ao longo do Boulevard Mannerheimintie. E,</p><p>se não lhe falhava a memória, o próprio Benthoek havia tirado a foto</p><p>do arcebispo rezando sozinho na Grande Igreja da Praça do Senado.</p><p>Tantas memórias importantes. Maestroianni sorrindo ao lado de</p><p>Henry Kissinger e do presidente de Portugal, Francisco da Costa</p><p>Gomes. Seu encontro com o presidente dos Estados Unidos, Gerald R.</p><p>Ford. O arcebispo brindando no banquete com Andrei Gromyko, da</p><p>União Soviética, e o chefe do Partido Comunista Polonês, Edward</p><p>Gierek, e conversando com o primeiro-ministro da Bélgica, Leo</p><p>Tindemans, e o primeiro-ministro da Holanda, Joop M. den Uyle.</p><p>A foto que o cardeal pusera no �nal do corredor, perto da porta que</p><p>se abria para o seu escritório particular, mostrava-o com Cyrus</p><p>Benthoek em frente à famosa estátua de bronze de autoria de Väinö</p><p>Aaltonen, representando o campeão velocista da Finlândia, Paavo</p><p>Nurmi, no terreno do Estádio Olímpico. Em um momento de</p><p>brincadeira, os dois homens se faziam passar por corredores, imitando</p><p>o impulso para a frente de braços, pernas e torso capturado no bronze</p><p>de Nurmi. Na parte inferior da foto, Benthoek lançara uma inscrição</p><p>incisiva: “Para que a posteridade saiba que estamos correndo na</p><p>mesma corrida e pelo mesmo objetivo. ������� vencer!”.</p><p>Normalmente, não importava quão breve fosse o tempo que o</p><p>Cardeal Maestroianni se permitisse �car aqui, era o su�ciente para</p><p>revigorá-lo. Mas não hoje. Ele percebeu sua mente teimosamente</p><p>preocupada com o Papa eslavo e sua piedosa excursão a Sainte-</p><p>Baume. Que contraste sombrio, para ele, pensar nos Acordos de</p><p>Helsinque, por um lado, e depois pensar em como, naquela manhã, o</p><p>Pontí�ce virara a Secretaria de cabeça para baixo para obter algumas</p><p>fotogra�as inspiradoras de uma estátua de Bernini para sua homilia.</p><p>Os acontecimentos da manhã, desencadeados pelo telefonema do</p><p>Papa eslavo de Baume, �xaram outra vez a mente do cardeal na</p><p>inadequação do atual pontí�ce para liderar a Igreja na vindoura Nova</p><p>Ordem Mundial. De fato, a verdade é que o cardeal-secretário</p><p>prezava a memória de outro Papa. O Papa Bom. O que a Igreja</p><p>precisava era de outro Pontí�ce que, como o Papa Bom, possuísse não</p><p>apenas maturidade mental e habilidade diplomática, mas também</p><p>uma incomum sabedoria mundana. Sabedoria: a chave para tudo.</p><p>Gostando ou não, era com o Papa eslavo que Maestroianni tinha que</p><p>lidar; ao menos por enquanto. Ah, ele entendia muito bem a mente</p><p>desse Papa. Ele havia sido capaz de, no mínimo, antecipar as</p><p>estratégias do Pontí�ce e, em seguida, mitigar seu efeito dentro da</p><p>hierarquia da Igreja, como poucos outros poderiam fazer.</p><p>Maestroianni entendia, acima de tudo, que esse Pontí�ce ainda estava</p><p>abarrotado de todas as velhas imagens católicas romanas da Realeza</p><p>Divina de Cristo; da Realeza de Maria; de uma tríade �xa — Inferno,</p><p>Terra, Céu — de destinos possíveis para o homem. Esse Papa ainda</p><p>identi�cava, como a força por trás das forças históricas, a mão de</p><p>Cristo enquanto Rei e Salvador da raça humana, que viera salvá-la do</p><p>pecado e da punição no Inferno.</p><p>O Cardeal-secretário Maestroianni não pensava em si como alguém</p><p>que tivesse abandonado ou traído o seu catolicismo romano. Ao</p><p>contrário, ele entendia que a sua fé original, adquirida nos agora</p><p>desmoronados bastiões da velha Igreja, havia sido puri�cada e</p><p>iluminada, porque fora humanizada. Tornara-se real nas</p><p>circunstâncias concretas do século ��.</p><p>Muitas das verdades que uma vez considerara indiscutíveis estavam</p><p>sobrecarregadas de elementos imanentes a vários períodos culturais da</p><p>história da Igreja. Esses conceitos, com suas bagagens, nada tinham</p><p>que ver com a realidade presente, nada que ver com o Processo.</p><p>Agora, no entanto, chegara a entender a história e a salvação da</p><p>humanidade de uma maneira que, ele sabia bem, o Papa eslavo jamais</p><p>entenderia. Agora entendia que os conceitos que ainda guiavam o</p><p>Papa eslavo não deveriam ter in�uência, nem mesmo ser</p><p>manifestados, no funcionamento e na administração da Igreja.</p><p>Suponha-se que Maestroianni tivesse ido à Conferência de Helsinque</p><p>em 1975, por exemplo, e pregado a presidentes e ministros das</p><p>relações exteriores sobre Santa Maria Madalena adorando o Cristo</p><p>ressuscitado, como o Papa eslavo faria esta noite em Sainte-Baume.</p><p>Ora, ele teria sido arrastado em uma camisa de força! Pois o</p><p>verdadeiro papel da Igreja, Maestroianni agora entendia, era o de um</p><p>agente em uma evolução mais vasta — um processo mais vasto — do</p><p>que o Papa eslavo parecia capaz de compreender. Um vasto processo,</p><p>e muito natural, que reconhecia o fato de que todas as desgraças da</p><p>família humana eram causadas, em primeiro lugar, não por alguma</p><p>noção primitiva chamada Pecado Original, mas pela pobreza, carência</p><p>e falta de educação. Um processo que �nalmente livraria a</p><p>humanidade desses problemas e, assim, harmonizaria os espíritos do</p><p>homem, de Deus e do cosmos. Quando o Processo fosse plenamente</p><p>realizado na nova ordem política da humanidade, então a Igreja seria</p><p>uma com o mundo. Pois só então a Igreja assumiria seu honroso lugar</p><p>de direito como parte da herança humana. Como um fator</p><p>estabilizador na Nova Ordem Mundial. Como um espelho verdadeiro</p><p>e brilhante da mente imperturbável de Deus.</p><p>O cardeal ainda lamentava que aquele Papa Bom tivesse passado, tão</p><p>cedo, para o que ele agora considerava “…o frio silêncio da</p><p>eternidade”. Sua Eminência lamentava ainda mais que, nesta última</p><p>década do século ��, ele tivesse de lidar com um Papa retrógrado,</p><p>ignorante da verdadeira força por</p><p>trás das forças da história.</p><p>Por outro lado, uma vez que Maestroianni alcançara o máximo de</p><p>seu poder como secretário de Estado do Vaticano, ele usara toda a</p><p>máquina administrativa da organização da Igreja Romana para forjar</p><p>seu maior alinhamento com o Processo. Nada saía da mesa papal sem</p><p>passar pelo gabinete do cardeal-secretário. Sua autoridade era sentida</p><p>em todos os outros ministérios papais do Vaticano. Sua vontade era</p><p>reconhecida e aceita em todas as Conferências Episcopais nacionais e</p><p>regionais de todo o mundo. Na verdade, o pensamento de muitos de</p><p>seus colegas clericais havia passado pela mesma transição profunda</p><p>que o de Maestroianni.</p><p>Esse exato pensamento, de fato, despertou Maestroianni de seus</p><p>pensamentos sombrios. Seria muito mais proveitoso concentrar sua</p><p>mente na segunda tarefa a que se propusera nesse sábado — a revisão</p><p>de um documento que Cyrus Benthoek havia providenciado para que</p><p>o cardeal entregasse na próxima reunião da Ordem dos Advogados.</p><p>Como a carta que redigira essa manhã, o assunto do documento que</p><p>aguardava as revisões e re�namentos do cardeal era tão delicado</p><p>quanto importante: o imperativo ético da renúncia à soberania</p><p>nacional.</p><p>Como Benthoek havia apontado, somente um homem</p><p>verdadeiramente espiritual como Maestroianni poderia expor esse</p><p>assunto delicado com sensibilidade, mas incisivamente. Maestroianni</p><p>se dedicou ao trabalho de revisão. Em instantes, ele estava novamente</p><p>em seu elemento, interrompendo seu trabalho, de tempos em tempos,</p><p>apenas para recuperar certos materiais úteis do depósito de</p><p>conhecimentos que o cercava aqui.</p><p>Ele trabalhava com uma monogra�a em particular, intitulada “O</p><p>Estado de Direito e a Nova Ordem Mundial”, que deixara aberta em</p><p>um ponto-chave alguns dias antes. Tirada de uma declaração feita no</p><p>início do ano por David Rockefeller, era uma citação tão apropriada</p><p>que Maestroianni, ao lê-la, teve de sorrir em sua admiração: “Agora</p><p>que essa ameaça de agressão soviética foi removida, outros problemas</p><p>surgiram… Há um enorme incentivo à cooperação. Mas as forças do</p><p>nacionalismo, protecionismo e con�ito religioso caminham na direção</p><p>oposta. A Nova Ordem Mundial precisa desenvolver um mundo</p><p>cooperativo e encontrar um novo meio de suprimir essas forças</p><p>divisoras”.</p><p>Ao incluir a citação de Rockefeller em seu próprio texto, Sua</p><p>Eminência destacou certas palavras e frases: “nacionalismo… con�ito</p><p>religioso… um espírito cooperativo… suprimir essas forças divisoras”.</p><p>A questão inteira do imperativo ético de renúncia à soberania</p><p>nacional estava contida nessas poucas palavras. Se a religião</p><p>organizada e o espírito nacional pudessem ser afastados de seu</p><p>divisionismo, certamente um novo e frutífero espírito cooperativo</p><p>surgiria. Como ele sabia, em qualquer momento da história há apenas</p><p>uma pequena quantidade de pessoas que entendem completamente a</p><p>natureza do Processo. Menos pessoas ainda — apenas uma dúzia em</p><p>cada época determinada, talvez; essa era, em todo caso, a opinião do</p><p>cardeal — tinham o privilégio de atuar como mestres engenheiros do</p><p>Processo. Nem mesmo ele havia alcançado esse status, embora ainda</p><p>aspirasse a isso. Em sua mente, ele havia se tornado nada menos que o</p><p>apóstolo do Processo.</p><p>•</p><p>A devoção de Cosimo Maestroianni ao Processo começou quando ele</p><p>era um diplomata inexperiente. Por acaso, ele chamou a atenção de</p><p>dois homens. Um deles era um importante diplomata do Vaticano, o</p><p>Arcebispo Roncalli. O outro era Cyrus Benthoek. Ambos os homens</p><p>haviam �cado impressionados com a perspicácia de Maestroianni.</p><p>Eles se esforçaram para ajudá-lo em sua carreira e no cultivo do</p><p>Processo. Ambos os homens compartilharam seu poder e sua</p><p>sabedoria com Maestroianni.</p><p>Roncalli criou oportunidades para o avanço e aprimoramento da</p><p>carreira eclesiástica de Maestroianni. Primeiro em Paris, como o</p><p>respeitado Cardeal Patriarca de Veneza, e �nalmente como Papa, ele</p><p>conseguiu garantir o avanço de Maestroianni de mil maneiras</p><p>pequenas, mas operacionalmente e�cientes. O homem mais jovem</p><p>recebia o primeiro lugar e a recomendação mais alta em qualquer lista</p><p>de funcionários da Secretaria propostos para promoção. Ele tinha</p><p>acesso a informações secretas; a discussões altamente con�denciais; a</p><p>avisos antecipados de acontecimentos no futuro próximo. Acima de</p><p>tudo, recebia orientações discretas sobre aquele ativo tão precioso no</p><p>Vaticano, a romanità.</p><p>Cyrus Benthoek, por seu lado, fornecia a Maestroianni instrução</p><p>prática, formulação e exploração do Processo. Como um amigo</p><p>próximo e con�ável. Benthoek encontrava inúmeras oportunidades</p><p>para alimentar a constante curiosidade do diplomata em relação ao</p><p>Processo.</p><p>À medida que Monsenhor Maestroianni subia na hierarquia da</p><p>Secretaria do Vaticano, Benthoek continuamente arranjava contatos e</p><p>visitas que forneciam a seu ávido protegido um acesso cada vez maior</p><p>e mais frutífero ao pensamento de associações privadas. Por meio de</p><p>convites para convenções e apresentações a círculos governamentais</p><p>fora do alcance do jovem, ele deu a Maestroianni acesso fácil a</p><p>espíritos a�ns — alguns deles, na verdade, mestres engenheiros — que</p><p>estavam ativamente engajados na colaboração com o Processo. Em</p><p>suma, Benthoek forneceu a Maestroianni uma visão de um mundo</p><p>normalmente inacessível a um diplomata do Vaticano.</p><p>Pro�ssionalmente à vontade no Vaticano, Maestroianni estava</p><p>próximo do ápice de sua carreira como secretário de Estado. Ele se</p><p>tornou uma grande in�uência na Chancelaria do Vaticano. No lado</p><p>litúrgico das coisas, por exemplo, o arcebispo dirigiu a reforma do</p><p>antigo Código de Direito Canônico e, ao fazê-lo, alinhou cada vez</p><p>mais a estrutura jurídica da Igreja a seu pensamento já revisado sobre</p><p>a necessidade de reformar a Igreja Católica por dentro, à luz da nova</p><p>ordem para a vida das nações que se aproximava.</p><p>Ao mesmo tempo, no cenário político, o Arcebispo Maestroianni</p><p>mostrou-se um diplomata global consumado. Ele supervisionou</p><p>cuidadosamente todas as negociações do Vaticano com a União</p><p>Soviética e com seus Estados satélites do Leste Europeu. Seu objetivo</p><p>�nal nesses assuntos delicados era a assinatura de uma série de</p><p>acordos protocolares entre a Santa Sé e as “democracias soberanas”</p><p>da “fraternidade socialista”, como essas entidades políticas se</p><p>autodenominavam. Tanto em Moscou quanto em So�a, Bucareste e</p><p>Belgrado, o Arcebispo Cosimo Maestroianni �cou conhecido como</p><p>um conciliador de governos; como um construtor de pontes entre as</p><p>instituições governamentais.</p><p>Enquanto isso, Cyrus Benthoek continuava garantindo a mais</p><p>profunda penetração de Maestroianni no Processo. Naqueles estágios</p><p>superiores de sua mentoria ao arcebispo, Benthoek constantemente</p><p>invocava a memória de Elihu Root como o santo padroeiro do</p><p>Processo. Elihu Root deixara sua marca publicamente no início do</p><p>século ��, como um proeminente advogado de Wall Street que servira</p><p>como secretário de guerra do presidente William McKinley e do</p><p>presidente Theodore Roosevelt, e mais tarde como secretário de</p><p>Estado de Roosevelt. Ele havia recebido o Prêmio Nobel da Paz em</p><p>1912 e se tornado o primeiro presidente honorário do prestigiado</p><p>Conselho de Relações Exteriores.</p><p>Elihu Root e advogados a�ns que trabalhavam no campo das</p><p>�nanças e relações internacionais haviam se convencido de que a</p><p>lógica inerente da história — Cyrus Benthoek quase sempre usava</p><p>essa frase — ditava um papel global para os Estados Unidos. Na</p><p>verdade, Root e os outros iniciaram uma mentalidade institucional</p><p>que havia sido transmitida intacta a homens tão admiráveis —</p><p>Benthoek assim os chamava, clara e consistentemente — como Henry</p><p>Stimson, Robert A. Lovett, John J. McCloy e Henry Kissinger. Foi em</p><p>uma de suas visitas ao escritório de Benthoek em Nova York que</p><p>Maestroianni �nalmente recebeu um esclarecimento de�nitivo sobre o</p><p>Processo, quando mencionou o nome de Root como o fundador do</p><p>globalismo do século �� e o conceitualizador original do Processo.</p><p>— Não, meu amigo. Root não foi um fundador. Mas ele foi, sim,</p><p>único em sua avaliação do Processo. Pois essa avaliação o levou à</p><p>conclusão de que o objetivo �nal</p><p>da força da história, o objetivo da</p><p>força por trás de todas as forças, era o estabelecimento de um sistema</p><p>de governo econômico e �nanceiro verdadeiramente mundial. Root</p><p>percebeu que não existe outra base sobre a qual todas as nações</p><p>possam se unir. A partilha organizada da terra e das suas riquezas:</p><p>essa é a base de todo o bem no mundo. O Processo é o meio pelo qual</p><p>a força realiza seu trabalho. Por esse motivo, é um conceito</p><p>sacrossanto; uma palavra-código, se preferir, para todos nós que</p><p>somos verdadeiros globalistas. Esse é o entendimento que Elihu Root</p><p>nos deixou.</p><p>Essa é a bênção duradoura, o legado e a responsabilidade que ele</p><p>deixou para todos os “sábios” que desde então seguiram seus passos,</p><p>para todos os que se dedicam ao mesmo ideal.</p><p>Nesse exato momento, Maestroianni atravessou o longínquo limiar</p><p>para o qual Benthoek o havia guiado com tanta dedicação e paciência.</p><p>Um sorriso alargou-se no rosto do arcebispo como os primeiros raios</p><p>de Sol por uma nova manhã. Pois de repente o óbvio lhe ocorreu. De</p><p>repente ele entendeu que o Processo não era uma coisa distante e</p><p>impessoal. De repente ele entendeu, como Benthoek queria que</p><p>entendesse, que se a força está por trás do Processo, também existem</p><p>mestres engenheiros que estão por trás da força. E de repente ele</p><p>entendeu que Elihu Root não era um inventor, mas um engenheiro.</p><p>Um mestre engenheiro, na verdade. Um membro de um grupo de</p><p>homens que, em algum estágio do Processo, assume esse papel</p><p>especial de invenção, re�namento, orientação e facilitação no padrão</p><p>constante e contínuo da força.</p><p>Por isso, Maestroianni �nalmente percebeu, Benthoek estava sempre</p><p>mencionando aqueles “sábios” dele. Eram os mestres engenheiros.</p><p>Essa foi, para Cosimo Maestroianni, uma descoberta maravilhosa,</p><p>pela qual o Processo se tornava maravilhosamente humano e</p><p>acessível. De fato, como ele confessou a Benthoek com profunda</p><p>emoção, ela chegava a ter, para ele, uma ressonância doutrinária. E o</p><p>objetivo de cada um desses mestres engenheiros do Processo tinha</p><p>sido sempre o mesmo: alcançar o destino inerente à sociedade das</p><p>nações como uma família! Uma família humana! Uma sagrada família</p><p>nova e abrangente. Não era essa a própria caridade, a caritas, o agape</p><p>pregado pelo apóstolo Paulo? Benthoek sabia exatamente que botão</p><p>apertar agora.</p><p>— Sim, meu colega! Isso é doutrinário. Bíblico, até. Pois somos uma</p><p>família! Todas as nações são uma família. Esse é o nosso destino.</p><p>Todos estão destinados a ser um novamente! Quem sabe, meu amigo?</p><p>— Benthoek levantou as mãos e abriu as palmas em um gesto para</p><p>cima. — Quem sabe se você, em sua Cidadela do Vaticano, não</p><p>poderá ser chamado a atuar como um desses mestres? Maestroianni</p><p>enxergou esse gesto como um gesto de súplica, até como um re�exo</p><p>das clássicas �guras orans na iconogra�a cristã, um gesto litúrgico por</p><p>excelência.</p><p>Maestroianni não se tornara um engenheiro mestre; mas não por</p><p>falta de desejo. Como clérigo, como padre, como arcebispo, como</p><p>eclesiástico de carreira e diplomata, Maestroianni fora abandonando</p><p>cada vez mais todas as imagens e conceitos de sua fé original que</p><p>tanto o irritavam no Papa eslavo, todas aquelas imagens da realeza de</p><p>Cristo e da realeza de Maria e da Igreja como Corpo Místico de</p><p>Cristo.</p><p>Para o Arcebispo Maestroianni, “a força por trás das forças” da</p><p>história deixara de ser a mão de Cristo como Senhor da história</p><p>humana. Para ele, como para Benthoek, “a força por trás das forças”</p><p>afastou-se, enquanto imagem, para o misterioso desconhecido.</p><p>Tornou-se nada mais coerente do que o importantíssimo mas não</p><p>identi�cável fator � nos assuntos humanos. Toda a atividade do</p><p>arcebispo decorria do aprofundamento do Processo e de sua profunda</p><p>reverência por aquele misterioso �, a “força por trás das forças”.</p><p>Tudo se encaixava muito bem para ele. A única maneira lógica de</p><p>servir à “força” primordial era através do Processo. A ideia era ajudar</p><p>o Processo em direção ao objetivo �nal da força: a homogeneização</p><p>cultural, política, social e econômica de todas as nações da terra.</p><p>Dado esse objetivo �nal, um dos principais alvos do “controle</p><p>cultural” do Processo tinha de ser, logicamente, a Igreja Católica</p><p>Romana. Ou, para ser mais preciso, o organismo da Igreja Católica</p><p>Romana, enquanto sistema. O que não era aceitável, o que tinha de</p><p>ser expurgado da organização estrutural, era a tradicional</p><p>reivindicação do catolicismo romano: a de deter autoridade absoluta</p><p>sobre os assuntos da humanidade. Pois, em geral, essas reivindicações</p><p>não podiam ser combinadas às demandas do Processo.</p><p>Havia ainda o seguinte fato: em seu objetivo de eliminar as</p><p>reivindicações absolutas de autoridade moral da Igreja Católica</p><p>Romana, o Processo teria de eliminar a autoridade tradicional do</p><p>próprio papado; pois a Igreja faz suas reivindicações absolutistas e</p><p>emite seus mandatos absolutistas por meio e somente em virtude da</p><p>única e tradicional autoridade que reside no papado. Inevitavelmente,</p><p>o Processo exigia a despapização da Igreja Católica Romana.</p><p>Com isso alcançado, realistas como Maestroianni teriam a tarefa</p><p>relativamente simples de limpar a Igreja — suas estruturas</p><p>organizacionais globais, seu pessoal pro�ssional e seu quase bilhão de</p><p>adeptos — de uma perspectiva e um método de comportamento que,</p><p>atualmente, apenas colocavam barreiras e obstáculos para a harmonia</p><p>política e de pensamento exigida na nova sociedade das nações.</p><p>O Cardeal Maestroianni era uma dessas pessoas afortunadas que</p><p>parecem ter um relógio na cabeça medindo o tempo exato de que</p><p>necessitam para concluir um assunto antes de passarem para o</p><p>próximo.</p><p>Quando Sua Eminência concluiu a revisão �nal da persuasiva última</p><p>frase do seu discurso sobre o imperativo ético da renúncia à soberania</p><p>nacional, �nalmente ergueu a cabeça acima da grande barricada de</p><p>livros consultados nos trabalhos desse dia. Restava-lhe um quarto de</p><p>hora antes da ligação para Cyrus Benthoek, em Londres. Essa seria a</p><p>última e a mais prazerosa das três importantes tarefas que o cardeal se</p><p>impusera naquele sábado. O relógio na cabeça de Sua Eminência lhe</p><p>dizia que sua conversa com Benthoek provavelmente duraria até a</p><p>inspeção de segurança do Vaticano, às seis horas.</p><p>Maestroianni usou esses minutos restantes para desmontar a torre de</p><p>materiais de referência que cobria tudo em sua mesa, incluindo seu</p><p>telefone anti escuta. Enquanto devolvia os volumes aos lugares em seu</p><p>escritório, conforme o sistema que só ele conseguia entender, revisava</p><p>os principais tópicos que queria discutir com Benthoek. Seu recém-</p><p>revisado discurso à Ordem dos Advogados, é claro. Tendo-o sugerido,</p><p>Benthoek seria a escolha perfeita de primeiro ouvinte, assim como o</p><p>Cardeal Svensen havia sido a caixa de ressonância ideal para a carta</p><p>de Maestroianni sobre a unidade entre o Papa e os bispos.</p><p>Quanto a Svensen, Benthoek também poderia aconselhar sobre a</p><p>sugestão do cardeal belga de construir um vínculo forte entre os</p><p>bispos europeus e a Comunidade Europeia e o uso desse vínculo, se</p><p>fosse possível estabelecê-lo, como um meio de forjar uma</p><p>“mentalidade comum” entre os bispos que favoreceria a primazia dos</p><p>princípios da �� sobre a autoridade papal.</p><p>Finalmente, Maestroianni lembrou-se enquanto ligava para Londres,</p><p>havia o assunto da reunião con�dencial que Benthoek e Sua</p><p>Eminência pretendiam convocar como contribuição pessoal ao legado</p><p>de Robert Schuman durante as comemorações anuais em sua memória</p><p>no mês seguinte, em Estrasburgo.</p><p>— Eminência! — Cyrus Benthoek estava esperando a ligação,</p><p>conforme combinado. Sua voz retumbante era tão clara que ele</p><p>parecia estar no escritório do cardeal. — Diga-me, quais são as suas</p><p>novidades? Maestroianni não resistiu em regalar seu velho amigo com</p><p>a aventura do Papa eslavo e a estátua de Bernini. Na verdade, com um</p><p>pouco mais de cor adicionada a cada relato, esse incidente estava</p><p>rapidamente assumindo proporções lendárias.</p><p>Quando as gargalhadas cessaram, Sua Eminência revisou as</p><p>principais mudanças que havia feito em seu discurso da Ordem dos</p><p>Advogados. Como o próprio cardeal, o americano �cou encantado</p><p>vantagem inquestionável</p><p>sobre o mundo livre?</p><p>— Podemos ainda realizar nosso concílio, mas… Não era necessário</p><p>que Sua Santidade concluísse o raciocíonio. Estava bem claro: a</p><p>publicação do segredo causaria repercussão universal. Governos</p><p>aliados seriam gravemente perturbados. Os soviéticos seriam</p><p>afastados, por um lado, e obteriam uma vantagem estratégica, por</p><p>outro. A escolha que o “Papa Bom” devia tomar acabou por ser uma</p><p>decisão geopolítica fundamental.</p><p>Ninguém duvidava da boa-fé da Irmã Lúcia, porém vários</p><p>conselheiros apontaram que quase vinte anos haviam se passado entre</p><p>1917, quando ela ouvira as palavras da Virgem, e meados da década</p><p>de 1930, quando ela de fato escreveu aquela carta. Que garantia tinha</p><p>o Santo Padre de que o tempo não lhe havia ofuscado a memória? E</p><p>que garantia existia de que três crianças camponesas analfabetas —</p><p>todas ainda menores de doze anos — haviam transmitido com</p><p>precisão uma mensagem tão complexa? Não era possível que</p><p>houvesse alguma fantasia infantil e inculta atuando no caso? De fato,</p><p>não seria possível que houvesse algum fator ainda mais debilitante</p><p>para a verdade? Tropas da União Soviética haviam entrado em ação</p><p>na Guerra Civil Espanhola a apenas alguns quilômetros de distância</p><p>de Lúcia, na época em que ela escreveu aquela carta. As palavras de</p><p>Lúcia não teriam sido in�uenciadas por seu próprio medo dos</p><p>soviéticos? Levantou-se uma voz discordante do consenso que estava</p><p>se formando. Um cardeal — um jesuíta alemão, amigo e confessor</p><p>favorito deste Papa, que o foi até o �m — não conseguiu se manter</p><p>calado diante de tal degradação do papel da intervenção divina. Que</p><p>ministros de governos seculares abandonassem os aspectos práticos da</p><p>fé, isso era uma coisa; mas não se podia tolerar tal banalidade em</p><p>clérigos reunidos para aconselhar o Santo Padre.</p><p>— A escolha a ser feita aqui — argumentou o jesuíta — é simples e</p><p>prima facie. 1 Ou aceitamos esta carta, fazemos o que ela diz e</p><p>esperamos as consequências; ou a desacreditamos honestamente.</p><p>Esquecemos tudo. Suprimimos a carta como uma relíquia histórica;</p><p>continuamos em nosso rumo e, por nossa decisão deliberada,</p><p>rejeitamos uma proteção especial. Mas de qualquer forma, que</p><p>nenhum de nós aqui duvide de que estamos falando sobre o destino de</p><p>toda a humanidade.</p><p>Apesar de toda a con�ança que Sua Santidade depositava na perícia</p><p>e lealdade do cardeal jesuíta, a decisão �nal foi contra Fátima.</p><p>— Questo non è per i nostri tempi — disse o Santo Padre. “Isto não</p><p>é para uma época como a nossa”.</p><p>Pouco depois desse dia, o cardeal examinou o breve comunicado</p><p>distribuído à mídia pela assessoria de imprensa o�cial do Vaticano.</p><p>Suas palavras permaneceriam para sempre em sua mente, como uma</p><p>desobediência frontal à vontade do Céu.</p><p>“Para o bem da Igreja e o bem-estar da humanidade, lia-se na</p><p>declaração, a Santa Sé decidiu não publicar, por ora, o texto do</p><p>E</p><p>terceiro segredo”.</p><p>[…] A decisão do Vaticano está baseada em vários razões: (1) Irmã Lúcia ainda está</p><p>viva. (2) O Vaticano já conhece o conteúdo da carta. (3) Embora reconheça as</p><p>aparições de Fátima, a Igreja não se compromete a garantir a veracidade das palavras</p><p>que os três pastorinhos a�rmam ter ouvido de Nossa Senhora. Nestas circunstâncias, é</p><p>muito provável que o segredo de Fátima permaneça para sempre sob sigilo absoluto.</p><p>— Lo vedremo — disse o cardeal e depôs o comunicado: “Veremos”.</p><p>Conhecia o roteiro. A Santa Sé diria palavras amigáveis a Nikita</p><p>Khrushchev.</p><p>O Pontí�ce teria seu concílio, que contaria com seus prelados</p><p>ortodoxos da União Soviética. Mas a questão ainda por responder era</p><p>se Sua Santidade, o Vaticano e a sua Igreja sofreriam, agora, as</p><p>consequências prometidas em Fátima.</p><p>Ou, para enquadrar a questão em termos geopolíticos, a pergunta</p><p>era se a Santa Sé havia se atrelado à “nova Europa dos diplomatas e</p><p>dos políticos”, como havia anunciado o predecessor do Papa Bom.</p><p>“Nesse dia”, dissera aquele velho frágil, “os infortúnios da Igreja</p><p>começarão para valer”.</p><p>— Veremos.</p><p>Por enquanto, o cardeal teria de se contentar com isso. De um jeito</p><p>ou de outro, era apenas uma questão de tempo.</p><p>1963</p><p>m 29 de junho de 1963 realizou-se, na Cidadela Católica Romana,</p><p>a entronização do Arcanjo Decaído Lúcifer. Era uma data</p><p>apropriada para a promessa histórica prestes a ser cumprida: como</p><p>bem sabiam os principais agentes do cerimonial, a tradição satanista</p><p>há muito previra que o Tempo do Príncipe seria introduzido no</p><p>momento em que um Papa tomasse o nome do apóstolo Paulo. Esse</p><p>requisito, o sinal de que o “Tempo Concedido” havia começado, fora</p><p>cumprido apenas oito dias antes, com a eleição do mais recente</p><p>sucessor de Pedro.</p><p>Mal houvera tempo, desde o término do Conclave Papal, para que os</p><p>complexos arranjos fossem preparados; mas o Supremo Tribunal</p><p>decidira que não poderia haver data mais perfeita para a entronização</p><p>do Príncipe do que este dia de festa dos dois príncipes da Cidadela, os</p><p>apóstolos São Pedro e São Paulo. E não poderia haver lugar mais</p><p>perfeito do que a própria Capela de São Paulo, situada tão perto do</p><p>Palácio Apostólico.</p><p>A complexidade dos arranjos fora ditada principalmente pela</p><p>natureza do evento cerimonial a ser realizado. A segurança era tão</p><p>rígida no agrupamento de edifícios do Vaticano, dentro do qual se</p><p>encontrava esta joia de capela, que ali não seria possível à panóplia do</p><p>cerimonial escapar à detecção. Se o objetivo fosse alcançado — ou</p><p>seja, se a Ascensão do Príncipe de fato fosse realizada no Tempo</p><p>Concedido — então cada elemento da celebração do sacrifício do</p><p>Calvário seria invertido pela outra, e oposta, celebração. O sagrado</p><p>seria profanado. O profano seria adorado. A representação incruenta</p><p>do sacrifício na Cruz do Débil Inominado seria substituída pela</p><p>suprema e sangrenta violação da dignidade do Inominado. A culpa</p><p>seria aceita como inocência. A dor causaria alegria. Graça,</p><p>arrependimento, perdão seriam afogados em uma orgia de opostos. E</p><p>tudo isso deveria ser feito sem erros. A sequência de eventos, o</p><p>signi�cado das palavras, o signi�cado das ações deveriam incluir a</p><p>representação perfeita do sacrilégio, o ritual de�nitivo da traição.</p><p>Todo o delicado assunto foi colocado nas mãos experientes do</p><p>Guardião de con�ança do Príncipe em Roma. Sendo um mestre do</p><p>elaborado cerimonial da Igreja Romana, esse prelado de rosto de</p><p>granito e língua ácida era, com muito mais a�nco, um mestre do</p><p>cerimonial das trevas e do fogo do Príncipe. O objetivo imediato do</p><p>cerimonial, ele sabia, era venerar “a abominação da desolação”. Mas</p><p>o outro objetivo era afrontar o Débil Inominado em sua fortaleza,</p><p>ocupar sua cidadela durante o Tempo Concedido, e assegurar ali a</p><p>Ascensão do Príncipe como uma força avassaladora; suplantar o</p><p>Guardião da Cidadela, tomar posse total das chaves con�adas pelo</p><p>Débil ao seu guardião.</p><p>O Guardião abordou, de cara, o problema da segurança. Elementos</p><p>discretos como o pentagrama, as velas negras e as cortinas</p><p>apropriadas poderiam passar a ser parte do cerimonial em Roma.</p><p>Mas outras rubricas — o vaso de ossos e os sons do ritual, por</p><p>exemplo, os dos animais e a vítima sacri�ciais — seriam um</p><p>problema. Teria de haver uma entronização paralela. Uma</p><p>concelebração poderia ser realizada por irmãos em uma capela</p><p>auxiliar, com o mesmo efeito, desde que todos os participantes em</p><p>ambos os locais “direcionassem” cada elemento do evento à Capela</p><p>Romana; então o evento seria realizado em sua plenitude e</p><p>especi�camente na área pretendida. Tudo seria uma questão de</p><p>unanimidade de corações, identidade de intenções e perfeita</p><p>sincronização de palavras e ações entre a capela auxiliar e a capela</p><p>alvo. As vontades vivas e as mentes pensantes dos irmãos,</p><p>concentradas no alvo especí�co do Príncipe, transcenderiam todas as</p><p>distâncias.</p><p>Para um homem tão experiente quanto o Guardião, a escolha da</p><p>capela auxiliar foi fácil. Tão fácil quanto telefonar para os Estados</p><p>Unidos. Ao longo dos anos, os partidários romanos do Príncipe</p><p>haviam desenvolvido uma impecável unanimidade de coração e uma</p><p>perfeita identidade de intenção com Leo, amigo do Guardião e</p><p>com a forma como a citação de David Rockefeller sublinhava a</p><p>necessidade de suprimir as forças divisivas atuantes no nacionalismo e</p><p>na religião.</p><p>— Perfeito! Um discurso verdadeiramente espiritual, como eu sabia</p><p>que seria.</p><p>— Estou feliz que você esteja satisfeito — Maestroianni estava cheio</p><p>de satisfação. Mesmo depois de todos os anos de colaboração, eram</p><p>raros, da parte de seu mentor, elogios tão irrestritos.</p><p>O relógio na cabeça de Maestroianni o impelia a avançar em sua</p><p>agenda.</p><p>— Falando em forças divisivas atuando na religião, tive uma</p><p>conversa interessante esta manhã com um velho amigo meu: o</p><p>Cardeal Svensen, da Bélgica.</p><p>Consultando as anotações que havia feito em seu diário, Sua</p><p>Eminência delineou para Benthoek, com alguns detalhes, o argumento</p><p>do belga para formar um vínculo bem nutrido entre os bispos</p><p>europeus e a ��.</p><p>Benthoek �cou impressionado com as possibilidades. Ele viu</p><p>imediatamente como se poderia estabelecer um arranjo sistemático</p><p>para o f luxo de “favores temporais”, como ele os chamava;</p><p>empréstimos a juros baixos, isenções de impostos e coisas do gênero</p><p>para os bispos. E ele não tinha dúvidas de que tal arranjo atrairia os</p><p>bispos como abelhas para o mel. Poderia, de fato, afastar ainda mais</p><p>os bispos da insistência do Papa eslavo na fé como o alicerce de uma</p><p>nova Europa. Como o Cardeal Svensen havia dito essa manhã, no</p><p>entanto, Benthoek também viu que faltava uma peça séria na</p><p>proposta.</p><p>— Nós precisaríamos da ponte perfeita, Eminência. Precisaríamos de</p><p>alguém plantado na sua ponta do sistema, no Vaticano. Um homem,</p><p>ou uma equipe de homens, que merecesse a con�ança dos bispos, que</p><p>descobrisse do que eles precisam, onde estão suas fraquezas. Coisas</p><p>desse tipo… E depois os convencesse de que seu futuro está nas mãos</p><p>da ��.</p><p>— Isso é apenas metade do que precisamos! Também precisamos de</p><p>um homem na sua ponta. Alguém que pudesse merecer igual</p><p>con�ança dos ministros de todos os doze países da ��. Alguém com</p><p>credibilidade su�ciente para convencê-los, com base na con�ança, a</p><p>conceder esses “favores temporais” aos bispos, bastando um aperto</p><p>de mão como garantia de retorno do investimento. Como eu disse a</p><p>Svensen, isso pode ser muito complicado de realizar.</p><p>— Complicado, sim — concordou Benthoek. — Mas interessante.</p><p>Interessante demais para rejeitá-lo sem uma tentativa séria.</p><p>— Svensen estará nas comemorações do Dia de Schuman em</p><p>Estrasburgo no próximo mês. Sugiro que o incluamos em nossa</p><p>reunião particular.</p><p>O americano hesitou.</p><p>— Você con�a nele a esse ponto, Eminência? Maestroianni con�ava</p><p>tanto quanto Benthoek relutava.</p><p>— Eu con�o na discrição dele. E con�o em seu ânimo contra o</p><p>papado em sua forma atual, e contra o Papa eslavo em particular. Eu</p><p>garanto que Svensen sabe pouco ou nada sobre o Processo. Mas os</p><p>outros que convidamos para a reunião também não sabem nada. Na</p><p>verdade, a meu ver, a reunião se baseia em um dos primeiros</p><p>princípios que aprendi com você. Nem todos precisam entender o</p><p>Processo para servir aos seus objetivos.</p><p>Era um forte endosso de Svensen. Benthoek estava quase convencido.</p><p>— Vamos falar sobre isso novamente antes de decidirmos se</p><p>incluímos seu colega belga na reunião, certo? Mas, pelo menos,</p><p>gostaria de conhecê-lo quando estivermos em Estrasburgo. Concorda?</p><p>— Concordo, meu amigo.</p><p>O cardeal entendeu: Benthoek queria veri�car Svensen por sua conta.</p><p>O americano voltou-se para outro assunto que estava em sua cabeça.</p><p>Ele queria renovar as certezas a respeito da aposentadoria de</p><p>Maestroianni.</p><p>— Claro, eu sei que essas coisas acontecem, Eminência. Mas espero</p><p>estar certo de que sua saída do posto de cardeal secretário de Estado</p><p>não fará nenhuma diferença fundamental em nossos</p><p>empreendimentos. Espero que Vossa Eminência ainda esteja con�ante</p><p>a esse respeito.</p><p>— Não vai fazer a menor diferença. A informação ainda não é</p><p>pública. Como já disse, Giacomo Graziani pode não ser o nosso</p><p>secretário de Estado ideal. Mas garanto a você que ele ter sido</p><p>escolhido não foi uma vitória para o Pontí�ce. Ele �cará feliz em nos</p><p>servir. E eu lembro a você, meu velho amigo: eu não estou exatamente</p><p>saindo para pastar.</p><p>Maestroianni parou por um minuto. Naturalmente, era difícil para</p><p>ele desocupar o prestigioso cargo de secretário de Estado. Mas essa</p><p>conversa com Cyrus era, por si mesma, a prova de que ele ainda não</p><p>estava acabado. A carta sobre a unidade, que ele tinha enviado de</p><p>manhã, era apenas um dos caldeirões borbulhantes que ele acendera</p><p>sob o Trono de Pedro.</p><p>— De certa forma — continuou ele —, na verdade, estou ansioso</p><p>pela minha audiência de despedida com o Pontí�ce. Eu sei qual é o</p><p>último acorde que quero tocar para ele.</p><p>— Coitado do Santo Padre! Quando será essa despedida o�cial?</p><p>— Logo antes de nossa reunião no Dia de Schuman em Estrasburgo.</p><p>Embora conhecesse bem a data, consultar a agenda era uma questão</p><p>de hábito para o cardeal. Enquanto folheava suas páginas, seu olhar</p><p>caiu sobre a nota que havia rabiscado para si mesmo naquela manhã,</p><p>após sua entrevista com o jovem padre americano.</p><p>— Eu quase esqueci, Cyrus. O incidente desta manhã sobre a estátua</p><p>de Bernini revelou um jovem clérigo aqui em Roma, cujo irmão</p><p>trabalha para sua empresa. Por acaso o nome Paul Thomas Gladstone</p><p>acende alguma luzinha aí?</p><p>— Uma luzinha muito promissora! Consideramos Paul Gladstone</p><p>um jovem de grande potencial — ele fez uma pausa. — Eu me</p><p>pergunto se esse irmão de Paul… como ele se chama?</p><p>— Christian — Maestroianni veri�cou novamente a nota em seu</p><p>diário. — Christian Thomas Gladstone.</p><p>— Certo. Christian. Eu me pergunto se ele é do mesmo calibre que</p><p>nosso Gladstone aqui em Londres. Se for, então talvez tenhamos,</p><p>nesses dois irmãos, o material necessário para forjar o elo sobre o</p><p>qual estávamos especulando. Devemos conseguir encontrar o lugar</p><p>certo, dentro da máquina da ��, para um homem tão talentoso</p><p>quanto Paul Gladstone. Uma posição de con�ança que lhe dê acesso a</p><p>todos os doze ministros das relações exteriores. Agora, e quanto ao</p><p>seu homem? Seu Padre Gladstone estaria à altura de nosso vínculo</p><p>episcopal? Ele seria capaz de obter a con�ança deles até o grau que tal</p><p>operação exigiria? Maestroianni, a princípio, �cou surpreso com a</p><p>ideia. Mas Benthoek fez tudo parecer tão plausível, tão adequado, que</p><p>no �nal quase �cou constrangido por não ter ele mesmo pensado</p><p>nisso. Na verdade, a ideia de juntar um dos funcionários mais</p><p>talentosos de Benthoek com um homem do Vaticano como o elo entre</p><p>a �� e os bispos era atraente por si só. Se esses dois homens, por</p><p>acaso, fossem irmãos… Tanto melhor para a simbiose.</p><p>O assunto parecia muito promissor para Benthoek. A proposta de</p><p>Svensen já estava ganhando corpo em sua mente.</p><p>— Mantenha-me informado, Eminência, sobre sua avaliação do</p><p>Padre Christian Gladstone. Vamos priorizar este assunto. Enquanto</p><p>isso, vamos vasculhar um pouco o maquinário da �� em busca de um</p><p>N</p><p>cargo adequado aos talentos de Paul Gladstone. De fato, o cargo de</p><p>secretário-geral dos ministros da �� �cará vago neste verão. Isso serve.</p><p>Aí na sua ponta, um intervalo tão curto é su�ciente para você? A essa</p><p>altura, o entusiasmo de Benthoek contagiara Maestroianni como uma</p><p>febre.</p><p>— Já estou veri�cando os antecedentes do Padre Gladstone; ele</p><p>parece limpo. Atualmente, tem licença para estar em Roma por</p><p>apenas metade do ano. Mas se ele for o homem certo para nós, tenho</p><p>certeza de que poderemos convencer o seu bispo nos Estados Unidos a</p><p>liberá-lo para, chamemos assim, servir a Santa Sé em tempo integral.</p><p>— Muito bem, Eminência. Tenho certeza de que podemos avançar</p><p>velozmente.</p><p>VIII</p><p>as brilhantes manhãs de primavera, a luz de Roma entra pelas</p><p>janelas do escritório papal, no terceiro andar do Palácio</p><p>Apostólico. Ela corre sobre o carpete, marcando as suas cores</p><p>como se ele fosse um pavimento de mosaico. Re�ete-se nos pisos de</p><p>parquet. Doura as paredes e os tetos altos com imprudente</p><p>generosidade.</p><p>Essa sexta-feira, 10 de maio, nascera como um desses dias. O Sol da</p><p>manhã brincava travessamente com a sombra da caneta do Pontí�ce,</p><p>enquanto ele trabalhava em sua mesa. O mesmo</p><p>Sol aquecia o rosto</p><p>do Santo Padre, deixando nítidos os sinais de envelhecimento</p><p>prematuro que muitos em sua comitiva haviam notado nos últimos</p><p>meses. Desaparecera do Papa eslavo aquele tônus nos músculos e na</p><p>pele, aquela �rmeza compacta na fronte. O desgaste físico havia</p><p>aparecido, todos diziam; se não chegava a estragar ou deformar seu</p><p>semblante, ao menos indicava, para aqueles que se importavam, uma</p><p>fragilidade no Santo Padre, como um sinal visível de alguma dor de</p><p>espírito.</p><p>A concentração de Sua Santidade foi interrompida por uma batida</p><p>na porta do escritório. Sua caneta pairou, no meio da frase, sobre os</p><p>papéis à sua frente. Ele olhou o relógio sobre a lareira do escritório e</p><p>se enrijeceu um pouco. Sete e quarenta e cinco, já! Seria o Cardeal</p><p>Cosimo Maestroianni, então. Pontual, como tinha sido nos últimos</p><p>doze anos, para a costumeira reunião matinal entre o Pontí�ce e o</p><p>secretário de Estado.</p><p>— Avante! — O Papa largou a caneta, recostou-se na cadeira como</p><p>se procurasse apoio e observou Maestroianni passar apressado pela</p><p>porta do escritório, as pastas em suas mãos cheias de papéis como</p><p>sempre, para seu encontro o�cial de despedida como secretário de</p><p>Estado.</p><p>Não havia formalidades entre os dois. O Pontí�ce não se levantava</p><p>de sua mesa. Sua Eminência não se curvava nem dobrava um joelho</p><p>nem beijava o Anel do Pescador na mão do Papa. Graças à in�uência</p><p>do antecessor de Maestroianni, em 1978 todo esse comportamento</p><p>antidemocrático já havia sido eliminado em reuniões cotidianas como</p><p>esta.</p><p>Embora fosse cerca de cinco anos mais velho que o Papa, o cardeal</p><p>que ocupava seu lugar habitual na cadeira do outro lado da mesa</p><p>parecia o mais jovem dos dois. A luz do Sol era mais gentil com ele;</p><p>parecia enfatizar uma certa solidez.</p><p>Sua Santidade ouviu, com a serenidade costumeira, o conciso e</p><p>pouco informativo monólogo de Maestroianni dessa manhã. De fato,</p><p>aquela constante paciência demonstrada pelo Pontí�ce sempre fora</p><p>um pouco enervante para o cardeal. O secretário tinha a sensação de</p><p>que, se o Papa fazia tão poucas perguntas durante essas sessões, não</p><p>era porque pretendia deixar as coisas nas mãos de Maestroianni, mas</p><p>sim porque achava já ter as respostas.</p><p>Em grande parte, o palpite de Maestroianni estava correto. O</p><p>Pontí�ce havia entendido desde o início que seu secretário de Estado</p><p>não era um colega, mas um adversário da mais perigosa espécie. Um</p><p>telefonema para certos indivíduos em qualquer uma das centenas de</p><p>cidades em muitos países em todos os seis continentes diria mais ao</p><p>Santo Padre sobre os eventos atuais e iminentes em todo o mundo do</p><p>que qualquer coisa que Maestroianni trouxesse em seu resumo dos</p><p>assuntos da Segunda Seção. E um relatório do comandante Giustino</p><p>Lucadamo, chefe da segurança papal e homem de recursos e lealdade</p><p>inesgotáveis, muitas vezes dizia a Sua Santidade ainda mais do que ele</p><p>gostaria saber.</p><p>Após o atentado contra a vida do Papa em 1981, Lucadamo fora</p><p>recrutado para tomar todas as medidas necessárias para proteger a</p><p>segurança física do Santo Padre; ele até �zera um juramento sagrado,</p><p>diante do Santíssimo Sacramento, de que o faria. Em licença</p><p>permanente das Forças Especiais da Itália, seção de inteligência, ele</p><p>era amplamente conhecido por sua mente rápida e seus nervos de aço.</p><p>Ele tinha o apoio dos serviços de segurança do Estado italiano e o</p><p>auxílio amigável de três governos estrangeiros. Além disso, cercara-se</p><p>de assessores escolhidos a dedo, tão dedicados quanto ele. A qualquer</p><p>momento, Lucadamo poderia dizer qual colete à prova de balas Sua</p><p>Santidade estava usando, quem eram os provadores de comida de</p><p>plantão e qualquer coisa que se precisasse saber sobre qualquer pessoa</p><p>que tivesse o menor contato com a casa papal. Em suma, Giustino</p><p>Lucadamo era um daqueles homens que se podem chamar de</p><p>“mandados por Deus”, nas difíceis circunstâncias do Papa eslavo</p><p>nessa Roma dos anos 1990.</p><p>Nessa mesma manhã, Lucadamo e Damien Slattery haviam se</p><p>juntado ao Santo Padre, depois da Missa na sua capela privada, para</p><p>o desjejum nos seus aposentos do quarto andar do Palácio Apostólico.</p><p>A conversa girara em torno de dois assuntos obviamente</p><p>preocupantes, do ponto de vista da segurança.</p><p>Primeiro, havia a necessária revisão dos arranjos para a proteção de</p><p>Sua Santidade durante as cerimônias devocionais que ele conduziria</p><p>em Fátima, em Portugal, daí a três dias. As comemorações, que</p><p>incluiriam um discurso à juventude a ser transmitido para todo o</p><p>mundo, aconteceriam na segunda-feira, dia 13. Lucadamo repassara</p><p>cada momento, do começo ao �m. O Santo Padre estaria de volta ao</p><p>Vaticano, são e salvo em sua mesa, no dia 14.</p><p>O segundo assunto tinha a ver com alguns detalhes sobre um</p><p>estranho tipo de reunião privada que o Cardeal-secretário</p><p>Maestroianni havia organizado para a mesma data, 13 de maio, em</p><p>Estrasburgo, logo após o encerramento das celebrações anuais em</p><p>memória de Robert Schuman. Por acaso, Damien Slattery também</p><p>ouvira a respeito. “Uma reunião de lobos e chacais”, ele dissera</p><p>daquela reunião privada. “Sabemos de quais tocas eles vêm”.</p><p>O Papa ouvira a lista de homens que Slattery e Lucadamo citaram</p><p>como prováveis convidados de Maestroianni. O Arcebispo Giacomo</p><p>Graziani, que logo se tornaria o Cardeal Graziani, assim que</p><p>assumisse o cargo de secretário de Estado. Cardeal Leo Pensabene,</p><p>líder do maior grupo de cardeais. Cardeal Silvio Aureatini, um dos</p><p>mais dedicados partidários de Maestroianni no Vaticano. Cardeal</p><p>Noah Palombo, o agora envelhecido, mas ainda maior especialista,</p><p>encarregado do ritual Católico Romano. O padre-geral dos jesuítas. O</p><p>padre-geral franciscano.</p><p>— Mais conspiração — o Pontí�ce estava cansado de ouvir os</p><p>mesmos nomes mais uma vez. De uma forma ou de outra, de fato,</p><p>neste ou naquele contexto antipapal, os mesmos homens sempre</p><p>�guravam como proeminentes. — Mais contatos. Mais conversa. Eles</p><p>nunca se cansam?</p><p>— O fogo nunca diz “basta”, Santidade — Damien citou as</p><p>Escrituras. Mas ele e Lucadamo expressaram preocupação de que</p><p>houvesse uma diferença notável nesse encontro, pelo menos quanto à</p><p>comitiva do Vaticano na lista do Dia de Schuman.</p><p>— A vontade de cada um desses homens separadamente é tão forte</p><p>quanto a morte — Slattery sublinhou sua preocupação —, eles</p><p>perseguem seus objetivos vinte e quatro horas por dia. Mas</p><p>normalmente não se pode encontrar esses originalíssimos servos de</p><p>Deus na mesma sala, ao mesmo tempo.</p><p>— Também trabalhamos vinte e quatro horas por dia, padre —</p><p>Lucadamo, embora dirigisse sua garantia a Slattery, preocupava-se</p><p>com o súbito e óbvio cansaço no rosto do Papa. — Estaremos no</p><p>encalço deles.</p><p>O Pontí�ce certi�cava-se de que tal cansaço não transparecesse</p><p>agora, enquanto ouvia Maestroianni repassar, a seu modo metódico,</p><p>seus documentos informativos. Ele mostrava apenas serenidade e</p><p>paciência, elementos essenciais de seu minguante arsenal na defesa de</p><p>seu papado. O Papa eslavo recostou a cabeça na cadeira. Estudando o</p><p>rosto de Maestroianni, escutava atentamente cada palavra dita pelo</p><p>cardeal, observava cada gesto dele. Mas o tempo todo se manteve</p><p>preparado para o que sabia que estava por vir. Maestroianni não</p><p>deixaria esta última reunião o�cial como secretário terminar sem</p><p>puxar sua faca mais uma vez.</p><p>Na verdade, a exposição do cardeal-secretário foi</p><p>misericordiosamente curta, considerando o volume de materiais que</p><p>ele havia levado para o escritório papal. Sua Santidade teria errado?</p><p>Talvez, no �m, esta reunião de despedida do cardeal terminasse com</p><p>todas as facas ainda embainhadas.</p><p>— Como sabe, Santo Padre, liderarei a delegação o�cial do Vaticano</p><p>para as celebrações anuais do Dia de Schuman em Estrasburgo.</p><p>— Sim, Eminência. Eu me lembro — com o rosto impassível, o Papa</p><p>inclinou-se para dar uma olhada em seu calendário. — Você está</p><p>partindo para Estrasburgo ainda hoje, não?</p><p>— Sim, Santidade — o Cardeal extraiu uma folha das pastas em seu</p><p>colo. — Tenho uma lista daqueles que estão incluídos em nossa</p><p>delegação.</p><p>O protocolo exigia que o Pontí�ce fosse informado dos membros da</p><p>delegação. Mesmo na guerra, o protocolo do</p><p>Vaticano reinava.</p><p>Sem mudar de expressão, o Papa eslavo pegou a lista do secretário e</p><p>correu os olhos pela coluna de nomes. Era uma duplicação perfeita da</p><p>lista que Damien Slattery e Giustino Lucadamo haviam arriscado no</p><p>café da manhã.</p><p>— Todos eles têm minha bênção para este empreendimento,</p><p>Eminência. Será uma introdução prática para o Arcebispo Graziani,</p><p>neste momento em que se prepara para assumir suas funções como</p><p>secretário de Estado.</p><p>— Isso é o que eu tinha em mente, Santidade.</p><p>Não pela primeira vez em sua guerra prolongada, Maestroianni</p><p>sentiu-se obrigado a admirar a maestria em romanità do Pontí�ce.</p><p>Não havia, no tom do Papa, amargura nem demonstração de ironia.</p><p>No entanto, ambos sabiam que Graziani — como um dos homens de</p><p>Maestroianni, se não um de seus con�dentes mais próximos — era</p><p>su�cientemente bem informado para considerar o papado eslavo</p><p>infeliz e transitório. Com a aprovação de sua delegação assegurada, o</p><p>cardeal-secretário esperava que o Papa eslavo lhe devolvesse o papel.</p><p>Em vez disso, porém, Sua Santidade colocou a lista sobre a mesa sob</p><p>sua mão, casualmente.</p><p>Maestroianni observou o movimento do Pontí�ce com alguma</p><p>perplexidade.</p><p>— Eu gostaria, é claro, de transmitir uma expressão verbal da</p><p>bênção de Vossa Santidade aos meus an�triões na Casa Robert</p><p>Schuman.</p><p>— Por favor, faça isso, Eminência — concordou o Papa. — Saúde a</p><p>todos em nome da Santa Sé. Eles estão envolvidos em uma tarefa</p><p>importante. A Europa que estão construindo é a esperança do futuro</p><p>para muitos milhões.</p><p>O Papa eslavo �nalmente devolveu a folha de papel ao Cardeal. No</p><p>mesmo movimento, pegou uma pasta próxima em sua mesa. Com</p><p>cuidado para não mover a nota con�dencial que recebera,</p><p>recomendando um certo Padre Christian Thomas Gladstone à sua</p><p>atenção, o Pontí�ce tirou da pasta uma das agora conhecidas fotos da</p><p>Noli Me Tangere, de Bernini.</p><p>— Quase me esqueci de lhe dizer, Eminência. Em Sainte-Baume, no</p><p>sábado passado, ofereci toda a peregrinação a Deus como forma de</p><p>pedir-lhe graças especiais para todos os meus bispos. As fotos que</p><p>você mandou seu homem me enviar por fax foram uma grande</p><p>inspiração. Você sem dúvida encontrará alguns dos bispos franceses</p><p>em Estrasburgo. Por favor, transmita minhas bênçãos a eles também.</p><p>O cardeal encarou o olhar inocente do Papa da melhor maneira que</p><p>pôde. A foto da obra de Bernini era, para ele, um alerta, mas a</p><p>situação não lhe permitia se assustar nem achar graça. Na verdade, ele</p><p>�cou tenso com a menção do Papa aos bispos franceses. Ele</p><p>certamente se encontraria com alguns deles em Estrasburgo; alguns</p><p>que ele já considerava aliados próximos e mais alguns que pareciam</p><p>dignos de serem chamados a um alinhamento mais próximo. Sua</p><p>confusão, agora, vinha do fato de que era sempre muito difícil avaliar</p><p>o quanto esse Papa sabia.</p><p>— Sim, Santidade — Sua Eminência conseguiu uma �rmeza em sua</p><p>resposta. — Eu mesmo rezo para que eles façam a escolha</p><p>adequada… ahn… a escolha que mais bene�cie a Igreja Universal.</p><p>Já que estavam no assunto, o Papa eslavo tinha outra sugestão a</p><p>oferecer.</p><p>— Certi�que-se, Eminência, de pedir aos nossos bispos franceses que</p><p>também me acompanhem com suas orações. Como você sabe,</p><p>enquanto o senhor estiver em Estrasburgo, estarei em peregrinação a</p><p>Fátima para a festa de Nossa Senhora, 13 de maio.</p><p>Se o pedido pretendia provocar o cardeal, surtiu efeito. O Pontí�ce</p><p>não apenas enfatizava novamente sua lamentável propensão a viagens</p><p>pietistas. Mais que isso, a simples menção a Fátima despertava as</p><p>mais profundas antipatias pro�ssionais de Maestroianni. Ele muitas</p><p>vezes entrara em con�ito com esse Papa sobre a questão de Fátima,</p><p>bloqueando com sucesso muitas das principais iniciativas papais em</p><p>favor de Fátima e de outras supostas visões da Santíssima Virgem que</p><p>brotavam como cogumelos por toda a Igreja.</p><p>Lúcia dos Santos, a única das três crianças videntes de Fátima a</p><p>sobreviver até a idade adulta, tinha agora oitenta anos. E agora como</p><p>Irmã Lúcia, uma freira enclausurada em um convento carmelita, ela</p><p>alegava ainda receber visitas contínuas da Virgem Maria e permanecia</p><p>em contato com o Papa, por cartas e emissários, desde que o atentado</p><p>contra sua vida em 1981 o levara a investigar os acontecimentos de</p><p>Fátima.</p><p>O cardeal-secretário sabia pouco ou nada sobre a correspondência</p><p>entre o Papa e a freira. O que ele sabia, descartava como irrelevante,</p><p>impróprio ou perigoso. Na opinião de Maestroianni, nenhum</p><p>ponti�cado adequado poderia se dar ao luxo de ser regulado, nos dias</p><p>de hoje, por relatos de visões provenientes de freiras excessivamente</p><p>zelosas, superimaginativas e idosas.</p><p>— Santidade — agora havia um tom inquieto na voz do cardeal —,</p><p>não creio que seja uma boa ideia pedir aos bispos da França essa</p><p>colaboração próxima com a visita de Vossa Santidade a Fátima.</p><p>Ninguém, muito menos esses bispos, seria contrário às devoções</p><p>privadas de Vossa Santidade. Mas sendo, em primeiro lugar, o Papa</p><p>de todos os cristãos, o que quer que faça, mesmo em sua vida privada,</p><p>incidirá, necessariamente, em sua persona papal. Vossa Santidade,</p><p>portanto, compreenderá que seria imprudente da minha parte pedir</p><p>algo aos bispos da França no que se refere a esse assunto.</p><p>O Papa eslavo �cou menos surpreso com o sentimento expresso por</p><p>Maestroianni do que com o fato de o secretário ter falado tão</p><p>diretamente o que pensava. Ele estava quase tentado a deixar por isso</p><p>mesmo. Ainda assim, a questão tocava no cerne das hostilidades entre</p><p>eles. Isso, pelo menos, valia a pena apontar.</p><p>— As consequências seriam tão terríveis quanto sugere, se Vossa</p><p>Eminência mencionasse meu pedido de orações aos bispos? Não havia</p><p>acrimônia ou consternação na pergunta do Santo Padre. Pelo tom de</p><p>sua voz, ele poderia estar pedindo conselhos a qualquer membro de</p><p>sua equipe.</p><p>Maestroianni, sem demorar um instante, respondeu de maneira</p><p>áspera:</p><p>— Francamente, Santidade: tal pedido, somado a todos os outros</p><p>fatores, pode levar várias mentes ao limite da tolerância.</p><p>O Papa eslavo endireitou-se na cadeira. As fotos de Bernini ainda</p><p>estavam em sua mão, mas seus olhos encontraram direta e plenamente</p><p>os do cardeal.</p><p>— Sim, Eminência. Por favor continue.</p><p>— Santidade, por chamado do dever e por pelo menos cinco anos, eu</p><p>tenho repetido que o elemento mais precioso da Igreja de Cristo hoje,</p><p>a unidade entre o Papa e os bispos, está em perigo. Pelo menos dois</p><p>terços dos bispos sentem que este ponti�cado não lhes fornece o</p><p>calibre de liderança papal de que precisam. Tudo isso é tão grave em</p><p>minha mente, Santidade, que penso que talvez tenhamos de considerar</p><p>em um futuro próximo se, pelo bem dessa preciosa unidade, este</p><p>ponti�cado… O cardeal-secretário percebeu, de repente, que estava</p><p>suando muito, e isso o intrigou. Ele sabia que tinha a vantagem. O</p><p>que havia, então, de tão irredutivelmente estranho ou inatingível nesse</p><p>Papa a ponto de fazer o cardeal suar de nervoso? Mais para se</p><p>tranquilizar do que para transmitir qualquer coisa ao Pontí�ce,</p><p>Maestroianni tentou sorrir.</p><p>— Bem, como podemos expressar isso, Santidade? Por uma questão</p><p>de unidade, este ponti�cado deverá ser reavaliado por Vossa</p><p>Santidade e pelos bispos. Pois estou certo de que Vossa Santidade</p><p>deseja ver essa preciosa unidade preservada intacta.</p><p>— Vossa Eminência.</p><p>O Santo Padre levantou-se de sua cadeira. Seu rosto estava pálido.</p><p>Alarmes silenciosos dispararam nas entranhas de Maestroianni. O</p><p>protocolo não o deixava escolha a não ser se levantar. Ele teria falado</p><p>cedo demais?</p><p>— Eminência — Sua Santidade disse uma segunda vez. — Devemos</p><p>discutir este assunto de unidade, que você tão lealmente trouxe à</p><p>minha atenção. Conto com o bom julgamento de Vossa Eminência em</p><p>relação aos bispos da França. Vá em paz.</p><p>— Santidade.</p><p>Pronto ou não, a reunião de despedida do cardeal estava encerrada.</p><p>Ele se virou para atravessar o escritório e sair pela porta, arrumando</p><p>os papéis em suas pastas enquanto caminhava.</p><p>Em parte, Maestroianni se sentia impotente e desapontado. Ele havia</p><p>tocado o acorde da despedida em seu encontro �nal com o Papa,</p><p>exatamente como pretendia.</p><p>Mas com que proveito, ele se</p><p>perguntava. A�nal e simplesmente, não havia como se comunicar com</p><p>esse eslavo! No momento em que passou apressado por Monsenhor</p><p>Taco Manuguerra e entrou em seu próprio escritório, no entanto,</p><p>todas essas emoções, se é que eram emoções, já haviam arrefecido no</p><p>cardeal. Ele sobrevivia, precisamente porque era imune a qualquer</p><p>agonia profunda da alma, assim como era incapaz de um êxtase</p><p>elevado. Ele nunca se afastava dos fatos controláveis. Nos esforços da</p><p>arte de governar, ele sempre pousava com segurança, bastando-lhe ter</p><p>a visão de horizontes familiares. Somente se os eventos escapassem a</p><p>esses horizontes, Sua Eminência se veria enganado pelo destino.</p><p>Hoje, os eventos não escaparam a esses horizontes.</p><p>O Pontí�ce esfregou a testa como se quisesse remover o pálido véu</p><p>de tristeza que envolvia sua mente. Ele começou a andar pelo</p><p>escritório, forçando-se a revisar o conteúdo da sessão de despedida do</p><p>cardeal, futuro ex-secretário.</p><p>Em essência, não havia nada de novo na troca de farpas dessa manhã</p><p>entre ele e Maestroianni. Mesmo a pequena escaramuça de hoje sobre</p><p>a lista do cardeal de delegados do Vaticano para o Memorial do Dia</p><p>de Schuman seguia o padrão geral da guerra entre o Pontí�ce e o</p><p>secretário.</p><p>O Santo Padre parou de andar e voltou à sua mesa, insatisfeito. Um</p><p>pensamento começou a sussurrar em sua mente, como várias vezes</p><p>acontecera nas últimas semanas. Como era interminável essa pressão,</p><p>o sussurro lhe dizia. Havia tanta coisa errada, e ele parecia tão</p><p>impotente para fazer qualquer coisa a respeito. Talvez Maestroianni,</p><p>de certa forma, tivesse razão: talvez tivesse chegado a hora de</p><p>considerar uma alternativa ao seu ponti�cado.</p><p>O Papa voltou a pousar o olhar na fotogra�a da estátua de Bernini.</p><p>Ele estudou a expressão no rosto de Santa Maria Madalena. Uma</p><p>expressão que tinha tudo a ver com a transcendência. O Pontí�ce</p><p>recordou uma frase de Friedrich Nietzsche: “Se o transcendente não</p><p>existe, devemos abolir a razão e esquecer a sanidade”.</p><p>Isso, ele re�etiu, era a soma e a substância da guerra entre ele e o</p><p>Cardeal Maestroianni. Ou a vida era totalmente permeada pela</p><p>Providência de Deus, para que a fé divina a percebesse, a razão</p><p>humana a aceitasse e a vontade a escolhesse, ou não era. Se este fosse</p><p>o caso, então tudo se devia ao cego acaso. A vida era uma humilhação</p><p>hedionda, uma piada cósmica degradante para qualquer um que fosse</p><p>tolo o su�ciente para ter alguma esperança. O Papa escolhera</p><p>acreditar na Providência de Deus há muito tempo. Mais de uma vez,</p><p>acreditava, a Providência o livrara do desastre; como naquele dia em</p><p>Cracóvia, durante a Segunda Guerra Mundial, quando, voltando do</p><p>trabalho para casa, ele parou para varrer as folhas de outono que</p><p>haviam quase enterrado um santuário da Santíssima Virgem à beira</p><p>da estrada. Amigos o encontraram lá e o avisaram de que a polícia</p><p>nazista o esperava do lado de fora de sua casa; então ele se escondeu</p><p>em um lugar seguro.</p><p>Ou como naquele dia na Praça de São Pedro em que a imagem da</p><p>Santíssima Virgem de Fátima, pregada na blusa de uma criança —</p><p>�lha de um carpinteiro — o �zera curvar-se para dar a bênção àquela</p><p>criança, pelo que as balas da Browning automática de Ali Agca não</p><p>atingiram seu crânio.</p><p>Se ele não visse a mão de Deus nesses eventos fortuitos, teria de</p><p>deixar de crer. Diante desse pensamento, o Santo Padre respirou</p><p>fundo, como um outro homem qualquer em reação a uma dor</p><p>repentina.</p><p>De repente o Papa corrigiu a postura, �cando ereto em sua cadeira.</p><p>Não tinha sido esse o objetivo de Maestroianni essa manhã? Durante</p><p>tantos encontros entre esses dois inimigos que se conheciam tão bem,</p><p>conforme a adaga do cardeal se aproximava, a ideia era tentar o Papa</p><p>a se livrar desse encargo papal. Mas havia algo novo desta vez. Algo</p><p>continuava incomodando o Papa. Ele pegou o interfone e ligou para</p><p>seu secretário, na sala ao lado.</p><p>— Monsenhor Daniel, presumo que tenha gravado minha reunião</p><p>com o cardeal-secretário.</p><p>O que o Papa desejava, disse ele ao seu secretário, era uma</p><p>reprodução dos últimos dois ou três minutos da reunião.</p><p>— Sem problemas, Santidade — Monsenhor Daniel rebobinou a</p><p>última parte da �ta e a tocou.</p><p>O Pontí�ce recordou as gotas de suor que surgiram no rosto de</p><p>Maestroianni, como se o homem tivesse sido atingido por uma febre</p><p>repentina. Atento, ele ouviu novamente o som da voz do cardeal.</p><p>“Bem, como podemos expressar isso, Santidade? Por uma questão de</p><p>unidade, este ponti�cado deverá ser reavaliado por Vossa Santidade e</p><p>pelos bispos”.</p><p>Monsenhor Daniel entrou no escritório papal enquanto a �ta ainda</p><p>estava tocando. Aproximando-se, ele esperou, em deferência à</p><p>profunda concentração do Papa nas palavras do cardeal-secretário. A</p><p>�ta parou.</p><p>— Monsenhor — Sua Santidade olhou para Sadowski. O secretário</p><p>prendeu a respiração ao ver a expressão pálida de cansaço no rosto do</p><p>Pontí�ce.</p><p>A</p><p>— Monsenhor, acabamos de receber uma cópia antecipada da</p><p>sentença de morte deste ponti�cado. Até me pediram para assiná-la.</p><p>IX</p><p>base pessoal de operações que o cardeal havia escolhido para</p><p>esta fase de sua campanha cada vez mais acirrada contra o Papa</p><p>eslavo era o hotel mais antigo e elegante de Estrasburgo. O</p><p>Palais d’Alsace, que havia aberto suas portas para personalidades</p><p>como o kaiser alemão e a Rainha Vitória no ano novo de 1900, era</p><p>em 1991 um magní�co anacronismo. Seu saguão era agraciado com</p><p>lustres de cristal �nos e amplos que brilhavam como luas no</p><p>�rmamento privado deste mundo ainda privilegiado, derramando luz</p><p>sobre altos tetos de estuque, cornijas italianas e arquitraves</p><p>grandiosas.</p><p>— Não sabia que Vossa Eminência era tão �n de siécle! — Cyrus</p><p>Benthoek provocou o cardeal quando os dois se encontraram para</p><p>jantar, na noite de sexta-feira.</p><p>Maestroianni respondeu à altura:</p><p>— A única perspectiva �n de siécle que você encontrará em mim é</p><p>meu milenarismo! Embora ditas levianamente, as palavras do cardeal</p><p>soaram claras e muito aceitáveis para Benthoek. Sua Eminência estava</p><p>focado apenas em negócios. Sua atenção, seu milenarismo, estava</p><p>voltada para a reunião privada que ele e esse corretor americano do</p><p>poder transnacional encabeçariam três noites depois, imediatamente</p><p>após o encerramento das comemorações o�ciais do Dia Memorial de</p><p>Robert Schuman.</p><p>Dada a volátil mistura de personalidades envolvidas, o truque, neste</p><p>pequeno encontro, seria persuadir os membros das delegações de</p><p>Maestroianni e Benthoek a deixarem de lado suas ambições pessoais e</p><p>inimizades e forjar uma mentalidade comum e um consenso total de</p><p>ação com �guras poderosas fora do redil imediato do catolicismo e do</p><p>próprio cristianismo. O cardeal-secretário repetiu para Benthoek os</p><p>antecedentes, as características e o valor de cada um dos sete sábios</p><p>do Vaticano que ancorariam seu lado da nova aliança. O cardeal</p><p>começou sua exposição com um rápido esboço do Cardeal Silvio</p><p>Aureatini.</p><p>Como criatura especial de Maestroianni na Secretaria, Aureatini era</p><p>um homem com certa in�uência global. Através de sua supervisão do</p><p>inovador programa do Vaticano conhecido como Rito da Renovação</p><p>Cristã de Adultos (o �����), o Cardeal Aureatini há muito</p><p>in�uenciava cada diocese e paróquia em todo o mundo. Na verdade,</p><p>Maestroianni assegurou a Benthoek, sob a liderança de Aureatini, o</p><p>Rito da Renovação Cristã de Adultos havia mudado o próprio foco</p><p>do ritual católico, de modo que agora ele era mais aceitável do que</p><p>nunca para a população cristã não católica em geral.</p><p>— E essa não é sua única conquista. Aureatini também está</p><p>profundamente envolvido no delicado e contínuo trabalho de reforma</p><p>da lei canônica, com a minimização do privilégio papal e</p><p>maximização do cargo de bispo na aplicação dessa lei em todos os</p><p>níveis da vida da Igreja.</p><p>O tema do direito canônico levou o Cardeal Maestroianni ao</p><p>próximo homem de sua delegação. O Cardeal Noah Palombo, de</p><p>rosto ácido e sempre severo, era ainda o que havia sido por décadas: o</p><p>especialista em liturgia reinante em Roma. Palombo era o homem</p><p>o�cialmente encarregado, no Vaticano, da gestão global do ����, o</p><p>Conselho Internacional</p><p>para a Liturgia Cristã. Como o próprio nome</p><p>indica, o ���� operava no nível da oração e devoção católica</p><p>aprovadas. Assim como o ����� de Aureatini entre os leigos, Palombo</p><p>promovia entre os sacerdotes e religiosos um nivelamento da distinção</p><p>entre padres e leigos, entre católicos e não católicos.</p><p>A terceira entrada na lista de Maestroianni, Sua Eminência o Cardeal</p><p>Leo Pensabene, era um exército de um homem só. Pensabene tinha</p><p>passado mais de vinte anos em postos diplomáticos na América do</p><p>Norte e do Sul. Trazido de volta a Roma e elevado ao posto de</p><p>cardeal, rapidamente chegara à linha de frente como líder do grupo</p><p>mais poderoso do Colégio dos Cardeais; os cardeais que teriam a</p><p>maior voz na escolha do sucessor do Papa eslavo, no próximo</p><p>Conclave.</p><p>Além disso, como especialista em todas as Comissões de Justiça e Paz</p><p>em Roma e em toda a Igreja Universal, o Cardeal Pensabene estava</p><p>afundado, até seu chapéu vermelho, nas atividades sociopolíticas da</p><p>Igreja e do Estado. Por meio dos bispos do mundo, Leo Pensabene</p><p>havia constantemente reorientado e remodelado a agenda social e</p><p>política da Igreja para re�etir a visão de um reino de unidade seletiva,</p><p>paz e abundância, um reino deste mundo e administrativamente</p><p>perfeito.</p><p>— E seu sucessor como secretário de Estado, Eminência? —</p><p>Benthoek voltou sua atenção para o Arcebispo Giacomo Graziani. —</p><p>Como o senhor vê o papel dele na reunião?</p><p>— Quieto e tranquilo, Cyrus. Como o próprio Papa eslavo me disse</p><p>com tanta propriedade, esta reunião será uma introdução prática para</p><p>o Arcebispo Graziani, neste momento em que se prepara para assumir</p><p>suas funções como secretário de Estado.</p><p>Restavam apenas mais três homens na lista de delegados de</p><p>Maestroianni: Michael Coutinho, padre-geral da Ordem dos Jesuítas;</p><p>Padre-geral Victor Venable, chefe dos franciscanos; e, por último, o</p><p>velho e experiente Cardeal Svensen, da Bélgica, que havia expressado</p><p>a adorável ideia de acolher os bispos do coração da Europa mais</p><p>intimamente no lucrativo rebanho — e no molde político — da</p><p>Comunidade Europeia.</p><p>Como padre-geral dos jesuítas, por exemplo, Michael Coutinho era</p><p>tido no Vaticano como o tradicional decano dos superiores das</p><p>principais ordens religiosas. A sua in�uência sobre todas as outras</p><p>ordens e congregações religiosas era enorme. Além disso, se alguém</p><p>duvidasse da in�uência dos jesuítas entre as pessoas comuns, uma</p><p>olhada nos países do Terceiro Mundo seria bastante convincente.</p><p>Somente através de seu envolvimento na teologia da libertação, os</p><p>jesuítas já desempenhavam um papel de liderança no desmame do</p><p>catolicismo latino-americano e �lipino de sua complacente aceitação</p><p>da autoridade tradicional e no levantamento de movimentos de</p><p>guerrilha armada e ativismo político nos moldes mais militantes. O</p><p>antipapismo era, atualmente, uma característica dos jesuítas.</p><p>Victor Venable, como padre-geral dos franciscanos, era igualmente</p><p>impressionante. Enquanto os jesuítas haviam desmamado milhões de</p><p>católicos de uma teologia da fé transcendente, em favor de uma</p><p>teologia do humanismo no Ocidente e de uma teologia da revolução</p><p>sociopolítica mundana no Terceiro Mundo, os franciscanos haviam</p><p>afastado pelo menos tantos milhões das devoções pessoais outrora tão</p><p>características dos católicos romanos em todo o mundo.</p><p>Após o seu incentivo ao movimento carismático, os franciscanos</p><p>passaram a abraçar os conceitos agora revisados e impessoais de um</p><p>“novo Céu” e uma “nova terra” e a meta alcançável da paz entre</p><p>todos os homens. A in�uência dos franciscanos dentro dos</p><p>movimentos da Nova Era, além de seu amplo apelo entre os</p><p>protestantes, já havia construído pontes ecumênicas que de nenhuma</p><p>outra maneira teriam sido possíveis.</p><p>Firmes em seu pensamento de que Coutinho, o jesuíta, e Venable, o</p><p>franciscano, eram exatamente o tipo de construtores de pontes que</p><p>deveriam ser trazidos para a nova aliança, Maestroianni e Benthoek</p><p>voltaram sua atenção para Pier Svensen, o emérito, mas ainda</p><p>enérgico, cardeal belga.</p><p>Como Maestroianni havia previsto, Benthoek investigara</p><p>minuciosamente Svensen. Ao que parecia, ele fora aprovado por</p><p>Benthoek, e com razão. Em sua juventude, o belga fora o principal</p><p>arquiteto e engenheiro mestre das implacáveis táticas parlamentares</p><p>pelas quais o Concílio Vaticano ��, do Papa Bom, seria desviado de</p><p>seu propósito original. Inteligente, ousado, sempre seguro de si,</p><p>intimamente antirromano, de�ciente em sua teologia básica, mas</p><p>quase messiânico na conceituação de seu valor histórico, Svensen era</p><p>bem relacionado e querido nas esferas mais altas da Comunidade</p><p>Europeia.</p><p>— Ele é um pouco pentecostal em suas devoções — Benthoek riu. —</p><p>Dizem que tem o hábito de proferir longos uivos aparentemente sem</p><p>sentido na igreja — um dom particular de “falar em línguas”, ele</p><p>a�rma. Mas sua avaliação do belga foi certeira, Eminência. Ele é</p><p>conhecido por ser tão brutalmente franco e racional quanto qualquer</p><p>bom �amengo. De um jeito ou de outro, precisamos incluí-lo em</p><p>nossa aliança. E antes de deixarmos Estrasburgo, precisamos �rmar</p><p>nossos planos para construir a ponte de Svensen entre os bispos</p><p>europeus e a ��.</p><p>•</p><p>No domingo, 12 de maio, faltando um dia inteiro para que seu tempo</p><p>fosse tomado pela panóplia o�cial das comemorações do Dia de</p><p>Schuman, um carro alugado com motorista trouxe a dupla à região de</p><p>Sundgau, para mais uma sessão de trabalho. Enquanto trafegavam</p><p>pela Rota da Carpa Frita, e quando puderam morder o delicioso peixe</p><p>que a tornara famosa, a conversa centrou-se, principalmente, nos</p><p>convidados de Cyrus Benthoek para a reunião que se seguiria às</p><p>comemorações o�ciais. Dos cinco personagens que Benthoek reuniria</p><p>em torno de si para essa ocasião, quatro eram leigos.</p><p>Nicholas Clatterbuck era um homem que o cardeal-secretário havia</p><p>encontrado em várias ocasiões. Ele era ��� da �lial londrina do</p><p>escritório internacional de advocacia de Cyrus, Crowther, Benthoek,</p><p>Gish, Jen & Ekeus. Como braço direito de Benthoek em seu escritório</p><p>principal, devia naturalmente ser incluído em um empreendimento tão</p><p>importante como aquele.</p><p>Também estavam incluídos dois membros do conselho internacional</p><p>de consultores de Benthoek: Serozha Ga�n, um moscovita, e Otto</p><p>Sekuler, da Alemanha. Os comentários de Cyrus sobre esse par foram</p><p>breves.</p><p>— Juntos, eles conhecem todo mundo que é alguém no novo quadro</p><p>da ���� que está prestes a se formar; e o mesmo vale para todos os</p><p>países da Europa Oriental.</p><p>O quarto leigo tinha sido uma adição de última hora.</p><p>— Ele se chama Gibson Appleyard, Eminência. Suas credenciais são</p><p>interessantes. Inteligência da Marinha dos ���, emprestado ao</p><p>Departamento de Estado americano. Constantemente viajando para</p><p>pescar em lugares inesperados. Não será um dos membros votantes do</p><p>grupo, é claro; quero dizer, não estará representando nenhum órgão</p><p>de seu governo. Mas aconteceu de ele me ligar de Washington, e me</p><p>pareceu… bem, devo dizer, apropriado que ele se juntasse a nós a</p><p>título extra-o�cial, se é que o senhor me entende.</p><p>Maestroianni entendia. E concordou com a óbvia esperança de</p><p>Cyrus Benthoek de que, mesmo como representante extra-o�cial do</p><p>governo dos Estados Unidos, Appleyard pelo menos tiraria algumas</p><p>impressões úteis da discreta reunião em Estrasburgo. Por um lado,</p><p>Appleyard teria todas as oportunidades para aprender que a posição</p><p>do atual Papa era contrária à Nova Ordem Mundial. E também</p><p>aprenderia que tudo o que Benthoek e o próprio Maestroianni</p><p>propunham estava muito de acordo com a política atual dos Estados</p><p>Unidos.</p><p>O único clérigo entre os convidados de Benthoek em Estrasburgo era</p><p>um homem que o Cardeal Maestroianni estava ansioso para conhecer</p><p>melhor. O Reverendo Herbert Tartley era um membro da Igreja da</p><p>Inglaterra, atualmente atuando como conselheiro especial do trono da</p><p>Inglaterra e consultor especial do Arcebispo de Cantuária. Era certo</p><p>que, com o tempo, Tartley seria recompensado com a Sé de</p><p>Cantuária.</p><p>Maestroianni sabia que sempre haveria especulações em torno dos</p><p>bens do trono inglês. Mas o cardeal-secretário estava certo ao</p><p>reconhecer, nesse trono, os</p><p>traços de um poder corporativo, dotado de</p><p>um serviço de inteligência da mais alta qualidade no que se refere aos</p><p>assuntos humanos em curso. Um poder instalado sobre alicerces tão</p><p>profundos na civilização ocidental que persistiria enquanto essa</p><p>civilização persistisse. Maestroianni sabia, também, que o poder</p><p>corporativo dentro do qual estava embutido o trono inglês não tinha</p><p>nada que ver com um Deus transcendente ou com qualquer lealdade</p><p>professada a Jesus Cristo de Nazaré e do Calvário como a �gura</p><p>central da história; que o Reverendo Herbert Tartley era uma estrela</p><p>em ascensão na Igreja da Inglaterra; que a Igreja da Inglaterra,</p><p>historicamente, era um apêndice do trono; e que todos os três</p><p>constituíam uma espécie de passaporte coletivo para o futuro</p><p>exclusivamente humano na nova ordem que se aproximava da</p><p>história humana.</p><p>Na noite de domingo, ao voltar para sua suíte no Palais d’Alsace, o</p><p>Cardeal-secretário Maestroianni estava imensamente satisfeito com o</p><p>trabalho do �m de semana. Sua Eminência sempre dormia bem</p><p>quando se sentia preparado para o dia seguinte.</p><p>Não há Rota da Carpa Frita no Vaticano. E não havia excursões de</p><p>lazer na agenda de domingo, 12 de maio, do Papa eslavo: aquele era o</p><p>dia da sua partida para as celebrações de Fátima que tanto</p><p>incomodavam o cardeal-secretário.</p><p>Por volta das 15h30 o Papa e seu secretário, Monsenhor Daniel</p><p>Sadowski, com mais alguns membros da equipe pessoal de Sua</p><p>Santidade, dirigiram-se rapidamente para o helicóptero da Alitalia que</p><p>os aguardava. Sua decolagem para Fiumicino aconteceu exatamente</p><p>dentro do cronograma, assim como sua partida de Fiumicino para</p><p>Portugal, às 20h30. Sua Santidade estava em seus aposentos</p><p>temporários em Fátima, em segurança.</p><p>Depois de uma ceia ao �m da noite, o Papa e Sadowski reuniram-se</p><p>com o Bispo de Fátima-Leiria e a equipe local de organizadores para</p><p>repassar a ordem dos eventos previstos para as comemorações do</p><p>septuagésimo quarto aniversário da primeira aparição da Virgem</p><p>Maria aos três pastorinhos em Fátima. A Missa ponti�cal solene seria</p><p>rezada pela manhã. As audiências privadas a seguir eram tão</p><p>numerosas que se estenderiam até o �m da tarde. O discurso à</p><p>juventude, um elemento sempre importante para esse Papa, seria</p><p>realizado no início da noite. Finalmente, após o anoitecer, o ponto</p><p>alto da agenda pública do Papa visitante seria o ofício à luz de velas e</p><p>a procissão.</p><p>— Em suma, Santidade — observou o bispo com evidente satisfação</p><p>—, pode haver um milhão e meio de pessoas aqui amanhã. Só para o</p><p>comício da juventude esperamos um milhão. No ofício à luz de velas,</p><p>talvez um quarto de milhão a trezentos mil. E tudo será transmitido</p><p>por rádio e televisão para estações europeias e estrangeiras.</p><p>— Uma coisa importante, Excelência — o Papa começou a perguntar</p><p>ao bispo. — Não vejo menção do meu encontro com a Irmã Lúcia.</p><p>Certamente um lapso, Excelência. A que horas será? O bispo tropeçou</p><p>nas palavras ao responder:</p><p>— Pensei que Vossa Santidade soubesse… Diante de tamanha</p><p>demonstração de confusão, o Pontí�ce �cou preocupado. Lúcia vivia</p><p>na lembrança de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo</p><p>como a única sobrevivente das três crianças videntes de Fátima. Mas</p><p>era agora uma mulher idosa, com mais de oitenta anos. O primeiro</p><p>pensamento de Sua Santidade foi a respeito da saúde da freira.</p><p>— Que eu soubesse? — Sua Santidade retomou a última palavra.</p><p>— Soubesse de quê, Excelência? Onde está a Irmã? Ela está doente?</p><p>— Irmã Lúcia está bem, Santidade. Não é nada disso. O bispo</p><p>piscava.</p><p>— Ela está em seu convento em Coimbra, alguns quilômetros ao</p><p>norte de…</p><p>— Então qual é o problema, Excelência? Mais precisamente, quando</p><p>a Irmã Lúcia chegará a Fátima? Com a compostura quase desfeita, o</p><p>bispo procurou sua pasta.</p><p>— Achei que Vossa Santidade soubesse do telegrama. Eu o tenho</p><p>aqui… em algum lugar nestes papéis… Aqui está. O telegrama do</p><p>cardeal secretário de Estado, reiterando a proibição.</p><p>Não havia necessidade de explicar mais. Quando o Papa pegou o</p><p>telegrama e o leu, entendeu tudo. Quatro anos antes, Sua Eminência,</p><p>o Cardeal Maestroianni, tomara para si a responsabilidade de proibir</p><p>a Irmã Lúcia de qualquer acesso ao mundo exterior. Sob pena de</p><p>excomunhão, Lúcia não deveria receber visitas. Ela não deveria fazer</p><p>declarações públicas ou privadas sobre a mensagem de Fátima ou</p><p>sobre qualquer assunto relacionado às aparições. Acima de tudo,</p><p>estava proibida de sair do convento ou de pôr os pés em Fátima sem a</p><p>autorização expressa do cardeal. Com o rosto sombrio, o Pontí�ce</p><p>passou o telegrama para Monsenhor Daniel.</p><p>Monsenhor Daniel ligou para o Mestre-geral Damien Slattery no</p><p>Angelicum em Roma e então passou o telefone para o Papa. Em</p><p>poucos segundos, Slattery entendeu a situação. Pediu a Sua Santidade</p><p>que lesse a data e o código do telegrama do Departamento de Estado.</p><p>— Vou ligar para Vossa Santidade dentro de uma hora. Por fora do</p><p>canal, é claro.</p><p>Slattery ordenou que seu carro lhe fosse trazido imediatamente. Em</p><p>seguida, telefonou para o secretário de Maestroianni, Monsenhor</p><p>Taco Manuguerra, para localizar o homem que Sua Eminência</p><p>deixara de plantão, durante sua ausência, como secretário substituto.</p><p>Manuguerra intrometeu-se no assunto.</p><p>— Sua Eminência está ausente até terça-feira, mestre-geral.</p><p>— Sim, monsenhor. Eu sei disso — Slattery deixou claro, no tom de</p><p>sua voz, sua irritação. — O Arcebispo Buttafuoco está de plantão,</p><p>como secretário substituto. Encontre-o e faça com que ele me</p><p>encontre em seu escritório na Secretaria, dentro de vinte minutos.</p><p>— Tão tarde, mestre-geral? Como vou explicar…</p><p>— Vinte minutos, monsenhor!</p><p>•</p><p>Quando um dominicano gigante, vestido de branco, surgiu como um</p><p>encolerizado fantasma no escritório de Canizio Buttafuoco, no vazio</p><p>terceiro andar do Palácio Apostólico, o arcebispo estava andando de</p><p>um lado para o outro sobre o tapete, para acalmar seus nervos. Como</p><p>Taco Manuguerra e todos no Vaticano, ele conhecia a posição</p><p>privilegiada de Damien Slattery na casa papal. Slattery foi direto ao</p><p>ponto.</p><p>— Por favor, leia para mim o telegrama número 207-SL. Buttafuoco</p><p>obedeceu.</p><p>— Por ordem de quem esse telegrama foi enviado?</p><p>— Por ordem do cardeal-secretário, padre.</p><p>— Muito bem, Excelência. Como secretário substituto, o senhor fará</p><p>a gentileza de me acompanhar até a sala de codi�cação, onde enviará</p><p>outro telegrama para revogar este.</p><p>O Arcebispo Buttafuoco começou a suar.</p><p>— Não posso fazer isso sem antes consultar Sua Eminência. Slattery</p><p>já estava na porta.</p><p>— Deixe-me esclarecer as coisas para o senhor, Excelência. A ordem</p><p>veio do Santo Padre. Se recusar, passará seus dias batizando bebês em</p><p>Bangladesh. E se houver alguma culpa a recair sobre a cabeça de</p><p>alguém, será sobre a minha. Na verdade, se você não tomar cuidado,</p><p>pode até se tornar um herói, apesar de você mesmo.</p><p>Quarenta e cinco minutos após o telefonema do Santo Padre, um</p><p>satisfeito mestre-geral pôde relatar a Sua Santidade, por telefone, que</p><p>um telegrama havia sido enviado à madre superiora do convento da</p><p>Irmã Lúcia em Coimbra. Pouco depois, a madre superiora havia</p><p>telefonado para o secretário substituto, para veri�car se o telegrama</p><p>era mesmo da Secretaria e o�cial.</p><p>A voz do Pontí�ce se iluminou.</p><p>— Então, mestre-geral, a Irmã Lúcia estará em Fátima a tempo para</p><p>a Missa solene amanhã de manhã?</p><p>— Estará, Santo Padre. Ela estará aí para a Missa solene pela manhã,</p><p>e �cará para uma audiência privada com Vossa Santidade.</p><p>Nas primeiras horas da manhã no Palais d’Alsace em Estrasburgo, o</p><p>Cardeal-secretário Maestroianni foi acordado de seu sono sem sonhos</p><p>por um telefonema da recepção do hotel.</p><p>— Com licença, Eminência — desculpou-se o gerente noturno.</p><p>— Mas um telegrama urgente chegou de Roma.</p><p>O cardeal pegou seu robe.</p><p>— Mande-o imediatamente.</p><p>A mensagem, do Arcebispo Canizio Buttafuoco, consistia</p><p>principalmente no texto de um telegrama que ele enviara ao convento</p><p>da Irmã Lúcia em Coimbra, ordenando que a freira estivesse presente</p><p>em Fátima na manhã seguinte, 13 de maio. Buttafuoco acrescentara</p><p>apenas: “mestre-geral”.</p><p>—</p><p>Slattery outra vez — Maestroianni balançou a cabeça e colocou</p><p>de lado o telegrama. Realista como era, voltou para a cama e fechou</p><p>A</p><p>os olhos. Uma escaramuça menor não decidiria a grande batalha.</p><p>Quanto a Slattery, ainda se podia dar um jeito nele. No momento</p><p>certo, ele daria um jeito nele.</p><p>X</p><p>lgo do espírito de Robert Schuman permeou cada momento</p><p>durante as celebrações o�ciais do Dia de Schuman na segunda-</p><p>feira, 13 de maio, pensou o Cardeal Maestroianni. De seu</p><p>assento em algum lugar na eternidade de Deus, certamente aquele</p><p>homem paciente e de fala mansa deve ter olhado para baixo, através</p><p>de seus óculos de aro de tartaruga, e sorrido.</p><p>A primeira das celebrações o�ciais — um congresso de todos os</p><p>delegados — reuniu-se no enorme Palais de l’Europe, às margens do</p><p>rio Ill, em Estrasburgo. Tão grande era a atmosfera de cordialidade —</p><p>até mesmo de amizade — que até o costumeiro e tolerado</p><p>chauvinismo internacional estava ausente. Os franceses falavam</p><p>moderadamente. Os alemães falavam permissivamente, como quem</p><p>diz “viva e deixe viver”. Os italianos elogiavam Robert Schuman sem</p><p>fazer referência a nenhuma contribuição italiana à sua cultura. Os</p><p>britânicos falavam como se fossem tão europeus quanto qualquer</p><p>outro, e como se Schuman fosse tão precioso para eles quanto</p><p>Winston Churchill.</p><p>Em seu breve discurso, o Cardeal Maestroianni, secretário de Estado</p><p>do Vaticano, transmitiu as bênçãos do Santo Padre quase palavra por</p><p>palavra, como o Pontí�ce havia falado apenas três dias antes.</p><p>— Todos neste congresso — o cardeal sorriu para todos — estão</p><p>engajados em uma tarefa importante. A Europa que estamos</p><p>construindo é a esperança do futuro para muitos milhões.</p><p>Os bons sentimentos do congresso foram levados como as sementes</p><p>de uma nova primavera para o almoço que se seguiu. As horas da</p><p>tarde foram ocupadas com descontraídos, mas meticulosamente</p><p>organizados passeios por Estrasburgo, após os quais houve tempo</p><p>su�ciente para todos descansarem e se vestirem para o jantar de gala,</p><p>marcado para as seis horas em ponto na Casa Robert Schuman.</p><p>Como tudo nesse dia festivo, o jantar em si, oferecido pelos</p><p>comissários europeus sentados grandiosamente no estrado, foi tudo o</p><p>que o cardeal poderia desejar. Os pratos mais saborosos de</p><p>Estrasburgo foram servidos, juntamente com uma fartura de foie gras</p><p>e dos melhores vinhos da região. O tipo certo de Nachtmusik</p><p>adornava as conversas entre pessoas importantes. Não havia discurso</p><p>agendado, e nenhum seria necessário. Todos pareciam animados por</p><p>um frêmito de prazer intelectual, pelo fato de todos aqui estarem</p><p>vivos para ver os sonhos do grande diplomata francês se</p><p>materializarem sob seus olhares.</p><p>Às 19h, o dia de homenagem o�cial foi coroado por um brinde �nal</p><p>a Robert Schuman, notável principalmente por sua longevidade.</p><p>Pontualmente às 19h30, em uma rara demonstração de total</p><p>unanimidade, os comissários europeus se levantaram de suas cadeiras</p><p>no estrado, pediram aos convivas um aplauso para as comemorações</p><p>deste ano e desejaram a todos uma ótima viagem de volta para suas</p><p>casas.</p><p>•</p><p>O Cardeal Maestroianni encontrou Cyrus Benthoek facilmente no</p><p>meio da multidão que se dissipava após o jantar. Sem pressa, os dois</p><p>caminharam juntos pelos jardins, cada um tão à vontade com o outro</p><p>como somente velhos amigos �cam, e animados com a perspectiva da</p><p>reunião privada, �nalmente prestes a começar.</p><p>— Ouça, Eminência — Benthoek levantou as duas mãos naquela</p><p>familiar postura orans, como se suplicasse a presenças invisíveis no ar</p><p>ao redor de si. — Apenas ouça o silêncio! Ao se aproximarem do local</p><p>que haviam escolhido para sua própria reunião isolada, Sua</p><p>Eminência respondeu mais ao humor de seu companheiro do que a</p><p>suas palavras.</p><p>— Eu acredito que todos nós recebemos bênçãos especiais nestes</p><p>dias. O local do encontro não era difícil de achar. Situado dentro dos</p><p>limites do Parque da Cidadela, não muito longe da casa de Robert</p><p>Schuman, havia sido projetado nos moldes do Trianon, construído em</p><p>Versalhes para a Comtesse Du Barry, a mando de seu amante real,</p><p>Luís ��. Guardado por sempre-vivas e banhado pelo silêncio gracioso</p><p>que muitas vezes envolve verdadeiras joias da arquitetura, o pequeno</p><p>Trianon era uma esplêndida ilha de luz na escuridão crescente. A</p><p>iluminação na balaustrada do telhado e nos degraus com colunatas</p><p>em frente a este monumento neoclássico brilhavam nos jardins,</p><p>dando-lhes as boas-vindas.</p><p>Logo na porta principal, com seu jeito de avô, o ��� do escritório</p><p>central de Benthoek, Nicholas Clatterbuck, cumprimentou os dois</p><p>an�triões em sua chegada. Num belo terno de tweed, como de</p><p>costume, ele havia sido designado para cuidar da segurança: próxima,</p><p>mas discreta; em seguida, dar as boas-vindas a todos os convidados</p><p>com seus vários conselheiros e auxiliares e encaminhá-los ao salão</p><p>principal, onde a reunião começaria às oito horas. Benthoek o</p><p>preparara bem. Não carregava anotações nem consultava listas de</p><p>nomes, mas conhecia os rostos e os títulos de todos os �gurões</p><p>convidados; e sua �uência em alemão, italiano e russo deixava todos</p><p>se sentindo à vontade, como os avôs costumam ser capazes de fazer.</p><p>— A maioria dos convidados já chegou — Clatterbuck caminhou</p><p>alguns passos ao lado de Cyrus e Maestroianni, até o salão principal.</p><p>— Estamos esperando o Reverendo Tartley e mais alguns.</p><p>— Ótimo — Benthoek olhou para o relógio. — Você se juntará a nós</p><p>quando todos chegarem.</p><p>Dentro do salão principal, tudo fora perfeitamente organizado pelas</p><p>mãos de Nicholas Clatterbuck. Diante de cada cadeira em uma grande</p><p>mesa de reunião, havia uma pasta contendo, para cada um dos</p><p>principais convivas, uma folha de biogra�a geral. Embora cada um</p><p>deles soubesse por que estava ali, Clatterbuck havia incluído nas</p><p>pastas uma breve recapitulação pro forma da agenda geral da reunião.</p><p>Os assessores de alguns dos delegados já estavam folheando as</p><p>informações, numa espécie de corrida �nal antes do evento principal.</p><p>Logo eles ocupariam seus postos nas cadeiras separadas, ao longo das</p><p>paredes, para o pessoal de apoio. Ao longo da parede oposta, mesas</p><p>compridas estavam generosamente fornidas de iguarias de</p><p>Estrasburgo e uma variedade de vinhos e águas.</p><p>— Mais patê, Cyrus? — Maestroianni não sabia se rosnava ou ria,</p><p>de tão empanturrado que estava, depois do jantar.</p><p>Entre os vários grupos que já estavam no salão, Maestroianni viu</p><p>seus três cardeais romanos e o Arcebispo Graziani, todos sorrindo</p><p>para o cardeal belga Pier Svensen. Com sua cabeça e corpo maciços, e</p><p>seus olhos enormes e salientes em um rosto sério, Svensen estava</p><p>obviamente em seu elemento, regalando o grupo do Vaticano com</p><p>memórias coloridas. O Cardeal Silvio Aureatini, imaculadamente</p><p>vestido com o �no traje eclesiástico adequado à sua posição de o mais</p><p>novo entre os cardeais do Vaticano, ouvia com deleite evidente. As</p><p>bochechas de Aureatini haviam começado a inchar.</p><p>Até mesmo o Cardeal Noah Palombo, especialista em liturgia e</p><p>direito canônico, de rosto normalmente ácido, relaxara suas feições</p><p>no que passava por um sorriso, enquanto ouvia as histórias de</p><p>Svensen lado a lado com o cadavérico e ossudo Pensabene. Também</p><p>no grupo, o Arcebispo Giacomo Graziani, próximo cardeal secretário</p><p>de Estado, permanecia sério e sinceramente agradável. Pro�ssional, de</p><p>altura impressionante e aparência graciosa, ele já estava se</p><p>comportando com a gravidade de seu futuro cargo como segundo</p><p>homem do Papa eslavo.</p><p>Maestroianni e Benthoek estavam prestes a se juntar a esse grupo</p><p>quando Cyrus ouviu seu nome ser chamado. Os dois se viraram para</p><p>ver um sujeito baixo, de feições pesadas e ombros largos, caminhando</p><p>em direção a eles, vindo da mesa de refrescos com uma taça de vinho.</p><p>— Apresento-lhe Serozha Ga�n, Eminência — disse Benthoek, dando</p><p>um tapinha afável no ombro do consultor russo de seu conselho</p><p>internacional. — Ele pode encantar seu coração como um pianista,</p><p>um concertista. E pode enfeitiçar sua mente com detalhes pertinentes</p><p>à sua amada Rússia e ao mundo eslavo.</p><p>Ga�n era muito corpulento para um homem tão jovem. Ele abriu a</p><p>boca cheia em um sorriso</p><p>feliz e perscrutou Maestroianni através de</p><p>olhos amendoados muito grandes e azuis.</p><p>O segundo consultor interno de Benthoek juntou-se ao trio. Sem</p><p>esperar que Cyrus o apresentasse, curvou-se rigidamente:</p><p>— Eminência Reverendíssima, eu sou Otto Sekuler.</p><p>A voz do alemão era inesquecivelmente aguda e desa�adora. O torso</p><p>reto e os ombros quadrados, o pescoço de touro, os óculos de</p><p>armação de aço e a careca que re�etiam a luz como um espelho</p><p>�zeram Sua Eminência se lembrar de todos os o�ciais nazistas de</p><p>quem já ouvira falar em sua longa carreira. Ainda sorrindo, o cardeal-</p><p>secretário desviou o olhar de Herr Sekuler para lançar a Cyrus um</p><p>olhar interrogativo. Sempre com olhos de lince para as reações do</p><p>cardeal, Benthoek simplesmente inclinou a cabeça benignamente,</p><p>como se dissesse: “Espere para ver”.</p><p>Esse crescente nó de homens centrado no cardeal romano e no</p><p>internacionalista americano foi engrossado pela chegada de outro dos</p><p>convidados de Benthoek. Antes mesmo de lhe ser apresentado,</p><p>Maestroianni reconheceu todos os sinais clássicos do anglosassone.</p><p>Gibson Appleyard era o americano por excelência: robusto, pele</p><p>clara, cabelo cor de areia salpicado de cinza, contato visual direto.</p><p>— É um prazer conhecer Vossa Eminência — Appleyard respondeu à</p><p>apresentação de Cyrus com um aperto de mão padrão e sem afetação.</p><p>Homem de cinquenta e poucos anos, ele pareceu ao cardeal um agente</p><p>de inteligência ideal. Além de sua altura excepcional, não havia nada</p><p>de extraordinário nele. Como a maioria dos anglo-saxões, dos quais,</p><p>neste aspecto, Cyrus Benthoek era a exceção, Appleyard era</p><p>esquecível.</p><p>— Bem, este é um momento histórico, senhores — com seu quase</p><p>litúrgico gesto habitual, Benthoek abençoou o grupo estranhamente</p><p>incompatível de estrangeiros e clérigos pertencentes às entranhas do</p><p>catolicismo romano. — Vai ser bom. Muito bom.</p><p>Como se tivesse recebido uma deixa, Nicholas Clatterbuck entrou no</p><p>salão acompanhado pelo atrasado Reverendo Herbert Tartley, da</p><p>Igreja da Inglaterra, que se desculpava profusamente, todo enfeitado e</p><p>sorridente em seu colarinho redondo, clergyman preto e polainas. Do</p><p>lado de fora do salão e ao redor do perímetro do pequeno Trianon, o</p><p>pequeno exército de guardas de Clatterbuck, até agora discreto,</p><p>ocupava os postos de segurança que lhes haviam sido designados.</p><p>A organização dos lugares era simples e direta. De um lado da mesa,</p><p>o Cardeal Maestroianni �caria no meio, o lugar de honra. Os sete</p><p>membros de sua delegação dispostos de cada lado dele apareciam</p><p>como uma falange colorida em suas cruzes peitorais enfeitadas, suas</p><p>batinas com botões vermelhos, suas faixas e solidéus. Sentados e</p><p>silenciosos ao longo da parede atrás do contingente do Vaticano, os</p><p>dois ou três assessores e consultores que cada homem trouxera</p><p>aguardavam em silêncio, como uma �leira de plantas humanóides.</p><p>Cyrus Benthoek sentou-se diretamente em frente a Maestroianni. Ele</p><p>tinha o Reverendo Tartley à sua direita, como convidado de honra.</p><p>Como observador, não participante ativo, Gibson Appleyard ignorou</p><p>a distribuição dos lugares e escolheu um local um tanto separado do</p><p>resto.</p><p>Dado o propósito antipapal da reunião, pareceu melhor, para os dois</p><p>organizadores, que Cyrus Benthoek atuasse como presidente. Ele se</p><p>levantou para iniciar os procedimentos, olhando para cada um dos</p><p>delegados reunidos. Ele tinha diante de si, na realidade, uma mistura</p><p>de pessoas em guerra tanto umas com as outras quanto com o</p><p>papado. O clima de reserva e de descon�ança cordial era denso a</p><p>ponto de pesar. No entanto, cada homem presente sentia o comando</p><p>no �to dos olhos azuis do americano.</p><p>— Quando eu chamar seus nomes, meus queridos amigos —</p><p>Benthoek começou a quebrar o gelo com sua voz alta e clara —, por</p><p>favor, levantem-se para que todos possamos vê-los. Aqueles que</p><p>trouxeram assessores e conselheiros nos farão um favor,</p><p>apresentando-os aos demais.</p><p>Em dez minutos, todos os convidados haviam sido apresentados e</p><p>cumprimentados. Benthoek pôde destacar as habilidades de cada</p><p>homem e a importância de seus contatos. Cada um sentiu-se</p><p>reconhecido e com seus talentos totalmente apreciados. Assim,</p><p>concluídas as apresentações, o clima tenso havia se aliviado. Feito</p><p>isso, Benthoek entrou, com certa leveza, no assunto de seu interesse.</p><p>Ele empregava o tom de alguém que tivesse organizado um passeio</p><p>pela cidade para visitantes ilustres.</p><p>— Meus amigos, nosso objetivo, nesta nossa reunião informal, é,</p><p>antes de tudo, que possamos nos conhecer. Que tomemos ciência dos</p><p>recursos e forças que podemos trazer para qualquer empreendimento</p><p>meritório. Nosso segundo propósito é ver se, talvez sem plena</p><p>consciência disto, todos nós, como indivíduos e como grupos, temos</p><p>uma opinião formada a respeito de um importante empreendimento</p><p>especí�co. Amigos… — A voz de Benthoek assumiu, aqui, um tom de</p><p>intimidade; nem por isso soava menos autoritária. — Amigos, esta</p><p>noite podemos nos permitir uma franqueza total. Sem exceção, todos</p><p>aqui estamos preocupados com o bem-estar da Igreja Católica</p><p>Romana.</p><p>O Cardeal Palombo se ajeitou em sua cadeira; houve algum</p><p>movimento contido.</p><p>— Todos nós valorizamos essa Igreja — Benthoek dirigiu um sorriso</p><p>fraterno a Noah Palombo — não apenas como uma instituição</p><p>venerável e milenar. Para a maioria dos nossos ilustres visitantes esta</p><p>noite, a Igreja de Roma é a sua própria Igreja.</p><p>Os olhos azuis percorreram todas as faixas e botões dos dois lados</p><p>de Maestroianni, e depois abrangeram toda a reunião.</p><p>— Mas, acima disso, essa Igreja Católica Romana tem um valor</p><p>inestimável para todos nós. Um valor supremamente importante como</p><p>fator de estabilidade social, política e ética — Benthoek fez uma pausa</p><p>para efeito dramático. — Acima de tudo, essa Igreja é uma condição</p><p>sine qua non para o advento de uma Nova Ordem Mundial nos</p><p>assuntos humanos.</p><p>Já não havia leveza na voz do americano, enquanto enfatizava seu</p><p>primeiro ponto capital.</p><p>— De fato, meus bons amigos. Embora eu mesmo não seja católico</p><p>romano, atrevo-me a dizer que se essa Igreja deixasse de existir, por</p><p>algum terrível acaso, tal fato abriria uma grande e perigosa lacuna</p><p>dentro da sociedade das nações. Todas as nossas instituições humanas</p><p>seriam sugadas por essa lacuna, como para um buraco negro vazio.</p><p>Nada restaria; nem mesmo uma paisagem humana. Aceito isso como</p><p>um fato duro e inegável da vida, gostemos ou não. Então, por favor,</p><p>meus amigos. Celebrem, comigo, nossa satisfação de termos aqui</p><p>conosco as pessoas-chave dessa valiosa e venerável instituição.</p><p>O Cardeal Maestroianni começou a fazer uma lista mental dos</p><p>pontos que Benthoek estava levantando. Ponto um: para os</p><p>propósitos práticos desta aliança, a Igreja Católica Romana era,</p><p>ainda, essencial como organização institucional; a Igreja, enquanto</p><p>instituição, não era um alvo. Confere. Ponto dois: o cardeal e sua</p><p>delegação estavam aqui como potenciais colaboradores para o</p><p>direcionamento do foco dessa organização para os objetivos do que</p><p>Benthoek chamava de “uma Nova Ordem Mundial nos assuntos</p><p>humanos”. Confere. Ponto três: a primeira ordem do dia era eliminar</p><p>as divisões históricas que separavam os que estavam ao lado de</p><p>Benthoek na mesa daqueles que se sentavam à sua frente. Confere.</p><p>Sua Eminência foi trazido de volta de sua contagem mental quando,</p><p>de repente, o foco da sala voltou-se para o padre-geral jesuíta,</p><p>Michael Coutinho. Coutinho levantara a mão para indicar que tinha</p><p>uma ou duas palavras a dizer antes que o assunto prosseguisse.</p><p>— Sim, padre-geral.</p><p>A silhueta de Michael Coutinho era rigidamente nítida. Como todos</p><p>os outros jesuítas, ele não usava adornos ou distintivos hierárquicos</p><p>em seu traje eclesiástico preto. Ao contrário de qualquer outro jesuíta,</p><p>no entanto, cada padre-geral da Companhia de Jesus — Coutinho</p><p>entre eles, sem dúvida — era conhecido no Vaticano e em todo o</p><p>mundo como “o Papa Negro”. Durante séculos, esse nome tinha sido</p><p>um tributo adequado ao tremendo poder global e prestígio da ordem</p><p>jesuíta em sua jurada defesa do papado e dos papas. Em pouco</p><p>tempo, porém, tornou-se uma descrição igualmente</p><p>precisa da</p><p>oposição geral dos jesuítas à Santa Sé. Como o negro é o oposto do</p><p>branco, assim havia agora o Papa Negro em oposição ao Papa</p><p>Branco.</p><p>O jesuíta deixou clara a sua impaciência.</p><p>— Temos tão pouco tempo, Sr. Benthoek. Acho que devemos ir</p><p>direto ao ponto. Sejamos francos. Entre os vários grupos aqui</p><p>representados — o olhar de Coutinho não deixou escapar nenhum</p><p>dos dois lados da mesa de reunião — não creio que haja dois homens</p><p>com a mesma ideia de como a política da Santa Sé, bem como a</p><p>administração da Igreja, devem prosseguir. Na verdade, não me</p><p>surpreenderia que cada um de nós pre�ra um modo diferente de</p><p>organizar a Igreja.</p><p>Aparentemente, nem mesmo a discórdia era um ponto de fácil</p><p>concordância; enquanto vários ao redor da mesa acenavam com a</p><p>cabeça em sinal de assentimento, outros permaneciam impassíveis e</p><p>inexpressivos, Benthoek e Maestroianni registravam mentalmente</p><p>cada reação.</p><p>— Ao mesmo tempo — Coutinho continuou em seu cadenciado</p><p>inglês anglo-indiano — nosso valoroso Sr. Benthoek entendeu que,</p><p>apesar de todas as nossas diferenças, concordamos em um ponto</p><p>essencial. Todos concordamos que uma mudança radical é necessária.</p><p>Uma mudança radical no nível mais alto — novamente, vários gestos</p><p>de assentimento. — É simples, portanto, dizer o que precisamos fazer</p><p>agora. Precisamos concordar neste ponto essencial: a necessidade de</p><p>uma mudança radical na liderança da Igreja. Se pudermos fazer isso</p><p>esta noite, então, como consequência, seremos capazes de formular</p><p>diretrizes sobre as medidas especí�cas para alcançar essa mudança e</p><p>sobre o escopo dessas medidas.</p><p>Perfeito! Maestroianni considerou que o próprio Cyrus não poderia</p><p>ter exposto os objetivos desta reunião melhor ou mais claramente.</p><p>Concordar quanto à missão, esta noite, e formar um mecanismo para</p><p>re�nar e executar a ação a seguir. Mas por que é que o jesuíta não se</p><p>sentava?</p><p>— Tendo dito isso — continuou o Papa Negro —, há uma precaução</p><p>primordial, que estou melhor preparado para explicar do que</p><p>qualquer um que esteja me ouvindo. Se dermos um passo em falso,</p><p>seja em nossas decisões fundamentais esta noite, seja em qualquer</p><p>uma das medidas que esperamos de�nir em seguida, então podemos</p><p>esperar que o poder supremo será invocado como um martelo e nos</p><p>esmagará no chão, sem misericórdia. Acreditem em mim! Nós, da</p><p>Companhia de Jesus, sabemos tudo sobre esse martelo e sobre essa</p><p>falta de misericórdia.</p><p>Os olhos de Coutinho brilhavam por trás dos óculos, como a</p><p>obsidiana negra sob o vidro. O Cardeal Maestroianni apertou as</p><p>mãos nos braços da cadeira. O jesuíta estava indo longe demais;</p><p>chegando muito perto dos limites da delicadeza. Para o cardeal, não</p><p>havia dúvida quanto ao foco do jesuíta nesse momento; ele mesmo, de</p><p>fato, fora forçado a proceder como o impiedoso martelo no terrível</p><p>incidente que Coutinho tinha em mente. Fora lá atrás, em 1981. Mas,</p><p>visto que a intensa emoção dá corpo à memória, o evento central</p><p>daquele dia surgia para Maestroianni como uma companhia</p><p>indesejável, como obviamente o era para o padre-geral.</p><p>No crescente con�ito entre a Companhia de Jesus e a Santa Sé, as</p><p>políticas da ordem haviam-se tornado, em 1981, tão abertamente</p><p>contrárias à política papal que o Papa eslavo tomara a decisão</p><p>extrema de tirar de seu caminho Pedro Arrupe, o então padre-geral da</p><p>Companhia. Ouvindo Coutinho, o cardeal-secretário lembrou-se de</p><p>como, por ordem severa e implacável do Pontí�ce, se apresentara</p><p>naquele dia à porta da sede dos jesuítas em Roma. Como Michael</p><p>Coutinho o acompanhara escada acima até a enfermaria do padre-</p><p>geral. Tudo tinha sido tão desnecessário. O mundo inteiro sabia que o</p><p>homem havia sofrido um derrame grave, desmaiando bem na pista do</p><p>aeroporto ao voltar de uma viagem ao exterior. Mas o Pontí�ce fora</p><p>�rme. Com ou sem culpa, o édito papal deveria ser entregue, à</p><p>maneira consagrada pelo tempo de fazer essas coisas.</p><p>Maestroianni sentira-se enjoado ao lado da cama daquele outrora</p><p>vibrante líder jesuíta. Enjoado ao ver aquele habilidoso combatente</p><p>retórico incapaz de emitir um som. Ao ver aquelas mãos e braços que</p><p>haviam exercido tanto poder jazendo, agora, murchos e imóveis sobre</p><p>a colcha. Preso dentro de si, o padre-geral jesuíta olhava para</p><p>Maestroianni com olhos grandes e vazios, incapaz de responder ou se</p><p>defender, ou mesmo de con�rmar que tivesse ouvido as palavras do</p><p>documento papal que Maestroianni lera para ele. Palavras que</p><p>sumariamente o exoneravam do cargo de padre-geral da sua</p><p>orgulhosa e prestigiosa ordem.</p><p>Tendo lido a última palavra e se afastado do corpo inerte na cama,</p><p>Maestroianni dera consigo olhando para os olhos pretos de obsidiana</p><p>do jovem Padre Michael Coutinho. “Não vamos esquecer esta</p><p>humilhação desnecessária!”. Essa era a mensagem brilhando naqueles</p><p>olhos. O inimigo de Coutinho não era Maestroianni. Sua raiva</p><p>silenciosa dirigia-se inteiramente ao Santo Padre.</p><p>A dolorosa revivescência daquele dia por Maestroianni chegara ao</p><p>�m. Cada homem presente estava capturado pela paixão nos olhos de</p><p>Michael Coutinho, enquanto ele deixava clara a posição atual que sua</p><p>ordem global havia adotado.</p><p>— Nós, em nossa Companhia, estamos completamente em paz com</p><p>nossas consciências. Estamos vinculados por nossos votos a Cristo. E</p><p>somos votados a servir o Vigário de Pedro, o Bispo de Roma. Na</p><p>medida em que podemos ver que ele está em conformidade com a</p><p>vontade manifesta de Cristo, conforme sua vontade nos é mostrada</p><p>nos eventos humanos de nossos dias, nossos votos nos obrigam a</p><p>servi-lo. Isso é tudo o que tenho a dizer.</p><p>Para Cyrus Benthoek, era mais do que su�ciente. Como a de</p><p>Maestroianni, a lealdade do jesuíta havia se deslocado. Ele servia ao</p><p>Papa, agora, não como o Vigário de Cristo, o Criador; mas como</p><p>Vigário de Pedro, a criatura. O que regulava as suas políticas não era</p><p>uma meta transcendente formulada no século ��� por um Santo</p><p>Inácio de Loyola há muito falecido, mas os claros contornos da</p><p>evolução política e social no �nal do século ��.</p><p>Tranquilo como sempre, Benthoek estava prestes a se levantar e</p><p>retomar a reunião quando o carrancudo Noah Palombo se levantou.</p><p>O Cardeal Palombo era um homem acostumado a ir direto ao</p><p>assunto; não gostava de longas discussões de prós e contras. E não</p><p>seria convencido pelos perigos que o padre-geral jesuíta havia</p><p>delineado. O cardeal tinha uma recomendação simples a oferecer.</p><p>— Alguém dos nossos — sugeriu — deveria formular para nós o</p><p>ponto essencial, que o Padre-geral Coutinho nos recomendou no</p><p>início de seu discurso: a necessidade de uma mudança radical no nível</p><p>superior da estrutura hierárquica da Igreja. Se ninguém for capaz de</p><p>formular de forma clara, aceitável, viável e prática esse ponto, então</p><p>estamos perdendo nosso tempo. Se alguém entre nós estiver à altura</p><p>dessa tarefa, no entanto, e se pudermos chegar a um consenso nesse</p><p>ponto, então terei mais uma recomendação a fazer.</p><p>Ainda antes de Palombo se sentar novamente, e quase como que em</p><p>resposta a uma deixa — ou assim pareceu a Maestroianni —, o</p><p>Cardeal Leo Pensabene ergueu seu corpo alto e ossudo, com a postura</p><p>con�ante de quem presume que todos concordarão com tudo o que</p><p>disser. Para alívio de Maestroianni, Leo Pensabene andou mais pelo</p><p>lado paternalista que pelo combativo.</p><p>— Acho que não estarei sendo arrogante se disser que, conforme</p><p>penso, estou em uma excelente posição para formular o ponto</p><p>solicitado pelo padre-geral e por meu venerável irmão no cardinalato</p><p>— disse ele, concluindo com uma pequena reverência a Coutinho e</p><p>outra a Palombo.</p><p>— De fato, conversei com meus colegas do Colégio. Eles também</p><p>acham que estou capacitado a formular nossa posição — dado o</p><p>status de líder da facção principal no Colégio dos Cardeais do Cardeal</p><p>Pensabene, essa última informação, aparentemente casual, era uma</p><p>animadora indicação de apoio nos cantos do Vaticano onde residem a</p><p>força e o poder. — Para ser viável e prático, nosso consenso deve se</p><p>basear em fatos, os fatos da situação concreta. Pois em que outro</p><p>terreno podemos construir? O fato principal é este: por causa da</p><p>aplicação dos princípios do Concílio</p><p>Vaticano ��, desde 1965, a vida e</p><p>o desenvolvimento do povo de Deus, de todos os católicos romanos,</p><p>passaram a ser amplamente determinados por três novas estruturas</p><p>operantes na organização institucional do Igreja. Primeiro —</p><p>Pensabene ergueu um dedo ossudo da sua mão direita —, nós temos o</p><p>Conselho Internacional para a Liturgia Cristã — uma segunda</p><p>reverência a Palombo, chefe daquela estrutura. — O ����, hoje,</p><p>governa todos os católicos em questões de culto e liturgia. Portanto,</p><p>quando falamos do ����, tocamos no cerne da moralidade individual</p><p>dos católicos. Segundo — ergueu outro dedo ossudo da sua mão</p><p>direita — há o Rito de Renovação de Adultos Cristãos,</p><p>supervisionado pelo mais novo cardeal entre nós. A função do ����� é</p><p>produzir novas formulações da nossa fé; e fazer com que elas sejam</p><p>empregadas não apenas na administração dos Sacramentos, mas</p><p>também no ensino da fé para crianças e adultos. Então, quando</p><p>falamos do �����, tocamos profundamente na moralidade social,</p><p>dentro do tecido da vida católica. E terceiro — Pensabene tinha três</p><p>dedos no ar agora —, devemos levar em conta as Comissões de Justiça</p><p>e Paz em todo o mundo, incluindo Roma. Devido à minha própria</p><p>associação íntima com a ���, posso garantir que sua função e</p><p>propósito precisos têm sido um grande sucesso. Ela garante que os</p><p>novos princípios da democracia, incorporados na �loso�a atual da</p><p>Igreja e no ativismo político, sejam compreendidos. Mais ainda, ela</p><p>garante que esses princípios sejam propagados por toda a Igreja</p><p>Universal. Especialmente nos países pobres do Terceiro Mundo, a ���</p><p>fez grandes progressos. É óbvio, então, que quando falamos de ���,</p><p>estamos falando da moral política dos �éis católicos em todo o</p><p>mundo.</p><p>Pensabene virou a cabeça, para olhar cada homem presente.</p><p>— Temos, então, três estruturas capitais, funcionando em todo o</p><p>mundo: o ����, o ����� e a ���. E, com elas, temos três esferas morais</p><p>capitais: a pessoal, a social e a política. Da mesma forma, temos três</p><p>consequências capitais que se relacionam diretamente com nosso</p><p>propósito aqui esta noite. Todas essas três estruturas inovadoras estão</p><p>baseadas na Santa Sé; e todas as três estruturas e suas atividades, da</p><p>mesma forma, são aceitáveis para a grande maioria de nossos bispos</p><p>em toda a Igreja. E através do ����, do ����� e das ��� essa mesma</p><p>maioria de bispos agora, cada vez mais, fala em nome da Santa Sé! De</p><p>fato, cada vez mais esses bispos falam, como legisladores e</p><p>consultores, em nome da Santa Sé! Poucos homens tinham visto</p><p>Pensabene mais entusiasmado.</p><p>— Dessa maneira, esses mesmos bispos já decidem questões</p><p>elementares de moral para todos os católicos. Para o povo de Deus.</p><p>As decisões sobre as questões mais básicas da moralidade individual,</p><p>social e política foram diretamente assumidas pelos bispos. Ou vendo</p><p>por outro lado: para todos os propósitos práticos, eles se apoderaram</p><p>da sublime autoridade de ensino da Igreja; o magisterium, como era</p><p>chamado em tempos passados. De fato, os bispos são a voz de Deus</p><p>geralmente aceita. O que estou descrevendo para o senhores, como</p><p>decerto já entenderam, é um estado de coisas evolutivo simplesmente</p><p>esperando para ser institucionalizado. Pois se os bispos e o povo de</p><p>Deus nos indicam alguma coisa, eles agora estão indicando, com</p><p>clareza, que não precisamos mais do antigo fundamento da</p><p>autoridade e desenvolvimento da Igreja. A época desse fundamento já</p><p>passou e foi embora. O quanto antes, precisamos de um papado</p><p>conforme a nova realidade. Um papado que se conforme com a</p><p>circunstância concreta de facto; na verdade, um papado que a aceite</p><p>como condição de jure.</p><p>Tendo terminado com os dois pés na situação concreta, como havia</p><p>começado, e con�ante de que havia sido prático, persuasivo e</p><p>eloquente, o Cardeal Pensabene sentou-se num movimento lento, até</p><p>majestoso. Se a resolução de Pensabene fosse aprovada — e se a</p><p>aliança de Estrasburgo fosse bem-sucedida — o Papa eslavo se</p><p>conformaria às condições de facto, conforme o cardeal as havia</p><p>retratado, ou não seria mais Papa.</p><p>Com a proposta de Pensabene claramente apresentada, a lógica</p><p>ditava a necessidade de uma primeira votação. Mas como as coisas</p><p>haviam se desenvolvido um pouco mais rápido do que Benthoek</p><p>esperava, não houvera chance de fazer uma sondagem signi�cativa do</p><p>grupo. É verdade que, em momentos especí�cos, alguns assentiam</p><p>com a cabeça; mas em nenhum momento houve unanimidade</p><p>perceptível.</p><p>Ciente de que uma votação malsucedida levaria a um debate</p><p>prolongado, e com toda a probabilidade a um desordenado e</p><p>prematuro �m da esperada aliança de Estrasburgo, Benthoek olhou</p><p>para o Cardeal Maestroianni, à sua frente na mesa. O discretíssimo</p><p>movimento de cabeça de Maestroianni recomendou cautela. Isso</p><p>bastou para Benthoek. Obviamente, era necessário realizar uma</p><p>pesquisa criteriosa, antes de se realizar qualquer votação.</p><p>— Meus amigos — disse Cyrus, empurrando a cadeira para trás e</p><p>convidando todos a fazerem o mesmo —, sugiro que tiremos um</p><p>tempo. Tenho certeza de que alguns de vocês gostariam de comparar</p><p>notas e conclusões entre si e com seus consultores. Quinze ou vinte</p><p>minutos devem bastar.</p><p>XI</p><p>— Vinte minutos podem não bastar, Santo Padre.</p><p>Ao lado do Pontí�ce na limusine papal, a mente de Monsenhor</p><p>Daniel Sadowski já não se ocupava da enorme multidão de jovens de</p><p>Fátima, onde Sua Santidade, momentos antes, havia feito sua homilia</p><p>noturna. Em vez disso, sua preocupação era com esse breve intervalo</p><p>antes da procissão à luz de velas que aconteceria mais tarde naquela</p><p>noite. Um período de apenas vinte minutos havia sido encaixado na</p><p>tumultuada agenda de Sua Santidade para permitir sua agora</p><p>restabelecida audiência privada com a Irmã Lúcia.</p><p>O Papa já estivera visivelmente animado com a presença de Lúcia na</p><p>Missa solene da manhã. Ela havia, então, sido levada para a Casa</p><p>Regina Pacis, na Rua do Anjo, onde esperaria o encontro com o Santo</p><p>Padre, e onde ela e seu cão de guarda, Madre Reverenda, passariam a</p><p>noite.</p><p>— É verdade, monsenhor — o Papa se distraiu da multidão que se</p><p>aglomerava na rua por um tempo apenas su�ciente para tranquilizar</p><p>seu secretário. — Vinte minutos não é muito tempo; mas talvez</p><p>bastem. Logo o veremos.</p><p>Então, com um brilho surpreendente nos olhos e um tom de</p><p>familiaridade que fazia lembrar a época de Cracóvia, acrescentou:</p><p>— Não se preocupe, Daniel. As coisas não estão tão ruins a ponto de</p><p>começarem a procissão à luz de velas sem nós.</p><p>Sadowski respondeu com uma risadinha. Ele estava feliz por ver o</p><p>Pontí�ce recuperar um pouco da sua antiga vivacidade e bom-humor.</p><p>Mas o fato era que havia muito pouco tempo para o encontro do</p><p>Pontí�ce com Lúcia, muito pouco tempo para um encontro que</p><p>monsenhor sabia ser de tamanha importância. Na verdade não havia,</p><p>na casa papal, homem que conhecesse essa importância mais</p><p>intimamente ou se preocupasse mais profundamente com o que se</p><p>passava ao certo na mente do Papa eslavo. Era tudo, ao mesmo</p><p>tempo, tão simples e tão frustrantemente complicado.</p><p>Para o Papa eslavo, sua organização eclesiástica caíra sob um</p><p>mandato de decadência e morte. Mas a mesma coisa ocorrera com a</p><p>sociedade das nações — tanto com as nações tomadas</p><p>individualmente quanto em sociedade. A organização eclesiástica e</p><p>essa sociedade de nações estavam ambas caminhando a passos largos</p><p>para um período de severa punição pelas mãos da natureza — em</p><p>última análise, pelas mãos de Deus, cujo amor indubitável por toda a</p><p>sua criação coexiste com sua justiça. Pois não há amor possível sem</p><p>justiça. Os prelados da Igreja e as nações haviam sido sumamente</p><p>in�éis às exigências do amor de Deus, e por isso sua justiça estava</p><p>pronta para intervir nos assuntos humanos e corrigir essa in�delidade.</p><p>Certo de que essa terrível intervenção de Deus nos assuntos humanos</p><p>ocorreria na década de 1990, o Papa eslavo tinha pouquíssimas</p><p>indicações de qual seria o momento exato. Por causa da terceira carta</p><p>de Fátima, ele sabia que esse castigo teria como foco a Rússia.</p><p>Também sabia que parte desse cronograma divino envolvia a sua</p><p>própria visita papal à Rússia. Além disso,</p><p>bispo</p><p>da capela na Carolina do Sul.</p><p>Leo não era o nome do homem. Era a sua descrição. A juba de</p><p>cabelo branco-prateado em sua cabeça grande parecia, para quem o</p><p>visse, a juba desgrenhada de um leão. Nos cerca de quarenta anos</p><p>desde que Sua Excelência estabelecera sua capela, o número e a</p><p>importância social dos participantes que atraía, a blasfêmia</p><p>meticulosa de suas cerimônias e sua cooperação frequente e pronta</p><p>com aqueles que compartilhavam seu ponto de vista e objetivos �nais</p><p>haviam estabelecido de tal forma a superioridade de sua operação</p><p>que, agora, ela era amplamente admirada entre os iniciados como a</p><p>Capela Mãe nos Estados Unidos.</p><p>A notícia de que sua capela havia sido autorizada como a capela</p><p>auxiliar para um evento tão grande como a entronização do Príncipe</p><p>no coração da própria cidadela romana foi extremamente grati�cante.</p><p>Mais especi�camente, o vasto conhecimento e experiência cerimonial</p><p>de Leo economizariam muito tempo. Não havia necessidade, por</p><p>exemplo, de testar sua apreciação dos princípios contraditórios sobre</p><p>os quais a adoração ao Arcanjo é inteiramente estruturada. Não havia</p><p>necessidade de veri�car se seu desejo abrangia a estratégia �nal</p><p>naquela batalha: o �m da Igreja Católica Romana como a instituição</p><p>papal que havia sido desde que o Débil Inominado a fundara.</p><p>Nem se precisava explicar-lhe que o objetivo �nal não era</p><p>precisamente o de liquidar a organização católica romana. Leo</p><p>entendia como isso seria pouco inteligente, um desperdício. Muito</p><p>melhor era transformar essa organização em algo verdadeiramente</p><p>útil, homogeneizá-la e assimilá-la em uma grande ordem mundial de</p><p>assuntos humanos. Limitá-la a amplos objetivos humanistas, nada</p><p>mais que humanistas.</p><p>Peritos de idêntica opinião que eram, o Guardião e o bispo</p><p>americano resumiram sua preparação para os eventos cerimoniais</p><p>gêmeos a uma lista de nomes e um inventário de rubricas.</p><p>A lista de nomes do Guardião — os participantes da Capela Romana</p><p>— compunha-se de homens do mais alto calibre. Clérigos de alto</p><p>escalão e leigos respeitáveis, genuínos servidores do Príncipe</p><p>in�ltrados na Cidadela. Alguns haviam sido selecionados, cooptados,</p><p>treinados e promovidos na Falange Romana ao longo das décadas,</p><p>enquanto outros representavam a nova geração comprometida a levar</p><p>a agenda do Príncipe adiante nas décadas vindouras. Todos entendiam</p><p>a necessidade de não serem detectados, baseados na Regra que diz: “A</p><p>garantia de nosso amanhã é persuadirmos a todos, hoje, de que não</p><p>existimos”.</p><p>A lista de participantes de Leo, homens e mulheres que se haviam</p><p>destacado nos âmbitos corporativo, governamental e social, era tão</p><p>impressionante quanto o Guardião esperava. Mas a vítima, disse Sua</p><p>Excelência — uma criança — seria realmente um prêmio para a</p><p>violação da inocência.</p><p>A checagem das rubricas exigidas para o cerimonial paralelo</p><p>centrou-se principalmente nos elementos que precisavam ser decididos</p><p>em Roma. A capela auxiliar, de Leo, devia ter seu conjunto de frascos</p><p>contendo terra, ar, fogo e água: confere. O vaso de ossos: confere. Os</p><p>pilares vermelho e preto: confere. O escudo: confere. Os animais:</p><p>confere. A lista foi percorrida de alto a baixo. Tudo em ordem.</p><p>A sincronização das cerimônias nas duas capelas era familiar para</p><p>Leo. Como de costume, seriam preparados fascículos de folhas</p><p>impressas, irreligiosamente chamados de missais, para uso dos</p><p>participantes em ambas as capelas; e, como de costume, estariam em</p><p>latim impecável. Uma comunicação telefônica seria estabelecida entre</p><p>mensageiros cerimoniais em cada ponta, para que os participantes</p><p>pudessem sempre desempenhar suas funções em perfeita harmonia</p><p>com os seus irmãos.</p><p>Durante o evento, a pulsação do coração de cada participante</p><p>deveria estar perfeitamente sintonizada para fazer ódio, não amor. A</p><p>grati�cação da dor e a consumação seriam perfeitamente alcançadas</p><p>sob a direção de Leo na capela auxiliar. A autorização, as instruções e</p><p>as provas — os elementos �nais e culminantes, peculiares a esta</p><p>ocasião — o próprio Guardião teria a honra de orquestrar no</p><p>Vaticano.</p><p>Finalmente, se todos �zessem o necessário, exatamente de acordo</p><p>com a Regra, o Príncipe �nalmente consumaria sua mais antiga</p><p>vingança contra o Débil, o Inimigo Impiedoso que havia des�lado</p><p>através dos tempos como o Altíssimo e Misericordioso, para quem a</p><p>mais escura das trevas era clara o bastante perante seu olhar.</p><p>Leo podia imaginar o resto. O evento de entronização criaria uma</p><p>cobertura perfeita, opaca e aveludada, para ocultar o Príncipe entre os</p><p>membros o�ciais da Igreja na Cidadela Romana. Entronizado nas</p><p>trevas, o Príncipe seria capaz de fomentar as mesmas trevas como</p><p>nunca antes. Amigo e inimigo seriam afetados da mesma forma. A</p><p>escuridão da vontade se tornaria tão profunda que obscureceria até</p><p>mesmo o objetivo o�cial da existência da Cidadela: a adoração</p><p>perpétua do Inominável. Com o tempo e por �m, o Bode expulsaria o</p><p>Cordeiro e conquistaria a Cidadela. O Príncipe tomaria posse de uma</p><p>casa — a Casa — que não era dele.</p><p>— Pense nisso, meu amigo — disse o Bispo Leo, quase fora de si com</p><p>a expectativa. — O que falta será concluído. Será o ápice da minha</p><p>carreira. O evento culminante do século ��! Leo não estava muito</p><p>errado.</p><p>Era noite. O Guardião e alguns acólitos trabalhavam em silêncio</p><p>para deixar tudo pronto na capela alvo, a de São Paulo. Um</p><p>semicírculo de cadeiras genu�exórias havia sido montado de frente</p><p>para o altar. No altar, cinco castiçais ostentavam graciosas velas</p><p>pretas. Um pentagrama de prata fôra instalado no tabernáculo e</p><p>coberto com um véu vermelho-sangue. Um trono, símbolo do Príncipe</p><p>Regente, estava colocado à esquerda do altar. As paredes, com seus</p><p>belos afrescos e pinturas retratando acontecimentos da vida de Cristo</p><p>e do apóstolo, estavam cobertos por tecidos pretos, convenientemente</p><p>bordados a ouro com símbolos da história do Príncipe.</p><p>À medida que a hora se aproximava, os verdadeiros servidores do</p><p>Príncipe dentro da Cidadela começaram a chegar. A Falange Romana.</p><p>Entre eles, alguns dos homens mais ilustres que atualmente se</p><p>encontram no colégio, na hierarquia e na burocracia da Igreja</p><p>Católica Romana. Entre eles, também, representantes seculares da</p><p>Falange, tão eminentes, à sua maneira, quanto os membros da</p><p>hierarquia.</p><p>Tome-se por exemplo aquele sujeito prussiano entrando pela porta.</p><p>Um espécime da melhor categoria da nova raça de leigos, se algum</p><p>jamais o foi. Com menos de quarenta anos, ele já era um homem</p><p>importante em certos assuntos transnacionais de alta seriedade. Até</p><p>mesmo a luz das velas pretas se re�etia na armação de aço de seus</p><p>óculos e em sua cabeça calva como se para destacá-lo. Escolhido</p><p>como delegado internacional e plenipotenciário extraordinário para a</p><p>entronização, o prussiano levou ao altar a bolsa de couro contendo as</p><p>bulas de autorização e instruções antes de assumir seu lugar no</p><p>semicírculo.</p><p>Cerca de trinta minutos antes da meia-noite, todas as cadeiras</p><p>genu�exórias estavam ocupadas pela safra atual de uma tradição do</p><p>Príncipe, que fora plantada, alimentada e cultivada na antiga Cidadela</p><p>ao longo de um período de cerca de oitenta anos. Embora</p><p>numericamente restrito por um tempo, o grupo persistira na</p><p>obscuridade protetora, como um corpo estranho e um espírito invasor</p><p>dentro de seu hospedeiro e vítima. Ele permeara escritórios e</p><p>atividades em toda a Cidadela Romana, espalhando seus sintomas</p><p>pela corrente sanguínea da Igreja Universal, como uma infecção</p><p>subcutânea. Sintomas como cinismo e indiferença, improbidade e</p><p>cupidez nos altos cargos, desleixo quanto à correção da doutrina,</p><p>negligência no julgamento moral, perda de acuidade na observância</p><p>das coisas sacras, embaçamento de memórias essenciais e das palavras</p><p>e gestos que as indicavam.</p><p>Tais eram os homens reunidos no Vaticano para a entronização, e tal</p><p>tinha sido a tradição promovida por eles em toda a instituição</p><p>mundial que tinha a sua sede nesta Cidadela. Missais nas mãos, olhos</p><p>�xos no altar e no trono, mentes e vontades profundamente</p><p>concentradas, eles esperavam em silêncio que a meia-noite desse</p><p>sabia que o momento dessa</p><p>viagem estava ligado à sorte de Mikhail Gorbachev. E,</p><p>deliberadamente, havia nutrido uma correspondência com o russo.</p><p>Mas além desses pontos resumidos, havia apenas ambiguidades e</p><p>imprecisões. O Papa eslavo precisava de esclarecimentos. A Irmã</p><p>Lúcia poderia lançar alguma luz sobre as ambiguidades e dissipar</p><p>aquelas imprecisões fatais que deixavam o Pontí�ce incerto quanto ao</p><p>futuro, inseguro quanto a quaisquer decisões importantes.</p><p>Sendo assim, Monsenhor Daniel não se surpreendera com o fato de o</p><p>Cardeal-secretário Maestroianni ter feito o possível para anular o</p><p>encontro privado daquela noite entre o Papa e a única dos videntes de</p><p>Fátima que havia sobrevivido. Maestroianni sabia, como muitos</p><p>sabiam, que durante os setenta e quatro anos desde os eventos iniciais</p><p>de Fátima, a Virgem Maria continuara com as suas visitas e</p><p>mensagens à Irmã Lúcia. E o cardeal-secretário sabia, como muitos</p><p>sabiam, que dois papas — incluindo o Papa eslavo — haviam sido</p><p>agraciados por visitas da Virgem Santíssima. Ele sabia ainda que cada</p><p>uma dessas visitas estava inequivocamente ligada a Fátima.</p><p>O cerne da política pontifícia do Papa eslavo, como percebeu</p><p>Monsenhor Daniel, era uma questão em sua própria mente. No �nal</p><p>dos anos oitenta, ele percebera que havia involuntariamente permitido</p><p>a entrada de uma certa treva na mente daqueles que normalmente</p><p>seriam considerados prelados ortodoxos, padres ortodoxos, leigos</p><p>ortodoxos. Havia permitido que os princípios ambíguos do Concílio</p><p>Vaticano �� fossem amplamente interpretados de maneira não católica.</p><p>Havia permitido que grupos inteiros de bispos, em várias regiões,</p><p>chafurdassem na burocracia eclesiástica e negligenciassem os</p><p>fundamentos da vida católica romana.</p><p>De fato, o governo de sua instituição eclesiástica havia apenas</p><p>aumentado a absoluta carência do único elemento que poderia salvar</p><p>sua instituição de naufragar completamente e desaparecer da</p><p>sociedade humana como uma força e�caz: a intervenção da</p><p>Santíssima Virgem prevista em Fátima, que seria acompanhada por</p><p>severos castigos. Daí o desejo de obter da Irmã Lúcia uma ideia mais</p><p>precisa do cronograma divino. Ao se aproximarem da Casa Regina</p><p>Pacis, onde Lúcia esperava, Monsenhor Daniel estremeceu</p><p>involuntariamente.</p><p>— Não está frio, Monsenhor Daniel — o Pontí�ce caçoou dele ao</p><p>chegarem ao seu destino. — Por que o tremor? Não me diga que está</p><p>com medo de conhecer uma santa viva, nossa Irmã Lúcia?</p><p>— Não, Santo Padre. Alguém deve ter pisado na minha sepultura —</p><p>Daniel usou o velho provérbio para concluir a conversa, mas na</p><p>verdade não sabia por que havia estremecido.</p><p>Sua Santidade foi recebido na Casa Regina Pacis por sua madre</p><p>superiora, cujo rosto era alegre e angelical como o de um querubim.</p><p>Ela apresentou suas freiras a Sua Santidade com calor devoto e alegre,</p><p>e o Pontí�ce teve algumas palavras de encorajamento para dizer a</p><p>cada uma delas. Em poucos instantes, a madre superiora conduzia o</p><p>Papa e seu secretário por um corredor de teto alto que percorria toda</p><p>a extensão da casa. Explicou a Sua Santidade e a Monsenhor Daniel</p><p>que havia escolhido, para a audiência, a sacristia ao fundo do</p><p>corredor, ao lado da capela da casa. Como era uma sala grande, a</p><p>madre tinha certeza de que o fotógrafo poderia trabalhar do corredor</p><p>sem perturbar a audiência papal.</p><p>O rosto angelical virou-se para Monsenhor Daniel.</p><p>— O fotógrafo já chegou, monsenhor, e �caria feliz em receber suas</p><p>instruções.</p><p>Daniel agradeceu à freira e, enquanto a superiora acompanhava o</p><p>Papa à sacristia, permaneceu junto à porta com o fotógrafo para</p><p>enumerar-lhe as fotos necessárias para distribuição aos meios de</p><p>comunicação do mundo todo. A sacristia não era ornamentada. Não</p><p>havia lustres; mas uma luminosa leveza se sentia, contagiante e</p><p>convidativa. Os adornos dessa sala, como os da própria casa,</p><p>consistiam principalmente nas almas ali residentes. Ao fundo da</p><p>porta, perto das janelas arqueadas que davam para os jardins da casa,</p><p>haviam sido colocadas três cadeiras para a audiência papal. A cadeira</p><p>maior, no centro, era obviamente destinada ao Pontí�ce. As outras, de</p><p>ambos os lados, serviriam para a Irmã Lúcia e para a sua superiora e</p><p>tutora em Coimbra, que acompanhara Lúcia até Fátima.</p><p>— Reverenda madre — o Pontí�ce disse, voltado para a freira de</p><p>rosto alegre —, bastam duas cadeiras. Vou falar a sós com a Irmã</p><p>Lúcia.</p><p>— Perfeitamente, Santidade.</p><p>Com um sorriso nos olhos, a própria madre superiora afastou a</p><p>cadeira para um canto à esquerda e, em seguida, pediu licença para ir</p><p>ver o que poderia estar atrasando as convidadas. O Santo Padre</p><p>sentou-se à espera, sentindo-se bastante à vontade, para variar. Ele</p><p>podia ouvir Monsenhor Daniel conversando com o fotógrafo no</p><p>corredor.</p><p>A Irmã Lúcia �nalmente foi conduzida através do corredor pela sua</p><p>sombria superiora de Coimbra. O Pontí�ce levantou-se de sua cadeira</p><p>com os dois braços estendidos em um maravilhoso gesto de calor e</p><p>boas-vindas.</p><p>— Irmã Lúcia — o Santo Padre disse à vidente de Fátima, em seu</p><p>português perfeito —, eu a saúdo em nome de Nosso Senhor e de Sua</p><p>Santíssima Mãe.</p><p>A idosa freira não parecia nem um pouco oprimida pelas restrições</p><p>que tão duramente lhe haviam sido impostas por parte da Secretaria</p><p>em Roma. De fato, ela permanecia muito como o Pontí�ce se</p><p>lembrava dela, desde seu último encontro. Estava um pouco mais</p><p>magra, talvez; mas seu rosto ainda era cheio, sua expressão ainda</p><p>vibrante, seu passo ainda rápido e determinado para uma mulher de</p><p>idade tão avançada. Com os olhos escuros e os óculos brilhando</p><p>numa grande e desinibida alegria, Lúcia adiantou-se em resposta às</p><p>boas-vindas do Santo Padre. Ajoelhou-se no chão e beijou o anel do</p><p>Pontí�ce.</p><p>Por ela, Lúcia sem dúvida teria permanecido de joelhos, no antigo</p><p>estilo carmelita, durante toda a audiência. Obediente aos desejos do</p><p>Papa, porém, e em resposta à gentil orientação de sua mão, ela se</p><p>levantou e se deixou sentar na cadeira ao lado da dele. Lúcia não</p><p>perdera a simplicidade de expressão e o olhar ingênuo que nos</p><p>primeiros anos do século lhe adornavam o rosto jovem. A idade</p><p>enfraquecera seu corpo e tornara seus movimentos mais lentos; mas</p><p>no momento em que seus olhos se ergueram para olhar o Papa eslavo</p><p>nos olhos, um brilho inundou todo o seu ser. O próprio Pontí�ce</p><p>sentiu-se humilhado por sua santidade quase palpável.</p><p>Não encontrando para si uma terceira cadeira, e sem receber do</p><p>Papa uma saudação maior do que a exigida pela própria cordialidade</p><p>dele, a Madre Superiora de Coimbra obedientemente roçou os lábios</p><p>no entorno do anel do Papa, reuniu sua dignidade e saiu para o</p><p>corredor.</p><p>Lúcia sentou-se à direita em sua cadeira, seu rosário entrelaçado nas</p><p>mãos cruzadas em seu colo. Quando não estava falando, Sua</p><p>Santidade se inclinava para a frente, com os cotovelos apoiados nos</p><p>joelhos, a cabeça curvada e apoiada nas mãos, ouvindo, com intensa</p><p>concentração, a vidente de Fátima. Durante todo o tempo que passou,</p><p>embora ciente da hora e da presença benigna de seu secretário, apenas</p><p>uma vez o Pontí�ce ergueu os olhos para Daniel, a quem bastou esse</p><p>olhar para entender que a procissão de velas começaria com atraso.</p><p>Passou-se quase uma hora antes que Sua Santidade e a Irmã Lúcia se</p><p>levantassem de suas cadeiras próximas à janela. Quando a freira se</p><p>ajoelhou outra vez para beijar o Anel do Pescador, o fotógrafo tirou</p><p>sua última foto e Monsenhor Daniel deu um passo à frente para</p><p>escoltar Lúcia até a porta da sacristia e colocá-la sob o comando de</p><p>sua carrancuda Madre Superiora de Coimbra. Para Daniel, a</p><p>transformação no rosto do Santo Padre era eletrizante. Os olhos do</p><p>Papa brilhavam com aquela luz viva e forte que antes, por tanto</p><p>tempo, lhe fora habitual. O Pontí�ce estava animado, revigorado. O</p><p>sorriso que impregnava suas feições era menos dos lábios do que do</p><p>espírito. O Pontí�ce fez sinal para que o secretário se sentasse ao seu</p><p>lado por um momento.</p><p>— Você estava certo, monsenhor — disse o Papa, rindo. — Vinte</p><p>minutos podem ser muito pouco.</p><p>Não havia tempo, agora, para recapitular a substância de sua</p><p>conversa</p><p>com Lúcia para Monsenhor Daniel. Isso teria de �car para</p><p>mais tarde. Ele e a santa Irmã cobriram todos os pontos de suas</p><p>principais dúvidas. Como de costume, ele havia encontrado as</p><p>garantias de que precisava, mas ainda tinha de prosseguir com fé e</p><p>con�ança.</p><p>— Um assunto urgente, no entanto. Quando chegou a última carta</p><p>do Signor Gorbachev?</p><p>— Semana passada, Santidade.</p><p>É</p><p>C</p><p>— É importante que eu a responda assim que voltarmos para Roma.</p><p>Aquele pobre homenzinho tem sido um instrumento involuntário da</p><p>Virgem, mas não devemos permitir que sua impaciência e desespero</p><p>estraguem as coisas. — E então, ampli�cando a ideia: — Não</p><p>cometemos nenhum erro sério, monsenhor. Mas o tempo é curto. Há</p><p>muito menos tempo do que eu pensava; a Irmã verá o começo do �m.</p><p>Nós veremos tudo, se Deus quiser.</p><p>A resposta de Daniel foi rápida:</p><p>— Se Deus quiser, Santo Padre.</p><p>— Se Deus quiser.</p><p>XII</p><p>omo a persuasão é a principal atividade dos homens em níveis</p><p>elevados de poder, vinte minutos foram su�cientes para Cyrus</p><p>Benthoek e Cosimo Maestroianni fazerem suas sondagens</p><p>estratégicas. Eles passaram separadamente de grupo em grupo, com</p><p>facilidade, fazendo uma pergunta aqui, extraindo reações ali. Ambos</p><p>estavam tomando o pulso das coisas; sempre ouvindo, observando;</p><p>sempre úteis. Benthoek passou um pouco mais de tempo com seu</p><p>convidado de honra, o Reverendo Herbert Tartley, da Igreja da</p><p>Inglaterra. Em seguida, juntou-se a seu associado russo, Scrozha</p><p>Ga�n, que estava numa profunda conversa com o americano Gibson</p><p>Appleyard. Como Otto Sekuler havia �cado em silêncio nas</p><p>discussões, convinha também uma breve conversa com ele.</p><p>Maestroianni cobriu seu contingente com e�ciência, dando atenção</p><p>especial a alguns que não haviam se manifestado até então. Ele não</p><p>precisava se preocupar com o Cardeal Aureatini, é claro; ou com o</p><p>belga Svensen. Mas o politicamente cauteloso Arcebispo Giacomo</p><p>Graziani poderia carecer de uma postura rígida. E seria imprudente</p><p>negligenciar o às vezes quixotesco padre-geral dos franciscanos, Victor</p><p>Venable.</p><p>Por �m, Benthoek e Maestroianni caminharam juntos até a mesa de</p><p>bebidas, para uma palavra com o Cardeal Noah Palombo. A�nal,</p><p>tinha sido a recomendação inicial de Palombo que levara o Cardeal</p><p>Pensabene a resumir a situação real da Igreja. Mas a segunda</p><p>recomendação do Cardeal Palombo ainda precisava ser ouvida.</p><p>Cyrus Benthoek e o cardeal-secretário concluíram que uma opinião</p><p>comum estava agora ao alcance. Não importava o quão radicalmente</p><p>os vários delegados pudessem diferir em mil assuntos diferentes: uma</p><p>aliança entre eles com vistas a uma mudança na forma e função do</p><p>papado, o seu único objetivo, era o ovo aguardando chocadura.</p><p>Como um par de galinhas, portanto, os dois organizadores reuniram</p><p>seus convidados na mesa de reunião. Benthoek voltou-se para o</p><p>honorável delegado da Igreja da Inglaterra, sentado à sua direita.</p><p>— Certamente — Cyrus disse, dirigindo um sorriso gentil aos</p><p>reunidos — uma palavra ou mais do Reverendo Tartley, como</p><p>“conselheiro do trono e consultor especial em Cantuária”, teria para</p><p>nós um signi�cado especial.</p><p>Prestativamente, Tartley levantou-se da cadeira. Ele era a menos</p><p>desa�adora das �guras. Um homem grande e rude com lentes bifocais</p><p>grossas, nariz arrebitado, rosto rubicundo e muito pouco cabelo, ele</p><p>parecia algo entre a �gura tradicional de John Bull e a velha</p><p>caricatura teatral do pároco inglês. No sotaque anasalado de seu</p><p>inglês cockney, ele saudou a todos como “o humilde pastor de Islip-</p><p>on-Thames” e desculpou-se pela ausência da Sra. Tartley, “minha</p><p>cara metade”. Imediatamente, no entanto, ele abandonou a modéstia,</p><p>com um improvisado lembrete do poder que personi�cava. Apenas</p><p>um mês antes, lembrou ele, Sua Majestade, a Rainha, lhe havia</p><p>apontado a necessidade de “um professor universal” no nosso mundo</p><p>de hoje, alguém que pudesse ser dito universal por ser aceito por</p><p>todos, como detentor de uma sabedoria “capaz de atender às</p><p>necessidades de todos, sem praticar qualquer forma de exclusivismo”.</p><p>Então, tendo deixado claro que estava falando como uma espécie de</p><p>plenipotenciário não o�cial, não apenas da Igreja da Inglaterra, mas</p><p>também do trono, ele passou rapidamente ao ponto em questão. Não</p><p>poderia haver, explicou pelo exemplo, nenhuma colaboração real</p><p>entre “a Santa Sé e a vasta maioria dos cristãos” até que Roma</p><p>abandonasse suas opiniões obstinadas em questões fundamentais</p><p>como divórcio, aborto, contracepção, homossexualidade, ordenação</p><p>de mulheres, casamento dos sacerdotes e engenharia fetal.</p><p>Tal passo só aconteceria por meio de uma “mudança na</p><p>administração papal”. Ao mesmo tempo, porém, o justo reverendo</p><p>queria “manter-se atento às ágeis mentes daqueles nos mais altos</p><p>postos”. Com um olhar fraterno aos convidados seculares de</p><p>Benthoek — Ga�n e Sekuler, Nicholas Clatterbuck e Gibson</p><p>Appleyard —, Tartley concordou que sua “Igreja Anglicana” poderia</p><p>ser considerada pequena por quem atentasse apenas à contagem</p><p>principal de seus membros. Mas ele considerava esses dados</p><p>estatísticos insigni�cantes, ao lado do fato de que, a começar por Sua</p><p>Majestade, aquela igreja estava ligada ao que ele chamava de</p><p>“irmandade dos homens, quer falemos do Oriente ou do Ocidente; do</p><p>capitalismo ou do socialismo”.</p><p>— Também não me importo em dizer aos senhores que, antes desta</p><p>reunião, e também durante nosso intervalo, alguns momentos atrás,</p><p>esses bons cavalheiros e eu tivemos nossas consultas — disse, voltanto</p><p>a apontar seus grossos óculos bifocais para os leigos. — Estamos de</p><p>acordo com o objetivo especí�co que nos reuniu para esta noite</p><p>histórica. E estamos prontos para colaborar com todos os planos que</p><p>possam ser traçados para alcançar esse objetivo valioso. Ao trabalho,</p><p>todos nós! Deus abençoe a todos.</p><p>De alguma forma, seu discurso era um lembrete da milenar</p><p>pretensão da Santa Sé à perpetuidade e a uma imunidade, garantida</p><p>por Deus, contra a destruição. De alguma forma, suas palavras</p><p>pre�guravam o sucesso que aguardava a nova aliança.</p><p>Cyrus Benthoek podia sentir o humor dos cardeais quando Tartley</p><p>assumiu sua cadeira novamente. A aprovação era evidente nos olhos</p><p>de cada ouvinte. Benthoek olhou o Cardeal Maestroianni. Desta vez,</p><p>não havia sinal de advertência. Eminentemente satisfeito com seu</p><p>próprio estratagema, Cyrus se levantou e praticamente abençoou o</p><p>clérigo inglês com sua característica postura orans.</p><p>— Meus amigos, sinto em todos os presentes que nosso consenso foi</p><p>derramado, como vinho recém-amadurecido, num odre novo. Antes</p><p>de continuarmos, então, podemos fazer uma votação sobre o “ponto</p><p>essencial”, nosso meritório objetivo de uma mudança no mais alto</p><p>escalão da Igreja Romana, para o bem de toda a humanidade, em seu</p><p>estágio de evolução atual? A mão de Maestroianni foi a primeira a ser</p><p>levantada em seu lado da mesa. Seus quatro irmãos cardeais</p><p>seguiram-no: Palombo foi o mais rápido; a mão ossuda de Pensabene</p><p>subiu quase junto. Depois a mão de Aureatini e a de Svensen. Em uma</p><p>extremidade da falange romana, o muito quieto padre-geral dos</p><p>franciscanos, Victor Venable, votou sim. No extremo oposto da mesa,</p><p>o Papa Negro, Padre-geral Michael Coutinho, alistou a si e aos seus</p><p>jesuítas. Em frente ao cardeal-secretário, todas as mãos estavam</p><p>erguidas, inclusive a de Benthoek. Gibson Appleyard era a única</p><p>exceção. De qualquer forma, como observador não o�cial, não se</p><p>esperava que o americano participasse da votação. O último a se</p><p>expressar foi o futuro sucessor de Maestroianni como secretário de</p><p>Estado, o Arcebispo Giacomo Graziani. Depois de algumas piscadas</p><p>pensativas, porém, Graziani juntou-se à aposta geral.</p><p>— É unânime, então — Benthoek a�rmou o óbvio, para que �casse</p><p>claro. Satisfeito, Cyrus virou as lâmpadas azuis de seus olhos para o</p><p>Cardeal Noah Palombo. — Vossa Eminência tinha uma segunda</p><p>recomendação a fazer. Podemos ter, novamente, o benefício do</p><p>conselho de Vossa Eminência? O Cardeal Palombo levantou-se</p><p>lentamente, o rosto impassível em sua severidade habitual, como</p><p>granito in�exível.</p><p>— A situação é clara. E minha segunda recomendação é, portanto,</p><p>muito simples.</p><p>A razão fundamental do consenso que acaba de ser</p><p>demonstrado entre nós é a pressão, a força, dos acontecimentos</p><p>humanos. Eventos fora do escopo operacional dos clérigos aqui esta</p><p>noite. Falo da corrida de homens e mulheres em todo o mundo em</p><p>direção a uma nova unidade. Rumo a um novo arranjo entre as</p><p>nações e entre todas as pessoas de nossa sociedade moderna. Somos</p><p>impelidos a não nos afastarmos de tais eventos, de uma força tão</p><p>positiva. Somos impelidos a nos identi�car com ela e a abraçá-la de</p><p>todo o coração. Essa força já afetou vitalmente, deveríamos dizer,</p><p>mortalmente, a antiga fórmula da Igreja. Embora não tenham se</p><p>pronunciado esta noite, dois de nós, isto é, o reverendo padre-geral</p><p>dos franciscanos, Victor Venable, e Sua Eminência o Cardeal Svensen,</p><p>sabem como essa força, encarnada, por exemplo, no movimento</p><p>carismático, conduziu muitos milhões de católicos e os afastou da</p><p>fórmula de devoção pseudo-pessoal ao Cristo histórico. Afastou-os de</p><p>todo o bando de devoções voltadas aos anjos e santos e da</p><p>Mariologia. Esses milhões de católicos estão, agora, em contato direto</p><p>e pessoal com o Espírito.</p><p>Como se ele próprio encarnasse o Espírito, Palombo fez um contato</p><p>pessoal direto com os olhos do franciscano e do cardeal belga. Ambos</p><p>sorriram, em concordância beatí�ca.</p><p>O Cardeal Palombo voltou suas atenções para o lado de Michael</p><p>Coutinho.</p><p>— Também o padre-geral da Companhia de Jesus pode nos contar</p><p>sobre o sucesso que os jesuítas tiveram na América Latina com a</p><p>teologia da libertação. Também neste caso podemos falar de</p><p>multidões, de milhões de católicos, que se recusaram a ser castrados</p><p>por uma �gura adocicada de Cristo ou por uma Madona pietista e</p><p>chorosa. Nesses países do Terceiro Mundo, geração após geração de</p><p>clérigos de mentalidade imperialista haviam ido pregar uma teologia</p><p>devocional pací�ca e tímida. Mas agora, esses milhões de homens e</p><p>mulheres rejeitaram tal impotência, e optaram por sua libertação</p><p>�nanceira, econômica e política, há muito esperada. Esses milhões</p><p>lutam agora, não com rosários e novenas, mas com a força de seus</p><p>braços e de seus votos. Na verdade, e acima de tudo, eles lutam com a</p><p>força do Espírito que os anima.</p><p>Os olhos do Papa Negro mostraram sua concordância.</p><p>Com rosto ácido e concentrado, Palombo virou-se agora para cada</p><p>um de seus companheiros cardeais.</p><p>— Hoje ouvimos de meu venerável irmão Cardeal Pensabene, por</p><p>exemplo, que a mente católica está insatisfeita com sua recente</p><p>escravidão ao papismo. Essa mente também está descontente com</p><p>toda a mixtum-gatherum de hábitos mentais que, no passado,</p><p>conformavam os católicos a um modelo de comportamento humano</p><p>que é recusado e rejeitado pela grande maioria dos homens e mulheres</p><p>de hoje. Graças ao uso de técnicas psicológicas avançadas empregadas</p><p>pelas Pastorais Matrimoniais e movimentos como Origens e o</p><p>������, para citar apenas alguns dos processos formulados para</p><p>promover nossa agenda, até mesmo a grande maioria dos católicos</p><p>hoje rejeita aqueles velhos modelos de comportamento. Indo direto ao</p><p>ponto, esses mesmos processos levaram os próprios católicos, e eu me</p><p>re�ro, vocês sabem, a milhões de homens e mulheres, à aceitação de</p><p>tudo o que nós nesta sala imaginamos para a Nova Ordem Mundial.</p><p>Os católicos não sofrem mais com a convicção de que pertencem a um</p><p>grupo especial, ou de que tenham a posse exclusiva dos valores morais</p><p>e religiosos pelos quais homens e mulheres devem viver para poderem</p><p>ser… — Por uma única vez, Noah Palombo tropeçou em suas</p><p>palavras. — Para poderem, como se costumava pensar, ser salvos.</p><p>Ele precisou de apenas um microssegundo para recuperar a</p><p>compostura.</p><p>— Agora mesmo, desde o centro em Roma, passando por cada</p><p>diocese e paróquia; em cada seminário, universidade e escola que se</p><p>declare católica, corre uma corrente nova e diferente. Em toda a</p><p>Igreja, nasce um novo tipo de católico. Agora os católicos estão</p><p>dispostos e maduros para serem assimilados ao conjunto universal dos</p><p>homens e mulheres. Agora os católicos desejam o que nós mesmos</p><p>desejamos. Agora os católicos estão prontos para habitar e dar vida à</p><p>Nova Ordem Mundial que nós, aqui nesta sala, pretendemos tornar</p><p>realidade.</p><p>Todos estavam paralisados pelas palavras de Palombo e aguardando</p><p>a sua conclusão.</p><p>— Minha segunda recomendação, portanto, é tão urgente quanto</p><p>prática. Como clérigos católicos, meus colegas e eu avançamos muito</p><p>sozinhos. A única coisa que nos falta agora é a ponte para o amplo</p><p>mundo exterior. A ponte que milhões de católicos podem cruzar, para</p><p>juntar-se ao resto da humanidade, juntar-se ao novo arranjo das</p><p>nações como uma força ativa e cooperativa em nosso mundo novo e</p><p>moderno — Noah Palombo olhava diretamente para Cyrus Benthoek</p><p>agora, e para cada um de sua delegação, incluindo o impassível</p><p>Gibson Appleyard. — A única coisa que não podemos fazer sozinhos</p><p>é construir essa ponte. Você, Signor Benthoek. E você, Signor</p><p>Clatterbuck. E você, Signor Ga�n. E você, Signor Sekuler — o cardeal</p><p>olhou novamente para Gibson Appleyard, mas se absteve de citar seu</p><p>nome. — Todos vocês têm os meios para nos ajudar a construir essa</p><p>ponte. Ajudem-nos a remover o obstáculo para a nossa união.</p><p>Ajudem-nos a construir nossa ponte para o mundo. Ajudem-nos a</p><p>atravessá-la.</p><p>Em sua extensa e brilhante carreira, poucas vezes as coisas haviam</p><p>funcionado tão bem para Cyrus Benthoek, agora sozinho com o</p><p>Cardeal Maestroianni no pequeno Trianon. Ele estava recostado</p><p>numa cadeira, com suas longas pernas esticadas. Benthoek e o</p><p>Cardeal Maestroianni tinham de dar partida em mais um pequeno</p><p>assunto. Nenhum deles havia esquecido a proposta que o Cardeal</p><p>Svensen �zera por telefone a Maestroianni, cerca de dez dias antes:</p><p>criar um forte vínculo de carne e osso entre os bispos católicos do</p><p>coração da Europa e os poderosos comissários da Comunidade</p><p>Europeia.</p><p>O americano contou a Maestroianni sobre o progresso que, até</p><p>agora, obtivera em seu lado da operação para vincular o Vaticano e a</p><p>��. Como prometido, o escritório de advocacia de Benthoek havia</p><p>estudado a questão de colocar seu talentoso jovem internacionalista,</p><p>Paul Thomas Gladstone, no cargo de secretário-geral do Conselho de</p><p>Ministros, que formava o órgão central de governo da Comunidade</p><p>Europeia. O posto �caria vago em junho.</p><p>— Vai ser um arranjo um pouco demorado — Cyrus con�denciou ao</p><p>cardeal-secretário. — Mas a tarefa de garantir esse emprego para o</p><p>nosso homem está dentro das nossas possibilidades. Agora, e quanto a</p><p>Christian Gladstone, Eminência? Nada como um pouco de nepotismo</p><p>para �rmar um plano como este.</p><p>Maestroianni também tinha feito sua lição de casa. Suas</p><p>investigações posteriores rea�rmaram suas estimativas iniciais do</p><p>Padre Christian Gladstone como um inocente, f lexível e apolítico. A</p><p>juventude do sujeito seria bem compensada por seu polimento pessoal</p><p>e suas conexões familiares. Essas qualidades certamente</p><p>impressionariam os bispos e ganhariam sua con�ança, especialmente</p><p>quando apoiadas pela força da Secretaria do Vaticano. Para além das</p><p>aparências, também, Christian Gladstone parecia o homem perfeito</p><p>para o trabalho. Seu registro mostrava que ele era um clérigo</p><p>inteligente, mas obediente, que encontraria uma maneira de fazer o</p><p>que lhe fosse ordenado, contanto que a ordem fosse dada</p><p>corretamente.</p><p>— Agora, é só uma questão de disponibilidade dele. Tecnicamente,</p><p>ele ainda está sob a jurisdição do Bispo de Nova Orleans. Um cardeal</p><p>arcebispo chamado John Jay O’Cleary. Mas como você disse, Cyrus,</p><p>a tarefa está dentro de nossas possibilidades.</p><p>Por �m, os dois velhos amigos deixaram o Trianon. O cardeal deu</p><p>uma última olhada na Casa Robert Schuman, agora deserta,</p><p>abandonada ao silêncio e ao luar.</p><p>— Vai ser bom — Sua Eminência ecoou a profecia que Benthoek</p><p>havia feito mais cedo. — Vai ser muito bom.</p><p>Em contraste com a escuridão estéril e silenciosa que se instalara na</p><p>Casa Schuman, Fátima havia se tornado um mar escuro e aveludado,</p><p>através do qual uma corrente sinuosa de pequenas chamas se movia</p><p>ao som das cadências ascendentes e descendentes das Ave-Marias</p><p>rezadas por milhares</p><p>de peregrinos, cada um com uma vela acesa, que</p><p>participavam da procissão ao redor da Basílica. Contrastavam-se as</p><p>empoeiradas memórias, celebradas em Estrasburgo, de homens</p><p>mortos há muito tempo e calados para sempre, e a alma viva e</p><p>respirante de uma comunidade de fé que renovava suas vívidas</p><p>esperança e fé numa imortalidade garantida apenas pelo Filho Todo-</p><p>Poderoso do Deus vivo, que fora ofertado à humanidade pelo �at de</p><p>uma humilde donzela que, agora, reinava como Rainha do Céu e Mãe</p><p>de todos os seres humanos.</p><p>Aquela procissão representava algo especial, re�etiu Monsenhor</p><p>Daniel enquanto caminhava lentamente atrás do Papa eslavo; algo</p><p>simbólico da condição da humanidade. Nunca os cristãos receberam</p><p>qualquer promessa de alguma vitória neste mundo. Pela de�nição</p><p>bíblica, eles nunca seriam mais do que um resto, um toco de uma</p><p>árvore outrora grande, podada e cortada pela mão de Deus que</p><p>recompensa o amor, mas guarda a justiça de sua lei.</p><p>Aqui, nesta noite, todos os que seguiam a liderança do Santo Padre</p><p>estavam trilhando o único caminho seguro para a salvação. Para</p><p>Monsenhor Daniel, para os seguidores do Papa de Roma, para o</p><p>próprio Papa, aqueles preciosos minutos cantando em louvor à Bem-</p><p>Aventurada Senhora de Fátima proporcionaram uma doce pausa para</p><p>as almas cansadas, as almas assustadas, as almas vacilantes, as almas</p><p>perdidas. Pois a escuridão ao redor deles era clara o su�ciente para</p><p>seu conforto; e a luz ao redor deles era escura o su�ciente para</p><p>permitir que o aço de sua fé perfurasse os céus humanos e alcançasse</p><p>o trono do Pai Celestial.</p><p>Amigos em comum</p><p>N</p><p>XIII</p><p>icholas Clatterbuck nunca mudava. Fosse recepcionando os</p><p>convidados vindos do Vaticano e os outros para aquela notável</p><p>reunião em Estrasburgo, ou dirigindo, como ���, as operações</p><p>cotidianas da sede do escritório de Benthoek em Londres, ele era</p><p>sempre o mesmo. Sempre avô, mas com uma peculiar presunção de</p><p>autoridade.</p><p>Mesmo o tráfego mais intenso de �nal da tarde no Upper West Side</p><p>da cidade de Nova York parecia incapaz de irritá-lo. Sem dúvida, o</p><p>Dr. Ralph Channing e os outros estavam esperando por ele na casa de</p><p>Channing, em Cli�view. Mas nem mesmo Clatterbuck — nem mesmo</p><p>o próprio diabo — poderia fazer alguma coisa a respeito do caminhão</p><p>de lixo que se arrastava ao longo da parte superior da Riverside</p><p>Drive, ou do volume do tráfego rastejando atrás dele, buzinando por</p><p>toda a Rua 96, sentido norte.</p><p>— Aqui, amigo — com sua voz amável de sempre, Clatterbuck</p><p>indicou a seu motorista uma �la de limusines já estacionadas em �la</p><p>dupla diante de seu destino. — Pode parar aqui mesmo.</p><p>Cli�view. O nome estava gravado na placa de bronze da porta, mas</p><p>o inglês mal olhou para ele ao adentrar na construção de treze</p><p>andares. Ele conhecia esse marco da virada do século tão bem quanto</p><p>conhecia seu proprietário. Na verdade, quase todo mundo</p><p>familiarizado com o Upper West Side conhecia Cli�view — se não</p><p>pelo nome, pelo menos por seus distintos beirais cobertos por aquela</p><p>vistosa cúpula de vidro com vista para o Rio Hudson.</p><p>— Ah, Clatterbuck, meu querido.</p><p>A voz grave que cumprimentou Nicholas quando ele se juntou aos</p><p>outros já reunidos no estúdio da cobertura era tão inconfundível</p><p>quanto tudo o que a acompanhava: a cabeça completamente careca, a</p><p>testa alta e reta, os penetrantes olhos azuis, o cavanhaque, a força de</p><p>autoridade e segurança que nem Clatterbuck nem qualquer homem</p><p>aqui jamais contestara. Tudo isso pertencia ao Dr. Ralph S. Channing.</p><p>— Desculpe estar atrasado, professor. Foi o trânsito.</p><p>— Você chegou na hora perfeita. Estávamos falando de você, na</p><p>verdade. Eu estava contando a todos sobre o seu triunfo com</p><p>Benthoek, na reunião em Estrasburgo, semana passada. Mas parece</p><p>que iniciei um incêndio: nosso colega francês aqui acha a proposta</p><p>romana, de todo, de extremo mau gosto.</p><p>Channing depositou �rmemente sua taça de vinho na mesinha lateral</p><p>de mármore ao lado de sua cadeira e olhou para todos os seus onze</p><p>colegas, um de cada vez, até que seus olhos de laser se �xaram em</p><p>Jacques Deneuve, o objeto de sua condescendente indulgência.</p><p>— Deneuve pensa que Roma é uma fossa, Clatterbuck. O que você</p><p>tem a dizer sobre isso? Clatterbuck demorou a responder. Uma olhada</p><p>geral para os dez homens, já sentados e à vontade no estúdio com o</p><p>Dr. Channing, bastou como saudação. Serviu-se de uma taça de vinho</p><p>de um dos decantadores no aparador.</p><p>— Ora, é claro que é uma fossa — ele voltou seus olhos bondosos</p><p>para Deneuve. — Ninguém aqui gosta de Roma, Jacques. A quadrilha</p><p>papal é a pior fossa de conspirações, planos anti-humanos e</p><p>maquinações desumanas já inventados por literatos sujos, com</p><p>noçõezinhas sujas. Nós todos sabemos isso. Mas não é nesse ponto</p><p>que devemos focar. A oportunidade não apenas bateu à nossa porta;</p><p>ela nos forneceu um passaporte do Vaticano.</p><p>Tendo seu ponto aceito, ao menos em essência, Deneuve estava</p><p>satisfeito. Seu orgulho estava intacto. Channing sabia que podia</p><p>contar com Clatterbuck para acalmar sentimentos feridos. Com o</p><p>copo na mão, o inglês penetrou no círculo de homens e acomodou</p><p>seus tweeds em uma poltrona de sólido estofamento. Entre ele e</p><p>Channing, uma décima terceira cadeira permanecia vazia, exceto por</p><p>uma pasta de couro vermelho pousada em seu assento. Aquele lugar</p><p>sempre permanecia vazio, como se ocupado por uma presença</p><p>invisível entre eles, que acrescentava força à soma das presenças de</p><p>cada um do grupo; uma presença que tornava o grupo mais do que a</p><p>soma de seus doze corpos animados e mentes vivas. Este lugar sempre</p><p>tinha sido muito confortável para Clatterbuck. Um retiro</p><p>deliciosamente agradável; “cachimbeiro, livresco e masculino”, como</p><p>Virginia Woolf certa vez caracterizou o escritório particular de um de</p><p>seus admiradores. De onde estava sentado, ele podia apreciar a</p><p>paisagem da escuridão da noite e de mil luzes além do Hudson.</p><p>Rapidamente envolvido na discussão de eventos mundiais que</p><p>sempre precedia qualquer um dos assuntos principais que, de tempos</p><p>em tempos, traziam esses doze colegas a Cli�view, Clatterbuck não</p><p>precisava, como precisara em Estrasburgo, das instruções de Cyrus</p><p>Benthoek para conhecer os membros desse grupo. Na verdade,</p><p>embora Benthoek tivesse conhecido Channing e alguns dos outros</p><p>presentes no curso normal de seus negócios, até ele poderia se</p><p>surpreender, se descobrisse tudo o que Clatterbuck sabia sobre eles.</p><p>Super�cialmente, os convidados de Ralph Channing em Cli�view</p><p>constituíam uma elite de poder e sucesso. Jacques Deneuve, por</p><p>exemplo, a quem a proposta dos romanos em Estrasburgo tanto</p><p>repugnara, era o mais importante banqueiro da Europa. Gynneth</p><p>Blashford era o mais poderoso magnata jornalístico da Grã-Bretanha.</p><p>Brad Gerstein-Snell era a �gura dominante nas comunicações</p><p>internacionais. Sir Jimmie Blackburn era reconhecido como o chefe</p><p>supremo do mercado de diamantes na África do Sul. Kyun Kia Moi</p><p>controlava o frete marítimo no Extremo Oriente.</p><p>Esses cinco autores da Nova Ordem Mundial, sozinhos, negociavam</p><p>diariamente dezenas de bilhões pelos mercados �nanceiros</p><p>internacionais em Tóquio, Londres, Nova York, Cingapura, Paris e</p><p>Hong Kong. Eram as �guras dominantes a regular o �uxo de capitais</p><p>e bens. Em última análise, portanto, eles eram os árbitros, para a vida</p><p>e a morte, de vários governos e do bem-estar das nações.</p><p>Em um grupo como esse, o Dr. Ralph Channing poderia ser</p><p>considerado um estranho. Em vez disso, no entanto, ele era</p><p>claramente algo mais do que um igual. Nascido em uma antiga</p><p>família huguenote do Maine, Channing estudara religião comparada e</p><p>teologia em Yale. Reconhecido por sua compreensão enciclopédica</p><p>dos registros dos Cavaleiros Templários, da tradição do Santo Graal e</p><p>da Maçonaria — em particular, a Ordo Templi Orientis, ou o Templo</p><p>Oriental — ele se tornara um arquivista notável para grupos diversos</p><p>de pesquisadores nas áreas de humanidades. Como professor titular</p><p>em uma das principais universidades americanas, sua in�uência se</p><p>estendera pelo mundo inteiro, por meio de uma bem sucedida</p><p>ladainha de livros, pan�etos, artigos, palestras e seminários.</p><p>Cada vez mais valorizado em certos círculos por seu conhecimento</p><p>histórico e sua capacidade de avaliar a religião organizada como um</p><p>fator sociocultural e político no mundo, uma administração federal,</p><p>em Washington, o tomara emprestado de sua universidade, e ele</p><p>administrara com sucesso o planejamento do Departamento de</p><p>Educação. De alguma forma, também encontrava tempo para passar</p><p>alguns meses a cada ano no exterior, como consultor de várias</p><p>organizações humanistas na Europa e no Extremo Oriente.</p><p>Não importava, então, que Ralph Channing não fosse banqueiro ou</p><p>armador. Não havia um homem nesse distinto grupo que quisesse —</p><p>ou pudesse — impugnar suas credenciais de liderança.</p><p>Na realidade, o que unia esses doze homens não era inteiramente</p><p>uma questão bancária, logística ou diamantina. Tendo bebido</p><p>profundamente do precioso vinho do sucesso, cada homem presente</p><p>buscava outro objetivo. E cada um deles havia descoberto que o</p><p>serviço ao Príncipe deste mundo era o único objetivo satisfatório.</p><p>Cada um deles passara pelas provações do Fogo, da Dor e da Morte.</p><p>Cada um deles recebera o selo da Declaração Final em sua alma.</p><p>Todos aqui eram homens aperfeiçoados: era essa a virtude uni�cadora</p><p>da Cli�view House.</p><p>Ainda assim, embora a devoção ao Príncipe fosse o traço distintivo</p><p>da pequena reunião de Ralph Channing em Cli�view, essa devoção</p><p>não tinha nada a ver com uma �gura de bode com orelhas pontudas,</p><p>cascos fendidos e cheirando a enxofre. Cada um desses homens havia</p><p>aprendido há muito tempo que a realidade era muito diferente. Eles</p><p>haviam se encontrado e comprometido com uma inteligência que cada</p><p>um deles descobrira ser suprema entre os seres humanos. Seu</p><p>envolvimento cada vez mais íntimo com o Processo assumira um</p><p>aspecto especial; havia permitido a esses homens — contra todas as</p><p>probabilidades e entre tantos homens do mundo — reconhecer os</p><p>traços dessa inteligência suprema que atuava no Processo, curvar-se a</p><p>essa inteligência por todos os meios práticos e, assim, seguir as</p><p>pegadas da história.</p><p>Nenhum dos presentes em Cli�view seria considerado uma pessoa</p><p>má, como essa palavra é entendida hoje em dia. O aperto de mão de</p><p>qualquer um deles valia como um contrato. Em questões de política,</p><p>eles eram corretos; o que signi�ca que jamais eram extremistas. Em</p><p>questões sociais, eram aceitáveis; o que signi�ca que haviam mostrado</p><p>a sua preocupação humanitária e a sua generosidade �lantrópica. Em</p><p>questões de �delidade conjugal, todos aderiam à norma de</p><p>respeitabilidade atualmente aceita.</p><p>Tampouco alguém poderia tentar colar nesse grupo a pecha</p><p>insultuosa de conspiradores. Ao contrário, eram homens que, por</p><p>acaso, tinham sentimentos semelhantes a respeito dos assuntos</p><p>humanos. Nisso — como qualquer um deles poderia atestar, pois</p><p>eram diretores de conselhos corporativos em todo o mundo — eles</p><p>não eram muito diferentes, digamos, dos curadores de Harvard ou do</p><p>conselho de administração do The Times de Londres. Nem muito</p><p>diferentes dos comissários da Comunidade Europeia, se a questão se</p><p>apresentasse.</p><p>Como muitos outros grupos, esses doze homens operavam dentro</p><p>dos limites reconhecidos da liberdade democrática para conseguir a</p><p>implementação dos ideais que acalentavam. Nenhum deles negaria</p><p>que seu grupo gozava de certas vantagens que poucos poderiam</p><p>igualar. O imenso sucesso de cada membro permitia que o grupo</p><p>como um todo se envolvesse, em grande escala, na engenharia social e</p><p>na escultura política. Mas o poder e o sucesso não eram o que lhes</p><p>proporcionava sua maior in�uência.</p><p>Sua verdadeira vantagem, como qualquer um deles atestaria,</p><p>provinha de uma única coisa: a dedicação de cada um ao próprio</p><p>Espírito, àquele personagem que todos descreviam como o Príncipe.</p><p>As vantagens proporcionadas por esse interesse permanente lhes</p><p>pareciam in�nitas. O simples fato de seu desejo não concordar com o</p><p>desejo confessado pelas principais religiões signi�cava que eles eram</p><p>capazes de pensar de uma maneira mais universal do que poderiam se</p><p>fossem judeus, cristãos ou muçulmanos. Eles eram, portanto, mais</p><p>tolerantes. Mais humanos.</p><p>Umasegundavantagemresidianasuacapacidadedecompreendero</p><p>Processo. Suas quali�cações especiais os classi�cavam como mestres</p><p>engenheiros. Eles sabiam que estavam entre os poucos privilegiados a</p><p>compreender a qualidade sobre-humana e o progresso atuando no</p><p>Processo. Seu ponto de vista lhes permitia entender que não era</p><p>questão de uma geração ou de um século. E embora eles mesmos</p><p>estivessem tão acima das operações do dia a dia e de ano após ano,</p><p>podendo reconhecer a própria face da inteligência por trás delas, eles</p><p>aceitavam a realidade de que a maioria da população humana e até</p><p>mesmo a maioria dos adeptos e propagadores trabalhando nos níveis</p><p>inferiores só poderiam conhecer o Processo por essas operações.</p><p>O ponto para eles, como engenheiros mestres, era que as próprias</p><p>operações deviam mudar constantemente. O Processo devia crescer,</p><p>sempre crescer em direção ao seu objetivo �nal. Em teoria, era algo</p><p>como uma reação em cadeia, tendo a sociedade como reator.</p><p>Era fundamental para o Processo que a mudança se tornasse a</p><p>característica dominante da sociedade humana. As mentes estavam</p><p>sendo mudadas. A própria linguagem viva estava sendo moldada por</p><p>mentes mutáveis. O vocabulário da política e da geopolítica era o</p><p>vocabulário da mudança. O “internacionalismo” abrira caminho para</p><p>o “multinacionalismo”, por exemplo. Em seguida, o</p><p>“transnacionalismo” tomara o palco. Muito em breve, seria</p><p>substituído pelo “globalismo”. Em todos os níveis da vida, as mentes</p><p>e a própria sociedade estavam sendo moldadas e remodeladas pela</p><p>interminável reação em cadeia da mudança. A sociedade estava</p><p>prestes a reformular sua estrutura fundamental, desfazendo-se de seus</p><p>casulos separatistas. O universalismo logo uniria todos os homens e</p><p>mulheres em uma família, em um abraço.</p><p>Quando a mudança se torna o slogan e a palavra de ordem da</p><p>sociedade em geral, o Processo, enquanto evolução, torna-se cada vez</p><p>mais aceitável.</p><p>Cada vez mais respeitável. Cada vez mais inevitável.</p><p>— Muito bem, cavalheiros — como um martelo a exigir silêncio, a</p><p>voz áspera de Ralph Channing encerrou o bate-papo. — Vamos ao</p><p>cerne das coisas.</p><p>Como todos sabiam, o cerne das coisas seria a leitura do Relatório</p><p>Categórico. No entanto, como todos esperavam, por experiência,</p><p>Channing tinha primeiro algumas observações a fazer.</p><p>— Como alguns de vocês supuseram, as diretrizes �nais contidas</p><p>neste Relatório Categórico são baseadas na importante reunião do</p><p>início deste mês em Estrasburgo. Aliás, foi nosso Nicholas</p><p>Clatterbuck quem montou a pauta daquela reunião para Cyrus</p><p>Benthoek. Minha esperança, senhores, é que a compreensão do</p><p>signi�cado da aliança proposta em Estrasburgo torne suas mentes</p><p>mais receptivas às nossas propostas. Alguns membros da comitiva do</p><p>Vaticano a Estrasburgo podem não ter entendido o quão longe as</p><p>pontes propostas por eles poderiam chegar. Quem teria sonhado que a</p><p>evolução do governo do Príncipe exigiria o que o Relatório</p><p>Categórico chama de “uma fase religiosa” na engenharia evolutiva da</p><p>sociedade das nações? As religiões organizadas não podem ser</p><p>simplesmente condenadas, ignoradas e substituídas por práticas</p><p>ocultistas. Todas, é claro, fazem parte do Processo. Agora percebemos</p><p>que a religião é uma manifestação do Espírito.</p><p>Isso causou um pouco de agitação, mas Channing, como um dos</p><p>maiores especialistas do mundo no tema das religiões, não pretendia</p><p>aceitar ser desa�ado.</p><p>— Sim, admito que a religião seja uma manifestação equivocada e</p><p>deformante. No entanto, insisto, é verdadeiramente uma</p><p>manifestação. Espírito Progressista, no homem, signi�ca progresso na</p><p>religião; e o progresso, como sabemos, sempre leva do particular e do</p><p>local ao universal. Em outras palavras: logicamente, e simplesmente</p><p>porque as religiões existem, é necessário que haja uma fase religiosa</p><p>no Processo evolutivo da humanidade. O que devemos entender é que</p><p>atualmente nos deparamos com uma nova etapa desse Processo</p><p>evolutivo. A fase �nal! A criação de uma religião mundial.</p><p>Ausentes</p><p>todos os nacionalismos, todos os particularismos e todos os</p><p>culturalismos do passado. Agora, em seus estágios �nais, esse</p><p>Processo evolutivo exige, necessariamente, um mecanismo pelo qual a</p><p>fase da religião seja remodelada para se adequar ao globalismo dessa</p><p>Nova Ordem; à sua universalidade. Sem deixar de auxiliar o Processo,</p><p>nossa tarefa é ajudar cada uma das maiores religiões, de modo a</p><p>permitir que todas se unam em um abraço universal. Em uma religião</p><p>universal, na qual nenhuma religião seja distinguível das outras. A</p><p>criada perfeita para a Nova Ordem das Eras! Não concordam,</p><p>cavalheiros? Channing sorriu para os rostos sorridentes ao seu redor.</p><p>— Isso compreendido, por mais que se concorde com a convicção de</p><p>Jacques Deneuve de que Roma é uma fossa, uma outra coisa deve</p><p>�car clara. Se quisermos conduzir a fase religiosa do homem ao ápice</p><p>de sua evolução, até a plena aceitação do Processo, então devemos</p><p>levar em conta o papel do catolicismo romano. Não; — com os olhos</p><p>na pasta vermelha, pousada na décima terceira cadeira, Channing se</p><p>corrigiu imediatamente — mais precisamente, devemos levar em conta</p><p>o papel do catolicismo papista em geral e do ofício papal em</p><p>particular. E esse ponto, �co feliz em dizer, nos leva diretamente à</p><p>leitura do Relatório Categórico.</p><p>Channing se inclinou para a cadeira vazia ao lado dele para pegar a</p><p>pasta de couro e a entregou a Nicholas Clatterbuck. Clatterbuck leu,</p><p>com sua voz suave e gentil.</p><p>— O que se segue é o Relatório Categórico elaborado por Capstone,</p><p>sobre as medidas absolutamente necessárias a serem tomadas pelo</p><p>Concílio dos 13, em vista da iminente Ascensão do Príncipe deste</p><p>mundo.</p><p>Como se um interruptor tivesse sido acionado, a leitura dessa frase</p><p>inicial mudou o clima no estúdio do Dr. Channing: até então afável, já</p><p>agora surreal. Mesmo na língua de Clatterbuck, as palavras de</p><p>Capstone eram escuras e aveludadas, um manto tecido de realizações</p><p>passadas e esperanças presentes. Lábios curvados em sorrisos</p><p>desagradáveis; sorrisos de morte impostos, desfrutados e esperando</p><p>por uma repetição.</p><p>— Tendo a falange interna de servidores dentro da Cidadela do</p><p>Inimigo efetuado o ritual de entronização do Príncipe, vocês sempre se</p><p>souberam recipientes do privilégio de servir no Tempo Concedido,</p><p>para facilitar o triunfo �nal do Príncipe deste mundo. É chegado o</p><p>momento em que devemos cumprir nossa obrigação de enfrentar as</p><p>forças do Inimigo em sua própria fortaleza. Ao dizer que esta é uma</p><p>oportunidade, lembramos que dispomos de um período de cinco a</p><p>sete anos antes que as vantagens que nos foram asseguradas na</p><p>entronização sejam anuladas. Essa é a nossa persuasão categórica.</p><p>Diante de um tal aviso, os membros do Concílio, até mesmo</p><p>Clatterbuck, deram uma olhada no Dr. Channing. A autoridade do</p><p>professor era tal que um gesto da sua mão foi su�ciente para conter o</p><p>susto. A leitura foi retomada.</p><p>— Esclarecida a urgência da nossa obrigação, apressamo-nos a dizer</p><p>que o prazo que nos foi dado a conhecer, isto é, cinco a sete anos, será</p><p>su�ciente, sob dupla condição. Em primeiro lugar, devemos ser</p><p>realistas em nossa avaliação do principal obstáculo remanescente no</p><p>caminho de nosso sucesso. Em segundo lugar, devemos ser igualmente</p><p>realistas nos meios que empregarmos para remover esse obstáculo.</p><p>Comecemos, portanto, pelo começo. O obstáculo mais antigo e mais</p><p>recalcitrante para a Ascensão e, na verdade, o único obstáculo a</p><p>inspirar respeito e cuidado, sempre foi e até hoje ainda é o papado</p><p>católico romano.</p><p>Clatterbuck voltara ao seu habitat. Sua voz voltara a ser equilibrada,</p><p>agradável ao ouvido e desapaixonada no tom.</p><p>— Deixemos claro, também, que não consideramos a autoridade</p><p>censurável em si mesma. Ao contrário, é necessário que haja</p><p>autoridade. Mas sejamos igualmente claros sobre uma autoridade tão</p><p>geral quanto a de uma pessoa infalível, na qualidade de representante</p><p>pessoal do Inominável. Essa autoridade personi�cada nos é estranha e</p><p>a�nal inimiga de nossos interesses, porque inimiga da Ascensão. Nós</p><p>nos mantemos dedicados à Ascensão. Alguns apetrechos do ofício</p><p>papal podem ser facilmente adaptados, para servirem como um</p><p>instrumento que facilite a Ascensão. No entanto, na essência do</p><p>papado, enfrentamos um obstáculo que devemos considerar temível. É</p><p>algo mortalmente assustador, porque neste papado estamos lidando</p><p>com uma realidade perigosa. Uma realidade do Espírito. Uma</p><p>entidade singular; inconciliável com o progresso da Nova Ordem</p><p>Mundial que vislumbramos; e, em última análise, inconciliável com a</p><p>Ascensão, da qual somos arautos. Convém lembrar quão resiliente</p><p>tem sido esse ofício papal ao longo de sua história. É um ofício</p><p>passível de ser invadido por todo tipo de corrupção. Seus detentores</p><p>podem ser eLivross e isolados do resto da raça humana. Podem ser</p><p>aprisionados, gentilmente ou violentamente; em segredo ou diante dos</p><p>olhos de milhões. Mas ninguém jamais conseguiu liquidar esse ofício.</p><p>Ninguém nem nada. Para que uma entidade seja tão e�caz e</p><p>duradoura, sua força, virtude e poder de recuperação devem provir</p><p>daquilo que é totalmente estranho para nós. Devem surgir do que é</p><p>totalmente estranho ao Capstone e à Ascensão; devem vir do</p><p>Inominável. Neste momento crítico de nossa guerra, nós que somos</p><p>do Espírito devemos enfatizar que estamos lutando contra a realidade</p><p>do Espírito. Do Espírito contrário, mas ainda assim, Espírito. Neste</p><p>último e glorioso estágio da Ascensão, nossa ação mais coordenada</p><p>deve ser direcionada para o foco principal da resistência aos nossos</p><p>objetivos. Consequentemente, este nosso Relatório Categórico foca</p><p>em uma pergunta: o que fazer com o papado pessoal, com toda a sua</p><p>teimosa resiliência? Nossa resposta dita uma reviravolta em nossas</p><p>estratégias. Ou melhor, uma escalada de nossas estratégias a um nível</p><p>que nem mesmo os membros do concílio podem ter considerado</p><p>possível. Dissemos que o ofício papal deve ser respeitado, temido e</p><p>protegido. Agora, no entanto, determinamos que não podemos mais</p><p>permanecer na defensiva. Em vez de nos protegermos do poder desse</p><p>ofício, nós o conquistaremos. Eis a nossa Decisão Categórica e o</p><p>objetivo de nossa agenda nos cinco a sete anos vantajosos que nos</p><p>restam: tomar para nós o ofício papal, com toda a sua resiliência. E</p><p>fazer isso garantindo que o titular desse cargo seja um homem com</p><p>quem possamos contar e que se adapte às nossas necessidades.</p><p>Analisaremos, agora, as limitadas opções que temos para atingir esse</p><p>objetivo. São essencialmente três: Persuasão. Liquidação. Renúncia.</p><p>Consideremos, primeiro, a persuasão; a possibilidade de que o titular</p><p>do ofício papal possa ser induzido ou persuadido à tolerância e à</p><p>complacência necessárias para o nosso objetivo juramentado.</p><p>Infelizmente, devemos relatar que, no julgamento �nal de nossos</p><p>conhecedores especialistas, incluindo membros internos da Falange</p><p>que habitam as redondezas do ofício papal, seu atual detentor nunca</p><p>verá a sabedoria de nossa agenda, nem temos o luxo do tempo</p><p>necessário para esperar sua saída. Com base nos dados o�ciais e</p><p>con�denciais sobre sua saúde física, podemos contar com mais quatro</p><p>a sete anos de existência física ativa para o titular atual. Dada a nossa</p><p>Persuasão Categórica de que estamos trabalhando num curto período</p><p>de tempo, não mais de sete anos que já estão correndo, devemos</p><p>passar para as próximas duas opções: a liquidação ou a renúncia do</p><p>atual titular do ofício papal. Em termos práticos, qualquer uma das</p><p>opções trará o resultado que desejamos e nos deixará livres para</p><p>instalar um novo e complacente titular. Como costuma acontecer em</p><p>assuntos importantes, o passo que pode parecer o mais difícil, isto é, a</p><p>instalação de um ocupante amigável, é a parte mais fácil de nossa</p><p>tarefa. Não precisamos lembrar a ninguém neste Concílio que agora</p><p>estamos desfrutando da maravilhosa facilidade que nos é oferecida</p><p>pelo número crescente de apoiadores internos da nossa Falange</p><p>regular. E, além disso, vários dos seus membros que de fato ajudaram</p><p>na cerimônia de entronização em 1963 ainda estão atuantes e subiram</p><p>a cargos tão altos</p><p>na Cidadela que hoje podem garantir nosso sucesso.</p><p>Assim, não estaremos apenas forçando o Espírito Contrário a</p><p>desocupar uma casa amigável apenas para entrar em outra casa</p><p>igualmente amigável. Isso não nos traria qualquer vantagem. Não, o</p><p>candidato a substituir o atual titular do cargo será alguém</p><p>familiarizado com os nossos �ns, no mínimo disposto a aquiescer com</p><p>eles, se não plenamente disposto a colaborar na sua consecução. A</p><p>tarefa de remoção, portanto, deve receber nossa atenção urgente e</p><p>incessante. A primeira das duas alternativas para conseguir a remoção</p><p>seria a mais satisfatória. Super�cialmente, pode até parecer a mais</p><p>fácil e, portanto, a mais tentadora. Tratemos da liquidação do</p><p>indivíduo. Se o Concílio dos 13 adotasse esse procedimento, ele seria</p><p>meticulosamente planejado e imaculadamente executado. Em suas</p><p>mãos, não veríamos nada parecido com a estúpida iniciativa de 1981.</p><p>Contudo, mesmo que tivéssemos sucesso em uma ação aberta contra a</p><p>pessoa do atual titular do cargo, os resultados ainda poderiam ser</p><p>desastrosos para nós. Não poderíamos nos esconder atrás de disfarces</p><p>como “os terríveis búlgaros” ou a “tecnologia de morte da K��”, os</p><p>“arquivos secretos” ou “manipulação da ���”. Nenhuma das</p><p>extravagâncias correntes na boca do povo, disponíveis como</p><p>camu�agem para a iniciativa de 1981, continua disponível. No</p><p>entanto, se uma liquidação rápida e abertamente executada seria</p><p>decerto autodestrutiva por sua natureza, pode-se inquirir se existem</p><p>meios de liquidação diferentes, conquanto e�cazes. Conhecemos</p><p>possibilidades concretas para uma tal liquidação gradual e</p><p>modi�cada. Todas elas foram, no entanto, complicadas pelos recursos</p><p>de segurança adotados pela administração do ofício papal depois de</p><p>1981; recursos tão extensos e detalhados que incluem até mesmo a</p><p>veri�cação de tudo que o ocupante ingere. Além disso, o simples fato</p><p>de conhecermos tais possibilidades sublinha outra razão importante</p><p>pela qual não devemos sucumbir a qualquer tentação nesse sentido.</p><p>Não existe segredo. Na análise �nal, em tudo há traição; tudo é</p><p>revelado; tudo se torna conhecido. Lembrem-se de que estamos</p><p>lidando com o Espírito, volátil, imprevisível, selvagem em seus modos,</p><p>soprando e varrendo onde queira. Nosso Julgamento Categórico é</p><p>este: aqueles que nos apresentam qualquer proposta para uma tal</p><p>solução estão, na realidade, nos apresentando uma granada, nos</p><p>convidando a puxar o pino e liquidar a nós mesmos em incontáveis</p><p>fragmentos. Resta, então, a Alternativa Eleita. A Escolha Categórica</p><p>pela qual alcançaremos nosso objetivo é a renúncia. Resumidamente,</p><p>o atual titular do cargo será induzido a renunciar ao cargo, sem</p><p>qualquer perda. Uma renúncia voluntária do Papa, neste ponto crucial</p><p>da divisão e desunião entre os leigos católicos romanos comuns e os</p><p>próprios clérigos, seria um sinal poderoso; nada menos do que uma</p><p>con�ssão de derrota dos mais importantes elementos que se opõem a</p><p>nós. Seria uma declaração, para os demais defensores da velha ordem</p><p>das coisas, de que o passado é irrecuperável. De fato, o clima é tal que</p><p>até mesmo entre a velha ordem já existe uma certa simpatia à nossa</p><p>Alternativa Eleita. Uma simpatia expressa abertamente, poderíamos</p><p>acrescentar, em pontos estratégicos entre as �leiras de alvos. Quando</p><p>falamos em induzir o titular a renunciar, a palavra “indução” deve ser</p><p>entendida em seu sentido mais sutil. Falamos de aplicar todos os</p><p>meios à disposição de vocês no mundo; pois o indutor mais poderoso</p><p>será a pressão de eventos irreversíveis e o surgimento de irresistíveis</p><p>linhas de força. Deve-se planejar eventos e linhas de força capazes de</p><p>restringir a ação do titular, delineando como único caminho possível,</p><p>para ele, a renúncia ao ofício papal. No relatório em que descreve</p><p>para nós os eventos da recente reunião em Estrasburgo organizada</p><p>pelo Sr. Cyrus Benthoek, nosso Nicholas Clatterbuck indica</p><p>claramente que temos aliados potenciais, não previamente</p><p>identi�cados como tais. Indivíduos que são altamente in�uentes</p><p>dentro da Cidadela e que, de fato, uniram-se aos membros internos da</p><p>Falange que também estiveram presentes em Estrasburgo. Eles</p><p>disseram estar ansiosos por uma mudança radical no nível mais alto</p><p>da sua administração. E em sua ânsia, eles abriram para nós suas</p><p>poderosas linhas de persuasão global. Além disso, há uma iniciativa</p><p>auxiliar e ainda mais importante em andamento, na qual também</p><p>fomos convidados a cooperar, também através de Cyrus Benthoek.</p><p>Uma iniciativa que envolve a formação de uma aliança estreita e</p><p>sistemática entre praticamente todos os clérigos do coração da Europa</p><p>e a Comunidade Europeia. Devemos facilitar essa iniciativa. Em suma,</p><p>em estrita conformidade com o direito canônico da Cidadela, abriu-se</p><p>para nós o caminho que leva à saída pací�ca do atual detentor do</p><p>ofício papal. Vocês devem aproveitar essas duas signi�cativas</p><p>vantagens que nos foram dadas. Sua tarefa é tomar em mãos a</p><p>proposta de Estrasburgo e a pretendida aliança entre a Cidadela e a</p><p>��. Sua tarefa é usar essas duas vantagens para criar os eventos</p><p>irreversíveis e evocar as irresistíveis linhas de força que tornarão o</p><p>ofício papal inutilizável pelo Inominável Outro, entregando-o nas</p><p>mãos dos servidores do Príncipe.</p><p>Restava a Clatterbuck apenas informar seus associados sobre os</p><p>planos destinados a ligar os bispos da Europa aos interesses da</p><p>Comunidade Europeia. Paul Thomas Gladstone, um dos mais jovens e</p><p>talentosos homens da empresa, explicou Clatterbuck, seria empossado</p><p>no poderoso cargo de secretário-geral dos comissários da ��. O irmão</p><p>de Gladstone, Padre Christian Thomas Gladstone, serviria como o elo</p><p>no Vaticano. Sob a direção próxima de Roma, e tendo o irmão como</p><p>seu vínculo íntimo com os comissários, o Padre Gladstone levaria os</p><p>bispos à cooperação pro�ssional com as políticas e objetivos da ��.</p><p>Nicholas Clatterbuck concluiu sua exposição enfatizando um último</p><p>ponto. Tanto a iniciativa da �� quanto a aliança de Estrasburgo</p><p>dependiam, no momento, da con�abilidade de Sua Eminência, o</p><p>Cardeal Cosimo Maestroianni. O Padre Christian Gladstone seria sua</p><p>criatura. E, embora fosse verdade que o em breve ex-secretário de</p><p>Estado havia sido cultivado como um amigo especial por Cyrus</p><p>Benthoek, também era verdade que Benthoek não era membro do</p><p>Concílio. Uma vez que Benthoek não estava em um nível tão alto de</p><p>inteligência, seguia-se que seu julgamento sobre a probidade e</p><p>con�abilidade do cardeal não deveria ser considerado de�nitivo. A</p><p>prudência usual ditava, portanto, que um deles deveria examinar o</p><p>cardeal pessoalmente.</p><p>Tendo todos concordado com isso, o Dr. Ralph Channing escolheu a</p><p>si mesmo como o homem para se encontrar com Maestroianni. “Para</p><p>consolidar esse relacionamento”, como ele se expressou, “e engatar</p><p>uma marcha mais rápida”.</p><p>Se o cardeal fosse aprovado, se seu consentimento fosse</p><p>inquestionável e a aliança de trabalho �rmada com ele pudesse ser</p><p>considerada �rme e con�ável, então as coisas poderiam prosseguir</p><p>rapidamente. Gynneth Blashford sugeriu que Clatterbuck poderia,</p><p>facilmente, providenciar que Cyrus Benthoek se juntasse ao professor</p><p>em uma visita ao seu novo amigo romano.</p><p>N</p><p>— Amigos em comum sempre ajudam a abrir portas, não acha?</p><p>Estava resolvido, então. Se tudo corresse bem, os romanos que</p><p>haviam procurado ajuda para obter uma mudança radical no nível</p><p>mais alto do poder obteriam mais do que a maior parte deles</p><p>esperava.</p><p>XIV</p><p>o esquema geral das coisas, naquele nível mais alto do poder</p><p>em que os guerreiros se propõem conquistar as mentes alheias e</p><p>moldar suas estratégias para a guerra global, o Dr. Ralph S.</p><p>Channing se considerava mais do que páreo para o Cardeal Cosimo</p><p>Maestroianni.</p><p>A principal preocupação de Channing em “garantir a estabilidade de</p><p>Roma” girava menos em torno de questões sobre as capacidades do</p><p>cardeal ou seu poder na Cidadela do que de saber se Sua Eminência</p><p>poderia não ser mais do que um vira-casacas de alto escalão, capaz de</p><p>trair um senhor como havia traído o outro. Antes de deixar Nova</p><p>York, portanto, o professor fez questão de conhecer o histórico</p><p>de</p><p>realizações do cardeal-secretário no cargo. No caminho para Roma</p><p>via Londres, ele procurou Cyrus Benthoek para ouvir o que se tornou</p><p>um animado, convincente e até afetuoso esboço pessoal, baseado em</p><p>sua longa associação com o clérigo romano. Finalmente, com</p><p>Benthoek atuando como intermediário, a visita de Channing à</p><p>cobertura de Maestroianni coroou a promessa de uma futura</p><p>colaboração.</p><p>O criado que abriu a porta do domínio privado do Cardeal</p><p>Maestroianni era um homem extremamente pequeno, a quem</p><p>Benthoek se dirigiu com o maior respeito, chamando-o Signor Mario.</p><p>A dignidade era como uma de suas posses. Não havia nada de</p><p>espontâneo nele. Cada passo que dava parecia medido, cada sorriso</p><p>era formal.</p><p>Signor Mario declarou-se satisfeito por ver novamente o Signor</p><p>Benthoek; fazia muito tempo. Ao Dr. Channing, fez uma reverência</p><p>orgulhosa.</p><p>Enquanto seguiam obedientemente o pequeno criado pelo espaçoso</p><p>corredor que conduzia ao escritório particular de Maestroianni, a</p><p>dupla se viu envolvida pelas paisagens urbanas do chão ao teto, com</p><p>sua aura quase mística, assim como sempre envolviam Maestroianni.</p><p>De fato, esse corredor bastou a Channing como um indicador preciso</p><p>de uma profunda dedicação à realização da unidade original da</p><p>humanidade, pois ninguém poderia duvidar de que a unidade era o</p><p>objetivo da Conferência Europeia de Segurança e Cooperação.</p><p>Como se soubesse quanto tempo esperar para que o corredor de</p><p>Helsinque �zesse efeito, o Signor Mario mediu o passo em direção às</p><p>últimas portas, as do escritório particular de Sua Eminência.</p><p>— Sintam-se em casa — o mordomo fez isso parecer mais uma</p><p>ordem do que um convite. — Sua Eminência se juntará aos senhores</p><p>imediatamente. Sozinho por um instante com Benthoek, Channing</p><p>examinou os arredores com indisfarçável interesse. Como um erudito</p><p>de primeira linha, ele reconhecia uma biblioteca de primeira linha</p><p>quando a via. Uma biblioteca bem usada, que capturava a própria</p><p>essência da paixão com que Sua Eminência, notava-se, seguia o</p><p>registro histórico sempre crescente.</p><p>— Uma coleção soberba — Channing arrulhou sua aprovação para</p><p>Benthoek, enquanto espiava várias de suas próprias monogra�as</p><p>empilhadas na mesa de centro.</p><p>O Cardeal Maestroianni entrou apressada e teatralmente pela porta</p><p>de uma sala contígua.</p><p>— Como pode ver, Dr. Channing, o senhor realmente não é um</p><p>estranho aqui entre nós. Acabo de ler sua monogra�a sobre a</p><p>geopolítica da demogra�a. Trabalho maravilhoso. Estou em dívida</p><p>com Cyrus por nos apresentar.</p><p>A boca de Channing curvou-se sensivelmente para cima, atrás de seu</p><p>cavanhaque, ao apertar a mão estendida do Cardeal. Ele não esperava</p><p>um homem tão pequeno. Homens pequenos detendo grande poder</p><p>enervavam o professor.</p><p>— O prazer é todo meu, Eminência! O Cardeal Maestroianni</p><p>conduziu seus convidados a um trio de cadeiras confortáveis reunidas</p><p>em torno de uma mesa de centro fornida com gelo e água com gás.</p><p>Uma brisa agradável entrava pelas janelas abertas. Tendo seu instinto</p><p>romano como guia, Maestroianni se contentou, por alguns momentos,</p><p>com uma conversa �ada; embora conhecesse Channing, eram as</p><p>impressões e avaliações pessoais que contavam no �nal.</p><p>Cyrus Benthoek foi o primeiro a se cansar da conversa �ada.</p><p>— Resolvi procurá-lo, Eminência — disse ele —, porque todos temos</p><p>um objetivo comum. O Dr. Channing me fez saber, com clareza, que</p><p>ele não apenas compartilha do objetivo que estabelecemos em</p><p>Estrasburgo, mas também pode construir praticamente todas as</p><p>pontes necessárias.</p><p>Maestroianni assentiu, mas permaneceu em sua posição. Ele não</p><p>faria uma jogada antecipada.</p><p>Cyrus estava determinado a conduzir os trabalhos.</p><p>— Tomei a liberdade de detalhar o conteúdo de nossa reunião em</p><p>Estrasburgo para o Dr. Channing. E devo dizer-lhe, Eminência, que foi</p><p>uma tarefa agradável. O bom professor, de antemão, sabia</p><p>praticamente tudo sobre o trabalho do Rito de Renovação Cristã de</p><p>Adultos do Cardeal Aureatini e sobre o Conselho Internacional para a</p><p>Liturgia Cristã do Cardeal Palombo. Muito reconfortante, Eminência.</p><p>Muito promissor.</p><p>— Compreendo — Maestroianni já contava com isso. Ele dirigiu sua</p><p>atenção para Channing, intencionalmente. Ele esperava uma</p><p>declaração direta do estranho.</p><p>Channing entendeu. Sua voz foi tão categórica quanto sua escolha de</p><p>palavras.</p><p>— Vossa Eminência sabe a que ponto chegou o Processo de</p><p>condução das nações ocidentais pela estrada da homogeneização</p><p>econômica, �nanceira e cultural. Já estamos falando de mais de vinte</p><p>nações e uma população de algo próximo a um bilhão. Se tudo correr</p><p>conforme o planejado, dentro de dois a quatro anos, os países</p><p>membros da Comunidade Europeia estarão transformados. Cada país</p><p>perderá o controle sobre a maioria das áreas de sua vida econômica e</p><p>política. As políticas externa e de defesa já estão sendo determinadas,</p><p>pelo menos em parte, por necessidades e pressões supranacionais. O</p><p>Estado-nação soberano logo será coisa do passado.</p><p>Maestroianni concordou pacientemente com a cabeça. Ele não</p><p>carecia de palestras sobre as realizações e virtudes do Processo.</p><p>Channing percebeu que era melhor passar para as realizações mais</p><p>pessoais do cardeal-secretário.</p><p>— Agora, durante o mandato de Vossa Eminência como secretário</p><p>de Estado, a política externa da Santa Sé tem sido �el em seu</p><p>alinhamento com esta tendência do Processo. Para usar uma de suas</p><p>próprias frases católicas consagradas, nos últimos vinte e cinco anos,</p><p>sua Igreja tem estado determinada a “unir-se à raça humana na</p><p>construção do habitat terrestre da humanidade”. Ora, mesmo o seu</p><p>ato fundamental de adoração religiosa, a própria Missa, agora traz a</p><p>marca de nosso objetivo mais querido. O Novus Ordo, como vocês o</p><p>chamam. A Nova Ordem! Channing argumentava com tanto estilo</p><p>que Maestroianni não resistiu a suavizar sua reserva.</p><p>— Não pretendo ensinar o Pai-Nosso ao vigário, Eminência, ao</p><p>notar que certas políticas emanadas de seu escritório criaram uma</p><p>profunda �ssura na hierarquia católica. Pelo que meus colegas e eu</p><p>podemos ver, uma boa maioria de seus bispos, especialmente no</p><p>Ocidente, está entusiasmada com essa nova orientação da Igreja.</p><p>A�nal de contas, eles são homens práticos que não desfrutam do luxo</p><p>— o Dr. Channing se permitiu um gesto expansivo, abrangendo a</p><p>vista da cobertura do cardeal — de viver nesta soberana Cidade-</p><p>Estado do Vaticano. Eles já estão sujeitos às pressões da �� e da ����,</p><p>e dos Acordos de Livre Comércio da Europa, América do Norte e</p><p>Ásia. Como todos os outros, seus bispos católicos romanos</p><p>certamente percebem que ou se tornarão participantes ativos na</p><p>construção desta Nova Ordem global ou serão engolidos pela vida</p><p>cotidiana de seus compatriotas. Que tipo de Igreja seria essa,</p><p>Eminência? Uma Igreja das novas catacumbas! Tão in�uente quanto</p><p>os astrólogos tibetanos na ����! Maestroianni teve de rir. Ele não</p><p>havia gostado muito do tom do Dr. Channing ao se referir a “seus</p><p>bispos”. Mas o professor era capaz de sair-se com frases divertidas.</p><p>— Aqui está o problema, no entanto — Channing se inclinou para</p><p>frente em sua cadeira. — O atual ocupante do Trono de Pedro</p><p>direciona suas energias a uma rota totalmente diferente. Meus colegas</p><p>e eu o vemos como herdeiro da inaceitável alegação de que sua Igreja</p><p>incorpora uma autoridade absoluta, que se traduz em mandatos</p><p>doutrinários proibindo os católicos de entrar em sintonia com seus</p><p>concidadãos do mundo. Bem, o ponto urgente para muitos é este: o</p><p>atual ocupante do ofício papal parece poder contar com mais do que</p><p>alguns anos de vida ativa, enquanto o tempo hábil para a sua Igreja</p><p>chegar à porta da estrutura do novo mundo não chega a cinco ou dez</p><p>anos.</p><p>Tendo assim expressado, por essas palavras, o motivo desta reunião</p><p>— o propósito da remoção do atual Papa de seu cargo —, Dr.</p><p>Channing recostou-se em silêncio pensativo.</p><p>De acordo com Clatterbuck, Maestroianni e seus colegas em</p><p>Estrasburgo haviam decidido que uma mudança na estrutura papal de</p><p>sua Igreja era essencial; e foram eles que pediram exatamente o tipo</p><p>de ajuda externa que Channing poderia liderar. No entanto, além de</p><p>alguns</p><p>pequenos acenos de assentimento a frases soltas, e uma ou</p><p>duas risadas apreciativas, o cardeal-secretário permanecera</p><p>tranquilamente evasivo. Quanto mais seria necessário para pôr esse</p><p>pequeno e pretensioso prelado em movimento? Até onde o próprio</p><p>Channing deveria ir, no esforço de fazer as coisas andarem? Um passo</p><p>adiante, talvez. O Professor Channing mais uma vez se inclinou para</p><p>frente.</p><p>— Tempo, Eminência. Isso é o que une nós três. Estou bem ciente de</p><p>onde estou esta tarde. E espero não ultrapassar os limites da</p><p>prudência. Mas sinto que devo falar muito sinceramente agora, como</p><p>entre irmãos.</p><p>Channing incluía Benthoek em seu abraço metafórico.</p><p>— Sem entrar em detalhes privilegiados, os senhores entenderão que</p><p>nós também estamos correndo contra o relógio. Aguardamos que um</p><p>grande evento ocorra neste mundo de nações. Segundo a nossa</p><p>estimativa, temos apenas cinco anos; no máximo sete. Claro, esse</p><p>evento está intimamente ligado ao surgimento da Nova Ordem entre</p><p>as nações. Mas não é, propriamente falando, um acontecimento</p><p>apenas econômico, social ou político. Direi apenas isto: é da natureza</p><p>de uma realização humanística do tipo mais espiritual.</p><p>O Dr. Channing deixou seus companheiros pendurados naquele �no</p><p>�o de informação.</p><p>Maestroianni olhava para Benthoek, interrogativamente, mas não</p><p>recebeu qualquer resposta. No tocante ao aguardado grande evento</p><p>de Channing, Cyrus, ao que parecia, estava tão no escuro quanto o</p><p>próprio cardeal.</p><p>— Nesse caso, doutor — o cardeal-secretário soltou um grande</p><p>suspiro —, combinemos a sua urgência à nossa.</p><p>Um olhar de satisfação de Channing.</p><p>Maestroianni rapidamente admitiu todos os pontos que seu</p><p>convidado havia mencionado. A soberania, ele concordava — fosse</p><p>nacionalista ou religiosa — não apenas deixara de ser uma</p><p>necessidade estratégia para a sobrevivência, tornando-se inútil, mas</p><p>era em si uma verdadeira ameaça à sobrevivência e um inimigo do</p><p>progresso no novo e harmonioso habitat da humanidade.</p><p>— Veja bem, Dr. Channing, uma coisa é dizer que muitos de nossos</p><p>bispos parecem estar entusiasmados com as inovações que</p><p>introduzimos na Igreja. Mas, ainda hoje, essa autoridade papal é</p><p>e�caz para muitos milhões de católicos e in�uencia profundamente</p><p>muito além do redil católico. O ofício papal continua sendo o locus</p><p>exclusivo da autoridade sobre as mentes e vontades dos crentes.</p><p>Autoridade para decidir no que os crentes acreditam; e decretar as</p><p>regras exatas de seu comportamento em suas vidas privadas e</p><p>públicas.</p><p>Channing franziu a testa. Sua Eminência parecia estar colocando</p><p>uma cara muito dura nas coisas. Mas certamente ele teria uma</p><p>solução.</p><p>O sorriso de Maestroianni era quase presunçoso.</p><p>— Nosso conceito é bastante simples. Uma solução burocrática,</p><p>como diria Cyrus, para um complexo problema burocrático.</p><p>Claramente, se quisermos eliminar a soberania religiosa e política</p><p>como uma força perniciosa nos assuntos da humanidade, devemos</p><p>conceber um mecanismo persuasivo e legalmente aceitável que atenda</p><p>a dois propósitos: ele tem de lidar com a doutrina e a tradição secular</p><p>desta Igreja, segundo as quais o poder e a autoridade estão centrados</p><p>no ministério petrino, e também garantir que a unidade entre o Papa e</p><p>os bispos não seja quebrada. Sem unidade, não haveria a Igreja</p><p>Universal. Sua utilidade como um parceiro global seria anulada.</p><p>Assim sendo, nossa proposta é a implementação de um programa que</p><p>mova o locus da autoridade para longe do cargo de Papa. Um</p><p>programa, aliás, que transformará, conforme avancemos, a própria</p><p>unidade em um primordial fator operativo a nosso favor. Os bispos</p><p>do Vaticano �� deixaram claro que, como sucessores dos Doze</p><p>Apóstolos, compartilham, com o Bispo de Roma, o múnus de</p><p>governar a Igreja Universal. Os bispos voltaram do concílio para suas</p><p>casas e formaram suas próprias conferências nacionais.</p><p>Maestroianni continuou sua recapitulação do deslocamento do</p><p>poder:</p><p>— E em regiões especí�cas do mundo, essas Conferências Episcopais</p><p>Nacionais se transformaram em Conferências Episcopais Regionais.</p><p>Vinte e cinco anos depois, o resultado é uma nova estrutura da Igreja.</p><p>Em vez de uma linha única, unidirecional e exclusiva descendo do</p><p>Papa e se estendendo por toda a Igreja Universal, agora temos várias</p><p>camadas de linhas cruzadas. São tantas linhas quantas são as</p><p>Conferências Nacionais e Regionais. Em resumo, a Igreja Universal é</p><p>agora uma tabela, uma rede formada por essas conferências de bispos.</p><p>Pela sua natureza e pelo seu mandato, eles estão dispostos a</p><p>constantes ação e reação com a Chancelaria do Vaticano e com o</p><p>papado. E, embora cada Conferência seja che�ada por um bispo local,</p><p>todos os bispos passaram a trabalhar com os periti, como são</p><p>chamados; consultores especializados. Presumo que esteja ciente da</p><p>in�uência dos periti sobre os bispos do Vaticano ��? Channing</p><p>assentiu.</p><p>— O resultado é que muitos de nossos bispos agora se encontram em</p><p>desacordo com as políticas do atual ponti�cado. E eles já estão</p><p>limitando a extensão e a in�uência da outrora única linha de poder do</p><p>papado. Julgamos ser o momento certo para dar à sua insatisfação</p><p>com Roma um foco mais nítido.</p><p>Channing pensou que estava acompanhando Maestroianni.</p><p>— Seu objetivo é a remoção do atual titular do ofício papal.</p><p>— Não, professor. Nós vemos a renúncia voluntária do atual</p><p>Pontí�ce como essencial, é claro. Mas nosso objetivo �nal é muito</p><p>mais ambicioso. Extrairemos dos próprios bispos, e falo da</p><p>esmagadora maioria dos quatro mil bispos do mundo, um</p><p>instrumento formal de validade canônica, que chamamos,</p><p>apropriadamente, de “Mentalidade Comum dos Bispos”. Se formos</p><p>bem-sucedidos, não será mais o Papa quem comandará a unidade. Em</p><p>vez disso, serão os próprios bispos que exigirão um Papa para a sua</p><p>unidade. Um Papa com o qual se sintam confortavelmente unidos</p><p>enquanto corpo episcopal. Ou seja, a mentalidade comum dos bispos</p><p>deverá, logicamente, considerar o Papa não como o Vigário de Cristo,</p><p>mas como o Vigário de Pedro, o primeiro Bispo de Roma. Além disso,</p><p>a mentalidade comum dos bispos deve logicamente considerar todos</p><p>os bispos, igualmente e juntos, como o vigário coletivo de Cristo.</p><p>Ralph Channing �cou impressionado. Se o pensamento de Sua</p><p>Eminência fosse adotado como ensinamento o�cial da Igreja, a sua</p><p>estrutura governamental seria profundamente alterada. O papel</p><p>centralizador do Vaticano desapareceria. Em matéria religiosa, o Papa</p><p>deixaria de ser o pastor supremo. Em assuntos políticos, ele não seria</p><p>mais soberano. Nenhuma mudança teria de ser con�rmada pelo</p><p>Pontí�ce para se tornar válida.</p><p>— Então, Vossa Eminência. Agora que seu objetivo foi esclarecido,</p><p>podemos discutir as etapas pelas quais pretende alcançá-lo? Pois</p><p>presumo que é neste ponto que vossa eminência quer nossa ajuda.</p><p>— Precisamente.</p><p>Tendo chegado até aí, Maestroianni achou fácil estabelecer os três</p><p>estágios pelos quais prosseguir.</p><p>— O primeiro passo será o mais árduo. Trabalhando por meio de</p><p>suas conferências, apresentaremos aos bispos as muitas vantagens e</p><p>benefícios práticos da Nova Ordem Mundial. Nossa estratégia deve</p><p>ser a chave em primeiro lugar nas conferências che�adas pelos bispos</p><p>mais in�uentes.</p><p>No julgamento incontestável de Maestroianni, as conferências</p><p>essenciais eram as da Europa Ocidental.</p><p>— Por quê? — A pergunta do cardeal, obviamente, era retórica. —</p><p>Simplesmente porque os bispos desses países têm as tradições mais</p><p>antigas e ricas. Porque todos esses bispos residem em áreas cujas</p><p>populações estão atualmente sendo homogeneizadas e unidas na</p><p>Grande Europa que há de chegar. E porque esses bispos vão entender</p><p>que sua participação no novo consenso público será vital para todas</p><p>as questões que viabilizam suas organizações. Claro, devemos ser</p><p>capazes de oferecer vantagens vitais para suas necessidades.</p><p>Facilidades bancárias, por exemplo. E facilitação social para seus</p><p>esforços de evangelização. E legislação favorável aos seus direitos</p><p>civis; à sua posição no mercado de ensino; à sua privilegiada situação</p><p>�scal; ao tratamento rápido de casos legais movidos contra seus</p><p>clérigos</p><p>que cometam erros. À medida que esse consenso avançar, os</p><p>bispos se encontrarão cada vez mais em desacordo com as políticas</p><p>papais. Com a ajuda dessas complexas conferências episcopais, outro</p><p>nível de consenso será obtido. Um consenso solidamente formado,</p><p>votado formalmente e expresso abertamente: a Mentalidade Comum</p><p>dos Bispos. Esse instrumento será ele mesmo declarado em termos</p><p>categóricos como “O atual Santo Padre não é um Papa da unidade. A</p><p>Mentalidade dos Bispos diz que buscamos um Papa de unidade. A</p><p>Mentalidade dos Bispos recomenda que ele apresente sua renúncia ao</p><p>cargo, como todo bispo agora é obrigado a fazer, aos setenta e cinco</p><p>anos de idade”.</p><p>Maestroianni sorriu conspiratoriamente para Channing.</p><p>— Não há dúvida de que esse Papa é um homem teimoso. No</p><p>entanto, é impossível imaginar que ele seja capaz de resistir às</p><p>extraordinárias pressões exercidas sobre ele por um instrumento</p><p>formal da sua Igreja desse tipo: essa Mentalidade Comum dos Bispos,</p><p>expressa o�cialmente através das Conferências Episcopais, pelas quais</p><p>cada ocupante do episcopado exige a sua renúncia. Em suma,</p><p>pessoalmente não tenho dúvidas de que dentro de dois a três anos</p><p>receberemos a renúncia do atual Santo Padre.</p><p>Channing parecia quase paralisado.</p><p>— Estou acompanhando, Eminência.</p><p>— Passo dois, então — O Cardeal Maestroianni avançou</p><p>rapidamente.</p><p>— Quando qualquer outro bispo renuncia, o Pontí�ce recebe sua</p><p>renúncia e a con�rma ou rejeita. No entanto, como não podemos</p><p>esperar que esse homem receba e con�rme sua própria renúncia,</p><p>devemos ter outro meio, um corpo de bispos, igualmente aceitável</p><p>constitucionalmente, para receber a renúncia papal e con�rmá-la.</p><p>Raramente os bispos exercem sua jurisdição episcopal em uníssono e</p><p>agem como um só corpo. Mas nós temos tal corpo de bispos. O</p><p>Sínodo Internacional dos Bispos, que se reúne de vez em quando em</p><p>Roma. Por atuar hierarquicamente em nome de todo o episcopado, e</p><p>em solicitude pela Igreja Universal, o Sínodo é o candidato óbvio para</p><p>receber e con�rmar a renúncia papal. E isso, senhores, nos leva ao</p><p>passo três, o passo mais fácil de todos. Um Conclave Papal será</p><p>organizado, conforme a tradição, para eleger um novo Papa.</p><p>Cyrus Benthoek percebeu pela primeira vez como era completo e</p><p>detalhado o plano que havia sido concebido. Ele estava</p><p>profundamente impressionado:</p><p>— Bem, então, Eminência! Eu acredito que estamos no primeiro</p><p>passo em seu processo? E acredito que devemos nos concentrar</p><p>primeiro nos bispos da Europa?</p><p>— E — Channing estava igualmente entusiasmado — acredito que é</p><p>aí que eu e meus colegas entramos? Maestroianni respondeu a ambos</p><p>os homens com uma única resposta:</p><p>— Correto. A proposta da Mentalidade Comum dos Bispos não dará</p><p>em nada, a menos que possamos assegurar que os próprios bispos</p><p>sejam levados a um alinhamento inicial, ativo e lucrativo com a</p><p>estrutura uni�cada da Grande Europa. Para esse �m, Dr. Channing, as</p><p>circunstâncias nos presentearam com duas engrenagens para nosso</p><p>mecanismo de persuasão. Dois irmãos, nada menos. Um deles, o</p><p>Padre Christian Gladstone, está a serviço do Vaticano, ou em breve</p><p>poderá estar. Paul Gladstone, por sua vez, ganhou sua reputação</p><p>como um internacionalista consideravelmente habilidoso, empregado</p><p>numa das �rmas de Cyrus. Teremos o cuidado de promover nosso</p><p>irmão eclesiástico a um cargo importante em meio aos bispos. Sob</p><p>nossa direção próxima, ele viajará como uma espécie de embaixador</p><p>itinerante do Vaticano, a �m de veri�car as necessidades de cada bispo</p><p>alvo quanto a todas as facilidades práticas que mencionei</p><p>anteriormente. Agora, para que possamos cumprir as promessas aos</p><p>bispos que o Padre Christian Gladstone, sob nossa direção, apresentar</p><p>como necessárias, e uma vez que, felizmente, o cargo de secretário-</p><p>geral do Conselho de Ministros da Comunidade Europeia está para</p><p>�car vago, nossa proposta é que Paul Gladstone seja escolhido de</p><p>preferência a todos os outros candidatos atualmente cotados para</p><p>preencher esse cargo. Então, Dr. Channing, agora estamos reduzidos a</p><p>questões práticas de implementação. Passemos ao ponto principal. Por</p><p>enquanto, podemos reduzir tudo nesta discussão a duas perguntas</p><p>simples: o senhor tem meios de garantir o cargo de secretário-geral do</p><p>Conselho de Ministros da �� para o Sr. Paul Gladstone? E se o senhor</p><p>tem esses meios, pretende fazê-lo? Durante alguns instantes, o silêncio</p><p>caiu sobre o trio no escritório do Cardeal Maestroianni. Era como se</p><p>cada homem tivesse dado aos demais uma licença para se retirarem</p><p>para consulta, atrás do manto de seus próprios pensamentos.</p><p>Maestroianni não olhava para Cyrus Benthoek em busca de apoio</p><p>ou aprovação, como era seu costume. Era Benthoek quem se sentia</p><p>inquieto, para variar. O prolongado silêncio estava irritando-o.</p><p>Benthoek não �ngiu entender as coisas ao nível do professor; não</p><p>podia presumir ler a mente de tal mestre engenheiro. Mas também</p><p>não podia imaginar o que estaria impedindo um sujeito tão brilhante</p><p>como Channing de fechar imediatamente um acordo.</p><p>Na verdade, não havia muita coisa a deter Channing. Quaisquer</p><p>dúvidas que pudessem ter persistido sobre o Cardeal Maestroianni</p><p>pareciam totalmente satisfeitas. O próprio programa proposto pelo</p><p>cardeal, também, parecia um plano adequado para chegar à</p><p>Alternativa Eleita estabelecida pelo Relatório Categórico para o</p><p>Concílio 13.</p><p>Contudo, estaria correta a avaliação de Maestroianni a respeito dos</p><p>bispos? Os bispos estavam, realmente, em um tal deserto? Sua</p><p>�delidade consciente ao Papa estava mesmo tão diminuída de modo a</p><p>tornar possível que uma maioria fosse tão facilmente induzida a</p><p>priorizar seus interesses individuais? Benthoek, por �m, não suportou</p><p>mais o silêncio. Esperando gerar um som semelhante ao do Niágara</p><p>caindo sobre as rochas, deixou cair cubos de gelo em seu copo e o</p><p>encheu até a borda, ruidosamente, de água espumante.</p><p>Espantado, Channing assumiu a conversa.</p><p>— Muito bem, então — o Professor começou a falar como se não</p><p>tivesse havido nenhuma pausa. — Vossa Eminência resumiu o</p><p>assunto, convincentemente, a duas questões. E eu respondo a ambas,</p><p>inequivocamente: Sim. Podemos garantir o cargo na �� para Paul</p><p>Gladstone, e nós o faremos. Claro, ainda faltam alguns detalhes; nada</p><p>sério.</p><p>— Tais como? — Maestroianni ainda não estava totalmente à</p><p>vontade com esse estrangeiro em seu mundo.</p><p>Channing começou pelo óbvio:</p><p>— Tal como um dossiê completo de cada um dos irmãos Gladstone.</p><p>Ouvindo isso, Maestroianni teve de sorrir.</p><p>— Algo mais, Dr. Channing?</p><p>— Há mais uma coisa, já que pergunta, Eminência.</p><p>Ele tinha certeza de que o cardeal seria o primeiro a perceber que</p><p>estava recorrendo aos vastos recursos da fraternidade; e por um</p><p>período de tempo prolongado. Algum registro tangível do pedido de</p><p>colaboração de Sua Eminência seria útil para “abrir todas as conexões</p><p>necessárias no nível dos Treze”.</p><p>O Cardeal Maestroianni levantou-se de sua cadeira tão</p><p>abruptamente que Benthoek se perguntou, alarmado, se ele haveria se</p><p>ofendido com o pedido de Channing. Ele observou Maestroianni</p><p>dirigir-se para sua mesa, onde abriu uma das gavetas e pareceu mexer</p><p>em algum tipo de interruptor. Em pouco tempo, a própria voz de</p><p>Channing saía por um sistema de som. “…as conexões necessárias no</p><p>nível dos Treze”. O cardeal rebobinou a �ta que acabara de testar,</p><p>removeu-a da bobina e a segurou entre dois dedos.</p><p>— Presumo que uma gravação de voz satisfaça seus requisitos? Era</p><p>uma presunção que não exigia resposta. Maestroianni en�ou a �ta em</p><p>um envelope sem identi�cação e segurou-o nas mãos, como uma</p><p>cenoura destinada a atrair um jumento.</p><p>— Tenho uma recomendação �nal a fazer antes de concluirmos —</p><p>até então, o cardeal-secretário não �zera nenhum movimento para</p><p>voltar a juntar-se a seus convidados. — Eu já os avisei que nosso atual</p><p>Pontí�ce é teimoso. Teimoso e dedicado à defesa do ofício papal.</p><p>Mencionei, também, que ele tem um certo apoio. E no passado ele foi</p><p>astuto e determinado o su�ciente para derrubar governos.</p><p>Channing olhou para ele.</p><p>— Já está mudando de ideia, Eminência? Uma ameaça tão explícita</p><p>mais</p><p>início</p><p>à solenidade de São Pedro e São Paulo, a festa romana por excelência.</p><p>A capela auxiliar — um grande salão de reuniões no porão de uma</p><p>escola paroquial — estava mobiliada em estrita observância às regras.</p><p>O Bispo Leo dirigira tudo pessoalmente. Agora, seus acólitos</p><p>especialmente escolhidos se movimentavam silenciosamente, para pôr</p><p>em ordem os detalhes �nais, enquanto ele veri�cava tudo.</p><p>Primeiro, o altar, colocado no extremo norte da capela. Derrubado</p><p>no altar, um grande cruci�xo, com a cabeça do cadáver apontada para</p><p>o Norte. A um �o de cabelo de distância, o pentagrama coberto por</p><p>um véu vermelho e �anqueado por duas velas pretas. Acima, uma</p><p>rubra lâmpada de santuário, acesa pela chama ritual. Na extremidade</p><p>Leste do altar, uma gaiola; e na gaiola, Flinnie, um cachorrinho de</p><p>sete semanas, levemente sedado durante o breve momento em que</p><p>seria útil para o Príncipe. Atrás do altar, negras velas aguardavam o</p><p>toque da chama ritual em seus pavios.</p><p>Uma virada rápida para a parede sul. Sobre um aparador, o turíbulo</p><p>e o recipiente contendo os pedaços de carvão e incenso. Em frente ao</p><p>aparador, os pilares vermelho e preto de onde pendiam o escudo da</p><p>Serpente e o sino do in�nito. Uma olhada na parede leste: frascos</p><p>contendo terra, ar, fogo e água em torno de uma segunda gaiola. Na</p><p>gaiola, uma pomba, alheia ao seu destino de paródia não apenas do</p><p>Débil Inominado, mas de toda a Trindade. Lecionário e livro em</p><p>prontidão na parede oeste. O semicírculo de cadeiras genu�exórias</p><p>voltadas para o Norte, faceando o altar. Flanqueando as cadeiras</p><p>genu�exórias, os emblemas iniciáticos: o vaso de ossos no lado oeste,</p><p>mais próximo da porta; a leste, a Lua crescente e a estrela de cinco</p><p>pontas, com as do Bode para cima. Em cada cadeira, uma cópia do</p><p>Missal para o uso dos participantes.</p><p>Finalmente, Leo �tou a entrada da capela propriamente dita.</p><p>Paramentos especiais para a entronização, idênticos aos que ele e seus</p><p>atarefados acólitos já haviam vestido, estavam pendurados no</p><p>cabideiro do lado de dentro da porta. Ele conferia seu relógio pelo</p><p>grande relógio da parede quando os primeiros participantes</p><p>chegaram. Satisfeito com os arranjos, dirigiu-se ao grande vestiário</p><p>que servia de sacristia. O arcipreste e o frater medico já teriam</p><p>aprontado a vítima. Em pouco mais de trinta minutos, seu mensageiro</p><p>cerimonial estabeleceria a comunicação telefônica com a capela alvo,</p><p>no Vaticano. Seria a hora.</p><p>Assim como havia requisitos diferentes para arrumar as duas</p><p>capelas, havia o mesmo para os participantes. Os que estavam na</p><p>Capela de São Paulo, todos homens, usavam vestes talares e as faixas</p><p>de sua classe eclesiástica, ou os ternos pretos impecavelmente cortados</p><p>de sua posição secular. Concentrados e �rmes, seus olhos �xos no</p><p>altar e no trono vazio, eram a imagem do piedoso clero romano e dos</p><p>�éis leigos que comumente se acreditava que fossem.</p><p>Tão socialmente distintos quanto a Falange Romana, os participantes</p><p>americanos na capela auxiliar, no entanto, apresentavam um contraste</p><p>chocante com suas contrapartes no Vaticano. Aqui, eram homens e</p><p>mulheres; e ao invés de se sentarem ou se ajoelharem em trajes �nos,</p><p>cada um, ao chegar, se despiu completamente e pôs a vestimenta</p><p>inteiriça e sem costura prescrita para a entronização: vermelho-</p><p>sangue, pois haveria um sacrifício; chegando ao joelho e sem mangas;</p><p>com decote em � e aberta na frente. Despiram-se e vestiram-se em</p><p>silêncio, sem pressa ou excitação. Tudo era concentração e calma</p><p>ritual.</p><p>Uma vez vestidos, os participantes passavam pelo vaso de ossos,</p><p>mergulhavam as mãos para pegar pequenos punhados e ocupavam</p><p>seus lugares no semicírculo de cadeiras voltadas para o altar. À</p><p>medida que o vaso de ossos se esvaziava e as cadeiras genu�exórias</p><p>eram ocupadas, o barulho do ritual começou a quebrar o silêncio.</p><p>Sacudindo incessantemente os ossos, cada participante começou a</p><p>falar — para si mesmo, para os outros, para o Príncipe, para</p><p>ninguém. A princípio sem grande alarido, mas em uma inquietante</p><p>cadência ritual.</p><p>Mais participantes chegaram, mais ossos foram pegos; o semicírculo</p><p>�cou cheio. A cadência de murmúrios, de um sussurro suavemente</p><p>cacofônico, foi crescendo. O ruído cada vez maior de orações,</p><p>súplicas e chocalhar de ossos criou uma espécie de exaltação contida.</p><p>O som tornava-se raivoso, como se beirando a violência. Era um</p><p>concerto de caos controlado, um uivo alucinante de ódio e revolta,</p><p>um prelúdio dedicado à celebração da entronização do Príncipe deste</p><p>mundo dentro da Cidadela do Débil.</p><p>Com suas vestes vermelho-sangue �uindo graciosamente, Leo entrou</p><p>na sacristia. Por um momento, pareceu-lhe que tudo estava em</p><p>perfeita ordem. Já paramentado, seu co-celebrante, o arcipreste calvo</p><p>e de óculos, havia acendido uma única vela preta para a procissão. Ele</p><p>enchera um grande cálice de ouro com vinho tinto e o cobrira com</p><p>uma patena de prata dourada, sobre a qual colocara uma enorme</p><p>hóstia branca de pão ázimo.</p><p>Um terceiro homem, frater medico, estava sentado em um banco.</p><p>Vestido como os outros dois, ele segurava uma criança no colo. Sua</p><p>�lha: Agnes. Leo observou, satisfeito, que Agnes parecia quieta e</p><p>complacente, para variar. De fato, desta vez ela parecia pronta para a</p><p>ocasião. A menina vestia um vestido branco e solto, que lhe chegava</p><p>até os tornozelos. E, como seu cachorrinho no altar, ela havia sido</p><p>sedada levemente, para o tempo em que seria útil nos mistérios.</p><p>— Agnes — frater medico ronronou no ouvido da criança. — Está</p><p>quase na hora de vir com o papai.</p><p>— Não é meu papai… — Apesar das drogas, a menina abriu os</p><p>olhos e encarou o pai. Sua voz era fraca, mas audível. — Meu papai é</p><p>Deus…</p><p>— ���������! — exclamou Leo depois que as palavras de Agnes</p><p>transformaram seu bom humor exatamente como a energia elétrica é</p><p>transformada em relâmpago. — Blasfêmia! — repetiu, como um</p><p>projétil.</p><p>Na verdade, sua boca se tornou um canhão disparando uma</p><p>enxurrada de repreensões contra frater medico. Médico ou não, era</p><p>necessário humilhá-lo! A criança deveria ter sido devidamente</p><p>preparada! Houvera tempo su�ciente para tratar disso! Sob o ataque</p><p>do Bispo Leo, frater medico �cou pálido; sua �lha, no entanto, não.</p><p>Ela fez um esforço para virar seus olhos inesquecíveis, para enfrentar</p><p>o olhar de ira selvagem de Leo e para repetir seu desa�o.</p><p>— Meu papai é Deus… Tremendo em sua agitação nervosa, frater</p><p>medico segurou a cabeça de sua �lha e a forçou a olhar novamente</p><p>para ele.</p><p>— Querida — seduziu ele —, eu sou seu papai. Sempre fui seu papai.</p><p>E sua mamãe também, desde que ela foi embora.</p><p>— Não é meu papai… deixou levarem Flinnie … Não pode</p><p>machucar o Flinnie… Ele é só um cachorrinho… Deus criou os</p><p>cachorrinhos…</p><p>— Agnes. Escute. Eu sou seu papai. Está na hora…</p><p>— Não é meu papai… Deus é meu papai… Deus é minha mamãe…</p><p>Pais não fazem coisas que Deus não gosta… Não é… Consciente de</p><p>que a capela alvo no Vaticano devia estar esperando o estabelecimento</p><p>da comunicação telefônica, Leo fez um aceno enérgico de instrução ao</p><p>arcipreste. Como tantas vezes no passado, o procedimento de</p><p>emergência era o único remédio; e a exigência de que a vítima</p><p>estivesse consciente na primeira consumação ritual signi�cava que esta</p><p>deveria ser realizada agora.</p><p>Cumprindo seu dever sacerdotal, o arcipreste sentou-se ao lado de</p><p>frater medico e tomou em seu colo o que restava de Agnes,</p><p>enfraquecida pelas drogas.</p><p>— Agnes. Ouça. Eu sou seu papai também. Lembra do amor especial</p><p>entre nós? Lembra? Teimosamente, Agnes continuou a lutar.</p><p>— Não é papai… papais não fazem coisas más comigo… não me</p><p>machuquem… não machuquem Jesus… Após alguns anos, a memória</p><p>de Agnes dessa noite — porque, por �m, ela se lembrou dela — não</p><p>teria nenhuma característica excitante, nenhum traço de algo</p><p>meramente pornográ�co. A sua memória dessa noite, quando</p><p>chegasse, seria uma só com a memória de toda a sua infância. Uma</p><p>coisa só com a memória de sua prolongada violação pelo maligno.</p><p>Uma coisa só com a sua memória — sentido que nunca lhe falhava —</p><p>daquele luminoso tabernáculo no fundo de sua alma infantil, onde a</p><p>Luz transformava a sua</p><p>irritou que intimidou Maestroianni.</p><p>— De jeito nenhum — Maestroianni retrucou suavemente. — Tenho</p><p>poucas dúvidas de que, em um futuro próximo, poderemos celebrar o</p><p>apoio de uma grande maioria dos bispos. Mas dada a natureza</p><p>obstinada desse Santo Padre, e para nos precavermos, devemos</p><p>antecipar a necessidade de um pouco mais de pressão. Um ajuste</p><p>hábil, capaz de colocar em movimento o mecanismo da renúncia</p><p>papal, �nal e irrevogavelmente. O senhor disse, Dr. Channing, que</p><p>falamos aqui como membros de uma fraternidade destinada a grandes</p><p>empreendimentos. Nesse sentido, exorto-o, agora, a entender que em</p><p>uma situação terminal como a que vislumbramos, na parte mais</p><p>delicada e sensível de nossa operação, muito provavelmente</p><p>precisaremos de alguma cooperação fraterna adicional, impossível de</p><p>delinear agora, e que não fará parte desta gravação.</p><p>Channing �cou aliviado. Se a questão era de “situações terminais” e</p><p>“ajuste hábil”, o cardeal-secretário estava falando com o homem</p><p>certo.</p><p>— Não se decepcionará conosco, Eminência.</p><p>Maestroianni voltou-se para o antigo colega. Benthoek, também,</p><p>faria parte da operação.</p><p>D</p><p>— De acordo, Cyrus?</p><p>— De acordo, meu amigo.</p><p>XV</p><p>esde aquela estranha manhã de sábado no início de maio, quando</p><p>o Santo Padre �zera a urgente solicitação das fotogra�as da</p><p>estátua Noli Me Tangere, de Bernini, que o levara a estar frente a</p><p>frente com o Cardeal-secretário Cosimo Maestroianni — e apesar dos</p><p>argumentos contrários do Padre Aldo Carnesecca, desde aquele dia</p><p>até agora —, a sensação de Christian Gladstone, de que ele era um</p><p>estrangeiro deslocado nesta Roma dos papas, só se intensi�cou.</p><p>Quando o calor do verão começou a aumentar, Padre Aldo e</p><p>Christian começaram a caminhar juntos nas tardes de sábado,</p><p>geralmente ao longo da Via Appia. Lá, os dois amigos encontravam</p><p>calma e solidão entre as lápides, os santuários e os olivais. Por</p><p>considerar Carnesecca um homem honrado, Gladstone podia arejar</p><p>sua mente sobre qualquer coisa com ele, e constantemente se via</p><p>provocando o Padre Aldo a que expusesse sua opinião sobre as</p><p>políticas do Papa reinante.</p><p>Gladstone queria saber: por que o Papa simplesmente não se livrava</p><p>de todos os cismáticos e dos padres pecadores? Por que nomeara,</p><p>recentemente, um bispo obviamente herético como chefe de uma das</p><p>principais congregações papais? Por que, em vez de ir atrás dos</p><p>hereges, o Papa mirava exclusivamente o Arcebispo Lefebvre, punindo</p><p>este que tentara defender a Igreja? Por que esse Papa desaprovava</p><p>tanto a operação Tempestade no Deserto, dos Estados Unidos?</p><p>Carnesecca insistia na questão-chave em jogo no governo da Santa Sé</p><p>na década de 1990: o Papa tinha as mãos atadas, tanto pelos bispos</p><p>quanto pelos funcionários internos do Vaticano.</p><p>— Ele está em uma camisa de força, Chris. Ele tem muito pouco</p><p>controle real.</p><p>— Não faz sentido, Aldo. Estamos falando do Papa.</p><p>Esses passeios e conversas com Carnesecca pouco contribuíram para</p><p>suavizar a atitude de Christian quanto a uma possível carreira em</p><p>Roma. Durante as agitadas semanas de maio e junho, de fato, sua</p><p>impaciência para fugir de Roma tornou-se difícil de disfarçar. Como</p><p>acontecia desde 1984, quando ele começou a passar o segundo</p><p>semestre do ano acadêmico no Angelicum, o �nal de junho marcaria a</p><p>chegada de Gladstone à cidade de Colmar, no nordeste da França. Lá,</p><p>há muito tempo, ele havia conhecido o grande tesouro do Museu de</p><p>Unterlinden Kloster, a inigualável obra-prima do pintor do século ���</p><p>Mathias Grünewald: o colossal Retábulo de Isenheim, retratando os</p><p>sofrimentos e a morte de Cristo.</p><p>Grünewald levara quase dez anos para completar seu grande</p><p>retábulo. Por causa da sua dupla docência, em Roma e Nova Orleans,</p><p>Christian estava demorando o dobro para concluir sua tese inspirada</p><p>na obra-prima de Grünewald. A cada ano, ele se deleitava nas poucas</p><p>semanas ininterruptas durante as quais era capaz de mergulhar</p><p>naquele empreendimento, naquele trabalho de amor. Na terceira</p><p>semana de agosto, por mais absorto que estivesse, ele partiria para sua</p><p>Casa Windswept, em Galveston, para um período de reencontro com</p><p>sua mãe e sua irmã mais nova, Tricia. Se tivesse sorte, talvez seu</p><p>irmão Paul também viesse desta vez, junto com sua esposa Yusai e seu</p><p>�lho pequeno, Declan.</p><p>Seria um período, também, para se preparar para aquela parte de</p><p>cada ano acadêmico em que atuava como professor de teologia</p><p>dogmática no Seminário Maior em sua Diocese de Nova Orleans.</p><p>Fazia questão de voltar a passar algumas horas com o Padre Angelo</p><p>Gutmacher, amigo e intimíssimo confessor da sua juventude. Christian</p><p>esperava resolver pelo menos algumas de suas confusões sobre Roma</p><p>com um padre tão bom, dotado de uma cabeça tão sensata. Christian,</p><p>antecipando-se, já havia escrito para Gutmacher para compartilhar</p><p>um pouco de seus debates com o Padre Aldo. Ele havia comentado a</p><p>curiosa ideia de Carnesecca de que, em Roma, o Santo Padre poderia</p><p>estar tão isolado quanto o próprio Christian.</p><p>Antes dos dias em Colmar ou de seu retorno à Casa Windswept, no</p><p>entanto, Christian teria de enfrentar o mesmo frenesi de �m de ano</p><p>que tomava conta de todos em Roma. Durante as primeiras semanas</p><p>de junho, sua carga normalmente pesada de palestras e seminários</p><p>diários dava lugar à pressão de preparar, administrar e, em seguida,</p><p>avaliar os resultados dos exames orais e escritos de �m de ano para</p><p>cerca de sessenta alunos com formações muito díspares e preparação</p><p>para os estudos superiores frequentemente de�ciente. Além disso,</p><p>haveria longas reuniões com os demais membros do corpo docente do</p><p>Angelicum para uma retrospectiva completa do ano acadêmico.</p><p>Era normal, então, que as atividades acadêmicas tivessem cessado de</p><p>todo, e as várias faculdades estivessem quase vazias de suas</p><p>populações estudantis, antes que Padre Christian pudesse pensar</p><p>seriamente em sua entrevista obrigatória de �m de ano com seu</p><p>superior no Angelicum, Mestre-geral Damien Duncan Slattery.</p><p>— Ah, que bom te ver, rapaz! — Apesar da hora tardia, Padre</p><p>Damien abriu a porta de seu escritório e convidou Christian, com um</p><p>grande movimento de um braço enorme, a descansar seus ossos na</p><p>grande poltrona ao lado de sua mesa. Padre Damien acomodou-se em</p><p>sua própria cadeira, seu emaranhado de cabelos brancos brilhando à</p><p>luz da lâmpada, como uma auréola rebelde.</p><p>Apesar do tom tranquilo da saudação do mestre-geral, não demorou</p><p>muito para que Gladstone começasse a ter a sensação de que algo o</p><p>incomodava. O jovem americano não foi sutil o su�ciente para</p><p>descobrir qual seria o problema, mas não cabia, a um padre de baixo</p><p>escalão, perguntar algo assim ao seu superior. Um certo protocolo</p><p>tácito reservava a iniciativa de falar para o superior religioso.</p><p>Por cerca de um quarto de hora, Slattery ouviu com uma atenção</p><p>quase excessivamente sóbria o resumo de Gladstone sobre o ano</p><p>acadêmico do Angelicum. De tempos em tempos, ele interrompia com</p><p>perguntas sobre vários dos padres mais promissores que voltariam</p><p>para estudos posteriores. Ele discutiu com Christian o que havia dado</p><p>errado com os padres que não haviam tido um bom rendimento. Visto</p><p>que Christian passaria o semestre seguinte, de setembro a janeiro,</p><p>lecionando em Nova Orleans, o americano voltou sua atenção para o</p><p>arquivo do Angelicum.</p><p>— Estão atualizados, padre-mestre, até o último minuto, exceto pelo</p><p>inventário da casa, que eu comecei no princípio de maio. Ainda há</p><p>algum trabalho a ser feito lá.</p><p>O dominicano pegou, com sua mão enorme, o conteúdo que</p><p>Gladstone lhe estendia e o depositou em sua mesa, por ora.</p><p>— Vamos tentar manter as coisas em ordem enquanto você estiver</p><p>longe, padre.</p><p>Lá estava ela de novo: aquela intuição de Christian dizendo que</p><p>Slattery tinha algo em mente.</p><p>— Você está indo para Colmar, então, Padre Christian? Essa</p><p>pergunta mudava o assunto para a próxima ocupação do jovem, com</p><p>a obra de arte em Isenheim. Christian sabia que não precisava revisar</p><p>o trabalho que já havia concluído em sua tese. O que queria era pedir</p><p>a opinião do mestre-geral sobre certos aspectos de seu pensamento e</p><p>traçar seu plano de trabalho para as próximas</p><p>agonia em coragem e tornava a sua luta</p><p>possível.</p><p>De alguma forma conhecida, mas ainda não entendida por ela,</p><p>aquele tabernáculo interior era onde Agnes realmente vivia. Aquele</p><p>centro de seu ser era um refúgio intocável de força interior, amor e</p><p>con�ança; o local aonde a Vítima Sofredora, o verdadeiro alvo do</p><p>ataque a Agnes, viera santi�car a agonia dela junto com a Dele para</p><p>sempre.</p><p>Foi de dentro desse refúgio que Agnes ouviu cada palavra dita na</p><p>sacristia na noite da entronização. Foi desse refúgio que ela</p><p>contemplou os olhos duros do Bispo Leo que olhavam para ela, e o</p><p>olhar �xo do arcipreste. Ela conhecia o preço da resistência. Sentiu</p><p>seu corpo sendo tirado do colo do pai. Viu a luz brilhando nos óculos</p><p>do arcipreste. Viu seu pai se aproximar novamente. Viu a agulha em</p><p>sua mão. Sentiu a punção. Sentiu, outra vez, o choque da droga.</p><p>Sentiu-se levantada nos braços de alguém. Mas ainda assim ela</p><p>resistiu. Esforçou-se para ver. Lutou contra a blasfêmia; contra os</p><p>efeitos da violação; contra os cantos; contra o horror que ela sabia</p><p>que ainda estava por vir.</p><p>Fraca demais para se mover, por causa das drogas, Agnes aprontou</p><p>como única arma a sua vontade, e sussurrou novamente suas palavras</p><p>de desa�o e de agonia.</p><p>— Não é meu pai… Não machuquem Jesus… Não me</p><p>machuquem…</p><p>Era a hora, o início do Tempo Concedido para a Ascensão do</p><p>Príncipe à Cidadela. Ao tilintar do sino do in�nito, todos os</p><p>participantes na Capela de Leo se levantaram como um só. Missais na</p><p>mão, o constante clique-claque dos ossos como medonho</p><p>acompanhamento, eles entoaram a plenos pulmões seu canto</p><p>processional, uma triunfante profanação do hino do apóstolo Paulo:</p><p>— Maran Atha! Vem, Senhor! Vem, ó Príncipe. Vem, ó, vem!</p><p>Acólitos bem ensaiados, homens e mulheres, tomaram a frente no</p><p>caminho da sacristia até o altar. Atrás deles, magro mas de aparência</p><p>distinta, mesmo em suas vestes vermelhas, frater medico carregava a</p><p>vítima para o altar e a colocou de corpo inteiro ao lado do cruci�xo.</p><p>À trêmula sombra do pentagrama velado, seu cabelo quase tocava a</p><p>gaiola na qual estava seu cachorrinho. O próximo na hierarquia,</p><p>olhos piscando por trás dos óculos, o arcipreste levava a única vela</p><p>preta da sacristia e tomou seu lugar à esquerda do altar. Por último, o</p><p>Bispo Leo avançou com o cálice e a hóstia, acrescentando sua voz ao</p><p>hino processional.</p><p>— Assim seja! As palavras �nais do antigo canto inundaram o altar</p><p>na capela auxiliar.</p><p>“Assim seja!”. O antigo canto entrou pela �gura �ácida de Agnes,</p><p>enevoando sua mente mais profundamente do que as drogas,</p><p>intensi�cando o frio que ela sabia que a haveria de envolver.</p><p>“Assim seja! Amém! Amém”. As palavras antigas inundaram o altar</p><p>da Capela de São Paulo. Seus corações e vontades estavam unidos aos</p><p>dos Participantes na capela auxiliar, na América. A Falange Romana</p><p>seguiu com o refrão dos mistérios que estava prescrito em seus missais</p><p>em latim, começando pelo hino da virgem violada e terminando com</p><p>a invocação da coroa de espinhos.</p><p>Na capela auxiliar, o Bispo Leo removeu a bolsa sacri�cial de seu</p><p>pescoço e a depôs reverentemente entre a ponta do cruci�xo e a base</p><p>do pentagrama. Então, ao recomeçar o coro de murmúrios dos</p><p>participantes e o chacoalhar dos ossos, os acólitos colocaram três</p><p>pedaços de incenso no carvão incandescente do turíbulo. Quase</p><p>imediatamente, a fumaça azulada se espalhou pelo salão de</p><p>assembleia, envolvendo a vítima, os celebrantes e os participantes com</p><p>o seu odor pungente.</p><p>No torvelinho da mente de Agnes, a fumaça, o cheiro, as drogas, o</p><p>frio e o barulho se fundiam em uma cadência hedionda.</p><p>Embora nenhum sinal tenha sido dado, o mensageiro cerimonial,</p><p>bem ensaiado, informou ao seu homólogo do Vaticano que as</p><p>invocações estavam prestes a começar. Um silêncio repentino envolveu</p><p>a Capela Americana. O Bispo Leo levantou solenemente o cruci�xo</p><p>ao lado do corpo de Agnes, colocou-o de cabeça para baixo contra a</p><p>frente do altar e, de frente para a assembleia, ergueu a mão esquerda</p><p>na bênção invertida do sinal: as costas da mão voltadas para os</p><p>participantes; polegar e dois dedos médios pressionados contra a</p><p>palma da mão; os dedos indicador e mínimo apontando para cima,</p><p>para representar os chifres do bode.</p><p>— Invoquemos! Numa atmosfera de fogo e trevas, o celebrante</p><p>principal de cada capela entoava uma série de invocações ao Príncipe.</p><p>Os participantes em ambas as capelas entoavam a resposta. Então, e</p><p>apenas na capela auxiliar da América, cada resposta era seguida por</p><p>uma ação conveniente — uma representação, ritualisticamente</p><p>prevista, do espírito e do signi�cado das palavras. A perfeita cadência</p><p>de palavras e vontades entre as duas capelas �cara a cargo dos</p><p>mensageiros cerimoniais responsáveis pela comunicação telefônica.</p><p>Dessa cadência perfeita se urdiria um adequado tecido de intenção</p><p>humana, que revestiria o drama da entronização do Príncipe.</p><p>— Creio no Poder Único — a voz do Bispo Leo soou com convicção.</p><p>— E seu nome é Cosmos — os participantes em ambas as capelas</p><p>entoaram a resposta invertida, apresentada nos missais latinos. Na</p><p>capela auxiliar, ocorreu a ação conveniente. Dois acólitos incensaram</p><p>o altar. Mais dois pegaram as taças de terra, ar, fogo e água,</p><p>colocaram-nas no altar, curvaram-se ao bispo e voltaram para seus</p><p>lugares. Leo cantou:</p><p>— Creio no Filho Unigênito da Aurora Cósmica…</p><p>— …cujo nome é Lúcifer.</p><p>A segunda resposta antiga. Os acólitos de Leo acenderam as velas do</p><p>pentagrama e incensaram o pentagrama. Houve a terceira invocação:</p><p>— Creio no Misterioso…</p><p>— …e Ele é a Serpente que envenenou a Fruto da Vida.</p><p>Ao constante chacoalhar dos ossos, os Atendentes se aproximaram</p><p>do pilar vermelho e inverteram o escudo da Serpente, para expor o</p><p>lado que representa a Árvore do Conhecimento.</p><p>O Guardião em Roma e o bispo na América entoaram a quarta</p><p>invocação:</p><p>— Creio no Antigo Leviatã… Em uníssono através de um oceano e</p><p>um continente, a quarta resposta:</p><p>— …cujo nome é Ódio.</p><p>O pilar vermelho e a Árvore do Conhecimento foram incensados. A</p><p>quinta invocação:</p><p>— Creio na Raposa anciã… A quinta resposta luxuriosa:</p><p>— …cujo nome é Mentira.</p><p>O pilar negro foi incensado como o símbolo de tudo o que é</p><p>desolador e abominável.</p><p>Na luz bruxuleante lançada pelas velas e com a fumaça azul</p><p>ondulando ao seu redor, Leo desviou os olhos para a gaiola de Flinnie</p><p>que estava perto de Agnes no altar. O cachorrinho estava quase alerta</p><p>agora, levantando-se em resposta ao canto e estalidos e claques.</p><p>Leo leu a sexta invocação em latim.</p><p>— Creio no Caranguejo ancião…</p><p>— …cujo nome é Dor Viva — a entusiasmada recitação da sexta</p><p>resposta. Clique-claque, a recitação dos ossos. Com todos os olhos</p><p>sobre si, um acólito caminhou até o altar, en�ou a mão na gaiola onde</p><p>o �lhote abanava o rabo em expectativa, imobilizou a infeliz criatura</p><p>com uma mão e, com a outra, realizou com perfeita perícia uma</p><p>vivissecção, removendo, inicialmente, os órgãos reprodutivos do</p><p>animal que gritava. Sendo um especialista, o Atendente prolongou</p><p>tanto a agonia do cachorrinho quanto a alegria frenética dos</p><p>participantes no ritual doloroso.</p><p>Mas nem todo som foi abafado pelo estrondo da terrível celebração.</p><p>Embora fosse fraco, havia o som da luta mortal de Agnes. O som do</p><p>grito silencioso de Agnes diante da agonia de seu cãozinho. O som de</p><p>palavras arrastadas e sussurradas. O som da súplica e do sofrimento.</p><p>— Deus é meu papai!… Ai, meu Deus!… Meu cachorrinho!… Não</p><p>machuquem Flinnie!… Deus é meu papai!… Não machuquem</p><p>Jesus… Ai, meu Deus…</p><p>Atento a todos os detalhes, o Bispo Leo olhou para a vítima. Mesmo</p><p>em seu estado quase inconsciente, ela ainda assim lutava e protestava.</p><p>Ainda assim ela sentia dor. Ainda assim ela rezava, com sua</p><p>resistência in�exível. Leo �cou encantado. Que vítima perfeita; tão</p><p>agradável ao Príncipe. Sem hesitação nem pausa, Leo e o Guardião</p><p>conduziram suas congregações através das quatorze Invocações</p><p>restantes, enquanto as ações convenientes que se iam seguindo a cada</p><p>resposta se desenvolviam em um turbulento teatro de perversidade.</p><p>Por �m, o Bispo Leo encerrou a primeira parte do cerimonial</p><p>com a</p><p>grande invocação:</p><p>— Creio que o Príncipe deste Mundo será entronizado nesta noite,</p><p>na Antiga Cidadela, e de lá Ele criará uma nova comunidade… A</p><p>resposta foi dada com um entusiasmo impressionante, mesmo neste</p><p>ambiente medonho:</p><p>— …cujo nome será a Igreja Universal do Homem.</p><p>Era hora de Leo levantar Agnes em seus braços no altar. Chegara a</p><p>hora do arcipreste erguer o cálice com a mão direita e a grande hóstia</p><p>com a esquerda. Leo deveria liderar a oração do ofertório, esperando,</p><p>após cada pergunta ritual, que os participantes lessem as respostas de</p><p>seus missais.</p><p>— Que nome tinha esta vítima quando pela primeira vez nasceu?</p><p>— Agnes!</p><p>— Que nome tinha esta vítima quando pela segunda vez nasceu?</p><p>— Agnes Susannah!</p><p>— Que nome tinha esta vítima quando pela terceira vez nasceu?</p><p>— Raabe Jericó! Leo novamente depôs Agnes sobre o altar e picou o</p><p>dedo indicador de sua mão esquerda, até que o sangue escorreu da</p><p>pequena ferida.</p><p>Perfurada pelo frio, a náusea crescendo dentro dela, Agnes sentiu</p><p>que era levantada do altar, mas não conseguiu mais focar os olhos.</p><p>Uma picada aguda em sua mão esquerda a fez se encolher. Ela</p><p>absorvia palavras isoladas, que carregavam um medo que ela não</p><p>conseguia expressar. “Vítima, Agnes… terceira vez nasceu… Raabe</p><p>Jericó…”.</p><p>Leo mergulhou o dedo indicador esquerdo no sangue de Agnes e,</p><p>erguendo-o à vista dos participantes, começou os cantos do ofertório.</p><p>Este sangue de nossa vítima foi derramado * para que nosso serviço ao Príncipe seja</p><p>completo, * e para que Ele possa reinar supremo sobre a Casa de Jacó * na nova terra</p><p>dos eleitos.</p><p>Agora era a vez do arcipreste. Cálice e hóstia ainda erguidos, ele deu</p><p>a resposta ritual ao ofertório.</p><p>Eu te levo comigo, vítima pura, * eu te levo para o Norte profano, * eu te levo para o</p><p>Cume do Príncipe.</p><p>O arcipreste depositou a hóstia no peito de Agnes e segurou o cálice</p><p>de vinho sobre sua pélvis.</p><p>Ladeado no altar agora por seu arcipreste e pelo acólito medico, o</p><p>Bispo Leo olhou o mensageiro cerimonial. Certo de que o Guardião</p><p>de face granítica e sua Falange Romana estavam em perfeita sintonia,</p><p>ele e seus celebrantes entoaram a oração de súplica.</p><p>Pedimos-Te, Senhor Lúcifer, Príncipe das Trevas, * receptor de todas as nossas vítimas,</p><p>* que aceite nossa oferta * para o cometimento de muitos pecados.</p><p>Então, no uníssono perfeito que resulta de um longo costume, o</p><p>bispo e o arcipreste pronunciaram as palavras mais sagradas da Missa</p><p>romana. Na elevação da hóstia: “��� ��� ���� ������ ����”. Na</p><p>elevação do cálice: “��� ��� ���� ����� ��������� ���, ���� ��</p><p>������� ����������; �Y������� �����; ��� ��� ����� �� ���</p><p>������ ���������� �� ����������� ����������. ����</p><p>������������� ��������� ��� �������� ��������”.</p><p>Imediatamente, os participantes responderam com um aumento do</p><p>ruído ritual: um dilúvio de confusão, uma babel de palavras e ossos</p><p>chacoalhando, com atos lascivos aleatórios de todo tipo, enquanto o</p><p>bispo comia um minúsculo fragmento da hóstia e tomava um pequeno</p><p>gole do cálice.</p><p>Ao sinal de Leo — a bênção do sinal invertido — o ruído ritual</p><p>resvalou para um caos um pouco mais ordenado, enquanto os</p><p>participantes obedientemente formavam algo como �las. Passando</p><p>pelo altar para receber a comunhão — um pedaço da hóstia, um gole</p><p>do cálice — tiveram também oportunidade de admirar Agnes. Então,</p><p>ansiosos por não perder nenhuma parte do primeiro ritual de violação</p><p>da vítima, eles voltaram rapidamente para suas cadeiras genu�exórias</p><p>e observaram com expectativa, enquanto o bispo concentrava toda a</p><p>sua atenção na criança.</p><p>Agnes tentou com todas as suas forças se libertar quando o peso do</p><p>bispo caiu sobre ela. Apesar de tudo, ela torcia a cabeça como se</p><p>procurasse ajuda naquele lugar impiedoso. Mas não houve sinal de</p><p>ajuda. Lá estava o arcipreste, esperando sua vez neste sacrilégio voraz.</p><p>Lá estava seu pai esperando. Lá estava o fogo das velas negras, cujo</p><p>fogo rubro se re�etia em seus olhos. O fogo queimava naqueles olhos,</p><p>dentro de todos aqueles olhos; fogo que, depois que as velas</p><p>morressem, arderia por muito tempo; para sempre…</p><p>Naquela noite, a agonia que envolveu Agnes em corpo e alma foi tão</p><p>profunda que poderia ter envolvido o mundo inteiro. Mas nem por</p><p>um momento a agonia foi apenas dela. Disso ela sempre teve certeza.</p><p>Enquanto aqueles servidores de Lúcifer a violavam naquele altar</p><p>corrompido e profano, da mesma maneira eles violavam aquele</p><p>Senhor que para ela era pai e mãe. Assim como a coragem dele havia</p><p>transformado a fraqueza dela, também a sua profanação foi</p><p>santi�cada</p><p>pelos ultrajes da Sua �agelação, e o seu suplício, pela Sua Paixão.</p><p>Era para Ele, para aquele Senhor que era o seu único pai, a sua única</p><p>mãe e o seu único defensor, que Agnes gritava o seu terror, o seu</p><p>horror, a sua dor. E foi para Ele que ela correu, em busca de refúgio,</p><p>quando perdeu a consciência.</p><p>Leo se reergueu atrás do altar, com uma emoção nova em seu rosto</p><p>suado e rubro neste seu momento supremo de triunfo pessoal. Um</p><p>aceno para o mensageiro cerimonial ao telefone. Um momento de</p><p>espera. Um aceno de resposta. Roma estava pronta.</p><p>— Pelo poder de que fui investido, como celebrante paralelo do</p><p>sacrifício e cumpridor paralelo da entronização, eu conduzo todos</p><p>aqui e em Roma ao invocar a Ti, Príncipe de todas as criaturas! Em</p><p>nome de todos os reunidos nesta capela e de todos os irmãos da</p><p>Capela Romana, eu Te invoco, ó Príncipe! Coube ao arcipreste</p><p>conduzir a segunda oração de investidura. Como culminação de tudo</p><p>o que esperava, seu texto em latim era um modelo de emoção</p><p>controlada.</p><p>Vem, toma posse da Casa do Inimigo. * Adentra o lugar que para ti foi preparado. *</p><p>Desce entre teus �éis servidores * que prepararam teu leito, * que ergueram Teu altar e</p><p>o abençoaram com infâmia.</p><p>Era justo e necessário que o Bispo Leo, na capela auxiliar, rezasse a</p><p>oração de investidura �nal.</p><p>Sob as instruções sacrossantas do topo da montanha, em nome de todos os irmãos, eu</p><p>agora adoro a Ti, Príncipe das Trevas. Com a estola de toda profanidade, eu agora</p><p>ponho em tuas mãos a tríplice coroa de Pedro * segundo a vontade adamantina de</p><p>Lúcifer * para que Tu reines aqui. * Para que haja uma Igreja, * uma Igreja de litoral a</p><p>litoral, * uma vasta e poderosa congregação * de homem e mulher,</p><p>* de animal e planta. * Para que nosso Cosmos novamente * seja um, desvinculado e</p><p>livre.</p><p>À última palavra e a um gesto de Leo, todos na sua capela se</p><p>sentaram. A capela alvo, em Roma, assumia o ritual.</p><p>Neste momento, a entronização do Príncipe na Cidadela do Débil</p><p>estava quase completa. Faltava apenas a autorização, o mandado de</p><p>instrução e as provas. O Guardião ergueu os olhos do altar e voltou</p><p>os olhos tristes para o delegado internacional prussiano, que trouxera</p><p>a bolsa de couro contendo as bulas de autorização e instruções. Todos</p><p>o observaram enquanto deixava seu lugar e caminhava até o altar,</p><p>pegando a bolsa, removendo os papéis que continha e lendo as bulas</p><p>de autorização com forte sotaque:</p><p>— Por mandato da Assembleia e dos sacrossantos anciãos, eu</p><p>instituo, autorizo e reconheço esta capela, a ser conhecida doravante</p><p>como a Capela Interior, tomada, possuída e apropriada inteiramente</p><p>por Aquele a quem entronizamos como Senhor e Mestre de nosso</p><p>humano destino. Quem quiser, através desta Capela Interior, ser</p><p>designado e escolhido como o último na �la dos sucessores ao</p><p>Ministério Petrino, deve comprometer-se por seu próprio juramento</p><p>de ofício e tudo fazer para ser o instrumento voluntário e colaborador</p><p>dos construtores do lar do homem na Terra e em todo o Cosmos. Ele</p><p>deve transformar a antiga inimizade em amizade, tolerância e</p><p>assimilação, para que tudo isso seja aplicado aos modelos de</p><p>nascimento, educação, trabalho, �nanças, comércio, indústria,</p><p>aprendizado, cultura, à vida e sua geração, à morte e sua aceitação.</p><p>Assim será modelada a Nova Era do Homem.</p><p>— Assim seja! — O Guardião presidiu a Falange Romana na</p><p>resposta ritual.</p><p>— Assim seja! — A um sinal do mensageiro cerimonial, o Bispo Leo</p><p>presidiu o consentimento de seus participantes.</p><p>O próximo passo do ritual, a declaração</p><p>de instruções, era na</p><p>realidade um solene juramento de traição pelo qual todo clérigo</p><p>presente na Capela de São Paulo — cardeal, bispo e monsenhor —</p><p>intencionalmente e deliberadamente profanaria o sacramento da</p><p>ordem sagrada que lhe transmitira a graça e o poder de santi�car os</p><p>outros.</p><p>O delegado internacional ergueu sua mão esquerda, fazendo o sinal.</p><p>— Tendo ouvido esta autorização, todos e cada um de vós, agora,</p><p>jurais solenemente aceitá-la de boa vontade, inequivocamente,</p><p>imediatamente, sem reservas ou objeções? Jurais, agora, solenemente,</p><p>que administrareis vossos cargos de modo a cumprir os objetivos da</p><p>Igreja Universal do Homem?</p><p>— Juramos solenemente.</p><p>— Quereis e estais todos prontos para sinalizar esta vontade</p><p>unânime com seu próprio sangue, e que Lúcifer vos �ra, se fordes</p><p>in�éis a este juramento?</p><p>— Queremos e estamos prontos.</p><p>— Aceitais plenamente que, por este juramento, transferis o senhorio</p><p>e a posse de vossas almas do Antigo Inimigo, o Supremo Débil, para</p><p>as mãos todo-poderosas de nosso Senhor Lúcifer?</p><p>— Aceitamos.</p><p>Chegara o momento do ritual �nal. A evidência.</p><p>Com os dois documentos posicionados no altar, o delegado estendeu</p><p>a mão esquerda ao Guardião. Com um al�nete de ouro, o romano de</p><p>rosto granítico espetou a ponta do polegar esquerdo do delegado e</p><p>imprimiu uma marca sangrenta ao lado do nome do delegado na bula</p><p>de autorização.</p><p>Rapidamente, então, os participantes do Vaticano �zeram o mesmo.</p><p>Quando todos os membros da Falange haviam cumprido este último</p><p>requisito do ritual, um sininho de prata tocou na Capela de São</p><p>Paulo.</p><p>Na Capela Americana, o sino do in�nito tocou sua concordância</p><p>distante e leve, musicalmente, três vezes. Ding! Dong! Ding! Um</p><p>toque especialmente agradável, pensou Leo, enquanto ambas as</p><p>congregações entoavam o cântico de saída.</p><p>Ding! Dong! Dell! * Assim prevalecerão os Portões Antigos! * Assim, a Rocha e a Cruz</p><p>cairão * Para sempre! * Ding! Dong! Dell!</p><p>P</p><p>A �la recessional se formou em ordem hierárquica: primeiro os</p><p>acólitos, depois frater medico, com Agnes desmaiada e</p><p>assustadoramente pálida em seus braços. Finalmente, o arcipreste e o</p><p>Bispo Leo prosseguiram cantando, enquanto voltavam para a</p><p>sacristia.</p><p>Os membros da Falange Romana emergiram no pátio de São</p><p>Dâmaso na madrugada do dia da festa de São Pedro e São Paulo.</p><p>Alguns dos cardeais e alguns bispos responderam às saudações dos</p><p>respeitosos guardas, traçando no ar, distraidamente, a cruz da bênção</p><p>sacerdotal, ao entrarem em suas limusines. Em instantes, as paredes</p><p>da Capela de São Paulo brilhavam, como sempre, com suas lindas</p><p>pinturas e afrescos de Cristo e do apóstolo Paulo, cujo nome o último</p><p>sucessor de Pedro havia adotado.</p><p>1978</p><p>ara o Papa que assumira o nome do Apóstolo, o verão de 1978 foi</p><p>o último nesta terra. Desgastado tanto pela turbulência de seu</p><p>reinado de quinze anos quanto pela dor e degradação física de uma</p><p>longa doença, ele foi tirado por seu Deus da cátedra central da</p><p>autoridade na Igreja Católica Romana em 6 de agosto.</p><p>Durante a sede vacante — período em que a cátedra de Pedro está</p><p>vaga — os assuntos práticos da Igreja Universal são con�ados a um</p><p>cardeal camerlengo. Um camareiro. Neste caso, ao infeliz secretário</p><p>de Estado do Papa, a Sua Eminência, o Cardeal Jean-Claude de</p><p>Vincennes, que, de qualquer maneira, diziam as piadas do Vaticano, já</p><p>praticamente dirigia a Igreja, mesmo quando o Papa ainda estava</p><p>vivo.</p><p>Extraordinariamente alto, bem constituído e magro, o Cardeal</p><p>Vincennes possuía, por natureza, uma dose exagerada de bom senso</p><p>gaulês. Seu humor, que variava do azedo ao paternalista, regulava a</p><p>atmosfera tanto para colegas quanto para subordinados. As rígidas</p><p>linhas de sua face atuavam como distintivo de seu status</p><p>inquestionavelmente supremo na burocracia do Vaticano.</p><p>Compreensivelmente, são muitas as responsabilidades do camerlengo</p><p>durante a sede vacante, e curto é o tempo para dar conta delas. Uma</p><p>das tarefas mais importantes é classi�car os papéis e documentos</p><p>pessoais do Papa morto em uma triagem completa. O objetivo o�cial</p><p>do exercício é tomar ciência dos assuntos inacabados. Mas um</p><p>resultado extrao�cial é a possibilidade de se descobrir, em primeira</p><p>mão, alguns dos pensamentos mais íntimos do último Papa sobre</p><p>assuntos delicados da Igreja.</p><p>Normalmente, Sua Eminência teria conduzido a triagem dos</p><p>documentos do velho Papa antes que o Conclave se reunisse para</p><p>eleger o seu sucessor. Mas os preparativos para o Conclave de agosto</p><p>haviam absorvido todas as suas energias e atenção. Do resultado</p><p>daquele Conclave — mais precisamente, do tipo de homem que</p><p>emergiria dele, como o novo Papa — dependia o destino de</p><p>elaborados planos feitos ao longo dos vinte anos anteriores pelo</p><p>Cardeal Vincennes e seus colegas que compartilhavam o mesmo</p><p>entendimento no Vaticano e em todo o mundo.</p><p>Eram homens que promoviam uma nova ideia do papado e da Igreja</p><p>Católica Romana. Para eles, o Papa e a Igreja não mais se afastariam</p><p>da humanidade, convidando-a a que viesse e entrasse no rebanho do</p><p>catolicismo. Chegara a hora de o papado e a Igreja como instituição</p><p>colaborarem estreitamente com os esforços da humanidade para</p><p>construir um mundo melhor para todos; a hora de o papado</p><p>abandonar sua con�ança na autoridade dogmática e sua insistência na</p><p>reivindicação absoluta e exclusiva da verdade completa.</p><p>Claro, tais planos não foram elaborados dentro do vácuo isolado da</p><p>política interna do Vaticano. Mas o cardeal-secretário também não</p><p>compartilhava dessas ideias apenas de longe. Ele e seus associados do</p><p>Vaticano haviam feito um pacto com seus patrocinadores seculares.</p><p>Juntos, por esse pacto, todos se comprometiam a fazer sua parte para</p><p>efetuar �nalmente a transformação desejada e fundamental na Igreja e</p><p>no papado.</p><p>Agora, com a morte do Papa, era aceite que este Conclave constituía</p><p>a oportunidade de eleger, para a cátedra de Pedro, um sucessor</p><p>complacente. Com o Cardeal Vincennes no comando do espetáculo,</p><p>ninguém duvidava de que exatamente o tipo de homem necessário</p><p>emergiria como vencedor — como Papa — do Conclave de agosto de</p><p>1978.</p><p>Com tal encargo nas mãos, não era de estranhar que Sua Eminência</p><p>tivesse deixado tudo de lado, inclusive os documentos pessoais do</p><p>velho Papa. O grosso envelope com o selo papal �cara abandonado</p><p>em um escaninho na mesa do cardeal.</p><p>Mas o cardeal cometera um grosseiro erro de cálculo. Uma vez</p><p>trancados a sete chaves, como é costume nos conclaves, os cardeais</p><p>eleitores escolheram para o papado um homem totalmente</p><p>inadequado. Um homem totalmente incompatível com os planos</p><p>traçados pelo camerlengo e seus associados. Poucos no Vaticano</p><p>esqueceriam o dia em que o novo Papa foi eleito. Vincennes</p><p>literalmente saiu correndo do Conclave no instante em que as portas</p><p>fortemente trancadas foram abertas. Ignorando o anúncio habitual</p><p>após “um Conclave abençoado”, ele se dirigiu a seus aposentos como</p><p>a vingança encarnada.</p><p>O Cardeal-secretário de Estado Vincennes percebeu a seriedade de</p><p>seu fracasso no Conclave durante as primeiras semanas do novo</p><p>papado. Foram semanas de contínua frustração para ele. Semanas de</p><p>discussão contínua com o novo Papa e de discussões febris com seus</p><p>próprios colegas. A triagem dos documentos papais havia sido</p><p>praticamente esquecida devido à sensação de perigo que permeava</p><p>seus dias. Ele simplesmente não tinha como prever, para seus sócios,</p><p>como esse novo ocupante do Trono de Pedro agiria e reagiria. Sua</p><p>Eminência perdera o controle.</p><p>A incerteza e o medo explodiram quando aconteceu algo totalmente</p><p>inesperado. Trinta e três dias depois de sua eleição, o novo Papa</p><p>morreu, e o ar em Roma e no exterior �cou impregnado de horríveis</p><p>rumores.</p><p>Quando os papéis do Papa recém-falecido foram reunidos em um</p><p>segundo envelope selado, o cardeal não teve escolha a não ser colocá-</p><p>los em sua mesa junto com o primeiro. Na organização de um</p><p>segundo Conclave a ser realizado em outubro, todos os seus esforços</p><p>foram direcionados para corrigir os erros cometidos em agosto. Sua</p><p>Eminência recebera um indulto, e não tinha dúvidas de que sua vida</p><p>dependia de</p><p>aproveitá-lo ao máximo. Desta vez, ele tinha de garantir</p><p>a escolha de um Papa adequadamente complacente.</p><p>O impensável, no entanto, o perseguira. Apesar de todos os seus</p><p>imensos esforços, o Conclave de outubro foi, para ele, tão desastroso</p><p>quanto o de agosto. Teimosamente, os eleitores escolheram outra vez</p><p>um homem que não era complacente em nenhum sentido da palavra.</p><p>Se as circunstâncias o permitissem, Sua Eminência certamente tomaria</p><p>um tempo para se dedicar a desvendar o enigma: o que dera errado</p><p>nas duas eleições? Mas não havia tempo.</p><p>Com o terceiro Papa no Trono de Pedro em alguns poucos meses, a</p><p>triagem dos papéis contidos nos dois envelopes, cada um com o selo</p><p>papal, tornou-se a�nal urgente. Mesmo no meio da caçada, Sua</p><p>Eminência não permitiria que aqueles dois pacotes escapassem de suas</p><p>mãos sem uma cuidadosa triagem.</p><p>A triagem foi feita em um dia de outubro, em uma mesa de reuniões</p><p>oval, no espaçoso escritório do secretário de Estado, o Cardeal</p><p>Vincennes. Situado a poucos metros do escritório papal no terceiro</p><p>andar do Palácio Apostólico, com suas altas janelas serlianas</p><p>perenemente contemplando, como olhos que não piscam, a Praça de</p><p>São Pedro e o vasto mundo além dela, esse escritório era apenas um</p><p>dos muitos sinais externos do poder global do cardeal-secretário.</p><p>Como exigia o costume, o cardeal havia chamado dois homens como</p><p>testemunhas e auxiliares. O primeiro, o Arcebispo Silvio Aureatini —</p><p>um homem relativamente jovem, de alguma fama e enorme ambição</p><p>— era um italiano do Norte, atento e perspicaz, que olhava o mundo</p><p>com um rosto que parecia se concentrar na ponta de seu nariz</p><p>proeminente como toda a forma de um lápis se projeta na ponta.</p><p>O segundo homem, o Padre Aldo Carnesecca, era um simples e</p><p>insigni�cante sacerdote que vivera quatro papados e por duas vezes</p><p>ajudara na triagem dos papéis do Papa. O Padre Carnesecca era</p><p>estimado por seus superiores como “um homem de</p><p>con�dencialidade”. Magro, de cabelos grisalhos e voz baixa, de uma</p><p>idade difícil de determinar, ele era exatamente o que a sua aparência</p><p>facial, a sua batina preta sem adornos e os seus modos impessoais</p><p>indicavam: um subordinado pro�ssional.</p><p>É comum que homens como Aldo Carnesecca cheguem ao Vaticano</p><p>com grandes ambições, mas sem estômago para invejas e ódios</p><p>facciosos; conscientes demais da sua mortalidade para passarem por</p><p>cima de cadáveres na escada até o topo, mas gratos demais para</p><p>morderem a mão que os alimentou no início, esses homens se apegam</p><p>à sua ambição antiquíssima e fundamental, que os trouxera até aqui:</p><p>o desejo de ser romano.</p><p>Ao invés de violarem os seus princípios ou de cruzarem o limiar da</p><p>desilusão e da amargura, os Carneseccas do Vaticano fazem o que</p><p>podem na sua condição modesta. Eles permanecem em seus postos</p><p>através de sucessivas administrações papais. Sem nutrir qualquer</p><p>interesse próprio ou exercer qualquer in�uência pessoal, eles</p><p>adquirem um conhecimento detalhado de fatos signi�cativos,</p><p>amizades, incidentes e decisões. Eles se tornam especialistas na</p><p>ascensão e queda dos grandes. Desenvolvem um instinto para</p><p>distinguir a �oresta das árvores. Não era uma ironia surpreendente,</p><p>portanto, que o homem mais adequado para conduzir a triagem dos</p><p>documentos papais naquele dia de outubro não fosse o Cardeal</p><p>Vincennes ou o Arcebispo Aureatini, mas o Padre Carnesecca.</p><p>A princípio, a triagem transcorreu sem problemas. Depois de um</p><p>ponti�cado de quinze anos, era de se esperar que o primeiro envelope</p><p>contendo os documentos do velho Papa fosse gordo. Mas veri�cou-se</p><p>que a maior parte de seu conteúdo eram cópias de memorandos entre</p><p>o Pontí�ce e Sua Eminência, já familiares ao cardeal. Vincennes não</p><p>guardava para si mesmo todos os seus pensamentos enquanto jogava</p><p>página após página para seus dois companheiros; ele as temperava</p><p>com comentários sobre os homens cujos nomes inevitavelmente</p><p>surgiam. Aquele arcebispo suíço que pensara poder intimidar Roma.</p><p>Aquele bispo brasileiro que se recusara a aceitar as mudanças no rito</p><p>da Missa. Aqueles cardeais tradicionalistas do Vaticano cujo poder ele</p><p>quebrara. Aqueles teólogos europeus tradicionalistas que ele lançara</p><p>na obscuridade.</p><p>Finalmente, restavam apenas cinco dos documentos do velho Papa</p><p>para serem despachados, antes de se passar à triagem dos documentos</p><p>do segundo Pontí�ce. Cada um deles foi selado em seu próprio</p><p>envelope e marcado como Personalissimo e Con�denzialissimo.</p><p>Desses envelopes, os quatro endereçados a parentes consanguíneos do</p><p>velho Papa não traziam nenhuma consequência especial, além do fato</p><p>de que aborrecia o cardeal não poder ler o seu conteúdo. O último</p><p>trazia uma inscrição adicional: “Para nosso sucessor no Trono de</p><p>Pedro”. Essas palavras, escritas com a letra inconfundível do velho</p><p>Papa, punham o conteúdo desse documento na categoria de papéis</p><p>destinados exclusivamente aos olhos do jovem e recém-eleito Papa</p><p>eslavo. A data da inscrição papal, 3 de julho de 1975, evocou na</p><p>mente do cardeal a lembrança de uma época particularmente volátil</p><p>em suas sempre tensas relações com Sua Santidade.</p><p>O que repentinamente atraiu a atenção de Sua Eminência, porém, foi</p><p>o fato impensável, mas inequívoco, de que o selo papal original havia</p><p>sido rompido. Inacreditavelmente, o envelope havia sido cortado na</p><p>parte superior e aberto. Obviamente, portanto, o seu conteúdo fora</p><p>lido. Assim como era óbvio que a fenda havia sido consertada com</p><p>um pedaço de �ta adesiva grossa. Um novo selo papal e uma</p><p>assinatura foram adicionados pelo sucessor do Papa mais velho; pelo</p><p>Papa que morrera tão repentinamente e cujos próprios papéis ainda</p><p>aguardavam triagem.</p><p>Mas havia mais. Uma segunda inscrição, pela letra menos familiar</p><p>do segundo Papa: “Sobre a condição da Santa Igreja depois de 29 de</p><p>junho de 1963”.</p><p>Em um momento de descuido, o Cardeal Vincennes não se importou</p><p>com os outros dois homens na mesa oval. Para ele, o mundo inteiro</p><p>encolheu, subitamente, até as minúsculas dimensões do envelope em</p><p>suas mãos. No horror e na confusão que paralisaram a sua mente ao</p><p>ver aquela data em um envelope lacrado pelo Papa, um momento se</p><p>passou até que se desse conta da data da segunda inscrição papal: 28</p><p>de setembro de 1978, um dia antes da morte desse segundo Papa.</p><p>Em sua perplexidade, o cardeal passou os dedos pelo envelope como</p><p>se sua espessura pudesse revelar seu conteúdo, ou como se ele pudesse</p><p>sussurrar o segredo de como saíra de sua mesa e depois voltara.</p><p>Quase ignorando a presença do Padre Carnesecca — algo fácil de</p><p>fazer — ele empurrou o envelope sobre a mesa, para Aureatini.</p><p>Quando o arcebispo voltou a erguer o seu per�l semelhante a um</p><p>lápis, seus olhos espelhavam o mesmo horror e confusão do cardeal.</p><p>Era como se aqueles dois homens não estivessem olhando um para o</p><p>outro, mas sim para uma memória comum que eles tinham certeza de</p><p>que era secreta. A memória do momento inicial da vitória. A memória</p><p>da Capela de São Paulo. A memória de se reunirem com tantos outros</p><p>da Falange para entoar antigas invocações. A memória daquele</p><p>delegado prussiano lendo a bula de instrução; dos polegares espetados</p><p>com al�nete de ouro; das impressões sangrentas marcadas na bula de</p><p>autorização.</p><p>— Mas, Eminência… — Aureatini foi o primeiro a recobrar sua voz,</p><p>ainda que tenha sido o segundo a recuperar a inteligência. — Como</p><p>diabos ele…</p><p>— Nem o Diabo sabe disso.</p><p>Por pura força de vontade, o cardeal estava começando a recuperar</p><p>parte de sua presença de espírito. Peremptoriamente, ele pegou o</p><p>envelope de volta e o colocou na mesa à sua frente. Ele não se</p><p>importava nem um pouco com os pensamentos de qualquer um de</p><p>seus companheiros. Diante de tantas incógnitas, ele precisava lidar</p><p>com questões que se acumulavam em sua mente.</p><p>Como o Papa de trinta e três dias obteve os papéis de seu</p><p>predecessor? Traição por um dos funcionários da própria equipe</p><p>secretarial de Sua Eminência? O pensamento fez com que o cardeal</p><p>olhasse para o Padre Carnesecca. Em sua mente, aquele subordinado</p><p>pro�ssional, em sua batina preta, representava toda a subclasse de</p><p>plebeus burocratas do Vaticano.</p><p>Claro, tecnicamente</p>