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<p>KONSTANDINOS KAVAFIS</p><p>) Alberta</p><p>segunda ( ABERTA</p><p>Constantino Cavafy, 90 E MAIS QUATRO POEMAS, tradução de Jorge de Sena,</p><p>Porto, ASA, 2003.</p><p>Konstandinos Kavafis, PÁGINAS ÍNTIMAS, tradução de João Carlos Chainho,</p><p>Lisboa, Hiena, 1994.</p><p>Konstandinos Kavafis, POEMAS E PROSAS, tradução de Joaquim Manuel</p><p>Magalhães e Nikos Pratsinis, Lisboa, Relógio d’água, 1994.</p><p>Konstandinos Kavafis, OS POEMAS, tradução de Joaquim Manuel Magalhães e</p><p>Nikos Pratsinis, Lisboa, Relógio d’água, 2005.</p><p>Konstantinos Kaváfis, 145 POEMAS, tradução de Manuel Resende, Porto, FLOP,</p><p>2017.</p><p>KONSTANDINOS KAVAFIS [1863-1933]</p><p>ㅡ 50 POEMAS ㅡ</p><p>Jorge de Sena</p><p>SOMA</p><p>Não discuto se sou feliz ou não.</p><p>Mas de uma coisa faço por lembrar-me sempre:</p><p>que nessa grande soma ㅡ a deles, que eu detesto ㅡ</p><p>de tantas e tantas parcelas, não sou</p><p>uma delas. Eu nunca fui contado</p><p>para a soma total. Esta alegria basta.</p><p>João Carlos Chainho</p><p>UM VELHO</p><p>Lá dentro, na sala ruidosa do café,</p><p>está um velho curvado sobre a mesa,</p><p>solitário, com o jornal à frente.</p><p>Vai pensando, com a indiferença que a velhice dá,</p><p>que aos anos de força, de eloquência e formosura</p><p>pouco proveito soube retirar.</p><p>Ele sabe ㅡ porque sente, porque vê ㅡ que está muito velho.</p><p>E no entanto parece de ontem</p><p>o tempo em que foi jovem. Passou tão depressa, passou tão depressa.</p><p>Reconhece então que a Prudência se riu dele;</p><p>que sempre sentiu ㅡ oh loucura! ㅡ confiança nela</p><p>e a malvada lhe dizia: «Amanhã. Tens muito tempo.»</p><p>Recorda os impulsos que susteve; e o sacrifício</p><p>de quantas alegrias. Da insensata razão</p><p>anda a rir-se agora cada ocasião perdida.</p><p>… Porém, de tanto pensar e recordar</p><p>se atordoa o velho. E adormece</p><p>com a cabeça na mesa do café.</p><p>MUROS</p><p>Sem cuidado, sem piedade, sem respeito,</p><p>em meu redor muros altos foram levantados.</p><p>E agora vivo sem nenhuma esperança.</p><p>Em mais não penso: um tal destino anula-me a razão,</p><p>pois tanto me faltava para fazer lá fora.</p><p>Ah, muros não vi quando os construíram.</p><p>Não ouvi ruídos nem vozes de pedreiros.</p><p>Fora do mundo, sem saber, eu estava fechado.</p><p>Manuel Resende</p><p>AS JANELAS</p><p>Nestes quartos escuros, onde passo</p><p>dias pesados, ando de um lado para o outro</p><p>à procura das janelas. ㅡ Quando se abra</p><p>uma janela terei consolo. ㅡ</p><p>Mas as janelas não aparecem ou não consigo</p><p>encontrá-las. Melhor talvez não as achar.</p><p>Talvez a luz fosse uma nova tirania.</p><p>Quem sabe que de novo nos traria.</p><p>Joaquim Manuel Magalhães</p><p>DESEJOS</p><p>Como corpos belos de mortos que não envelheceram</p><p>e estão fechados, com lágrimas, em esplêndida tumba grandiosa,</p><p>com rosas na cabeça e nos pés jasmim ㅡ</p><p>desse modo parecem os desejos que desapareceram</p><p>sem serem cumpridos; sem nenhum deles ser dignado assim</p><p>com uma noite de prazer, ou manhã dele luminosa.</p><p>NA ESCADA</p><p>Quando descia a cabra da escada,</p><p>pela porta entravas, e por um momento</p><p>vi o teu rosto desconhecido e viste-me.</p><p>Depois escondi-me para não voltares a ver-me, e tu</p><p>passaste rápido escondendo o teu rosto,</p><p>e enfiaste-te para dentro da cabra da casa</p><p>onde o prazer não haverias de encontrar, como não encontrei.</p><p>Porém o amor que tu querias tinha-o para to dar;</p><p>o amor que eu queria ㅡ os teus olhos disseram-mo</p><p>os cansados e suspeitos ㅡ tinha-lo para me dares.</p><p>Os nossos corpos sentiram e buscavam-se;</p><p>o nosso sangue e a nossa pele perceberam.</p><p>Mas escondemo-nos os dois, perturbados.</p><p>COISAS ESCONDIDAS</p><p>No que fiz e no que disse</p><p>que não procurem encontrar quem fui.</p><p>Obstáculo havia levantado e transformava</p><p>as acções e o modo da minha vida.</p><p>Obstáculo havia levantado e parava-me</p><p>muitas vezes quando ia dizer.</p><p>As minhas acções mais despercebidas</p><p>e os meus escritos os mais encobertos ㅡ</p><p>só por aí me hão-de sentir.</p><p>Mas talvez não valha a pena pôr</p><p>tanto cuidado e tanto trabalho para me saberem.</p><p>Mais tarde ㅡ na sociedade mais perfeita ㅡ</p><p>outrem feito como eu</p><p>por certo aparecerá e fará livremente.</p><p>COISAS ACABADAS</p><p>Dentro do medo e das suspeitas,</p><p>com a mente agitada e os olhos aterrados,</p><p>fundimos e planeamos o que fazer</p><p>para evitar o perigo</p><p>certo que desta forma horrenda nos ameaça.</p><p>No entanto equivocamo-nos, não está esse no caminho;</p><p>falsas eram as mensagens</p><p>(ou não as ouvimos, ou não as sentimos bem).</p><p>Outra catástrofe, que não imaginávamos,</p><p>brusca, torrencial cai sobre nós,</p><p>e desprevenidos ㅡ como teríamos tempo ㅡ arrebata-nos.</p><p>AS COISAS PERIGOSAS</p><p>Disse Myrtias (estudante sírio</p><p>em Alexandria; sendo reis</p><p>augustus Constans e augustus Constantius;</p><p>em parte gentio, e em parte cristianizante):</p><p>«Fortalecido com teoria e estudo,</p><p>eu as minhas paixões não vou temer como cobarde.</p><p>O meu corpo aos prazeres vou dar,</p><p>aos deleites sonhados,</p><p>aos desejos eróticos mais audazes,</p><p>aos ímpetos lascivos de meu sangue, sem</p><p>medo nenhum, pois sempre que queira ㅡ</p><p>e terei vontade, fortalecido</p><p>como estarei com teoria e estudo ㅡ</p><p>nos momentos críticos hei-de encontrar</p><p>o meu espírito, como dantes, ascético.»</p><p>CONTINUA A VOLTAR</p><p>Continua a voltar frequentemente e a tomar-me,</p><p>sensação amada continua a voltar e a tomar-me ㅡ</p><p>quando acorda a memória do corpo,</p><p>e desejo antigo volta a passar no sangue;</p><p>quando os lábios e a pele se lembram,</p><p>e sentem as mãos como se tocassem de novo.</p><p>Continua a voltar frequentemente e a tomar-me à noite,</p><p>quando os lábios e a pele se lembram…</p><p>MUITO RARAMENTE</p><p>É um ancião. Consumido e curvado,</p><p>combalido pelos anos, e pelos abusos,</p><p>caminhando lentamente atravessa a ruela.</p><p>Porém quando entra em casa para ocultar</p><p>o seu mau aspecto e a sua velhice, pondera</p><p>no quinhão de juventude que tem ainda.</p><p>Agora adolescentes dizem os seus versos.</p><p>Nos vivos olhos seus passam as visões dele.</p><p>A mente saudável e hedónica deles,</p><p>a carne firme e de belas linhas deles,</p><p>com a manifestação do belo por ele feita emocionam-se.</p><p>Manuel Resende</p><p>FUI</p><p>Nada me prendeu. Abandonei-me todo e fui.</p><p>Pelos prazeres que, meio reais,</p><p>meio sonhados, rondavam na minha alma,</p><p>fui pela noite iluminada.</p><p>E dos mais fortes vinhos bebi, como</p><p>bebem os heróis do prazer.</p><p>QUANTO PUDERES</p><p>Mesmo se não puderes fazer a vida como a queres,</p><p>isto ao menos tenta</p><p>quanto puderes: não a desbarates</p><p>nos muitos contactos do mundo,</p><p>na agitação e nas conversas.</p><p>Não a desbarates arrastando-a,</p><p>e mudando-a e expondo-a</p><p>ao quotidiano absurdo</p><p>das relações e das companhias</p><p>até se tornar uma estranha importuna.</p><p>Joaquim Manuel Magalhães</p><p>COISAS PINTADAS</p><p>O meu trabalho dá-me cuidado e prazer.</p><p>Mas da composição desalenta-me hoje a lentura.</p><p>O dia influenciou-me. A sua figura</p><p>cada vez mais soturna. O vento e a chuva não têm parado.</p><p>Desejo mais ver do que dizer.</p><p>Neste quadro estou a olhar agora</p><p>um moço belo que da fonte perto</p><p>se estendeu, depois da corrida está extenuado.</p><p>Que beleza de jovem; que divino meio-dia o terá tomado</p><p>já para o não manter desperto.</p><p>Quedo-me a olhar assim por muito tempo fora.</p><p>E dentro da arte de novo, descanso da sua faina dura.</p><p>À ENTRADA DO CAFÉ</p><p>A minha atenção por algo que disseram ao meu lado</p><p>dirigiu-se para a entrada do café.</p><p>E vi o corpo belo que parecia</p><p>ter sido feito pela extrema experiência de Eros ㅡ</p><p>modelou os seus membros simétricos com alegria;</p><p>elevou a sua estatura esculpida;</p><p>modelou com emoção o rosto</p><p>e deixou pelo toque das suas mãos</p><p>uma sensação na testa, nos olhos, e nos lábios.</p><p>UMA NOITE</p><p>O quarto era pobre e sórdido,</p><p>escondido por cima da taberna suspeita.</p><p>Da janela via-se a travessa,</p><p>suja e apertada. De baixo</p><p>vinham as vozes de alguns operários</p><p>que jogavam às cartas e faziam uma farra.</p><p>E aí na cama modesta, para o povo</p><p>tive o corpo do amor, tive os deleitáveis</p><p>lábios corados da embriaguez ㅡ</p><p>corados de uma embriaguez tal, que mesmo agora</p><p>que escrevo, depois de tantos anos!,</p><p>na minha casa sozinha, de novo me embriago.</p><p>JURA</p><p>Jura muitas vezes começar uma vida melhor.</p><p>Mas quando vem a noite com os seus próprios conselhos,</p><p>com os seus compromissos, e com as suas promessas;</p><p>mas quando vem a noite com a sua própria força</p><p>do corpo que quer e pede, para a mesma</p><p>alegria fatal, perdido,</p><p>vai de novo.</p><p>QUANDO SE EXCITAM</p><p>Procura guardá-las, poeta,</p><p>por muito que sejam poucas as coisas que podem ser detidas.</p><p>As visões do teu erotismo.</p><p>Mete-as, meio escondidas, nas tuas frases.</p><p>Procura segurá-las, poeta,</p><p>quando se excitam na tua mente,</p><p>à noite ou no esplendor do meio-dia.</p><p>Manuel Resende</p><p>NA RUA</p><p>Seu rosto amável, um pouco pálido;</p><p>seus olhos castanhos, como aturdidos;</p><p>vinte e cinco anos, mas aparenta antes vinte;</p><p>com algo de boémio no vestir</p><p>ㅡ a cor da gravata, a forma do colarinho ㅡ</p><p>deambula sem rumo pela rua,</p><p>como turvado ainda pelo prazer proibido,</p><p>pelo prazer totalmente ilícito que acaba de fazer seu.</p><p>Jorge de Sena</p><p>A MONTRA DA TABACARIA</p><p>Ao pé da iluminada montra da tabacaria,</p><p>no meio de outra gente, ambos estavam.</p><p>Por acaso aconteceu que os olhares se cruzaram,</p><p>e que o desejo carnal e proibido</p><p>foi com hesitante timidez expresso.</p><p>Deram, depois, inquietos passos, pela rua ㅡ</p><p>até trocarem ambos um ligeiro aceno.</p><p>E então, é claro, o carro fechado...</p><p>os corpos que se roçam e se encostam</p><p>mãos apertadas, colados lábios.</p><p>Joaquim Manuel Magalhães</p><p>AO PRAZER</p><p>Alegria e aroma da minha vida, a memória das horas</p><p>em que encontrei e segurei o prazer como o queria.</p><p>Alegria e aroma da minha vida para mim, pois abominei</p><p>qualquer deleite de amores de rotina.</p><p>MUITO ASSIM CONTEMPLEI</p><p>A beleza muito assim contemplei,</p><p>que plena dela está a vista minha.</p><p>Linhas do corpo. Lábios vermelhos. Membros hedónicos.</p><p>Cabelos como que de estátuas helénicas tomados;</p><p>sempre belos, mesmo que estejam por pentear,</p><p>e caem, um pouco, sobre as testas brancas.</p><p>Rostos do amor, como os desejava</p><p>a minha poesia… Nas noites da juventude minha,</p><p>nas minhas noites, às escondidas, encontrados...</p><p>PASSAGEM</p><p>As coisas que aluno assustado imaginou, estão escancaradas,</p><p>reveladas diante de si. E anda por aí, e faz noitadas,</p><p>e deixa-se arrastar. E pois é (para a nossa arte) conveniente,</p><p>o seu sangue, jovem e quente,</p><p>a volúpia deita-se com ele. Seu corpo baixa a cerviz</p><p>por embriaguez erótica sem lei; e os juvenis</p><p>membros a ela cedem.</p><p>membros a ela cedem. E um simples rapaz desta maneira</p><p>torna-se digno do nosso olhar, pela Altaneira</p><p>Esfera da Poesia também ele passa momentaneamente ㅡ</p><p>o estético rapaz com o seu sangue jovem e quente.</p><p>Manuel Resende</p><p>DIAS DE 1903</p><p>Não voltei a encontrá-los ㅡ perdidos tão depressa…</p><p>os poéticos olhos, o pálido</p><p>rosto… no escurecer da rua...</p><p>Não voltei a encontrá-los ㅡ possuí-os por total acaso,</p><p>e com tanta ligeireza os abandonei;</p><p>e logo com angústia desejei.</p><p>Os poéticos olhos, o pálido rosto,</p><p>esses lábios, não os encontrei.</p><p>Jorge de Sena</p><p>A MESA AO LADO</p><p>Não deve passar dos vinte e dois. Contudo,</p><p>quase tenho a certeza de que há uns vinte anos</p><p>este mesmo corpo foi que possuí.</p><p>Não é uma ilusão do meu desejo.</p><p>Entrei neste casino apenas há instantes,</p><p>não tive tempo de beber demais.</p><p>Foi este mesmo corpo que eu possuí.</p><p>Se não me lembra aonde ㅡ pouco importa.</p><p>Na mesa ao lado, agora, vem sentar-se:</p><p>ah reconheço os gestos dele ㅡ e sob a roupa</p><p>vejo-lhe nus os membros que eu amei.</p><p>PERCEPÇÃO</p><p>Anos da mocidade, anos devassos ㅡ</p><p>quão claro vejo o seu sentido agora.</p><p>Que inútil era, e vão, arrepender-me…</p><p>Nos anos dissolutos que gastei,</p><p>traçavam-se-me os rumos da poesia,</p><p>delimitavam-se os domínios dela.</p><p>Por isso, o arrepender-me era tão breve.</p><p>E as firmes intenções de honesta vida</p><p>duravam quinze dias, quando muito.</p><p>Joaquim Manuel Magalhães</p><p>EM BAIXO DA CASA</p><p>Ontem caminhando por um bairro</p><p>fora do centro, passei em baixo da casa</p><p>onde entrava quando era muito jovem.</p><p>Aí tinha-se apoderado do meu corpo Eros</p><p>com a sua força magnífica.</p><p>com a sua força magnífica. E ontem</p><p>quando passei pela antiga rua,</p><p>logo se embelezaram do encantamento erótico</p><p>as lojas, os passeios, as pedras,</p><p>e paredes, e varandas, e janelas;</p><p>nada aí ficou feio.</p><p>E enquanto estava, e olhava para a porta,</p><p>e estava, e me demorei em baixo da casa,</p><p>a minha substância inteira devolvia</p><p>a guardada emoção do prazer.</p><p>LEMBRA-TE, CORPO</p><p>Corpo, lembra-te não só do quanto foste amado,</p><p>não só das camas onde te deitaste,</p><p>mas também daqueles desejos que para ti</p><p>brilhavam nos olhos abertamente,</p><p>e tremiam na voz ㅡ e algum</p><p>obstáculo casual os frustrou.</p><p>Agora que tudo está no passado,</p><p>quase parece como se também àqueles</p><p>desejos tivesses sido dado ㅡ como brilhavam,</p><p>lembra-te, nos olhos que para ti olhavam;</p><p>como tremiam na voz, para ti, lembra-te, corpo.</p><p>Jorge de Sena</p><p>IMENOS</p><p>«Que mais amado seja</p><p>o prazer que se busca mórbido e se obtém corrupto,</p><p>raro se encontrando o corpo que vibre como se deseja ㅡ</p><p>prazer que por morbidez e corrupção provoca</p><p>uma tensão maior que o vulgar desconhece...»</p><p>Trecho de uma carta do</p><p>jovem Imenos (de família patrícia), notório</p><p>em Siracusa por seus vícios,</p><p>nos viciosos tempos de Miguel Terceiro.</p><p>Manuel Resende</p><p>VEIO FICAR</p><p>Seria uma hora da noite</p><p>ou uma e meia.</p><p>ou uma e meia. Num canto da taberna,</p><p>por trás de um tabique de madeira.</p><p>Para além de nós dois, estava o local deserto,</p><p>mal iluminado por uma lâmpada de petróleo.</p><p>Na porta dormitava o empregado cansado da vigília.</p><p>Não nos podia ver. Mas já</p><p>tanto nos tínhamos excitado,</p><p>que não éramos capazes de precaução.</p><p>As roupas entreabriram-se ㅡ não eram muitas,</p><p>já que ardia o divino mês de Julho.</p><p>Da carne o prazer por entre</p><p>a roupa entreaberta;</p><p>breve nudez da carne ㅡ cuja imagem</p><p>percorreu vinte e seis anos; e agora veio</p><p>ficar neste poema.</p><p>Jorge de Sena</p><p>A ORIGEM</p><p>Consumara-se o prazer ilícito.</p><p>Ergueram-se ambos do catre humilde.</p><p>À pressa se vestiram, sem falar.</p><p>Saíram separados, furtivamente;</p><p>e, ao caminhar inquietos pela rua,</p><p>como que receavam que algo neles traísse</p><p>em que espécie de amor há pouco se deitavam.</p><p>Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!</p><p>Amanhã, depois, anos depois, serão</p><p>escritos os versos de que é esta a origem.</p><p>Manuel de Resende</p><p>ARTÍFICE DE CRATERAS</p><p>Nesta cratera aqui de puríssima prata ㅡ</p><p>feita para adornar a casa de Heraclides,</p><p>na qual a elegância supremamente reina ㅡ</p><p>pus flores delicadas, riachos e tomilho;</p><p>no centro coloquei um formoso rapaz,</p><p>despido e amoroso; o qual dentro da água</p><p>descansa ainda o pé. ㅡ Memória, te implorei</p><p>que me desses ajuda para melhor formar,</p><p>tal como era, o rosto desse rapaz que amei.</p><p>Grande a dificuldade da minha tarefa pois</p><p>já quinze anos passaram desde o dia longínquo</p><p>em que caiu, soldado, na derrota de Magnésia.</p><p>Joaquim Manuel Magalhães</p><p>NUM LIVRO VELHO</p><p>Num livro velho ㅡ dez décadas quase completas ㅡ</p><p>por entre as suas folhas esquecida,</p><p>encontrei uma aguarela sem assinatura.</p><p>Devia ser a obra de artista assaz forte.</p><p>Levava por título, «Apresentação do Amor».</p><p>Mas antes lhe convinha, « ㅡ do amor dos ultra estetas».</p><p>Pois era evidente quando se via a obra</p><p>(com facilidade se sentia a ideia do artista)</p><p>que para quantos amam um tanto higienicamente,</p><p>mantendo-se dentro do permitido de todas as maneiras,</p><p>não era destinado o adolescente</p><p>da pintura ㅡ com olhos castanhos muito acentuados;</p><p>com a beleza selecta do seu rosto,</p><p>a beleza das atracções perversas;</p><p>com os seus lábios ideais que levam</p><p>o prazer a um corpo amado;</p><p>com os seus membros ideais para camas talhados</p><p>a que chama depravadas a moral corrente.</p><p>EM DESESPERO</p><p>De todo o perdeu. E agora diante</p><p>dos lábios de um seu qualquer novo amante</p><p>seus lábios demanda; na união de um qualquer</p><p>seu novo amante o engano demanda</p><p>de ser aquele rapaz, a quem ele se entrega.</p><p>De todo o perdeu, como se nem existisse.</p><p>Porque pretendia ㅡ ele lho disse ㅡ pretendia salvar-se</p><p>do estigmatizado, do mórbido prazer;</p><p>do estigmatizado, do infame prazer.</p><p>Ainda era tempo de ㅡ ele o disse ㅡ salvar-se.</p><p>De todo o perdeu, como se nem existisse.</p><p>Por imaginação, por alucinações</p><p>nos lábios doutros rapazes seus</p><p>lábios demanda;</p><p>procura saborear seu amor de novo.</p><p>Jorge de Sena</p><p>VIERA PARA LER</p><p>Viera para ler. E os livros, dois ou três,</p><p>de História e de Poesia, estão ali, abertos.</p><p>Não lera dez minutos quando</p><p>logo os largou. E agora no sofá</p><p>dormita. É dado inteiramente aos livros ㅡ</p><p>mas tem vinte e três anos, muito belo.</p><p>E hoje, esta tarde, penetrou o amor</p><p>nessa carne perfeita, nos seus lábios.</p><p>Na sua carne inteiramente bela,</p><p>a febre do desejo perpassou, sem que ele</p><p>por pudor recusasse um especial prazer.</p><p>Joaquim Manuel Magalhães</p><p>A FOTOGRAFIA</p><p>Ao olhar a fotografia de um companheiro seu,</p><p>o seu belo rosto juvenil</p><p>(agora já perdido; ㅡ tinha um dia</p><p>de noventa e dois a fotografia,)</p><p>sobreveio-lhe do efémero a melancolia;</p><p>mas reconforta-o que pelo menos</p><p>não deixou ㅡ não deixaram nenhuma vergonha pateta</p><p>o amor deles impedir ou desfear.</p><p>Aos «viciosos», «prostituídos», dos néscios</p><p>a sua estética do amor nunca ligou.</p><p>Jorge de Sena</p><p>NESSA ALDEIA MESQUINHA</p><p>Nessa aldeia mesquinha onde trabalha ㅡ</p><p>caixeiro de uma firma comercial,</p><p>e muito jovem ㅡ e onde tem de estar</p><p>pelo menos mais uns dois ou três meses,</p><p>ainda o tempo até que os negócios declinem</p><p>e ele possa ir à cidade para mergulhar</p><p>logo nas distracções e nos prazeres,</p><p>nessa mesquinha aldeia onde tem de estar ㅡ</p><p>caiu na cama à noite ébrio de cio,</p><p>a juventude a arder-lhe na excitada carne.</p><p>Numa tensão de amor a juventude inteira.</p><p>Quando dormia, o gozo veio. Em sonhos,</p><p>ele viu e possuiu a carne desejada.</p><p>Joaquim Manuel Magalhães</p><p>O 25.º ANO DA SUA VIDA</p><p>Vai à taberna regularmente</p><p>onde se tinham conhecido no mês passado.</p><p>Perguntou; mas não sabiam nada para lhe dizer.</p><p>Das suas palavras, percebeu que se começara a dar</p><p>com um indivíduo totalmente desconhecido;</p><p>uma das muitas figuras juvenis desconhecidas</p><p>e suspeitas que por ali passam.</p><p>Vai contudo à taberna regularmente, de noite,</p><p>e queda-se e olha para a entrada;</p><p>até à fadiga olha para a entrada.</p><p>Talvez possa entrar. Esta noite talvez possa chegar.</p><p>Perto de três semanas assim faz.</p><p>Adoeceu a sua mente de lascívia.</p><p>Na sua boca ficaram os beijos.</p><p>Enlouquece da ânsia incessante toda a sua carne.</p><p>Daquele corpo o tacto está sobre ele.</p><p>Quer a união com ele outra vez.</p><p>Para não se trair, percebe-se que faz o esforço.</p><p>Mas em momentos fica indiferente quase. ㅡ</p><p>Além disso, ao que se expõe sabe-o,</p><p>tomou essa decisão. Não é improvável que esta sua vida</p><p>em escândalo nefasto vá levá-lo.</p><p>REMORSO</p><p>Diz-lhe a este remorso que se modere,</p><p>é bom por certo, mas perigosamente parcial.</p><p>Não te inculpes e atormentes tanto com o passado.</p><p>Não dês tanta importância a ti próprio.</p><p>Menor foi o mal que fizeste</p><p>do que tu julgas; muito menor.</p><p>A virtude que te trouxe agora o remorso</p><p>também estava na altura latente em ti.</p><p>Eis que um acontecimento que de repente</p><p>à tua memória regressa explica</p><p>o motivo duma acção tua que te parecia</p><p>não louvável, mas agora se justifica.</p><p>Não confies totalmente na tua memória;</p><p>muitas coisas esqueceste ㅡ miudezas diversas ㅡ</p><p>que te justificavam bastante.</p><p>E não julgues que o ofendido</p><p>o conhecias tão bem. Havia de ter dons, que ignoravas;</p><p>talvez nem sequer fossem arranhões aquilo</p><p>que tu julgas (por ignorância da vida dele)</p><p>terem sido feridas terríveis causadas por ti.</p><p>Não confies na tua fraca memória.</p><p>Modera a memória que é sempre</p><p>até à falácia parcial contra ti.</p><p>Manuel Resende</p><p>NAS TABERNAS</p><p>No meio das tabernas no meio dos bordéis</p><p>de Beirute me perco. Não podia ficar</p><p>eu em Alexandria. Tamides me deixou;</p><p>com o filho do eparca se juntou pra gozar</p><p>de uma vila no Nilo, da mansão na cidade.</p><p>Não convinha ficar eu em Alexandria. ㅡ</p><p>No meio das tabernas no meio dos bordéis</p><p>de Beirute me perco. Na sordidez abjecta</p><p>eu vivo envilecido. Só me salva uma coisa,</p><p>beleza perdurável, perfume que na carne</p><p>se tivesse prendido: é que, por uns dois anos,</p><p>o Tamides foi meu, o rapaz mais excelso;</p><p>meu, não por uma vila, nem por uma mansão.</p><p>DIAS DE 1896</p><p>Degradou-se de todo. O seu pendor erótico,</p><p>fortemente banido e alvo de desprezo,</p><p>(ainda assim inato) fora disso a razão:</p><p>muito puritana era então a sociedade.</p><p>Aos poucos foi perdendo o seu pouco dinheiro;</p><p>depois a posição e a reputação.</p><p>Rondava os trinta anos sem, sequer por um ano,</p><p>ter um trabalho fixo, que se soubesse ao menos.</p><p>O dinheiro pròs gastos por vezes o ganhava</p><p>em mediações que eram tidas por vergonhosas.</p><p>Acabou por ser um tipo que quem o frequentava</p><p>era muito provável ficar comprometido.</p><p>Mas não era só isso. Não seria correcto.</p><p>Muito mais que isso tudo, vale a sua beleza.</p><p>E se o considerarmos de outro ponto de vista,</p><p>vemos um ser simpático; um simples, genuíno</p><p>filho do amor erótico, que por cima da honra</p><p>e da reputação pôs, sem vacilar,</p><p>o mais puro fruir da sua carne pura.</p><p>E da reputação? A sociedade, que era</p><p>puritana demais, tirava estultas ilações.</p><p>DOIS JOVENS DE 23 A 24 ANOS</p><p>Desde as dez e meia estava no café</p><p>esperando que logo aparecesse.</p><p>Chegou a meia-noite ㅡ e continuava a esperá-lo.</p><p>Deu a uma e meia; quase vazio</p><p>ficara já o café.</p><p>Cansou-se de ler maquinalmente</p><p>os jornais. Dos seus três xelins solitários</p><p>só lhe restava um: com tanta espera,</p><p>em café e conhaque outros dois já os gastara.</p><p>Fumara todos os cigarros.</p><p>Tâo larga espera o esgotou. Pois</p><p>além disso, como estivera só tantas horas,</p><p>apoderaram-se dele</p><p>importunos pensamentos de sua vida desviada.</p><p>Mas quando viu entrar o seu amigo ㅡ súbito,</p><p>o cansaço, a tristeza e os pensamentos se esfumaram.</p><p>O amigo trazia uma notícia inesperada.</p><p>Ganhara sessenta libras às cartas.</p><p>Os seus rostos formosos, a sua juventude maravilhosa,</p><p>o amor sensual que entre eles existia,</p><p>reviveram tonificados pelas refrescantes</p><p>sessenta libras das cartas.</p><p>Cheios de gozo e energia, sensualidade e beleza,</p><p>foram-se ㅡ não para as casas das honradas famílias</p><p>(onde, por certo, já ninguém os queria):</p><p>a uma que eles conheciam e muito especial,</p><p>a uma casa de vício se foram onde pediram</p><p>quarto para dormir, bebidas caras e de novo começaram a beber.</p><p>E quando as bebidas caras terminaram,</p><p>quando eram cerca das quatro,</p><p>ao amor felizes se entregaram.</p><p>DIAS DE 1901</p><p>Isto havia nele de excepcional:</p><p>no meio dessa sua vida dissoluta</p><p>e a sua muita experiência no amor,</p><p>apesar de todo o acordo habitual</p><p>entre a sua conduta e a sua idade,</p><p>ocorriam momentos ㅡ muito poucos,</p><p>é certo ㅡ em que dava a impressão</p><p>de uma carne quase intocada.</p><p>A beleza dos seus vinte e nove anos,</p><p>tão experimentada no prazer,</p><p>por estranho paradoxo, às vezes</p><p>lembrava um efebo ㅡ um pouco fruste ㅡ</p><p>que pela primeira vez ao amor</p><p>entregasse o seu corpo casto.</p><p>Joaquim Manuel Magalhães</p><p>UM JOVEM, DA ARTE DA PALAVRA ㅡ NO SEU 24.º ANO</p><p>Trabalha lá como puderes, mente. ㅡ</p><p>Desgasta-o a ele um deleite truncado.</p><p>Está numa circunstância enervante.</p><p>Beija o amado rosto todos os dias,</p><p>suas mãos estão sobre os mais excelsos membros.</p><p>Nunca amou com tamanha</p><p>paixão. Mas falta a bela realização</p><p>do amor; falta a realização</p><p>que deve por ambos ser com intensidade desejada.</p><p>(Não estão ambos de forma semelhante dados ao prazer anormal.</p><p>Somente dele absolutamente se apoderou.)</p><p>E desgasta-se, e enervou-se por completo.</p><p>Para além disso está desempregado; e isso contribui muito.</p><p>Algumas pequenas quantidades de dinheiro</p><p>com dificuldade pede emprestadas (quase</p><p>por esmola as pede algumas vezes) e sobrevive mal.</p><p>Beija os lábios adorados; sobre</p><p>o corpo excelso ㅡ que todavia sente agora</p><p>que mal aguenta ㅡ satisfaz-se.</p><p>E de seguida bebe e fuma; bebe e fuma;</p><p>e arrasta-se pelos cafés o dia inteiro,</p><p>arrasta com dissabor a sua beleza que murcha. ㅡ</p><p>Trabalha lá como puderes, mente.</p><p>IMAGEM DE UM JOVEM DE VINTE E TRÊS ANOS</p><p>FEITA POR AMIGO DA MESMA IDADE, AMADOR</p><p>Acabou a imagem ontem a meio do dia. Agora</p><p>em detalhe a vê. Fê-lo com roupa</p><p>cinzenta desabotoada, cinzento-escuro; sem</p><p>colete nem gravata. Com uma camisa</p><p>cor-de-rosa; desapertada, para ver-se também algo</p><p>da beleza do peito, do pescoço.</p><p>O lado direito da testa quase por inteiro</p><p>cobrem-no os seus cabelos, os seus cabelos belos</p><p>(segundo o penteado que prefere este ano).</p><p>Existe o tom inteiramente hedonista</p><p>que ele quis dar quando fazia os olhos,</p><p>quando fazia os lábios… A sua boca, os lábios</p><p>que são para satisfazer superior erotismo.</p><p>Manuel Resende</p><p>DIAS DE 1909, ‘10, E ‘11</p><p>Era filho de um velho, atormentado</p><p>e pobre marinheiro (de uma ilha do Egeu).</p><p>Trabalhava numa forja. Tinha a roupa gasta.</p><p>Roto seu mísero calçado de trabalho.</p><p>Sujas as suas mãos de ferrugem e óleo.</p><p>À tardinha, fechada a oficina,</p><p>se desejasse muito alguma coisa,</p><p>uma gravata um pouco cara,</p><p>uma gravata de domingo,</p><p>ou se tivesse visto numa montra</p><p>uma bela camisa malva desejada,</p><p>vendia o corpo por um ou dois táleres.</p><p>Pergunto se nos tempos antigos</p><p>teve a gloriosa Alexandria um jovem tão belo,</p><p>um rapaz mais perfeito que este ㅡ o qual se perdeu:</p><p>não se fez, claro está, a sua estátua nem o seu retrato;</p><p>perdido na velha oficina de uma forja,</p><p>breve se consumiu no trabalho esgotante</p><p>e o deboche barato e atormentado.</p><p>Joaquim Manuel Magalhães</p><p>BELAS FLORES BRANCAS COMO MUITO BEM IAM</p><p>Entrou no café onde juntos iam. ㅡ</p><p>Aqui o seu amigo disse-lhe há três meses;</p><p>«Não temos um tostão. Somos dois rapazes completamente</p><p>pobres ㅡ rebaixados aos locais baratos.</p><p>Digo-te abertamente, contigo não posso</p><p>andar. Um outro pede-me, a sabê-lo fica.»</p><p>O outro fizera-lhe a promessa de dois fatos e alguns</p><p>lenços de seda. ㅡ Para recuperá-lo</p><p>moveu céus e terra, e conseguiu vinte libras.</p><p>Voltou outra vez para ele pelas vinte libras;</p><p>mas também, além delas, pela amizade antiga,</p><p>pelo amor antigo, pela sua profunda intimidade. ㅡ</p><p>O «outro» era aldrabão, autêntico garoto;</p><p>um fato apenas lhe tinha feito, e</p><p>esse de má vontade, depois de mil súplicas.</p><p>Mas agora já não quer nem os fatos,</p><p>e nem por sombra os lenços de seda,</p><p>e nem vinte libras, e nem vinte piastras.</p><p>No domingo enterraram-no, às dez da manhã.</p><p>No domingo enterraram-no: há quase uma semana.</p><p>No seu pobre caixão pôs-lhe flores,</p><p>belas flores brancas como muito bem iam</p><p>com a sua beleza e os seus vinte e dois anos.</p><p>Quando ao fim do dia foi ㅡ apareceu um trabalho,</p><p>para ganhar o pão ㅡ ao café onde</p><p>juntos iam: uma faca no seu coração</p><p>o lúgubre café onde juntos iam.</p><p>PERGUNTAVA PELA QUALIDADE</p><p>Do escritório onde como empregado o aceitaram</p><p>para tarefa insignificante e mal remunerada</p><p>(até oito libras a sua mensalidade: extras incluídos)</p><p>saiu quando a seca do trabalho ficou concluída</p><p>em que esteve a tarde inteira debruçado:</p><p>saiu às sete horas, e caminhava indeciso</p><p>e olhava para se distrair pela rua. ㅡ Belo;</p><p>e interessante: por assim mostrar ter chegado</p><p>ao seu pleno rendimento sensual.</p><p>Vinte e nove, no mês passado tinha-os feito.</p><p>Olhava para se distrair pela rua, e nas pobres</p><p>travessas que conduziam à sua morada.</p><p>Ao passar diante de uma pequena loja</p><p>onde se vendiam umas coisas</p><p>falsas e baratas para operários,</p><p>viu lá dentro um rosto, viu uma figura</p><p>que o apelaram e entrou, e pedia</p><p>supostamente para ver lenços de cor.</p><p>Perguntava pela qualidade dos lenços</p><p>e quanto custam; em voz sufocada,</p><p>quase apagada pelo desejo.</p><p>E semelhantes vieram as respostas,</p><p>absortas, em voz abaixada,</p><p>com implícito consentimento.</p><p>Não deixavam de dizer qualquer coisa da mercadoria ㅡ mas</p><p>o objectivo único: tocarem-se as mãos</p><p>por cima dos lenços; aproximarem</p><p>os rostos, os lábios como por acaso;</p><p>os membros num instante contactarem.</p><p>Rapidamente e às escondidas, para não sentir</p><p>o dono da loja que no fundo sentado estava.</p><p>GRUPO DE QUATRO</p><p>O dinheiro ganham-no por certo não honestamente.</p><p>Mas inteligentes rapazes todos os quatro, o modo</p><p>encontram de escapar à polícia.</p><p>Para além da inteligência, são plenamente fortes.</p><p>Pois os dois tem unido o laço do prazer.</p><p>Os outros dois tem unido o laço do prazer.</p><p>Muito bem vestidos como convém a</p><p>rapazes tão bonitos; e teatro e bar,</p><p>e o seu carro, e por vezes uma viagem</p><p>não lhes falta nada.</p><p>O dinheiro ganham-no por certo não honestamente,</p><p>às vezes com medo de serem esfaqueados,</p><p>de serem presos. Mas que coisa o Amor</p><p>uma força tem que no seu dinheiro sujo</p><p>pega e torna-o brilhante, puro.</p><p>O dinheiro não o quer nenhum deles</p><p>como seu, por interesse; nenhum deles conta</p><p>avaramente, grosseiramente; não anota nunca</p><p>se um traz pouco e o outro mais.</p><p>O dinheiro deles comum o têm para</p><p>estarem bem vestidos, para terem para gastar,</p><p>para fazerem a sua vida de bom gosto, como convém</p><p>a rapazes tão bonitos para ajudarem os amigos,</p><p>e depois, seu sistema, o que deram esquecer.</p><p>Manuel Resende</p><p>DIAS DE 1908</p><p>Naquele ano, ficou desempregado;</p><p>ia vivendo com o dinheiro arranjado</p><p>com as cartas e o gamão, ou emprestado.</p><p>Um emprego, três libras ao mês, lhe ofereceram</p><p>numa pequena papelaria.</p><p>Mas recusou-o, sem qualquer hesitação.</p><p>Não dava. Isso não era salário pra ele,</p><p>rapaz bastante lido, vinte e cinco anos.</p><p>Uns dois ou três xelins ganhava ao dia, quando ganhava.</p><p>Com cartas e gamão que podia tirar o moço,</p><p>nos cafés aonde ia, cafés populares,</p><p>mesmo sendo ele esperto e escolhendo burros?</p><p>Quanto aos empréstimos ganhava o que ganhava.</p><p>Raramente sacava um táler, mais vezes meio,</p><p>de quando em vez, quedava-se por um xelim.</p><p>Durante uma semana ou mais por vezes,</p><p>se escapava às terríveis noites sem dormir,</p><p>ia ao mar refrescar-se com um banho matinal.</p><p>Sua roupa, uns trapos desgraçados.</p><p>Sempre vestia o mesmo fato, um fato</p><p>de cor canela muito descorada.</p><p>Ah, dias do Verão de mil novecentos e oito!</p><p>na vossa evocação, graciosamente,</p><p>falta o descolorido fato de canela.</p><p>A vossa evocação o preservou,</p><p>quando ele se despia e de si arrojava</p><p>a roupa indigna e a roupa interior remendada.</p><p>Pura beleza na nudez total: que maravilha.</p><p>Despenteados, os seus cabelos revoltos;</p><p>os seus membros um pouco bronzeados</p><p>na nudez matinal do banho, ali na praia.</p><p>) Alberta</p><p>( ABERTA</p><p>«Poesia grega clássica ㅡ 50 fragmentos», primeira ABERTA, setembro, 2018.</p><p>«Konstandinos Kavafis ㅡ 50 poemas», segunda ABERTA, outubro, 2018.</p>