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<p>Aula 2: Constitucionalização do Direito II</p><p>Introdução</p><p>O objetivo desta aula é estudar as mudanças hermenêuticas que informam o fenômeno da constitucionalização do direito, notadamente a questão do controle democrático intersubjetivo das decisões judiciais. Esse conteúdo perpassa pela análise da diferença entre os conceitos de “texto da norma” e “norma propriamente dita” na viragem do neoconstitucionalismo, para, finalmente, adentrar ao exame do significado hermenêutico do chamado “iceberg normativo de Friedrich Müller”.</p><p>Objetivos</p><p>Compreender o contexto normativo contemporâneo, no qual se destaca a necessidade do controle intersubjetivo das decisões judiciais, bem como a diferença entre os conceitos de “texto da norma” e “norma propriamente dita”. Por fim, deve-se entender o texto escrito como a parte visível da norma-resultado no plano concreto de significação.</p><p>Introdução</p><p>Como já se comentou na aula anterior, o contexto dogmático atual vive a invasão do direito pela ética, seja pela necessidade de legitimação democrática das decisões judiciais, seja pela necessidade de se atribuir força normativa aos princípios.</p><p>É nesse diapasão que exsurge a necessidade daquela imagem de que a Constituição é um sistema aberto de regras e princípios, imagem essa que é capaz de compatibilizar uma dogmática axiológica garantidora dos direitos fundamentais, com a necessária segurança jurídica de uma sociedade plural e democrática. Com efeito, é por intermédio da estrutura aberta dos princípios constitucionais que se alcança a proteção dos hipossuficientes e a valorização da dignidade da pessoa humana, da mesma forma que é a estrutura fechada das regras que imprime a certeza do ordenamento jurídico.</p><p>O novo quadro neoconstitucional</p><p>Hoje em dia, o objeto do direito neoconstitucional não é somente o texto escrito da norma posta pelo legislador democrático. Também é, principalmente, a norma interpretada pelo juiz/exegeta.</p><p>A invocação dos valores morais é hoje o traço jurídico que caracteriza a dogmática pós-positivista.</p><p>A nova metódica sustenta que o direito NÃO se limita à norma escrita, na qual predomina a racionalidade linguística do texto; é dizer que o direito atual não deixa de fora a retitude material dessa norma aferida a partir da incidência dos elementos fáticos e axiológicos advindos do caso concreto.</p><p>As diretrizes normativo-jurídicas do novo quadro neoconstitucional caminham na direção do engrandecimento dos paradigmas de racionalidade retórico-argumentativa, cujo ethos hermenêutico é construir a normatividade das decisões judiciais com base no grau de adesão da comunidade aberta de intérpretes da Constituição (Peter Häberle).</p><p>Os princípios são normas abstratas feitas pelo poder legislativo, mas que devem ser realizados, em maior parte, pelo juiz/intérprete.</p><p>Atenção!</p><p>Desse modo, postula-se a necessidade de um modelo articulado, não somente com a racionalidade literal ou linguística do texto da norma, mas, principalmente, com a racionalidade discursiva ou retórico-argumentativa, própria da fundamentação jurídica usada pelo exegeta no processo de interpretação constitucional.</p><p>Ou seja, as normas-decisão – situadas no âmbito da efetividade ou eficácia social – são as normas que resultaram do processo interpretativo com base na racionalidade retórico-argumentativa empregada pelo juiz/ intérprete.</p><p>Veja-se, nesse sentido, que, sob a égide do neoconstitucionalismo, a teoria hermenêutica da norma jurídica consolida a tese da não-identidade entre “texto da norma” e “norma propriamente dita”. Trata-se, pois, de uma construção teórica que parte dos elementos fáticos do caso decidendo, ou seja, dos fatos do mundo da vida, que portam juridicidade e que, por conseguinte, penetram no discurso axiológico-indutivo do direito (fatos portadores de juridicidade). É por tudo isso que a presente aula pretende abordar três grandes segmentações temáticas, a saber:</p><p>o controle democrático das decisões judiciais no plano concreto de significação;</p><p>a diferença entre “texto da norma” e “norma propriamente dita”;</p><p>o texto da norma como parte visível do iceberg normativo.</p><p>O paradigma positivista – do juiz soldado da lei – torna-se obsoleto</p><p>Como já amplamente examinado, é a partir da (re)fundamentação do pensamento jurídico, amparado no marco teórico do neoconstitucionalismo, que surge um novo mundo hermenêutico que antes os juízes positivistas não podiam ver.</p><p>Nesses termos, o pensamento originário positivista tinha a visão da árvore (norma escrita posta pelo legislador democrático) e não da floresta (valores constitucionais a serem protegidos).</p><p>Daí o motivo de a norma jurídica requerer sempre uma interpretação mecânica de subsunção silogística.</p><p>Ora, é sabido por todos que os princípios constitucionais são aplicados mediante uma dimensão de peso, tendo em vista os elementos fáticos e jurídicos do caso concreto.</p><p>Logo, o magistrado NÃO pode proferir sua decisão judicial final no plano concreto de significação por meio APENAS do procedimento lógico-formal, segundo um modelo clássico do silogismo axiomático-dedutivo.</p><p>Com efeito, o processo de interpretação do direito realizado pelo poder judiciário na vertente positivista segue a linha inflexível do juiz soldado da lei.</p><p>Isto significar dizer que o caminho hermenêutico percorrido pelo juiz positivista deve ser axiologicamente neutro, absoluto, completo e definitivo (visão autopoiética do direito).</p><p>Ou seja, a lógica positivista está presa ao vazio ético da norma escrita legislada, não absorvendo nenhum tipo de leitura axiológica do conteúdo dessa norma.</p><p>Atenção!</p><p>A missão do juiz positivista é atuar como um agente garantidor da ordem jurídica posta, NÃO lhe cabendo agir positivamente na transformação da sociedade.</p><p>Essa postura esperada para o juiz positivista é um reflexo da própria lógica positivista, isto é, da hegemonia exegética do texto da norma.</p><p>É por tudo isso que, a partir da segunda metade do século XX, o positivismo jurídico entra em declínio, despontando, em seu lugar, a concepção da escola pós-positivista do direito.</p><p>Com o propósito de solucionar os problemas constitucionais atuais não resolvidos pelo sistema anterior, que impunha um hiato entre a realidade ético-social e o direito, o novo paradigma neoconstitucional pós-positivista busca superar tais dificuldades.</p><p>Como exemplos irrespondíveis dessas dificuldades a serem superadas, vale destacar os problemas da bioética, do biodireito e da projeção constitucional dos direitos da personalidade.</p><p>São problemas constitucionais que o positivismo jurídico, orientado pela interpretação clássica, do geral para o particular (concepção dedutiva do direito), impondo ao juiz simplesmente aplicar a regra, e, na sua lacuna, os princípios gerais de direito, NÃO resolvem.</p><p>O embasamento do novo paradigma pós-positivista</p><p>Como bem destaca Lenio Luiz Streck:</p><p>Permaneço, destarte, fiel à tese assumida de há muito, de maneira a enfatizar e a reprimir com veemência – a começar pela nomenclatura – a possibilidade de o discricionário (repita-se, de aceitabilidade conceitual cogitável uma vez contextualizada a discricionariedade naqueles limites traçados por Castanheira Neves) revestir-se de arbitrário. Na hermenêutica aqui defendida, não há respostas/ interpretações (portanto, aplicações) antes da diferença ontológica ou, dizendo de outro modo, antes da manifestação do caso decidendo.</p><p>O novo paradigma pós-positivista e a discricionariedade das decisões judiciais</p><p>Assim, é certo afirmar que discricionariedade (com aceitabilidade social) não é arbitrariedade (com mero decisionismo judicial). Urge, pois, superar tal normativismo positivista, no qual predomina o solipsismo subjetivista do magistrado, que Lenio Streck denomina de “subjetividade assujeitadora de um sujeito que se considera ‘proprietário dos sentidos (abstratos) do direito’ e que nada ‘deixa’ para a faticidade”.</p><p>Pós-positivismo: dimensão retórico-argumentativa</p><p>É nesse sentido que o neoconstitucionalismo rejeita a operação exegética simples do esquema normativista kelseniano, na qual o legislador assume</p><p>a postura de “proprietário dos sentidos da norma posta” e que NADA “deixa” para a dimensão retórico-argumentativa das decisões judiciais na entrega da tutela jurisdicional do caso concreto.</p><p>O juiz soldado da lei deve dar lugar ao juiz constitucional no pós-positivismo</p><p>Portanto, opera-se a passagem do juiz conforme a lei do positivismo para o juiz conforme a Constituição do neoconstitucionalismo. Nas palavras de André Ramos Tavares:</p><p>A proposta remonta, preliminarmente, à distinção entre juiz conforme a lei e juiz da lei, ou seja, entre a postura clássica da função jurisdicional (juiz conforme a lei) e a postura desenvolvida, sobretudo, com o constitucionalismo e, com maior intensidade, pelo neoconstitucionalismo (juiz da lei, juiz conforme a Constituição).</p><p>Com rigor, observa-se o afastamento da aplicação mecânica do direito pelo juiz conforme a lei, ou seja, afasta-se a hegemonia exegética do texto da norma exercida por um juiz soldado da lei, preocupado com o cumprimento das leis em vigor e completamente desvinculado da retitude material da norma escrita.</p><p>No lugar do juiz conforme a lei – juiz soldado da lei – surge o juiz constitucional, ciente do seu papel dentro de uma sociedade plural, complexa e desigual, cuja atuação jurisdicional deve ficar subordinada, como já amplamente visto, à “consciência epistemológica de uma sociedade democraticamente pluralista”.</p><p>Isso significa dizer que a legitimidade democrática das decisões judiciais é função de um contexto intersubjetivo de fundamentação. Ou seja, a normatividade do direito não se atrela tão somente ao texto da norma no plano abstrato de significação, mas, também, ao grau de aceitabilidade da norma-decisão (norma interpretada) pelo auditório universal, tal qual concebido por Chaïm Perelman.</p><p>Então, destaca-se a importância da teoria da argumentação jurídica na aplicação do direito pelo juiz constitucional, isto é, no âmbito de sua atuação, não existem verdades apodíticas, axiomas irrefutáveis, mas, sim, opções razoáveis capazes de promover a adesão do auditório universal, conceito esse que deve, induvidosamente, coincidir com a omunidade aberta de intérpretes da Constituição de Peter Häberle.</p><p>Com rigor, não se pode negar que o convencimento do auditório universal de Perelman (agora percebido também como a sociedade aberta de intérpretes de Häberle) depende da fundamentação jurídica. Ou seja, quanto maior o grau de coerência das razões expostas pelo juiz constitucional, maior a racionalidade do discurso e, portanto, maior a aceitabilidade da decisão judicial (norma-decisão) pelo auditório universal e pela sociedade aberta de intérpretes da Constituição.</p><p>Tal fato legitima, sem nenhuma dúvida, a atuação do juiz constitucional, reduzindo o déficit democrático imputado ao poder judiciário.</p><p>A atuação do juiz constitucional</p><p>O núcleo central da nova dogmática encontra-se exatamente nesta contínua aprovação da comunidade aberta härbeleana de intérpretes da Constituição e do auditório universal perelmaniano, porque coloca em confronto direto valores constitucionais igualmente protegidos no seio da sociedade democrática.</p><p>Há, pois, nítida articulação entre razão e ação, entre ética e direito, entre norma e valor.</p><p>Valores constitucionais da sociedade democrática:</p><p>Atenção!</p><p>O espírito normativo-científico da nova dogmática constitucional deve afastar toda e qualquer atuação calcada no mero decisionismo judicial. Nesse diapasão, o aluno haverá de concordar que muito pior que o “positivismo desprovido de abertura axiológica” é o “decisionismo pós-positivista desprovido de cientificidade”.</p><p>Para saber mais sobre o pós-positivismo e a reconstrução neoconstitucionalista do direito:</p><p>A previsão de controle democrático sobre a atuação do juiz constitucional</p><p>Firme, portanto, a visão de uma nova postura do juiz constitucional que não pode se deixar seduzir pelo caminho fácil do ativismo judicial desproporcional, sem freios hermenêuticos e desvinculado do controle intersubjetivo da sociedade como um todo.</p><p>A Constituição configura um sistema normativo axiológico, cujas normas são mandamentos cogentes que devem ser obedecidos, seja pelo legislador democrático, seja pelo poder judiciário. É nesse sentido que surge, sim, a necessidade de controle democrático intersubjetivo da margem de discricionariedade de juízes e tribunais na concretização da Constituição.</p><p>Os reais destinatários das decisões judiciais</p><p>Note-se que a essência democrática da reconstrução neoconstitucionalista sempre será uma forma de controle que se move entre cidadãos diversos, cujo convencimento imprime legitimidade à dimensão retórico-argumentativa (dianoética) das decisões judiciais.</p><p>Com rigor, tais cidadãos são os destinatários das decisões judiciais (os elementos componentes, tanto da sociedade aberta de intérpretes da Constituição de Häberle quanto do auditório universal de Perelman) e estarão aptos a julgar a norma-decisão do magistrado, a partir da argumentação jurídica usada na escolha dos princípios constitucionais vencedores na solução do caso decidendo.</p><p>Notas</p><p>Cogentes</p><p>Forçosamente convincentes.</p><p>Dianoética</p><p>Referente ao pensamento discursivo.</p><p>Ethos</p><p>Conjunto dos hábitos e traços comportamentais característicos de um povo.</p><p>Exsurge</p><p>Levanta-se, ergue-se, recupera força.</p><p>Solipsismo</p><p>Doutrina segundo a qual o eu empírico é a única realidade.</p><p>A legitimação decorrente do controle democrático sobre o juiz constitucional</p><p>É bem de ver, pois, que a argumentação jurídica feita pelo juiz/ exegeta é o elemento nuclear do controle democrático das decisões judiciais porque permite que todos os intérpretes da Constituição, elementos componentes do auditório universal, avaliem a tese jurídica engendrada para a solução do caso concreto. Em síntese, é o convencimento deste círculo universal de que serve de base para a legitimação democrática da decisão final (norma-resultado no plano concreto de significação) do poder judiciário.</p><p>Em suma, as decisões feitas em nome do Estado-pacificador de lides resistidas devem observar os influxos de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, devendo, portanto, buscar sua nobreza hermenêutica no seio da comunidade aberta de intérpretes da Constituição (concepção de Peter Häberle) e do convencimento do auditório universal (construção de Chäim Perelman).</p><p>Atenção!</p><p>Uma vez compreendida a relevância do controle intersubjetivo democrático das decisões judiciais, importa agora investigar mais um dos elementos teóricos que informam o fenômeno da constitucionalização do direito e que é a diferenciação entre o texto do comando normativo e a norma propriamente dita.</p><p>O nevoeiro do direito</p><p>Em tempos de democracia pós-moderna, no seio de uma sociedade globalizada, complexa, plural, assimétrica e democrática, predomina induvidosamente um contexto jurídico dominado fog of wright (nevoeiro do direito).</p><p>Esta ideia de nevoeiro do direito simboliza a obscuridade normativa que se forma nas diferentes camadas de uma sociedade axiologicamente fragmentada e constituída de grande número de conflitos de diferentes matizes (políticos, sociais, econômicos, culturais, éticos, trabalhistas, religiosos, etc.).</p><p>Disso tudo, resulta reduzida possibilidade de grandes consensos, daí a relevância da compreensão do significado do constitucionalismo compromissório. Em outras palavras, tal nevoeiro ético-normativo é o símbolo de um constitucionalismo compromissório que tenta, a um só tempo, conciliar valores axiológicos da democracia liberal e da social democracia.</p><p>Os desdobramentos das contradições entre leis e princípios</p><p>Por certo, o intérprete da Constituição tem que conviver com antinomias aparentes que colocam, e.g., de um lado, a livre iniciativa, a livre concorrência e a propriedade (valores da democracia liberal), e, do outro, o direito do consumidor, a proteção dos hipossuficientes, a igualdade material e a função social da propriedade (valores da social democracia).</p><p>· a livre iniciativa;</p><p>· a livre concorrência;</p><p>· a propriedade.</p><p>· o direito do consumidor;</p><p>· a proteção dos hipossuficientes;</p><p>· a igualdade material;</p><p>· a função social da propriedade.</p><p>O norte dogmático das decisões judiciais</p><p>Assim, a ponderação de valores deve ser o norte dogmático das decisões judiciais, cujo alcance normativo deve ser compatível com o sentimento constitucional de justiça. A validade normativa da decisão judicial está associada aos valores éticos projetados como princípios constitucionais.</p><p>Nesse sentido, a solução jurídica possível somente será alcançada a partir do caso concreto, o que evidentemente afasta as teorias positivistas meramente procedurais. Portanto, é fundamental compreender que “texto da norma” e “norma propriamente dita” são entidades jurídicas distintas.</p><p>A diferenciação entre “texto da norma” e “norma propriamentedita”</p><p>De feito, o elemento decisivo para a compreensão da estrutura normativa pós-positivista das normas constitucionais é a visão da não-identidade entre norma e texto. O texto da norma é o enunciado positivo que corresponde ao processo democrático legislativo (plano abstrato de significação). Tal elemento não se confunde com o outro, o elemento de concretização resultante do processo de interpretação do referido enunciado normativo (plano concreto de significação).</p><p>Texto da norma</p><p>· enunciado positivo;</p><p>· relacionado ao processo democrático legislativo;</p><p>· plano abstrato de significação.</p><p>Norma propriamente dita</p><p>· elemento de concretização;</p><p>· resultado do processo de interpretação/ concretização do enunciado normativo;</p><p>· plano concreto de significação;</p><p>· norma-decisão (já interpretada).</p><p>Também é importante compreender a nova trilha da teoria hermenêutica da norma jurídica, na qual os termos “texto” e “norma” não são coincidentes.</p><p>A norma-decisão do juiz, na qualidade de última fase do ciclo hermenêutico, é a norma concretizada (propriamente dita); é a norma já devidamente interpretada, NÃO se confundindo com o seu texto.</p><p>Norma propriamente dita (norma-decisão)</p><p>Em outras palavras, a concretização de uma determinada norma constitucional dar-se-á sempre a partir de um caso concreto, cujos elementos fáticos incidirão sobre o texto de uma ou mais normas constitucionais escritas ou não, gerando de fato o direito a ser aplicado, vale dizer a norma propriamente dita. A construção dessa norma-decisão no plano concreto de significação exige uma escolha valorativa do juiz/ intérprete e que NÃO se confunde com a letra dos textos normativos no plano abstrato de significação.</p><p>Atenção!</p><p>É preciso entender que os artigos, parágrafos, incisos, alíneas, etc., da Constituição estão situados no plano preliminar de análise abstrata das normas (plano prima facie de significação na visão de Humberto Ávila).</p><p>As normas propriamente ditas (normas-decisões) estão localizadas no plano all things considered de significação na visão de Aleksander Peczenik. Em outras palavras, as normas-decisões levam em consideração todos os elementos fáticos do caso concreto. Daí seu posicionamento no plano all things considered de significação ( PECZENIK, 1989 ).</p><p>Nesse sentido, o pensamento de Humberto Ávila nos diz que:</p><p>é preciso distinguir o plano preliminar de análise abstrata das normas, comumente chamado de plano ‘prima facie’ de significação, do plano conclusivo de análise concreta das normas, comumente denominado ‘all things considered’ de significação ( ÁVILA, 2004 ).</p><p>Norma propriamente dita (norma-decisão)</p><p>Plano conclusivo (análise concreta) all things considered</p><p>Texto da norma</p><p>Plano preliminar (análise abstrata) prima facie</p><p>Enfim, é importante ressaltar que os conceitos de texto e norma são muito diferentes, embora a norma (norma-decisão do magistrado no plano concreto de significação) seja o seu texto (norma posta previamente pelo legislador democrático no plano abstrato de significação) após o devido processo interpretativo.</p><p>Norma propriamente dita:</p><p>Texto da norma</p><p>em determinado caso concreto (após o devido processo interpretativo)</p><p>Atenção!</p><p>Pode-se dizer também, em outras palavras, que os elementos fáticos e axiológicos do caso decidendo incidiram sobre o “texto da norma” gerando a “norma propriamente dita”, ou seja, essa última nada mais é do que a primeira aplicada num determinado caso concreto depois de um processo interpretativo de ponderação de valores.</p><p>Fácil, portanto, a compreensão da teoria hermenêutica da norma jurídica, que projeta a ideia-força de que as normas-resultados no plano concreto de significação são normas que resultaram da incidência dos fatos portadores de juridicidade do caso concreto específico sobre o texto das normas no plano abstrato de significação.</p><p>Note-se que as normas em abstrato, no plano prima facie de significação, são normas dotadas de racionalidade linguística impostas pelo legislador democrático, enquanto que as normas propriamente ditas, isto é, as normas-decisões, no plano all things considered de significação, são normas dotadas de racionalidade argumentativa impostas pelo intérprete/juiz após aplicar um determinado critério hermenêutico de ponderação de valores de mesma dignidade constitucional.</p><p>Isso significa dizer que, para ocorrer a transformação de texto em norma, é necessário um processo hermenêutico de interpretação-concretização, cuja função precípua é captar o sentido e o alcance dos textos escritos e, posteriormente, realizar a vontade constitucional no caso concreto.</p><p>Atenção!</p><p>Eis, então, o caminho da nova interpretação constitucional: transformar a racionalidade linguística e abstrata do texto escrito em racionalidade discursiva e axiológica da norma constitucional propriamente dita. Em outras palavras, levando em consideração os elementos externos da dimensão literal dos comandos constitucionais, o resultado final do processo de interpretação-concretização da Constituição transmuda-se em norma-decisão, cuja equação dogmática incorpora no seu bojo as variáveis fáticas e axiológicas específicas de cada caso concreto de per si.</p><p>Resultados da cisão entre “texto da norma” e “norma propriamente dita”</p><p>O texto constitucional é, induvidosamente, o ponto de partida das decisões judiciais, sua matéria-prima de extração cognitiva e axiológica, mas não é o resultado final do ato decisional da interpretação-concretização da Constituição. Como amplamente já examinado, a interpretação da Constituição não é cativa dos órgãos do poder judiciário, ao revés, seu círculo de intérpretes alcança toda a sociedade.</p><p>Portanto, partindo desta premissa hermenêutico-filosófica de Peter Häberle, é imperioso destacar que um dos grandes elementos exegéticos diferenciadores do novo paradigma é exatamente a “cisão entre texto da norma e norma” e cujos desdobramentos acabam por "blindar" a concretização das normas constitucionais contra o subjetivismo solipsista irracional da escola decisionista do direito.</p><p>Atenção!</p><p>Vale, então, investigar a construção teórica do iceberg normativo de Friedrich Müller, jurista alemão idealizador do método interpretativo chamado Metódica Estruturante do Direito, cuja linhagem científica parte da ideia-força de que o texto escrito da norma é apenas a parte descoberta do grande iceberg normativo, cuja parte oculta esconde o seu verdadeiro programa normativo, vale dizer, o amplo quadro de possibilidades/ alternativas hermenêuticas possíveis de serem extraídas da letra da lei.</p><p>O texto da norma como a parte visível do iceberg normativo</p><p>Como já amplamente visto na segmentação temática anterior, a norma-decisão é a norma-resultado, é a norma final representativa da prestação jurisdicional. É a decisão final do juiz/intérprete e resultado da compilação de todos os elementos envolvidos na solução do caso decidendo, semânticos e extrassemânticos, jurídicos e extrajurídicos.</p><p>A necessidade da interpretação</p><p>Consequentemente, a interpretação sempre será necessária para a fixação da norma-resultado. Calha, nesse sentido, a visão de Jane Reis Gonçalves Pereira:</p><p>Contra esta noção [a ideia de que só se efetiva a interpretação quando há dúvida sobre o significado��do texto] é comum objetar-se que a interpretação é sempre necessária, pois só é possível determinar a clareza ou obscuridade de um texto após</p><p>interpretá-lo. Mas, ao que parece, a dicotomia interpretação noética/dianoética (ou compreensão/interpretação) tornaria a referida divergência apenas semântica ( PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, 2005 ).</p><p>A formação da norma-decisão</p><p>Assim sendo, a ideia de norma-decisão é aqui desenvolvida dentro daquela imagem da obra de Wittgenstein II, do jogo de linguagem se transformando em jogo de interpretação, imagem essa que serve também como substrato jusfilosófico para o já citado jogo concertado dos princípios, instrumento fundamental da hermenêutica constitucional contemporânea.</p><p>Não resta dúvida que já se consolidou na melhor doutrina o entendimento de que a norma-decisão do juiz é a última fase do ciclo hermenêutico, que começa com a incidência dos fatos reais do caso concreto sobre a norma-dado (norma preexistente no ordenamento jurídico) e acaba com a norma-produto (norma-resultado) vinda de um processo de interpretação pautado nos paradigmas de racionalidade discursiva, dianoética.</p><p>No entanto, é importante frisar bem que a norma-decisão NÃO é um ato volitivo do magistrado, mas, SIM, o resultado da incidência dos elementos fáticos da realidade sobre o ordenamento jurídico positivado pelo legislador democrático.</p><p>São os fatos do mundo real (dimensão hermenêutica da faticidade) que, juntamente com os preceitos normativos abstratos da ordem jurídica, gestarão a norma-decisão; a norma propriamente dita no plano concreto de significação.</p><p>Nas palavras de Lenio Streck, tem-se que:</p><p>Por isso é que se chama de hermenêutica da faticidade [hermenêutica filosófica gadameriana]. E por isso também que se pode dizer que os princípios não proporcionam abertura na interpretação, com o que até positivistas como Ferrajoli concordam. O ovo da serpente do irracionalismo, da discricionariedade e do decisionismo está em Kelsen e Hart, cada um ao seu modo. E para quem até hoje acredita que a interpretação é um ato de vontade, basta que se acrescente a esse "ato de vontade" a expressão "de poder" e estaremos de volta ao último princípio epocal da modernidade: a “Wille zur Macht”, a vontade do poder de Nietzsche, que sustenta as diversas formas de pragmatismo no direito, além de concepções realistas como as dos “Critical Legal Studies”.</p><p>É certo, pois, afirmar que a interpretação/concretização NÃO é um ato de vontade, NÃO é um ato de poder que se atrela à pré-compreensão do magistrado.</p><p>Ao contrário, a interpretação (concretização) da Constituição alcança a todos, não só os participantes do processo jurídico-decisional.</p><p>Concretizar a Constituição é também construir a norma-decisão a partir da letra da lei, e, principalmente, realizar o sentimento constitucional de justiça.</p><p>Trata-se, pois, de hermenêutica avançada que tem por base o corte epistemológico provocado pela revolução linguístico-ontológica em Heidegger, Gadamer, Wittgenstein e outros.</p><p>Atenção!</p><p>Com rigor, o que pretende-se reafirmar é a mudança de paradigma da interpretação constitucional, que se afasta da racionalidade linguística do texto escrito para se aproximar da racionalidade retórico-argumentativa da norma interpretada/ concretizada, simbolizando verdadeiramente o “giro epistemológico” no âmbito das investigações metodológicas pós-positivas, provocado por sua vez pelo giro pragmático da Filosofia da linguagem, especialmente após a obra de Wittgenstein II.</p><p>A norma propriamente dita resulta da melhor tese jurídica a defender (empregando a racionalidade retórico-argumentativa) e lembrando ainda que a mesma estará submetida ao controle democrático intersubjetivo da sociedade aberta de intérpretes da Constituição. Esse é induvidosamente um dos imperativos do Estado Democrático de Direito, sem o qual se desqualifica a ideia de constitucionalismo como elemento limitador do poder do Estado.</p><p>Isso significa dizer, por outras palavras, que a normatividade que se manifesta nas decisões judiciais não está baseada literalmente apenas no texto da norma, ao revés, a normatividade da decisão a ser elaborada alcança a doutrina, a jurisprudência, estudos monográficos, obras e legislação de Direito Comparado; enfim, a normatividade do direito abarca numerosos textos jurídicos que transcendem o teor literal da norma legislada.</p><p>É nesse sentido que se afirma que a normatividade das normas constitucionais está diretamente vinculada às alterações que provoca no mundo da vida (efetividade ou eficácia social de Luís Roberto Barroso). Daí a relevância dos elementos fáticos do caso concreto (fatos portadores de juridicidade), que, juntamente, com o textos dessas normas, realizarão a vontade constitucional.</p><p>Atividade proposta</p><p>Discorra sobre o significado da expressão “a letra da norma é apenas a parte visível do iceberg normativo”.</p><p>Gabarito comentado:</p><p>Conforme o autor Canotilho, “o texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo (F. Müller), correspondendo em geral ao programa normativo (ordem ou comando jurídico na doutrina tradicional); (...) mas a norma não compreende apenas o texto, antes abrange um 'domínio normativo', isto é, um 'pedaço de realidade social' que o programa normativo só parcialmente contempla”.</p><p>A dimensão da distância entre “norma” e “texto da norma”</p><p>fraqueza da teoria kelseniana</p><p>(identidade entre “norma” e “texto da norma”)</p><p>No entanto, frise-se bem que, muito embora o texto da norma NÃO contenha a normatividade em sua inteireza, o fato é que atua como elemento delimitador das possibilidades de concretização/ interpretação da Constituição.</p><p>Portanto, o reconhecimento de que há uma diferença entre o texto jurídico e a norma extraída desse texto NÃO implica dizer que a cisão entre eles seja total. Parte da doutrina destaca que a fraqueza da teoria kelseniana vem exatamente da identidade entre “norma” e “texto da norma”.</p><p>No dizer de David Diniz Dantas:</p><p>Na construção kelseniana, Müller sustenta que a interpretação se torna operação meramente “volitiva”, visto que o aplicador é o “senhor” tanto do texto da regra a aplicar (premissa maior do silogismo) quanto da qualificação dos fatos (premissa menor). Assim, o “normativismo” kelseniano acabaria em puro “decisionismo”. A fraqueza da teoria kelseniana da interpretação seria causada pela identificação feita pela teoria pura entre “norma” e “texto da norma”. Haveria desconexão entre a realidade e a norma a aplicar. Esse isolamento – fruto da severa separação entre Sein e Sollen – levaria à indeterminação do significado do texto, uma vez que esse restaria isolado dos elementos da realidade que lhe poderiam conferir sentido. Assim, para Müller, a teoria pura do Direito resulta em uma teoria vazia de interpretação.</p><p>Atenção!</p><p>É por esse motivo exposto na citação de David Diniz Dantas que a metódica jurídica normativo-estruturante de Müller propõe uma abordagem diferente daquela feita por Kelsen, pois parte de uma teoria estruturante calcada na relação “norma-realidade”. Ser e dever ser são considerados como faces de uma mesma moeda. Consequentemente, para a teoria da norma jurídica de Friedrich Müller, o texto de um preceito jurídico positivo corresponde a um pedaço da realidade social.</p><p>Como bem destaca Canotilho, ao comentar a metódica normativo-estruturante de Müller:</p><p>“(...) elemento decisivo para a compreensão da estrutura normativa é uma teoria hermenêutica da norma jurídica que arranca da não identidade entre norma e texto normativo; (...) o texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo (F. Müller), correspondendo em geral ao programa normativo (ordem ou comando jurídico na doutrina tradicional); (...) mas a norma não compreende apenas o texto, antes abrange um 'domínio normativo', isto é, um 'pedaço de realidade social' que o programa normativo só parcialmente contempla; (...) consequentemente, a concretização normativa deve considerar e trabalhar com dois tipos de elementos de concretização: um formado pelos elementos resultantes da interpretação do texto da norma (= elemento literal da doutrina clássica); outro, o elemento de concretização</p><p>resultante da investigação do referente normativo (domínio ou região normativa)."</p><p>Para Müller, a assimilação da norma à sua configuração linguística leva os intérpretes positivistas a considerar os elementos externos aos textos da norma como metajurídicos, desprezando-os, assim, na formulação da solução dos casos concretos. O momento culminante da concretização constitucional traduz-se na individualização dessa norma jurídica abstrata em uma “norma-decisão” (dispositivo da sentença).</p><p>Nesse sentido, entendemos com Lenio Streck, que o texto não “carrega”, de forma retificada, o seu sentido (a sua norma). Trata-se de entender que entre texto e norma não há uma equivalência e tampouco uma total autonomização (cisão). Correta a crítica feita ao positivismo jurídico com relação ao caráter volitivo das decisões judiciais.</p><p>Lenio Streck alerta, com acuidade científica, que:</p><p>Entender que não são a mesma coisa texto e norma não é suficiente para suplantar a relação sujeito-objeto e tampouco para superar a (dogmática e metafísica) equiparação entre texto e norma, ainda predominante no sentido comum teórico dos juristas.</p><p>Por sua vez, Luís Roberto Barroso mostra que “para muitos, não se pode sequer falar da existência de norma antes que se dê a sua interpretação com os fatos, tal como pronunciada por um intérprete”.</p><p>Em conclusão, é lícito afirmar que a operação de transmutação da “norma em abstrato” para “norma-decisão” reclama do juiz constitucional uma estratégia de interpretação pós-positivista, cuja dinâmica leva em consideração os elementos fáticos do caso concreto (fatos portadores de juridicidade) e a pauta de valores axiológicos da Constituição-texto. Em sentido metafórico, diríamos que a letra da Constituição é a trilha, mas, nunca o trilho do processo de tomada de decisões do juiz/ exegeta constitucional.</p><p>De feito, como bem salienta a figura hermenêutica de Friedrich Müller, o texto constitucional é apenas aquela pequena parte visível de um imenso iceberg normativo, cabendo ao juiz constitucional descobrir sua parte oculta – a maior delas – fazendo uso das hodiernas estratégias hermenêuticas postas à disposição pela reconstrução neoconstitucionalista do direito.</p><p>Aprenda mais</p><p>Para saber mais sobre o tema abordado na última tela, você pode buscar pela bibliografia do autor citado, Lenio Streck:</p><p>STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas.</p><p>Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed., rev, atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 422.</p><p>Nas palavras do autor Lenio Streck, verbis: “Se se quiser, poder-se-á dizer que a discricionariedade que combato – e nesse sentido me aproximo da posição de C. Neves – é aquela decorrente do esquema sujeito-objeto, da consciência de si do pensamento pensante, enfim, da subjetividade assujeitadora de um sujeito que se considera ‘proprietário dos sentidos (abstratos) do direito ‘e que nada ‘deixa‘ para a faticidade”.</p><p>PÚBLICA</p><p>image2.jpeg</p><p>image3.jpeg</p><p>image4.jpeg</p><p>image5.jpeg</p><p>image6.jpeg</p><p>image1.jpeg</p>

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