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volume 1 ATO DE CORAGEM - eBook

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Iara Sousa

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<p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>Ivanio Dickmann</p><p>[Organizador]</p><p>NOTA: Dado o caráter interdisciplinar desta coletânea, os textos publicados respeitam as normas e</p><p>técnicas bibliográficas utilizadas por cada autor. A responsabilidade pelo conteúdo dos textos desta</p><p>obra é dos respectivos autores e autoras, não significando a concordância dos organizadores e da ins-</p><p>tituição com as ideias publicadas.</p><p>© TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio</p><p>ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográ-</p><p>ficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão</p><p>de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições apli-</p><p>cam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos é punível</p><p>como crime (art.184 e parágrafos do Código Penal), com pena de prisão e multa, busca e apreensão e</p><p>indenizações diversas (art. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).</p><p>Ivanio Dickmann</p><p>[Organizador]</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>Volume I</p><p>Diálogo Freiriano</p><p>Veranópolis - RS</p><p>2020</p><p>CONSELHO EDITORIAL</p><p>Ivanio Dickmann - Brasil</p><p>Aline Mendonça dos Santos - Brasil</p><p>Fausto Franco Martinez - Espanha</p><p>Jorge Alejandro Santos - Argentina</p><p>Martinho Condini - Brasil</p><p>Miguel Escobar Guerrero - México</p><p>Carla Luciane Blum Vestena - Brasil</p><p>Ivo Dickmann - Brasil</p><p>José Eustáquio Romão - Brasil</p><p>Enise Barth - Brasil</p><p>EXPEDIENTE</p><p>Editor Chefe: Ivanio Dickmann</p><p>Financeiro: Maria Aparecida Nilen</p><p>Diagramação: Renan Fischer</p><p>FICHA CATALOGRÁFICA</p><p>Ficha catalográfica elaborada por Karina Ramos – CRB 14/1056</p><p>EDITORA DIÁLOGO FREIRIANO</p><p>[CNPJ 20.173.422/0001-76]</p><p>Av. Osvaldo Aranha, 610 - Sala 10 - Centro</p><p>CEP 95.330-000 - Veranópolis - RS</p><p>dialogar.contato@gmail.com</p><p>www.dialogofreiriano.com.br</p><p>Whatsapp: [54] 98447.1280</p><p>E244 Educar é um ato de coragem 1 / Ivanio Dickmann (organizador). 1.ed. – Veranópolis:</p><p>Diálogo Freiriano, 2020. (v. 1)</p><p>ISBN 978-65-87199-31-3</p><p>1. Educação. I. Dickmann, Ivanio. II. Serie.</p><p>370.1 (Edição 23)</p><p>SUMÁRIO</p><p>OS PILARES DA EDUCAÇÃO LIBERTADORA: CORAGEM, AMOR E</p><p>DIÁLOGO!</p><p>Ivanio Dickmann .................................................................................................................................. 9</p><p>VERDADE, CORAGEM E EDUCAÇÃO POLÍTICA</p><p>Afrânio Tenório da Silva .................................................................................................................... 11</p><p>SALA DE AULA INVERTIDA COMO FACILITADOR PARA RESOLUÇÃO</p><p>DE PROBLEMAS NO ENSINO DE MATEMÁTICA</p><p>Aldair Martins do Nascimento ......................................................................................................... 29</p><p>ENSAIO: DA INCLUSÃO DIGITAL À INCLUSÃO SOCIAL - A</p><p>IMPORTÂNCIA DAS TIC PARA UMA EDUCAÇÃO INCLUSIVA</p><p>Aldenei Moura Barros, Maria João Gomes, Anabela Cruz Santos................................................. 43</p><p>TRABALHO DE CONSCIÊNCIA NEGRA DA ESCOLA ESTADUAL MONTE</p><p>SINAI – A FORMAÇÃO IDENTITÁRIA E O EMPODERAMENTO DOS</p><p>ESTUDANTES POR MEIO DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS AFRO-</p><p>AFIRMATIVAS</p><p>Alessandra Assis de Oliveira Soares ................................................................................................. 53</p><p>CINEMA E ENSINO DE HISTÓRIA: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO</p><p>FILME “A MISSÃO”</p><p>Alexandre dos Santos, Maria Regina Johann ................................................................................... 67</p><p>PERSONALIZAÇÃO DO ENSINO NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO</p><p>Ana Carolina Rosendo G. C. Baptista ............................................................................................... 85</p><p>PEDAGOGIA SOCIAL E OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA:</p><p>REFLEXÕES FREIREANAS</p><p>André Luiz Rodrigues, Juliana Santos Graciani ............................................................................. 97</p><p>O TRADUTOR E INTÉRPRETE DE LÍNGUA DE SINAIS NA SALA DE</p><p>AULA: DISCURSOS POSTOS E AS REPRESENTAÇÕES VELADAS</p><p>Andréa da Silva Rosa ........................................................................................................................ 115</p><p>O BANDEIRANTE NOS CURRÍCULOS ESCOLARES: UMA</p><p>CONSTRUÇÃO POLÍTICA E HISTÓRICA</p><p>Andressa da Silva Gonçalves ........................................................................................................... 127</p><p>COMPETÊNCIAS DIGITAIS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRIBUIÇÕES</p><p>DA NEUROPSICOPEDAGOGIA EM CONTEXTOS DE</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>6</p><p>VULNERABILIDADE SOCIAL</p><p>Artur Pires de Camargos Júnior...................................................................................................... 149</p><p>UMA PERSPECTIVA PARTICIPATIVA E DEMOCRÁTICA DO FAZER</p><p>EDUCACIONAL</p><p>Benedito Antônio Nonato Pinheiro ................................................................................................. 165</p><p>UM ESTUDO SOBRE AS CONSTRIBUIÇÕES DA INTERAÇÃO DAS</p><p>DIMENSÕES DA GESTÃO ESCOLAR AO PROCESSO DE ENSINO-</p><p>APRENDIZAGEM</p><p>Caetano Roberto Sousa de Freitas .................................................................................................. 185</p><p>FORMAÇÃO DOCENTE NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO DIALÓGICA</p><p>FREIREANA: REFLEXÕES SOBRE O ENSINO E A APRENDIZAGEM DA</p><p>DIDÁTICA</p><p>Camilla Rocha da Silva.................................................................................................................... 199</p><p>EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS EM RELATOS DE EXPERIÊNCIAS A</p><p>PARTIR DOS SUJEITOS QUE FAZEM ESSA MODALIDADE: DESAFIOS E</p><p>PERSPECTIVAS</p><p>Carlos Roberto de Sousa, Robson Monteiro Barroso Braga .......................................................... 211</p><p>A ESCOLA ENQUANTO ESPAÇO DE LUTAS SOCIAIS ATRAVÉS DAS</p><p>AÇÕES PEDAGÓGICAS</p><p>Cícera Maria Mamede Santos, Francione Charapa Alves, Lídia Karla Rodrigues Araújo, Maria</p><p>Socorro Lucena Lima ....................................................................................................................... 221</p><p>A PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR NA PEDAGOGIA FREIRIANA</p><p>Clenio Vianei Mazzonetto, Patrícia Signor.................................................................................... 241</p><p>CURRÍCULO, GEOGRAFIA E CIDADANIA TERRITORIAL NO ENSINO</p><p>FUNDAMENTAL NA BAIXADA FLUMINENSE</p><p>Clézio dos Santos .............................................................................................................................. 251</p><p>A IMPORTÂNCIA DA TECNOLOGIA ASSISTIVA NAS ESCOLAS</p><p>PÚBLICAS DE ZONA RURAL</p><p>Creice de Moura do Nascimento, Dioenison Ferreira Maciel ....................................................... 275</p><p>A RELEVÂNCIA DA AVALIAÇÃO DENTRO DO CONTEXTO ESCOLAR:</p><p>UMA ANÁLISE NO CAMPO DA EDUCAÇÃO</p><p>Denise da Costa Dias Scheffer, Dieison Prestes da Silveira, Etyane Goulart Soares, Thalia Nunes</p><p>Ferreira Feistler ...............................................................................................................................283</p><p>EXPERIÊNCIAS E LEGISLAÇÃO PARA O TEMPO INTEGRAL ESCOLAR</p><p>NO BRASIL</p><p>Diego dos Santos Verri ................................................................................................................... 295</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>7</p><p>A IMPORTÂNCIA DA GESTÃO ESCOLAR NO PROCESSO DE INCLUSÃO</p><p>DE ALUNOS COM NECESSSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS</p><p>Dioenison Ferreira Maciel, Maria Sueli Lima dos Santos ............................................................ 315</p><p>FILOSOFIA EDUCACIONAL ADVENTISTA APLICADA</p><p>Eduardo Cavalcante Oliveira Santos ............................................................................................. 325</p><p>PARA ALÉM DO ATO DE CORAGEM: SABERES MATEMÁTICOS</p><p>MOBILIZADOS EM PRÁTICAS DE AUXÍLIO NO ENSINO REMOTO POR</p><p>com o aumento dos quadros da pequena burguesia urbana.</p><p>(ARANHA, 2006, p. 231)</p><p>É inegável que todos esses acontecimentos descritos por Aranha (2006)</p><p>desencadearam mudanças também na educação. Agora a sociedade brasileira pos-</p><p>suía uma aristocracia que necessitava de instituições educacionais, no entanto,</p><p>pode-se notar o cerne da desigualdade social tão presente no Brasil até os dias a-</p><p>tuais. A constituição de 1824 preconizava a gratuidade da instrução primária para</p><p>todos os brasileiros e em 1827 foi criada a primeira lei de instrução pública nacio-</p><p>nal no Império, de acordo com esta lei, deveria existir uma escola em cada vila,</p><p>cidade e locais populosos. A lei estabelecia escolas separadas para meninos e me-</p><p>ninas além de estabelecer os conteúdos que deveriam ser ensinados, Gomes (2012)</p><p>esclarece que:</p><p>No ensino das primeiras letras, a Matemática estava presente: “primeiras letras”</p><p>significavam, afinal, “ler, escrever e contar”. É interessante notar que a lei de ou-</p><p>tubro de 1827 diferenciava a educação para meninos e meninas, prevendo escolas</p><p>separadas para os dois sexos. O currículo para as escolas de meninos envolvia</p><p>“ler, escrever, as quatro operações aritméticas, prática de quebrados, decimais e</p><p>proporções, noções gerais de geometria, gramática da língua nacional, moral</p><p>cristã e doutrina católica”. As escolas para meninas existiriam nas localidades</p><p>mais populosas, seriam dirigidas por professoras e em seu currículo eliminava-</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>33</p><p>se a geometria e a prática de quebrados, incluindo-se o ensino de práticas im-</p><p>portantes para a economia doméstica. (GOMES, 2012, p. 16)</p><p>Estas instituições escolares praticavam uma estratificação de gênero fun-</p><p>damental que envolvia o ensino de matemática: ela seria destinada apenas para os</p><p>meninos. Tal ideia é justificável pelo momento histórico que limitava a ação social</p><p>das mulheres, o espaço feminino era relacionado ao casamento e ao cuidado com</p><p>os filhos, neste contexto seria “desnecessário” ensinar matemática para as meni-</p><p>nas. Seria mais coerente ensinar-lhes economia doméstica pois eram o contexto</p><p>social destinado para as mulheres. Contudo esta lei é importante, pois coloca a</p><p>educação como um direito social embora neste momento não fosse possível cons-</p><p>tituir um sistema de educação nacionalque chegasse a todos. Umoutro aspecto</p><p>importante que se deve ter em mente é que os índios e escravos negros não estavam</p><p>contemplados nesta lei como um público alvo dessa educação, Gomes (2012) de-</p><p>fende que:</p><p>No que concerne ao ensino secundário, no início do século XIX, os colégios, li-</p><p>ceus, ginásios, ateneus, cursos preparatórios anexos às faculdades e seminários</p><p>religiosos tinham como objetivo a preparação dos estudantes para os exames de</p><p>acesso às academias militares e poucas escolas superiores existentes no país. A</p><p>partir da metade do século, cresceu o número de colégios particulares em quase</p><p>todas as províncias, que também passaram a oferecer ensino público no nível</p><p>secundário. O currículo não era uniforme, mas as disciplinas priorizadas eram o</p><p>latim, o grego, a retórica, a poética, a filosofia e as línguas modernas. No Rio de</p><p>Janeiro, o Município da Corte, em 1837, o ministro Bernardo Pereira de Vascon-</p><p>celos, inspirado na organização dos colégios franceses, criou o Imperial Colégio</p><p>de Pedro II, concebido para funcionar como internato e externato. O Colégio</p><p>dava o grau de bacharel em letras aos alunos aprovados em todas as disciplinas</p><p>durante os sete anos do curso e os alunos concluintes eram dispensados dos e-</p><p>xames de ingresso aos cursos superiores. (GOMES, 2012, p. 20)</p><p>Devemos notar que o público desse ensino era bem específico, destinado à</p><p>elite econômica masculina do país, que deveria ser preparada para ocupar cargos</p><p>político-administrativos e/ou para ingressar em cursos superiores, nas poucas uni-</p><p>versidades que existia no Brasil. Também era comum os filhos do sexo masculino da</p><p>elite irem até Portugal para fazerem cursos universitário. A educação das mulheres</p><p>da classe privilegiadas consistia de uma educação para o lar, geralmente ensinavam</p><p>a ler, aprendiam a tocar piano e falar francês e outras prendas femininas. Estas mu-</p><p>lheres sabiam pouco ou quase nada de matemática, neste momento histórico nacio-</p><p>nal os conhecimentos matemáticos não faziam parte do universo feminino.</p><p>1.2 O Ensino de Matemática no Brasil República (a partir de 1889)</p><p>De acordo com Romanelli (2001) no período da proclamação da república</p><p>a taxa de analfabetismo da população brasileira era de cerca de 85%. Tal ambiente</p><p>representava um desafio para o primeiro ministro titular do Ministério da Instru-</p><p>ção, Correios e Telégrafos, Benjamin que deveria promover uma reforma no</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>34</p><p>sentido de modernizar o sistema de ensino na então capital brasileira, Rio de Ja-</p><p>neiro. E foi o que ele fez por meio do Decreto 981 que institui a instrução pública</p><p>de nível primário e secundário no Distrito Federal. Sobre esta lei Gomes (2012)</p><p>apresenta:</p><p>A lei buscava romper com a tradição humanista e literária do ensino secundário</p><p>pela adoção de um currículo que privilegiava as disciplinas científicas e mate-</p><p>máticas. A Matemática era tida como a mais importante das ciências no ideário</p><p>positivista do filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), ao qual aderiram Ben-</p><p>jamin Constant e o grupo de militares brasileiros que liderou a proclamação da</p><p>República. Assim, essa disciplina adquire grande relevância na proposta da Re-</p><p>forma Benjamim Constant, particularmente nos sete anos que compunham a e-</p><p>ducação secundária. (GOMES, 2012, p. 17)</p><p>Este foi um momento de profundas transformações no ensino brasileiro,</p><p>pois foi aqui que se construiu as bases do sistema educacional, que vigora com</p><p>algumas modificações até hoje. De acordo com Gomes (2012):</p><p>[...] o início da República foi o momento da implantação de um novo modelo de</p><p>organização, o dos grupos escolares, e o estado pioneiro nessa medida foi São</p><p>Paulo, em 1893. Esse modelo, que logo se difundiu pelos outros estados, reunia</p><p>as classes em séries, estruturadas progressivamente, com cada série numa sala,</p><p>com um professor, e grupos de quatro ou cinco séries reunidos em um mesmo</p><p>prédio. Em Minas Gerais, os grupos escolares foram estabelecidos em 1906, du-</p><p>rante o governo de João Pinheiro, e se organizavam em quatro séries. Na década</p><p>de 1920, num contexto de profundas mudanças políticas, econômicas e sociais,</p><p>realizaram-se, em diversos estados brasileiros e no Distrito Federal, reformas no</p><p>sistema de ensino relativas à educação primária e à formação de professores para</p><p>esse nível. As mudanças efetivadas pelas legislações estaduais e do Distrito Fe-</p><p>deral vinculavam-se ao movimento pedagógico conhecido, entre outras denomi-</p><p>nações, como Escola Nova ou Escola Ativa. (GOMES, 2012. p. 25)</p><p>Em 1931, de Acordo com Saviani (2007) havia um conflito entre pensado-</p><p>res católicos e liberais. Para os católicos o sistema educacional deveria está vincu-</p><p>lado à Igreja e a moral cristã, já os pensadores liberais defendiam que o ensino</p><p>deveria se pautar nos conhecimentos advindo das ciências, principalmente exatas</p><p>e humanas. Foi com este espírito de renovação que em 1932 durante a IV Confe-</p><p>rência Nacional de Educação foi publicado O Manifesto de Educação Nova, esta-</p><p>belecendo de vez uma ruptura entre o pensamento católico e o pensamento mais</p><p>liberal. Para Saviani (200) este manifesto construiu uma base política na “moder-</p><p>nidade que alicerçaria a educação e a sociedade brasileira até a atualidade. Nos</p><p>primeiros parágrafos do documento “saltam” do papel a primazia da administra-</p><p>ção escolar estabelecida como fator fundamental para a solução dos problemas e-</p><p>ducacionais agravados no regime republicano”. Para Luna (2019):</p><p>O Movimento da Escola Nova surgiu em resposta à uma sociedade tecnológica e</p><p>industrial, nutrindo-se de uma ideologia progressista e democrática, sendo John</p><p>Dewey 12 Um dos principais nomes</p><p>desse movimento. As Ideias educacionais de</p><p>Dewey Auxiliaram Uma conjuntura de mudanças trazendo industrialização,</p><p>modernidade e democratização da sociedade. (LUNA, 2019, p. 35)</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>35</p><p>Dentro do texto do manifesto é possível encontrar diversas menções ao</p><p>ensino mais científico ligado à matemática e as demais ciências, não só no ensino</p><p>primário e secundário, mas também nas universidades. No trecho abaixo desta-</p><p>cado do manifesto podemos perceber bem tal tendência.</p><p>A educação superior que tem estado, no Brasil, exclusivamente a serviço das pro-</p><p>fissões “liberais” (engenharia, medicina e direito), não pode evidentemente eri-</p><p>gir-se à altura de uma educação universitária,sem alargar para horizontes</p><p>científicos e culturais sua finalidade estritamente profissional e sem abrir seus</p><p>quadros rígidos à formação de todas as profissões que exijam conhecimentos ci-</p><p>entíficos, elevando-as todas a nível superior e tornando-se, pela flexibilidade de</p><p>sua organização, acessível a todos. Ao lado das faculdades profissionais existen-</p><p>tes, reorganizadas em novas bases, impõe-se a criação simultânea ou sucessiva,</p><p>em cada quadro universitário, de faculdades de ciências sociais e econômicas; de</p><p>ciências matemáticas, físicas e naturais, e de filosofia e letras, que, atendendo à</p><p>variedade de tipos mentais e das necessidades sociais, deverão abrir às universi-</p><p>dades que se criarem ou se reorganizar em um campo cada vez mais vasto de</p><p>investigações científicas.(AZEVEDO, 2010. p. 55)</p><p>Além de pregar uma educação completamente baseada no conhecimento</p><p>científico, o manifesto aponta para a necessidade das universidades oferecerem</p><p>uma educação que contemplem não só as habilidades técnicas, necessárias ao de-</p><p>sempenho de profissões mais laborais. A universidade também deve formar indi-</p><p>víduos pesquisadores que possam ampliar o conhecimento científico e contribuir</p><p>para sua popularização, Azevedo (2010) destaca:</p><p>A educação superior ou universitária, a partir dos 18 anos, inteiramente gratuita,</p><p>como as demais, deve tender, de fato, não somente à formação profissional e téc-</p><p>nica, no seu máximo desenvolvimento, como à formação de pesquisadores, em</p><p>todos os ramos de conhecimentos humanos. Ela deve ser organizada de maneira</p><p>que possa desempenhar a tríplice função que lhe cabe de elaboradora ou criadora</p><p>de ciência (investigação), docente ou transmissora de conhecimentos (ciência</p><p>feita) e de vulgarizador e popularizador, pelas instituições de extensão univer-</p><p>sitária, das ciências e das artes. (AZEVEDO, 2010, p. 55)</p><p>Por tudo o que foi exposto até aqui, torna-se notável que o Manifesto da</p><p>Escola Nova foi um divisor de águas no que se refere a importância dada ao ensino</p><p>da matemática e das demais ciências nos contexto escolares, tanto do ensino pri-</p><p>mário e secundário, bem como também das universidades. Neste sentido tivemos</p><p>posteriormente, a elaboração de dois documentos que trouxeram ainda mais con-</p><p>tribuições. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e os Parâmetros Curri-</p><p>culares Nacionais (PCNs).</p><p>1.3 A LDB e os PCNs</p><p>A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) tem a função de definir e</p><p>regulamentar toda a educação no território nacional. Portanto ela é uma lei de fun-</p><p>damental importância para se compreender como a educação se configura. Ela não</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>36</p><p>só apresenta as regras de organização, mas também estabelece as concepções teó-</p><p>ricas e filosóficas que sustentam um sistema de ensino.</p><p>Ao todo o Brasil teve três LDBs, a primeira versão foi publicada em 20 de</p><p>dezembro de 1961 pelo presidente João Goulart, seguida por outra versão em 1971,</p><p>em pleno regime militar, que vigorou até a promulgação da mais recente em 1996.</p><p>As LDBs de 1961 e 1971 ignoraram a importância das línguas estrangeiras ao deixa-</p><p>rem de incluí-las dentre as disciplinas obrigatórias: Português, Matemática, Geo-</p><p>grafia, História e Ciências. As duas primeiras versões da LDBs deixaram a cargo</p><p>dos Conselhos Estaduais decidir sobre o ensino de línguas. Desde então observou-</p><p>se uma explosão de cursos particulares de inglês, com a intensificação do senso</p><p>comum de que não se aprende língua estrangeira nas escolas regulares. Portanto a</p><p>inclusão do estudo de uma língua estrangeira é tido como um avanço em relação</p><p>ao que se tinha anteriormente.</p><p>Já a LDB 9394/96 reafirma o direito a educação, garantido pela Constitui-</p><p>ção Federal no qual estabelece os princípios da educação e os deveres do Estado.</p><p>Além disso, estabelece qual é a relação que o poder público deve ter com a educa-</p><p>ção pública escolar, definindo as responsabilidades em regime de colaboração en-</p><p>tre a União, os Estados, o Distrito Federal e Municípios. Em seu artigo 1º esta LDB</p><p>define a educação como “Art. 1º A educação abrange os processos formativos que</p><p>se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas institui-</p><p>ções de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade</p><p>civil e nas manifestações culturais”.</p><p>Em seu artigo 2º a LDB além de demonstrar quais são os agentes respon-</p><p>sáveis pela educação, ela estabelece a finalidade da educação, oferecendo uma jus-</p><p>tificativa para a existência do próprio sistema de ensino: “Art. 2º A educação, dever</p><p>da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de soli-</p><p>dariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu</p><p>preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”</p><p>Ao analisar o Artigo 2 da LDB percebemos que a educação não deve estar</p><p>pautada apenas na transmissão de conteúdos desconectados da realidade dos alu-</p><p>nos. O Que se ensina e o Como se ensinar deve, necessariamente, contribuir para</p><p>que os discentes tornem-se indivíduos capazes de compreender e exercer efetiva-</p><p>mente a cidadania, bem como estarem preparados para o mercado de trabalho em</p><p>crescente evolução.</p><p>Outro documento relevante para a educação são os Parâmetros Curricu-</p><p>lares Nacionais (PCNs). Criados nos anos de 1997 e 1998 e tinham como objetivo</p><p>de o estabelecimento dos parâmetros para orientação dos professores na constru-</p><p>ção de seus planos e aulas e metodologias de trabalho, por meio da normatização</p><p>de alguns fatores fundamentais que disciplina demandava. Esses parâmetros</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>37</p><p>abrangem tanto a rede pública, como a rede privada de ensino, conforme o nível</p><p>de escolaridade dos alunos.</p><p>A grande meta dos PCNs é garantir aos educandos o direito de usufruir</p><p>dos conhecimentos necessários para o exercício da cidadania. Embora não sejam</p><p>obrigatórios, os PCNs servem como norteadores para professores, coordenadores</p><p>e diretores, que podem adaptá-los às peculiaridades locais.</p><p>Os Parâmetros Curriculares Nacionais referente ao ensino fundamental da dis-</p><p>ciplina de matemática A Matemática caracteriza-se como uma forma de com-</p><p>preender e atuar no mundo e o conhecimento gerado nessa ·relação do saber</p><p>como um fruto da construção humana na sua interação constante com o con-</p><p>texto natural, social e cultural.Está visto que aquela presente na maioria da so-</p><p>ciedade e na escola que considera a Matemática como um corpo de</p><p>conhecimento imutável e verdadeiro, que deve ser assimilado pelo aluno. A Ma-</p><p>temática é uma ciência viva, não apenas no cotidiano dos cidadãos, mas também</p><p>nas universidades e centros de pesquisas, onde se verifica, hoje,uma impressio-</p><p>nante produção de novos conhecimentos que, a par de seu valor intrÌnseco,de</p><p>natureza única, ̇úteis na solução de problemas científicos e tecnológicos da</p><p>maior importância. (PCN de Matemática)</p><p>Nesse sentido, os PCNs de matemática apontam para a construção do</p><p>entendimento de que a matemática é uma área de conhecimento presente no con-</p><p>texto social. Cabe ao professor de matemática a utilização de ferramentas didáti-</p><p>cas que possibilite aos alunos perceberem esta matemática viva no meio social e</p><p>aplicar os conhecimento matemática na resolução</p><p>de problemas do cotidiano.</p><p>Em outro trecho, o documento fala do modo como os conteúdos matemá-</p><p>ticos são apresentados aos alunos e traz sugestões valiosas para o ensino de con-</p><p>ceitos matemáticos mais complexos.</p><p>A prática mais frequente consiste em ensinar um conceito, procedimento ou téc-</p><p>nica e depois apresentar um problema para avaliar se os alunos são capazes de</p><p>empregar o que lhes foi ensinado. Para a grande maioria dos alunos, resolver um</p><p>problema significa fazer cálculos com os n úmeros do enunciado ou aplicar algo</p><p>que aprenderam nas aulas. Desse Modo, o que o professor explora na atividade</p><p>matemática não é mais a atividade, ela mesma, mas seus resultados, definições,</p><p>técnicas e demonstrações. [...] A resolução de problemas, na perspectiva indi-</p><p>cada pelos educadores matemáticos, possibilita aos alunos mobilizar conheci-</p><p>mentos e desenvolver a capacidade para gerenciadoras informações que está ao</p><p>seu alcance. Assim, os alunos terão oportunidade de ampliar seus conhecimen-</p><p>tos acerca de conceitos e procedimentos matemáticos bem como de ampliar a</p><p>visão que têm dos problemas, da Matemática, do mundo em geral e desenvolver</p><p>sua autoconfiança. (PCN matemática, p. 40)</p><p>Nesta perspectiva, o ensino de matemática deve ser direcionado, em</p><p>parte, para a resolução de problemas, sejam eles concretos ou idealizados. Os con-</p><p>ceitos matemáticos não podem serem vistos como meras abstrações. Pelo contrá-</p><p>rio, ao estudar matemática, os discentes devem ser capazes de, a partir, de</p><p>conceitos abstratos, pensar em soluções para problemas práticos que envolvam o</p><p>uso de algum conhecimento matemático.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>38</p><p>Para atingir tal objetivo, o professor pode usar diversas técnicas e metodolo-</p><p>gias de ensino para potencializar suas aulas. Dentre elas, as aulas invertidas, que po-</p><p>dem ser usadas para estimular os alunos a resolverem problemas usando a matemática.</p><p>2. A SALA DE AULA INVERTIDA E A RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS</p><p>Ao falar em sala de aula invertida pode se pensar primeiramente: mas afi-</p><p>nal o que se inverte? Para entendermos melhor o conceito de sala de aula invertida,</p><p>devemos pensar na aula como um momento do dia que os alunos estão em contato</p><p>com o professor, durante um certo período de tempo. Neste período de tempo o</p><p>professor deve mostrar aos alunos os conceitos relativos a um determinado conte-</p><p>údo, fazer indagações, instigar a curiosidade, fazer uma introdução ao conteúdo,</p><p>explicar tal conteúdo, tirar dúvidas, fazer atividades.</p><p>Nesse exercício de pensamento, a aula é o momento propício, se não o</p><p>momento principal, onde o professor por meio da proposição de várias situações</p><p>didáticas, ajuda os alunos a compreenderem um determinado conteúdo. O con-</p><p>ceito de sala de Aula Invertida remete a ideia de se “inverter” o que tradicional-</p><p>mente é feito em sala de aula, possa ser executado em casa, e o que é realizado</p><p>como atividade para casa, possa ser realizado em sala de aula.</p><p>Esta metodologia parte da premissa de que o processo de aprendizagem</p><p>é realizado em dois momentos: um momento seria em sala de aula, o outro seria</p><p>quando o aluno não está na sala, neste caso estaria em casa ou outro ambiente.</p><p>Em seu Livro Sala de aula invertida: uma metodologia ativa de aprendizagem</p><p>BERMANN & SAMS (2018) explicam como utilizaram a metodologia de sala de</p><p>aula invertida para mudar a dinâmica de sala de aula, favorecendo o aprendizado</p><p>dos alunos.</p><p>Frequentemente nos perguntam como é a rotina da sala de aula invertida. Em</p><p>Essência, começamos cada aula com alguns minutos de discussão sobre o vídeo</p><p>que foi visto em casa. Um dos inconvenientes do modelo invertido é o de que os</p><p>alunos não podem fazer de imediato as perguntas que lhes vêm à mente, como</p><p>teria sido o caso numa aula ao vivo. Para enfrentar essa questão, gastamos, no</p><p>começo do ano, um bom tempo treinando os alunos a assistirem ao vídeo de ma-</p><p>neira eficaz. Nós os incentivamos a desligar os telefones e outras distrações en-</p><p>quanto assistem ao vídeo. Sugerimos que “pausem” e “retrocedam” o professor,</p><p>encorajando-os a usarem sem parcimônia o botão de “pausa” para que possam</p><p>anotar pontos importantes da lição. Além disso, também orientamos os alunos a</p><p>adotarem o método Cornell de anotações, em que transcrevem os pontos impor-</p><p>tantes, registram quaisquer dúvidas que lhes ocorram e resumem o conteúdo a-</p><p>prendido. Os alunos que praticam esse modelo de anotação geralmente levam</p><p>para a sala de aula questões pertinentes que nos ajudam a abordar controvérsias</p><p>e equívocos comuns. Também aproveitamos essas perguntas para avaliar a efi-</p><p>cácia de nossos vídeos. Se muitos alunos apresentarem dúvidas semelhantes,</p><p>fica, assim, evidente a maneira inadequada da abordagem do tópico, e fazemos</p><p>anotações para a correção e melhoria do vídeo. Depois de respondermos às per-</p><p>guntas, passamos aos alunos as tarefas do dia a serem executadas na sala de aula.</p><p>Pode ser experiência em laboratório, atividade de pesquisa, solução de</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>39</p><p>problemas ou teste. Como a duração do bloco é de 95 minutos, os alunos, em</p><p>geral, realizam mais de uma dessas atividades em qualquer uma das sessões.</p><p>Continuamos a avaliar os trabalhos, as experiências em laboratório, e os testes,</p><p>da mesma maneira como o fazíamos sob o modelo tradicional. Mas o papel do</p><p>professor em sala de aula mudou radicalmente. Deixamos de ser meros transmis-</p><p>sores de informações; em vez disso, assumimos funções mais orientadoras e tu-</p><p>toriais. (BERMANN & SAMS, 2018 p. 33-34)</p><p>A metodologia de sala de aula invertida além de tornar o processo de a-</p><p>prendizagem mais dinâmico, uma vez que quebra o paradigma da “aula tradicio-</p><p>nal”, estimula o protagonismo dos estudantes, promove o engajamento dos alunos,</p><p>além de oferecer aos professores mais elementos de avaliação durante todo o pro-</p><p>cesso. A metodologia de sala de aula também é fundamental para tornar processo</p><p>de ensino mais personalizável, uma vez que os professores têm mais informações</p><p>e elementos para identificar quais alunos estão com mais dificuldades e em quais</p><p>conteúdos.</p><p>A inversão da sala de aula estabelece um referencial que oferece aos estudantes</p><p>uma educação personalizada, ajustada sob medida às suas necessidades indivi-</p><p>duais. O movimento para a personalização tem muito mérito, mas, para um ú-</p><p>nico professor, personalizar o ensino de 150 estudantes é tarefa difícil e que não</p><p>funciona no contexto tradicional. O atual modelo de educação reflete a era em</p><p>que foi concebido: a revolução industrial. Os alunos são educados como em linha</p><p>de montagem, para tornar eficiente a educação padronizada. Sentam-se em filei-</p><p>ras de carteiras bem arrumadas, devem ouvir um”especialista” na exposição de</p><p>um tema e ainda precisam se lembrar das informações recebidas em um teste</p><p>avaliativo. De alguma maneira, nesse ambiente, todos os alunos devem receber</p><p>uma mesma educação. A debilidade do método tradicional é a de que nem todos</p><p>os alunos chegam à sala de aula preparados para aprender. (BERMANN &</p><p>SAMS, 2018, p.25-26)</p><p>A metodologia de ensino da Sala de aula invertida pode ser usada o estudo</p><p>de qualquer conteúdo matemática, porém ela tem um potencial muito forte para</p><p>ser usada como facilitador de resolução de problemas. A sala de aula invertida</p><p>pode tornar o trabalho com a resolução de problemas mais efetivas, nas aulas de</p><p>matemática. Ensinar matemática usando resolução de problemas é fundamental,</p><p>uma vez que, segundo Guérios & Junior:</p><p>A resolução de problema é preconizada por pesquisadores de diferentes tendên-</p><p>cias educativas como estratégia para o ensino de matemática na educação básica,</p><p>estratégia essa que possibilita, em tese, aprendizagem conceitual dos conteúdos</p><p>curriculares provendo-os de significabilidade. (Guérios & Junior)</p><p>Ainda sobre a importância de se trabalhar com resolução de problemas</p><p>nas aulas de matemática, Pozo (1998) acrescenta:</p><p>Os problemas matemáticos têm uma e somente uma resposta correta. Existe so-</p><p>mente uma forma</p><p>correta de resolver um problema matemático e, normalmente,</p><p>o correto é seguir a última regra demonstrada em aula pelo professor. Os estu-</p><p>dantes ‘normais’ não são capazes de entender Matemática; somente podem es-</p><p>perar memorizá-la e aplicar mecanicamente aquilo que aprenderam sem</p><p>entender. Os estudantes que entenderam Matemática devem ser capazes de</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>40</p><p>resolver qualquer problema em cinco minutos ou menos. A Matemática ensi-</p><p>nada na escola não tem nada a ver com o mundo real. As regras formais da Ma-</p><p>temática são irrelevantes para os processos de descobrimento e de invenção.</p><p>(POZO, 1998, p. 46)</p><p>Anteriormente foi destacado que o professor de matemática pode utilizar</p><p>a Sala de Aula Invertida para personalizar o ensino, tal como antecipar conteúdos</p><p>e verificar o nível de entendimento sobre um conteúdo específico. Isto se dá por</p><p>meio de ferramentas com ajuda de ferramentas on-line que pudessem mostrar aos</p><p>alunos, conteúdos das aulas antecipadamente ou até mesmo apresentar exercícios</p><p>para serem feitos pelos discentes antes ou depois das aulas.</p><p>Em um exemplo de uma aula sobre frações, o professor após realizar tes-</p><p>tes para verificar se os alunos têm um conhecimento sólido dos números naturais</p><p>e operações básicas, ele poderá planejar suas aulas sobre frações de uma maneira</p><p>mais segura. Após os diagnósticos, é comum o docente se deparar com alunos que</p><p>estão em estágios distintos de compreensão. Estes alunos não podem ser negligen-</p><p>ciados pelo professor, mas ele também deve apresentar o conteúdo de fração para</p><p>os que têm uma base maior para haver uma devida compreensão do assunto.</p><p>Figura 1: Telas do Aplicativo Khan Academy mostrando parte dos conteúdos e</p><p>recursos relacionado ao tema Fração.</p><p>Através disso, o docente pode utilizar a plataforma Khan Academy para</p><p>personalizar o ensino levando em consideração o que cada aluno sabe, a plata-</p><p>forma pode ser usada em aplicação dos exercícios de diagnósticos, apresentação</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>41</p><p>vídeos sobre o tema ou até mesmo ser usada como exercício de verificação da a-</p><p>prendizagem. A plataforma Khan Academy é um site e um aplicativo, que pode ser</p><p>baixado em smartfones e tablets, onde o professor cadastra todos os alunos de uma</p><p>turma, seleciona conteúdos e direciona a cada aluno. O aplicativo aborda diversos</p><p>assuntos matemáticas separados por ano/série e por nível de dificuldade.</p><p>No exemplo da aula de fração, depois de realizar um exercício de diag-</p><p>nóstico, o professor escolheria os recursos do conteúdo de fração que fossem mais</p><p>adequados para o nível de conhecimento de cada aluno. Há possibilidade inclusive</p><p>de criar grupos para competir por “medalhas” virtuais.</p><p>No Khan Academy o conteúdo de fração é abordado com diferentes re-</p><p>cursos incluindo: vídeos explicativos, textos, jogos, desafios e exercícios dinâmi-</p><p>cos. Todas estas ferramentas podem ser acessadas com ou sem o sinal de internet,</p><p>uma vez que o aplicativo tem a opção de fazer o download de conteúdos para ver</p><p>off-line.</p><p>Como o Khan Academy oferece conteúdos segmentados por série, o pro-</p><p>fessor não teria dificuldades em selecionar recursos sobre o tema abordado a cada</p><p>ano do ensino fundamental II. Esta plataforma funciona como um facilitador da</p><p>personalização do ensino, bem como um incremento para a sala de aula invertida,</p><p>a critério do docente pode ser usada como elemento avaliativo da aprendizagem.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>42</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares</p><p>Nacionais: Matemática. Brasília: MEC/ SEF, 1998. Disponível em: <http://</p><p>portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/matematica.pdf>. Acesso em: 05 jun. 2018.</p><p>BERMANN, Johnathan; SAMS Aeron. Sala de aula invertida: uma metodologia</p><p>ativa de aprendizagem. 1. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2018.</p><p>BACICH, Lilian; MORAN, José. (Orgs) Metodologias ativas para uma educação</p><p>inovadora: Uma abordagem teórico-prática. Porto Alegre: Penso, 2018.</p><p>GRANJA, Carlos Eduardo; PASTORE, José Luiz. Atividades experimentais de</p><p>Matemática nos anos finais do Ensino Fundamental. São Paulo: Edições SM,</p><p>2012.</p><p>BASSALOBRE, Janete. Ética, Responsabilidade Social e Formação de</p><p>Educadores. Educação em Revista. Belo Horizonte, v. 29, n. 01, p. 311-317, mar.</p><p>2013.</p><p>GOMES, Maria Laura Magalhães. História do Ensino da Matemática: uma</p><p>introdução. Belo Horizonte: CAED-UFMG, 2012.</p><p>DIESEL, Aline. Etal.Os princípios das metodologias ativas de ensino: uma</p><p>abordagem teórica. Lageado-RS: UNIVATES, 2017. REVISTA TEMA- 2017 |</p><p>Volume 14 | Nº 1 | Pág. 268 a 288.</p><p>ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação e da Pedagogia: geral</p><p>e no Brasil. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2006.</p><p>SAVIANI, Dermeval. História das idéias pedagógicas no Brasil. Campinas, SP:</p><p>Autores Associados, 2007. – (Coleção memória da educação)</p><p>AZEVEDO, Fernando de... [et al.]. Manifestos dos pioneiros da Educação Nova</p><p>(1932) e dos educadores 1959. – Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora</p><p>Massangana, 2010</p><p>LUNA, Heljer Renato Junho de. Movimento da Escola Nova e Movimento da</p><p>Matemática Moderna: dois cadernos de professoras do ensino primário de Minas</p><p>Gerais em Estudo. Pouso Alegre: 2019</p><p>LDB: Lei de diretrizes e bases da educação nacional. – Brasília: Senado Federal,</p><p>Coordenação de Edições Técnicas, 2017.</p><p>BRASIL. Secretaria de Educação. Fundamental.Par‚metros curriculares nacionais:</p><p>Matemática /Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC /SEF, 1998.</p><p>Guérios, Ettiène. Junior, Roberto José Medeiros. Resolução de problema e</p><p>matemática no ensino fundamental: uma perspectiva didática.</p><p>POZO, J. I. (Org.). A Solução de Problemas - Aprender a resolver, resolver para</p><p>aprender. Porto Alegre: Editora Artmed, 1998.</p><p>ENSAIO: DA INCLUSÃO DIGITAL À INCLUSÃO SOCIAL -</p><p>A IMPORTÂNCIA DAS TIC PARA</p><p>UMA EDUCAÇÃO INCLUSIVA</p><p>Aldenei Moura Barros 1</p><p>Maria João Gomes 2</p><p>Anabela Cruz Santos 3</p><p>Introdução</p><p>Estamos vivendo numa era em que praticamente todas as esferas da soci-</p><p>edade vêm sendo transformadas pelas Tecnologias de Informação e Comunicação</p><p>(TIC). A educação como um todo, e a educação especial em particular, também</p><p>têm sido impactadas e transformadas pelas TIC. O surgimento de variadas formas</p><p>de inclusão educacional e digital proporcionadas aos alunos com necessidades e-</p><p>ducacionais especiais pelo emprego das TIC, implica na urgência de estender as</p><p>práticas de utilização das mesmas por parte dos professores. Este é um desafio que</p><p>se coloca aos professores, a juntar a outros de que nos fala Pierre Lévy em seu livro</p><p>“Cibercultura”, a partir do qual podemos perspectivar novos rumos e papeis que a</p><p>prática docente exige, muito mais além do papel de difundir o conhecimento, uma</p><p>vez que, como assevera Levy, isso pode ser feito de forma mais eficaz por outros</p><p>meios. Partindo desta perspectiva, a competência do professor não reside mais em</p><p>acumular e transmitir conhecimentos, mas, no dizer de Levy, incentivar a apren-</p><p>dizagem e o pensamento. É neste sentido que o professor se tornará um animador</p><p>da inteligência coletiva dos grupos ao seu encargo e também um gestor das apren-</p><p>dizagens de seus alunos, num contexto de cibercultura.</p><p>Da cibercultura à necessidade da info-inclusão</p><p>Enquanto alguns denominam os professores e pais de geração “x” e os a-</p><p>lunos e filhos de geração “y”, ou no dizer do ex Ministro da Educação (do Brasil)</p><p>Aloysio Mercadante, “nós somos analógicos” (pais, professores e adultos em geral)</p><p>e “eles são digitais” (alunos, filhos e jovens em geral), o fato é que grande parte dos</p><p>educadores não percebe ou entende como as tecnologias de informação e comuni-</p><p>cação digitais e em rede mudaram a forma como o jovem de hoje aprende, constrói</p><p>e socializa o conhecimento. Por isso é importante que os educadores do século</p><p>1 Mestre em Educação Especial/ Universidade do Minho.</p><p>2 Instituto da Educação /CIEd - Universidade do Minho</p><p>3 Instituto da Educação /CIEd - Universidade</p><p>do Minho</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>44</p><p>XXI entendam e compreendam o papel das TIC na formação daquilo que conhe-</p><p>cemos hoje como cibercultura.</p><p>Segundo Lemos cibercultura:</p><p>(...) é o conjunto tecnocultural emergente no final do século XX impulsionado</p><p>pela sociabilidade pós-moderna em sinergia com a microinformática e o surgi-</p><p>mento das redes telemáticas mundiais; uma forma sociocultural que modifica há-</p><p>bitos sociais, práticas de consumo cultural, ritmos de produção e distribuição da</p><p>informação, criando novas relações no trabalho e no lazer, novas formas de socia-</p><p>bilidade e de comunicação social. (LEMOS citado em LEMOS, 2010, p. 21-22).</p><p>Em plena era digital é importante que os professores, bem como os edu-</p><p>cadores em geral, entendam o estágio atual de desenvolvimento da cibercultura,</p><p>pois enquanto tentamos entender e nos adequar a esta ordem estabelecida pelo</p><p>atual desenvolvimento tecnológico, os estudantes são praticamente jogados neste</p><p>mundo ao nascer. É por isso necessário que os professores da rede pública de en-</p><p>sino se apropriem da cultura digital, tendo presente que, como Leite aponta</p><p>“(…) existe a profunda necessidade de adquirir uma nova visão da realidade e do</p><p>mundo em que estamos inseridos, tendo como base o ciberconhecimento, uma</p><p>visão que possibilite assim, a ciberaprendizagem” (LEITE apud MORAES & DE</p><p>BASTIANI, 2011; p. 6).</p><p>Num contexto de cibercultura a escola não pode dissociar-se da sua res-</p><p>ponsabilidade de incorporar as TIC nos contextos e práticas de aprendizagem dos</p><p>alunos, de TODOS os alunos. Garantir o acesso às TIC às pessoas com necessida-</p><p>des especiais, especialmente alunos com Necessidades Educacionais Especiais</p><p>(NEE), significa não apenas salvá-las da exclusão digital, como também salvá-las</p><p>da exclusão econômica e social. Importa também considerar que, de acordo com a</p><p>UNESCO, existem aproximadamente 24,5 milhões de pessoas com algum tipo de</p><p>deficiência no Brasil, correspondendo a um porcentual de 14,5% da população na-</p><p>cional (UNESCO, 2007).</p><p>Tecnologias de informação e comunicação e inclusão digital</p><p>Denominamos TIC “aos procedimentos, métodos e equipamentos para</p><p>processar informação e comunicar que surgiram no contexto da Revolução Infor-</p><p>mática, Revolução Telemática ou Terceira Revolução Industrial, desenvolvidos</p><p>gradualmente desde a segunda metade da década de 1970 e, principalmente, nos</p><p>anos 90 do mesmo século” (RAMOS, p. 5, 2008).</p><p>As TIC digitais transformaram a sociedade do século XXI numa socie-</p><p>dade dominada pela cultura digital. A cultura digital permeia o processo de comu-</p><p>nicação e exige a necessidade urgente de se promover a inclusão digital dos</p><p>indivíduos que a compõem. Meregalli ressalta a importância da inclusão digital</p><p>nos seguintes termos:</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>45</p><p>“À medida que aumenta a necessidade social da Inclusão Digital como forma de</p><p>comunicação, a mesma torna-se mais abrangente, democrática e popular, facili-</p><p>tando sua incursão no processo de inclusão social” (MEREGALLI, 2010, p. 2).</p><p>Promover a inclusão de pessoas com necessidades educacionais especiais</p><p>na sociedade passa, forçosamente, pela educação, e num contexto de sociedade da</p><p>informação (e comunicação) implica criar condições de acesso e uso das TIC desde</p><p>a infância. Percorrer este caminho exige que o papel do professor quanto ao em-</p><p>prego das TIC seja repensado, pois no entender da UNESCO, “intervenções base-</p><p>adas em TIC também precisam se encaixar em outros contextos do ambiente de</p><p>aprendizagem, incluindo o papel do professor” (UNESCO, p.26, 2013). Capacitar</p><p>o professor para a utilização das TIC no contexto educativo é uma premissa im-</p><p>portante neste processo.</p><p>De acordo com Santarosa (1997), o emprego das TIC em apoio a pessoas</p><p>com necessidades educacionais especiais ocorre em duas dimensões. Na primeira,</p><p>elas podem ser utilizadas como meios de apoio à comunicação (por exemplo, no</p><p>apoio às dificuldades ao nível da linguagem) e à aprendizagem, constituindo-se</p><p>como elementos de suporte aos processos de inclusão de alunos com NEE, tanto a</p><p>nível social quanto educacional, neste caso funcionando como tecnologias assisti-</p><p>vas ou constituindo-se como objeto de aprendizagem, quando o objetivo é que os</p><p>alunos aprendam a utilizar as tecnologias, de forma a promover a sua inclusão di-</p><p>gital. Assim, as TIC podem ser elementos potenciadores da inclusão social das</p><p>pessoas com necessidades especiais, quer evitando que estas fiquem excluídas do</p><p>acesso aos recursos e potencialidades associados às TIC, quer dotando-as de com-</p><p>petências de uso das TIC que lhes permitam ultrapassar algumas das suas limita-</p><p>ções, facilitando a sua inclusão social.</p><p>Dentro desta perspectiva, as práticas pedagógicas contemporâneas de-</p><p>vem promover a inclusão de pessoas com necessidades educativas especiais atra-</p><p>vés do uso das tecnologias de informação e comunicação, facilitando o</p><p>desenvolvimento da aprendizagem e ampliando seus direitos de cidadania através</p><p>da inclusão digital.</p><p>Costa e Moreira (2010) defendem a perspectiva de que é preciso haver</p><p>um engajamento por parte de todos os setores da sociedade no sentido de envidar</p><p>esforços para que a utilização das TIC no processo ensino-aprendizagem se torne</p><p>uma realidade. Realidade esta que precisa ser construída por todos os agentes res-</p><p>ponsáveis pela educação. Pelos pais, em especial os que têm filhos com NEE, atra-</p><p>vés de associações que militem pela implementação imediata de vias que</p><p>permitam a acessibilidade na infraestrutura das escolas públicas. Pelos professo-</p><p>res e entidades de classe que os representem, ao cobrar das Secretarias Municipais</p><p>e Estaduais de Educação a implantação de projetos de formação continuada que</p><p>contemplem as TIC e seu contributo na educação de alunos com NEE. Por parte</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>46</p><p>do Ministério Público, ao cobrar das autoridades o cumprimento do Estatuto da</p><p>Criança e do Adolescente (ECA), bem como da Constituição Federal e do Estatuto</p><p>da Pessoa com Deficiência, no sentido de criar e executar políticas públicas edu-</p><p>cativas de apoio à alunos com NEE. Importa assumir, como assume Costa e Mo-</p><p>reira (2010) a necessidade da inclusão de recursos TIC no currículo de alunos com</p><p>NEE, de forma a torná-los acessíveis através dos agentes que possam com efeito</p><p>implementá-los em contexto de ensino-aprendizagem destes referidos alunos.</p><p>Tecnologias de informação e comunicação e práticas docentes</p><p>A questão da formação inicial e continuada dos profissionais da educação</p><p>no Brasil encontra seu amparo legal na Constituição Federal de 1988, que em seu</p><p>artigo Art. 206, inciso V estabelece a “valorização dos profissionais da educação escolar,</p><p>garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso pú-</p><p>blico de provas e títulos” (BRASIL, 1998).</p><p>Em 1997, através da Portaria nº 522, o Ministério da Educação e do Des-</p><p>porto (MEC), instituiu o Programa Nacional de Informática na Educação</p><p>(Proinfo) que em seu Art. 1.º tem como finalidade “disseminar o uso pedagógico das tec-</p><p>nologias de informática e telecomunicações nas escolas públicas de ensino fundamental e médio</p><p>pertencentes às redes estadual e municipal” (BRASIl, 1997). A partir de 2007, o Proinfo</p><p>passou a ser conhecido como Programa Nacional de Tecnologia Educacional, cri-</p><p>ado pelo Decreto nº 6300 de 12 de dezembro de 2007, que entre outras coisas in-</p><p>corporou a redação do Art. 1.º da Portaria n.º 522 constando no seu Art. 1º. Em seu</p><p>Parágrafo único, inciso I, como um dos objetivos “promover o uso pedagógico das tecno-</p><p>logias de informação e comunicação nas escolas de educação básica das redes públicas de ensino</p><p>urbanas e rurais” (BRASIL, 2007). No inciso II reza “fomentar a melhoria do processo de</p><p>ensino e aprendizagem com o uso das tecnologias de informação e comunicação” (IBID,</p><p>IBIDEM). Também consta no inciso III “promover a capacitação dos agentes educacio-</p><p>nais envolvidos nas</p><p>ações do Programa” (IBID, IBIDEM). Em seu Art. 3.º, inciso II, ca-</p><p>berá ao MEC “promover com os Estados, Distrito Federal e Municípios, programa de</p><p>capacitação para os agentes educacionais envolvidos e de conexão dos ambientes tecnológicos à</p><p>rede mundial de computadores” (BRASIL, 2007). No Art. 4.º, inciso II, os Estados, o</p><p>Distrito Federal e os Municípios que aderirem ao Proinfo se responsabilizarão por</p><p>“viabilizar e incentivar a capacitação de professores e outros agentes educacionais para utiliza-</p><p>ção pedagógica das tecnologias da informação e comunicação”.</p><p>Em 25 de junho de 2014 foi aprovada a Lei n.º 13005, que institui o Plano</p><p>Nacional de Educação. Neste importante documento estão fixadas as estratégias</p><p>que nortearão as políticas públicas educacionais para os próximos dez anos. Neste</p><p>documento estão garantidas pela primeira vez a formação inicial e continuada de</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>47</p><p>professores para o emprego das TIC no contexto escolar. Em seu Anexo contendo</p><p>as Metas e Estratégias, n.º 5.6 reza “promover e estimular a formação inicial e continuada</p><p>de professores (as) para a alfabetização de crianças, com o conhecimento de novas tecnologias</p><p>educacionais e práticas pedagógicas inovadoras, estimulando a articulação entre programas de</p><p>pós-graduação stricto sensu e ações de formação continuada de professores(as) para a alfabeti-</p><p>zação” (BRASIL, 2014). Entre as estratégias para garantir a execução da Meta 4,</p><p>universalizar o atendimento educacional especializado para a população de 4 a 17</p><p>anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades</p><p>ou sobredotação, a de nº 4.3 diz “implantar, ao longo deste PNE, salas de recursos multi-</p><p>funcionais e fomentar a formação continuada de professores e professoras para o atendimento</p><p>educacional especializado nas escolas urbanas, do campo, indígenas e de comunidades quilom-</p><p>bolas” (BRASIL, 2014).</p><p>Apesar do cenário promissor garantido pelo avanço da legislação educaci-</p><p>onal, que não apenas reconhece a importância da formação inicial e continuada em</p><p>TIC e em TIC para o atendimento escolar especializado (AEE), o quadro atual é</p><p>bastante desanimador, como salienta Campos, para quem a formação inicial de pro-</p><p>fessores ensaia passos na caminhada de implementação das diretrizes curriculares,</p><p>e a formação continuada é ainda muito tímida, faltando a definição de programas</p><p>que atendam às carências dos professores da escola real (CAMPOS, 2010, p. 87).</p><p>À medida que tomam posse do domínio das tecnologias, os professores</p><p>inauguram novos horizontes, não apenas na disciplina em que atuam, como em</p><p>toda a comunidade escolar na qual estão inseridos. Prado e Valente (2002) enfati-</p><p>zam a urgência dos professores aprenderem a usar práticas pedagógicas mediadas</p><p>por recursos tecnológicos em seus cursos de graduação. A formação deve propor-</p><p>cionar as condições para que possam construir conhecimento sobre os aspectos</p><p>computacionais e tecnológicos, compreender as perspectivas educacionais subja-</p><p>centes às diferentes aplicações do computador e entender de forma crítica porquê</p><p>e como integrar com esses recursos na prática pedagógica, proporcionando ao pro-</p><p>fessor as bases para que possa superar barreiras de ordem administrativa e peda-</p><p>gógica, possibilitando a transição de um sistema fragmentado de ensino para uma</p><p>abordagem integradora de conteúdo e voltada para a elaboração de projetos temá-</p><p>ticos do interesse de cada aluno, criando assim condições para que o professor</p><p>saiba recontextualizar o aprendizado e a experiência vivida durante sua formação</p><p>para sua realidade de sala de aula, compatibilizando as necessidades de seus alu-</p><p>nos e os objetivos pedagógicos que se dispõe a atingir (PRADO & VALENTE, ci-</p><p>tado em MORAES & DE BASTIANI, 2012, pp. 5 e 6). Através de práticas</p><p>pedagógicas mediadas por recursos tecnológicos, o professor disporá de meios</p><p>para promover a superação do ensino fragmentário e implementar uma educação</p><p>inclusiva, de forma a desenvolver as plenas potencialidades de seus alunos.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>48</p><p>Entretanto, o uso das TIC por si só não irá garantir o sucesso de uma prática pe-</p><p>dagógica inclusiva se os profissionais da educação que atuam na rede pública de</p><p>ensino não estiverem preparados para romperem com práticas centenárias de e-</p><p>ducar que praticamente não sofreram alterações desde a descoberta da imprensa</p><p>de tipos móveis no século XVI.</p><p>Morellato et al (2006) entende que uma das contribuições para que haja</p><p>esta ruptura na prática pedagógica está justamente no emprego das TIC, sobre-</p><p>tudo na aprendizagem de alunos com NEE, pois seu emprego permitirá a constru-</p><p>ção de práticas pedagógicas que concebem os alunos como “sujeitos socioculturais</p><p>com experiências e necessidades diversas” (MORELATTO, p.5, 2006).</p><p>Em relação à info-exclusão e à igualdade de oportunidades de alunos com</p><p>NEE, Ribeiro (2012) entende que o emprego das TIC é fundamental para garantir</p><p>o direito à inclusão digital a estes alunos, de forma a proporcionar-lhes condições</p><p>plenas de cidadania.</p><p>Mas e quanto aos professores? A grande maioria dos educadores demons-</p><p>tra certo receio ou até mesmo ignora o papel que as TIC podem oferecer à educa-</p><p>ção de alunos com NEE. Ribeiro enfatiza este aspecto quando fala sobre equidade</p><p>educativa, ao considerar o papel inclusivo das TIC na educação de alunos com</p><p>NEE e chama atenção para o preparo profissional que os educadores precisam ao</p><p>lidar com as TIC no dia-a-dia da sala de aula.</p><p>Todavia, a implementação das TIC como suporte aos alunos com NEE,</p><p>desconstruindo e permitindo a transposição de barreiras e dificuldades, seja como</p><p>Tecnologia de Apoio/Produtos de Apoio ou como instrumento pedagógico, neces-</p><p>sitam de profissionais cientes das potencialidades e limitações inerentes e, sobre-</p><p>tudo, instruídos e dinâmicos, para que uma ferramenta que se pretende de</p><p>inclusão não se torne fator de exclusão (RIBEIRO, 2012, pp. 102-103). Assim, a</p><p>adequada preparação dos profissionais da educação para lidarem com as TIC no</p><p>fazer pedagógico reveste-se de um caráter emergencial.</p><p>Ribeiro (2012) reconhece que a utilização das TIC com as NEE é um pro-</p><p>cesso complexo, pois não apenas percorre a via da inclusão como também passa</p><p>efetivamente pelo trilhar de um novo caminho no preparo eficiente de profissio-</p><p>nais que estejam em sintonia com as nuances da era digital, pois na atual conjun-</p><p>tura em que as TIC dominam nosso cotidiano e tornam-se parte integrante da vida</p><p>das novas gerações é inconcebível que os educadores continuem reproduzindo ve-</p><p>lhas práticas que contribuem para perpetuidade de uma sociedade excludente em</p><p>sala de aula.</p><p>Freitas pondera que um planejamento adequado para que as TIC sejam</p><p>incorporadas ao processo de ensino-aprendizagem com eficácia passa pela prepa-</p><p>ração adequada dos professores, que precisam romper com velhas práticas do en-</p><p>sino tradicional e se adaptar às exigências que os novos tempos da era digital</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>49</p><p>impõem. Assim como no ensino regular, também no ensino especial é de salientar</p><p>que a tecnologia por si só não chega, é necessária a preparação do professor para</p><p>transmitir os conhecimentos. Uma utilização educativa correta das TIC depende</p><p>muito da formação dos professores e da sua capacidade de se adaptar aos diferen-</p><p>tes estilos de aprendizagem dos alunos com NEE (FREITAS, 2002/2003, p. 52).</p><p>Em síntese, as TIC são hoje fatores determinantes na inclusão de qualquer</p><p>cidadão pois proporcionam condições alargadas de acesso à informação e conheci-</p><p>mento bem como de interação, comunicação e expressão alargada com base nas re-</p><p>des digitais como a Internet. No caso dos cidadãos com necessidades especiais, o</p><p>acesso e literacia digital com base nas TIC são um recurso inestimável, não só en-</p><p>quanto tecnologias assistivas que os podem ajudar a ultrapassar as suas limitações</p><p>específicas, mas também enquanto forma de</p><p>evitar que venham a integrar um novo</p><p>grupo de população objeto de formas de exclusão, no caso a info-exclusão.</p><p>Considerações finais</p><p>Um aspecto importante a ser compreendido na utilização das TIC na e-</p><p>ducação de alunos com NEE é o papel que esta ocupará nas políticas públicas de</p><p>formação de professores, uma vez que a simples inserção das TIC na grade curri-</p><p>cular dos cursos de licenciatura e pedagogia existentes no país não irá garantir</p><p>uma prática pedagógica inclusiva de qualidade. Torna-se necessário desenhar e</p><p>implementar programas que contenham disciplinas de TIC e que garantam a qua-</p><p>lidade dos processos de ensino-aprendizagem para todos os alunos, nomeada-</p><p>mente no que concerne aos alunos com NEE. A formação continua e especializada</p><p>permitirá consolidar o uso das ferramentas digitais na educação de alunos com e</p><p>sem NEE, e no contributo que elas trarão à aprendizagem destes alunos</p><p>(BORTOLOZZO, 2008).</p><p>A partir desta perspectiva compreende-se que o emprego das TIC’s como</p><p>prática pedagógica possibilita aos alunos com NEE participar do processo educa-</p><p>tivo de forma inclusiva, o que em outras situações não seria possível, privando desta</p><p>forma estes alunos do direito à educação inclusiva, sem barreiras de nenhuma or-</p><p>dem, sejam elas físicas ou conceituais. No entender de Alba (2006), tais barreiras</p><p>são utilizadas quando “se planeja a educação para alunos “normais”, sem entender que o nor-</p><p>mal é que exista a diversidade; que a normalidade inclui diferentes formas de participar, comuni-</p><p>car-se e aprender, mesmo que essas formas sejam eventuais”. (ALBA, 2006, p. 131).</p><p>A busca pela implementação de um currículo que contemple a formação</p><p>de profissionais da educação que abandonem práticas educativas segregadoras</p><p>que teimam em se perpetuar em nossas escolas, deve ser uma preocupação cons-</p><p>tante de todas os administradores das diferentes esferas da educação (o MEC, as</p><p>secretarias estaduais e municipais de educação) bem como de todos os setores da</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>50</p><p>sociedade civil organizada, pois a bandeira da educação inclusiva tem que ser em-</p><p>punhada e erguida por todos aqueles que desejam uma educação de qualidade e</p><p>igualitária para todos os nossos alunos, sejam eles deficientes ou não.</p><p>Agradecimentos</p><p>Este trabalho foi financiado pelo CIEd - Centro de Investigação em Edu-</p><p>cação, Instituto de Educação, Universidade do Minho, projetos UIDB/01661/2020</p><p>e UIDP/01661/2020, através de fundos nacionais da FCT/MCTES-PT.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>51</p><p>Referências</p><p>ALBA, C. Uma educação sem barreiras tecnológicas. TIC e educação inclusiva.</p><p>In SANCHO, Juana María; HERNÁNDEZ, Fernando (Org.). Tecnologias para</p><p>transformar a educação. Porto Alegre: Artmed, 2006.</p><p>BORTOLOZZO, A: R. Banco de dados para o uso das tecnologias de</p><p>informação e comunicação na prática pedagógica de professores de alunos</p><p>com necessidades educacionais especiais.; In RAMOS, Dimeire Sant’Anna; ENS,</p><p>Romilda Teodora; CASTELEINS, Vera Lúcia (Organizadoras). Anais do VIII</p><p>CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO – EDUCERE [recurso eletrônico]:</p><p>formação de professores: edição internacional. Curitiba: Champagnat, 2008.</p><p>BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 1988. Disponível</p><p>em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.</p><p>Acesso em: 14 jan. 2014.</p><p>BRASIL. Lei nº 9394/96. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.</p><p>Presidência da República: Brasília, 1996. Disponível em:</p><p><http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm>. Acesso em 30/08/14.</p><p>BRASIL. Portaria nº 522, de 9 de abril de 1997. Ministério da Educação e do</p><p>Desporto: Brasília, 1997. Disponível em: <https://www.fnde.gov.br/fndelegis/</p><p>action/UrlPublicasAction.php?acao=abrirAtoPublico&sgl_tipo=POR&num_ato=</p><p>00000522&seq_ato=000&vlr_ano=1997&sgl_orgao=MED>. Acesso em 29/08/14.</p><p>BRASIL. Decreto Nº 6.300, DE 12 de dezembro de 2007. Ministério da Educação</p><p>e do Desporto: Brasília, 2007. Disponível em: <https://www.fnde.gov.br/</p><p>fndelegis/action/UrlPublicasAction.php?acao=abrirAtoPublico&sgl_tipo=DEC&</p><p>num_ato=00006300&seq_ato=000&vlr_ano=2007&sgl_orgao</p><p>=NI>. Acesso em 29/08/14.</p><p>BRASIL. Lei nº 13005 de 25 de junho de 2014, Presidência da República: Brasília,</p><p>2014. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-</p><p>2014/2014/Lei/L13005.htm>. Acesso em 30/08/14.</p><p>CAMPOS, C. M. Gestão escolar e docência. São Paulo: Paulinas, 2010.</p><p>COSTA, J. & MOREIRA, S. O Uso das Tic no Processo de Ensino-</p><p>Aprendizagem de Alunos Com Necessidades Educativas Especiais. Porto:</p><p>Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, 2010</p><p>FREITAS, S. As TIC e os alunos com NEE: a percepção dos professores de</p><p>educação especial de Viseu. Viseu: Universidade Católica Portuguesa. 2012.</p><p>Dissertação de Mestrado. Disponível em http://hdl.handle.net/10400.14/8722.</p><p>Acesso em 17.06.2014</p><p>LEMOS, A. & LÉVY, P. O futuro da internet: Em direção à uma ciberdemocracia.</p><p>São Paulo: Paulus, 2010.</p><p>LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo, Ed. 34, 1999.</p><p>http://www.fnde.gov.br/fndelegis/action/UrlPublicasAction.php?acao=abrirAtoPublico&amp;amp%3Bsgl_tipo=POR</p><p>http://www.fnde.gov.br/fndelegis/action/UrlPublicasAction.php?acao=abrirAtoPublico&amp;amp%3Bsgl_tipo=POR</p><p>http://www.fnde.gov.br/fndelegis/action/UrlPublicasAction.php?acao=abrirAtoPublic</p><p>http://www.fnde.gov.br/fndelegis/action/UrlPublicasAction.php?acao=abrirAtoPublic</p><p>http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13005.htm</p><p>http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13005.htm</p><p>http://hdl.handle.net/10400.14/8722.%20Acesso%20em%2017.06.2014</p><p>http://hdl.handle.net/10400.14/8722.%20Acesso%20em%2017.06.2014</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>52</p><p>MORAES, Simone Becher Araújo; DE BASTIANI, Tânia Mara. Ensinar e</p><p>aprender filosofia no contexto das tecnologias da informação e da</p><p>comunicação: realidade, formação e aprendizagem. Disponível em:</p><p><http://www.ucs.br/etc/conferencias/index.php/anpedsul/9anpedsul/paper/view</p><p>File/117/944>. Acesso em: 2013-06-20.</p><p>MORELLATO, C. et al. Softwares Educacionais e a Educação Especial:</p><p>Refletindo sobre Aspectos Pedagógicos. Revista Novas Tecnologias na</p><p>Educação, V. 4 Nº 1, Julho, 2006.</p><p>MEREGALLI, Ana Cláudia et. alli. A Inclusão Digital na Educação Infantil.</p><p>Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Revista Ágora, Educação e Tecnologia: Ano</p><p>01/2010, Número 01. Disponível em</p><p><http://websmed.portoalegre.rs.gov.br/escolas/revistavirtualagora/materiais/infa</p><p>ntil_grupo.pdf>. Acesso em: 2013-10-01.</p><p>PLÁCIDO, E. G. R. Uma reflexão sobre a influência das novas tecnologias na</p><p>educação e integração social dos surdos. 155f. Dissertação (Mestrado em Mídia</p><p>e Conhecimento). Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção,</p><p>Universidade Federal de Santa Catarina: Florianópolis, 2004.</p><p>RAMOS, Sergio. Tecnologias da Informação e Comunicação. Conceitos Básicos.</p><p>Disponível em</p><p><http://livre.fornece.info/media/download_gallery/recursos/conceitos_basicos/TI</p><p>C-Conceitos_Basicos_SR_Out_2008.pdf>. Acesso em: 2013-10-01.</p><p>RIBEIRO, J. As TIC na educação de alunos com necessidades educativas</p><p>especiais: proposta de um programa de formação para o ensino básico. Tese de</p><p>Doutoramento em Multimédia e Educação. Universidade de Aveiro. 2012.</p><p>Disponível em http://hdl.handle.net/10773/9198</p><p>SANCHO, Juana María; HERNÁNDEZ, Fernando (Org.). Tecnologias para</p><p>transformar a educação. Porto Alegre, Artmed, 2006.</p><p>SANTAROSA, L M. C. “Escola virtual” para a educação especial: ambientes de</p><p>aprendizagem telemáticos cooperativos como alternativa de</p><p>desenvolvimento. Revista de Informática Educativa, Bogotá, v. 10, n. 1, p. 115-138,</p><p>1997</p><p>UNESCO. (2007). Inclusão digital e social de pessoas com deficiência: textos</p><p>de referência para monitores de telecentros. Brasília: UNESCO, 2007.</p><p>UNESCO. Opening new avenues for empowerment: ICTs to acess</p><p>information and knowledge for persons with disabilities. Paris: UNESCO,</p><p>2013.</p><p>TRABALHO DE CONSCIÊNCIA NEGRA DA ESCOLA</p><p>ESTADUAL MONTE SINAI –</p><p>A FORMAÇÃO IDENTITÁRIA</p><p>E O EMPODERAMENTO DOS ESTUDANTES POR MEIO</p><p>DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS AFRO-AFIRMATIVAS</p><p>Alessandra Assis de Oliveira Soares 1</p><p>Esse artigo é a respeito do trabalho desenvolvido na Semana de Consci-</p><p>ência Negra da Escola Estadual Monte Sinai, localizada na cidade de Esmeraldas,</p><p>região metropolitana de Belo Horizonte – Minas Gerais onde são realizados refle-</p><p>xões, debates, exposições e diálogos a respeito do negro, sua identidade e africa-</p><p>nidade e papel na sociedade brasileira. Seu objetivo é compreender de que forma</p><p>as ações desenvolvidas contribuíram para o empoderamento identitário negro e</p><p>autoestima dos alunos afrodescendentes, assim como a desconstrução do precon-</p><p>ceito enraizado.</p><p>Procuramos ao longo dos anos letivos e com culminância na Semana da</p><p>Consciência Negra celebrada em novembro quando se comemora o Dia Nacional</p><p>da Consciência Negra, abordar algumas questões presentes de forma recorrente</p><p>em nosso cotidiano escolar e nas aulas de história e que podem nos ajudar a com-</p><p>preender algumas reações, atitudes e relações estabelecidas no cotidiano escolar.</p><p>A Escola Estadual Monte Sinai se localiza no bairro Novo Retiro da ci-</p><p>dade de Esmeraldas, região metropolitana da capital mineira Belo Horizonte. O</p><p>bairro é uma extensão natural da região de Nova Contagem, da cidade industrial</p><p>de Contagem. A região se caracteriza por ser um bairro dormitório, sem grandes</p><p>comércios, empresas e cresceu, e ainda cresce, de forma desordenada nos últimos</p><p>trinta anos como consequência natural da cidade de Contagem. Exatamente por</p><p>isso, seus moradores têm uma identificação e relação muito maior com Contagem</p><p>do que com a própria cidade, visto que está há mais de vinte quilômetros do centro</p><p>comercial e administrativo de Esmeraldas e com grande escassez de transporte</p><p>público até lá.</p><p>Assim como a maioria dos bairros periféricos e dormitórios da região me-</p><p>tropolitana, a região de Novo Retiro é composta por famílias de classe média baixa</p><p>e classe baixa. Em sua grande maioria são famílias de trabalhadores nas fábricas,</p><p>indústrias e comércio de Belo Horizonte, Betim e Contagem e sem grande qualifi-</p><p>cação profissional e escolaridade.</p><p>1 Bacharel e Licenciada em História Professora da Educação Básica – Seduc /MT</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>54</p><p>A escola foi inaugurada em dezoito de fevereiro do ano de 2013 e foi fruto</p><p>de muita luta dos moradores dos bairros de Monte Sinai, Novo Retiro e Recanto</p><p>Verde e Serra Verde desde o inicio do século atual. A construção de uma escola</p><p>estava previsto no Plano de Atendimento e Expansão da Rede Estadual de Educa-</p><p>ção de Minas Gerais desde o ano de 2004, uma vez que, os alunos da região eram</p><p>obrigados a frequentar as escolas existentes no município, no entanto, a mais pró-</p><p>xima ficava há uma distância de doze quilômetros da região do Novo Retiro e la-</p><p>mentavelmente não possuía infraestrutura para atender todos os alunos, com isso</p><p>muitos faziam uma viagem diária de mais de vinte cinco quilômetros por trecho</p><p>para poderem estudar. A demanda era tão grande que, desde o ano de 2004 tran-</p><p>sitavam pelas rodovias da região quatro escolares no turno matutino, quatro no</p><p>turno vespertino e três no turno noturno. Além de gerar um custo altíssimo para</p><p>o município, responsável pelo transporte escolar, também significava um grande</p><p>risco, já que o trânsito ocorria em uma rodovia estadual extremamente curvilínea</p><p>e por isso mesmo, perigosa, como também sem iluminação, acostamento ade-</p><p>quado. Em 2009, após reinterados pedidos da comunidade e prefeitura o Governo</p><p>de Minas coloca a construção da escola como uma prioridade, porém, ainda era</p><p>necessário um terreno para tal construção, ao que a prefeitura na gestão do então</p><p>prefeito Flávio Leroy doou o terreno que na época era um campo de futebol para</p><p>que fosse finalmente construída uma Escola Estadual de Ensino Médio que aten-</p><p>desse à demanda da região.</p><p>Tão logo foi inaugurada, a escola naturalmente passou a ocupar um lugar</p><p>de destaque na vida dos moradores. Não apenas por ser a única escola de ensino</p><p>médio da região, mas também por seu, seu prédio, o único prédio público com in-</p><p>fraestrutura mínima para que a comunidade pudesse usufruir e, em pouco tempo</p><p>tornou-se um equipamento de ensino, lazer e cultura de toda comunidade. Em</p><p>suas dependências passaram ocorrer campeonatos, celebrações religiosas, festas</p><p>comunitárias, noivados, chás de bebê, casamento entre outros eventos.</p><p>Para este trabalho utilizamos como metodologia a análise de artigos e</p><p>textos sobre a temática que nos proporcionou o embasamento teórico necessário,</p><p>nossos registros diários da prática docente desenvolvida ao longo dos anos, entre-</p><p>vistas semiestruturada com toda a comunidade escolar, a saber: alunos/as/, ex-a-</p><p>lunos/as, professores/as e gestores e pais. Cabe salientar que todas as entrevistas</p><p>foram realizadas por adesão daqueles que prontamente se disponibilizaram em</p><p>responder as perguntas e consentiram o seu uso em nosso estudo. Fizemos a lei-</p><p>tura das entrevistas, analisando o significado das falas e fazendo uma relação entre</p><p>as mesmas, a bibliografia utilizada e nossas próprias observações com o objetivo</p><p>de abranger ao máximo a análise e compreensão do assunto estudado.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>55</p><p>A questão da identidade racial no Brasil</p><p>O Brasil possui uma das maiores sociedades multirraciais do mundo. De</p><p>acordo com o censo de 2016 o país tem um total de 205,5 milhões de habitantes.</p><p>Desses 90,9 milhões de brasileiros se autodenominam brancos (44,2%), 16,8 mi-</p><p>lhões como pretos (8,2%) 95,9%milhões como pardos (46,7%), 965 mil como a-</p><p>marelos (0,47%) e 780 mil como indígenas (0,38%). Isso significa que, do ponto de</p><p>vista étnico-racial 54,9% da população brasileira apresenta ascendência negra e</p><p>africana que se expressa em sua cultura e∕ou na construção de sua identidade. A-</p><p>creditamos que a identidade negra é uma construção pessoal e social e é elaborada</p><p>individual e socialmente de forma diversa.</p><p>A identidade negra se constrói em um movimento que envolve inúmeras</p><p>variáveis, uma vez que é uma construção social, histórica e cultural onde o sujeito</p><p>se reconhece na conjunção do grupo étnico-racial, a partir da sua história, cultura</p><p>e relações estabelecidas com o outro.</p><p>A construção do conceito de identidade está associada ao meio e baseia-</p><p>se em fatores culturais, econômicos, étnicos, políticos e geográficos. Munanga</p><p>(1994), ao falar de identidade afirma:</p><p>[...]a identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades huma-</p><p>nas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiológico sempre selecio-</p><p>nou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição</p><p>ao alheio. A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade</p><p>atribuída) tem funções conhecidas: a defesa da unidade de grupo, a proteção do</p><p>território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses</p><p>econômicos, políticos, psicológicos, etc. (MUNANGA, 1994. p. 17).</p><p>Logo, o conceito de identidade pode ser entendido como um conjunto de</p><p>aspectos individuais que caracterizam uma pessoa, mas também um aspecto plu-</p><p>ral, constituído a partir das relações que são permanentemente mutáveis como</p><p>bem destaca Gomes (2005):</p><p>A identidade não é algo inato. Ela se refere a um modo de ser no mundo e com os</p><p>outros. É um fator importante na criação das redes de relações e de referencias</p><p>culturais dos grupos sociais. Indica traços culturais que se expressam através de</p><p>práticas linguísticas, festivas, rituais, comportamentos alimentares, tradições</p><p>populares e referencias civilizatórias que marcam a condição humana (GOMES,</p><p>2005. p. 41).</p><p>Quando falamos de identidade, não podemos nos furtar de falar em dife-</p><p>rença, visto que algumas relações estabelecidas entre o eu e o outro são conflituo-</p><p>sas e, por mais que se fale sobre igualdade, a nossa sociedade ainda hoje se</p><p>estabelece baseada</p><p>em estereótipos que tem como padrão ideal de identidade o</p><p>homem BRANCO, de pele clara, CABELOS LISOS e CRISTÃO. E todos que se</p><p>afastam desse padrão vão adquirindo ares de inferioridade.</p><p>Apesar de o censo revelar a presença significativa de afrodescendentes e</p><p>a autodefinição ter crescido nos últimos censos, é um grande desafio construir</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>56</p><p>uma identidade negra positiva em uma sociedade que insiste em pregar∕viver no</p><p>mito da democracia racial, negando a desigualdade entre brancos e negros como</p><p>fruto do racismo e que em contra partida nos ensina que para sermos aceitos é</p><p>preciso nos afastar de nossas raízes e incorporar os valores eurocêntricos.</p><p>O negro recebe uma carga de preconceitos e discriminações maiores que</p><p>outros povos e grupos, pois além do histórico de escravidão, teve suas caracterís-</p><p>ticas físicas e culturais vinculadas a aspectos pejorativos na constituição da soci-</p><p>edade brasileira. É o que podemos perceber na fala de algumas das entrevistadas:</p><p>Durante anos eu tentava esconder meu cabelo caheado por vergonha e medo dos</p><p>olhares maldosos, fiz isso porque desde pequena eu sofri com apelidos como</p><p>“bombril” “bucha” dentre outros... Com o cabelo liso eu me sentia menos negra</p><p>entende? Parecia que só assim eu estava adequada para os lugares. (Giovana Mo-</p><p>reira, 17 anos, autodeclarada negra, formanda 2019)</p><p>Durante toda a minha vida ignorei meu cabelo cacheado, sempre escovava e ali-</p><p>sava ele tentando me encaixar no que eu via na TV e na internet. (Suely Alves. 19</p><p>anos, autodeclarada negra, formanda 2018)</p><p>No questionário de uma prova eu coloquei branca porque achava que era “clari-</p><p>nha” e que negra é uma palavra forte demais. (Suelem Alves, 20 anos, autodecla-</p><p>rada negra, Formanda 2017)</p><p>Meu cabelo não era natural, eu me camuflei assim porque o bonito era ter cabelos</p><p>lisos, mas hoje estou com os cabelos naturais e muito feliz comigo e minha cor. (Ju-</p><p>liana Martins, 19 anos, autodeclarada negra, estudou até o segundo ano em 2016)</p><p>Fica evidente a partir dos relatos que as relações étnico-raciais que en-</p><p>volvem o negro não são baseadas apenas na pele negra, mas em tudo que a cor da</p><p>pele representa na sociedade e que foi construída social e culturalmente.</p><p>O Papel da escola na formação da sociedade</p><p>Acreditamos que se a educação e por consequência, a escola não é a solu-</p><p>ção de tosos os males, pelo menos ocupa um importante lugar na produção de co-</p><p>nhecimento, sendo responsável por uma importante parcela da educação dos</p><p>cidadãos e, por isso mesmo, deve se posicionar contra todo e qualquer forma de</p><p>discriminação, como Gomes (1996) afirma:</p><p>A escola não é um campo neutro onde, após entrarmos os conflitos sociais e ra-</p><p>ciais permanecem do lado de fora. A escola é um espaço sociocultural onde con-</p><p>vivem os conflitos e as contradições. O racismo e a discriminação racial e de</p><p>gênero, que fazem parte da cultura e da estrutura da sociedade brasileira, estão</p><p>presentes nas relações entre educadores∕as e educandos∕as. [...] Sendo assim, per-</p><p>cebe-se na escola a presença da ideologia do branqueamento, que se revela atra-</p><p>vés da tentativa de suavizar o pertencimento racial dos∕as alunos∕as e professores</p><p>negros∕as. ( GOMES, 1996. p. 56).</p><p>Portanto, a escola é um lugar privilegiado na construção da identidade. Os</p><p>diferentes sujeitos envolvidos, professores∕as alunos∕as, responsáveis, funcionários e</p><p>comunidade escolar constroem diferentes identidades ao longo de sua história de</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>57</p><p>vida e a escola como um espaço de aprendizagem e socialização tem grande impor-</p><p>tância nisso uma vez que é a instituição responsável pela educação formal dos cida-</p><p>dãos e por isso mesmo é mister que ela se posicione politicamente contra toda e</p><p>qualquer forma de discriminação, Reconhecer e valorizar outras culturas como a ne-</p><p>gra e a indígena são elementos importantes nas relações sociais na escola, no sentido</p><p>que ela permite que a comunidade escolar possa perceber a importância das diferen-</p><p>ças étnico-raciais na formação e na riqueza cultural de nossa sociedade.</p><p>É o que percebemos nas observações feitas pelos alunos quando questio-</p><p>nados sobre a importância de se trabalhar as questões étnico-raciais na escola:</p><p>“Trabalhar a questão étnico-racial nas escolas, na minha visão é essencial para</p><p>aguçar o sentimento de pertencimento e admiração à cultura negra e acima de</p><p>tudo, contribui na busca pelo pleno respeito.” (Suely Alves, 19 anos, formanda</p><p>2018, autodeclarada parda).</p><p>“Na minha opinião é um assunto que deve ser abordado sempre, pois amplia o</p><p>conhecimento e a mente de alunos que discriminam outras culturas.” (Brenda da</p><p>Cruz, 22 anos, formanda em 2015, autodeclarada negra).</p><p>“Eu amo porque assim aprendemos mais sobre outros costumes e culturas e ve-</p><p>mos que temos mais semelhanças que diferenças.” (Tayná Santiago, 20anos, for-</p><p>manda em 2017, autodeclarada branca).</p><p>Como pode-se perceber a escola é um ambiente privilegiado que favorece</p><p>trocas culturais e de vivencias de indivíduos oriundos de diferentes grupos étnico-</p><p>raciais que compartilham e adquirem não só conteúdos e saberes escolares, mas</p><p>compartilham valores, representações e crenças relativos à raça, gênero, classe so-</p><p>cial que lhes permitem interpretar significativamente as ações e o mundo que os</p><p>cercam. Esse deve ser o principal papel da escola, de desconstruções de conceitos</p><p>construídos historicamente e que, quase sempre, levam ao reforço de estereótipos</p><p>e representações negativas do que é ser negro(a). Como afirma Gomes (2003, p.77)</p><p>“A escola revela-se como um dos espaços em que as representações negativas sobre</p><p>todos negros são difundidas. E por isso mesmo, ela também é um importante local</p><p>onde estas podem ser superadas”.</p><p>Lamentavelmente, as teorias (e práticas) racistas presentes no cotidiano</p><p>escolar e na sociedade acabam legitimando o racismo presente no imaginário so-</p><p>cial e na prática social escolar. Perceber que ainda existe a ideologia racista no</p><p>cotidiano escolar muitas vezes gera desconforto nas relações de trabalho. Um sim-</p><p>ples passeio com o olhar mais atento no pátio da escola durante o intervalo, na sala</p><p>de professores e os “famosos” Conselhos de Classe podem ser reveladores de como</p><p>o racismo se faz presente e se organiza no espaço escolar. Apenas para exemplifi-</p><p>car atitudes racistas por parte de profissionais da educação, relato dois fatos ocor-</p><p>ridos na referida escola. Em 2016 na Semana de Consciência Negra, durante a</p><p>correria para deixar tudo organizado para o início das atividades um professor</p><p>simplesmente disse: “Eu vou para biblioteca somar notas porque não gosto dessas</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>58</p><p>coisas de preto não”. Em outra situação, em 2018 durante uma de suas aulas em uma</p><p>turma do primeiro ano do Ensino Médio, uma professora afirmou que era contrária</p><p>ao Dia da Consciência Negra celebrado em vinte de novembro, data em que Zumbi</p><p>dos Palmares – símbolo da resistência negra – foi morto, porque não havia o dia da</p><p>consciência branca. Ao indagar o professor de filosofia da escola sobre a existência</p><p>ou não de um racismo institucionalizado nas escolas, o mesmo respondeu:</p><p>Infelizmente sim. Apesar de vermos avanços nessa direção, ainda percebemos</p><p>uma certa associação e comportamento relacionado à cor. Na Escola Monte Si-</p><p>nai, colhemos os frutos de um trabalho sistemático em relação a tal associação</p><p>racista e preconceituosa. Mas ainda escutamos piadas nessa direção e associa-</p><p>ções “veladas” por um discurso aparentemente pedagógico, por parte de alguns</p><p>educadores. Enquanto professor, vejo uma diminuição nesse “assombramento”</p><p>em relação a um professor negro trabalhando na escola. Creio eu, devido a polí-</p><p>ticas públicas e a conscientização de parte da população em relação à questão</p><p>do negro e os espaços sociais a serem ocupados. Ainda ouço coisas como: Só pode</p><p>ser professor de Educação Física e percebo que há um estranhamento por parte</p><p>da sociedade em relacionar</p><p>Professor versus Negro versus Filosofia. Para muitos,</p><p>o espaço do negro é em atividade mais corporais e não intelectuais. Até na edu-</p><p>cação, muitos associam o professor negro como apenas professor de educação</p><p>física. (Wemerson Geraldo, professor de Filosofia há mais de 16 anos)</p><p>Tais situações nos fazem indagar como a discriminação e os preconceitos</p><p>raciais presentes na dinâmica das relações sociais estão intimamente associadas à</p><p>conformação de identidades subalternas no interior das escolas e como estas in-</p><p>terferem nos desempenhos e nas trajetórias de escolarização dos alunos.</p><p>Infelizmente a escola AINDA é pensada e orientada a partir de valores</p><p>machistas da cultura ocidental hegemônica e não valoriza outras culturas, o que</p><p>torna um ambiente homogeneizador de corpos e pensamentos e não do exercício</p><p>da diversidade. Arroyo (1995, p.25) deixa claro o porquê não devemos ignorar a</p><p>questão racial: “Ignorar e reprimir o pertencimento racial do educando é obrigá-lo</p><p>a construir um projeto identitário ambíguo. A autoimagem é estruturante do perfil</p><p>de nossa identidade social e cultural”.</p><p>Muitas vezes o racismo não aparece de forma explícita como foram rela-</p><p>tado e, por isso mesmo, as escolas negam sua existência. O racismo como ideologia</p><p>é mais difícil de perceber e requer a compreensão de processos históricos como a</p><p>escravidão, a segregação, a discriminação e o preconceito, assim como, a compre-</p><p>ensão das diferentes heranças culturais. E por isso mesmo é tão importante à prá-</p><p>tica do combate a toda e qualquer forma de discriminação nas escolas, seja racial,</p><p>de gênero, sexual, dentre outras.</p><p>O estudante negro se constitui onde sua cultura não é valorizada, por ser</p><p>negro, por ser jovem. Além disso, seu pertencimento étnico-racial sendo ou não</p><p>percebido proporciona uma série de situações de constrangimento, discriminação</p><p>e outras formas de violência que influenciam decisivamente a sua formação. O ra-</p><p>cismo nas escolas leva os estudantes a projetarem suas identidades em conflito</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>59</p><p>com a realidade do seu corpo e sua trajetória étnica. Ao serem questionados se</p><p>vivenciaram situações de preconceito e/ou discriminação durante a trajetória es-</p><p>colar por colegas ou professores, vários alunos se manifestaram:</p><p>“Sim, fui muito humilhada por causa dos meus traços fortes, principalmente a</p><p>boca. Recebia apelidos de mau gosto que me deixaram muito mal”. (Brenda da</p><p>Cruz, 22 anos, formanda em 2015).</p><p>“Sim, uma colega de turma fez o seguinte comentário: - Como uma pessoa vem</p><p>com o cabelo desse jeito para a escola?”. (Giovanna Moreira, 17 anos, atual ter-</p><p>ceiranista).</p><p>“Me lembro que em uma edição da Semana da Consciência Negra da escola, um</p><p>professor de física optou por ficar na biblioteca para não assistir o evento. Se não</p><p>me falha a memória, o professor chegou a fazer pouco caso das atividades da Se-</p><p>mana, alegando ser besteira ou algo desnecessário. Considero que o comporta-</p><p>mento do professor, por tratar com descaso a Semana da Consciência Negra, seja</p><p>um ato de preconceito e discriminação, justamente por não reconhecer a impor-</p><p>tância da discussão que o evento proporciona para toda a comunidade acerca</p><p>das questões étnico-raciais.”. (Leonardo Vitalino, formando 2016, 20 anos auto-</p><p>declarado negro).</p><p>“Já passei por algumas situações, como por exemplo, meu cabelo não ser liso e</p><p>até mesmo por eu ser negra”. (Juliana Martins Rodrigues, 19anos, estudou na</p><p>escola até segundo ano do ensino médio em 2016).</p><p>Nesse sentido, é essencial o debate educacional, visto que a escola é im-</p><p>portante lócus de enfrentamento e combate ao racismo. Se a escola não proporci-</p><p>onar conhecimentos que abordem a diversidade étnico-racial do país, que</p><p>problematizem as posições sociais construídas por cada grupo social e na oferecer</p><p>elementos que positivem a imagem do negro, muitos ainda serão estigmatizados e</p><p>carregarão ressentimentos sobre sua própria identidade.</p><p>A prática docente e o combate ao racismo</p><p>Leis como 10639/20032 e 11.645/20083 sancionadas pelo ex-presidente</p><p>Lula trouxeram novas perspectivas à educação e exigiu um repensar das relações</p><p>étnico-raciais no ambiente escolar. Como Gomes (2011) afirma:</p><p>A sanção de tal legislação significa uma mudança não só nas práticas e nas políticas,</p><p>mas também no imaginário pedagógico e na sua relação com o diverso, aqui, neste</p><p>caso, representado pelo segmento negro da população. (GOMES, 2011. p. 1)</p><p>Infelizmente, a publicação de leis não significa a efetiva prática nas esco-</p><p>las, uma vez que:</p><p>2 A Lei nº 10.639/03 altera a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996,</p><p>torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas</p><p>e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio.</p><p>3 A Lei 11.645/2008 altera a LDB 9.394/1996, modificada pela Lei 10.639/2003, a qual estabelece as</p><p>diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a</p><p>obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira e indígena”.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>60</p><p>A lei e as diretrizes entram em confronto com as práticas e com o imaginário</p><p>racial presentes na estrutura e no funcionamento da educação brasileira, tais</p><p>como o mito da democracia racial, o racismo ambíguo, a ideologia do branquea-</p><p>mento e a naturalização das desigualdades raciais. (GOMES, 2011. p. 116)</p><p>No entanto, apesar o imaginário conservador em relação à diversidade e</p><p>a questão racial que muitos docentes ainda abordam, - e que com profundo pesar</p><p>assistimos uma retroalimentação e crescimento nos últimos três anos – muitas es-</p><p>colas, principalmente as públicas, vem desenvolvendo práticas pedagógicas volta-</p><p>das para a diversidade étnico-racial, com projetos interdisciplinares,</p><p>comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra, entre outros. Algo que con-</p><p>tribuiu muito para o sucesso das ações e projetos que desenvolvemos foi a oportu-</p><p>nidade de continuidade do trabalho, que muitas vezes, os profissionais não têm</p><p>visto que em boa parte da carreira de um professor ele não possui uma estabilidade</p><p>profissional que permite um prosseguimento do trabalho. Começamos a trabalhar</p><p>na escola no ano da sua inauguração e neste mesmo ano tivemos a felicidade de</p><p>sermos nomeadas como servidora efetiva do Estado de Minas Gerais na referida</p><p>escola. Assim, desde o primeiro ano começamos a desenvolver nossas atividades e</p><p>mais que isso, buscamos imprimir no currículo oculto4 da Escola e em sua Cultura,</p><p>atividades que de fato fizessem com que a Escola Estadual Monte Sinai fosse in-</p><p>clusiva e militante e atuante em busca de uma sociedade mais justa, solidária e</p><p>contrária a toda e qualquer forma de discriminação e racismo. A manutenção da</p><p>Semana ano a pós ano, não apenas imprimiu como queríamos o caráter combativo</p><p>na cultura escolar como também é percebida pelos profissionais que lá trabalham:</p><p>“A escola estadual monte sinai se destaca e é referência no projeto da consciência</p><p>negra, uma vez que há uma preocupação em valorizar o “ser humano”. Como</p><p>profissional da educação, não estive e desconheço escolas que fazem esse traba-</p><p>lho de valorização do negro como a escola estadual monte sinai. Percebe-se um</p><p>grande envolvimento entre o corpo docente e discente e assim, consequente-</p><p>mente, é notória a satisfação e alegria de todos os alunos envolvidos, principal-</p><p>mente dos alunos da raça negra”. (Beatriz Campolina, Professora de Língua</p><p>Portuguesa há 17 anos)</p><p>“Estou há dezesseis anos trabalhando em Escolas Públicas, percebo claramente</p><p>a importância de uma constância em projetos dessa natureza. Já presenciei mui-</p><p>tos trabalhos positivos dessa natureza em outras escolas. No entanto, se perdiam</p><p>por não haver continuidade, na Escola Monte Sinai é visível a importância da</p><p>constância da discussão de tais temas. Vemos muitos jovens se descobrindo in-</p><p>dividualmente, socialmente se situando dentro de sua história e da</p><p>MULHERES-MÃES EM ISOLAMENTO SOCIAL</p><p>Klinger Teodoro Ciríaco, Brenda Cristina Antunes, Francieli Aparecida Prates dos Santos .... 341</p><p>ÍNDICE REMISSIVO .............................................................................................................. 361</p><p>OS PILARES DA EDUCAÇÃO LIBERTADORA:</p><p>CORAGEM, AMOR E DIÁLOGO!</p><p>Olá amigos e amigas.</p><p>Educadores e Educadoras.</p><p>Mais uma coletânea da nossa editora Diálogo Freiriano se coloca a sua</p><p>disposição para leitura, estudo e aprofundamento. São mais artigos que diversos</p><p>professores e professoras, pesquisadores e pesquisadoras se dedicaram a preparar</p><p>a partir de seus estudos no campo da educação, especialmente vinculada e direci-</p><p>onada a educação crítica, ou se preferir, à crítica da educação.</p><p>Este trabalho de escrita não é fácil, tampouco, simples.</p><p>Ele exige ousadia e determinação, mais ainda, exige compromisso com</p><p>uma educação baseada na conscientização. Na crença inabalável de que a educa-</p><p>ção é um dos pilares da construção do mundo que queremos mais justo e fraterno,</p><p>mais solidário. Essencialmente, esta postura pedagógica crítica, está balizada na</p><p>coragem.</p><p>Por isso, nossa coletânea se intitula “Educar é um ato de coragem”. Este</p><p>título tem dupla função nesta obra que tem em mãos. Primeiro, ele sinalizava que</p><p>tipo – ou estilo – de artigo buscávamos quando abrimos a chamada para a coletâ-</p><p>nea. Não aceitaríamos qualquer tipo de artigo escrito sobre educação. Tanto é que</p><p>alguns artigos foram rejeitados. Segundo, o nome do livro sintetiza a coragem e</p><p>ousadia de seus autores e autoras de se posicionarem e de refletirem sobre a edu-</p><p>cação com proposições firmes e sem medo.</p><p>Paulo Freire, que sempre nos inspira nestas jornadas, já nos alertava:</p><p>Porque é ato de coragem, nunca de medo, o amor é compromisso dos homens.</p><p>Onde quer que estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se</p><p>com sua causa. A causa da libertação. Mas, este compromisso, porque é amoroso,</p><p>é dialógico.</p><p>Perceba, querido leitor, querida leitora, coragem e amor andam juntos.</p><p>Então, não podemos dicotomizar a coragem e o amor. O que eu quero dizer, que</p><p>se você visualiza um ato de coragem, está na verdade vendo um ato de amor. Da</p><p>mesma forma quando visualiza um ato de amor, está presenciando um ato de co-</p><p>ragem. Amar é um ato de coragem e ser corajoso é um ato de amor. Neste sentido</p><p>ambos são a expressão do comprometimento dos educadores e educadoras com a</p><p>educação libertadora.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>10</p><p>O que sustenta esta postura política e pedagógica é o diálogo. E nunca é</p><p>demais recordar que diálogo em Paulo Freire é uma categoria teórica e não uma</p><p>conversa entre pessoas. Dialogar para Freire é pronunciar um novo mundo no qual</p><p>cremos e que queremos ver concretizado, mais justo, mais solidário para todos.</p><p>Um mundo sem opressão, sem oprimidos e sem opressores. A educação tem um</p><p>papel social fundamental na construção deste novo mundo.</p><p>Sendo assim, nossos escritos, que estão neste livro são marcados por estas</p><p>perspectivas, da coragem, do amor e do diálogo. Cada um e cada uma, à sua ma-</p><p>neira, expressam em suas linhas o desejo comprometido de abrir um diálogo com</p><p>o leitor e a leitora sobre estas problematizações e suas intenções de transformação.</p><p>É um chamado a dialogar e a pronunciar este mundo novo que a educação liberta-</p><p>dora luta por ajudar a construir. Se você está neste mesmo caminho, será um pra-</p><p>zer ter você conosco. Vem!</p><p>Vejam, querides, que este livro é mais que um simples registro de artigos</p><p>agrupados para serem publicados. É um manifesto de nosso compromisso com a</p><p>causa da educação libertadora. Com a causa de um novo mundo, por conseguinte.</p><p>Ou seja, o que tem em mãos é um pronunciamento de nossa perspectiva de como</p><p>a educação pode – e vai – mudar o nosso mundo para nós vivermos em sociedade</p><p>sem tanta opressão. Como já anunciou Paulo Freire:</p><p>É na realidade mediatizadora, na consciência que dela tenhamos, educadores e</p><p>povo, que iremos buscar o conteúdo programático da educação.</p><p>Esperamos, sinceramente, que nossas coletâneas sejam estopim de diá-</p><p>logo transformador. Que cada linha inspire nossos interlocutores e interlocutoras</p><p>a agir e refletir em seus espaços pedagógicos inserindo gradativamente o que a-</p><p>prenderam neste livro e possamos, assim, agir coletivamente, fazendo de nossos</p><p>lugares o ponto de partida da mudança.</p><p>Com nosso compromisso e nossa coragem!</p><p>Um grande abraço e boa leitura!</p><p>Ivanio Dickmann</p><p>Organizador</p><p>VERDADE, CORAGEM E EDUCAÇÃO POLÍTICA</p><p>Afrânio Tenório da Silva 1</p><p>“A essência do simples e do auto-evidente é que constitui o</p><p>lugar propriamente dito para o caráter abismal do mundo. E</p><p>esse abismo só se abre se filosofamos, mas não se acreditamos já</p><p>saber do que estamos falando”.</p><p>(Heidegger, 2009, p. 53).</p><p>Introdução</p><p>Conforme o empreendimento de Foucault em seus três últimos cursos</p><p>proferidos no Collège de France (A hermenêutica do sujeito; O governo de si e dos outros; A</p><p>coragem da verdade), podemos tomar toda a História da Filosofia tendo como fio con-</p><p>dutor o conceito de parresia. Parresia, é o dizer verdadeiro de um político na as-</p><p>sembleia ou o dizer verdadeiro do filósofo enquanto conselheiro de um governante.</p><p>A verdade opera o encontro entre política e filosofia, uma vez que é tarefa da filo-</p><p>sofia a clarificação dos conceitos e tarefa da política ter na verdade as suas bases.</p><p>Tradicionalmente a verdade tem sido buscada e localizada no objeto co-</p><p>nhecido ou no sujeito que conhece, ou ainda na relação entre ambos, mas sempre</p><p>nessa dicotomia. O conceito de parresia permite-nos sair desse modelo cristali-</p><p>zado pela Teoria do Conhecimento e circunscrever a verdade no jogo das práticas</p><p>que possibilitam o governo dos homens, isto é, na ação política. Por isso faz-se</p><p>necessária a distinção entre essas duas vertentes de pensamento acerca da ver-</p><p>dade, a saber, a que vem de Aristóteles passando pela Escolástica e a que Foucault</p><p>identifica como verdade parresiástica.</p><p>Pela reflexão dessa longa história das ideias e das práticas, estendendo o</p><p>alcance do conceito de parresia – ao modo da parresia na relação de mestria, tão</p><p>bem desenvolvida por Foucault na Hermenêutica do Sujeito – à atividade docente, é</p><p>possível que lancemos luz sobre a ação daqueles que governam e daqueles que e-</p><p>ducam. Qualquer um que se habilite aos cuidados dos outros homens está a prati-</p><p>car ação política, seja pelo governo, seja pela educação, porquanto se deparará</p><p>sempre com questões sobre o como fazer e o porquê fazer de tal modo. Certamente</p><p>uma noção sobre o que é o próprio ser humano subjaz à prática do governo2.</p><p>1 Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP</p><p>2 O termo governo empregado por Foucault no contexto de seus últimos cursos no Collège de France,</p><p>nem sempre se refere ao governo político. Pode-se, por exemplo, ser aplicado a outras relações, como</p><p>o governo de si, ou “cuidado de si”. Esse trânsito do termo da ética à política e vice-versa é uma</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>12</p><p>É nesse sentido que o itinerário proposto aqui pretende, modestamente,</p><p>tocar na ação do docente enquanto indivíduo político inserido numa coletividade</p><p>política e corresponsável pela educação de muitos. Sugere-se a pergunta sobre</p><p>uma possível prática da parresia docente no contexto do atual Estado Democrá-</p><p>tico de Direito. E para a elucidação da questão, o diálogo de Foucault com os anti-</p><p>gos e os modernos – Heidegger e Kant, por exemplo – parece-nos de grande</p><p>importância. Os deslocamentos provocados por esse debate, uma vez realocados</p><p>no interior de algumas das tradicionais áreas da filosofia – Teoria do Conheci-</p><p>mento, Ética, Política, Antropologia Filosófica – constituem-se numa fonte de ins-</p><p>piração para um possível programa de Filosofia da Educação.</p><p>A parresia política nas democracias e autocracias</p><p>Dentro da genealogia desenhada</p><p>sociedade”.</p><p>(Wemerson Geraldo, Professor de Filosofia, autodeclarado negro)</p><p>4 Segundo Silva (2011, p.78) “O currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente</p><p>escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, explicito, contribuem, de forma implícita, para</p><p>aprendizagens sociais relevantes”. Entendemos que, sua transmissão ocorre implicitamente, mas</p><p>poderoso o bastante para provocar lutas ideológicas e políticas que proporcione mudanças sociais</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>61</p><p>As práticas pedagógicas no que concerne as questões étnico-raciais, na</p><p>maioria das vezes, são iniciadas por uma atuação individual de docentes interes-</p><p>sados no tema e que a partir dessa “militância” conseguem inserir ações e projetos</p><p>no Projeto Político Pedagógico das escolas visto que há uma legislação que aponta</p><p>a obrigatoriedade de se trabalhar a temática. Essa obrigatoriedade tem levado a</p><p>adesão de docentes e gestores de forma que tais práticas tem se tornado cada vez</p><p>mais coletivas e articuladas dentro do espaço escolar, ainda que haja, como já re-</p><p>latado resistência por parte do corpo docente.</p><p>Na Escola Estadual Monte Sinai não foi muito diferente. Não apenas por</p><p>ser docente da disciplina de História, mas por ser alguém que desde criança con-</p><p>viveu com situações de discriminação racial e, por isso mesmo, com grande inte-</p><p>resse na temática. Buscamos desde o primeiro ano da escola e de nossa docência</p><p>na mesma, trabalhar e desenvolver discussões e um pensamento crítico-reflexivo</p><p>a respeito das desigualdades étnico-raciais, de gênero e sociais não apenas no mês</p><p>de novembro, quando ocorrem as atividades em virtude do Dia Nacional de Cons-</p><p>ciência Negra, como no decorrer de todo ano letivo.</p><p>Reconhecemos os/as alunos/as como sujeitos socioculturais em formação e</p><p>fruto das mais diversas experiências e por isso mesmo, buscamos abrir o espaço para</p><p>discussões em torno da diversidade e do combate a toda e qualquer forma de discri-</p><p>minação e preconceito, e não apenas o étnico-racial. Acreditamos e defendemos que</p><p>somente a EDUCAÇÃO é capaz de possibilitar a afirmação de uma identidade negra</p><p>de forma positiva e por consequência o empoderamento. Sabemos que esse percurso</p><p>de ensino e reconstrução identitária de nossos/as alunos/as está permeado por nos-</p><p>sas próprias vivências e, por meio delas, buscamos proporcionar o acesso à história</p><p>e cultura do povo negro, possibilitando-lhes perceberem a diversidade cultural</p><p>como uma construção a ser questionada, problematizada e debatidas sem versões</p><p>definitivas e nem verdades absolutas. Em nossas atividades sempre buscamos sair</p><p>do trivial da “capoeira e feijoada” enquanto herança cultural africana.</p><p>Por meio da História dos Grandes Reinos e Civilizações Africanos pro-</p><p>curamos apresentar não apenas a história que se apresenta nos livros didáticos do</p><p>primeiro ano de ensino médio, como apresentar escritores, músicos, poetas. Bus-</p><p>camos apresentar uma cultura rica, diversa de forma a despertar o orgulho nos/as</p><p>alunos/as por suas raízes e história. Permitindo assim, que não só os/as negros/as,</p><p>mas a todos/as a aquisição de conhecimentos calcados na tradição, memória e cul-</p><p>tura africana e, assim apresentar um contraponto a cultura eurocêntrica presente</p><p>na escola e livros didáticos, fazendo-os dialogarem com outras formas de ver e es-</p><p>tar no mundo.</p><p>As Semanas de Consciência Negra da Escola Estadual Monte Sinai são</p><p>repletas de apresentações, debates, exibições de documentários e filmes que pro-</p><p>curavam instigar a análise, debate e reflexão a respeito da condição do negro na</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>62</p><p>sociedade brasileira, assim como a desigualdade social e de oportunidades presen-</p><p>tes na sociedade brasileira. Também com o objetivo de romper a visão estereoti-</p><p>pada que sempre foi atribuída aos negros no intuito de inferiorizá-lo e, buscando</p><p>contribuir para a (RE)construção do SER NEGRO e suas ressignificações, a cada</p><p>ano promovíamos desfiles, fotos, palestras com profissionais da área da beleza, mi-</p><p>litantes da causa negra e profissionais negros. Esses dias eram dias de festa para</p><p>toda escola, como os alunos e profissionais relatam:</p><p>“A Consciência Negra no Monte Sinai foi algo diferente pra mim. Kkk, nas esco-</p><p>las que estudei tinha o dia da Consciência Negra, mas nunca davam tanta im-</p><p>portância. Já no Monte Sinai foi diferente, teve feira, cartazes, apresentações da</p><p>beleza negra, teatros e coisas a mais. E não eram somente negros que participa-</p><p>vam, eu mesmo sendo branquelo participei da Semana. Foi algo diferente e legal</p><p>de se ver, independente da cor de pele você pode ter orgulho de outra etnia”.</p><p>(Bruno Andrade, 18 anos, formando em 2018 e autodeclarado branco)</p><p>“A partir do momento em que as disciplinas se voltam para uma atividade inter-</p><p>disciplinar como a Semana de Consciência Negra, a noção de conhecimento se</p><p>amplia. Conhecemos autores, literários, artistas e cientistas negros que até então</p><p>tiveram pouca visibilidade no espaço escolar. Os laços de identificação contri-</p><p>buiu na minha formação enquanto cidadão ativo e participativo, combatente à</p><p>qualquer tipo de discriminação, que reconhece o erro histórico do racismo e de-</p><p>fende políticas emergentes de reparação”. (Leonardo Vitalino, 20 anos formando</p><p>em 2016 e autodeclarado negro)</p><p>Além do sentimento festivo da semana, percebe-se o quanto as atividades</p><p>desenvolvidas foram significativas na vida e na postura dos alunos/as negros/as</p><p>como eles mesmos afirmam ao serem questionados como os trabalhos desenvolvi-</p><p>dos na escola contribuíram em suas vidas:</p><p>“Me mostrou que qualquer tipo de beleza é linda, principalmente a natural...hoje</p><p>em dia eu tento ao máximo deixar meu cabelo mais volumoso do que ele já é! Me</p><p>sinto linda de caichinhos(sic)! E sou extremamente grata a Monte Sinai por ter</p><p>contribuído com isso, hoje eu aceito como sou, sendo negra de verdade”. (Gio-</p><p>vanna Moreira, 17 anos, formanda em 2019, autodeclarada negra)</p><p>“Me ajudou muito a me reconhecer como mulher negra, me mostrou que tenho mi-</p><p>nha própria beleza, e a partir daí comecei a expressar minha personalidade e hoje a</p><p>onde vou sinto que sou notada (quase sempre com bom olhos, mas nem sempre)</p><p>sempre me elogiam a respeito do meu cabelo, do meu estilo e etc. Amo a forma</p><p>como me sinto hoje, amo como posso me expressar de todas as formas e estilos e</p><p>ainda assim ficar bonita. Amo o amor que desenvolvi por mim msm(sic), e isso se</p><p>deve principalmente por me reconhecer mulher negra e EMPODERADA”. (Suely</p><p>Alves, 19 anos, Formanda em 2018, autodeclarada negra)</p><p>“Me deixando mais confiante para assumir minha identidade de mulher negra”.</p><p>(Suelem Alves, 20 anos, Formanda em 2017, autodeclarada negra)</p><p>Os profissionais que trabalham na escola também relatam a mudança no</p><p>comportamento dos alunos/as</p><p>“Vi muitas alunas assumindo seu estilo natural, principalmente no cabelo. Na mai-</p><p>oria das vezes elas alisavam, passavam prancha, uma forma de se esconder. Assumir</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>63</p><p>isso e perceber que existe beleza no seu natural é lindo e senti orgulho disso”, (Ro-</p><p>naldo Queiroz, Professor de Matemática há 10 anos, autodeclarado pardo)</p><p>“Percebo um despertar de autoestima, posicionamento crítico aguçado dos/as</p><p>alunos/as em relação à questão racial dentro da sociedade”. (Wemerson Geraldo,</p><p>Professor de Filosofia há mais de 16 anos, autodeclarado negro)</p><p>“Percebemos uma maior conscientização e respeito entre os alunos. Recebemos</p><p>vários depoimentos pessoais de como esse trabalho trouxe uma valorização e</p><p>aumento da autoestima, bem como mudanças visíveis no próprio comporta-</p><p>mento dos alunos, no que tange a forma de vestir, nos cortes de cabelos e no uso</p><p>dos cachos como forma de reconhecer as múltiplas belezas do povo brasileiro”.</p><p>(Adriana Pedrosa, professora de Matemática e gestora da escola há 3 anos, auto-</p><p>declarada parda).</p><p>Considerações Finais</p><p>Ao longo do presente texto, consideramos relevante refletir sobre a prá-</p><p>tica docente no combate e enfrentamento ao racismo e toda forma de discrimina-</p><p>ção. Acreditamos que, se todo o processo educacional se entrecruzar</p><p>dialogicamente com práticas pedagógicas que levem em consideração os sujeitos</p><p>de aprendizagem (em especial aqueles que secularmente são discriminados), os</p><p>sistemas de ensino cumprirão seu papel social de ensinar em uma perspectiva de</p><p>equidade e qualidade.</p><p>Ao apresentar as práticas desenvolvidas entre os anos de 2013 a 2017 na</p><p>Escola Estadual Monte Sinai com a culminância na “Semana de Consciência Ne-</p><p>gra” e seu pensar nas possíveis contribuições que a execução e resultado de tal</p><p>projeto trouxe para a formação integral e humana dos/as estudantes, pretendemos</p><p>oferecer elementos que contribuam na reflexão sobre práticas pedagógicas que fa-</p><p>voreçam, de alguma forma, para a superação da discriminação racial e a reafirma-</p><p>ção das identidades de nossos alunos.</p><p>Compreendemos o desafio que é posto ao propor uma prática que envolva</p><p>a questão racial e o intuito de contribuir na construção identitária uma vez que,</p><p>sabemos ser ainda presente nas relações étnico-raciais no Brasil a ideia do “mito</p><p>da democracia racial” que objetiva inviabilizar o processo de aculturação emba-</p><p>sado no preconceito e na desvalorização da cultura afrodescendente na formação</p><p>da sociedade brasileira. Não obstante, consideramos fundamental o papel da es-</p><p>cola e da educação para a desconstrução de todo estigma referente ao negro. E, por</p><p>isso mesmo, um espaço privilegiado na formação identitária.</p><p>Destacamos a relevância do debate sobre as questões étnico-raciais no</p><p>contexto escolar, pois como foi evidenciado, os estudantes têm possibilidades im-</p><p>portantes de afirmação cultural e reflexão sobre as relações étnico-raciais, muito</p><p>mais do que em outros espaços escolares. O SER NEGRO/A é uma condição social</p><p>cultural que pesa no processo de formação identitária do ser humano, visto que, a</p><p>raça faz grande diferença na construção da sua autoimagem. Como apresentado,</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>64</p><p>essas noções são capazes de inferir no desenvolvimento da personalidade, autoes-</p><p>tima e autonomia do negro enquanto indivíduo. Isso porque as representações so-</p><p>ciais de raça reproduzem preconceitos e estereótipos negativos que são</p><p>internalizados desde a primeira infância por um tipo de educação, inclusive a es-</p><p>colar, que se sustenta em ideologias pautadas pelo racismo.</p><p>Acreditamos que essa realidade opressiva a que estão submetidos os afro-</p><p>brasileiros pode ser alterada mediante a educação e práticas pedagógicas que pos-</p><p>sibilitem a afirmação da identidade negra de forma positiva. As leis 10.639/03 e</p><p>11.645/08 são revolucionárias em seu propósito, no entanto são apenas portas a-</p><p>bertas. São as nossas iniciativas e práticas enquanto docente no cotidiano escolar</p><p>que podem universalizá-las e construir uma contra imagem no imaginário de nos-</p><p>sos/as alunos/as e sociedade a respeito de nossa herança cultural africana. É pre-</p><p>ciso nos aproximar de forma afetiva de nossas raízes africanas (e indígenas) e</p><p>romper com a estranheza que se alimenta do desconhecimento e nutre o medo, a</p><p>vergonha e o sentimento de inferioridade. São com intervenções e práticas peda-</p><p>gógicas fundamentadas e diárias que será possível desfazer as imagens negativas</p><p>sobre o negro, sua contribuição e herança cultural, colocando no lugar outras que</p><p>os façam ter orgulho de sua ancestralidade, de serem quem são, sua beleza e ver-</p><p>dadeira identidade.</p><p>Este foi nosso objetivo ao desenvolver as práticas já mencionadas e regis-</p><p>tramos, como forma, ainda que pretenciosa, de apontar caminhos, assim como</p><p>muitos outros, no sentido de contribuir no processo de transformação da socie-</p><p>dade. Como Paulo Freire (1996, p. 86) nos ensina “Não é a resignação, mas na re-</p><p>beldia diante das injustiças que nos reafirmamos. Como docentes e educadores</p><p>não podemos nos resignar, por isso, reforçamos o convite a cada um que deseja</p><p>lutar contra as intolerâncias, discriminações e racismos que se tem alimentado de</p><p>retrocessos e intolerâncias. Um sonho que se sonha só é só um sonho, mas um</p><p>sonho que se sonha junto...</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>65</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>ARROYO, Miguel. Prefácio. In: GOMES, N. L. A mulher negra que vi de perto. Belo</p><p>Horizonte: Mazza Edições, 1995.</p><p>BASTOS, Priscila da Cunha. Eu nasci branquinha: construção da identidade negra no</p><p>espaço escolar. Revista Eletrônica de Educação. São Carlos, v.9, n. 2. p.615-632, 2015.</p><p>Disponível em: http://www.reveduc.ufscar.br/index.php/reveduc/article/view/1117</p><p>FERNANDES, Viviane Barbosa. SOUZA, Maria CecíliaC. C. de. Identidade Negra entre</p><p>exclusão e liberdade. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 63, p.103-</p><p>120, 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rieb/n63/0020-3874-rieb-63-0103.pdf</p><p>FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa. São</p><p>Paulo: Paz e Terra, 1996.</p><p>GOMES, Nilma Lino. Cultura e Educação. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro,</p><p>n. 23, p. 75-85, may/aug. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=</p><p>sci_arttext&pid=S1413-24782003000200006</p><p>GOMES, Nilma Lino. Diversidade étnico-racial, inclusão e equidade na educação brasileira:</p><p>desafios, políticas e práticas. Revista Brasileira de política e Administração da Educação.</p><p>Porto Alegre, V. 27, n. 1, p. 109-121, jan/abr. 2011. Disponível em:</p><p>https://seer.ufrgs.br/rbpae/article/view/19971</p><p>GOMES, Nilma Lino. Educação, Raça e Gênero: Relações Imersas na Alteridade. Cadernos</p><p>PAGU. Campinas, n. 6-7, p. 67-82, 1996. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/</p><p>ojs/index.php/cadpagu/article/view/1862</p><p>GOMES, Nilma Lino. Educação, relações étnico-raciais e a lei 10.639/2003. Disponível em:</p><p>http://antigo.acordacultura.org.br/artigo-25-08-2011.</p><p>GOMES, Nilma Lino. Professoras Negras: Trajetórias e Identidades. Cadernos CESPUC de</p><p>pesquisa. Belo Horizonte, n. 5, p. 55-62, abr.1999. Disponível em: http://periodicos.</p><p>pucminas.br/index.php/cadernoscespuc/article/view/14988/11596</p><p>MUNANGA, K. Identidade, Cidadania e Democracia: algumas reflexões sobre os discursos</p><p>anti-racistas no Brasil. In: Resgate: Revista Interdisciplinar De Cultura, 5(1), 17-24.</p><p>Disponível em: https://doi.org/10.20396/resgate.v5i6.8645505</p><p>SANTOS, Marzo Vargas dos. MOLINA NETO, Vicente. Aprendendo a ser negro: a</p><p>perspectiva dos estudantes . Cadernos Pesquisa [online]. 2011, vol.41, n.143. Disponível em:</p><p>http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010015742011000200010& script=sci_</p><p>abstract&tlng=pt</p><p>SANTOS, Silvia Karla B. M. M. dos. O que é ser negro no Brasil: Uma reflexão sobre o</p><p>processo de construção da identidade do povo brasileiro. Cadernos Imbondeiro. João</p><p>Pessoa, n.1, v.2, 2012, Acesso em: http://www.periodicos.ufpb.br/index.php/ ci/article/</p><p>viewFile/14150/8769</p><p>SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do</p><p>currículo. 3 ed. 1ª reimp. – Belo Horizonte: Autentica, 2011.</p><p>http://www.reveduc.ufscar.br/index.php/reveduc/article/view/1117</p><p>http://www.scielo.br/pdf/rieb/n63/0020-3874-rieb-63-0103.pdf</p><p>http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782003000200006</p><p>http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782003000200006</p><p>https://seer.ufrgs.br/rbpae/article/view/19971</p><p>https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1862</p><p>https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1862</p><p>http://antigo.acordacultura.org.br/artigo-25-08-2011</p><p>http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoscespuc/article/view/14988/11596</p><p>http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoscespuc/article/view/14988/11596</p><p>https://doi.org/10.20396/resgate.v5i6.8645505</p><p>http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010015742011000200010&%20script=sci_%20abstract&tlng=pt</p><p>http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010015742011000200010&%20script=sci_%20abstract&tlng=pt</p><p>http://www.periodicos.ufpb.br/index.php/ci/article/viewFile/14150/8769</p><p>http://www.periodicos.ufpb.br/index.php/ci/article/viewFile/14150/8769</p><p>CINEMA E ENSINO DE HISTÓRIA:</p><p>CONSIDERAÇÕES ACERCA DO FILME “A MISSÃO” 1</p><p>Alexandre dos Santos 2</p><p>Maria Regina Johann 3</p><p>1. Introdução</p><p>Em nosso cotidiano apreciamos obras literárias, músicas, pinturas, escul-</p><p>turas, poesias, entre outras produções artísticas que utilizam temas e contextos</p><p>históricos como inspirações. Cenários, figurinos, cores e ritmos, refletem o con-</p><p>texto social e cultural em que estão inseridos quando de sua criação, assim como</p><p>a sociedade absorve os valores estéticos e outras marcas deixadas por essas obras</p><p>artísticas.</p><p>Nos diversos recursos e metodologias existentes para a análise e o ensino</p><p>de História, encontramos a utilização de filmes, séries, novelas, campanhas publi-</p><p>citárias, entre outras formas de linguagem fílmica. Ao estudar este processo, e-</p><p>merge a interação entre a Historiografia e a Linguagem Cinematográfica e como</p><p>ambos complementam-se e se relacionam. Este artigo consiste em uma tematiza-</p><p>ção acerca do filme A Missão, e apresenta possibilidades para a abordagem do</p><p>mesmo na educação, nesse caso especificamente o Ensino de História.</p><p>Para isso, torna-se pertinente a discussão de alguns questionamentos a-</p><p>cerca dos acontecimentos históricos, o foco de algumas produções cinematográfi-</p><p>cas e como os filmes, nas suas mais diversificadas formas, podem ser usados como</p><p>intertextos para a pesquisa histórica.</p><p>Nosso objetivo neste texto é tematizar a obra fílmica em relação à bibli-</p><p>ografia do contexto histórico e social mencionado, reconhecer os elementos que</p><p>proporcionam ao filme possibilidades pedagógicas e verificar como os mesmos</p><p>1 Filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 1986. Ficha técnica: Roteiro de Robert Bolt e</p><p>direção de Roland Joffé; trilha sonora de Ennio Morricone; fotografia de Chris Menges (vencedora</p><p>de Oscar). Elenco: Robert De Niro, Jeremy Irons, Liam Neeson, entre outros.</p><p>2 É graduado em História pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI –,</p><p>especialista em Game Design pela Universidade Positivo e Mestre em Educação nas Ciências pela</p><p>Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí. Professor e pesquisador</p><p>na área de cinema, música, gamificação e novas abordagens metodológicas no Ensino de História.</p><p>3 Graduada em Educação Artística, Mestrado e Doutorado em Educação nas Ciências pela</p><p>Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí. Professora do</p><p>Departamento de Humanidades e Educação da Unijuí. Participa dos grupos de pesquisa Teorias</p><p>Pedagógicas e Dimensões Éticas e Políticas da Educação e Mongaba, tematizando, respectivamente,</p><p>questões como linguagem, arte e educação, currículo, cultura digital na educação escolar e a Área</p><p>das Linguagens no Ensino Médio.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>68</p><p>permitem que o filme seja um recurso metodológico ao objeto do conhecimento</p><p>das Missões Jesuíticas, ao mesmo tempo em que observa alguns limites à luz da</p><p>Historiografia. Também nos ocupamos em destacar a dimensão formativa da lin-</p><p>guagem artística cinematográfica.</p><p>2. Cinema e Historiografia</p><p>A Historiografia contribui para o cinema, bem como os filmes passam a</p><p>ser considerados novas fontes de análise e interpretação. Assim, podemos relacio-</p><p>nar a produção historiográfica com as obras cinematográficas. A obra “A escrita</p><p>da História: novas perspectivas” (BURKE, 1992) enriqueceu com a ampliação de</p><p>sua temática. A busca de novas formas da narrativa dos acontecimentos históricos</p><p>foi adequada às novas abordagens dos historiadores. Estas abordagens incluem</p><p>diversos modos de narrativa, incluindo a análise de diferentes parâmetros, apre-</p><p>sentando os mesmos acontecimentos a partir de diversificados pontos de vista.</p><p>Peter Burke questiona as distintas formas de narrativa</p><p>O problema que eu gostaria de discutir aqui é aquele de se fazer uma narrativa</p><p>densa o bastante, para lidar não apenas com a sequência dos acontecimentos e</p><p>das intenções conscientes dos atores nesses acontecimentos, mas também com</p><p>as estruturas – instituições, modos de pensar etc., – e se elas atuam como um</p><p>freio ou um acelerador para os acontecimentos. Como seria uma narrativa desse</p><p>tipo? (BURKE, 1992, p. 339).</p><p>O documento fílmico, ao ser produzido, sofre um processo diferente do</p><p>documento escrito que possui a mesma origem (FERRO, 1992). O primeiro car-</p><p>rega as informações que vão contra as intenções daquele que filma, ou da empresa</p><p>que mandou filmar. Embora o documento escrito também possua lapsos e lacunas,</p><p>o filme sofre um processo diferente, porque nele existem lapsos a todo o momento.</p><p>O historiador tem por função primeira restituir à sociedade a História da qual</p><p>os aparelhos institucionais a despossuíram. Interrogar a sociedade, pôr-se à sua</p><p>escuta, esse é, em minha opinião, o primeiro dever do historiador. Em lugar de</p><p>se contentar com a utilização de arquivos, ele deveria antes de tudo criá-los e</p><p>contribuir para a sua constituição: filmar, interrogar, aqueles que jamais têm di-</p><p>reito à fala, que não podem dar seu testemunho (FERRO, 1992, p. 76).</p><p>Neste foco de historicidade, o historiador analisa o filme não somente se-</p><p>gundo a abordagem que se faz necessária, mas vale-se desses métodos, interroga a</p><p>essência e as bases que o formam e verifica quais as relações presentes em seus</p><p>componentes. Isso permite analisar na obra todos os seus componentes, inclusive</p><p>os aspectos externos a ela, ou seja, o conjunto de fatores que a produziu.4</p><p>4 A primeira vez que se utilizou o texto fílmico para documentação histórica foi na Primeira Guerra</p><p>Mundial (1914-1918). Os serviços de propaganda nos exércitos, ao cumprir o objetivo de registrar o</p><p>real, principalmente os armamentos pertencentes aos inimigos, foram os primeiros a desempenhar</p><p>historiograficamente esta tarefa.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>69</p><p>Nessas condições, não seria suficiente empreender a análise de filmes, de trechos</p><p>de filmes, de planos, de temas, levando em conta, segundo a necessidade, o saber</p><p>e a abordagem das diferentes ciências humanas. É preciso aplicar esses métodos</p><p>a cada um dos substratos do filme (imagens, imagens sonorizadas, não-sonori-</p><p>zadas), às relações entre os componentes desses substratos, analisar no filme</p><p>tanto a narrativa quanto o cenário, a escritura, as relações do filme com aquilo</p><p>que não é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime de governo. Só</p><p>assim se pode chegar à compreensão não apenas da obra, mas também da reali-</p><p>dade que ela representa (FERRO, 1992, p. 87).</p><p>De acordo com Chartier (1990), a interpretação das imagens segue o</p><p>mesmo caminho que os historiadores percorreram até considerarem válidas as</p><p>fontes não escritas, ou seja, as fontes oriundas do folclore, das artes e das tradições</p><p>populares. Neste caminho, associou-se a cultura popular às fontes tradicionais,</p><p>até que foram encontradas suas relações de interdependência.</p><p>Por meio das obras cinematográficas nos transpomos a realidades, ima-</p><p>ginários e experiências diferentes, criadas pela absorção da linguagem, contri-</p><p>buindo, assim, para a nossa compreensão social. Jean-Claude Bernardet (2006,</p><p>p. 80) argumenta a respeito do processo de interação que se estabelece entre</p><p>filme e espectador:</p><p>É preciso não esquecer que um espectador cinematográfico nunca é exclusiva-</p><p>mente um espectador cinematográfico. O cinema entra na sua vida como um dos</p><p>elementos que compõe a sua relação com o mundo, [...] o espectador não é ne-</p><p>cessariamente passivo. No ato de ver assimilar um filme, o público transforma-</p><p>o, interpreta-o, em função de suas vivências, inquietações, aspirações, etc.</p><p>A linguagem cinematográfica possibilita que o cinema conte histórias,</p><p>adquirindo, assim, o caráter narrativo e discursivo. Essas consequências políticas,</p><p>ideológicas e estéticas da linguagem cinematográfica estão relacionadas com o</p><p>protagonismo cultural a que</p><p>pertencem e com o caráter escolhido para a represen-</p><p>tação das identidades. Stuart Hall (2006) compreende que as identidades são</p><p>construídas a partir da absorção dos valores impostos por intermédio da cultura</p><p>global. Esses sentidos são compostos e exercem influências na concepção dos su-</p><p>jeitos, por meio da identificação, da memória coletiva e do imaginário construído.</p><p>Hall (2006, p. 51) menciona que</p><p>uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que in-</p><p>fluencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós</p><p>mesmos. As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos</p><p>com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos</p><p>estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que co-</p><p>nectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas</p><p>(HALL, 2006, p. 51).</p><p>Nesse sentido, as obras cinematográficas (como as demais obras artísti-</p><p>cas) podem ser consideradas discursos que emergem de um contexto a partir de</p><p>reflexões sobre uma cultura vigente, muitas vezes elaboradas com determinadas</p><p>finalidades. Diante disso, é possível inferir que o cinema tem potencialidade de</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>70</p><p>sustentar ideias ou apresentar perspectivas diversas acerca de fatos, temas e con-</p><p>textos, ou, pelo menos, reformular e questionar a imposição da estrutura social.</p><p>Para sustentar este ponto de vista, recorre-se à definição de cultura ela-</p><p>borada por Peter McLaren (1991, p. 32-33):</p><p>A cultura é formada fundamentalmente por rituais inter-relacionados e sistemas</p><p>de rituais, é um padrão historicamente transmitido de significados encarnados</p><p>em símbolos, um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbó-</p><p>licas, por meio dos quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu</p><p>conhecimento e atitudes em relação à vida. A cultura é uma construção que per-</p><p>manece como uma realidade consistente e significativa através da organização</p><p>abrangente de rituais e sistemas simbólicos.</p><p>A cultura é, portanto, constituída de diversas manifestações e influências</p><p>e o cinema vem fazendo parte desse universo e, atualmente, tem ocupado cada vez</p><p>destaque na vida das pessoas. Entendê-lo como uma dimensão cultural, que forma</p><p>o gosto e produz opiniões, é um motivo relevante para entender a sua especifici-</p><p>dade e pensar em sua potencialidade na educação.</p><p>3. A dimensão artística e estética do cinema</p><p>A arte é uma linguagem do mundo humano e, por sua natureza ontoló-</p><p>gica, ela nos pertence desde sempre, uma vez que nasceu de nossa própria experi-</p><p>ência no mundo em nossa relação pré-reflexiva nele (o mundo). A arte é linguagem</p><p>porque pode ser compreendida (de modo universal), assim como nos possibilita</p><p>uma autocompreensão (JOHANN, 2015). Nesse horizonte podemos afirmar, ba-</p><p>seados em Gadamer (2010), que a essência da arte vem de sua natureza poética e</p><p>estética, e é nessa perspectiva que a arte nos diz algo ao seu modo.</p><p>Enquanto linguagem, a arte apresenta-nos uma verdade acerca do mundo</p><p>humano; verdade essa que é sempre provisória e referida ao encontro de horizon-</p><p>tes de sentidos históricos que se dá entre a obra artística e o intérprete. Desse</p><p>modo, a verdade que a arte nos possibilita é relativa à sua objetividade histórica, que</p><p>podemos definir como sendo seu construto, sua materialidade e os sentidos que a</p><p>obra carrega de sua própria tradição. Tal objetividade histórica – aquilo que co-</p><p>nhecemos acerca da obra – atualiza-se a cada vez que o intérprete realiza a sua</p><p>compreensão. Por conseguinte, podemos inferir que a arte tem uma verdade que é</p><p>referente à sua especificidade matérica e à sua forma de expressão, ao seu contexto</p><p>e aos sentidos dos sujeitos que a interpretam (JOHANN, 2015).</p><p>Esta gênese poética da arte confere-lhe uma certa autonomia em relação</p><p>ao artista e à própria “finalidade” da obra, ganhando, por assim dizer, amplitude a</p><p>partir da interpretação que cada pessoa faz dela. Nesse sentido é que as diversas</p><p>interpretações acerca de uma mesma obra são aceitáveis, embora não possamos</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>71</p><p>perder de vista a objetividade que ela possui: a materialidade, a composição, o</p><p>tema (quando for o caso) e os discursos já proferidos historicamente.5</p><p>Destarte, tais aspectos valem também para a linguagem cinematográfica,</p><p>sendo ela considerada uma arte. Neste sentido, a obra fílmica é aberta, assim como</p><p>as demais expressões artísticas. Isso significa afirmar que sobre ela são possíveis</p><p>diversas interpretações. Mediante esse aspecto, destaca-se que no filme A Missão</p><p>(JOFFÉ, 1986) alguns elementos ganham evidência e, assim, oportunizam a leitura</p><p>dos fatos históricos, mas num viés poético e esteticamente qualificado e envol-</p><p>vente; o que enriquece as possibilidades interpretativas.</p><p>Ao conjunto da obra merece destaque a fotografia que enaltece a natureza</p><p>e a criança, e, em cenas clássicas, permite constatar a passagem do tempo, os ciclos</p><p>da natureza e a inter-relação entre natureza e humanos, nesse caso os povos au-</p><p>tóctones da América do Sul, de modo mais próprio a comunidade dos Guaranis.</p><p>A redenção dos homens europeus à vida dos guaranis, especialmente os</p><p>padres Jesuítas, se dá de modo sutil e, por vezes, sugerindo uma comunidade de</p><p>iguais, embora os modos de aculturação sejam evidentes. Na história, um determi-</p><p>nado personagem paulatinamente destaca-se: é o caso de Rodrigo Mendonza (Ro-</p><p>bert De Niro) que, em várias cenas, é vinculado à figura histórica de Cristo. Isso é</p><p>possível constatar por sua vestimenta, seu cabelo e barba e o modo como sua ima-</p><p>gem é enfocada. A fotografia captura ângulos que valorizam a face do personagem</p><p>que, progressivamente, ganha destaque na história; o mesmo é alçado a herói no</p><p>momento em que Rodrigo é alvejado por um tiro: ele cai ao chão numa posição que</p><p>remete à crucificação de Cristo.</p><p>Os demais aspectos que destacamos diz respeito ao modo como a foto-</p><p>grafia do filme valoriza a criança e sua relação simbiótica com o meio, destacando,</p><p>inclusive, a sensibilidade infantil em observar e capturar nuances dos aconteci-</p><p>mentos, evidenciando, até mesmo, a fragilidade das novas gerações mediante um</p><p>processo violento de dominação, ao mesmo instante em que deposita nelas – as</p><p>crianças – o futuro daquela comunidade. Assim, finaliza-se a história em uma</p><p>cena exuberante e dramática, envolvida por uma trilha sonora épica que reposi-</p><p>ciona a natureza e a cultura como dimensões constitutivas do mundo humano. A</p><p>cena na qual os artefatos da cultura guaranítica e europeia flutuam sobre as águas</p><p>permite interpretar o encontro entre dois mundos, com a natureza como teste-</p><p>munha de um fato histórico. Ao recolher o violino e não o castiçal cristão, a me-</p><p>nina elege a arte como uma possibilidade de recomeço. Essa cena ocasiona pensar</p><p>na dimensão universal da arte e da cultura como consolidação da interculturali-</p><p>dade entre diferentes povos. A canoa põe-se nessa cena como a morada desses</p><p>5 Leva-se em consideração as diversas modalidades de expressão artísticas, tais como pintura,</p><p>desenho, fotografia, escultura, e, também, a música, a dança, o teatro e o próprio cinema.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>72</p><p>pequenos que se embrenham na selva em busca de novas oportunidades de re-</p><p>constituição comunitária.</p><p>O filme realiza, de modo convincente, a inter-relação entre a trilha sonora</p><p>e a fotografia: os tambores, violinos e flautas, que se harmonizam e encaldam as ce-</p><p>nas, promovendo sensações de suspense, euforia, alegria comoção e tensão. Essa é</p><p>a especificidade da linguagem artística: os recursos comunicativos além da pala-</p><p>vra, que, em composição fílmica, produzem efeitos visuais e sonoros, oportunizam</p><p>a apreciação e a interpretação de imagens, sons, cenas e diálogos… A arte cinema-</p><p>tográfica, vale-se, portanto, de sons, imagens, cenas e diálogos para expressar uma</p><p>visão de mundo, uma interpretação possível dos fatos, mas, fundamentalmente,</p><p>convida-nos a atualizar os mesmos em nosso horizonte de sentidos históricos.</p><p>Por fim e, não menos importante, destacamos a cena final: a trilha sonora</p><p>seduz pela eloquência, e aos que contemplam a relação dos créditos à obra premia-</p><p>se com a cena final, que, talvez, diga muito sem dizer sequer uma palavra... O olhar</p><p>do emissário do papa sugere muitas interpretações e convida para que sigamos</p><p>pensando...</p><p>4. O cinema no horizonte da educação: potencialidades da linguagem fílmica</p><p>Selva Guimarães Fonseca (2003, p. 31) menciona que “educação, memória</p><p>e cultura se determinam, complementam-se, uma não pode ser pensada sem a ou-</p><p>tra e toda a reflexão sobre uma desemboca imediatamente na consideração da ou-</p><p>tra”. Destarte, o uso dos filmes na escola contribui para ampliar a compreensão de</p><p>algo, na medida em que permite contextualizar, ilustrar e elucidar os conteúdos e</p><p>objetos do conhecimento em questão. No ensino de História os filmes tornam-se</p><p>fontes históricas relevantes, pois oportunizam outras formas de análise e interpre-</p><p>tação. Nesse sentido, adquirem a importância da ilustração e da representação do</p><p>passado, tornando-se uma alternativa para a Historiografia, conforme observa</p><p>Ferraz (2006, p. 6): “O vídeo passa pelo sensorial, emocional, intuitivo e por fim o</p><p>racional, formando um elo entre o presente (momento da projeção), passado e fu-</p><p>turo (objetos de reflexão)”.</p><p>Na mesma medida em que as obras cinematográficas tornam as práticas</p><p>pedagógicas mais diversificadas, elas representam visões de mundo, pontos de vis-</p><p>tas de conteúdos sociopolítico e ideológicos. A construção e a absorção do conhe-</p><p>cimento acontecem pela interpretação do conjunto da cena/obra e pela percepção</p><p>sensorial que se dá por meio da iconografia, da reconstrução de cenários e da ela-</p><p>boração do enredo das obras inseridas em um recorte histórico.</p><p>Precisamos ter claros os limites próprios da linguagem, não a reduzindo a mera</p><p>ilustração, nem tampouco exigindo dela a transmissão objetiva e sistematizada</p><p>de determinado conteúdo. Em outras palavras, como manifestação, registro e lei-</p><p>tura de uma época, a obra cinematográfica deve ser lida de forma cautelosa e</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>73</p><p>criticamente, pois, assim como um texto de época, ela permite desvendar a rea-</p><p>lidade nos seus aspectos menos perceptíveis. Para tanto, exige uma articulação</p><p>com a vivência e a motivação de alunos e professores, com a bibliografia selecio-</p><p>nada, além de demandar uma adequação à temática em estudo (FONSECA,</p><p>2003, p. 180).</p><p>Fonseca (2003) complementa afirmando que “o filme, didaticamente, a-</p><p>presenta os conceitos por meio de um jogo de narração/imagens, deixando ao es-</p><p>pectador a possibilidade de cotejar, relacionar e articular as ideias transmitidas</p><p>oral e visualmente” (p. 181). Nesse horizonte de compreensão, entende-se que o</p><p>professor necessita apresentar para a turma os elementos históricos e as aproxi-</p><p>mações sobre o meio em que a obra surgiu (diretor, vivência e outras obras do di-</p><p>retor, comentário sobre os atores, ilustrações, fotografia, caracterização técnica,</p><p>curiosidades de produção e época de lançamento), pois, desse modo, ampliam-se</p><p>as oportunidades de entendimento do próprio estilo e da estética do diretor da</p><p>obra fílmica. Para Napolitano (2005, p. 16),</p><p>ao escolher um ou outro filme para incluir nas suas atividades escolares, o pro-</p><p>fessor deve levar em conta o problema da adequação e da abordagem por meio</p><p>da reflexão prévia sobre os seus objetivos gerais e específicos. Os fatores que cos-</p><p>tumam influir no desenvolvimento e na adequação das atividades são as possi-</p><p>bilidades técnicas e organizativas na exibição de um filme para a classe, a</p><p>articulação com o currículo e/ou conteúdo discutido, com as habilidades deseja-</p><p>das e com os conceitos discutidos e a adequação à faixa etária e etapa específica</p><p>da classe na relação ensino-aprendizagem.</p><p>Os filmes passam a ser vistos como estratégias metodológicas, partici-</p><p>pando do processo de ensino/aprendizagem e estabelecendo relações com os con-</p><p>teúdos desenvolvidos. O texto fílmico, encarado como documento, passa a</p><p>complementar o texto escrito. Kátia Maria Abud (2003, p. 189) comenta que estes</p><p>“filmes históricos” se equiparam ao valor didático de um livro de História:</p><p>O documentário e os filmes de época ou históricos têm, para a maior parte dos</p><p>professores que utilizam a filmografia em sala de aula, o mesmo valor didático de</p><p>um texto de um livro de História. O filme é mais utilizado como um substituto do</p><p>texto didático ou da aula expositiva, ou é ainda considerado uma ilustração que</p><p>dá credibilidade ao tema que se está estudando. Contudo, é certo que hoje se ad-</p><p>mite que a imagem não ilustra nem reproduz a realidade, ela a constrói a partir de</p><p>uma linguagem própria que é produzida num dado contexto histórico.</p><p>Neste momento, retemos duas interpretações do autor Marc Ferro</p><p>(1992) para as relações entre Cinema e História. A primeira é a leitura do filme</p><p>na direção do que foi produzido; a segunda é a leitura do filme enquanto um</p><p>discurso do passado, ou seja, a história lida pelo cinema. Para este autor, “[...]</p><p>leitura histórica do filme e a leitura cinematográfica da história: esses são os dois</p><p>eixos a serem seguidos para quem se interroga sobre a relação entre cinema e</p><p>história” (FERRO, 1992, p. 28).</p><p>Os filmes necessitam ser associados com o mundo que os produziram e</p><p>são considerados um produto desse mundo; esse produto está embalado,</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>74</p><p>etiquetado, valorizado nos moldes discursivos com os quais a obra dialoga e, ne-</p><p>cessariamente, trava contato. Conforme Morettin (2003, p. 40), é prudente a a-</p><p>tenção a certos aspectos da linguagem cinematográfica, especialmente àqueles de</p><p>cunho histórico:</p><p>Se não conseguirmos identificar, por meio da análise fílmica, o discurso que a</p><p>obra cinematográfica constrói sobre a sociedade na qual se insere, apontando</p><p>para suas ambiguidades, incertezas e tensões, o cinema perde a sua efetiva di-</p><p>mensão de fonte histórica.</p><p>O professor, ao analisar e utilizar as obras cinematográficas, necessita es-</p><p>tar atento à autenticidade dessa obra, sua identificação e procedência, permeando</p><p>a crítica do documento fílmico pelos seus objetivos, interesses e escolhas dos seus</p><p>autores, diretores e produtores, e incidir nessa crítica a análise de aspectos da so-</p><p>ciedade que o produz. Nessa visão, o cinema possibilita a ampliação de aspectos</p><p>que complementam um saber histórico já dado. “Os fundos de arquivos cinemato-</p><p>gráficos trazem para o historiador informações complementares, trazem um ma-</p><p>terial que refaz a ideia que se fazia de uma época ou de um acontecimento”</p><p>(MORETTIN, 2003, p. 27).</p><p>Documentação escrita e documentação histórica interagem numa relação</p><p>de complementação e determinação. Com isso, o documento fílmico adquire o po-</p><p>der de penetrar nas lacunas deixadas pela documentação tradicional. Para encarar</p><p>o cinema como uma nova forma de análise histórica, como nova maneira de abor-</p><p>dagem e/ou como novo objeto de estudo, o método de investigação consiste, sim-</p><p>plificadamente, em buscar os elementos da realidade por intermédio da ficção.</p><p>Para Luciana Pinto (2005),</p><p>O cinema pode e deve ser utilizado pelo historiador como fonte documental, esse</p><p>novo campo não se constitui como algo melhor ou pior que nenhuma outra fonte</p><p>existente e bem aceita entre os historiadores. É claro, assim como as demais fon-</p><p>tes, o cinema possui suas limitações e tem sua própria forma de verificação que</p><p>cabe ao historiador se inteirar, procurando conhecer suas regras para poder me-</p><p>lhor utilizá-lo (p. 7).</p><p>Para a articulação do discurso fílmico compete a habilidade do educador</p><p>em problematizar as verdades propostas pela película, contextualizando espaço,</p><p>tempo e os sujeitos sociais e históricos que estão postos, articulando o enredo re-</p><p>lacionado aos aspectos do passado com o discurso do filme, que, ainda que situa-</p><p>dos no passado,</p><p>correspondem aos discursos existentes no presente. Luiz Oliveira</p><p>Motta Ferraz (2006, p. 5) argumenta que</p><p>O professor deve estar atento a essa questão para que o aluno não tome a proje-</p><p>ção como uma verdade absoluta, esquecendo de relativizar tempo, espaço e su-</p><p>jeito histórico. Os alunos podem estudar o filme como um testemunho da</p><p>história e das representações do passado, mas não limitar sua análise a esse do-</p><p>cumento, pois os enredos articulam mais sobre o presente ainda que seu discurso</p><p>esteja situado no passado.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>75</p><p>Assim, os filmes passam a ocupar papel importante na construção histo-</p><p>riográfica das atuais práticas pedagógicas, pois são produzidos com uma finali-</p><p>dade definida, e, como resultado disso, auxiliam na manutenção ou na contestação</p><p>da estrutura social. Cabe aos historiadores lerem os seus contextos, analisarem</p><p>devidamente os seus significados e potencializarem a linguagem cinematográfica</p><p>de acordo com os objetivos de ensino.</p><p>5. O filme A Missão: dimensões da história e dos fatos</p><p>O roteiro do filme “A Missão” é baseado no contexto histórico correspon-</p><p>dente ao período da fundação das Missões Jesuíticas na América. Neste momento</p><p>do texto vamos elucidar os aspectos fundamentais da Historiografia do respectivo</p><p>período, o qual é fundamental para a compreensão de nossa análise da obra.</p><p>A Companhia de Jesus, ordem religiosa responsável pela fundação das re-</p><p>duções, foi fundada na Europa em 1534 por Ignácio de Loyola. A Europa vivenciava</p><p>os valores do Renascimento e suas consequências. No âmbito religioso, o Renas-</p><p>cimento6 trouxe os clamores da Reforma Protestante, e, em contrapartida, o cato-</p><p>licismo, por meio do Concílio de Trento,7 estabeleceu uma série de medidas para</p><p>a manutenção dos fiéis e a conquista de novos seguidores; tais medidas ficaram</p><p>conhecidas como Contrarreforma ou Reforma Católica.</p><p>As Missões existiram em dois ciclos: o primeiro – de caráter itinerante –</p><p>não teve sucesso em razão da falta de adaptação ao território. O segundo estabe-</p><p>leceu 30 povoados onde hoje situam-se o Paraguai, a Argentina e o Brasil. A origem</p><p>do nome “proveio do fato de que elas estavam assim convertidas em redutos à mar-</p><p>gem do mundo colonial” (BURDA, 2001, p. 16).</p><p>Os Jesuítas e seus diversos saberes foram fundamentais nesse processo.</p><p>Chamados de “soldados do catolicismo”, foram os responsáveis pela cativação e</p><p>atração dos indígenas; “suas armas: a persuasão, a eloquência, o conhecimento da</p><p>doutrina e uma fé inabalável” (BURDA, 2001, p. 15). Assim, conquistaram e</p><p>6 O Renascimento Cultural foi um movimento que se iniciou na Península Itálica no século 14 e se</p><p>estendeu por toda a Europa até o século 16. Os artistas e pensadores renascentistas expressavam em</p><p>suas obras a nova visão de mundo trazida com o Humanismo, contrapondo a visão teocêntrica</p><p>medieval e a revalorização da Antiguidade Clássica Greco-romana (SEVCENKO, 2003).</p><p>7 Concílio de Trento foi o 13° Concílio da Igreja Católica e era chamado de Concílio Ecumênico.</p><p>Ocorreu entre os anos de 1546 a 1563. Convocado pelo Papa Paulo III, em 1546, reuniu-se no Tirol</p><p>italiano na cidade de Trento. Também foi guiado por outros Papas – Júlio III, Paulo IV, Pio V,</p><p>Gregório XIII e Sisto V –, com a duração de 18 anos, concluindo seu trabalho somente em 1563. Como</p><p>naquele século 16 iniciou-se na Europa o movimento de renovação da Igreja cristã, denominado</p><p>Reforma Protestante de 1517, houve essa reação católica, chamada Contrarreforma, como esforço</p><p>teológico, político e militar de reorganização católica e de confronto ao protestantismo, quando</p><p>todas as suas doutrinas católicas foram discutidas para responder às críticas doutrinárias dos</p><p>protestantes (SEVCENKO, 2003).</p><p>https://www.infoescola.com/historia/reforma-protestante/</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>76</p><p>converteram os povos primitivos da América à fé católica. Segundo Sandra Jatahy</p><p>Pesavento (2007, p. 72),</p><p>A Companhia de Jesus foi criada no contexto da Contra-Reforma em que a I-</p><p>greja Católica também utilizou a arquitetura, o urbanismo e as artes como ce-</p><p>nários e instrumentos para o processo de conversão. Foi em decorrência do</p><p>espírito do Barroco que as práticas sociais nas reduções, correspondendo ao</p><p>espírito cenográfico e teatral desse movimento, ganharam maior dinâmica e va-</p><p>lor de representação.</p><p>Durante o século 17 e o 18 o Brasil Colonial estava modificando o seu ca-</p><p>ráter econômico. A economia açucareira sedia espaço para as novas formas de ex-</p><p>ploração territorial: as Bandeiras, a Mineração e as Missões Jesuíticas. A</p><p>aculturação entre a cultura dos índios reduzidos e a cultura europeia tornou-se</p><p>uma das mais importantes marcas e constitui um grande legado aos povos do sul</p><p>do Brasil.</p><p>Apesar do abandono das origens tribais, os índios reduzidos encontra-</p><p>vam segurança contra a ameaça dos exploradores bandeirantes. O “índio ladino”</p><p>(QUEVEDO, 2006), assim chamado aquele que conhecia a religião católica, falava</p><p>português e trabalhava na agricultura ou serviços domésticos, era alvo prioritário</p><p>das bandeiras; “a redução, no momento histórico que foi criada, defendia o índio</p><p>reduzido. No âmago das Missões estava o “índio reduzido”, o guarani convertido</p><p>à fé católica e transformado em fiel cristão e vassalo do monarca espanhol”</p><p>(QUEVEDO, 2006, p. 103-106).</p><p>Os paulistas conhecidos também como “mamelucos” (mestiços luso-indígenas)</p><p>embrenhavam-se no sertão à procura de pedras preciosas ou a caça de índios</p><p>para o mercado de escravos. Acreditavam os jesuítas que os índios, reunidos nas</p><p>missões, seriam poupados. Ao contrário, eram os mais cobiçados por serem mão-</p><p>de-obra especial (BURDA, 2001, p. 23).</p><p>Na rotina de cada redução estavam presentes a missa diária, as aulas de</p><p>moral e a catequese. O labor, assimilado da herança indígena como a entrega espi-</p><p>ritual, foi adaptado à tecelagem, à cestaria e à produção de cerâmica. Os adultos</p><p>supriam as necessidades materiais e se dedicavam às artes manuais. As crianças</p><p>aprendiam a ler, escrever e contar.</p><p>Ao clarear o céu no horizonte, despertavam os índios ao repique dos sinos. Di-</p><p>ante da igreja, as crianças recitavam em dois coros o catecismo e as orações. De-</p><p>pois, junto com os adultos assistiam à Santa Missa. A doutrina cristã lhes era</p><p>explicada diariamente. A jornada de trabalho era de aproximadamente seis ho-</p><p>ras diárias com intervalo para almoço, com sesta, que variava de acordo com as</p><p>estações do ano. Os homens se ocupavam das roças, hortas, pomares, estâncias</p><p>e das oficinas. As mulheres ficavam em casa cuidando das crianças abaixo dos</p><p>sete anos, e executavam suas tarefas de fiação de lã e algodão. As crianças acima</p><p>dos sete anos iam para a escola, para as oficinas, para as roças e brincavam</p><p>(BURDA, 2001, p. 33).</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>77</p><p>Entre as atividades e artes manuais fazia-se presente a fabricação das i-</p><p>magens dos santos católicos; “llama la atención la cantidad de imágenes religiosas</p><p>producidas en los talleres de las reducciones.” (MELIÁ; NAGEL, 1995, p. 170). Os</p><p>jesuítas ensinavam a arte e a cultura europeia aos indígenas, e estes reproduziam</p><p>a imaginária católica e os instrumentos musicais nas suas atividades cotidianas</p><p>das reduções. “A orientação profissional foi praticada nas Reduções duzentos anos</p><p>antes de se pensar nela na Europa. Eram os índios guarani de uma habilidade ex-</p><p>traordinária e natural. Eram exímios “copiadores”. Todo o objeto desconhecido era</p><p>examinado e logo reproduzido” (BURDA, 2001, p. 36).</p><p>A urbanização seguiu o modelo europeu e adaptou o estilo Barroco, a</p><p>ponto de lhe aprovar um termo original: “Barroco Missioneiro”. “Os ordenamentos</p><p>urbanos das reduções obedeciam a um mesmo princípio, verificando-se pequenas</p><p>variações na disposição dos elementos e nas peculiaridades das edificações e sis-</p><p>temas construtivos entre diferentes povoados” (PESAVENTO, 2007, p. 71).</p><p>Em torno das construções localizavam-se as plantações. Entre as culturas</p><p>mais</p><p>cultivadas estavam o algodão, a erva-mate, o milho, a mandioca e as frutas</p><p>cítricas originárias da Europa. “O entorno rural (as lavouras, o erval, o curral, as</p><p>vacarias e as estâncias). As estâncias e parte das lavouras eram coletivas.”</p><p>(QUEVEDO, 2006, p. 123).</p><p>As mudanças dos hábitos tribais e a fé nos elementos naturais (água,</p><p>terra, fogo, vento) transformaram-se na fé católica.</p><p>A redução era a negação da política guarani e apresentava-se com o sentido de</p><p>reduzir, convencer e levar a vida tribal a uma comunidade cristã mais ampla. Da</p><p>vida nômade à vida sedentária. A preocupação com a moral cristã também se fez</p><p>presente, pois na redução o índio cristão era obrigado a usar roupas e ocultar o</p><p>corpo (QUEVEDO, 2006, p. 106).</p><p>Ainda na perspectiva da Educação presente nas reduções, Bartolomeu</p><p>Meliá menciona que “la alfabetización se hacía en guaraní, pero se sabe que se ejer-</p><p>citaban en ler guarani, en castellano y hasta en latín. La escuela preparaba sobre</p><p>todo a quienes estaban destinados a funciones especiales en la comunidad, desde</p><p>alcades y regidores hasta secretarios, músicos, sacristanes y médicos” (MELIÁ;</p><p>NAGEL, 1995, p. 166).</p><p>Nos costumes diários das reduções a música era sempre presente. A obra</p><p>“A música nas Missões Jesuíticas nos séculos XVII e XVIII”, de Jorge Hirt Preiss,</p><p>elabora uma coletânea de depoimentos dos jesuítas envolvidos na ação missioná-</p><p>ria. Segundo o Preiss (1988), os jesuítas não somente ensinavam a tocar os instru-</p><p>mentos como também construí-los. Nessa obra encontramos o seguinte trecho do</p><p>Pe. Montoya:</p><p>são notavelmente aficionados à música..., oficiam as missas com um aparato mu-</p><p>sical a dois e três coros; esmeram-se em tocar instrumentos como cornetas, dul-</p><p>cianas, harpas, cítolas, vihuelas, violas de arco e outros instrumentos que ajudam</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>78</p><p>muito a trazer os gentios e o desejo de levar-nos as suas terras. Peças escolhidas</p><p>da música francesa, italiana e espanhola eram executadas de um modo tão cui-</p><p>dado e artístico que, “se não tivessem à vista os músicos, acreditar-se-ia que as</p><p>melhores orquestras da Europa estavam de passagem pelas Índias”, no dizer de</p><p>testemunhas da época (MONTOYA apud PREISS, 1988, p. 27).</p><p>No segundo ciclo missioneiro foram fundados 30 povoados na Bacia do</p><p>Prata, região de posse da coroa espanhola, mas território extremamente disputado</p><p>por Portugal e Espanha. Segundo Júlio Quevedo, “o papel fronteiriço das Missões</p><p>como parte integrante da geopolítica espanhola, a monarquia concedeu maior au-</p><p>tonomia aos padres e seus índios cristãos para que defendessem os interesses da</p><p>Coroa na América” (QUEVEDO, 2006, p. 113). As Missões representam a “fronteira</p><p>que ultrapassa a territorialidade dos marcos nacionais. É paisagem de memória que</p><p>remete a registros no tempo, desde a imagem visual que se oferece ao olhar as ima-</p><p>gens mentais, que são partes sociais e herdadas” (PESAVENTO, 2007, p. 52).</p><p>O término dos povoados começa a se suceder a partir do Tratado de Ma-</p><p>drid, assinado por Portugal e Espanha no ano de 1750, com o objetivo de substituir</p><p>o Tratado de Tordesilhas (que não estava mais sendo respeitado na prática), definir</p><p>os limites entre as respectivas colônias sul-americanas e dar fim às disputas. Em</p><p>seu livro “A Guerra Guaranítica: como os exércitos de Portugal e Espanha destruí-</p><p>ram os Sete Povos dos jesuítas e índios guaranis no Rio Grande do Sul”, Tau Golin</p><p>(2004) traz uma coleção documental para explicar as disputas entre as duas coroas</p><p>e os indígenas que habitavam as reduções. Encontramos, na obra, sobre o tratado:</p><p>Art. II – ao mesmo tempo, entregarão os portugueses as ordens de Sua Majestade</p><p>Fidelíssima ao governador da Colônia de Sacramento, para que prepare a evacu-</p><p>ação desta Praça, seus portos e estabelecimentos no rio da Prata. E os espanhóis,</p><p>entregarão ao governador de Buenos Aires, ao provincial da Companhia de Jesus</p><p>da Província do Paraguai, e ao Superior das Missões, que têm nas margens do rio</p><p>Uruguai e Paraná, as ordens que se lhe dirigirão por parte de Sua Majestade Ca-</p><p>tólica, para que preparem a evacuação do território e dos povos da margem ori-</p><p>ental do rio Uruguai, com brevidade possível, procurando uns e outros tomar</p><p>antecipadas notícias do tempo, pouco mais ou pouco menos, em que poderá es-</p><p>tar preparada uma e outra evacuação, para ajustar depois o dia em que se hão de</p><p>fazer as mútuas entregas (GOLIN, 2004, p. 151).</p><p>Portugal cederia a Colônia do Sacramento (atual Uruguai) e as suas pre-</p><p>tensões ao estuário do Prata, e, em contrapartida, receberia o atual Estado do Rio</p><p>Grande do Sul, partes de Santa Catarina e Paraná (território das Missões Jesuíti-</p><p>cas espanholas), o atual Mato Grosso do Sul, a imensa zona compreendida entre</p><p>o Alto-Paraguai, o Guaporé e o Madeira, de um lado, e o Tapajós e Tocantins do</p><p>outro, regiões estas desabitadas e que não pertenceriam aos portugueses se não</p><p>fossem as negociações do tratado (GOLIN, 2004).</p><p>O Tratado de Madrid não foi aceito pelos Jesuítas e os índios Guaranis, o</p><p>que ocasionou a Guerra Guaranítica (1752-1756), que foi travada entre os habitan-</p><p>tes das Missões e as coroas luso-espanholas. “A comissão de demarcação</p><p>https://pt.wikipedia.org/wiki/Mato_Grosso_do_Sul</p><p>https://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_Paraguai</p><p>https://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_Guapor%C3%A9</p><p>https://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_Madeira</p><p>https://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_Tapaj%C3%B3s</p><p>https://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_Tocantins</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>79</p><p>encontrou resistência armada, portugueses e espanhóis levaram guerra às Mis-</p><p>sões. Prepararam dois exércitos com mais de 2000 homens cada um” (BURDA,</p><p>2001, p. 48). Com a derrota na guerra e a posterior expulsão dos Jesuítas da Amé-</p><p>rica em 1768, acelerou-se o processo de decadência das Missões Jesuíticas. A ocu-</p><p>pação dos Sete Povos das Missões em solo brasileiro foi feita por colonizadores e</p><p>novos povoadores a partir do século 18.</p><p>6. Potencialidades da obra A Missão para o ensino de História</p><p>A obra “A Missão” traz vários aspectos que auxiliam nas práticas pedagó-</p><p>gicas e no ensino de História. Nas primeiras cenas do filme observamos o estra-</p><p>nhamento dos indígenas ao Jesuíta e o uso da flauta para encantamento dos</p><p>nativos. Os índios desconheciam a cultura europeia, o homem branco e outros as-</p><p>pectos que não fossem aqueles correspondentes à sua cultura primitiva pré-co-</p><p>lombiana. Os padres jesuítas cativavam os nativos pelas sensibilizações que se</p><p>fizessem significantes. A música foi reconhecida como um desses aspectos.</p><p>Segundo Meliá e Nagel (1995), “la música estuvo realmente presente en</p><p>la vida ordinaria de los guaranies, el gran número de músicos entre ellos y su afi-</p><p>ción al canto y la danza. No faltava la música en las celebraciones de misas y vís-</p><p>peras solemnes, procesiones e actos litúrgicos.” (p. 178)</p><p>O filme executa a reconstrução virtual das Reduções, principalmente os</p><p>aspectos da Igreja e da Urbanização, trazendo ao cenário as varandas, as casas dos</p><p>índios, a praça, entre outros vários elementos que compuseram a organização do</p><p>espaço reducional. Sandra Jatahy Pesavento (2007) menciona a importância dos</p><p>remanescentes arquitetônicos para a educação patrimonial. Ao se referir às ruínas,</p><p>presentes nos sítios históricos, ela destaca: “ela é sempre o atestado de uma ação</p><p>humana ocorrida em outro tempo. Ela deve comportar o antigo, ou seja, o tempo</p><p>acumulado. Ela é a exibição de uma obra, feita por outros homens, em outra é-</p><p>poca.” (p. 60). Hoje observamos as ruínas como fruto da cultura material deixada</p><p>pela intersecção entre o estilo arquitetônico Barroco europeu e a sua adaptação ao</p><p>contexto local e sua vinculação à filosofia reducional.</p><p>Outro elemento a ser trabalhado em sala de aula são as cenas que mos-</p><p>tram o Jesuíta escrevendo as correspondências para a coroa espanhola, as quais</p><p>são conhecidas na Historiografia como “Cartas Anuas”, e funcionavam como uma</p><p>mistura de registros documentais</p><p>e diários dos padres, representando a aliança</p><p>Igreja e Estado, ou seja, uma das características mais marcantes dos Estados Ab-</p><p>solutistas da Idade Moderna.</p><p>Nem sempre o convívio entre os padres e os indígenas foi pacífico. Em uma</p><p>das cenas, um jesuíta é morto e crucificado para demonstrar a resistência, no pri-</p><p>meiro momento, do índio ao processo de catequização. O figurino do filme é um</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>80</p><p>elemento que também pode ser ressaltado. A representação dos Jesuítas e os indíge-</p><p>nas em “seu estado natural” (diálogo presente na obra), são fiéis ao período referido.</p><p>A película abrange os ataques dos bandeirantes, que era uma ameaça</p><p>constante ao bom andamento das reduções. De acordo com Meliá e Nagel (1995),</p><p>“las banderas de captura y apresamiento pertenenció el contexto de una economía</p><p>explotadora y cruel, de la cual los Guaraníes y sus pueblos fueron señaladas vícti-</p><p>mas” (MELIÁ, NAGEL, 1995, p. 114).</p><p>A todo momento a obra cinematográfica traz as cenas do Cristianismo e</p><p>da fé católica praticada nas reduções. São mostrados os santos, a cruz, as procis-</p><p>sões e as missas. Esses elementos fazem correspondência ao Barroco e à Arte Sacra</p><p>que era produzida pelos indígenas segundo os moldes trazidos da Europa.</p><p>Os índios reduzidos não tinham a menor dúvida de que fora Deus quem</p><p>lhes concedera a terra e era somente a sua interação divina que explicava os suces-</p><p>sos e os insucessos do cotidiano no povoado. Essa compreensão corroborava com</p><p>a prática da cristandade reformada, no qual o jesuíta tratou de executar o projeto</p><p>de missionar como soldados de Cristo, numa Igreja Católica militante, ou seja,</p><p>onde os cristãos constroem a cristandade (QUEVEDO, 2006, p. 104).</p><p>A música, o coral e a fabricação dos instrumentos também são mostrados</p><p>ao longo da película, bem como os hábitos desenvolvidos na redução, como a ces-</p><p>taria, a cerâmica e os demais fatores que caracterizaram a aculturação entre jesuí-</p><p>tas e índios.</p><p>Em um outro momento a coroa espanhola chega ao solo americano e co-</p><p>munica os jesuítas sobre a assinatura do Tratado de Madri. O mapa utilizado como</p><p>objeto cênico é muito fiel às representações cartográficas existentes na bibliogra-</p><p>fia historiográfica. Ao final acontecem as cenas da Guerra Guaranítica e o exter-</p><p>mínio dos povoados de São Carlos (redução em que se passa o enredo).</p><p>Considerações finais</p><p>Enriquecer a compreensão acerca de um determinado fato ou tema pode</p><p>ser um bom motivo para oportunizar aos alunos a apreciação de uma obra fílmica,</p><p>isso porque um filme amplia as possibilidades de ver, analisar, perceber e inter-</p><p>pretar um determinado assunto, contexto, época ou fato.</p><p>Neste horizonte de compreensão, destaca-se que a obra fílmica se inter-</p><p>põe em relação aos demais materiais didáticos, pois o filme pode ser considerado</p><p>mais um dos “textos visuais” que se inter-relacionam a outras modalidades textu-</p><p>ais, tais como a escrita, a fotografia e a pintura. A característica desses textos per-</p><p>mite uma visão própria e, ao mesmo tempo, ampla acerca de um determinado</p><p>tema; são encontros visuais que criam tensões e permitem confrontar perspectivas</p><p>e ideias e observar, inclusive, possíveis contradições. Nesse sentido, também con-</p><p>tribuem para enriquecer o olhar sobre um determinado assunto.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>81</p><p>Um aspecto igualmente relevante é tomar a obra fílmica como uma opor-</p><p>tunidade, entre tantas outras, de aprender pelo viés da dimensão estética; nesse</p><p>caso, a linguagem cinematográfica mostra o mundo ao seu modo. As sutilezas e nu-</p><p>ances capturáveis pela estética são potencialmente formativas, uma vez que a es-</p><p>pecificidade da estética contempla a dimensão do poético, que se materializa na</p><p>obra mediante o estilo dado por um determinado diretor de cena e de fotografia.</p><p>Considerando o cinema uma linguagem artística, é possível afirmar que</p><p>um filme, embora também se valha de uma pesquisa histórica, diferentemente de</p><p>um documentário, não tem compromisso com a reprodução ou representação fi-</p><p>dedigna dos fatos. Isso se dá pela licença poética que a arte tem, que não lhe obriga</p><p>a expressar ou representar uma “determinada verdade”. A compreensão desse as-</p><p>pecto é significativa, uma vez que, a partir dele, é possível tensionar a obra fílmica</p><p>aos fatos históricos, constatando aspectos que enriquecem a compreensão.</p><p>Por conseguinte, toda vez que se potencializa a visão de mundo é o sujeito</p><p>que está sendo levado em consideração como alguém que tem o direito de acessar</p><p>diversas perspectivas acerca de um assunto ou conteúdo. Possibilitar o acesso ao</p><p>patrimônio material e imaterial da cultura humana é um dos compromissos da e-</p><p>ducação republicana e democrática que visa à liberdade e o compromisso com a</p><p>cidadania. Sendo assim, oportunizar a apreciação e a interpretação de obras fílmi-</p><p>cas com conteúdos e padrões estéticos qualificados, é um direito de aprendizagem</p><p>e um dever da escola em relação à formação da cultura juvenil, quando se pros-</p><p>pecta uma formação sensível, crítica e qualificada.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>82</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>A MISSÃO. Direção: Roland Joffé, Produção: Fernando Ghia David Puttnam.</p><p>Inglaterra; Irlanda do Norte: Enigma Film, 1986, 1-DVD.</p><p>ABUD, Kátia Maria. A construção de uma didática da História: algumas idéias</p><p>sobre a utilização de filmes no Ensino. In: História, v. 22, n. 1, p. 183-193, 2003.</p><p>BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2006.</p><p>BURDA, Janete. Missões Guarani: a saga da República Guarani na América do</p><p>Sul. Curitiba: Livraria do Chain Editora, 2001.</p><p>BURKE, Peter. A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora da</p><p>Universidade Estadual Paulista, 1992.</p><p>CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações.</p><p>Tradução Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.</p><p>FERRAZ, Luiz de Oliveira Motta. História e cinema: luz, câmera, transposição</p><p>didática. O Olho da História, ano 12, n. 9, dez. 2006. Disponível em:</p><p><http://oolhodahistoria.org/artigos/IMAGEMcinema%20na%20sala%20de%20a</p><p>ula-liz%20motta.pdf>. Acesso em: 7 jul. 2020.</p><p>FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.</p><p>FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática no ensino de História:</p><p>experiências, reflexões e aprendizados. Campinas: Papirus, 2003.</p><p>GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica da obra de arte. Seleção e tradução</p><p>Marco Antonio Casanova. São Paulo: Editora WMF; Martins Fontes, 2010.</p><p>GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva II. A virada</p><p>Hermenêutica. Tradução Marco Antonio Casanova. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.</p><p>GOLIN, Tau. A guerra guaranítica: como os exércitos de Portugal e Espanha</p><p>destruíram os Sete Povos dos jesuítas e índios guaranis no Rio Grande do Sul. 3.</p><p>ed. Passo Fundo: UPF, 2004.</p><p>HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro:</p><p>DP&A, 2006.</p><p>JOHANN, Maria Regina. Linguagem, arte e educação ético-estética em</p><p>perspectiva hermenêutica filosófica. 2015. 199 f. Tese (Doutorado em Educação</p><p>nas Ciências.) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do</p><p>Sul, Unijuí, Campus Ijuí, Ijuí, 2015.</p><p>McLAREN, Peter. Rituais na escola: em direção a uma economia política de</p><p>símbolos e gestos na educação. 1. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.</p><p>MELIÁ, Bartolomeu; NAGEL, Liane Maria. Guaraníes y jesuítas en tiempo de</p><p>las Misiones: una bibliografía didáctica. Santo Ângelo: CCM/URI; Asunción:</p><p>Cepag, 1995.</p><p>http://oolhodahistoria.org/artigos/IMAGEMcinema%20na%20sala%20de%20aula-liz%20motta.pdf</p><p>http://oolhodahistoria.org/artigos/IMAGEMcinema%20na%20sala%20de%20aula-liz%20motta.pdf</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>83</p><p>MORETTIN, Eduardo Victorio. O cinema como fonte histórica na obra de Marc</p><p>Ferro. In: História: Questões & Debates, Curitiba: Editora UFPR, n. 38, p. 11-42,</p><p>2003.</p><p>NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. 2. ed. São Paulo:</p><p>Contexto, 2005.</p><p>PESAVENTO, Sandra Jatahy. Missões, um</p><p>espaço no tempo: paisagens da</p><p>memória. In: Fronteiras do mundo ibérico: patrimônio, território e memória das</p><p>Missões. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.</p><p>PINTO, Luciana. O historiador e a sua relação com o cinema. O Olho da História,</p><p>ano 11, n. 7, abr. 2005. Disponível em: <http://www.miniweb.com.br/</p><p>artes/artigos/historiadoreocinema.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2020.</p><p>PREISS, Jorge Hirt. A música nas Missões Jesuíticas nos séculos XVII e XVIII.</p><p>Porto Alegre: Ed. Martins, 1988.</p><p>QUEVEDO, Júlio. História geral do Rio Grande do Sul. Vol. 1: Colônia. As</p><p>Missões Jesuítico-Guaranis. Passo Fundo: Editora Méritos, 2006.</p><p>SEVCENKO, Nicolau. O renascimento. 27. ed. São Paulo: Editora Atual, 2003.</p><p>http://www.miniweb.com.br/artes/artigos/historiadoreocinema.pdf</p><p>http://www.miniweb.com.br/artes/artigos/historiadoreocinema.pdf</p><p>PERSONALIZAÇÃO DO ENSINO</p><p>NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO</p><p>Ana Carolina Rosendo G. C. Baptista</p><p>A personalização do ensino já é uma realidade em muitos países, e no Bra-</p><p>sil tem sido implantada de forma gradativa inicialmente no ensino superior. É uma</p><p>proposta que fortalece o conceito de não padronizar a educação e de promover o</p><p>desenvolvimento do aprendiz de forma mais individualizada, valorizando seus co-</p><p>nhecimentos prévios, suas habilidades e acima de tudo seu ritmo de aprendizagem.</p><p>Quando nos deparamos com nomenclaturas novas temos a sensação de</p><p>que a metodologia estará muito distante da nossa realidade, impossível de ser a-</p><p>plicada e por vezes a ideia de mais uma vez ter que se reformular e se moldar a um</p><p>novo formato de ensino assusta o corpo docente, mas cá entre nós, você professor</p><p>alfabetizador já não personaliza suas aulas?</p><p>Vamos pensar juntos, analisar o conceito e sua aplicabilidade, e você</p><p>compreenderá que a personalização no processo de alfabetização já é uma reali-</p><p>dade em sua sala de aula.</p><p>O conceito de personalização percorre o caminho da compreensão de que</p><p>os alunos não aprendem da mesma maneira, de que o professor precisa direcionar</p><p>o ensino de maneira diversificada possibilitando reforçar as características pesso-</p><p>ais, interesses, conhecimentos prévios e culturas diferentes. Para que a educação</p><p>integral seja algo efetivo, a personalização necessita se fazer mais presente, mar-</p><p>cante e eficaz, precisa-se que os docentes compreendam o aprendiz em sua com-</p><p>plexidade e individualidade.</p><p>Com este olhar é possível se ter uma maior clareza dos benefícios de efe-</p><p>tivar a personalização do ensino no período de alfabetização, facilitando a apren-</p><p>dizagem e favorecendo o envolvimento, interesse e satisfação. Nessa etapa do</p><p>ensino a personalização não se trata de deixar o aprendiz livre para escolher o que</p><p>quiser aprender, mas, pelo contrário, se trata de fornecer diretrizes eficientes com</p><p>intencionalidade pedagógica que norteiem o aprendizado do aluno, disponibili-</p><p>zando recursos, metodologias e instrumentos variados, que possibilitem o contato</p><p>com o novo conteúdo, a pesquisa, o estudo e a revisão, conforme o tempo de a-</p><p>prendizado de cada criança.</p><p>Aquela criança que tem mais dificuldade terá a possibilidade de revisar</p><p>seus suportes constantemente até que desenvolva maior segurança, já aquela</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>86</p><p>que tem mais facilidade irá explorar os recursos e fazer suas próprias descober-</p><p>tas e pesquisas.</p><p>Perceba que essas são características especificas da fase de alfabetização,</p><p>na qual o objetivo principal é a leitura e escrita, e nesse sentido não há escolhas,</p><p>porém o caminho a ser percorrido poderá ser escolhido e elencado entre o docente</p><p>e o aprendiz, de forma personalizada.</p><p>Vamos então analisar uma sala de aula de alfabetização e fazer o paralelo</p><p>com as informações aqui apresentadas referentes a personalização de ensino.</p><p>Um professor alfabetizador segue seu planejamento direcionado comu-</p><p>mente por alguma diretriz maior, no qual ela sabe exatamente quais habilidades e</p><p>quais objetos de estudo seus alunos precisarão ter contato e desenvolver ao longo</p><p>daquele ano letivo, conforme a faixa etária dos mesmos. Ele tem claro quais são os</p><p>pontos que deverá trabalhar, e estabelece dentre eles quais são os essenciais, aqueles</p><p>indispensáveis e que darão o ponta pé inicial no processo educacional do aprendiz.</p><p>Certamente esse professor irá fazer algum tipo de sondagem para verifi-</p><p>cação do desempenho pedagógico dos aprendizes que está recebendo, para com</p><p>base nesses conhecimentos prévios poder definir os próximos passos. Porém, in-</p><p>dependente dessa sondagem, ela tem a clareza da necessidade de uma revisão dos</p><p>conteúdos essenciais que o aprendiz deveria ter trazido já da Educação Infantil, e</p><p>é aí que começa a efetivação da personalização. Perceba que foi citado apenas</p><p>nessa analogia rápida, o conhecimento prévio e a revisão, que fazem parte do con-</p><p>ceito de personalização.</p><p>O professor oferece um objeto de estudo de maneiras diversificadas para</p><p>poder observar as necessidades e dificuldades dos alunos, vamos usar como exemplo</p><p>o alfabeto. Se você é alfabetizador, ou já teve a possibilidade de entrar numa sala de</p><p>primeiro ano do Ensino Fundamental, com certeza irá identificar a cena a seguir...</p><p>Na lousa o alfabeto por escrito, acima dela cartazes com as letras em to-</p><p>das as suas formas de escrita, no equipamento eletrônico pode se ver um vídeo</p><p>pausado de uma música do alfabeto, nas mesas dos aprendizes letrinhas móveis e</p><p>tabelas com uma ilustração e a letra que se inicia, no cantinho da leitura livros</p><p>sobre o alfabeto, alfabeto dos animais, alfabeto das guloseimas, no cantinho dos</p><p>jogos mais alfabeto, e assim vai, recursos variados, ofertados aos alunos com in-</p><p>tencionalidade pedagógica.</p><p>Essa é a realidade diária de uma sala de aula da fase de alfabetização, pro-</p><p>fessores que se empenham na busca por instrumentos facilitadores da compreen-</p><p>são pedagógica do objeto de estudo.</p><p>Tendo em mente essa realidade é possível dizer que a personalização do</p><p>ensino na fase de alfabetização já existe, ocorre quase que de maneira natural, porém,</p><p>evidentemente não é algo que esteja sendo aplicado em todo território nacional, e</p><p>muito menos de maneira consciente em relação a essa proposta metodológica. Por</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>87</p><p>essa razão, é fundamental que o corpo docente, bem como as equipes gestoras se</p><p>apropriem de forma mais conceitual dos benefícios dessa metodologia.</p><p>Há tempos os docentes já compreenderam que as crianças aprendem de</p><p>forma diferenciada, e foi na pratica diária, na indignação, na frustração, na tenta-</p><p>tiva e erro, nos sorrisos, nas lágrimas, nos abraços que esses docentes desenvolve-</p><p>ram e desenvolvem diariamente estratégias para atingir a todos os aprendizes e</p><p>possibilitar que todos aprendam de maneira significativa e prazerosa.</p><p>Não existe mais espaço no ambiente escolar para comparações de qual</p><p>aluno sabe ou não sabe, de qual aluno atingiu ou não atingiu, o que existem são</p><p>saberes diferentes, caminhadas diferentes, desejos e duvidas diferentes, problemas</p><p>pessoais e sociais diferentes. Quantas vezes nos deparamos com aprendizes exce-</p><p>lentes em uma área e menos interessado em outra, essa magia da diversidade é o</p><p>que nos direcionou a um sistema educacional no qual não é mais permitido apenas</p><p>a transmissão de conteúdo.</p><p>O que se espera, e até já se vê em diversas salas de aulas, é que o professor</p><p>direcione e seja um mediador mostrando ao aluno o que ele precisa aprender, o-</p><p>ferte as ferramentas e instrumentos que o ajudarão nesse aprendizado, e permita</p><p>que o aluno faça suas próprias reflexões e pesquisas.</p><p>A intenção prioritária da presente discussão é tranquilizar você, profes-</p><p>sor, diante do termo personalização do ensino. Não é algo distante da sua reali-</p><p>dade, não é algo impossível na alfabetização, não é algo que irá mudar totalmente</p><p>a sua pratica diária.</p><p>O foco da personalização de ensino é possibilitar a valorização da singu-</p><p>laridade e autonomia, tanto do aprendiz quanto</p><p>do docente. Chegamos a uma fase</p><p>social na qual a Educação está de portas abertas para a flexibilização, e não pode-</p><p>mos deixar essa fase passar despercebida, é a hora de nos fortalecermos e ampliar-</p><p>mos nossos conhecimentos a fim de efetivar mudanças que de fato sejam positivas</p><p>no cenário educacional.</p><p>Falar sobre personalização do ensino, portanto, não é inventar mais tra-</p><p>balho para o docente, e sim repensar a pratica que já funciona, dando diretrizes</p><p>conceituais a ela.</p><p>A personalização do ensino precisa ser desmistificada pelo corpo docente</p><p>apesar de parecer algo novo, temos que ter em mente que desde a educação infantil</p><p>nós já a realizamos, tendo em vista que a consciência da necessidade de adequação</p><p>de atividades, das necessidades específicas de cada aluno, das suas dificuldades, das</p><p>suas potencialidades, tudo isso já é priorizado em sala de aula pelo professor, tudo</p><p>isso já é estudado, planejado e tem sido estruturado de forma efetiva inclusive na</p><p>alfabetização, e porque não dizer principalmente na fase de alfabetização, onde os</p><p>professores tem plena consciência de que apesar de todos precisarem chegar a um</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>88</p><p>nível de hipótese de escrita adequado, apesar de todos precisarem atingir uma tran-</p><p>quilidade leitora, uma autonomia leitora cada um caminhará de forma diferenciada.</p><p>Ao entrar numa sala de alfabetização necessitamos ter recursos diferen-</p><p>ciados, ter atividades diferenciadas, objetivos diferenciados. Temos um aprendiz</p><p>com limitações físicas, temos um aprendiz com alguma síndrome, temos aquele</p><p>que veio de outra escola com metodologias diferentes, a criança já sabe ler, a cri-</p><p>ança que já está utilizando letra cursiva, aquele que se encontra na hipótese de</p><p>escrita com valor sonoro que só conhece as vogais, tem outro que tá começando a</p><p>entrar na hipótese silábica alfabética, todos eles, e cada um deles, inseridos em</p><p>uma sala de aula, estas são situações que o professor alfabetizador lida diaria-</p><p>mente, e inevitavelmente se faz necessário uma flexibilidade no ato de ensinar.</p><p>É compreensível que a maior parte das vezes em que ouvimos falar dessa</p><p>tendência, os comentários sejam centrados nos níveis acima da fase de alfabetiza-</p><p>ção, como ensino médio e superior, pois aparentemente vemos que essa prática, já</p><p>comum na fase inicial do período escolar, vai se perdendo e dando lugar a praticas</p><p>mais unificadas e tradicionais, deixando de lado o cuidado com as diferenças. Isso</p><p>vem ressaltar ainda mais quão valorosa é a pratica docente nas series iniciais.</p><p>Alguns autores vão trazer a reflexão de que a personalização do ensino é</p><p>diferente das adaptações de atividades, esse ponto de vista se dá diante da com-</p><p>preensão de que para se personalizar o ensino é necessário que você apresente op-</p><p>ções e que o próprio aprendiz tenha autonomia de decisão de qual caminho irá</p><p>percorrer, de quais conteúdos irá pesquisar.</p><p>“Personalizar o ensino significa que as atividades a serem desenvolvidas</p><p>devem considerar o que o aluno está aprendendo, suas necessidades, dificuldades</p><p>e evolução – ou seja, significa centrar o ensino no aprendiz” (BACICH; NETO;</p><p>TREVISANI, 2015, p. 69)</p><p>Porém quando transportamos essa tendência educacional para a fase de</p><p>alfabetização a grande inovação em personalizar é o ensinar o aprendiz a desen-</p><p>volver esta autonomia e prepará-lo então para quê lá nas fases posteriores ele con-</p><p>siga sentar com o seu mentor, com o seu professor e direcionar a sua</p><p>aprendizagem.</p><p>Na personalização do ensino a ênfase principal é o desenvolvimento da</p><p>autonomia do aprendiz, contribuindo para que este assuma um papel de protago-</p><p>nista na busca dos conhecimentos; no favorecimento das relações interpessoais</p><p>tendo em vista que a busca por este conhecimento se dá tanto de forma individu-</p><p>alizada quanto nas interações sociais.</p><p>A fase de alfabetização portanto, é o momento onde nós iremos implemen-</p><p>tar a questão da autonomia para a personalização do ensino, onde iremos disponi-</p><p>bilizar ao aprendiz recursos variados, instrumentos variados nos quais ele poderá</p><p>ter acesso ao objetivo de aprendizado que é a leitura, a escrita e a interpretação</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>89</p><p>textual, as atividades nunca serão as mesmas. Sabe aqueles cantinhos pedagógicos</p><p>que o professor faz na sala, o cantinho da leitura, cantinho dos jogos, o cantinho</p><p>das atividades em grupo, o cantinho tecnológico, são diversos, esses cantinhos onde</p><p>se disponibiliza os recursos de forma que o acesso se torna livre, porém a intencio-</p><p>nalidade pedagógica não é livre ela é sempre direcionada pelo professor, são nesses</p><p>cantinhos que nós iremos possibilitar que o aprendiz caminhe por recursos dife-</p><p>renciados com a intervenção pedagógica do professor, para que avance ou retome</p><p>objetos de conhecimentos conforme suas necessidades especificas.</p><p>Nesse sentido, serão expostas algumas práticas utilizadas nas aulas de</p><p>alfabetização, que foram testadas em diferentes ambientes e funcionaram de ma-</p><p>neira positiva, trazendo resultados bem satisfatórios e promovendo a aprendiza-</p><p>gem das crianças.</p><p>Uma grande aliada da personalização do ensino é a “gamificação” que</p><p>você já deve ter ouvido falar, é também uma nomenclatura que está surgindo no</p><p>ambiente educacional e não se pode deixar de lado essa ferramenta tão preciosa e</p><p>estimuladora. Estamos numa geração em que o aprendiz precisa de uma motivação</p><p>além da transmissão da informação, já sabemos que a informação tem chegado a</p><p>todos de maneira surpreendentemente rápida e eficaz, então cabe ao professor au-</p><p>xiliar o aprendiz no sentido de filtrar informações convenientes, informações não</p><p>convenientes, a responsabilidade autônoma no uso da tecnologia, entre outros as-</p><p>pectos específicos da utilização de tecnologias. E é nesse contexto que a gamifica-</p><p>ção tem o poder de unir a personalização do ensino com a utilização dos recursos</p><p>tecnológicos, são coisas diferentes que caminham juntas.</p><p>A gamificação no meio educacional parte do pressuposto de agir e pensar</p><p>como em um game, mas em contexto não game, através da mecânica, dinâmicas e</p><p>componentes advindos do ato de jogar, como meio para engajar e motivar os indi-</p><p>víduos com o objetivo central de promover a aprendizagem por meio da interação</p><p>entre as pessoas, com o meio e com as tecnologias (PIMENTEL, 2018).</p><p>O que acontece é que primeiro nós precisamos desenvolver tanto no pro-</p><p>fessor quanto no aprendiz e na família do aprendiz o conceito de personalização,</p><p>o hábito do estudo personalizado, para que só então se possa direcionar para uma</p><p>ação conjunta com o uso da tecnologia, quando nós atrelamos imediatamente a</p><p>tecnologia a personalização, acontece uma mistura e podemos correr o risco de</p><p>atrapalhar um pouco a compreensão dos benefícios da personalização do ensino.</p><p>Por essa razão, se faz necessário que os passos sejam dados de forma firme porém</p><p>gradativa, não se pode, de maneira nenhuma, chegar a um grupo de professores e</p><p>propor uma mudança radical no processo de ensino aprendizagem, ao fazer isso o</p><p>que se encontrará será uma resistência imensa.</p><p>E é pensando exatamente nessa possível resistência ao novo que se faz</p><p>necessário uma reflexão em conjunto, auto formação, formação continuada , bem</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>90</p><p>como apoio e incentivo das equipes gestoras para tranquilizar o corpo docente, o</p><p>professor alfabetizador já realiza a personalização de ensino na sua sala de aula e</p><p>precisa apenas identificar e mostrar que a sua prática está alinhada a esta nova</p><p>tendência, precisa se localizar como integrante desta tendência, para então com-</p><p>preender quais são os recursos utilizados na sua sala que se alinham com a pro-</p><p>posta estabelecida pela personalização do ensino.</p><p>Uma estratégia já utilizada por diversos professores e que é um excelente</p><p>norteador das possibilidades de se trilhar um caminho especifico para cada aluno</p><p>é a utilização de jogos pedagógicos, os quais podem</p><p>por Foucault nos referidos cursos, des-</p><p>taca-se o uso do termo parresia no contexto político da democracia ateniense, po-</p><p>dendo ser definido como “o exercício de uma palavra que persuada os que são</p><p>comandados e que num jogo agonístico dê liberdade aos outros que também que-</p><p>rem comandar é, a meu ver, o que constitui a parresia”. FOUCAULT, Michel. O</p><p>governo de si e dos outros. 2010. p.98</p><p>Nesse sentido a parresia coloca que aquele governa numa relação direta</p><p>com os que são governados, ao mesmo tempo em que acolhe os que não governam,</p><p>mas que desejam fazê-lo. Este triângulo – oponentes e assembleia – nos dá a ima-</p><p>gem geográfica e também geométrica dessa arena perigosa que constitui o exercí-</p><p>cio do poder. É nesse espaço da persuasão dos comandados pelo desmonte dos</p><p>argumentos do oponente que se movem os governantes. Tem-se, na democracia,</p><p>portanto, um poder cambiante e tão maleável quanto o arranjo das forças políticas,</p><p>de maneira que nunca se pode possuí-lo totalmente, mas somente exercê-lo por</p><p>uma espécie de direito advindo de uma luta que está sempre por ser retomada e</p><p>jamais acabada definitivamente.</p><p>É assim que o fracasso da democracia ateniense – no entendimento de</p><p>Platão – se motivou por uma característica inerente à essência democrática, a sa-</p><p>ber, a assunção de discursos contrários a sua própria existência. Esse fracasso</p><p>plasmado no emblemático caso da morte de Sócrates nos dirá que a democracia</p><p>ateniense não foi capaz de alocar os elementos da parresia numa forma de gover-</p><p>nabilidade capaz de reconhecer a verdade ao invés de eliminá-la. De fato, Sócrates</p><p>amava as mesmas leis que possibilitaram a sua condenação. Na Apologia, vemos sua</p><p>obediência religiosa ao ordenamento legal da cidade. Se morreu legalmente, mas</p><p>constante. O governo dos outros, ou “cuidado dos outros” é um termo genérico que permite a</p><p>Foucault ir além dos limites da Teoria Política tradicional. É assim que, no cristianismo, por</p><p>exemplo, é possível a Foucault enxergar o “cuidado de si” nas práticas ascéticas e o “cuidado dos</p><p>outros” na pastoral cristã.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>13</p><p>não justamente é porque o problema da democracia não são essencialmente as leis,</p><p>mas a possibilidade de que seus atores possam dar, pelo discurso, ao falso a apa-</p><p>rência do verdadeiro.</p><p>A parresia, conforme a definição de Foucault, é a palavra pública, corajosa</p><p>e verdadeira do orador dirigida à assembleia dos cidadãos. É no entanto, uma pa-</p><p>lavra que concorre com outras formas de discurso. O discurso lisonjeiro se apre-</p><p>senta, na democracia ateniense, como uma ameaça ao discurso parresiástico.</p><p>Enquanto o primeiro serve a propósitos demagógicos, o segundo obedece a crité-</p><p>rios bem delimitados e seu funcionamento se condiciona ao ajuste fino entre os</p><p>quarto seguintes aspectos apresentados por Foucault:</p><p>Condição formal: democracia. Condição de fato: a ascendência e a superioridade</p><p>de alguns. Condição de verdade: a necessidade de um logos sensato. E, em fim,</p><p>condição moral: a coragem, a coragem na luta. É esse retângulo com um vértice</p><p>constitucional, o vértice do jogo político, o vértice da verdade, o vértice da cora-</p><p>gem, creio, que constitui a parresia (FOUCAULT, 2010, p. 160).</p><p>A condição constitucional ou formal em Atenas era garantida pelo direito</p><p>legal da isonomia – igualdade dos cidadãos diante da lei – e isegoria – direito de falar</p><p>na assembleia. Foucault alerta para o fato de que existem diferenças entre os ho-</p><p>mens que escapam ao campo restrito da lei. No jogo político alguns ganham as-</p><p>cendência sobre outros, seja pelo discurso verdadeiro, seja pelo caráter moral que</p><p>se encerra em atitude corajosa como condição mesma da parresia. Fica claro que é</p><p>a parresia um adicional aos direitos adquiridos por lei. Nem todos os cidadãos que</p><p>podem usar a palavra pública a usarão, assim como nem todos que fazem esse uso</p><p>o fazem de forma parresiástica. Desse modo, a parresia é o elemento que distingue</p><p>o governante do governado. Assim como, pela via negativa, é a falta da parresia que</p><p>distinguirá o governante inautêntico. De todo modo, a parresia se insere no jogo</p><p>agonístico da política e, a priori, sua vitória não está garantida.</p><p>As atividades de Platão na Academia e as de Aristóteles no Liceu destoam</p><p>dos afazeres de um Sócrates de Atenas. De fato, Platão e Aristóteles se distanciam</p><p>de Sócrates mais pelo receio de perderem suas vidas, do que pela coragem de fala-</p><p>rem a verdade. Embora não tenham se insurgido diretamente contra os políticos</p><p>de seu tempo, os dois filósofos não renunciaram ao que venha a ser, nas palavras</p><p>de Foucault, o real da filosofia, isto é, sua influência efetiva na política: Platão</p><p>como conselheiro de Dion rei de Siracusa, e Aristóteles como preceptor de Ale-</p><p>xandre, o Grande.</p><p>Podemos notar certo deslocamento dos filósofos em relação aos políticos</p><p>no jogo mesmo da política. Isso foge do que preconiza Platão em sua República, a sa-</p><p>ber, a teoria do rei-filósofo que estabelece a identificação entre governante e filósofo.</p><p>Mesmo Sócrates, o mais direto e combativo filósofo ateniense, nunca desejou exer-</p><p>cer cargo público. É na Carta VII que esse deslocamento fica bastante evidente.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>14</p><p>Platão parece deixar de lado a idealização de uma cidade perfeita e passa a tratar da</p><p>realidade da política através da formação de Dion. Assim, na antiguidade temos as</p><p>figuras dos filósofos conselheiros de governantes autocráticos e dos filósofos que –</p><p>como Sócrates – atuam junto à opinião pública nos governos democráticos.</p><p>A função da parresia do filósofo assume um duplo sentido: nas democra-</p><p>cias ela marca a diferenciação3 entre o discurso verdadeiro e o discurso demagógico.</p><p>Nos governos autocráticos, do tipo que se seguiram à polis grega como o Império</p><p>Alexandrino e o Império Romano, a parresia do filósofo funcionará como psicago-</p><p>gia, isto é, como formação da alma do governante. Se o filósofo instala os discursos</p><p>de verdade (logoi) na alma do governante, por esse trabalho atingirá a prática po-</p><p>lítica (pragmata), uma vez que um governante justo governa justamente. É por meio</p><p>dessas tarefas, seja como conselheiro, seja como formador da opinião pública, que</p><p>o filósofo faz o encontro entre verdade e política. O discurso de veridicção próprio</p><p>da filosofia se objetificará nas práticas políticas.</p><p>Até aqui destacou-se o uso e a importância da parresia para uma econo-</p><p>mia do poder em governos democráticos e autocráticos. Notemos que não está em</p><p>discussão a preferência por uma das duas formas de governo, malgrado o desprezo</p><p>de Platão pela democracia. O que importa a Foucault, é nos apresentar o funcio-</p><p>namento da parresia em ambas as formas de distribuição do poder. O termo auto-</p><p>cracia está sendo empregado apenas para indicar o governo de um só, isto é, o</p><p>governo de um rei ou imperador.</p><p>A parresia no contexto de algumas áreas da filosofia</p><p>A Antropologia Filosófica nos coloca frente a duas tradições fundamen-</p><p>tais na História da Filosofia Ocidental. Estas duas correntes buscam responder a</p><p>pergunta: o que é o ser humano? A primeira e mais antiga ganha corpo no plato-</p><p>nismo e pode ser condensada da seguinte maneira: o homem é a sua alma. Portanto</p><p>existe uma natureza humana, uma essência a priori. Trata-se de uma tradição es-</p><p>sencialista fundamentada numa Metafísica socrático-platônica que estabeleceu</p><p>uma teoria da alma apartada do corpo físico. A outra tradição concorrente nos</p><p>chega, dentre outras filosofias, pelo Existencialismo e afirma que o ser humano</p><p>deve ser entendido como um projeto em condições de ser alcançado. Isto significa</p><p>dizer que, sendo passível de ser, mas ainda não sendo, o homem pode se perder no</p><p>caminho da passagem da existência à constituição de sua essência. De fato o filó-</p><p>sofo francês Jean-Paul Sartre, pai do Existencialismo, sedimenta os termos de sua</p><p>3 Adiante esse conceito será apresentado como condição, segundo Foucault, para</p><p>abordar temas diversos, o pro-</p><p>fessor mostra as regras e disponibiliza os jogos para que sejam manipulados con-</p><p>forme o interesse de cada aprendiz.</p><p>O mais interessante dessa questão de personalização do ensino, é o pro-</p><p>cesso de busca, é possibilitar que o aprendiz pesquise, pois, a pesquisa é o que vai</p><p>direcionar o aprendizado.</p><p>Um exemplo que dá para compreendermos essa importância da pesquisa</p><p>utilizando recursos disponíveis na sala é de um aprendiz que descobriu as letras</p><p>minúsculas durante a tentativa de leitura de um livro, observou que as letras não</p><p>eram as que conhecia e questionou a professora “porque tem essas letras diferen-</p><p>tes?” Nesse momento entra o papel do professor, mostrando que as letras são as</p><p>mesmas e que tem diversas formas de escrita, “Veja tem a letrinha cursiva também,</p><p>qual que você acha mais legal?” A criança vai falar qual gostou e o professor poderá</p><p>direcionar o aprendizado de forma personalizada com aquilo que despertou o in-</p><p>teresse demonstrado.</p><p>Perceba como o caminho foi natural, é muito bonito, é um processo muito</p><p>legal, muito significativo e que com certeza trará grandes resultados, fazendo a</p><p>diferença na trajetória de ensino aprendizagem dessa criança.</p><p>Vamos analisar mais uma situação habitual. Quantas vezes você estava lá</p><p>dando aula e entrou um passarinho na sua sala, isso já aconteceu comigo diversas</p><p>vezes, o passarinho entrou eu estava lá falando sobre as famílias silábicas, da pra</p><p>manter a proposta? Não, esquece! Você não consegue numa sala de alfabetização</p><p>com criança de seis ou sete anos que estão extremamente abertas ao aprendizado,</p><p>curiosíssimas, cheias de vontade de conhecer tudo à volta delas, cheio de vontade</p><p>de comentar sobre o que está vendo e mostrar os resultados e mostrar também o</p><p>que sabes e poder chegar em casa contando que aprendeu. Esse é o momento que</p><p>o professor deve fazer as intervenções, mas deixar que o aprendizado ocorra de</p><p>forma natural, quando o passarinho aparece estimula os alunos a fazerem obser-</p><p>vações como olhar as cores do passarinho, como escreve a palavra passarinho,</p><p>quem sabe qual é esse passarinho, quem tem passarinho em casa, pode ter passa-</p><p>rinho em casa...entre outros questionamentos que estimulem a busca e, inclusive,</p><p>de repente vai achar ali um aprendiz que é apaixonado por pássaros e por aves e</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>91</p><p>que conhece muito mais do que você pode imaginar e que te dará nomes de aves,</p><p>cores de cada ave, que vai olhar para aquele passarinho e falar professora esse pas-</p><p>sarinho que entrou na nossa sala é tal, ele vive em tal lugar e até falar dos hábitos</p><p>do passarinho.</p><p>Estas oportunidades já são aproveitadas pelos professores e são de uma</p><p>riqueza indiscutível, a personalização do ensino pode ser percebida como um</p><p>grande conjunto dessas oportunidades, porem de forma estruturada e traçada com</p><p>planejamento adequado, atendendo as curiosidades do aprendiz, e também suas</p><p>dificuldades. A proposta é, portanto, mesclar as metas da alfabetização com as cu-</p><p>riosidades e necessidades especificas de cada aprendiz, abrindo o planejamento</p><p>para conhecimentos que os alunos já possuem, é um processo que o professor pre-</p><p>cisa fazer de forma tranquila, aos poucos, gradativamente e quando perceber vai</p><p>estar funcionando de forma ativa, significativa, natural e extremamente eficaz.</p><p>O avanço na área da educação tem sido cada vez mais rápido. Não pode-</p><p>mos mais falar em educação do futuro, pois o futuro é agora, chegamos nelee pre-</p><p>cisamos nos encontrar nele.</p><p>Não é mais aceitável aquela escola conteudista cheia de muita informação e</p><p>pouca transformação, o educar precisa ser amplo, integral, transformador e inovador.</p><p>A prioridade no momento é dar sentido à prática docente favorecendo a</p><p>metacognição, o pensar sobre o pensar, direcionar a aprendizagem para o porquê</p><p>de aprender aquilo, o que eu ganharei com esta aprendizagem, porque eu quero</p><p>pensar sobre isso, quais caminhos eu vou percorrer para chegar nesse resultado</p><p>que eu desejo, é nesse sentido que nós focamos na personalização do ensino É</p><p>nesse sentido que tem se falado dessa nova tendência.</p><p>Vale reforçar não é algo distante da sua prática diária pelo contrário é</p><p>uma nomenclatura carregada de significado e intencionalidade que irá valorizar a</p><p>sua prática diária em sala de aula.</p><p>A personalização do ensino, não apenas é possível, como já é aplicada e</p><p>por isso se faz necessário que o professor esteja aberto para olhar de forma natural</p><p>e de forma responsável para essa tendência.</p><p>É necessário que haja momentos de autoformação do professor, a busca</p><p>pelo próprio conhecer, a busca pelo próprio avaliar, sondar quais são os seus há-</p><p>bitos dentro da sala de aula quais se alinham com a personalização de ensino e</p><p>quais fogem dessa questão para poder então dar um maior significado e moldar a</p><p>sua prática.</p><p>Conteúdos passam a ser nada mais nada menos que o suporte das ações</p><p>de aprendizagem é possível que a aprendizagem seja manipulável e flexível para</p><p>atingir resultados concretos, os objetos de conhecimento são o meio para se atin-</p><p>gir a aprendizagem, mas não são a aprendizagem em si, eles servem como um veí-</p><p>culo para aquisição e para a melhoria das habilidades mentais dos aprendizes, na</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>92</p><p>personalização do ensino a seleção dos conteúdos é feita de forma diversificada,</p><p>porém sempre direcionada e intencional, o mais importante é a capacidade de pro-</p><p>mover momentos de pesquisa.</p><p>O ensino personalizado, portanto, vai além de apenas identificar necessi-</p><p>dades de um ou de outro individuo, o ensino personalizado é uma proposta meto-</p><p>dológica que parte do interesse do aprendiz e que se molda com base nas opiniões</p><p>trazidas pelo aprendiz bem como dos seus interesses. Se faz necessário, então que</p><p>a rotina escolar garanta espaços e situações nas quais o aprendiz possa expressar</p><p>seus interesses e necessidades, atuando como protagonista do contexto escolar.</p><p>A conceituação trazida pelo ensino personalizado, da mesma forma que</p><p>acontece com outras tendências pedagógicas, nos gera dúvidas, incertezas e a-</p><p>quela sensação de que em uma sala lotada e sem estrutura não será possível reali-</p><p>zar, diante desse sentimento de bloqueio se faz urgentemente necessário uma</p><p>revisão da pratica, dessa maneira certamente será possível encontrar estratégias já</p><p>utilizadas que se alinham com essa tendência.</p><p>Façamos, então, uma análise simplificada de práticas corriqueiras das au-</p><p>las de alfabetização que vem de encontro a proposta da personalização do ensino,</p><p>são elas:</p><p>Considerar os interesses do aprendiz:</p><p>Proporcionar momentos para que a criança possa expressar seus interes-</p><p>ses em relação ao processo de aprendizagem e considera-los durante a elaboração</p><p>do planejamento.</p><p>Aprendizado progressivo tendo o professor como orientador:</p><p>Compreender que o aprendizado é um caminho a ser percorrido, com e-</p><p>tapas a serem vencidas, de maneira progressiva, sem forçar o aprendiz. Que o pro-</p><p>fessor não tem mais o papel de transmitir conhecimentos, e sim de orientar nessa</p><p>caminhada, mostrando opções que contribuirão com o aprendizado.</p><p>Alinhar as escolhas de objetos de estudo com a realidade do aluno:</p><p>A preocupação de considerar a realidade pessoal do aprendiz, conhe-</p><p>cendo sua história de vida, as influências familiares, e as limitações.</p><p>Disponibilizar recursos e instrumentos diversificados:</p><p>Recursos que podem ser até elaborados pelos próprios alunos, que esti-</p><p>mulem o raciocínio e proporcionem a oportunidade de rever conteúdos e pesqui-</p><p>sar por novos.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>93</p><p>Estratégias lúdicas:</p><p>Indispensável em qualquer faixa etária no processo de ensino e aprendi-</p><p>zagem, a ludicidade é o que torna o caminha mais leve, mais dinâmico, e divertido.</p><p>Interatividade:</p><p>A aprendizagem precisa ser dialética, com uma comunicação entre as</p><p>partes envolvidas e entre os objetos a serem estudados. Utilizar tecnologia, mídias</p><p>de comunicação, redes sociais, o que for preciso e viável dentro da realidade da</p><p>comunidade escolar, para que a comunicação e as informações cheguem a todos</p><p>de forma dinâmica.</p><p>Criar estratégias de ensino nas quais o uso da tecnologia seja mais do que</p><p>um instrumento para a transmissão de conhecimento, que seja uma interface ca-</p><p>paz de proporcionar a comunicação e a construção interativa do conhecimento.</p><p>Inclusão;</p><p>Ter um olhar atento a todos os tipos de aprendizes que fazem parte do</p><p>contexto escolar, adequando não apenas o ambiente físico, mas também as ferra-</p><p>mentas de avaliação e aquisição do conhecimento.</p><p>Valorização das pequenas conquistas;</p><p>Não precisamos esperar que o aprendiz atinja seu maior nível de conhe-</p><p>cimento para valorizar e incentivar, muito pelo contrário, cada pequena conquista</p><p>deve ser valorizada e comemorada, a fim de estimular a autoestima da criança e</p><p>proporcionar confiança para seguir seu percurso de descobertas.</p><p>- Estimulo do envolvimento da família e comunidade;</p><p>É muito importante que a família esteja inserida no contexto escolar de</p><p>forma a apoiar o aprendizado. Quando o aprendiz percebe que a escola não é algo</p><p>isolado de sua vida pessoal, que ela é um complemento, se sente acolhido e passa</p><p>a se dedicar de forma efetiva, pois consegue enxergar mais significado no processo</p><p>educacional.</p><p>- Utilização de critérios avaliativos, no lugar de avaliações padronizadas.</p><p>Muito se fala sobre mudanças nos sistemas avaliativos, e essa questão já</p><p>não pode mais ser deixada de lado, é necessário que as mudanças ocorram urgen-</p><p>temente, de forma efetiva, avaliações padronizadas não garantem resultados efeti-</p><p>vos. É necessária uma avaliação constante, gradual e baseada em critérios, não em</p><p>resultados e quantidades. Aquele momento em que o alfabetizador chama cada</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>94</p><p>aprendiz pra fazer uma leitura ou uma escrita de palavras, deve ser algo persona-</p><p>lizado e os dados colhidos nessas propostas precisam ser levados em consideração</p><p>no ato avaliativo. Em um processo de personalização não é possível estabelecer</p><p>notas de corte, o que queremos é que todos prossigam, então devemos avaliar o</p><p>aprendiz conforme seus próprios avanços.</p><p>Se analisarmos de forma detalhada os itens aqui citados poderemos ob-</p><p>servar que não faz sentido colocarmos obstáculos na execução do ensino persona-</p><p>lizado, pois apesar de não ser fácil este olhar diferenciado e atento já é utilizado</p><p>no contexto da alfabetização.</p><p>O ensino personalizado, garante a colaboração e comprometimento de</p><p>todos os envolvidos e traz resultados efetivos e significativos. Resistir ao novo é</p><p>como tentar ficar de pé na areia movediça, uma hora ou outra sua resistência não</p><p>servirá para te manter de pé, e a areia irá avançar, mas você continuará estagnado.</p><p>Portanto, a efetivação da personalização de ensino na fase de alfabetiza-</p><p>ção, depende muito mais de um posicionamento e uma revisão da pratica, do que</p><p>de uma grande e inovadora mudança. Precisa-se de professores que compreendam</p><p>que educar é um ato de coragem, é preciso quebrar barreiras, desenvolver confi-</p><p>ança, e concretizar objetivos.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>95</p><p>Referências</p><p>BACICH, L.; NETO, A. T.; TREVISANI, F. M. Ensino Hibrido: personalização e</p><p>tecnologia na educação. Porto Alegre: Penso, 2015.</p><p>Coll, C. (2016). La personalizacion del aprendizaje escolar. El que, el por que y</p><p>el como de un reto</p><p>insoslayable. En J. M. Vilalta (Dr.). Reptes de l’educació a Catalunya. Anuari d’Educació</p><p>2015 (pp. ---). Barcelona: Fundacio Jaume Bofill. Traduccion de Iris Merino.</p><p>MORAN, J. Educação Híbrida: um conceito chave para a educação, hoje. In:</p><p>BACICH, L.; NETO, A. T.; TREVISANI, F. M. Ensino Hibrido: personalização e</p><p>tecnologia na educação. Porto Alegre: Penso, 2015. p. 27-45.</p><p>PIMENTEL, F.S. C. Conceituando gamificação na educação. 2018. Disponível</p><p>em: http://fernandoscpimentel.blogspot.com/2018/01/conceituando-gamificacao-na-</p><p>educacao.html Acesso em: 28 de Julho de 2020.</p><p>http://fernandoscpimentel.blogspot.com/2018/01/conceituando-gamificacao-na-educacao.html</p><p>http://fernandoscpimentel.blogspot.com/2018/01/conceituando-gamificacao-na-educacao.html</p><p>PEDAGOGIA SOCIAL E OS DESAFIOS DA ESCOLA</p><p>PÚBLICA: REFLEXÕES FREIREANAS</p><p>André Luiz Rodrigues 1</p><p>Juliana Santos Graciani 2</p><p>Introdução</p><p>A escola apresenta em seu cotidiano muito mais do que conteúdos a se-</p><p>rem repassados de uma geração para a outra, ela trata do desenvolvimento de sen-</p><p>timentos. A educação afetiva e a alfabetização emocional vão sendo aprendidos e</p><p>apreendidos nas experiências familiares, escolares e na sociedade e podem ser</p><p>compreendidos como a consciência que o indivíduo constrói sobre si mesmo en-</p><p>quanto parte do processo de aprendizagem pessoal e social. Sentir-se parte, ver-</p><p>se como um humano inacabado, em eterno processo de tornar-se sujeito com di-</p><p>reitos e deveres, um exercício de ser cidadão local, global e planetário. Todo este</p><p>conjunto de sentidos e significados é fundamental para o crescimento e desenvol-</p><p>vimento da humanização.</p><p>Neste sentido, destaca Freire (2011) que:</p><p>É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como</p><p>processo permanente. Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em</p><p>que se reconheceram inacabados. Não foi a educação que fez mulheres e ho-</p><p>mens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educa-</p><p>bilidade. É também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e que nos</p><p>inserta no movimento permanente de procura que se alicerça a esperança.</p><p>(FREIRE, 2011, p. 24).</p><p>Nenhuma criança aprende se não se sentir humana e, com isto podemos</p><p>entender que para se sentir inclusa como membro da comunidade Homo Sapiens</p><p>Sapiens é necessário que suas necessidades possam ser ouvidas e atendidas. O que</p><p>ocorre quando um sujeito em fase peculiar de desenvolvimento infantil é violado</p><p>em seu ingresso, acesso, permanência e sucesso em suas múltiplas capacidades de</p><p>aprender numa educação formal e social, desenvolve-se um processo de desuma-</p><p>nização. Por vezes, culpa-se a criança e sua família por não ter êxito na escola, nas</p><p>1 André Luiz Rodrigues, Professor da Rede Municipal de Ensino de São Paulo, Graduado em</p><p>Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP.</p><p>2 Profa. Dra. Juliana Santos Graciani, Professora Graduação em Psicologia da Faculdades</p><p>Metropolitanas Unidas - FMU. Doutorado em Psicologia Social (PUC, 2015), Mestre Gerontologia</p><p>Social (PUC, 2009), Especialista em Arte e Desenvolvimento Humano (Faculdade Messiânica, 2015)</p><p>e Especialista em Psicologia Transpessoal (UNIPAZ, 2019). Educadora Social desde 2002 pelo</p><p>Núcleo de Trabalhos Comunitários da Pontifícia Universidade Católica – NTC-PUC-SP.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>98</p><p>atividades propostas (Silva Filho e Araújo, 2017). Este sentimento de culpa irá a-</p><p>companhar a criança por toda sua trajetória escolar e, fatalmente, será traduzida</p><p>na sensação de um adulto em exclusão da sociedade.</p><p>Os seres humanos necessitam ter o acesso a condições de dignidade exis-</p><p>tencial, seja numa perspectiva, social, cultural, econômica, política, artística, entre</p><p>outras. A humanização é construída dentro de um contexto onde todos possam se</p><p>sentir pertencentes ao ambiente e, dentro da coletividade, na experiência de com-</p><p>partilhar com os outros, onde possam contribuir para sua aprendizagem pessoal,</p><p>na do outro e do ambiente em que vivem, É preciso desenvolver o valor de uma</p><p>cidadania ativa, participativa, dialogada, permanente e de construção colaborativa</p><p>de uma cidade educadora, uma comunidade de paz e uma escola cidadã.</p><p>A exclusão social não é algo intrínseco na sociedade, não é natural e, não</p><p>pode ser vista como uma fatalidade. A invisibilidade, o preconceito, a discrimina-</p><p>ção, as violências estruturais, culturais e as diretas (sexual, física e psicológica),</p><p>desumanizam os sujeitos desde a mais tenra idade.</p><p>Vivemos em uma sociedade que preconiza a necessidade de ter e produzir</p><p>caso a pessoa não se enquadre em um destes dois quesitos, ela será posta a mar-</p><p>gem. E, mais, na grande maioria das vezes as pessoas serão em maior número sub-</p><p>jugadas a um pequeno grupo que detém o poder econômico e cultural.</p><p>Neste sentido, pensamos este trabalho como uma reflexão sobre uma saída</p><p>possível e possibilitadora de um novo modelo de sociedade, aquela em que a consci-</p><p>ência histórica construída na coletividade, faz provocar mudanças no status quo.</p><p>A Pedagogia Social (Graciani, 2012) com sua proposta educativa, reflete</p><p>e propaga a mudança social, afirmando que a Educação pode e deve ocorrer em</p><p>qualquer espaço e, não apenas nas escolas. Para tanto, lança-se no fortalecimento</p><p>da diversidade, do multiculturalismo, do conhecimento científico, da fala, da es-</p><p>cuta, da participação, da fraternidade, enfim, da possibilidade que todo sujeito</p><p>tem de ser mais.</p><p>Esta pesquisa teve por objetivo debruçar-se para os fundamentos da Pe-</p><p>dagogia Social e, após isto, voltar-se para a escola pública, na busca por encon-</p><p>trar práticas condizentes com este novo modelo de sociedade, mais humana e</p><p>humanizadora.</p><p>Refletir epistemologicamente sobre o papel pessoal e social da criança é</p><p>pensar o humano que nós queremos construir na sociedade. Repensar e ressigni-</p><p>ficar e, principalmente, possibilitar que ele ou ela possam ser felizes dentro de uma</p><p>propositura mais justa, solidária, equitativa e fraterna.</p><p>Para que pudéssemos trilhar este caminho, utilizamos como metodologia</p><p>a revisão bibliográfica e nossas experiências junto a escola pública que escolhemos</p><p>para realizar este trabalho de pesquisa.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>99</p><p>A conclusão foi o espaço escolhido para que as reflexões realizadas com</p><p>base nos fundamentos da Pedagogia Social e nas práticas cotidianas da escola pu-</p><p>dessem ser mais bem investigadas, esclarecidas e estimuladas como um novo mo-</p><p>delo de práxis pedagógica.</p><p>Esperamos que este trabalho possa contribuir para o fortalecimento e</p><p>crescimento da Pedagogia Social no Brasil, assim como, nas pesquisas realizadas.</p><p>É interessante destacar que através desta pesquisa, professores(as) e e-</p><p>ducadores(as) sociais que desconheciam a Pedagogia Social, poderão ter contato</p><p>com suas concepções e conceitos, proporcionando um começo de mudança na</p><p>forma como olham suas práticas em sala de aula e nos projetos sociais.</p><p>Faz-se necessário que tenhamos a consciência de que para a transforma-</p><p>ção da sociedade, a escola deve ser e é, em sua essência, palco primordial para o</p><p>exercício da cidadania, da liberdade e da participação.</p><p>Palavras não libertam homens e mulheres, ações sim, e essas promovem o</p><p>exercício da emancipação, da governabilidade e do empoderamento, favorecendo</p><p>a superação das violações dos direitos e a elaboração de um novo Projeto de Vida</p><p>Pessoal e Social. Mas, quando as ações ainda não estão com força para romper o</p><p>barulho ensurdecedor que corrompe, manipula, exclui e marginaliza, são as pala-</p><p>vras debatidas e conversadas que fazem criar um espaço onde a utopia coloca-se</p><p>como um norte a ser buscado e o fôlego para o inicio da caminhada.</p><p>1. Escola aprendente e seus desafios</p><p>Andar pelas ruas de uma grande cidade como São Paulo é se maravilhar</p><p>com um movimento intenso e frenético de carros e pessoas. O tempo todo tudo e</p><p>todos estão com pressa, atrasados, cansados, estressados e, ao mesmo tempo,</p><p>rindo, comemorando, buscando, alcançando. Enfim, um misto de emoções e situ-</p><p>ações que ocorrem ao mesmo tempo e, são sinônimos da cidade que “nunca dorme”.</p><p>Há outra realidade que também se vive pelas ruas e bairros desta mesma</p><p>cidade. Quantas pessoas, ao andarem pelas ruas do centro velho de São Paulo, se</p><p>depararam com meninos e meninas (estas escondidas com bonés e toucas que lhes</p><p>preservam o corpo) na Praça da Sé ou homens, mulheres e velhos buscando abrigo</p><p>debaixo das marquises durante as madrugadas. Estes também são cidadãos desta</p><p>mesma cidade, porém, a estes o “nunca dorme” é um fato diário.</p><p>Toda esta realidade que, para alguns, ainda que com sacrifícios, têm uma</p><p>luz que lhes traz alguma esperança de que ao final do percurso terão seus méritos;</p><p>para outros, representa o que Darcy Ribeiro chamou de moinho brasileiro de gastar</p><p>gente (RIBEIRO, 2018, p.15), ou seja, a dura realidade de mais um dia que se está vivo</p><p>por sorte e, contando com esta será capaz de encontrar algo para suprir um pouco</p><p>da muita fome que se sente ao longo dos dias que se passou sem comer ou beber.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>100</p><p>Junto a essa situação, podemos acrescentar outras demandas desafiantes</p><p>tanto da Pedagogia Social, bem como da Educação Formal, abrangendo uma atu-</p><p>ação frente aos dependentes químicos que residem na Cracolândia, as adolescen-</p><p>tes que são exploradas em sua sexualidade, as crianças que precisam trabalhar no</p><p>farol na mendicância, os adolescentes em cumprimento de medidas socioeducati-</p><p>vas, as famílias que estão vivendo a temática carcerária, as diversas aldeias indíge-</p><p>nas com suas aldeias e suas lutas pela preservação da cultura e de acesso as terras,</p><p>as populações Ribeirinhas, Quilombolas e as comunidades rurais, vários movi-</p><p>mentos sociais Sem Terra, Sem Teto, LGBTQIA+3, as Pastorais e as demandas das</p><p>violências sexuais, físicas e psicológicas.</p><p>Estas realidades suscitadas, por vezes emociona, às vezes agride e, muitas</p><p>vezes, nos causa justa indignação, serviu de pano de fundo para os estudos da Pe-</p><p>dagogia Social e suas interfaces com a educação formal.</p><p>A professora Dra. Maria Stela Santos Graciani em sua Pedagogia Social</p><p>de Rua, desenvolvida a partir do Núcleo de Trabalhos Comunitários na Pontifícia</p><p>Universidade Católica (1991-2020) é uma das obras que fundamenta esta pes-</p><p>quisa, juntamente com outras com o mesmo propósito de desvelar as teias que</p><p>marginalizam, excluem e tornam invisíveis os sujeitos que não se enquadram nesta</p><p>ideia de sociedade justa, fraterna e solidária.</p><p>Segundo Graciani (2009) duas palavras, à margem e marginal, apresen-</p><p>tam o sujeito de que trata a Pedagogia Social de Rua. Estar à margem e ser margi-</p><p>nalizado são a rotina de milhares de pessoas, seja nos grandes centros urbanos ou</p><p>nas periferias rurais. Esta situação de ser “de rua”, existir sem um lugar, reconhe-</p><p>cido pelo outro que vê, é um processo duro e cruel que foi e é instituído pelo sis-</p><p>tema econômico em que vivemos. Acrescenta, neste sentido Graciani (2009) apud</p><p>Gadotti (2009, p. 12):</p><p>[...] A “rualização” é consequência de um sistema econômico fundado na injus-</p><p>tiça que produz a marginalidade, a pobreza, o povo da rua das cidades e o traba-</p><p>lhador sem terra dos campos. É o sistema capitalista selvagem (grifos do autor) que</p><p>cria lixões nas periferias das grandes cidades, onde se amontoam urubus, aninais</p><p>e seres humanos, disputando as mesmas sobras do luxo das elites. (GRACIANI,</p><p>2009 apud GADOTTI, 2009, p. 12).</p><p>Esse processo de sentir-se estranho, a margem dos meios de inclusão e</p><p>ser marginalizado pelo outro, está marcado por um contexto de uma sociedade</p><p>3 LGBTQIA+: Está sigla reúne os diversos coletivos e grupos organizados, dando visibilidade à</p><p>orientação sexual dos indivíduos, podendo ser Lésbicas, Gays, Bissexuais e aos diferentes tipos de</p><p>gênero Transexuais, Travestis e Transgêneros, a cultura Queer, representando as pessoas que não se</p><p>identificam com os padrões impostos pela sociedade, Intersexuais (pessoas que apresentam</p><p>cromossomos que não permitem que a pessoa seja identificada como masculino ou feminino) e +</p><p>representando todas as outras pessoas e suas particularidades.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>101</p><p>capitalista, onde a desigualdade de acesso as dimensões econômicas, sociais, polí-</p><p>ticas, culturais, educacionais, artísticas, entre outras estão presentes.</p><p>Para Giddens (2005, p.265) o conceito de exclusão social: “diz respeito às</p><p>formas pelas quais os indivíduos podem</p><p>acabar isolados, sem envolvimento integral na sociedade</p><p>mais ampla”, sendo excluídos da terra, da educação e do convívio na vida com suas</p><p>múltiplas possibilidades. É preciso acolher, criar espaços de convívio pluralista,</p><p>criar a valorização da diversidade e da construção coletiva dos saberes, a fim de</p><p>que juntos possamos elaborar formas de superação das desigualdades.</p><p>Freire (2011) destaca que para produzirmos transformações em nossas</p><p>práticas de educadores sociais, temos que inicialmente mudarmos a nós mesmos,</p><p>ou seja, um ponto fundamental é estarmos presentes, como pessoa humana, nos</p><p>processos que vivemos em comunhão com os outros e com nós mesmos! Para tal,</p><p>é necessário desenvolvermos uma escuta aso sentimentos dos educandos, conhe-</p><p>cer o projeto de vida das pessoas, contar nossas histórias de superação de nossas</p><p>opressões, experimentar vivências de conscientização de nossos preconceitos e</p><p>discriminação, desenvolver ideias criativas e concretizar ações coletivas de solida-</p><p>riedade e fraternidade.</p><p>Neste sentido Freire (2011, p. 32) defende que:</p><p>Como educador preciso de ir “lendo” cada vez melhor a leitura do mundo que os</p><p>grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do maior</p><p>de que o seu é parte. O que quero dizer é o seguinte: não posso de maneira al-</p><p>guma, nas minhas relações político-pedagógicas com os grupos populares, des-</p><p>considerar seu saber de experiência feito. Sua explicação do mundo de que faz</p><p>parte a compreensão de sua própria presença no mundo. E isso tudo vem expli-</p><p>citado ou sugerido ou escondido no que chamo “leitura do mundo” que precede</p><p>sempre a “leitura da palavra”.</p><p>Aprender a Ler o Mundo (Freire, 2011) é um exercício contínuo de</p><p>dialogar com as realidades, ouvir a pluralidade das subjetividades dos envolvidos</p><p>no processo de educar, sentir e compartilhar o risco de partilhar a vida em comum,</p><p>um convívio corporificado da presença vida de um docente com um discente</p><p>(Síveres, 2015), onde ambos são curiosamente aprendizes da arte de aprender</p><p>juntos sobre o passado, presente e idealizar um futuro, diante de um projeto</p><p>político, pedagógico, institucional societário e pessoal.</p><p>A educação Freireana, como eixo basilar da Pedagogia Social é perpassada</p><p>por uma teimosia diante da esperança de um porvir, através de um inédito viável de</p><p>novos olhares do via-a ser, permeados por uma esperança criativa e vivida no aqui</p><p>e agora, por meio da inclusão da assunção da identidade do grupo e de si mesmo,</p><p>expressada no diálogo na escola, com os amigos, na participação de reuniões de</p><p>construção de uma cidade educadora, tais como: o Plano Plurianual do Município,</p><p>as reuniões do orçamento participativo, as conferências municipais, estaduais e</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>102</p><p>nacionais, a votação nas eleições para o Conselho Tutelar e a participação nas</p><p>comissões e conselhos representativos da sociedade civil organizada.</p><p>A visão sobre o que é educação é um ponto fundamental para começar-</p><p>mos a compreender como muitas ações ou a falta destas se concretizam e são ca-</p><p>pazes de dar voz ou excluir. “[...] a violação dos direitos é também o resultado de um</p><p>processo distorcido de “educação” daquelas mesmas pessoas que deveriam resguardar esses di-</p><p>reitos”. (Graciani, 2009, p. 13).</p><p>Uma concepção de educação que não alcança a todos, mas apenas àqueles</p><p>que pertencem a um determinado grupo da esfera social, onde “[...] o outro não é</p><p>identificado como um ser comum, mas como um estranho que nada representa, senão mais um</p><p>número nas estatísticas”. (Graciani, 2014, p. 12). Neste sentido, atuar na prática edu-</p><p>cativa exige o desenvolvimento de uma visão crítica sobre a conjuntura histórica</p><p>de seu país e mundo, reflexiva frente seus atos e proativa individualmente e cole-</p><p>tivamente frente a problematização e suas diversas soluções de transformação.</p><p>Para Freire, (2011, p. 17) “ensinar exige risco, aceitar o novo e rejeição a qualquer forma de</p><p>discriminação”.</p><p>O papel da escola na perspectiva da Pedagogia Social é criar espaços de-</p><p>mocráticos, participativos e solidários, onde se possa exercitar os saberes erudi-</p><p>tos, populares e de cultura de massa, problematizando-os ao longo da história da</p><p>humanidade, fomentar soluções para os problemas da realidade, incentivar o po-</p><p>tencial criativo e inovador de cada discente de forma individual, grupal, coletiva e</p><p>societária. Assim, a escola como uma instituição viva, errante e aprendente se</p><p>torna cidadã e colabora para a efetivação de uma cidade educadora, onde todos são</p><p>parte, tem voz e vez!</p><p>A escola tem como função, segundo Libâneo apud Mello (1994, p. 35) “[...]</p><p>a socialização daquela parcela do saber sistematizado que constitui o indispensá-</p><p>vel à formação e ao exercício da cidadania”. E, para além desta função formal a</p><p>escola alcança outras dimensões que visam à educação dos sentidos e olhares para</p><p>o mundo, onde a essa pode despertar a alegria de viver, a curiosidade, a imaginação</p><p>e a criação de sonhos individuais e projetos coletivos e societários. Ressalta Ru-</p><p>bem Alves (2011, p. 64):</p><p>[...] a primeira tarefa do professor é, à semelhança dos pregos, entortar a sua “dis-</p><p>ciplina” (grifo do autor) (ô palavra feia, imprópria para uma escola!) para trans-</p><p>formá-la num brinquedo que desafie a inteligência do aluno. Pois não é isso que</p><p>são a matemática, a física, a química, a biologia, a história, o português? Brinque-</p><p>dos, desafios à inteligência. Mas, para isso, é claro, é preciso que o professor saiba</p><p>brincar e tenha uma cara de criança, ao ensinar. (RUBEM ALVES, 2011, p. 64).</p><p>A expressão popular “cara de criança” nos convida a construir em nossos</p><p>pensamentos a imagem de uma infante correndo, sorrindo, brincando a todo o mo-</p><p>mento com tudo e com todos. Sujeito de direitos que inventa danças, completa</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>103</p><p>músicas, faz de uma massinha de modelar uma cobra gigante. Estes e tantos outros</p><p>pensamentos sobre a infância nos leva a sempre constatar que o lugar delas para</p><p>além da escola, são nos parques, na Casa de Cultura, na praia, nos locais públicos,</p><p>no teatro, no cinema, no convívio com os pais nas Conferências Públicas Munici-</p><p>pais, no convívio comunitário, com amigos, participando dos movimentos sociais</p><p>de sua cidade, onde poderá exercer sua cidadania, construir sua identidade pes-</p><p>soal e social.</p><p>A Pedagogia Social defende que é necessária uma nova concepção de es-</p><p>cola, onde está seja mais inclusiva, libertária, progressista, crítica, proativa, cola-</p><p>borativa e atuante nos avanços da sociedade. (Graciani, 2009; Freire, 2011,</p><p>Gadotti, 2001).</p><p>Em seu trabalho com a Pedagogia Social de Rua, professora Stela Graci-</p><p>ani (2009, p. 15) nos aponta por onde as ações devem começar: “a criança de rua sofre</p><p>no seu corpo e é pelo seu corpo que precisamos começar. Vamos ao encontro dela na rua. É possí-</p><p>vel fazer bem a elas apenas com a nossa presença”.</p><p>A Pedagogia da Presença é perpassada por uma corporificação do corpo e</p><p>da alma do educador social, onde por meio da articulação entre o sentir, pensar e ao</p><p>agir estão materializados nas práticas educativas, mergulhadas na arte do encontro</p><p>significativo, expressão de sentimentos, compartilhar de dúvidas, diálogos de supe-</p><p>ração das dores, engajamento nos incentivos de potenciais individuais e sociais.</p><p>Neste sentido, existe uma partilha de formas de viver o cotidiano exis-</p><p>tencial, marcado por uma expressão de amor ao educando, onde o maior desafio é</p><p>gostar de todos, acolhendo e valorizando positivamente as diferenças. “Ensinar e-</p><p>xige querer bem aos educandos! (Freire, 2011, p. 52).</p><p>2. Intersecção entre Pedagogia Social e suas perspectivas com a educa-</p><p>ção formal</p><p>“A Educação é uma atividade para a vida, que ocorre na família, na rua,</p><p>na igreja, no trabalho, na escola e em todos os espaços sociais”. (SILVA et al,</p><p>2014, p. 190).</p><p>Os múltiplos espaços que servem de possibilitadores para a aprendiza-</p><p>gem, vão além dos</p><p>espaços escolares que por muitas vezes não se permitem olhar</p><p>para as diversas populações invisíveis, para a cultura popular e os saberes prévios</p><p>dos educandos. Graciani (2009, p.14) aponta que “a escola nunca pergunta o que</p><p>os alunos querem saber”, mas impõe um conjunto de conhecimentos preestabele-</p><p>cidos pelas diretrizes curriculares, é um planejamento destinado para os alunos e</p><p>não elaborados e validados com eles.</p><p>A Pedagogia Social defende a escolarização como um direito social asse-</p><p>gurado pela Constituição Federal (1988, art.227) e preconiza sobre a educação</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>104</p><p>para todos, contribui com uma nova reflexão que abarca a própria escola, porém,</p><p>não a privilegia como único espaço.</p><p>A Pedagogia Social idealiza e busca uma educação que não tem como consequência</p><p>de seu fazer cotidiano, a segregação e a exclusão. Na contracorrente de uma educa-</p><p>ção para alguns, para uma educação de todos para todos (SILVA et al, 2014, p. 10).</p><p>A Pedagogia Social, não é uma teoria ou prática que nega ou se contrapõe</p><p>a Educação Escolar. Mas, lança-se como uma perspectiva de possibilidades em</p><p>meio à perpetuação da negação do direito do sujeito, se colocando como uma pers-</p><p>pectiva de sua emancipação, governabilidade e responsabilização.</p><p>Quando ela se coloca enquanto estratégia contemporânea, não o faz impondo</p><p>seus preceitos e visões de mundo e de sujeito sob os outros tipos de pedagogia.</p><p>Mas, ao se propor enquanto uma possibilidade em face às amarguras da educação</p><p>brasileira, objetiva ampliar a visão de educação, repensando seus objetivos, meios</p><p>e processos, tendo como centro de toda a sua discussão e reflexão, o sujeito. (Silva</p><p>et al, 2014).</p><p>A Pedagogia Social é uma área em construção da Educação Social e tem</p><p>como força motriz repensar a sociedade, propor uma verdadeira revolução no</p><p>modo de problematizar, analisar a realidade e possíveis ações que poderão ser re-</p><p>alizadas para a transformação. Pois, reafirmar o modelo de sociedade que vivemos,</p><p>é continuar negando o direito de muitos em detrimento de poucos é desumano. A</p><p>relação entre o opressor x oprimido é uma das chaves para se repensar o formato</p><p>de sociedade que vivemos e, mais ainda, junto a Pedagogia Social, compreender</p><p>nesta relação, seu rompimento tendo como objetivo seu fim, o caminho para pro-</p><p>jetar uma nova sociedade, mais humana e justa para todos e todas e com todos e</p><p>todas. Neste sentido, acrescenta Souza Neto (2014, p. 79):</p><p>Mas a Pedagogia Social também tem uma forte atuação na escola, que é reescrever</p><p>uma outra pedagogia. Costumamos dizer que ela traz na sua entranha um projeto</p><p>de sociedade, um projeto de educação que valoriza os atributos e potencialidades</p><p>dos indivíduos, enquanto a Pedagogia Escolar e outras pedagogias sempre se a-</p><p>presentaram em cima do fracasso das pessoas. (SOUZA NETO, 2014, p. 79).</p><p>Para além da aprendizagem de conteúdos, que são muitas das vezes des-</p><p>conexos com a realidade, importa à Pedagogia Social a integralidade na aprendi-</p><p>zagem com sentidos, significados e contextualizados ao sujeito:</p><p>[...] A educabilidade do sujeito abrange uma constelação de fatores que deve pos-</p><p>sibilitar ao indivíduo saber-ser, saber-conviver, saber-cuidar e saber-aprender,</p><p>para dar sentido à sua existência (SILVA et al 2014, p. 10).</p><p>Estes conceitos que norteiam as práticas e visão da Pedagogia Social de-</p><p>monstram por si só o direcionamento revolucionário e progressista de sua práxis,</p><p>“[...] assumimos a Pedagogia Social em construção no Brasil como projeto societário dotado de</p><p>uma práxis libertadora da relação oprimido e opressor”. (SILVA et al 2014, p. 11). Essa</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>105</p><p>relação que se tem perpetuado e marginalizado aqueles que o sistema desconsi-</p><p>dera como sujeito de direitos, é fortemente contestada enquanto modelo único e</p><p>possível de sociedade.</p><p>O sujeito que tem consciência de si e do outro, que zela pelo mundo a sua</p><p>volta enquanto território que deve ser ocupado e preservado e, que compreende as</p><p>mais variadas formas de aprender, se liberta do cárcere de oprimido. Sem que, com</p><p>essa libertação torne-se um novo opressor e, na medida em que vai se constituindo</p><p>sua aprendizagem dentro desta perspectiva libertadora, a tomada de consciência</p><p>crítica se amplia e aprofunda. Para Freire (2011, p.33): “[...] a “expulsão” do opressor de</p><p>“dentro” do oprimido, enquanto sombra invasora. Sombra que, expulsa pelo oprimido, precisa</p><p>de ser substituída por sua autonomia e sua responsabilidade”.</p><p>A educação é pensada na perspectiva do Sistema de Garantia dos Direitos</p><p>(Guerra et al., 2014): efetivação dos direitos, defesa diante das violações, promo-</p><p>ção, prevenção e controle, monitoramento, fiscalização e avaliação desses. Direitos</p><p>esses que não se anulam em face de pobreza ou ao analfabetismo. Pelo contrário,</p><p>são nestas duas situações que a educação social se torna ainda mais necessárias.</p><p>O que vemos atualmente em 2020, é a negação do direito, seja de ser, con-</p><p>viver, fazer, aprender, sentir e expressar. A pessoa que está em situação de rua ou a</p><p>criança cuja família esteja como refugiada em determinado país, por exemplo, tem</p><p>seus direitos primordiais negados. Seja pelo não reconhecimento de que também</p><p>são sujeitos de direito, seja por ações, que muitas das vezes, sutilmente marginali-</p><p>zam e excluem. A Pedagogia Social defende uma articulação entre a ação pedagó-</p><p>gica e a prática social, voltada para a cidadania ativa, participativa e colaborativa.</p><p>[...] As práticas educacionais orientadas para a educação em cidadania, valores,</p><p>direitos humanos, participação política e protagonismo, têm o social como seu</p><p>locus preferencial de desenvolvimento e transformação das estruturas sociais, po-</p><p>líticas e de poder o seu leitmov (SILVA et al 2014, p. 18).</p><p>Portanto, a Pedagogia Social é necessária, urgente e capaz de romper com</p><p>a visão segregacionista e desigual que está constituída na sociedade atual, fazendo</p><p>frente aos desejos cruéis e excludentes dos grupos que detém o poder e o controle</p><p>dos mecanismos de garantias de direitos. Ela é fundamentada pela Constituição</p><p>Federal (1988, art.205) que versa sobre a obrigatoriedade do Estado e da família</p><p>na educação do sujeito, permeada pela sociedade, visando sua formação enquanto</p><p>pessoa e cidadão (ã), principalmente.</p><p>A Educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e</p><p>incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento</p><p>da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o</p><p>trabalho (CF, 1988, art.205).</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>106</p><p>A perspectiva Freireana e a Pedagogia Social, tendo a educação enquanto</p><p>ação que se constitui e realiza em todo e qualquer lugar, enfatizam a importância</p><p>do meio social para a riqueza de aprendizagens.</p><p>Art. 1º A Educação abrange os processos formativo que se desenvolvem na vida</p><p>familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pes-</p><p>quisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifes-</p><p>tações culturais. (LDBEN, 1996, art. 1).</p><p>Freire (2011, p. 29) defende que o ser humano está em eterna formação,</p><p>mediada por uma ética e estética, tem uma condição de inacabamento, onde a a-</p><p>prendizagem é desenvolvida pela presença, exemplaridade e é mediado por uma</p><p>teimosa práxis de que: “ensinar exige a convicção de que a mudança é possível”.</p><p>Para Trilla (2003, p. 53) a Pedagogia Social apresenta nos processos edu-</p><p>cativos pelo menos dois dos três atributos essenciais:</p><p>1. Dirigem-se prioritariamente ao desenvolvimento da sociabilidade dos sujeitos;</p><p>2. Têm como destinatários privilegiados indivíduos ou grupos em situação de</p><p>conflito social; 3. têm lugar em contextos ou por meios educativos não-formais</p><p>(TRILLA, 2003, p. 53).</p><p>Neste sentido, temos um conceito de Educação que vai além dos muros</p><p>da escolarização, ou seja, ela não é limitada a escola, mas permeada pela socializa-</p><p>ção,</p><p>pelas vivências do sujeito, pela história contextualizada do país e das correla-</p><p>ções de forças econômicas, políticas, sociais, culturais e artísticas.</p><p>Para Petrus et al. (2000), “a Educação é global, é social e se dá ao longo de toda a</p><p>vida”. Neste sentido, a escola não é a reserva natural da formalidade e do rigor peda-</p><p>gógico. As outras educações, chamadas de educação não formal ou informal, podem</p><p>ser tão formais ou mais que a própria escola. Existem muitos projetos sociais que</p><p>utilizam uma metodologia pedagógica tradicional, bancária, reprodutivista, alie-</p><p>nada e deslocada da realidade, repetindo o modelo da escola passiva e autoritarista.</p><p>3. Contribuições freireanas na emancipação pessoal e social</p><p>A Pedagogia do Oprimido preconizada por Freire (1968), também subsi-</p><p>dia os a construção da Pedagogia Social, enquanto propõe o desvelamento da rea-</p><p>lidade na escola, com seus métodos de aprendizagem bancários. A educação do</p><p>modelo atual marginaliza e aniquila o educando.</p><p>[...] a ideia de um sistema “bancário” de educação consiste em relações de oposi-</p><p>ção binária entre educador e educando. Na relação binária, o educador preenche</p><p>sistematicamente o espaço inverso a esta correlação, ou seja, o educador sabe, os</p><p>educandos não sabem (GRACIANI, 2009, p. 186).</p><p>Para Freire (2011, p.17) tanto docente, como o discente estão em comu-</p><p>nhão no ato de aprender e ensinar e em sua prática docente deve estimular a capa-</p><p>cidade crítica, o potencial da curiosidade e a insubmissão a educação bancária e</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>107</p><p>ressalta que: “[...] faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos mas também</p><p>ensinar a pensar certo. A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movi-</p><p>mento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer”.</p><p>Na contracorrente desta educação bancária, o educador social vai ao en-</p><p>contro do sujeito, centro do conhecimento, e, através do olhar sensível e atento,</p><p>mediado pelo diálogo e escuta, inserido no mundo com sua realidade complexa; a-</p><p>prende, apreende, troca e compartilha. Desta forma, são nas vivencias práticas e nas</p><p>reflexões críticas teóricas, que a Pedagogia Social desenvolve seus fundamentos,</p><p>questionamentos e da voz e vez aos sujeitos. Para tal, Freire (2011, p.13) aponta que:</p><p>O necessário é que, subordinado, embora, o educando mantenha vivo em si o</p><p>gosto da rebeldia que, aguçando sua curiosidade e estimulando sua capacidade</p><p>de arriscar- se, de aventurar- se, de certa forma o “imuniza” contra o poder apas-</p><p>sivador do “bancarismo”. (FREIRE, 2011, p. 13).</p><p>O educador social vai ao encontro ao educando, as populações em vulne-</p><p>rabilidade e as pessoas em situação de risco pessoal e por meio da arte do encontro,</p><p>favorecendo-lhes a construção da consciência crítica da realidade circunstancial</p><p>que vivenciam. Nesta perspectiva, a Pedagogia Social, a partir de seus fundamen-</p><p>tos teóricos e, principalmente, práticos, é tida como um “[...] processo de construção de</p><p>conhecimentos simultaneamente individual e coletivo, com a crença na emancipalidade intrín-</p><p>seca”, inata ao potencial humano. (Graciani, 2009, p. 198).</p><p>O ser humano faz parte da condição de Homo Sapiens Sapiens, mas não</p><p>nasce humanizado. Ele torna-se, na medida em que se descobre dentro de um pro-</p><p>cesso de humanização e desumanização. Porém, “[...] não lhe é permitido humanizar-se,</p><p>vocação negada, mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, na ex-</p><p>ploração, na opressão, na violência dos opressores”. (Freire, 2014, p. 40).</p><p>Ambos, opressor e oprimido, não escapam da desumanização, pois, ao de-</p><p>sumanizar o outro, este, desumaniza-se a si mesmo. Porém, não é esta a razão de</p><p>ser ontológica do humano.</p><p>Imaginemos a seguinte situação, onde você está escolhendo um restau-</p><p>rante para comer uma refeição. Você para, observa, entra, escolhe, sacia sua fome.</p><p>Eis que um homem ou mulher se aproxima e pede um pouco ou as sobras para</p><p>poder alimentar-se. Imediatamente, o garçom do estabelecimento, vem e expulsa</p><p>este homem ou mulher, a mando de seu patrão. E, a vida segue.</p><p>Tanto aquele que coloca em prática seus direitos de ir e vir e de consumir,</p><p>quanto àquele que trabalha para um patrão que lhe manda tomar tal atitude; estão</p><p>tão desumanizados quanto aqueles que desencadearam a ação.</p><p>A lógica do capital quer que tais situações sejam vistas como naturais,</p><p>quando na verdade não são, essas fazem parte do processo de desumanização e da</p><p>naturalização da pobreza, violência e desigualdade. Freire (2014, p.41) afirma que:</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>108</p><p>“[...] a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas</p><p>resultado de uma “ordem” injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos”.</p><p>Diante desta desumanização surge um movimento contrário que luta</p><p>pela humanização. “Porém, o oprimido não se transfigura no opressor, mas restaura a huma-</p><p>nidade em ambos”. (Freire, 2014, p. 41).</p><p>O ato de humanizar-se a si mesmo e ao seu opressor é árduo e complexo,</p><p>“constituindo-se na grande tarefa humanista dos oprimidos”. (Freire, 2014, p. 41). O o-</p><p>lhar do opressor não contempla seu estado de desumanizado, pelo contrário, acha-</p><p>se mais humanizado do que aquele a quem oprime. Portanto, a Pedagogia do O-</p><p>primido na visão de Freire (2014, p. 43):</p><p>É uma pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos</p><p>oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua liber-</p><p>tação, em que esta pedagogia que se fará e refará. (FREIRE, 2014, p. 43).</p><p>Pensar o processo de humanização para a Pedagogia do Oprimido é com-</p><p>plexo, pois, a pessoa para humanizar-se necessita primeiro, entender que muitas</p><p>vezes, que o opressor e sua lógica de dominação e alienação, habitam dentro de si,</p><p>“[...] o momento em que descubram hospedeiros do opressor poderão contribuir para o parteja-</p><p>mento de sua pedagogia libertadora”. (Freire, 2014, p. 43).</p><p>Porém, há de se refletir muito e com seriedade para que o, agora não mais,</p><p>oprimido, transforma-se em opressor, gerando assim, um círculo de opressão.</p><p>Onde o patrão oprime o empregado, este por sua vez, oprime o vendedor e, assim</p><p>por diante dentro de um processo de reprodução da opressão vivenciada. Ação</p><p>está justificada pelo pensamento de que naquela situação o oprimido tem o direito</p><p>dado por si de ser o opressor.</p><p>Podemos pensar em como o oprimido fará para ter liberdade para huma-</p><p>nizar-se. Certamente que está não será dada pelo opressor e, é neste ponto que a</p><p>Pedagogia do Oprimido faz elevar a ação de luta do oprimido. A conquista de sua</p><p>liberdade é necessária, porém, mais do que isso, “é condição indispensável ao movimento</p><p>de busca em que estão inscritos os homens como seres inconclusos”. (Freire, 2014, p. 46). A</p><p>liberdade nunca é dada ao homem, mas é o fruto de sua luta. Porém, ao mesmo</p><p>tempo em que se almeja ser livre, o oprimido teme sê-lo, “[...] querem ser, mas temem</p><p>ser. São eles ao mesmo tempo e são o outro introjetados nele, como consciência opressora</p><p>(Freire, 2014, p. 47).</p><p>A generosidade e a solidariedade para a Pedagogia do Oprimido assume um</p><p>caráter ético e verdadeiro, contrariando a lógica do opressor que se mostra solidário</p><p>ao mesmo tempo em que acorrenta ainda mais o oprimido, mantendo-o na mesma</p><p>situação de dependência e submissão, “[...] a solidariedade verdadeira com eles está em com</p><p>eles lutar para transformação da realidade objetiva que os faz ser “. (Freire, 2014, p. 49).</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>109</p><p>Solidarizar-se com o oprimido é ir além e alcançar a concretude das ideias</p><p>que, verdadeiramente, libertam. Não basta dizer “estou com você” e não estar ao lado</p><p>nas lutas e reivindicações, “[...] dizer que os homens são pessoas e, como pessoas, são livres, e</p><p>nada concretamente fazer para que esta afirmação se objetive, é uma farsa”. (Freire, 2014, p. 50).</p><p>A realidade que vivemos, onde os oprimidos</p><p>tornam-se cada vez mais des-</p><p>personalizados, ou seja, a violência que busca mecanismos de perpetuar a capaci-</p><p>dade de invalidar o outro, ceifando sua participação na sociedade. Este contexto</p><p>não se constitui sozinho, ele é resultado de um conjunto de ações praticadas, esti-</p><p>muladas e perpetuadas pela própria comunidade que coabitam os territórios,</p><p>constituídos por homens e mulheres.</p><p>A criticidade é o caminho para que se possa desvelar a realidade opres-</p><p>sora. Desvelar no sentido de tirar o véu que cobre o olhar e não nos deixa ver as</p><p>atrocidades que manipulam, submetem e excluem o ser humano.</p><p>O modo para transformar esta realidade e, a que se propõe a Pedagogia</p><p>do Oprimido, é através da práxis, ou seja, da ação-reflexão-ação, [...] é reflexão e ação</p><p>dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição</p><p>opressor-oprimido (Freire, 2014, p. 52).</p><p>Ler o mundo é desvelá-lo e ao fazê-lo munido de criticidade, o sujeito se</p><p>refaz e se afirma; se empodera e se apodera da liberdade que lhe foi negada brutal-</p><p>mente. A mudança não irá ocorrer através de causas naturais no percurso da his-</p><p>tória, nenhuma realidade se transforma a si mesma (FREIRE apud Marx, 2014, p. 55).</p><p>A Pedagogia do Oprimido objetiva ser um exercício de transformação,</p><p>permeado por um processo de construir-se, fazer-se e modificar-se, “está pedagogia</p><p>de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação”.</p><p>(Freire, 2014, p. 57). Ela se divide em dois momentos, o primeiro de humanização</p><p>e o segundo de libertação, ambos permeados pela práxis.</p><p>O marginalizado é fruto da sociedade, ele sempre esteve dentro dela, é</p><p>está que os transforma em seres “para o outro”. (Freire, 2014, p. 84). Neste sentido, as</p><p>medidas que visem integrá-lo ou incorporá-lo à sociedade, de nada valem, pois,</p><p>elas perpetuam este “estar para o outro”. Quando na verdade é necessário transfor-</p><p>mar está mesma sociedade para que aquele que foi por ela marginalizado, possa</p><p>“fazer-se seres para si”. (Freire, 2014, p. 85).</p><p>A escola também pratica esta marginalização e busca integrar aqueles que</p><p>diferem do comportamento normativo. A educação bancária engessa o educando</p><p>como um pote a ser preenchido e, o educador como aquele que irá preenchê-lo.</p><p>Para a Pedagogia do Oprimido não há essa dicotomia no aprender, o “eu</p><p>sei e você não”, ambos sabem e se educam entre si.</p><p>[...] o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é edu-</p><p>cado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>110</p><p>Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que</p><p>os argumentos de autoridade já não valem (FREIRE, 2014, p. 96).</p><p>Desta maneira não a que se sobrepor ao outro ou de tentar reduzi-lo a</p><p>mero expectador da vida, mas, de dar voz, vez e juntos transformar as realidades.</p><p>4. (Des)(Re)construção da Educação em momentos de Pandemia</p><p>A escola terá que se resignificar para atender ao seu objetivo frente a está</p><p>nova pandemia, marcada pela presença do vírus Covid 19 em escala mundial e tam-</p><p>bém presente no início do século XXI, no ano de 2020.</p><p>A escola pública tem como alicerce de suas práticas um modo de operar</p><p>que, ainda, se concentra no físico, no estar presente. A alma de uma escola está em</p><p>sua capacidade de interação real entre a equipe escolar e as crianças, adolescentes,</p><p>jovens, adultos, com a comunidade. a cidade e a região do país na qual está inserida.</p><p>A escolarização formal e a educação social no contexto da Pandemia, não</p><p>puderam exercer interações presenciais, sendo a educação focada no âmbito re-</p><p>moto, híbrido, de forma síncrona e assíncrona, por meio da ministração de web-</p><p>conferências, lives, storys e a realização de múltiplas atividades através das novas</p><p>tecnologias digitais, da comunicação, da informação e das redes sociais.</p><p>Como a escola conseguirá cumprir com seus vários papéis assumidos ao</p><p>longo de todos esses anos, seja com as mudanças que ocorreram na forma e no que</p><p>ensinar, ou pelas políticas públicas que encontram na escola seu multiplicador</p><p>privilegiado para que ocorram?</p><p>O Covid-19 transformou toda a sociedade global e suas formas de ação</p><p>cotidianas. Sejam os hábitos de consumo, de contato entre todos, interação com o</p><p>uso massivo da internet, relações entre as famílias e nas formas de vivências comu-</p><p>nitárias. Assim, hábitos cotidianos simples tornaram-se complexos.</p><p>Milhares de professoras e professores, equipes gestoras, equipes pedagó-</p><p>gicas, funcionários do quadro de apoio, enfim, todas as pessoas que fazem parte</p><p>dos grupos escolares e de projetos sociais, tiveram suas rotinas alteradas devido</p><p>ao Covid-19. Diante disso como agir? Como dar conta dos currículos? Como inte-</p><p>ragir com todos? Como atingir a todos, tendo em vista as desigualdades sociais,</p><p>econômicas, políticas, culturais e artísticas existentes? Enfim, como a escola e os</p><p>projetos sociais cumprirão com seus papéis e se reformularão para atender está</p><p>nova demanda de mudança global, local, social e pessoal?</p><p>Temos uma escola que ainda está centrada no giz, na lousa, nos livros di-</p><p>dáticos impressos, cadernos, nas fileiras, na transmissão de conhecimentos, na</p><p>presença real. A escola que conhecemos não mudou muito em seus aspectos físicos</p><p>ao longo dos últimos séculos.</p><p>O publico atendido, sejam elas as crianças da Educação Infantil, do Fun-</p><p>damental I e II, dos adolescentes e jovens do Ensino Médio ou os adultos da</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>111</p><p>Educação de Jovens e Adultos-EJA ou os Universitários, são discentes e docentes</p><p>que utilizam tecnologias e internet em seu cotidiano, mas que, ainda, não o fazem</p><p>de forma tão interligada, didática e intensa no espaço escolar e nos projetos sociais.</p><p>Os professores das escolas públicas e privadas ainda que tenham algumas</p><p>poucas lousas digitais e plataformas de ensino virtual ao seu acesso, não tiveram</p><p>em suas formações de base (Graduação) preparo para fazer uso destas ferramentas</p><p>para cumprir com seu papel, função e execução didática e pedagógica.</p><p>A escola ainda tem como um de seus símbolos o giz. Então, como substi-</p><p>tuí-lo pela internet? Se, está substituição será provisória ou não, não sabemos</p><p>ainda. Mas, da escola e de todos que a compõe já está sendo cobrado que lance</p><p>mão de novos recursos para que se mantenha ativa, produtiva, atualizada e inova-</p><p>dora na sociedade.</p><p>Sendo assim, realizamos alguns questionamentos: A Pedagogia Social</p><p>pode proporcionar suporte teórico e prático para um novo modelo de escola, de</p><p>educação e do fazer escolar, num futuro pós-epidemia? Se sim, como a realizare-</p><p>mos? Com quais propósitos?</p><p>Sabemos que a Pedagogia Social volta seu olhar para o ser humano global,</p><p>integral, interdependente, marcado pela complexidade e pela busca de múltiplas</p><p>superações, ou seja, uma visão que constata e enfatiza que se um sujeito tem fome,</p><p>ele não terá as mesmas condições para aprender daquele que não tem, pois essa é</p><p>uma necessidade e preocupação vital. Ela defende que há um contexto social, po-</p><p>lítico, econômico, cultural e artístico, em que cada sujeito está inserido, e que, este</p><p>afeta todas as suas relações, seja com o conhecimento construído nas escolas, com</p><p>os professores, com os colegas, com seus sonhos, com seu projeto de vida, sua pro-</p><p>posta societária e sua vivência na própria comunidade.</p><p>A Pedagogia Social nasce de um contexto social de cuidar das populações</p><p>que haviam sofrido com as guerras e com a desestruturação das famílias e da soci-</p><p>edade, bem como para proporcionar a visibilidade as desigualdades, as vulnerabi-</p><p>lidades e as pessoas que sofrem preconceitos e discriminações. Ao estender seu</p><p>olhar para as exclusões, surgiu a necessidade de criar mecanismos que pudessem</p><p>atender as novas demandas e dar voz e vez para os sujeitos que acabaram por ser</p><p>marginalizados e/ou esquecidos pelo poder público em suas iniciativas.</p><p>Com esta visão centralizada no ser humano e todas as suas possibilida-</p><p>des, a Pedagogia Social e a Educação Freireana podem colaborar na construção de</p><p>novos rumos e formas de lidar com as problemáticas existentes. Não se esgotando</p><p>em si mesmas, mas abrindo um novo horizonte, para uma escola que se vê obrigada</p><p>a mudar seu jeito de agir e interagir da noite para o dia.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>112</p><p>Considerações Finais</p><p>Este artigo teve por objetivos refletir sobre a escola entendida como um</p><p>espaço significativo e significante de formação de todo e qualquer indivíduo e uma</p><p>instituição inacabada e também aprendente, articulando suas práticas educativas</p><p>com a Pedagogia Social e a as ideias preconizadas por Freire (2011, 2014).</p><p>A escola é um dos espaços onde o sujeito irá conviver, se relacionar e for-</p><p>mular hipóteses e apreender os conhecimentos construídos pela humanidade, que</p><p>irão se agregar aos saberes e vivências de si mesmo, permeadas pela historização e</p><p>influência social, política, econômica, cultural e social de seus valores interiorizados.</p><p>A Pedagogia Social em sua essência traz a consciência de que é necessário</p><p>haver a solidariedade humana, o compromisso e respeito para com cada criança,</p><p>adolescente, jovem adulto e idoso. Possui por propósito o resgate da cidadania, da</p><p>efetividade dos direitos fundamentais a vida humana e, também, pensa o meio am-</p><p>biente e a relação da humanidade com cada ser vivo, família, bairro, cidade e o Pla-</p><p>neta Terra.</p><p>Olhar as ações realizadas pela escola pública, mesmo em meio à sensação</p><p>de que tudo está caminhando ao contrário, torna-se um grande desafio. Está sen-</p><p>sação gerada quando constatamos a quantidade de crianças que ainda estão fora</p><p>da escola, às famílias que muitas vezes não tem como sobreviver, as duras realida-</p><p>des vividas por crianças desde a mais tenra idade, e tantas outras situações com-</p><p>plexas, produzem um convite a cidadania ativa em produzir formas de superar</p><p>esses contextos de formas de vida.</p><p>Esta percepção necessita transformar-se em impulsos para promover as</p><p>transformações tão necessárias. Mudanças que começam no modo pelo qual afe-</p><p>tamos o outro, como nos fazem sentir presentes. O outro é necessário para si</p><p>mesmo e para a própria pessoa em sua realização enquanto sujeito de direitos e</p><p>deveres, um cidadão planetário, que pensa globalmente e age localmente, colabo-</p><p>rando na construção de uma escola cidadã e uma cidade educadora.</p><p>O diálogo é a ponte de mediação dos conhecimentos e saberes que,</p><p>quando desprovido de preconceitos, estereótipos e marginalizações, possibilita,</p><p>ampliações de consciência e fortalecem as relações entre as pessoas.</p><p>Quando analisamos para a escola pública atual podemos logo pensar que</p><p>ela é excludente, cruel e desigual. Uma organização que é capaz de perpetuar as</p><p>desigualdades, onde o que se busca é minimizar o sujeito para que ele se limite a</p><p>ser mero expectador da realidade a sua volta. Porém, existe outra forma de refletir</p><p>e investigar a escola pública. E, pelo que pudemos perceber em nossa pesquisa, é</p><p>necessário que a prática educativa seja afetuosa, aguce a alfabetização das emo-</p><p>ções, promova a leitura de mundo, problematize a leitura das palavras e favoreça</p><p>o despertar em gostar de aprender, participar, criar, expressar e sonhar com o</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>113</p><p>novos projetos de vida e societários, se dispondo a fazer parte deles de forma indi-</p><p>vidual, grupal e coletiva.</p><p>Freire (2011) defende que para ser educador, é necessário gostar de correr</p><p>riscos, desenvolver a criticidade, gostar dos educandos, estar disponível em se</p><p>reinventar a si, a didáticas das aulas e simultaneamente proporcionar espaços de</p><p>ressignificação de histórias pessoais, da escola, dos projetos sociais, da sociedade</p><p>e do país. Para tal, é necessário participar de forma ativa, estar presente, aberto a</p><p>mudanças, ter esperança!</p><p>Para tanto a escola deve olhar para sua comunidade, seu bairro, na busca</p><p>por encontrar parceiros que através do diálogo e da coletividade, possam contri-</p><p>buir para o desenvolvimento de cada estudante da escola.</p><p>Quando o sujeito é visto como produto e produtor de sua história e da</p><p>história, é que ele assume o papel de transformador de realidades e, com isto, se</p><p>insere e é inserido em um movimento que transforma a si mesmo na medida em</p><p>que vai transformando o outro e o meio em que vive.</p><p>Os objetivos traçados foram alcançados com êxito, para a alegria daque-</p><p>les que pesquisam, pois, o resultado mostrou-se de profunda esperança para que a</p><p>escola possa contribuir ainda mais, aliando seus saberes Freireanos e em conso-</p><p>nância aos da Pedagogia Social, fortalecendo-se como um todo.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>114</p><p>Referências Bibliográficas</p><p>ALVES, R. Educação dos Sentidos e Mais. 7º ed. Campinas-SP: Verus Editora, 2011.</p><p>BRASIL. Lei 9.394, dispõe sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília:</p><p>Presidência da República, 1996.</p><p>________. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Presidência da</p><p>República, 1988.</p><p>FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 56. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.</p><p>________. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa . São Paulo:</p><p>Paz e Terra, 2011.</p><p>GADOTTI, M. (orgs.). Pedagogia: diálogo e conflito / Moacir Gadotti, Paulo Freire e</p><p>Sérgio Guimarães. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2001.</p><p>GIDDENS, A. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.</p><p>GRACIANI, J.S. Interfaces da pedagogia social em programas socioeducacionais. Rev.</p><p>Diálogos. v.18, n.2, p.94-105, 2012. Disponível em: https://portalrevistas.ucb.br/</p><p>index.php/RDL/article/view/3917/2394 Acesso: 03 ago.2020.</p><p>GRACIANI, M.S.S. Pedagogia Social. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014.</p><p>________. Pedagogia social de rua: análise e sistematização de uma experiência vivida. 6.</p><p>ed. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2009.</p><p>GUERRA, A.M. et al. Crianças e adolescentes têm direitos. Conheça o Sistema de</p><p>Garantia dos Direitos e saiba como participar. São Paulo: CEDECA, 2014.</p><p>JARES, X.R. Pedagogia da Convivência. tradução Elisabete de Moraes Santana. São</p><p>Paulo: Palas Athena, 2008.</p><p>LIBÂNEO, J.C. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.</p><p>RIBEIRO, D. Educação Como Prioridade. Darcy Ribeiro; organização Lúcia Velloso</p><p>Maurício. - 1 ed. - São Paulo: Global, 2018.</p><p>SILVA FILHO, R. B. e ARAÚJO, R. M. L. Evasão e Abandono Escolar Na Educação</p><p>Básica No Brasil: fatores, causas e possíveis consequências. Rev. Educação Por Escrito,</p><p>Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 35-48, jan.-jun. 2017.</p><p>SILVA, R. da. et al. Pedagogia Social: contribuições para uma teoria geral da educação</p><p>social. 1.ed. São Paulo: Expressão e Arte Editora, 2011.</p><p>SILVA, R. da.; SOUZA NETO, J.C.; MOURA, R.A. de. Pedagogia Social / Roberto da</p><p>Silva, João Clemente de Souza Neto, Rogério Adolfo de Moura (orgs.). – São Paulo:</p><p>Expressão e Arte Editora, 3º. ed., vol. 1. 2014.</p><p>SÍVERES, Luiz. Encontros e Diálogos: pedagogia da presença, proximidade e partida.</p><p>Brasília: Liber Livro, 2015.</p><p>TRILLA, J. Profissão: educador social. Porto Alegre: Artmed, 2003.</p><p>https://portalrevistas.ucb.br/index.php/RDL/article/view/3917/2394</p><p>https://portalrevistas.ucb.br/index.php/RDL/article/view/3917/2394</p><p>O TRADUTOR E INTÉRPRETE DE LÍNGUA DE SINAIS NA</p><p>SALA DE AULA: DISCURSOS POSTOS E AS</p><p>REPRESENTAÇÕES VELADAS</p><p>Andréa da Silva Rosa</p><p>Introdução</p><p>Falar sobre a sala de aula como lugar de tradução é, no mínimo, provoca-</p><p>tivo. Para mim, em especial, é ainda mais desafiador, por considerar o espaço da</p><p>sala de aula constitutivo do meu fazer profissional. Tenho atuado nesse espaço</p><p>acompanhando tanto crianças da educação infantil como adultos em formação</p><p>profissional no ensino superior.</p><p>Atuo como pedagoga bilíngue com crianças surdas (3 a 5 anos) em pro-</p><p>cesso de aquisição da língua de sinais, com pré-adolescentes surdos no desenvol-</p><p>vimento da leitura e escrita e com alfabetização de adultos surdos (18 a 35 anos)</p><p>que foram excluídos da escola quando crianças. Nesse contexto, sou a professora</p><p>que detém duas línguas e faz uso da língua de sinais para que os alunos surdos</p><p>possam adquirir a língua portuguesa na forma escrita. Tenho total liberdade para</p><p>escolher os textos a serem estudados, os recursos metodológicos e fazer as adap-</p><p>tações que julgar necessárias.</p><p>Como professora de Libras no ensino superior, ocupo, na sala de aula, um</p><p>lugar de formadora de novos pedagogos e futuros professores das diferentes licen-</p><p>ciaturas em que leciono a disciplina Língua Brasileira de Sinais. Na graduação, mi-</p><p>nha contribuição é no sentido de desmistificar a comunidade surda e a língua de</p><p>sinais por meio de ensinamentos da concepção socioantropológica da surdez.</p><p>Como tradutora e intérprete do ensino superior, já atuei em diferentes</p><p>espaços acadêmicos, inclusive na sala de aula do curso de aprimoramento, por um</p><p>período de um ano. E, ao ocupar esse lugar de intérprete, minha função é produzir,</p><p>na língua de chegada – a Libras –, um discurso equivalente ao que foi dito na língua</p><p>de partida, que, nesse caso, é o português.</p><p>Na situação de formação de tradutores e intérpretes de língua de sinais</p><p>(Tils) nos cursos de pós-graduação lato sensu, tenho a responsabilidade de ensinar</p><p>aos novos intérpretes conceitos acadêmicos sobre o fazer tradutório, atividade que</p><p>me instiga a continuar na pesquisa sobre tradução da língua de sinais.</p><p>A sala de aula é um lugar privilegiado em que se processam o ensino e a</p><p>aprendizagem, o confronto de ideias entre professor e aluno e entre alunos e</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>116</p><p>alunos (NOVASKI, 1998). E, no caso da sala de aula dita inclusiva, somam-se as</p><p>relações entre Tils e aluno surdo, aluno surdo e aluno ouvinte, aluno surdo e pro-</p><p>fessor ouvinte que desconhece sua condição linguística e Tils e professor ouvinte</p><p>– que, não raro, se sente desconfortável com a presença do intérprete.</p><p>Dentro da sala de aula, professor, alunos ouvintes, alunos surdos e intér-</p><p>prete vivenciam, em tempo parcial e determinado, a complexa trama da existência</p><p>humana, encaminhados que são por um tipo de fenômeno educativo: o escolar.</p><p>A sala de aula é um espaço privilegiado de trocas e aprendizagem, lugar</p><p>em que se compartilham ideologias, conhecimentos científicos, experiências de</p><p>vida etc.</p><p>Tendo isso em vista, a sala de aula é</p><p>um lugar dinâmico e contraditório de circulação do saber. Dinâmico, porque é</p><p>inerente ao discurso dialético ser assim, e também porque articula o político a</p><p>favor da maioria. E isso implica mudança, implica fazer o processo histórico con-</p><p>temporâneo guinar-se, tendo em vista outras paragens histórico-sociais, por e-</p><p>xemplo, que vislumbrem uma sociedade sem classes. É um lugar contraditório</p><p>porque, na atual conjuntura histórico-social, interessa eleger o que não permite</p><p>ser ela (a sala de aula) um lugar político por excelência, porque é o lugar da di-</p><p>visão social do trabalho. (LIMA JR., 1988, p. 43).</p><p>É um lugar que se abre para uma minoria linguística, mas igualando essa</p><p>língua à língua majoritária. Permite-se a língua de sinais para que os alunos surdos</p><p>compreendam o que é dito na língua portuguesa. Porém, pouca escuta é dada ao</p><p>aluno surdo, ainda que este tenha na sala o intérprete que, nesse caso específico, é</p><p>obrigatoriamente ouvinte, quer dizer, membro da comunidade falante da língua</p><p>majoritária. O que percebemos é que prevalece a escuta do grupo majoritário, que</p><p>parece ser o que tem sempre a ensinar. E o surdo, como grupo minoritário, é aquele</p><p>que só recebe, pois sua própria presença parece concessão desse grupo majoritário.</p><p>Sendo também lugar de realização de projetos humanos, a sala de aula</p><p>deve ser contemplada como</p><p>lugar de muita sutileza para a instauração e construção de uma axiologia educa-</p><p>cional que forje um novo mundo no interior do velho, porque corrompido pelas</p><p>contradições de classe. A sala de aula, como lugar privilegiado da vida pedagó-</p><p>gica, ela mesma deve ser capaz de gerar outra vida, porém, agora, político-peda-</p><p>gógica. (ARAUJO, 1988, p. 47).</p><p>“Dizem que educar, etimologicamente, significa ‘levar de um lugar para</p><p>outro’” (NOVASKI, 1988, p. 11).</p><p>Nessa direção, a sala de aula inclusiva, lugar em que o intérprete de lín-</p><p>gua de sinais está inserido, tem uma particularidade nova e desconhecida, pois se</p><p>o professor como educador é aquele que leva o aluno de um lugar para outro, o</p><p>intérprete é o tradutor que faz passar o conhecimento de uma língua para outra.</p><p>Para Esteves,</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>117</p><p>Parece haver consenso no sentido de que a tradução tem como função primordial</p><p>trazer para determinada língua uma informação que está escrita em outra. Pode-</p><p>mos dizer, portanto, que a difusão de conhecimento depende, em grande medida,</p><p>da tradução. (2014, p. 75).</p><p>O professor que não domina a língua de seu aluno surdo só poderá levá-</p><p>lo a outro lugar mediado pelo intérprete, que construirá sentido na língua de sinais</p><p>do que for dito pelo professor, lembrando que o aluno surdo tem muita dificuldade</p><p>de compreensão da escrita do português. Logo, as duas formas de acesso ao conhe-</p><p>cimento serão mediadas pelo Tils, que, no momento da leitura de textos, realiza a</p><p>tradução da língua portuguesa na forma escrita para a língua de sinais.</p><p>A entrada da língua de sinais na sala de aula retira a ilusão de que ela é</p><p>um lugar homogêneo. Com a presença do Tils, essa ilusão se desfaz; o professor,</p><p>antes detentor de todo o saber e autoridade máxima e, por que não dizer, única na</p><p>sala de aula, agora se depara com uma situação concreta do não saber e, conse-</p><p>quentemente, não ser o único a ter o domínio e atenção de todos os seus alunos.</p><p>Ele, o professor, tem seu não saber denunciado por outro profissional que, até en-</p><p>tão, não pertencia à sala de aula e, não raro, não tem a mesma formação acadêmica</p><p>que ele – o que causa um incômodo maior, pois ele é “desautorizado” por alguém</p><p>sem as mesmas credenciais e isso causa desconforto para ambos.</p><p>Se, por um lado, temos o Tils ansioso para realizar seu trabalho e partici-</p><p>par na educação do aluno surdo, que não é seu e, sim, do professor ouvinte, por</p><p>outro temos o professor ouvinte, que não conhece seu aluno e tem consciência de</p><p>que sua fala não é compreendida por ele.</p><p>Aqui se instala uma relação de poder entre Tils, professor e aluno surdo,</p><p>que, por vezes, é às claras e, em outras situações, velada.</p><p>Nessa direção, a sala de aula constitui uma arena de lutas pelo poder. Não</p><p>raro, o Tils acredita que o ato de educar também faz parte de sua função de tradu-</p><p>tor e que lhe cabe ensinar ao professor como proceder com o aluno surdo. E esse</p><p>comportamento é, de certa forma, autorizado pelo código de ética dos intérpretes</p><p>de língua de sinais, com cujos princípios não comungo:</p><p>Parágrafo único: O intérprete deve esclarecer o público no que diz respeito ao</p><p>surdo sempre que possível, reconhecendo que muitos equívocos (má informa-</p><p>ção) têm surgido devido à falta de conhecimento do público sobre área da surdez</p><p>e a comunicação com o surdo. (QUADROS, 2004, p. 33).</p><p>Não creio ser essa função do intérprete, principalmente em sala de aula,</p><p>pois ele não é o professor que planeja a aula, não está envolvido com a construção do</p><p>projeto pedagógico da escola e, muitas vezes, não possui formação docente para a</p><p>intervenção pedagógica. Cabe ao professor buscar informações sobre seu aluno e sua</p><p>língua, embora isto não signifique que ele deva ter fluência na língua de sinais e mi-</p><p>nistrar aulas em português e em Libras, o que seria humanamente impossível. Am-</p><p>bos necessitam ter clareza de seus lugares na construção do espaço da sala de aula.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>118</p><p>No que tange à sala de aula, podem acontecer trocas e combinações entre</p><p>o professor e o intérprete, porque ambos estão envolvidos na educação do surdo;</p><p>todavia, em momento algum esse aluno deve ser considerado responsabilidade ú-</p><p>nica do Tils.</p><p>A educação dos surdos passa pelas mãos do intérprete, mas não está</p><p>somente em suas mãos.</p><p>Inclusão escolar</p><p>A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação In-</p><p>clusiva (BRASIL, 2008) afirma que a Lei nº 10.436 (BRASIL, 2002) reconhece a</p><p>língua brasileira de sinais como meio legal de comunicação e expressão, determi-</p><p>nando que sejam garantidas formas institucionalizadas de apoiar seu uso e difu-</p><p>são, bem como a inclusão da disciplina de Libras como parte integrante do</p><p>currículo nos cursos de formação de professores e de fonoaudiologia (BRASIL,</p><p>2008, p. 9).</p><p>Esse direito de os surdos comunicarem-se em sua língua natural foi regu-</p><p>lamentado pelo Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005 (BRASIL, 2005),</p><p>concedendo à criança surda o direito de ter uma educação baseada em uma pro-</p><p>posta bilíngue, na qual deve haver a valorização e o reconhecimento da língua que</p><p>o surdo tenha domínio. “A corrente do bilinguismo assume a língua de sinais como</p><p>primeira língua da criança surda, que deve ser aprendida o mais cedo possível;</p><p>como segunda língua está aquela utilizada pelo grupo social majoritário” (GOES,</p><p>2002, p. 43).</p><p>Para que o processo de inclusão do aluno surdo seja consolidado, é pre-</p><p>ciso criar um ambiente linguístico no qual ele possa desenvolver suas potenciali-</p><p>dades. No caso do aluno surdo, a presença do intérprete de língua de sinais é</p><p>imprescindível para mediar a comunicação entre o professor ouvinte e o aluno</p><p>surdo e entre o aluno ouvinte e o aluno surdo.</p><p>O papel da escola inclusiva direciona-se na busca de uma educação que</p><p>traga a todos os seus alunos o acesso ao ensino-aprendizado e a permanência na</p><p>escola, de modo que as necessidades e potencialidades de cada um sejam respeita-</p><p>das. No que diz respeito aos alunos surdos, deve ser levada em consideração sua</p><p>especificidade tanto linguística quanto cultural. É nesse contexto educacional</p><p>complexo que estão inseridos os tradutores e intérpretes de língua de sinais, su-</p><p>jeitos de minha pesquisa.</p><p>Neste trabalho, discuto o que significa ser intérprete de língua de sinais</p><p>na sala de aula no viés dos estudos da tradução. Considerei essencial dar escuta à voz</p><p>dos intérpretes sobre o tema porque tratar do assunto sem ouvi-los é, a meu ver,</p><p>reforçar a condição de invisibilidade do Tils.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>119</p><p>Os dados que compõem esse artigo referem-se às análises de um conjunto</p><p>de três entrevistas de tradutores e intérpretes de língua de sinais que atuam na</p><p>sala de aula junto a alunos surdos.</p><p>Os intérpretes foram entrevistados pela própria pesquisadora, bem como</p><p>a transcrição da entrevista. Minha opção por transcrever as entrevistas foi por</p><p>considerar esse momento uma experiência a mais e por permitir uma pré-análise</p><p>do material. Manzini aponta que,</p><p>Apesar de o objetivo da transcrição ser transpor as informações orais em infor-</p><p>mações escritas, nesse processo, ocorre um segundo momento de escuta, no qual</p><p>podem permear impressão e hipóteses que afloram intuitivamente durante o ato</p><p>de escutar e transcrever. (MANZINI, 2006, p. 364).</p><p>As entrevistas foram realizadas individualmente com cada sujeito, a</p><p>partir de um roteiro de cinco perguntas que possibilitaram desencadear o falar</p><p>livre dos entrevistados. No momento da entrevista, algumas perguntas foram a-</p><p>crescidas em razão das respostas dadas e houve boa interação entre entrevista-</p><p>dos e pesquisadora.</p><p>O Tils Jônatas não reside na mesma cidade da pesquisadora. Por ele resi-</p><p>dir em Araraquara e não ter sido encontrada agenda em comum para que a entre-</p><p>vista fosse realizada pessoalmente, pesquisadora e entrevistado optaram por usar</p><p>o aplicativo WhatsApp Messenger, que é um aplicativo gratuito para troca de</p><p>mensagens, fotos, vídeos e mensagens de voz, disponível para Android e outras</p><p>plataformas. Para fazer uso de tal aplicativo, é necessário estar conectado à inter-</p><p>net. Vale saber que a entrevista foi realizada em tempo real. Ao utilizar o aplica-</p><p>tivo, as mensagens de voz ficaram gravadas no celular e puderam ser recuperadas</p><p>posteriormente e salvas no computador.</p><p>Minha atenção durante as entrevistas presenciais estava voltada para as</p><p>formas pelas quais o intérprete reagia a cada pergunta que lhe era dirigida: foi dada</p><p>importância à expressão corporal tanto no momento de receber a pergunta quanto</p><p>na forma de responder. Considerando que o intérprete de língua de sinais é extre-</p><p>mamente visual e utiliza a expressão corporal como uma das formas de significar</p><p>na língua de sinais, é quase natural, durante as conversas, que ele faça uso de forma</p><p>mais acentuada da expressão corporal. Foi possível relacionar o que estava sendo</p><p>dito com as reações do entrevistado, uma vez que, além das informações orais, tive</p><p>acesso também a informações de natureza observacional (MANZINI, 2006, p. 362).</p><p>Os sujeitos que participaram da pesquisa foram três intérpretes, sendo um</p><p>do sexo feminino e dois do sexo masculino. Todos atuam profissionalmente como</p><p>intérpretes de língua de sinais em instituição de ensino de nível médio e superior.</p><p>Todos os Tils que responderam às entrevistas possuem formação supe-</p><p>rior. Aliás, essa foi uma condição inicial para incluí-los na pesquisa, para não cor-</p><p>rer o risco de obter alguma resposta baseada no não saber. Davi é licenciado em</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>120</p><p>Filosofia e tem pós-graduação em Docência e Tradução e Interpretação da Língua</p><p>de Sinais; Rute é licenciada em Ciências Sociais; e Jônatas é pedagogo, com pós-</p><p>graduação em Docência e Tradução e Interpretação da Língua de Sinais pela</p><p>mesma faculdade de Davi.</p><p>Sala de aula: lugar de multiplicidade de línguas</p><p>São muitas as pesquisas. na área dos Estudos da Tradução e na educação</p><p>de surdos sobre o papel do Tils na sala de aula e não há um consenso sobre o assunto.</p><p>Nem mesmo a nomenclatura da função está definida. Nas escolas estadu-</p><p>ais do estado de São Paulo, os profissionais que exercem a função de tradutor são</p><p>nomeados como professor interlocutor. Este cargo foi criado pela Secretaria de</p><p>Estado da Educação, por meio da Resolução SE nº 38, de 2009 (SÃO PAULO,</p><p>2009), para garantir aos alunos surdos ou com deficiência auditiva, matriculados</p><p>em salas de aula comuns, o acesso às informações e aos conhecimentos curricula-</p><p>res dos ensinos fundamental e médio.</p><p>De acordo com a Resolução SE nº 38, são admitidos para a função de pro-</p><p>fessor interlocutor docentes com qualificação na língua brasileira de sinais que</p><p>têm como atribuição viabilizar a comunicação entre o professor titular e os estu-</p><p>dantes surdos. Sua função é interpretar, por meio da Libras, as atividades didático-</p><p>pedagógicas e culturais desenvolvidas em sala de aula, permitindo o acesos aos</p><p>conteúdos curriculares.</p><p>Na vertente acadêmica, usa-se o termo “intérprete educacional” (IE) para</p><p>designar o profissional que atua na sala de aula. Nas palavras de Lacerda,</p><p>O termo “intérprete educacional” é usado em muitos países (EUA, Canadá, Aus-</p><p>trália, entre outros) para diferenciar o profissional intérprete (em geral) daquele</p><p>que atua na educação, em sala de aula. Em certos países ainda há a preocupação</p><p>em diferenciar, de forma mais saliente, atuação do ILS daquela dos profissionais</p><p>que atuam no espaço educacional (na Itália, por exemplo, o profissional que atua</p><p>no escolar não é chamado de intérprete, mas de assistente de comunicação) prin-</p><p>cipalmente porque trata-se de um profissional que deverá versar conteúdos da</p><p>língua majoritária para a língua de sinais do país e vice-versa, mas que também</p><p>se envolverá de alguma maneira com as práticas educacionais, constituindo as-</p><p>pectos singulares à sua forma de atuação. (LACERDA, 2009, p. 33).</p><p>Fato é que, diferentemente do professor, tanto o professor interlocutor</p><p>como o intérprete educacional possuem formação generalizada – quando têm gra-</p><p>duação –, lembrando que, para atuar como intérprete no ensino fundamental e</p><p>médio, não é exigida formação superior.</p><p>a irrupção da</p><p>verdade. Tal diferença não é referente ao discurso condensado em proposições, acordando com a</p><p>Lógica. A diferença é do próprio sujeito frente ao outro. Como portador do discurso parresiástico, o</p><p>sujeito falante se identifica com sua fala e não pode se desvincular dela.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>15</p><p>Antropologia Filosófica mais como método do que como teoria, uma vez que seria</p><p>mais produtivo para nós hoje, tomarmos o ser humano em sua condição de ser i-</p><p>nacabado ao invés de concebê-lo enquanto alma detentora da verdade. Uma outra</p><p>alternativa ao Existencialismo é justamente a teoria foucaultiana do sujeito e a no-</p><p>ção de parresia.</p><p>Foucault lança luz sobre essa dicotomia natureza humana versus condição</p><p>humana. Ao tomarmos o conceito de “cuidado de si”, amplamente discutido no</p><p>conjunto de aulas proferidas no Collège de France e intituladas A Hermenêutica do</p><p>Sujeito, podemos colher algumas pistas.</p><p>O que é este “si mesmo”? Foucault coloca a questão nos seguintes termos:</p><p>não se trata de entender este “si” como uma natureza humana, as paixões, alma ou</p><p>as capacidades, mas, de saber sobre a relação entre o “si” conhecido que é o mesmo</p><p>“si” que conhece. Sujeito do cuidado e, ao mesmo, objeto do cuidado, o que é este</p><p>elemento idêntico? A Alma. Porém, a noção de alma no Alcibíades – dialogo platô-</p><p>nico amplamente trabalhado no referido curso de Foucault – não coincide com a</p><p>de outros textos platônicos.</p><p>A alma, no Alcibíades, é o sujeito por trás das ações corporais, instrumen-</p><p>tais e da linguagem, pois se serve do corpo, da linguagem e dos instrumentos. O</p><p>servir-se de algo não designa apenas tomar a coisa como instrumento, mas signi-</p><p>fica também uma atitude, um comportamento. A alma que se serve é o “sujeito em</p><p>relação ao que o rodeia, aos objetos de que dispõe” (FOUCAULT, M. A hermenêu-</p><p>tica do sujeito. Curso no Collège de France 1981-1982. São Paulo: Martins Fontes,</p><p>2004, p. 53). Trata-se mais de uma alma sujeito do que de uma alma substância.</p><p>A noção de sujeito como liberdade ganha força frente à noção de alma</p><p>como destino. Importa para nós essa noção de alma, na medida em que sujeitos</p><p>livres, sejam governantes ou governados, docente ou discente, travarão no jogo a-</p><p>gonístico da parresia a luta pela constituição de suas subjetividades e, com isto,</p><p>atendem ao “cuidado de si”.</p><p>Notadamente o “cuidado de si” não se realiza sem o “conhecimento de si”.</p><p>É nesse sentido que a Antropologia Filosófica deverá propor o conhecimento do</p><p>ser humano e realocar os elementos constituintes da alma até que esta reste livre</p><p>e apta ao cuidado de si mesma.</p><p>***</p><p>A Teoria do Conhecimento, por meio da herança grega, faz chegar até nós</p><p>o conceito de verdade como adequação entre o que se diz sobre as coisas e o que</p><p>realmente as coisas são, portanto um conceito de verdade carente de uma Metafí-</p><p>sica e de uma linguagem que abrigue a essência. Confrontemos a tradição grega</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>16</p><p>com o poderoso pensamento de Martin Heidegger4 a fim de mostrar o desloca-</p><p>mento da verdade proposicional para a verdade como desvelamento. Em seguida,</p><p>a parresia, conforme Foucault, será apresentada como verdade positiva em oposi-</p><p>ção à verdade tradicional condicionada ao esquema sujeito-objeto.</p><p>No seu curso Introdução À Filosofia, investigando a verdade a fim de apre-</p><p>ender sua essência, Heidegger recorre à tradição filosófica e empreende um verda-</p><p>deiro inventário do conceito em questão. A recorrência à tradição seria</p><p>desnecessária se o filósofo quisesse, arbitrariamente, expor suas reflexões por as-</p><p>sim dizer atualizadas. Porém, pensamos que se não procede assim é porque exis-</p><p>tem pelo menos duas razões: primeiro porque suas ideias, embora sejam originais,</p><p>têm um quê de ligação com a tradição, assim, a recorrência aos antigos representa</p><p>um ponto de partida, o retorno a um trabalho que Heidegger pretende também ele</p><p>levar a cabo. Em segundo lugar porque faz parte de seu estilo tomar os conceitos</p><p>já cristalizados e já tidos como evidentes para problematizá-los. De que outra ma-</p><p>neira pode um filósofo trabalhar, a não ser, por um lado respeitando a tradição, e</p><p>por outro lutando contra esta mesma? O paradoxo resulta do fato de ser a tradição</p><p>uma referência nem sempre afinada com as novas formas de pensamento. Cabe ao</p><p>filósofo, então, refazer o caminho apontando em que ponto se encontra e em que</p><p>medida está na hora de abrir novas veredas. Esse trato pedagógico, portanto, não</p><p>falta a Heidegger.</p><p>O ponto de partida de Heidegger estabelece que o conceito tradicional de</p><p>verdade não toca a essência da verdade, isto é, não constitui aquilo que ela tem de</p><p>mais originário.</p><p>Recorrendo aos antigos é possível constatar que a verdade reside em li-</p><p>gações de representações. Estas ligações são expressas nos juízos. Destarte, a ver-</p><p>dade sempre foi tomada como verdade da proposição, do enunciado. Aristóteles</p><p>no De interpretationes e De anima, apresenta-nos uma teoria do discurso que corro-</p><p>bora com esta ideia que atravessará os séculos. Segundo ele, todo discurso tem</p><p>significado, porém nem todo discurso é “mostrador”, isto é, nem todo discurso</p><p>pretende mostrar que algo é falso ou verdadeiro. Todavia, é o discurso do tipo mos-</p><p>trador – logos – que é próprio da apresentação da verdade por meio da sínteses</p><p>entre um sujeito e um predicado. A verdade, portanto, é proposicional. Porém, a</p><p>proposição é uma ligação de representações, não de entes/objetos.</p><p>Estabeleceu-se, que a verdade é verdade da proposição. Se a ligação entre</p><p>as representações estão corretas, então o enunciado é verdadeiro. Assim, a verdade</p><p>é a adequação existente entre as representações que estão conectadas a saber, o</p><p>4 Por se tratar de um texto introdutório aos temas propostos, evitaremos utilizar o arcabouço de</p><p>jargões heideggerianos. A aventura de ler Heidegger implica em aprender um novo idioma, e não</p><p>estou falando do alemão!</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>17</p><p>sujeito e o predicado. A verdade está na convergência, correspondência e implica-</p><p>ção do sujeito e predicado.</p><p>Heidegger começa a problematizar esta relação – sujeito-objeto – tida</p><p>como óbvia. Por exemplo, o que decide que uma representação seja ligada a outra</p><p>no interior de uma proposição – este giz é branco – uma vez que o giz do enunci-</p><p>ado é uma representação, diversa do giz sobre o qual enunciamos algo? Nas pala-</p><p>vras de Heidegger:</p><p>A implicação recíproca de S e P só subsiste porque como tal ela é “dependente”,</p><p>como que já está submetida a uma outra e, com efeito, ao giz branco sobre o qual</p><p>enunciamos algo. Assim vem à tona que a proposição “o giz é branco” apresenta</p><p>inicialmente uma relação de S e P. Toda essa relação proposicional, porém, en-</p><p>contra-se ainda em uma relação com o que já se acha diante de nós, a saber, o giz</p><p>branco. (HEIDEGGER, M. Introdução à filosofia. Tradução de Marco Antônio</p><p>Casanova. 2ed. São Paulo: Martins Fontes. 2009. P. 55).</p><p>Ora, admitir que a verdade resida na proposição implica perder de vista</p><p>este aspecto fundamental: as representações estão fundadas nas coisas sobre as</p><p>quais enunciamos algo. Esta coisa sobre a qual enunciamos algo acaba por deter-</p><p>minar todo o enunciado e possibilitá-lo. Somente podemos enunciar algo em vista</p><p>daquilo que se encontra diante de nós. Está claro, pois, que o giz da enunciação é</p><p>diverso do giz que se acha a nossa frente.</p><p>Há, pois, neste caso uma verdade derivada e uma verdade originária. A</p><p>verdade da proposição somente pode ser entendida como verdade se num sentido</p><p>de derivação, uma vez que o enunciado deve a sua condição de possibilidade àquilo</p><p>sobre o que se enuncia algo. Para ilustrar esta questão temos a fórmula escolástica</p><p>da verdade “adaequatio intellectus et rei” como medida que estabelece a verdade a par-</p><p>tir da correspondência entre o sujeito e o predicado – relação predicativa. Por ou-</p><p>tro lado, Heidegger está chamando atenção para outra relação, a que tem</p><p>A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com</p><p>Deficiência, Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (BRASIL, 2015),estabelece, no Ca-</p><p>pítulo IV, inciso XI, que: “I - os tradutores e intérpretes da Libras atuantes na</p><p>educação básica devem, no mínimo, possuir ensino médio completo e certificado</p><p>de proficiência na Libras”.Portanto, há muitos intérpretes atuando na sala de aula</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>121</p><p>apenas com o ensino médio, sem qualquer formação específica. Enquanto o pro-</p><p>fessor dispõe de conhecimentos específicos sobre a disciplina lecionada, o Tils, na</p><p>maioria das vezes, tem contato com o conteúdo somente ao chegar na sala de aula.</p><p>Dificilmente haverá uma única formação adequada para o Tils que atua</p><p>em sala de aula. Pode-se ensinar sobre processos tradutórios, gramática da língua</p><p>de sinais, cultura surda, expressão corpórea, entretanto não há como dominar</p><p>todo o conteúdo aprendido pelo surdo em seu percurso escolar, visto que, princi-</p><p>palmente quando se trata dos ensinos fundamental e médio, não há garantia de</p><p>que o intérprete atuará na mesma escola ou no mesmo nível de ensino. A formação</p><p>é contínua.</p><p>Para a discussão dessa pesquisa, perguntei aos três intérpretes entrevis-</p><p>tados qual era a função do Tils na sala de aula. A seguir, analisarei seus relatos.</p><p>Sobre o Tils em na sala de aula, Davi diz:</p><p>Particularmente, essa é uma profissão [pela qual] me apaixonei logo de vista,</p><p>porque ela tem um fundo de questão social e humanista [com o que] sempre fui</p><p>envolvido […]. Mas a questão da profissionalização do intérprete me chama</p><p>muita atenção, porque a gente não pode parar nisso, embora tenha todo esse</p><p>fundo porque é um serviço de auxílio, de ajuda, mas, ao mesmo tempo, você pre-</p><p>cisa ter esse perfil profissional, precisa saber o limite, saber até onde ir. Para mim,</p><p>o profissional, o intérprete, tem que estar dentro da sala de aula para fazer a co-</p><p>municação, ser a ponte de comunicação entre o surdo e o ambiente linguístico</p><p>dos ouvintes, o português, [deve] auxiliar também na dificuldade do português,</p><p>em alguma dúvida de palavras, prestando todo esse auxílio, claro, dentro do âm-</p><p>bito acadêmico da escola, que foi sempre onde interpretei; estar nesse auxílio na</p><p>aquisição do conhecimento, na transmissão do conhecimento. (DAVI).</p><p>Davi marca sua história com valores da religião; sua opção de vida está</p><p>direcionada à humanidade. Ainda há, para ele, a relação intérprete e auxílio, po-</p><p>dendo ser compreendido tanto como um auxílio no campo da assistência como no</p><p>campo pedagógico: o intérprete como aquele que auxilia o professor titular da sala.</p><p>Nessa direção, diz Lacerda (2009):</p><p>[…] o ILS em sala de aula intermediando as relações entre professor/aluno surdo,</p><p>aluno ouvinte/aluno surdo nos processos de ensino/aprendizagem tem grande</p><p>responsabilidade. Além dos conhecimentos necessários para que sua interpreta-</p><p>ção evite omissões, acréscimos ou distorções de informações de conteúdo da-</p><p>quilo que é dito para a língua de sinais, ele deve estar atento às apreensões feitas</p><p>pelos alunos surdos e aos modos como eles efetivamente participam das aulas.</p><p>Muitas vezes, é a informação do IE sobre as dificuldades dos alunos no processo</p><p>de ensino-aprendizagem que norteia uma ação pedagógica mais adequada dos</p><p>professores. (LACERDA, 2009, p. 34).</p><p>A ausência de clareza sobre o papel do intérprete de língua de sinais na</p><p>sala de aula pode ser consequência da forma como os Tils foram inseridos na edu-</p><p>cação inclusiva. Primeiro, os surdos foram integrados na escola e depois se busca-</p><p>ram os meios para incluí-los.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>122</p><p>No Brasil, pesquisas sobre intérprete de língua de sinais em sala de aula são es-</p><p>cassas, já que essa forma de atuação tem ainda caráter experimental em muitas</p><p>realidades e não é conhecida até agora por vários estados e municípios.</p><p>(LACERDA, 2009, p. 34).</p><p>Os primeiros intérpretes de LIBRAS foram sendo formados em serviço;</p><p>só atualmente é que estamos refletindo sobre sua atuação. Vale lembrar que o</p><p>mesmo ocorreu com os intérpretes de língua orais.</p><p>Contudo, até o século XX, os intérpretes tinham que aprender o seu trabalho</p><p>enquanto trabalhavam – pelo método dos acertos e erros ou, na melhor das hi-</p><p>póteses, por meio de programas especiais oferecidos pelos seus empregadores.</p><p>(DELISLE,WOODSWORTH, 2003).</p><p>O desconhecimento de sua função não é um privilégio somente dos intérpretes,</p><p>mas também dos professores, que, no início da inclusão, delegaram aos intérpre-</p><p>tes a função de educar o aluno surdo sob a alegação de não serem capacitados</p><p>para recebê-lo na sala de aula.</p><p>O modo como os surdos foram incluídos gerou diferentes condições de trabalho</p><p>para o intérprete. Como exemplo, podemos citar o professor/intérprete, função</p><p>que se desenvolveu em algumas regiões do Brasil pela necessidade de intérpretes</p><p>no ensino fundamental; entretanto, como não havia tais profissionais na rede de</p><p>ensino, os professores que tinham domínio da língua de sinais foram convocados</p><p>a exercer tal função, originando o professor/intérprete (LACERDA, 2009). Até</p><p>aquele momento, o profissional só conhecia a atividade de professor e, sem ter o</p><p>mínimo conhecimento sobre a atividade de traduzir, foi inserido na sala de aula</p><p>para traduzir ao aluno surdo as aulas daquele que até recentemente era seu co-</p><p>lega de trabalho.</p><p>Na resposta de Jônatas, ele explica as diferenças existentes na nomenclatura e</p><p>como isso influencia nas práticas e exigências feitas ao intérprete.</p><p>A função do intérprete educacional ou professor interlocutor – são nomes dife-</p><p>rentes – [depende] do lugar em que [se] trabalha [e a pessoa] é cobrad[a] de</p><p>formas diferentes.</p><p>[N]essa proximidade com o aluno, se ele [não estiver] entendendo, ele vai mos-</p><p>trar [isso]. Aí você precisa se fazer entender dando outros exemplos. No caso, eu</p><p>tenho o recurso visual, que é o tablete; eu puxo a imagem sem perder o foco no</p><p>professor na frente da sala de aula. Mas, nessa abertura, é importante não mis-</p><p>turar o profissional com o pessoal; há momentos em que a criança pede um apoio</p><p>e, às vezes, não é o profissional que está atuando como intérprete, e, sim, o pro-</p><p>fessor, organizando o material. [N]essa abertura, ele não é só o profissional que</p><p>está interpretando, mas o profissional que está ajudando a organizar todo aquele</p><p>universo por conta da surdez; [é uma situação em que] todos já fizeram e ele está</p><p>esperando [sua] ajuda. O intérprete educacional vai um pouquinho além da tra-</p><p>dução. Na literatura, eu sempre vejo a Cristina Lacerda acertar o aparelho [Jô-</p><p>natas refere-se ao aparelho auditivo do aluno]; já aconteceu comigo também.</p><p>Outras coisas acontecem dentro da sala de aula que, muitas vezes, a gente acaba</p><p>não abraçando porque não é nossa função, mas acabamos por remetê-la ao pro-</p><p>fessor regente. (JÔNATAS).</p><p>De todos os entrevistados, ele é o único que cita as diferentes nomencla-</p><p>turas, talvez por atuar em diferentes espaços educacionais e não somente nas es-</p><p>colas do estado.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>123</p><p>A história de constituição do Jônatas dá-se nos espaços educacionais,</p><p>principalmente nas escolas estaduais, por isso a familiaridade com os termos. Ao</p><p>dizer que, dependendo da forma como o intérprete é nomeado há expectativas de</p><p>atuação diferente, revela-nos que o contratante faz uma distinção com relação à</p><p>atividade do intérprete, caso seja denominado intérprete educacional ou professor lo-</p><p>cutor; sendo assim, não se pode usar as duas nomenclaturas como sinônimas.</p><p>Na fala do Tils Jônatas, ele deixa claro que há uma identificação com os</p><p>estudos realizados pela pesquisadora Cristina Lacerda no que se refere ao intér-</p><p>prete não se restringir a “somente traduzir”. Para essa autora, assim como para o</p><p>Tils entrevistado, cabe ao intérprete educacional envolver-se no processo de en-</p><p>sino-aprendizagem do aluno surdo.</p><p>Assim o trabalho do IE vai além de fazer escolhas ativas sobre o que deve tradu-</p><p>zir, envolvendo também modos de tornar conteúdos</p><p>acessíveis para o aluno,</p><p>ainda que implique solicitar ao professor que reformule sua aula, pois uma tra-</p><p>dução correta do ponto de vista lingüístico nem sempre é a melhor opção edu-</p><p>cacional para propiciar o conhecimento, principalmente quando os alunos são</p><p>crianças ainda em fase de aquisição da Libras. (LACERDA, 2009, p. 35).</p><p>Nessa mesma direção, temos as diretrizes da Secretaria da Educação do</p><p>Estado de São Paulo quando diz que: “O professor-interlocutor não é um simples</p><p>tradutor, pois ele precisa ter uma metodologia própria para que o aluno possa a-</p><p>prender” (SECRETARIA CAPACITA…, 2011). Ao contrário do que se postula no</p><p>senso comum, a tarefa de traduzir e/ou interpretar não é simples! O ato interpre-</p><p>tativo requerconhecimento das línguas e das culturas envolvidas na tradução. Para</p><p>que a tradução e/ou interpretação seja eficaz, faz-se necessário considerar a esfera</p><p>cultural e social na qual o discurso está sendo anunciado. “Interpretar no es una</p><p>simple transcodificación del mensaje en una nueva lengua; el principal reto de un</p><p>intérprete consiste en transmitir el sentido del mensaje expresado originalmente,</p><p>en la lengua de destino” (PLAZAS, 2000, p. 131).</p><p>Ele ainda cita a aproximação que existe entre aluno surdo e Tils, e essa</p><p>relação não pode ser ignorada na sala de aula, pois, muitas vezes, o aluno surdo só</p><p>tem como interlocutor o intérprete, pois, sendo a maioria dos surdos filhos de pais</p><p>ouvintes, o conhecimento da família sobre a língua de sinais é restrito, quando não</p><p>inexistente. Como aponta-nos Lacerda,</p><p>Tendo em vista que as crianças surdas são, em grande maioria, filhas de pais ou-</p><p>vintes e que os programas de atendimento precoce à criança e à família conti-</p><p>nuam muito insatisfatórios, elas chegam à escola com um desenvolvimento</p><p>incipiente da linguagem e sem domínio de uma língua. É comum que só então</p><p>iniciem a aquisição da língua de sinais naturalmente se as experiências educaci-</p><p>onais permitirem. (LACERDA, 2009, p. 50).</p><p>Nesses casos, não raro a criança surda aprenderá a língua de sinais junto</p><p>ao intérprete na escola inclusiva. Em vista disso, o intérprete terá que primeiro</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>124</p><p>ensinar a língua para a criança e, somente depois, traduzir o conteúdo escolar. Du-</p><p>rante todo esse período em que a criança apropria-se da língua de sinais, o conte-</p><p>údo escolar continua sendo ensinado a todas as crianças ouvintes, pois elas já</p><p>dominam sua língua materna, o português.</p><p>Mesmo estando na escola e com a presença do intérprete, a criança não</p><p>domina sua própria língua, não sendo possível essa situação. A falta da língua o-</p><p>briga o intérprete a ensinar primeiro a Libras ao surdo, e isso pode prejudicar</p><p>muito ao aluno o acompanhamento do que está sendo ensinado pela professora da</p><p>sala – não por culpa do intérprete, mas pela situação em que ele se encontra de</p><p>proximidade maior com o aluno surdo.</p><p>Esse problema não se apresenta no ensino superior; ao contrário, o surdo</p><p>matriculado na graduação ou pós-graduação geralmente tem fluência na língua de</p><p>sinais. Essa diferença de ter contato com surdo fluente em Libras e com crianças</p><p>permite ao intérprete ter clareza de qual é sua função. É o que se pode verificar na</p><p>resposta de Rute.</p><p>Primeiramente, possibilitar o acesso às informações, de forma que o aluno tenha</p><p>a mesma condição de compreender [que] o aluno ouvinte. Basicamente é isso:</p><p>transformar aquele discurso oral em língua de sinais. (RUTE).</p><p>Essa foi a resposta mais sucinta que obtive. Essa entrevistada não discor-</p><p>reu muito sobre sua prática e tratou a função do tradutor sem romances ou senti-</p><p>mentalismos. Não romanceou a função e nem a descreveu com riqueza de detalhes,</p><p>como fizeram os intérpretes anteriores.</p><p>A resposta possibilita-me pensar que a intérprete acredita que a função é</p><p>clara, não se funde com a do professor. Não propõe responsabilidade e/ou envol-</p><p>vimento do Tils com a metodologia do ensino, com material pedagógico; a entre-</p><p>vistada não tem dúvidas sobre a função do tradutor: produzir significado na língua</p><p>de sinais do discurso dito na língua portuguesa.</p><p>Talvez essa clareza seja decorrência de sua entrada na área da surdez pe-</p><p>las mãos de surdos adultos. Quando a porta de entrada é pela comunidade surda,</p><p>com o contato exclusivo com adultos surdos, não há dúvidas de que a maior dife-</p><p>rença entre surdos e ouvintes é linguística. O contato com o surdo adulto não per-</p><p>mite dúvidas sobre sua capacidade de apropriar-se dos mesmos conhecimentos</p><p>dos ouvintes quando a língua de instrução é a Libras.</p><p>É importante notar que essa intérprete não teve contato com a educação</p><p>de crianças surdas. O adulto surdo tem clareza da função do intérprete, tem cons-</p><p>ciência de sua finalidade, ou seja, viabilizar a comunicação entre surdos e ouvintes.</p><p>A comunidade surda está ciente de qual é o papel do intérprete, logo, em sua for-</p><p>mação junto à comunidade, essa questão é posta de maneira muito simples.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>125</p><p>Outro fator importante é que sua atuação como intérprete na educação</p><p>iniciou-se na universidade, com pesquisadores surdos que já dominavam tanto a</p><p>Libras como o português como segunda língua.</p><p>Finalizando sem concluir…</p><p>Acredito que seja necessário estudar a função do intérprete de Libras na</p><p>sala de aula por níveis de ensino, e não de forma generalizada. No caso da criança</p><p>surda, ela não tem clareza do que seja ser um tradutor, mesmo porque, provavel-</p><p>mente, as crianças surdas de pais ouvintes aprenderão a língua de sinais com o</p><p>intérprete em sala de aula. Nesse caso, a confusão de papéis está instalada. Dife-</p><p>rentemente da criança surda filha de pais surdos que, por ter convivência com sur-</p><p>dos e ouvintes e por crescer bilíngue, talvez, consiga diferenciar a função do</p><p>professor e do intérprete desde a mais tenra idade.</p><p>A criança surda e o adulto surdo universitário têm um domínio diferente</p><p>da língua de sinais. No caso do adulto, ele provavelmente já esteja inserido na co-</p><p>munidade surda e tem sua identidade surda estabelecida. O mesmo não ocorre</p><p>com a criança, visto que, na maioria dos casos, só terá contato com a comunidade</p><p>surda na adolescência, quando os pais compreenderem que o filho pertence a uma</p><p>comunidade linguística diferente da sua.</p><p>Ainda que não se possa dizerque o tradutor-intérprete de Libras na sala</p><p>de aula seja um professor, ele certamente participa do processo de ensino-apren-</p><p>dizagem do aluno surdo, incluindo a alfabetização. A criança surda tem o direito</p><p>de ter umintérprete desde a educação infantil e a proposta da educação bilíngue é</p><p>propiciar-lhe o contato, o mais cedo possível, com sua língua natural, mesmo que</p><p>seja por meio desse profissional. Sendo assim, o trabalho do intérprete de Libras</p><p>na educação básica é completamente diferente daquele desenvolvido por um pro-</p><p>fissional que interpreta no ensino superior, exigindo um perfil profissional dife-</p><p>rente. Portanto, devem ser pesquisadosseparadamente, sem perder a percepção de</p><p>que ser tradutor não é o mesmo que ser professor, ainda que este atue na educação</p><p>dos surdos. Traduzir e/ou interpretar envolve habilidades diferentes daquelas e-</p><p>xigidas do professor.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>126</p><p>Referências</p><p>ARAUJO, J. C. S. Sala de aula ou o lugar da veiculação do discurso dos oprimidos. In:</p><p>MORAIS, R. (Org.). Sala de aula: que espaço é esse? Campinas, SP: Papirus, 1988.</p><p>BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais –</p><p>Libras e dá outras providências. Diário Oficial da União, 25 abr. 2002.</p><p>BRASIL. Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de</p><p>abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei no</p><p>10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União, 23 dez. 2005.</p><p>BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.</p><p>Brasília, MEC/Secadi, 2008.</p><p>BRASIL. Lei nº</p><p>13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa</p><p>com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, Diário Oficial da União, 7</p><p>jul. 2015.</p><p>DELISLE, J.; WOODSWORTH, J. Os tradutores na história. São Paulo: Ática, 2003.</p><p>ESTEVES, L. M. R. Atos de tradução: éticas, intervenções, mediações. São Paulo:</p><p>Humanitas/Fapesp, 2014.</p><p>GÓES, M. C. R. Linguagem, surdez e educação. São Paulo: Autores Associados, 1996.</p><p>LACERDA, C. B. F. Intérprete de Libras na educação infantil e no ensino fundamental.</p><p>Porto Alegre: Mediação, 2009.</p><p>LIMA JR., J. Podes crer, é incrível! (… ou, o ensino religioso na sala de aula). In: MORAIS,</p><p>R. (Org.). Sala de aula: que espaço é esse? Campinas, SP: Papirus, 1988.</p><p>MANZINI, E. J. Considerações sobre a entrevista para a pesquisa social em educação</p><p>especial: um estudo sobre análise de dados. In: JESUS, D. M.; BAPTISTA, C. R.; VICTOR,</p><p>S. L. Pesquisa e educação especial: mapeando produções. Vitória: UFES, 2006.</p><p>NOVASKI, A. J. C. Sala de aula: uma aprendizagem do humano. In: MORAIS, R. (Org.).</p><p>Sala de aula: que espaço é esse?Campinas, SP: Papirus, 1988.</p><p>PLAZAS, M. M. R. Servicios de interpretación para personas sordas y sordociegas. El</p><p>bilingüismo de los sordos, Santa Fé de Bogotá, v. 1, n. 14, mar. 2000.</p><p>QUADROS, R. M. O tradutor e intérprete de língua brasileira de sinais e língua</p><p>portuguesa.Brasília: MEC/SEESP, 2004.</p><p>SÃO PAULO (Estado). Resolução SE nº 38, de 19 de junho de 2009. Dispõe sobre a</p><p>admissão de docentes com qualificação na Língua Brasileira de Sinais - Libras, nas escolas</p><p>da rede estadual de ensino. 2009. Edunet. Disponível em:</p><p><http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/38_09.HTM>. Acesso em: 24 mar. 2016.</p><p>SECRETARIA CAPACITA professores-interlocutores de Libras. Secretaria da Educação</p><p>do Estado de São Paulo. 15 mai. 2011. Disponível em:</p><p><http://www.educacao.sp.gov.br/noticias/secretaria-capacita-professores-interlocutores-</p><p>de-libras>. Acesso em: 24 mar. 2016.</p><p>O BANDEIRANTE NOS CURRÍCULOS ESCOLARES: UMA</p><p>CONSTRUÇÃO POLÍTICA E HISTÓRICA</p><p>Andressa da Silva Gonçalves 1</p><p>Nesta oportunidade nos debruçamos sobre um importante elemento do</p><p>saber escolar, os currículos. Nossa tarefa se constitui em analisar a inserção da te-</p><p>mática bandeirante nestas prescrições escolares, para empreender tal estudo re-</p><p>corremos também a pesquisa bibliográfica para verificar os processos históricos</p><p>que foram fundamentais para que o tema das Entradas e Bandeiras ainda perma-</p><p>neça no currículo. O currículo escolar hoje em vigência, pode em muitas ocasiões</p><p>aparentar ser neutro e livre de interferências de interesses específicos, mas, sem-</p><p>pre é necessário colocar em pauta que tais prescrições estatais são resultados de</p><p>demandas e lutas sociais que aconteceram ao longo do tempo e que ainda conti-</p><p>nuam a acontecer. Como salienta Antônio Novoa:</p><p>É necessário reconhecer que o objectivo central da história do currículo não é</p><p>descrever como se estruturava o conhecimento escolar no passado, mas antes</p><p>compreender como é que uma determinada -construção social- foi trazida até ao</p><p>presente influenciando as nossas práticas e concepções do ensino (NOVOA,</p><p>1997, p. 10).</p><p>Assim, nossa análise não pretende determinar a fórmula dos currículos</p><p>no passado e sim como alguns momentos históricos foram importantes para que a</p><p>temática bandeirante ainda permaneça no ensino escolar, já que o currículo não é</p><p>neutro e sim influenciado por um ‘jogo dos objetivos’ de grupos sociais que bus-</p><p>cam que seus interesses sejam preservados e também sustentados pela prática es-</p><p>colar. A manutenção de uma sociedade de exclusão está na base da construção dos</p><p>currículos tradicionais2. Ivor Goodson (1997, p. 78), reflete que apenas podemos</p><p>entender a constituição de um currículo escolar, quando entendemos esse docu-</p><p>mento como uma pequena parte de um quadro social que demorou séculos para</p><p>ser construído:</p><p>Só aí poderemos começar a entender o papel da disciplina escolar no que diz</p><p>respeito a objetivos sociais mais amplos: objectivos esses que muitas vezes se</p><p>relacionam intimamente com os misteriosos «mecanismos de estabilidade e per-</p><p>sistência na sociedade» mencionados anteriormente. A disciplina escolar é,</p><p>1 Graduada em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA), atualmente está concluindo o</p><p>mestrado no programa de pós-graduação em História Social da Amazônia (PPHIST/UFPA). A</p><p>pesquisa em curso se debruça sobre as representações das Entradas e Bandeiras nas narrativas</p><p>didáticas. E-mail: andressa_g.m@hotmail.com.</p><p>2 De acordo com Goodson, o currículo tradicional abrange os conhecimentos que são normalmente</p><p>aceitos, legitimados e reforçados pela comunidade escolar e pela sociedade (GOODSON, 2007).</p><p>mailto:Andressa_g.m@hotmail.com</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>128</p><p>assim, um dos prismas através dos quais poderemos vislumbrar a estrutura do</p><p>ensino estatal. Parece, no entanto, um terreno particularmente valioso para a</p><p>pesquisa, uma vez que a disciplina se situa na intersecção das forças internas e</p><p>externas... (GOODSON, 1997, p. 31-32).</p><p>Como salienta Goodson, o currículo é formado por interesses pertencen-</p><p>tes a grupos e demandas sociais. O ensino, neste caso, se torna instrumento das</p><p>elites para promover a estabilidade de uma ordem social, que se sustenta pela re-</p><p>produção da perspectiva de mundo veiculada pela escola. Tal sistema é tão bem</p><p>construído e enraizado na sociedade que todas as tentativas de mudança apenas</p><p>aranham a superfície desse aparelho, tais mudanças são sufocadas pela ampla es-</p><p>trutura desse modelo de ensino, onde a ‘conservação e estabilidade’ sempre impe-</p><p>ram. Para Goodson, a manutenção desta estrutura acontece, pois, tentativas de</p><p>mudanças não levam em conta a origem e longa construção do currículo, sem tais</p><p>apreciações, uma inflexão que de fato seja eficaz é impossível (GOODSON, 1997).</p><p>Tendo em vista tal apreciação, pretendemos ressaltar momentos em que</p><p>a temática bandeirante foi colocada em relevo nos discursos políticos, fossem eles</p><p>oficiais ou contestadores, nossa intenção é verificar se a temática ainda está pre-</p><p>sente nos currículos atuais e se a tradição formada desde a República ainda se faz</p><p>presente nesses documentos.</p><p>A instrumentalização da figura bandeirante ao longo da história republicana</p><p>A proclamação da República foi fruto de interesses específicos das elites</p><p>regionais. As principais eram provenientes de São Paulo, Minas Gerais e Rio</p><p>Grande do Sul. Como destaca, Murilo de Carvalho (1990, p. 24), um dos interesses</p><p>que se colocava em primeira pauta era o dos cafeicultores paulistas. Estes encon-</p><p>travam dificuldades em prosperar política e economicamente dentro do sistema</p><p>monárquico, logo, a aspiração a uma república federativa em que a autonomia da</p><p>região fosse resguardada se fazia presente, contando com o apoio da elite paulista.</p><p>Tal conjuntura, como afirma Luiza Volpato (1985, p. 19), foi fundamental para que</p><p>o setor cafeicultor paulista subisse ao poder. A autora explica que tal grupo não</p><p>apenas adquiriu protagonismo no novo regime, mas também, procurou justificar</p><p>tal posição e para isso era preciso que “o interesse de alguns se confundisse com</p><p>os interesses de todos”.</p><p>Nessa tarefa, a figura bandeirante foi fundamental, já que incluía heróis</p><p>paulistas no panteão nacional e, como ressalta Carvalho (1990, p. 55), no início do</p><p>sistema republicano se encontrou dificuldades em eleger heróis para o novo re-</p><p>gime. Ao contrário dos que se estabelecem na memória popular por meio das lutas</p><p>sociais, os mitos intencionalmente construídos exigem empenho das elites domi-</p><p>nantes e letradas para o estabelecimento significativo de determinada imagem</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>129</p><p>para a totalidade social. Com o símbolo bandeirante o processo de construção do</p><p>mito não foi diferente, de acordo com Vianna Moog (1985), para valorizar a figura</p><p>sertanista a elite paulista teve que ignorar que a riqueza do</p><p>estado vinha do café e</p><p>da ascendente indústria e atribuí-la as bandeiras:</p><p>Se, para valorizar o símbolo que lhe é caro, fôr preciso atribuir ao bandeirante</p><p>atributos orgânicos, êle o atribuirá; se para magnificá-lo fôr preciso torcer a his-</p><p>tória, êle a torcerá. Embora tomando de empréstimo ao pioneiro, para dar ao</p><p>bandeirante, qualidades, intenções e preocupações que nunca êle teve, ainda é a</p><p>imagem idealizada do bandeirante a que paradoxalmente mais cultua o Estado</p><p>mais pioneiro do Brasil (MOOG, 1985, p. 236).</p><p>Como o autor aponta, há um esforço para que os contornos do persona-</p><p>gem se adequem aos anseios contemporâneos, sejam eles de São Paulo ou do resto</p><p>do país. Destaca-se também que há uma certa perversão da figura bandeirante, já</p><p>que se atribuiu a ele motivações políticas e morais que não faziam parte do seu</p><p>tempo e sim da necessidade de se criar uma imagem que servisse aos propósitos</p><p>do presente. Moog ainda ressalta que o símbolo bandeirante foi tão bem constru-</p><p>ído que outros sujeitos, como o senhor de engenho, não conseguiram se estabele-</p><p>cer no imaginário popular com tal apelo, sendo ainda talvez, segundo o autor, o</p><p>símbolo mais persistente e estimado na memória nacional.</p><p>Podemos então afirmar que o bandeirante fez parte uma tradição inven-</p><p>tada, que segundo Eric Hobsbawm (1990), são:</p><p>um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou aberta-</p><p>mente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar cer-</p><p>tos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica,</p><p>automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que</p><p>possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropri-</p><p>ado (HOBSBAWM, 1997, p. 9).</p><p>Como salienta o autor, a invenção de uma tradição deve além de imbuir</p><p>no coletivo práticas simbólicas por meio da repetição, deve também estabelecer</p><p>relação com o passado. Essas semelhanças são ‘artificiais’, já que são respostas a</p><p>mudanças sociais e políticas, que para serem legitimadas buscam referência no</p><p>passado (HOBSBAWM, 1997). Tal processo aconteceu no estado de São Paulo,</p><p>que, para sustentar o poder adquirido na República pelo grupo oligárquico cafei-</p><p>cultor, precisou voltar ao passado colonial, e transformar a figura bandeirante num</p><p>símbolo paulista. A invenção do bandeirante foi feita pela intelectualidade pau-</p><p>lista, alguns nomes se destacam, como: Ellis Junior, Alcântara Machado, Afonso</p><p>Taunay e Basílio de Magalhães. Estes também integrantes das redes de poder do</p><p>estado, se empenharam no estudo de documentos e genealogias do século XVII</p><p>para comprovar a relação entre bandeirantes e paulistas.</p><p>A necessidade da elaboração de uma identidade regional paulista, como</p><p>aponta Danilo Ferretti (2004, p. 145), vinha da profunda insatisfação do grupo</p><p>paulista com o governo monárquico, daí o forte apelo e adesão ao movimento</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>130</p><p>republicano na região que tinha como principal reivindicação as vantagens econô-</p><p>micas que a província dava à coroa que, por sua vez, pouco investia no polo cafe-</p><p>eiro. Segundo Ferretti (2004, p. 146), foram os produtores do café que deram a</p><p>força necessária à contestação movida por São Paulo contra a monarquia. A opção</p><p>do estado pelo sistema republicano e, principalmente, pelo federalismo, daria a</p><p>liberdade tão desejada pelos altos círculos paulistas e repetidamente negada pela</p><p>nobreza bragantina.</p><p>As aspirações paulistas buscavam, assim como seus supostos antepassa-</p><p>dos, expandir as fronteiras sertão adentro, mas, diferente dos primeiros sertanis-</p><p>tas, a ocupação se daria com a construção de ferrovias que deveriam auxiliar o</p><p>povoamento de regiões ainda não alcançadas pela modernidade. Os planos das al-</p><p>tas esferas paulistas tinham como principal ideologia o americanismo, este baseou</p><p>todas as políticas e reivindicações lançadas pelo estado nos últimos anos da mo-</p><p>narquia e ainda persistiria na República (FERRETTI, 2004, p. 148-149).</p><p>No início da República, como ressalta Carvalho (1990, p. 30-33), a preo-</p><p>cupação geral não era com o bem-estar da população. O que prevalecia eram os</p><p>interesses particulares, especialmente “a mentalidade predatória, o espírito capi-</p><p>talista sem a ética protestante”. Em consonância com tal consideração, Ferretti</p><p>(2004, p. 208) também corrobora o clima de instabilidade que se instalou no país</p><p>depois da proclamação da República. Este continuou mesmo após a constituição</p><p>de 1891. O regime recém fundado apenas encontrou certo equilíbrio com a política</p><p>dos governadores firmada em 1898. Esta sem qualquer respaldo formal, se baseava</p><p>na alternância na presidência entre as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais. Em</p><p>tal conjuntura, a elite cafeeira paulista ganhou destaque na República, decidindo</p><p>os rumos do país.</p><p>A emergência de São Paulo nesse novo contexto também incutiu a neces-</p><p>sidade de legitimar, por meio do campo letrado e cultural, a posição que o Estado</p><p>ocupava. A primeira grande iniciativa foi a criação, em 1894, do Instituto Histórico</p><p>e Geográfico de São Paulo (IHGSP). Tal instituição teve forte incentivo governa-</p><p>mental tanto para sua criação quanto nas primeiras décadas de funcionamento,</p><p>sendo o núcleo de produção da história regional paulista assumiu um papel de re-</p><p>levo na contestação da história nacional carioca. Como aponta Ferretti:</p><p>Neste ponto, o desejo de transformar São Paulo em um pólo de saber não mais</p><p>simplesmente paralelo, mas francamente concorrente com o Rio de Janeiro, con-</p><p>feria originalidade à elite republicana paulista, diferenciando-a das elites mi-</p><p>neira e pernambucana (FERRETTI, 2004, p. 212).</p><p>Com relata o autor, a elite letrada e política paulista ambicionava trans-</p><p>formar o estado em um referencial de saber. O objetivo, como indica Antônio Celso</p><p>Ferreira (2002, p. 109), superava o desejo ter mais peso intelectual que outros es-</p><p>tados, como o Rio de Janeiro, que sediava o Instituto Histórico e Geográfico do</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>131</p><p>Brasil (IHGB). O grupo de intelectuais do estado também aspirava “abalar a his-</p><p>tória da nacionalidade, até então construída pelo IHGB, ambicionando reescrevê-</p><p>la de ponta a ponta” (FERREIRA, 2002, p. 109). Desse modo, as aspirações paulis-</p><p>tas em nada eram modestas, buscavam mais do que um lugar ao sol, queriam o</p><p>protagonismo da cena nacional. Tal anseio se mostrava abertamente no primeiro</p><p>número da revista publicada pelo IHGSP que proclamava que “A história de São</p><p>Paulo é a própria história do Brasil” (IHGSP, 1895).</p><p>É necessário frisar que os esforços paulistas nesse sentido não foram re-</p><p>sumidos à criação do IHGSP. Ainda início da década de 1890, durante o mandato</p><p>do governador paulista Bernardino de Campos, foram implementadas diversas re-</p><p>formas educacionais e culturais; entre estas, houve:</p><p>Uma ampla reforma do ensino primário estadual que levou à abertura de vários</p><p>grupos escolares pelo interior; a criação do Ginásio do Estado; a reformulação da</p><p>Escola Normal, transferida para um imponente edifício na Praça da República; a</p><p>criação do Museu Paulista, instalado em outro palácio, o do Ipiranga e, por fim,</p><p>a inauguração da Escola Politécnica (FERRETTI, 2004, p. 213).</p><p>Como aponta Danilo Ferretti, as primeiras ações republicanas na cidade</p><p>de São Paulo, trouxeram grandes mudanças para o período. É importante ressaltar</p><p>que além do Museu Paulista também houve implementações educacionais, o que</p><p>indica que a esfera estatal acreditava que para a criação e consolidação da memória</p><p>regional, não era necessário apenas atuar no nível erudito e cultural, mas também</p><p>na educação básica. O projeto de protagonismo de São Paulo tinha intima relação</p><p>com a educação primária e secundária, assim como o provimento de professores</p><p>qualificados para o ensino dos futuros cidadãos paulistas.</p><p>Todas as iniciativas paulistas citadas convergiam para um objetivo maior:</p><p>colocar a região paulista como cerne de toda a vida</p><p>nacional. O poder recém ad-</p><p>quirido deveria também ser refletido nos livros de história, para isso o uso da fi-</p><p>gura bandeirante foi central para demonstrar o pioneirismo da capital cafeeira</p><p>para a formação do Brasil. De acordo com Ferretti (2004, p. 216), além do bandei-</p><p>rante outros personagens seriam lembrados; no lugar de Dom Pedro II como o res-</p><p>ponsável pela independência em 1822, o personagem que teria conseguido tal feito</p><p>seria o regente Feijó, no período republicano o destaque seria para Campos Sales</p><p>e Prudentes de Morais.</p><p>Durante as três décadas que se seguiram, a produção intelectual e cultu-</p><p>ral foi vertiginosa. Para os fins pensados aqui, precisaremos avançar para 1932, ano</p><p>que acontece a revolução constitucionalista, e com esta também a ressignificação</p><p>de São Paulo e da memória bandeirante.</p><p>Luis Fernando Cerri (1996, p. 64) aponta que a produção do discurso o-</p><p>ficial é diretamente ligada a máquina institucional no poder, já a história tradici-</p><p>onal é proveniente da produção das elites intelectuais, também provenientes das</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>132</p><p>elites sociais e econômicas. Nas duas décadas que antecederam a revolução cons-</p><p>titucionalista o discurso estatal é “praticamente idêntico a história tradicional”,</p><p>ou seja, os interesses estatais se baseavam e eram legitimados pelos estudos da</p><p>classe letrada, esta também ocupante de cargos públicos. O que acontecia em ou-</p><p>tros estados, também acontecia em São Paulo, já que a oligarquia paulista tinha:</p><p>seus intelectuais, eram intelectuais orgânicos, que tinham por função primordial</p><p>a justificação de um sistema autoritário pelas suas aparências liberais, além cri-</p><p>arem subsídios teóricos para a subordinação do país ao interesse agrário-expor-</p><p>tador da cafeicultura (CERRI, 1996, p. 25).</p><p>Como o autor ressalta, os estudos históricos tinham uma função política:</p><p>justificar e reafirmar a posição de poder ocupada pela elite cafeeira. O ano de 1932,</p><p>segundo o autor, é quando essa produção teórica e cultural vai atingir o ápice, é</p><p>também no mesmo período que a aristocracia paulista vai se deparar com a pri-</p><p>meira crise no seu projeto ideológico republicano.</p><p>Com a Revolução de 1930, São Paulo perderá o poder que possuía desde</p><p>o início da República. Até aquele ano, quem ocupava a presidência do país era</p><p>Washington Luís que, além do lugar político e social de destaque, também foi um</p><p>importante historiador paulista. Com a tomada de poder por Getúlio Vargas, o</p><p>pacto político dos governadores tem fim e as oligarquias paulista e mineira per-</p><p>dem a centralidade no cenário brasileiro (FERREIRA; PINTO, 2006, p. 19). O go-</p><p>verno provisório instalado negou a nomeação de um interventor paulista para o</p><p>Estado de São Paulo, ao invés disso fora investido no cargo um militar pernambu-</p><p>cano, João Alberto, o que desagradou até mesmo os aliados paulistas do novo pre-</p><p>sidente (CAPELATO, 1981).</p><p>A imposição de um forasteiro para a direção do estado foi o estopim da</p><p>Revolução Constitucionalista, que, segundo Maria Helena Capelato (1981, p. 26-</p><p>31) reuniu diversos seguimentos da sociedade: burguesia, conservadores, estudan-</p><p>tes e até estrangeiros, aqueles não se engajaram na luta eram “considerados inimi-</p><p>gos de São Paulo”. Os detalhes do movimento que tinha como principal pauta o</p><p>restabelecimento da constituição não é o que nos interessa no momento, mas, sim,</p><p>como os discursos oficiais, um vindo do governo provisório e outro do estado de</p><p>São Paulo, usam a memória bandeirante na defesa dos seus interesses.</p><p>Os paulistas usam a memória construída nas décadas anteriores para dar</p><p>força ao movimento, inclusive associando os conceitos de civilização e constitui-</p><p>ção, propagandeando que a civilidade somente retornaria com a reconstituciona-</p><p>lização do país, tal tarefa seria responsabilidade do “povo bandeirante”, assim</p><p>como os seus antepassados fizeram séculos antes. Do outro lado do conflito, Ge-</p><p>túlio Vargas também usava a memória construída pelos paulistas, este pedia que</p><p>o povo paulista desse fim ao movimento e enfrentassem os líderes dos levantes,</p><p>estes os verdadeiros culpados pela situação, somente assim se evitaria que as</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>133</p><p>atuais gerações de bandeirantes fossem aleijadas. Assim, a retórica de Vargas ape-</p><p>lava para o peso da memória bandeirante que a cidade e seus habitantes tinham,</p><p>para argumentar a favor do fim do conflito (CERRI, 1996, p. 74-78).</p><p>É oportuno observar que a tradição bandeirante foi tão bem construída e</p><p>difundida nas décadas anteriores que não é apenas usada pelos paulistas, mas tam-</p><p>bém pelo governo central para fomentar seus discursos. Mesmo que os dois lados</p><p>do conflito utilizem tal memória com objetivos diferentes, os dois a reconhecem,</p><p>legitimam e aderem-na como subsídio retórico. Estes discursos também serão</p><p>transferidos à esfera escolar, como argumenta Fernando Cerri:</p><p>Sobre a questão da transmissão da ideologia no ambiente da escola e no ensino</p><p>de história, podemos afirmar que aquela é mediada antes de mais nada pela pro-</p><p>dução historiográfica dos intelectuais orgânicos ou tradicionais, e também pela</p><p>leitura que o próprio Estado regional desempenha sobre os temas caros à paulis-</p><p>tanidade (CERRI, 1996, p. 81).</p><p>Como o autor discorre, a escola não independe de outros campos, ao con-</p><p>trário, há uma íntima relação entre o campo educacional e os discursos e interesses</p><p>de diversos grupos sociais. Tal ligação poderá ser vista “nas festas cívicas, nos ma-</p><p>teriais didáticos utilizados em história e em diversas outras disciplinas” (CERRI,</p><p>1996, p. 81). Fernando Cerri (1996, p. 88), ao analisar materiais didáticos utilizados</p><p>nas escolas paulistas constata que o bandeirantismo e a revolução constituciona-</p><p>lista de 1932 são os dois assuntos ligados à paulistanidade que mais aparecem nos</p><p>manuais didáticos. O autor explica que depois do movimento de 1932, a oligarquia</p><p>paulista teve que se esforçar para cravar na história sua versão do evento e seus</p><p>ideais. Como as Entradas e Bandeiras eram um tema que não levantava tanta con-</p><p>troversa no período, este foi inserido com mais facilidade nas narrativas historio-</p><p>gráficas e escolares.</p><p>Depois da revolução constitucionalista, o governo de Vargas ainda sofreu</p><p>forte abalo com o movimento armado liderado por Luís Carlos Prestes em 1935. A</p><p>partir do incidente, o executivo procurou se fortalecer, culminando no Estado</p><p>Novo em 1937(AMORIM; BILHÃO, 2010). Como afirma Tiago Losso (2008, p. 96),</p><p>houve também, nesse contexto uma produção intelectual que visava contemplar</p><p>as mudanças políticas do período. Com a aprovação e incentivo do Departamento</p><p>de Imprensa e Propaganda (DIP), representado por Lourival Fontes, eruditos</p><p>como Cassiano Ricardo, Menotti del Picha e Cândido Motta Filho, se fizeram pre-</p><p>sentes para a construção de uma memória que pudesse ser apropriada ideologica-</p><p>mente pelo projeto de poder vigente. A maior parte da produção desses</p><p>intelectuais girava em torno da publicidade positiva do projeto de expansão para</p><p>o oeste promovido pelo Estado Novo (CARVALHO, 2018, p. 6).</p><p>George Coelho (2015) afirma que esse grupo intelectual tão atuante no</p><p>Estado Novo apenas amadureceu teses tecidas desde 1930 dentro do Movimento</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>134</p><p>Bandeira, agrupamento formado depois da derrota paulista na revolução de 30. Este</p><p>tinha como base a memória bandeirante. Os heróis paulistas do passado eram con-</p><p>vidados a defender a nação das “ideologias forasteiras” (COELHO, 2014, p. 7). Se-</p><p>gundo Coelho, a derrota em 1930 e 1932 não significou o fim dos ideários paulistas,</p><p>já que estes tiveram efetiva participação na construção da constituição de 1934.</p><p>Aconteceu entre o início da década e o Estado Novo uma ressignificação que:</p><p>...diz respeito ao “espírito bandeirante” que inicialmente se referia apenas a São</p><p>Paulo, passando para um projeto que poderia ser seguido pelo todo da nação,</p><p>tendo o Estado Novo como o responsável</p><p>pela retomada do “rastro dos bandei-</p><p>rantes”; por fim, a afirmação de que as bases históricas do Estado Novo, remon-</p><p>tam as Bandeiras históricas do século XVI e ao vigor econômico da produção</p><p>cafeeira (COELHO, 2014, p. 10).</p><p>Como o autor expõe, a memória bandeirante, longe de ser refutada pelo</p><p>novo regime, foi utilizada em favor deste. Para isso, contou com a ação de intelec-</p><p>tuais que já vinham elaborando narrativas que exaltavam a paulistanidade e o ban-</p><p>deirantismo. Tais eruditos apenas se adaptaram à lógica de poder vigente. Foi o</p><p>caso de Cassiano Ricardo, um dos intelectuais de destaque no Estado Novo, sua</p><p>obra Marcha para o oeste é vista como legitimadora intelectual da conquista de regi-</p><p>ões que iam do Centro Oeste até a Amazônia. O livro associa as primeiras bandei-</p><p>ras ao projeto civilizador de Vargas (CARVALHO, 2018).</p><p>Em contrapartida, Coelho (2014, p. 1-15) afirma que tal interpretação é</p><p>fruto de uma interpretação superficial do período, que desconsidera toda a produ-</p><p>ção anterior de Cassiano. Longe do autor deliberadamente contribuir ideologica-</p><p>mente para o regime estadonovista, sua obra foi apropriada pelo regime para</p><p>fundamentar a lógica vigente. Ainda segundo Coelho (2014, p. 4), as ideias esbo-</p><p>çadas por Ricardo, muito mais do que apoiarem a expansão para o oeste, faziam</p><p>parte de uma construção intelectual que vinha desde dos anos 30, projeto esse que</p><p>visava a proteção da independência paulista no contexto centralizador varguista.</p><p>Sendo a intenção ou não de Cassiano Ricardo, é incontestável que sua produção</p><p>ofereceu elementos para afirmação e legitimação do regime de Vargas. Isto posto,</p><p>precisamos destacar que o governo de Vargas, não apelou apenas à censura para</p><p>se manter no poder, este procurou também ter uma base teórica que o ligava aos</p><p>primeiros desbravadores e ao protagonismo destes.</p><p>Outro momento em que a imagem bandeirante foi excessivamente utili-</p><p>zada pelo estado foi durante a construção de Brasília. O atual Distrito Federal foi</p><p>fruto de diversas idealizações que vinham desde do século XVII, com a Inconfi-</p><p>dência Mineira e a Revolução Pernambucana. Um pouco antes da independência</p><p>em 1822, José Bonifácio também já refletia sobre a construção de uma cidade que</p><p>ficasse no coração do Brasil. O historiador Adolfo de Varnhagen também apontou</p><p>a necessidade da interiorização do poder, que asseguraria “segurança, fatores</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>135</p><p>geradores de riqueza, de unidade nacional, integração e civilização” (ALMINO,</p><p>2007, p. 300-301).</p><p>Assim sendo, Brasília não teve como único idealizador Juscelino Kubits-</p><p>check, antes foi resultado de infindáveis divagações de diversos sujeitos históricos.</p><p>Entretanto, o presidente da República entre 1956 e 1961 foi responsável por tirar</p><p>tal projeto do plano das ideias. Mais do que isso, também deu ao plano viabilidade</p><p>pública através da instrumentalização do discurso histórico e extensa propa-</p><p>ganda. A autora Viviane Ceballos (2005, p. 13) afirma que a tentativa de legitima-</p><p>ção da construção de Brasília começou antes mesmo do início do projeto. Da</p><p>mesma maneira, Luísa Videsott ressalta que houve uma intensa campanha publi-</p><p>citária em torno da cidade que se tornaria a capital do país:</p><p>De forma geral, o objetivo das narrativas da mídia foi atrair em direção à fron-</p><p>teira: tanto como exploração de novos horizontes geográficos, quanto como de-</p><p>safio dos limites criativos, quanto como lugar das inúmeras possibilidades de</p><p>trabalho e de uma vida melhor (VIDESOTT, 2009, p. 18).</p><p>Como a autora disserta, diversos recursos imagéticos e retóricos foram</p><p>utilizados não apenas para justificar a construção de uma nova capital, mas, prin-</p><p>cipalmente, para transformar essa ideação em uma aspiração nacional. Antes</p><p>mesmo de sua eleição, constata Georgete Rodrigues (1990, p. 1), Kubitscheck já</p><p>apresentava a intenção de realizar a ocupação do Oeste. Para o então candidato, a</p><p>crise brasileira estava na ocupação parcial do território, este ainda era em sua</p><p>maior parte inexplorado:</p><p>Somos realmente um País a conquistar ainda. Basta olhar do alto de um avião,</p><p>como o fiz tantas e tantas vezes (...) O Brasil ainda está por fazer e que possuímos</p><p>apenas uma pequena fatia deste imenso império que recebemos de nossos fun-</p><p>dadores maiores. Quero ser presidente da República para iniciar a marcha para</p><p>o Centro do Brasil, para ir ao encontro de nosso País... (KUBITSCHECK apud</p><p>RODRIGUES, 1990, p. 1).</p><p>Percebamos na retórica do futuro presidente que a solução para o pro-</p><p>blema brasileiro estava na falta de exploração e ocupação da totalidade do territó-</p><p>rio, este também cita os fundadores maiores, rol em que os bandeirantes fazem</p><p>parte, segundo referências futuras do próprio Juscelino. Em síntese, o carro chefe</p><p>do candidato era o desbravamento do Oeste, tarefa que ele daria curso nos anos</p><p>seguintes. Rodrigues (1990, p. 4) também aponta a intima relação entre a marcha</p><p>para o oeste empreendida por Vargas e a construção de Brasília. Para a autora há</p><p>uma retomada dos objetivos delineados por Vargas na década de 1930, além da</p><p>retórica de Kubitscheck se aproximar sobremaneira da de Vargas. Os dois discur-</p><p>sos, abordam exaustivamente, pontos, como: o “isolamento da região; a continui-</p><p>dade histórica entre a Marcha para Oeste e a epopeia dos Bandeirantes; a</p><p>necessidade de intervenção planejada do Estado na região Centro-Oeste e o reco-</p><p>nhecimento dos dois Brasis” (RODRIGUES, 1990, p. 2).</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>136</p><p>É interessante notar que tanto Getúlio Vargas quanto Juscelino Kubits-</p><p>check usam como argumento para a expansão do Oeste a mitologia bandeirante. Em</p><p>seus estudos sobre a comunicação visual voltada a construção de Brasília, Videsott</p><p>encontrou diversas propagandas que relacionavam a construção de Brasília e a saga</p><p>sertanista. Estes artigos buscavam despertar “sentimentos patrióticos” no seu pú-</p><p>blico. A autora ainda afirma que a mitologia bandeirante teve funções diferentes em</p><p>períodos distintos, na década de 1930 possuía a função de reafirmar a importância</p><p>de São Paulo frente ao resto do Brasil, na década de 1950 esta função muda:</p><p>...durante a construção da capital, o mito serviu, em nossa opinião, para a defini-</p><p>ção de outros lugares políticos: sustentou os poderes econômicos (a figura do</p><p>bandeirante já caracterizava os comerciais das revistas populares), amenizou as</p><p>reivindicações dos construtores da capital e até colaborou para a sobrevivência</p><p>política do próprio Juscelino Kubitscheck: nos comerciais e nas propagandas</p><p>presidenciais... (VIDESOTT, 2009, p. 49).</p><p>Como a autora constata, a mitologia bandeirante é utilizada para diver-</p><p>sos fins no governo de Juscelino, não apenas para legitimar a edificação de Brasília,</p><p>mas também como arcabouço para a imagem do então presidente. Nas propagan-</p><p>das, era comum associar a imagem do político com a do bandeirante, este, inclu-</p><p>sive, emprestava suas vestimentas tradicionais ao presidente desbravador.</p><p>Segundo Rodrigues (1990, p. 27), o uso da imagem bandeirante tinha como obje-</p><p>tivo transformar a construção de Brasília em uma conquista que seria fruto do es-</p><p>pírito bandeirante, além disso, o uso de tais heróis também serviu para associar o</p><p>presidente a tais figuras e o tornar também um mito. Não por acaso a cidade de</p><p>Brasília traz diversos símbolos voltados à memória de Juscelino Kubitscheck. As-</p><p>sim, podemos perceber que a década de 1950 foi um período em que a memória</p><p>bandeirante foi novamente instrumentalizada, voltada para representar o ideal de</p><p>desbravamento e progresso que o governo buscava transmitir para a população.</p><p>Em relação ao uso da imagem bandeirante pelo estado para objetivos es-</p><p>pecíficos, destacamos também a ditadura militar que também teve a memória ser-</p><p>tanista em seu aparato ideológico. Anna Maria Rahme afirma que “o mito</p><p>Bandeirante reaparece no fim dos anos 1960 e é trazido numa reatualização ingló-</p><p>ria, destinada a centralizar as investigações</p><p>e o desmantelamento das organiza-</p><p>ções de esquerda foi criada a Operação Bandeirante (Oban), em julho de 1968”</p><p>(RAHME, 2018, p. 103). A operação bandeirante teve como sede a cidade de São</p><p>Paulo, assim como também foi apoiada financeiramente por empresários do es-</p><p>tado. Tal fato nos diz não apenas que o nome do mito paulista foi emprestado a</p><p>uma operação de caráter duramente repressivo, mas que, também, a elite do estado</p><p>participava e se beneficiava com o regime militar.</p><p>Rahme afirma que, durante a ditadura, São Paulo teve papel ativo e não</p><p>titubeou em liderar a ação repressiva que seria o “braço da tortura na ditadura”. A</p><p>operação bandeirante criada em São Paulo, serviria como modelo para que ações</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>137</p><p>semelhantes fossem instauradas no resto do país3. A autora constata que a ação da</p><p>elite regional paulista na época deixou de se relacionar com a representação lite-</p><p>rária, historiográfica e simbólica do bandeirante como tinha acontecido nas déca-</p><p>das anteriores. Na ditadura militar a cidade paulista associou a mitologia</p><p>bandeirante com a ação repressiva característica do período:</p><p>A ação da polícia política, abalizada pelo poder nacional, estadual e municipal,</p><p>e financiada pelo empresariado brasileiro e internacional, pode ser comparada</p><p>ao movimento das bandeiras, seja porque formada por algozes, seja pelo poder</p><p>de espraiar-se Brasil afora. Antes, os indesejados foram as populações indígenas,</p><p>na ditadura, foram os subversivos, e sempre, será todo aquele que se opuser à</p><p>escravização proposta (RAHME, 2018, p. 104).</p><p>É interessante notar aqui que a autora relaciona a Operação Bandeirante</p><p>(oban) e o bandeirantismo não apenas pela violência que os dois movimentos a-</p><p>presentaram, mas, também pela característica de se espalhar pelo território brasi-</p><p>leiro a partir de São Paulo. Outro aspecto em que o regime militar se associou à</p><p>saga bandeirante foi na “ideologia desenvolvimentista” adotada pelo governo</p><p>(SOUZA, 2007). Uma das regiões mais afetadas por esse ímpeto desenvolvimen-</p><p>tista foi a Amazônia. Durante todo o governo militar, se pensou em ações que pu-</p><p>dessem ocupar e desenvolver o espaço amazônico (BOMFIM, 2010, p. 13-33). Na</p><p>cruzada para integração dessa parte do país ao todo nacional, a ideologia bandei-</p><p>rante se fez presente.</p><p>Em sua tese, Amazônia: pensamento e presença militar, Adriana Marques</p><p>(2007) aponta como o mito bandeirante fez parte da mentalidade militar no ‘des-</p><p>bravamento’ da Amazônia. Embora o seu recorte temporal se concentre no período</p><p>posterior à ditadura militar, a autora faz algumas considerações interessantes so-</p><p>bre as associações entre a figura militar e a bandeirante. Marques (2007, p. 109)</p><p>destaca que “os militares brasileiros consideram-se os sucessores dos colonizado-</p><p>res portugueses”, vários meios são utilizados pelo grupo para se aproximar dos</p><p>antigos desbravadores, como nas canções militares em que são recorrentes as re-</p><p>ferências ao legado bandeirante, outro aspecto na cultura militar que remete aos</p><p>sertanistas é uma parte da vestimenta chamada de ‘chapéu bandeirante’ que lem-</p><p>bra os chapéus usados pelos primeiros paulistas. Como se pode perceber, a sim-</p><p>bologia militar está impregnada de referências à memória bandeirante, associação</p><p>ligada ao desbravamento e ocupação da Amazônia.</p><p>Nossa intenção até o momento foi discorrer sobre os principais momen-</p><p>tos desde a República em que a memória bandeirante foi extensivamente evocada,</p><p>foram destacados, a Proclamação da República em que a elite regional paulista</p><p>resgatou os laços com os antepassados bandeirantes para reivindicar a direção do</p><p>3 Nasce a oban, braço da tortura em SP. Memorial da democracia. Disponível em:</p><p>http://memorialdademocracia.com.br/card/nasce-a-oban-braco-da-tortura-em-sp. Acesso em: 24 de</p><p>jul. de 2019.</p><p>http://memorialdademocracia.com.br/card/nasce-a-oban-braco-da-tortura-em-sp</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>138</p><p>país, a Revolução Constitucionalista, em que a memória bandeirante foi mobili-</p><p>zada tanto pelo estado de São Paulo, quanto pelo regime varguista. Delineamos o</p><p>uso da memória bandeirante na Era Vargas, período em que houve uma intensa</p><p>produção intelectual voltada para associar o movimento bandeirante a marcha</p><p>para o oeste promovida pelo governo. Esboçamos em seguida, o uso da retórica</p><p>sertanista na construção de Brasília, neste momento o impulso desbravador ban-</p><p>deirante foi associado a expansão para oeste, simbolizada pela fundação de Brasí-</p><p>lia. Por último, analisamos a ditadura militar, que evocou a mitologia bandeirante</p><p>tanto no impulso desenvolvimentista voltado para a Amazônia, como na adesão</p><p>de elementos simbólicos bandeirantes na cultura militar. Nestes processos histó-</p><p>ricos, a memória bandeirante se fez presente para legitimar ideais e principal-</p><p>mente emprestar a essas intenções valores associados aos sertanistas paulistas,</p><p>entre estes se destaca a vocação desbravadora e civilizadora. Agora será interes-</p><p>sante discutir se a temática continua presente nos currículos escolares estaduais.</p><p>Os currículos escolares brasileiros e a memória bandeirante</p><p>Na primeira parte deste trabalho, destacamos momentos históricos em</p><p>que a mitologia bandeirante esteve presente de maneira substancial nos discursos</p><p>e representações de movimentos políticos e sociais. Nossa tarefa agora é identifi-</p><p>car a relevância da temática sertanista no presente, mais especificamente nos cur-</p><p>rículos escolares estaduais. O objetivo é perceber se a memória bandeirante tão</p><p>presente no decorrer do século XX em momentos históricos específicos se faz pre-</p><p>sente nos currículos atuais. Antes de mais nada, algumas considerações são im-</p><p>portantes. Os documentos curriculares que serão esboçados foram coletados4 em</p><p>plataformas online, logo os currículos de alguns estados não estavam disponíveis</p><p>para consulta e por isso não serão apresentados. Ao todo, trabalharemos com vinte</p><p>documentos, o que nos dará uma boa percepção quanto a presença ou não da te-</p><p>mática bandeirista nos currículos, e de outros aspectos que nos pareceu interes-</p><p>sante trazer para a discussão:</p><p>4 Acervo do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais</p><p>(GERA-UFPA)</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>139</p><p>Tabela - A presença da temática bandeirante nos currículos estaduais</p><p>Estado</p><p>Funcionalidade</p><p>da história</p><p>A educação étnico-ra-</p><p>cial é destacada? /</p><p>Qual a função desta?</p><p>Livro didático</p><p>no currículo</p><p>Colonização</p><p>brasileira/ Ser-</p><p>tanismo</p><p>A temática</p><p>bandeirante é</p><p>inserida? Qual</p><p>a função dela?</p><p>AMAPÁ</p><p>“Despertar no e-</p><p>ducando a capaci-</p><p>dade de buscar</p><p>informações atra-</p><p>vés da pesquisa”</p><p>(p. 11) / constru-</p><p>ção da cidadania</p><p>“Divulgação e produ-</p><p>ção de conhecimentos,</p><p>bem como atitudes,</p><p>posturas e valores que</p><p>eduquem cidadãos</p><p>quanto a pluralidade</p><p>étnica.” (p. 7)</p><p>Instrumento de</p><p>auxílio no en-</p><p>sino-aprendi-</p><p>zagem.</p><p>“Choque de</p><p>culturas/ For-</p><p>mação territo-</p><p>rial e</p><p>identidade bra-</p><p>sileira”</p><p>Sim. /</p><p>Não há referên-</p><p>cia a função da</p><p>temática.</p><p>BAHIA</p><p>“Busca de um co-</p><p>nhecimento plu-</p><p>ral, intercultural e</p><p>multi rreferencia-</p><p>lizado” (p. 147)</p><p>“Ampliar o leque de re-</p><p>ferências culturais [...]</p><p>e contribuir para a mu-</p><p>dança das suas concep-</p><p>ções de mundo” (p. 22)</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>“Diversidade e</p><p>contribuições</p><p>dos povos indí-</p><p>genas / Identi-</p><p>dade nacional”</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>DISTRITO</p><p>FEDERAL</p><p>“[...] ampliar a</p><p>compreensão de</p><p>sujeito histórico e</p><p>crítico” (p. 112)</p><p>“Resgatar a memória</p><p>histórica da contribui-</p><p>ção econômica, social,</p><p>política e cultural de</p><p>povos indígenas e afri-</p><p>canos para a formação</p><p>do Brasil.” (p. 112)</p><p>Os materiais di-</p><p>dáticos como ú-</p><p>nicos</p><p>reguladores do</p><p>ensino é visto</p><p>como algo a ser</p><p>superado.</p><p>“Degradação</p><p>ambiental na e-</p><p>conomia colo-</p><p>nial do Brasil /</p><p>Mineração e i-</p><p>dentidade naci-</p><p>onal”</p><p>Sim. /</p><p>Definir o papel</p><p>das entradas e</p><p>bandeiras para</p><p>o alargamento</p><p>de fronteiras.</p><p>(p. 16)</p><p>ESPÍRITO</p><p>SANTO</p><p>“Construção de</p><p>uma consciência</p><p>histórica e das</p><p>possibilidades de</p><p>pensar historica-</p><p>mente</p><p>sobre a realidade</p><p>em que vivemos”</p><p>(p.121)</p><p>“Responder às</p><p>demandas advindas</p><p>das especialidades, das</p><p>pluralidades e da iden-</p><p>tidade brasileira” (p.</p><p>42)</p><p>“Deve ser utili-</p><p>zado de forma</p><p>problematiza-</p><p>dora”. (p. 121)</p><p>“A natureza</p><p>para europeus e</p><p>indígenas/ Eco-</p><p>nomia aurífera</p><p>e Guerra dos</p><p>emboabas.”</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>GOIÁS</p><p>Espera-se que os</p><p>alunos “desenvol-</p><p>vam uma reflexão</p><p>crítica sobre a so-</p><p>ciedade onde es-</p><p>tão inseridos”. (p.</p><p>225)</p><p>A temática étnica-ra-</p><p>cial é citada e inserida</p><p>na diretriz programá-</p><p>tica, mas não é discu-</p><p>tida.</p><p>“Tende a pro-</p><p>mover a univer-</p><p>salização e a</p><p>perpetuação de</p><p>um saber [...]</p><p>portador de um</p><p>discurso sus-</p><p>tentado por</p><p>uma “autori-</p><p>dade” que se</p><p>impõe ao a-</p><p>luno.” (p. 267)</p><p>“Administração</p><p>e política colo-</p><p>nial / Ocupação</p><p>territorial e e-</p><p>conomia aurí-</p><p>fera.”</p><p>Sim. /</p><p>Não há referên-</p><p>cia a função da</p><p>temática.</p><p>MARANHÃO</p><p>“Estimular nos</p><p>estudantes a per-</p><p>cepção de que são</p><p>sujeitos históri-</p><p>cos, cientes de</p><p>que suas atitudes</p><p>interferem na</p><p>“Valorizar a figura de</p><p>negros e negras, índios</p><p>e índias como sujeitos,</p><p>que não só compõem a</p><p>vida social, mas tam-</p><p>bém contribuem para a</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>“A colonização</p><p>da América</p><p>com a percep-</p><p>ção das caracte-</p><p>rísticas de cada</p><p>região. / Ocupa-</p><p>ção territorial.”</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>140</p><p>realidade e [...]</p><p>(res) significar a</p><p>sociedade.” (p.</p><p>67)</p><p>dinamização da cul-</p><p>tura. “(p. 89-90)</p><p>MATO</p><p>GROSSO</p><p>“A construção de</p><p>uma postura di-</p><p>ante do conheci-</p><p>mento, que</p><p>possibilite, ao es-</p><p>tudante, reconhe-</p><p>cer-se como um</p><p>ser social, político</p><p>e cultural através</p><p>de sua participa-</p><p>ção na ação cole-</p><p>tiva de ensino e</p><p>aprendizagem.”</p><p>(p. 38)</p><p>“Reconhecer e respei-</p><p>tar os grupos sociais do</p><p>Brasil como pluriétni-</p><p>cos e multiculturais,</p><p>bem como compreen-</p><p>der as contribuições</p><p>das diferentes culturas</p><p>e etnias para a forma-</p><p>ção do povo brasileiro.”</p><p>(p. 25)</p><p>O livro é visto</p><p>como um empe-</p><p>cilho para uma</p><p>escola de quali-</p><p>dade (“ser livre</p><p>das grades cur-</p><p>riculares enges-</p><p>sadas, livre da</p><p>ditadura do li-</p><p>vro didático” p.</p><p>56)</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>* O currículo</p><p>do ensino fun-</p><p>damental é es-</p><p>truturado por</p><p>três ciclos e dis-</p><p>cutidos de</p><p>forma interdis-</p><p>ciplinar e por</p><p>eixos.</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>MATO</p><p>GROSSO DO</p><p>SUL</p><p>“[... ] colaborar no</p><p>processo de rein-</p><p>terpretação do</p><p>passado...” (p.</p><p>305)</p><p>“...garantir a reflexão de</p><p>atitudes, valores e pos-</p><p>turas que se traduzam</p><p>em respeito às diferen-</p><p>ças e às singularidades</p><p>de cada um...” (p.34)</p><p>O livro didático</p><p>é visto como</p><p>instituidor de</p><p>um padrão ex-</p><p>cludente (p. 38)</p><p>“Administração</p><p>colonial / Ocu-</p><p>pação territo-</p><p>rial e</p><p>mineração”</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>MINAS</p><p>GERAIS</p><p>“Formar o cida-</p><p>dão que [...] seja</p><p>capaz de compre-</p><p>ender a história</p><p>do País e do</p><p>mundo como um</p><p>conjunto de múl-</p><p>tiplas memórias e</p><p>de experiências</p><p>humanas” (p. 9)</p><p>“...propõe rupturas</p><p>com uma [...] história</p><p>centrada na cultura</p><p>branca europeia.” (p.9)</p><p>O livro é visto</p><p>como mais um</p><p>instrumento</p><p>entre muitos a</p><p>ser utilizado</p><p>pelo professor. /</p><p>Há também a</p><p>percepção que a</p><p>temática ét-</p><p>nica-racial não</p><p>é muito con-</p><p>templada nes-</p><p>sas obras.</p><p>“A colonização</p><p>é abordada a</p><p>partir do en-</p><p>contro de mun-</p><p>dos/ Mineração</p><p>e guerra dos</p><p>emboabas”</p><p>Sim. “Ressaltar</p><p>a importância</p><p>dos vaqueiros,</p><p>boiadeiros, je-</p><p>suítas e bandei-</p><p>rantes que</p><p>contribuíram</p><p>de forma defini-</p><p>tiva para a ex-</p><p>pansão</p><p>territorial do</p><p>Brasil [...].” (p.</p><p>29-30)</p><p>PARÁ</p><p>“Possibilitar</p><p>meios para que o</p><p>passado possa ser</p><p>compreendido e</p><p>relacionado ao</p><p>tempo presente</p><p>por múltiplos ca-</p><p>minhos.” (p. 396)</p><p>“A formação de atitu-</p><p>des, posturas e valores</p><p>que eduquem cidadãos</p><p>orgulhosos de seu per-</p><p>tencimento</p><p>étnico-racial” (p. 561)</p><p>Materiais que</p><p>precisam se a-</p><p>dequar a de-</p><p>mandas de uma</p><p>educação ét-</p><p>nica-racial.</p><p>“A colonização</p><p>e a resistência</p><p>indígena/ For-</p><p>mação territo-</p><p>rial”</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>PARANÁ</p><p>“A finalidade do</p><p>ensino de Histó-</p><p>ria é a formação</p><p>de um pensa-</p><p>mento histórico a</p><p>partir da produ-</p><p>ção do conheci-</p><p>mento.” (p. 47)</p><p>Há referência a temá-</p><p>tica e a obrigatoriedade</p><p>desta, mas não há uma</p><p>discussão sobre o tema.</p><p>O livro traz</p><p>para a escola as</p><p>normas dos do-</p><p>cumentos le-</p><p>gais / Apresenta</p><p>limitações, logo</p><p>o professor</p><p>deve contornar</p><p>estas dificulda-</p><p>des.</p><p>*O currículo</p><p>trabalha com</p><p>eixos temáticos</p><p>e não especifica</p><p>os assuntos.</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>141</p><p>PERNAM-</p><p>BUCO</p><p>“Contribuir para</p><p>a formação da</p><p>consciência his-</p><p>tórica dos ho-</p><p>mens; possibilita</p><p>a construção de i-</p><p>dentidades; a elu-</p><p>cidação do vivido,</p><p>a análise e crítica</p><p>da realidade. (p.</p><p>24)”</p><p>“...propicia o respeito, a</p><p>valorização das dife-</p><p>rentes culturas, sem</p><p>distinguir, hierarqui-</p><p>zar ou discriminar u-</p><p>mas como melhores do</p><p>que outras.” (p. 32)</p><p>O livro didático</p><p>com o advento</p><p>do PNLD e sua</p><p>distribuição na</p><p>educação é</p><p>visto como um</p><p>avanço para o</p><p>ensino de histó-</p><p>ria.</p><p>*Não há assun-</p><p>tos específicos,</p><p>e sim núcleos</p><p>temáticos.</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>PIAUÍ</p><p>“Reconhecer os</p><p>fundamentos da</p><p>cidadania e da de-</p><p>mocracia, favore-</p><p>cendo uma</p><p>atuação consci-</p><p>ente do indivíduo</p><p>na sociedade...”</p><p>(p.3)</p><p>“Promoção do respeito</p><p>à diferença e a demo-</p><p>cratização do ambiente</p><p>escolar.” (p. 57)</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>(*São dados a-</p><p>penas seis tópi-</p><p>cos de</p><p>conteúdos bási-</p><p>cos)</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>RIO DE</p><p>JANEIRO</p><p>“O saber histórico</p><p>permite ao aluno</p><p>ter uma posição</p><p>crítica frente ao</p><p>mundo...” (p. 30)</p><p>*Se menciona a lei 10.</p><p>639 e a importância de</p><p>incluir a ‘diversidade</p><p>étnica e cultural’ no</p><p>currículo, mas não se</p><p>menciona os efeitos</p><p>dessa educação.</p><p>Sugere-se que o</p><p>professor não</p><p>se restrinja ao</p><p>livro didático e</p><p>o utilize com</p><p>certos cuida-</p><p>dos...</p><p>“Conquista da</p><p>América/ Povo-</p><p>amento e colo-</p><p>nização”</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>RIO GRANDE</p><p>DO SUL</p><p>“[...] os educan-</p><p>dos se instrumen-</p><p>talizam para agir</p><p>no mundo de</p><p>forma consciente</p><p>e reflexiva, parti-</p><p>cipando de sua e-</p><p>laboração e</p><p>transformação.”</p><p>(p. 39-40)</p><p>“Contribuem para a</p><p>consciência de si e do</p><p>outro, estabelecendo as</p><p>relações sociais em di-</p><p>ferentes tempos e espa-</p><p>ços.” (p. 41)</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>*dispõe-se</p><p>competências e</p><p>habilidades,</p><p>mas não exis-</p><p>tem conteúdos</p><p>específicos.</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>RONDÔNIA</p><p>Entre os diversos</p><p>objetivos aponta-</p><p>dos, se sobressai a</p><p>formação de valo-</p><p>res, como: a cida-</p><p>dania e tolerância.</p><p>(p. 254-255)</p><p>“...contribuir para a</p><p>construção da cidada-</p><p>nia na sociedade pluri-</p><p>étnica e pluricultural.”</p><p>(p. 26)</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>“Natureza e dos</p><p>povos do Brasil</p><p>/ Mineração, o-</p><p>cupação terri-</p><p>torial.”</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>SANTA</p><p>CATARINA</p><p>“Busca-se, assim,</p><p>desenvolver a</p><p>conscientização</p><p>histórica, [...] que</p><p>torna possível aos</p><p>sujeitos o pensar</p><p>historicamente.”</p><p>(p. 145)</p><p>Compreender como as</p><p>identidades e as dife-</p><p>renças [...] determi-</p><p>nando a valorização de</p><p>uns e o desprestígio de</p><p>outros. (p.55)</p><p>Se discorre so-</p><p>bre a visão eu-</p><p>rocêntrica de</p><p>muitos LD de</p><p>história, a esco-</p><p>lha dessas o-</p><p>bras deve ser</p><p>cuidadosa para</p><p>se adequar a e-</p><p>ducação étnica-</p><p>racial.</p><p>Não há defini-</p><p>ção de conteú-</p><p>dos,</p><p>competências</p><p>ou habilidades.</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>142</p><p>SÃO PAULO</p><p>Segundo os PCN,</p><p>à História com-</p><p>pete “favorecer a</p><p>formação do estu-</p><p>dante como cida-</p><p>dão. (* O</p><p>currículo adota os</p><p>referenciais dos</p><p>PCN) (p. 26)</p><p>“Enfatizar a importân-</p><p>cia da defesa</p><p>e do res-</p><p>peito aos direitos</p><p>humanos e à diversi-</p><p>dade étnica e cultural</p><p>que fundamentam a</p><p>vida social.” (p.81)</p><p>Ressalta-se a</p><p>importância de</p><p>o professor não</p><p>abandonar o Li-</p><p>vro didático,</p><p>mesmo com os</p><p>cadernos elabo-</p><p>rados pelo Es-</p><p>tado [...] (p.32-</p><p>36)</p><p>“Sociedades in-</p><p>dígenas e o con-</p><p>tato entre estes</p><p>e os portugue-</p><p>ses/Ocupação</p><p>territorial e mi-</p><p>neração”</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>SERGIPE</p><p>“Compreensão</p><p>das diversas iden-</p><p>tidades consti-</p><p>tuintes e</p><p>formadoras da I-</p><p>dentidade nacio-</p><p>nal. “(p.229)</p><p>“A democracia que</p><p>tanto almejamos passa</p><p>pelo reconhecimento</p><p>da alteridade, consubs-</p><p>tanciada no universo</p><p>das diferenças.” (p.</p><p>229- 230)</p><p>* Se menciona a</p><p>imposição do</p><p>‘currículo tradi-</p><p>cional’ através</p><p>dos LD no en-</p><p>sino da mate-</p><p>mática. (p.175)</p><p>“Economia açu-</p><p>careira/ Ocupa-</p><p>ção da América</p><p>e revoltas nati-</p><p>vistas”</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>TOCANTINS</p><p>“Oportunidade de</p><p>ampliar seu co-</p><p>nhecimento de</p><p>caráter científico</p><p>e reflexivo no pro-</p><p>cesso de constru-</p><p>ção da sua</p><p>identidade so-</p><p>cial.” (p. 182)</p><p>Oferecer “condições</p><p>para que o educando</p><p>compreenda sua reali-</p><p>dade e desenvolva no-</p><p>ções de identidade,</p><p>alteridade, ruptura e</p><p>continuidade...” (p.</p><p>182)</p><p>O livro didático</p><p>deve ser visto</p><p>como mais uma</p><p>ferramenta dis-</p><p>ponível ao pro-</p><p>fessor, não a</p><p>única. (p. 93)</p><p>“América antes</p><p>da chegada do</p><p>europeu. / Ocu-</p><p>pação territo-</p><p>rial e ciclos</p><p>econômicos”</p><p>-Não há refe-</p><p>rência-</p><p>Optamos por organizar as informações selecionadas em tabela para melhor</p><p>visualização e praticidade. Como se pode ver fizemos alguns questionamentos para</p><p>os currículos analisados, não apenas sobre a temática bandeirante, mas também so-</p><p>bre a concepção de história adotada, sobre a educação étnico-racial e também sobre</p><p>a percepção desses documentos sobre os livros didáticos. Acreditamos que tais per-</p><p>guntas nos darão uma visão abrangente sobre os currículos estaduais.</p><p>O primeiro ponto a ser discutido é o entendimento esboçado sobre a dis-</p><p>ciplina de história nesses documentos. Se percebe que poucos estados tem como</p><p>objetivo o simples entendimento do conhecimento histórico. Apenas Minas Gerais,</p><p>Paraná e Santa Catarina tem como principal objetivo a formação do raciocínio his-</p><p>tórico, todos os outros estados analisados tem como objetivo do ensino de história</p><p>a formação do cidadão ou a formação de valores que poderão ser aplicados à reali-</p><p>dade vivida. É interessante perceber que a história, para a maioria dos currículos, é</p><p>uma ferramenta cuja função é despertar através do passado ensinamentos para o</p><p>presente, estes são referentes a formação da cidadania, criticidade, tolerância etc.</p><p>Outro aspecto a ser considerado diz respeito à incorporação ou não da</p><p>educação étnico-racial nos currículos. Em todos os documentos analisados se ci-</p><p>tou a temática, embora em alguns poucos, como Goiás, Paraná e Rio de Janeiro</p><p>não haja uma discussão aprofundada quanto ao tema e seus objetivos para o en-</p><p>sino. O restante dos estados coloca como objetivo do tema, o estudo e reflexão</p><p>sobre assuntos que digam respeito aos povos indígenas e africanos e/ou a formação</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>143</p><p>de valores para o respeito e valorização das minorias étnicas. Acreditamos ser sig-</p><p>nificativo que a maioria dos currículos realizem a reflexão sobre as demandas de</p><p>uma educação voltada para a diversidade, mesmo se tratando de documentos cujas</p><p>as prescrições podem ou não ser adotadas pelas escolas, é de suma importância</p><p>que tais documentos se adequem e incorporem a legislação vigente.</p><p>Outro aspecto relevante diz respeito à visão que esses currículos têm do</p><p>livro didático. A maioria desses documentos expressam uma visão negativa do li-</p><p>vro didático, visto como portador de um discurso a ser superado. O currículo re-</p><p>ferente ao Mato Grosso do Sul, por exemplo, explana que a literatura didática é</p><p>portadora de um padrão “masculino, branco e heterossexual e todas as pessoas</p><p>que não se encaixam nele são o Outro” (Currículo do Mato Grosso do Sul, 2012, p.</p><p>38). Outros currículos também expressam a consideração de que o livro didático</p><p>não contempla a temática étnica-racial. Há também aqueles que expressam a ideia</p><p>de que o material didático é apenas mais uma das ferramentas disponíveis aos pro-</p><p>fessores, incentivando o docente a utilizar diversos instrumentos para as aulas.</p><p>O objetivo aqui não é analisar de forma pormenorizada as propostas cur-</p><p>riculares, mas pelo estudo feito, apesar da visão negativa da literatura didática,</p><p>não se indica de forma sistemática alternativas ao livro didático, o que há são men-</p><p>ções a ‘outros recursos didáticos’ e aos materiais produzidos em alguns estados.</p><p>Poucos currículos expressam uma visão positiva dessas obras, as exceções são os</p><p>documentos produzidos por Pernambuco e São Paulo. O primeiro expõe que o</p><p>PNLD e a distribuição de livros para a educação básica foram um avanço para a</p><p>história ensinada, já o currículo de São Paulo incentiva que os professores não a-</p><p>bandonem o livro didático, mesmo com os cadernos disponibilizados pelo Estado,</p><p>pois mesmo essas produções são baseadas nos livros didáticos. Se a perspectiva</p><p>negativa esboçada pela maioria dos currículos está certa, aqui isso não nos inte-</p><p>ressa, o importante é notar como um estigma negativo desses materiais está pre-</p><p>sente na concepção de um grande número de estados.</p><p>Analisamos também nos currículos a abordagem realizada sobre a colo-</p><p>nização brasileira, já que é neste tópico que normalmente se insere a temática ban-</p><p>deirante. É importante destacar que em seis desses documentos não estavam</p><p>dispostos os conteúdos específicos a serem trabalhados em sala de aula, nesses</p><p>casos o que está disposto são as competências, habilidades, expectativas de apren-</p><p>dizagem etc. No restante, a maioria destaca ao tratar da colonização os povos in-</p><p>dígenas, em currículos como do Amapá e Espírito Santo se recomenda um paralelo</p><p>entre aspectos da cultura europeia e a indígena, em outros documentos como da</p><p>Bahia, Pará, Rondônia, São Paulo e Tocantins se fala especificamente sobre as so-</p><p>ciedades indígenas. Em poucos programas se dispõe tópicos mais genéricos, como</p><p>Goiás e Mato Grosso do Sul, que falam sobre a administração colonial. É interes-</p><p>sante ressaltar que três dos currículos, Espírito Santo, Distrito Federal e</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>144</p><p>Rondônia, introduzem o tema abordando a questão ambiental, tema explorado na</p><p>maioria dos currículos analisados.</p><p>O último ponto a ser discutido aqui, é a inserção da temática bandeirante</p><p>nesses currículos. Como pode ser observado na tabela disposta anteriormente, a-</p><p>penas quatro estados apresentam nominalmente em seus programas a temática</p><p>bandeirante e somente dois explicam a função do assunto no aprendizado histó-</p><p>rico. Nesse sentido, há uma observação importante a ser feita, apesar de apenas</p><p>alguns estados citarem diretamente a temática bandeirante, isso não quer dizer</p><p>que o restante não indique indiretamente o assunto, já que outros tópicos podem</p><p>também incluir o elemento sertanista, como é o caso da expansão territorial colo-</p><p>nial e a guerra dos emboabas. Assim, embora a maioria dos estados não citem pro-</p><p>priamente as Entradas e Bandeiras, ao longo da trama colonial o assunto</p><p>provavelmente será elencado.</p><p>Os currículos que citam diretamente a temática são quatro: Amapá, Dis-</p><p>trito Federal, Goiás e Minas Gerais. O estado do Amapá em seu programa apre-</p><p>senta vários tópicos sobre o tema bandeirista, embora não explane sobre o objetivo</p><p>da temática. O distrito Federal também enumera a matéria em seus conteúdos,</p><p>colocando como objetivo do tema o entendimento da expansão do território bra-</p><p>sileiro. O programa de Goiás também acrescenta o sertanismo nos tópicos de con-</p><p>teúdos básicos, mas não explica o objetivo deste. O último estado a elencar o tema</p><p>é Minas Gerais e coloca como função da temática das Entradas e Bandeiras ressal-</p><p>tar a importância dos bandeirantes para a expansão do território. Percebemos en-</p><p>tão que dentre os vinte currículos, quatro trabalham diretamente com a temática.</p><p>Como dito anteriormente há currículos que trabalham de forma indireta</p><p>com a questão bandeirante, enumerando assuntos que se relacionam com esta te-</p><p>mática. Entre os vinte currículos analisados, dez citam assuntos em que os ban-</p><p>deirantes certamente serão citados, estes estados são: Bahia, Espírito Santo,</p><p>Maranhão, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio de Janeiro, Rondônia, São Paulo, Sergipe</p><p>e Tocantins. Entre os assuntos que provavelmente farão referência o bandeirante</p><p>e foram sugeridos nos currículos; temos: Formação e expansão territorial, identi-</p><p>dade nacional, mineração, missões jesuíticas, construção de heróis brasileiros e</p><p>guerra dos emboabas. É importante destacar que mesmo que tais documentos não</p><p>abordem diretamente a temática das Entradas e Bandeiras, se elencam conteúdos</p><p>que se relacionam diretamente com o tema e ao serem trabalhados o bandeirante</p><p>também será um elemento importante para a discussão. Portanto, consideramos</p><p>que tais currículos também disseminam a memória bandeirante.</p><p>Alguns currículos analisados não elencaram os conteúdos a serem traba-</p><p>lhados em sala de aula, dispuseram apenas eixos, habilidades e competências. Os</p><p>estados que escolheram tal formato, foram seis: Mato Grosso, Paraná, Pernam-</p><p>buco, Piauí, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Já que os conteúdos não foram</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>145</p><p>detalhados nesses programas, não temos como analisar se a temática bandeirante</p><p>vai ou não ser ministrada nas escolas. Podemos afirmar, que dos vinte currículos</p><p>analisados, 14 direta ou indiretamente se remetem ao tema das Entradas e Bandei-</p><p>ras. Portanto há uma considerável inserção deste conteúdo nas escolas, fazendo</p><p>eco a enorme adesão da temática na literatura didática. Tal temática, como se pode</p><p>perceber, pode ser encontrada em pontos chaves do período colonial, sendo um</p><p>tópico que muito dificilmente não será trabalhado em algum momento da vida es-</p><p>colar dos estudantes, constatamos então a persistência de uma memória que as-</p><p>cende ainda no século XIX.</p><p>Considerações finais</p><p>Neste trabalho, nos propomos a refletir sobre os currículos escolares e a</p><p>permanência da memória bandeirante nesses documentos. Para isso, revisitamos</p><p>processos históricos em que a memória bandeirante foi amplamente evocada em</p><p>discursos políticos. Destacamos alguns acontecimentos históricos que se destaca-</p><p>ram na utilização maciça do subsídio retórico bandeirante, esses foram a Procla-</p><p>mação da República, a Revolução Constitucionalista, o Governo Vargas, a</p><p>Construção de Brasília e a Ditadura Militar. Todos estes eventos têm em comum</p><p>a efetiva instrumentalização discursiva do movimento bandeirante para justificar</p><p>interesses e demandas específicas.</p><p>Além disso, analisamos se a mitologia tão utilizada para legitimar proje-</p><p>tos de poder permanece nos currículos escolares, para tanto, analisamos os currí-</p><p>culos de vinte estados. Percebemos que a temática sertanista se faz presente direta</p><p>ou indiretamente nestas prescrições escolares, nestes documentos mesmo que não</p><p>haja a referência explícita as Entradas e Bandeiras, se enumera conteúdos intima-</p><p>mente relacionados a temática bandeirante, como a expansão territorial e a guerra</p><p>dos emboabas. Logo, a presença desse tema é evidente nas formulações curricula-</p><p>res e revela a permanência de uma memória que veio sendo excessivamente ope-</p><p>racionada durante os séculos XIX e XX.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>146</p><p>Referências</p><p>FONTES PRIMÁRIAS</p><p>Currículo em Movimento da Educação Básica: Ensino Fundamental Anos Finais.</p><p>2013. (Distrito Federal)</p><p>Currículo Básico Escola Estadual. 2009. (Espírito Santo)</p><p>Currículo Referência da Rede Estadual de Educação de Goiás. 2012. (Goiás)</p><p>Currículo Básico Comum do Ensino Fundamental: História. 2014. (Minas Gerais)</p><p>Currículo do Estado de São Paulo: Ciências Humanas e suas tecnologias. 2012. (São</p><p>Paulo)</p><p>Diretrizes Curriculares/Secretaria de Estado da Educação do Maranhão. 2014.</p><p>(Maranhão)</p><p>Diretrizes Curriculares da Educação Básica: História. 2008. (Paraná)</p><p>Documento curricular do Estado do Pará. Educação infantil e ensino fundamental.</p><p>2018. (Pará)</p><p>Nasce a oban, braço da tortura em SP. Memorial da democracia. Disponível em:</p><p>http://memorialdademocracia.com.br/card/nasce-a-oban-braco-da-tortura-em-sp.</p><p>Acesso em: 24 de jul. de 2019.</p><p>Orientações curriculares e subsídios didáticos para a organização do trabalho</p><p>pedagógico no ensino fundamental de nove anos. 2013. (Bahia)</p><p>Parâmetros para a Educação Básica do Estado de Pernambuco: Parâmetros</p><p>Curriculares de História – Ensino Fundamental e Médio. 2013. (Pernambuco)</p><p>Plano curricular da educação básica do Estado do Amapá. 2009. (Amapá)</p><p>Proposta curricular de Santa Catarina: Estudos Temáticos. 2005. (Santa Catarina)</p><p>Proposta curricular de Santa Catarina: formação integral na educação básica.</p><p>2014. (Santa Catarina)</p><p>Orientações Curriculares: Área de Ciências Humanas: Educação Básica. 2012. (Mato</p><p>Grosso)</p><p>Orientações Curriculares: Diversidades Educacionais. 2012. (Mato Grosso)</p><p>Referencial Curricular da Rede Estadual de Ensino de Mato Grosso do Sul: Ensino</p><p>fundamental. 2012. (Mato Grosso do Sul)</p><p>Referencial Diretrizes Curriculares da Rede Pública Estadual de Ensino do Piauí,</p><p>Ensino Fundamental e Ensino Médio. 2013. (Piauí)</p><p>Reorientação curricular – Livro III – Ciências Humanas. 2005. (Rio de Janeiro)</p><p>Referencial Curricular – Lições do Rio Grande – Ciências Humanas e suas</p><p>Tecnologias. 2009. (Rio Grande do Sul)</p><p>http://memorialdademocracia.com.br/card/nasce-a-oban-braco-da-tortura-em-sp</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>147</p><p>Reestruturação curricular Ensino Fundamental e Médio: Documento Orientador.</p><p>2016.</p><p>Referencial curricular de Rondônia – Ensino Fundamental. 2013. (Rondônia)</p><p>Referencial curricular: Rede Estadual de Ensino de Sergipe. 2011. (Sergipe)</p><p>Referencial Curricular do Ensino Fundamental das escolas públicas do Estado do</p><p>Tocantins: Ensino Fundamental do 1º ao 9º ano. 2009. (Tocantins)</p><p>Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Volume I, 1895.</p><p>FONTES SECUNDÁRIAS</p><p>ALMINO, João. O mito de Brasília e a literatura. Estudos Avançados, v. 21, n. 59, p. 299-</p><p>308, 2007.</p><p>AMORIM, JEOVANE; BILHÃO, Isabel. O governo Vargas, uma breve</p><p>contextualização bibliográfica (1930-1945). In: VIII SEPECH - SEMINÁRIO DE</p><p>PESQUISA EM CIENCIAS HUMANAS, 2010, Londrina. Anais do VIII Seminário de</p><p>Pesquisa em Ciências Humanas. Londrina: Eduel, 2010. v. 8. p. 1021-1039.</p><p>BOMFIM, Paulo Roberto de Albuquerque. Fronteira amazônica e planejamento na</p><p>época da ditadura militar no Brasil: inundar a hileia de civilização. Boletim Goiano de</p><p>Geografia, v. 30, n. 1, p. 13-33, 2010.</p><p>CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932. 1º edição. São Paulo: Brasiliense, 1981.</p><p>CARVALHO, Ana Paula Rodrigues. As bandeiras no Estado Novo: o conceito de</p><p>biodemocracia em a marcha para oeste de Cassiano Ricardo. Revista Espacialidades, v. 13,</p><p>p. 237-249, 2018.</p><p>CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil.</p><p>São Paulo: Companhia das Letras, 1990.</p><p>CEBALLOS, Viviane Gomes de. “E a história se fez cidade...”: a construção histórica e</p><p>historiográfica de Brasília. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia</p><p>e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2005.</p><p>CERRI, Luis Fernando. NON DUCOR, DUCO – A ideologia da paulistanidade e a escola.</p><p>Dissertação (Mestrado em educação) – Faculdade de educação, Universidade</p><p>Estadual de Campinas. Campinas, 1996, p. 64.</p><p>COELHO, George Leonardo Seabra. O bandeirante que caminha no tempo:</p><p>apontamentos sobre o 'espírito bandeirante' ricardiano. In: VI SEMINÁRIO DE</p><p>PESQUISA DA PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA UFG/PUC-GO, 2014, Goiânia-</p><p>GO. Anais do VI Seminário de Pesquisa da Pós Graduação em História. v. 1.</p><p>o</p><p>enunciado com o “sobre-o-quê” do enunciado –relação veritativa. A essência da</p><p>verdade é melhor alcançada pela relação veritativa do que pela relação predicativa.</p><p>Segundo Heidegger, há muito mais entre a relação sujeito e objeto, é como</p><p>se partindo apenas destes polos, negligenciássemos o todo que existe entre eles.</p><p>Dessa maneira, o problema da verdade não deve ser posto a partir da proposição</p><p>como têm feito a Lógica e a Teoria do Conhecimento. A situação é: existe um todo</p><p>estrutural que fundamenta o “sobre-o-quê” do enunciado.</p><p>Quando enunciamos algo sobre um dado objeto, como “o giz é branco”,</p><p>para além de qualquer relação, já antes nos encontramos junto a este objeto. O</p><p>sujeito, portanto, se relaciona diretamente com a coisa, sem contexto confuso al-</p><p>gum pelo caminho, mas apenas o fato de estar junto a... Condição sem a qual seria</p><p>impossível a própria enunciação. A enunciação transforma o objeto a nossa frente</p><p>num “sobre-o-quê” da proposição. Não é, pois, no enunciado que aparece a relação</p><p>entre sujeito e objeto, mas o enunciado por sua vez, faz uso desta relação, pois “o</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>18</p><p>enunciar sobre... já se movimenta no interior e, de certo modo, sobre a via de nossa</p><p>permanência junto ao giz”. (HEIDEGGER, M. Introdução à filosofia. Tradução de</p><p>Marco Antônio Casanova. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes. 2009. P. 70).</p><p>O fato simples desta permanência junto ao “sobre-o-quê” é o que permite</p><p>que a proposição consiga enunciar algo sobre a coisa. Nota-se que não é a propo-</p><p>sição, mas este modo de ser do enunciador que toca mais de perto a essência da ver-</p><p>dade. Deve-se, pois, demorar nesta questão aparentemente auto-evidente,</p><p>porquanto ela implica o como é possível à alma relacionar-se com as coisas. É pre-</p><p>ciso reter o fenômeno que se mostra ao invés de apenas descrevê-lo.</p><p>Para Heidegger, existe uma diferença entre o modo de ser dos homens e</p><p>o modo de ser dos objetos. Embora os objetos não compartilhem do mesmo modo</p><p>de ser dos homens, estão junto aos homens. Mas não estão com os homens. O modo</p><p>de ser próprio do homem é estar com, ao passo que o modo de ser próprio dos ob-</p><p>jetos é estar junto. Assim os homens existem com outros homens, e estão junto às</p><p>coisas. Simplesmente as coisas que estão junto a nós, nos vêm ao encontro. Para</p><p>evitar que entendamos este modo de ser como o entendem os empiristas ou Kant,</p><p>Heidegger afirma que “em meio a esse deixar-vir-ao-encontro não há nem a im-</p><p>pressão de algo de fora nem um sair de dentro para fora a partir de nós mesmos”.</p><p>(HEIDEGGER, M. Introdução à filosofia. Tradução de Marco Antônio Casanova.</p><p>2ed. São Paulo: Martins Fontes. 2009. P. 78). O que há é uma receptividade pecu-</p><p>liar sendo desperta, na qual as coisas se mostram como são. Trata-se de uma es-</p><p>pontaneidade originária de aceitar as coisas, de acolhê-las, de recebê-las.</p><p>O ato de conhecer, para os gregos, traz um conflito fundamental: quando</p><p>conhecemos, retiramos o ente do velamento e este se torna verdadeiro porque não</p><p>mais velado; constitui-se um roubo o ato de conhecer, na medida em que o ob-</p><p>jeto/ente, envolto no velamento, seria por nós arrancado dessa condição5.</p><p>Diferente dos gregos, Heidegger estabelece que a verdade é a recepção do</p><p>objeto pela alma do sujeito humano. É bom relembrar, ao estilo de Heidegger, que</p><p>a proposição, sendo o anúncio público da verdade, passou a abrigar a verdade que</p><p>mais originariamente reside no objeto que é desvelado, privado do velamento, não</p><p>velado. O obscurecimento do real sentido da palavra alethéia faz a proposição figu-</p><p>rar como lugar da verdade; quando na realidade a verdade é o desvelamento do ob-</p><p>jeto pelo sujeito e esse fenômeno acontece antes mesmo de qualquer enunciação.</p><p>Se no desvelamento dos objetos, não lhes retiramos nem lhes acrescenta-</p><p>mos nada, mas os entregamos a eles mesmos, então o desvelamento não é uma pro-</p><p>priedade dos objetos, como sua cor, tamanho, peso, posição.</p><p>5 Heidegger aponta (Ser e Tempo I, p. 212-30) como referência dessa problemática da essência da</p><p>verdade como privação e roubo.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>19</p><p>Ficamos no meio do dilema sobre se a verdade que advém ao objeto, e que</p><p>o homem compartilha no desvelamento é inerente ao objeto ou ao próprio homem;</p><p>ou ainda, se a verdade como desvelamento, se dá “entre” o homem e o objeto; ou se</p><p>devemos procurar noutro lugar, uma vez que a proposição já foi descartada, ao</p><p>menos como lugar originário, pois se admite agora que ela expresse a verdade, po-</p><p>rém por derivação, “se o enunciado pode se atestar, se confirmar como verdadeiro,</p><p>é porque mostra o ente tal e qual ele mesmo se mostra” (DUBOIS, C. Heidegger:</p><p>Introdução a uma leitura. Tradução de Bernardo Barros Coelho de Oliveira. Rio de</p><p>Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2004. P. 46).</p><p>Existe uma determinação elementar que nos possibilita dizer que o des-</p><p>velamento/verdade pertence essencialmente ao homem. Ao objeto não lhe é deter-</p><p>minado desvelar-se, pode ocorrer ou não. Mas, ao homem, mesmo que esteja</p><p>solitário, isto é, sem os outros, ocorre que seja junto aos objetos e isto basta para</p><p>que estes objetos se lhes manifestem. Portanto, a verdade pertence ao sujeito sem</p><p>que isto torne a verdade subjetiva.</p><p>O conceito tradicional de verdade impede, portanto, que o objeto seja</p><p>descoberto do modo como Heidegger propõe. Em resumo, a verdade existe no ho-</p><p>mem que é descobridor, desvelador, dos objetos. E esse desvelamento não depende</p><p>de uma aplicação ou interesse sobre as coisas, mas pertence ao modo de ser pró-</p><p>prio do homem que consiste em receber as coisas na alma assim como elas são.</p><p>As noções grega e heideggeriana da verdade diferem da noção de parresia</p><p>apresentada por Foucault. Aristóteles abriga a verdade no seio discurso lógico, ao</p><p>passo que Heidegger aloja a verdade a alma do sujeito humano. Porém, para Hei-</p><p>degger advém no sujeito por uma constituição originária, ao passo que a parresia</p><p>só pode se manifestar por uma determinação do sujeito, visto que ele pode ou não</p><p>usar o discurso parresiástico. É por este último aspecto que vemos se revelar o</p><p>caráter positivo da verdade enquanto parresia.</p><p>Temos essa tradição revisitada que nos apresenta a verdade como desve-</p><p>lamento, seja como violência e roubo, para os gregos, seja como o encaixe perfeito</p><p>da essência do objeto sendo acolhida pelo espírito humano, em Heidegger. E, por</p><p>outro lado, temos a parresia, conceito também muito antigo, remontando às tra-</p><p>gédias gregas, trazido por Foucault como uma positividade, uma verdade que é</p><p>fruto de um comportamento.</p><p>A verdade parresiástica, não se identifica com a verdade em seu sentido</p><p>tradicional. A parresia é um tipo de verdade aplicada à filosofia prática. É na Ética</p><p>e na Política que a parresia ganha vida e seu estatuto de verdade origina-se da i-</p><p>dentificação do sujeito falante com o conteúdo de sua fala. É por meio dessa iden-</p><p>tificação que podemos apontar um discurso como verdadeiro. Mas a condição para</p><p>que esse tipo de verdade irrompa é a alteridade, a diferenciação marcada pelos su-</p><p>jeitos. E a finalidade é o governo de si – ética – quando se busca a parresia de um</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>20</p><p>mestre, por exemplo, ou o governo dos outros – politica – quando se fala para uma</p><p>assembleia.</p><p>O editor dos últimos cursos de Foucault no Collège de France, Frèdèric</p><p>Gros, destaca esse caráter próprio da parresia como verdade que advém a partir da</p><p>diferença.</p><p>Compreende-se por que, quando havia coligido os diferentes “significados” ou</p><p>“valores’ da verdade, Foucault, depois de estabelecer os temas do não oculto, do</p><p>puro, do reto e do soberano, abandona, riscando-o no manuscrito, o tema do “i-</p><p>dêntico” ou do “mesmo”, que havia consignado como uma das grandes significa-</p><p>ções tradicionais da verdade – que se encontra no cerne da nossa cultura</p><p>filosófica. Mas ele pretende precisamente salientar, em 1984, que a marca do ver-</p><p>dadeiro é a alteridade: o que faz a diferença</p><p>Goiânia:</p><p>PUC, 2014.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>148</p><p>COELHO, George Leonardo Seabra. Das três opções nenhuma: os “novos</p><p>bandeirantes” contra a “democracia liberal”, o “comunismo desagregador” e o</p><p>“integralismo internacionalista”. Revista Contemporânea, v. 2, p. 1-36, 2015.</p><p>FERREIRA, Antônio celso. A epopeia bandeirante: letrados, instituições, invenção</p><p>histórica (1870-1940). São Paulo: Editora UNESP, 2002.</p><p>FERREIRA, Marieta de Moraes; PINTO, Surama Conde Sá. A Crise dos anos 20 e a</p><p>Revolução de Trinta. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,</p><p>Rio de Janeiro: CPDOC, p. 1-26, 2006.</p><p>FERRETTI, Danilo José Zioni. Capistrano de Abreu e as bandeiras: entre a condenação</p><p>indianista e a historiografia laudatória paulista. In: Diogo da Silva Roiz; Suzana</p><p>Arakaki; Tânia Regina Zimmermann. (Org.). Os Bandeirantes e a Historiografia brasileira:</p><p>questões e debates contemporâneos. 1ed.Serra-ES: Milfontes, 2018, p. 115-146.</p><p>GOODSON, Ivor. Currículo, narrativa e o futuro social. Revista Brasileira de Educação</p><p>[online]. 2007, vol.12, n.35, pp.241-252.</p><p>GOODSON, Ivor. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997.</p><p>HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e</p><p>Terra, 1997.</p><p>LOSSO, Tiago Bahia. Estado e democracia no discurso oficial do Estado Novo. Política</p><p>& Sociedade, v. 7, p. 95-117, 2008.</p><p>MOOG, Vianna. Bandeirantes e Pioneiros. São Paulo: Editora civilização brasileira, 1985.</p><p>MARQUES, Adriana Aparecida. Amazônia: pensamento e presença militar. Tese</p><p>(Doutorado em ciência política) – Faculdade de Filosofia, letras e ciências humanas,</p><p>Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.</p><p>NOVOA, Antônio. Nota de apresentação. In: GOODSON, Ivor. A construção social do</p><p>currículo. Lisboa: Educa, 1997.</p><p>RAHME, Ana Maria. Configurações Paulistas: operando a saga bandeirante. Revista</p><p>ARA, v. 5, n. 5, p. 77-108, 2018.</p><p>RODRIGUES, Georgete Medleg. Ideologia, propaganda e imaginário social na construção de</p><p>Brasília (1956-1960). Dissertação (Mestrado em história) – Instituto de Ciências</p><p>Humanas, Universidade de Brasília. Brasília, 1990.</p><p>SOUZA, Ricardo Luiz. A mitologia bandeirante: construções e sentidos. Revista</p><p>História Social, Campinas: Unicamp, v. 1 n.º 13, p. 151-171, 2007.</p><p>VIDESOTT, Luisa. Narrativas da construção de Brasília: mídia, fotografias, projetos e</p><p>história. Tese (Doutorado em arquitetura e urbanismo) – Escola de engenharia de São</p><p>Carlos, Universidade de São Paulo. 2009.</p><p>VOLPATO, Luíza. Entradas e Bandeiras. São Paulo: Global, 1985.</p><p>COMPETÊNCIAS DIGITAIS NA EDUCAÇÃO BÁSICA:</p><p>CONTRIBUIÇÕES DA NEUROPSICOPEDAGOGIA EM</p><p>CONTEXTOS DE VULNERABILIDADE SOCIAL</p><p>Artur Pires de Camargos Júnior 1</p><p>Introdução</p><p>A vulnerabilidade social pode afetar negativamente a aprendizagem de</p><p>estudantes e o trabalho docente. Condições básicas de segurança, saúde, alimen-</p><p>tação e acesso ao conhecimento nem sempre estão presentes no contexto de mui-</p><p>tos brasileiros. A utilização de Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação</p><p>(TDIC) para diversos fins ocorre de forma desigual entre a população, refletindo</p><p>outras formas de desigualdade no Brasil.</p><p>No âmbito da exclusão digital que afeta muitos brasileiros, este capí-</p><p>tulo aborda estratégias para o desenvolvimento de competências digitais na E-</p><p>ducação Básica sob uma perspectiva neuropsicopedagógica. Considera-se que a</p><p>escola pode ser um ambiente para promover a inclusão de estudantes e docentes</p><p>na cultura digital. A fundamentação neuropsicopedagógica contribui para uma</p><p>atuação profissional crítica e consciente no sentido de organizar situações favo-</p><p>ráveis ao desenvolvimento daquelas competências tanto por estudantes quanto</p><p>por professores.</p><p>O problema que norteou esta pesquisa foi: Quais estratégias poderiam</p><p>favorecer o desenvolvimento de competências digitais entre estudantes e profissi-</p><p>onais da Educação Básica em uma perspectiva neuropsicopedagógica? Para res-</p><p>ponder a essa questão, propôs-se o seguinte objetivo geral: identificar estratégias</p><p>com fundamentos neuropsicopedagógicos para o desenvolvimento de competên-</p><p>cias digitais de estudantes e profissionais da Educação Básica.</p><p>A abordagem do problema proposto justifica-se pela crescente necessi-</p><p>dade de utilização de TDIC em diversos espaços sociais e para diferentes finalida-</p><p>des. O contexto social brasileiro, no entanto, nem sempre oferece oportunidades</p><p>para que todos os cidadãos tenham acesso a essas tecnologias. Surge, assim, uma</p><p>desigualdade no nível de competência digital principalmente entre pessoas de</p><p>classes sociais diferentes.</p><p>1 Mestrando em Educação pela Universidad de la Empresa (UDE – Uruguay). Especialista em</p><p>Neuropsicopedagogia Clínica, Pedagogia Digital e Inovações Tecnológicas, Tecnologias em EaD e</p><p>em outras áreas. Graduado em Normal Superior e Pedagogia. Professor de Educação Básica (Anos</p><p>Iniciais do Ensino Fundamental) e de Ensino Superior. Orientador Educacional.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>150</p><p>Consideraram-se duas situações hipotéticas que podem envolver estu-</p><p>dantes e profissionais em escolas de Educação Básica para identificar estratégias</p><p>de desenvolvimento de competências digitais. A primeira situação refere-se ao uso</p><p>do celular em sala de aula para a aprendizagem autônoma. Já a segunda envolve o</p><p>uso de TDIC em processos de gestão escolar.</p><p>Metodologia</p><p>A pesquisa que originou este texto apresenta características qualitativas.</p><p>Para Oliveira (2016), a abordagem qualitativa baseia-se na interpretação de fatos</p><p>contextualizados. O pesquisador deve, então, aprofundar-se neles para estabele-</p><p>cer relações com a teoria. Trata-se de um tipo de pesquisa no qual prevalece a</p><p>busca de sentidos e não a quantificação de dados.</p><p>Considera-se que o objetivo norteador deste estudo possui característi-</p><p>cas exploratório-descritivas. Buscou-se, então, conhecer o tema para formular i-</p><p>deias que permitiriam maior familiaridade com o problema (OLIVEIRA, 2016).</p><p>Foram essas ideias que favoreceram a identificação e a descrição de estratégias</p><p>com fundamentos neuropsicopedagógicos para o desenvolvimento de competên-</p><p>cias digitais de estudantes e profissionais de Educação Básica.</p><p>Optou-se pela busca de dados basicamente em publicações sobre Neu-</p><p>ropsicopedagogia e competências digitais. Oliveira (2016) classifica como biblio-</p><p>gráficas as pesquisas desenvolvidas com tais características. A principal vantagem</p><p>seria encontrar fundamentos para a proposição de ideias a partir de investigações</p><p>confiáveis, de forma a obter credibilidade para o estudo desenvolvido.</p><p>Neuropsicopedagogia: conceito, especificidade e relações com a</p><p>aprendizagem</p><p>A Neuropsicopedagogia (NPp) é uma área de estudo que envolve conhe-</p><p>cimentos da Neurociência (estrutura e funcionamento do cérebro), da Psicologia</p><p>(emoções, cognição, personalidade e comportamento humano) e da Pedagogia (te-</p><p>orias e metodologias de ensino). Segundo Fonseca (2014), o objeto de estudo da</p><p>NPp é composto pela aprendizagem e pelos processos que facilitam ou dificultam</p><p>a construção do conhecimento pela pessoa que aprende (aprendente). Essa pers-</p><p>pectiva transversal revela a complexidade do ato de aprender, que envolve mais do</p><p>que apenas um estímulo e uma resposta.</p><p>Em relação aos aspectos teóricos, Dresch (2018) esclareceu que a Neu-</p><p>ropsicopedagogia, segundo a SBNPp, originou-se da interseção entre a Neuroci-</p><p>ência, a Psicologia Cognitiva e a Pedagogia. A Neurociência estuda o</p><p>funcionamento do cérebro, o que permite compreender aspectos biológicos da a-</p><p>prendizagem, tais como a ação de neurotransmissores, o papel dos neurônios, as</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>151</p><p>sinapses (regiões de contato entre neurônios) e a ativação de partes específicas</p><p>dos lobos cerebrais. A Psicologia Cognitiva aborda o funcionamento da mente, o</p><p>que inclui o estudo dos processos de captação de estímulos do ambiente, o pro-</p><p>cessamento desses estímulos e a produção de uma resposta</p><p>no mundo e as opiniões dos homens,</p><p>o que obriga a transformar seu modo de ser, aquilo cuja diferença6 abre a pers-</p><p>pectiva de um mundo outro a construí, a sonhar. (GROS. 2010. P 316 In</p><p>FOUCAULT, M. A coragem da verdade: O governo de si e dos outros II : Curso</p><p>no Collège de France 1983-1984. Tradução de Eduardo Brandão. Editora: WMF</p><p>Martins Fontes. São Paulo. 2010).</p><p>Nota-se que discutir as teorias sobre o que é o sujeito humano incorre em</p><p>consequências sobre discutir o que é a verdade. Como visto, a verdade enquanto</p><p>parresia entende o sujeito humano como parte de um jogo pelo qual ele se sujeita</p><p>a si mesmo pelo discurso do outro e, pelo seu discurso, sujeita os outros. Trata-se</p><p>de um caráter positivo da verdade, uma atitude, um comportamento. Não é o dis-</p><p>curso aristotélico de tipo mostrador do objeto. A parresia mostra o sujeito, ele está</p><p>inteiro em sua fala. A parresia também não é verdade que brota no interior da alma</p><p>como em Heidegger, é verdade que somente tem existência quando externada</p><p>numa atitude corajosa de lançar-se como diferença diante da alteridade.</p><p>***</p><p>Para a Ética, a pergunta fundamental aqui é justamente acerca dos valores</p><p>necessários ao ser humano entendido nos termos da Antropologia Filosófica. As</p><p>descobertas de Foucault sobre a Ética do “cuidado de si”, mostram que o objeto do</p><p>conhecimento, o “si”, é a alma, mas a finalidade do cuidado é outra coisa e se refere</p><p>à cidade. Mas, além do Alcibíades, que trata do ambiente democrático, na idade de</p><p>ouro imperial, no âmbito do governo autocrático, o cuidado de si põe o “eu” como</p><p>objeto e finalidade do cuidado, sem referências à cidade. Desde os exercícios mili-</p><p>tares e de ginástica gregos até os exercícios ascéticos cristãos, pode-se retirar o</p><p>sentido da atitude, do gesto positivo que está contido na noção de “cuidado de si”.</p><p>Temos, pois outras duas tradições: uma que conecta a finalidade do cuidado da</p><p>alma ao bem da cidade, e outra, mormente praticada no Helenismo, que apregoa a</p><p>finalidade do cuidado concernente à salvação da alma.</p><p>6 Grifo meu</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>21</p><p>Quais valores ensinar e como defendê-los no âmbito da democracia? A</p><p>parresia docente se mostra fundamental para o resguardo dos valores democráti-</p><p>cos. Deve existir uma correlação entre os valores pessoais e os valores democráti-</p><p>cos. Esse círculo põe em movimento um tipo de educação dos indivíduos que</p><p>fortalece a coletividade, e um tipo de consciência coletiva que aprimora o indiví-</p><p>duo, nada impedindo a coexistência de práticas ascéticas individualizadas no âm-</p><p>bito da economia da salvação. As sociedades modernas têm preconizado o Estado</p><p>laico e a secularização das filosofias e das leis. A leitura foucaultiana de Kant –</p><p>sobre o opúsculo O que é o esclarecimento – responde bem à questão sobre a alocação</p><p>da religião nas sociedades civis modernas.</p><p>A Ética deve ser o âmbito da avaliação dos valores. E essa empreitada de-</p><p>manda bastante esforço intelectual. Os valores e as leis devem corroborar para a</p><p>consolidação do Estado Democrático de Direito, mas os atribuidores de valor não</p><p>devem se furtar do fato de que a democracia e suas leis são ordenamentos formais</p><p>e estáticos, ao passo que as ações humanas são materiais e móveis. É da confusão</p><p>sobre a alocação dos elementos móveis sobre os elementos estáticos que nascem</p><p>toda sorte de injustiças. O caso de Sócrates, como dito, é assaz eloquente.</p><p>Portanto, a parresia vem a ser um adicional às leis e ao ordenamento civil</p><p>que, por si mesmos, não bastam. É necessário que ante o formalismo da lei ou do</p><p>currículo, por exemplo, haja espaço para o discurso de veridicção, isto é, aquele</p><p>tipo de palavra na qual o sujeito que fala se identifica com o conteúdo do que diz</p><p>e assume a responsabilidade pelo dito.</p><p>De fato, a parresia docente é um adicional necessário ao trabalho docente.</p><p>O exercício do discurso de veridicção deve conectar o indivíduo dado com as con-</p><p>dições de possibilidade para o surgimento do indivíduo democrático. Nesse sen-</p><p>tido, a boa parresia7 exige uma espécie de pacto parresiástico pelo qual o</p><p>parresiásta se compromete com o que fala e busca compromisso equivalente da-</p><p>quele que escuta.</p><p>***</p><p>Com relação à Teoria Política contemplar-se-á, aqui, a leitura de Kant</p><p>feita por Foucault tendo como contexto a Modernidade e a marca da Aufklärung</p><p>(esclarecimento)8.</p><p>7 No curso de 1984, A Coragem da Verdade, em sua primeira aula, Foucault marca a diferença entre a boa</p><p>e a má parresia. O sentido pejorativo consiste na crítica presente em alguns autores como</p><p>Aristófanes, Isócrates e Platão, cujo núcleo avaliativo decorre do teor tagarelesco daqueles que</p><p>confundem o direito de dizer tudo com a imprudência de dizer qualquer coisa sem pensar. A boa</p><p>parresia, por sua vez, é a fala franca e não dissimulada, pela qual o parresiásta indexa sua fala à</p><p>verdade e seus critérios de racionalidade e razoabilidade.</p><p>8 No brasil é comum o uso da tradução de Aufklärung por Iluminismo ou Ilustração.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>22</p><p>De acordo com Foucault, Kant inaugura duas tradições filosóficas, a sa-</p><p>ber: uma que trata da analítica da verdade, isto é, das condições de possibilidade</p><p>da verdade e dos limites do conhecimento. Por essa vertente, estabelecida na ma-</p><p>gistral obra A Crítica da Razão Pura, temos a filosofia funcionando como um tribunal</p><p>da razão. A outra tradição vista por Foucault no pensamento kantiano é a ontologia</p><p>do presente. Trata-se do diagnóstico da atualidade a fim de que a filosofia possa re-</p><p>velar o que somos. O filósofo é sujeito do pensamento e ao mesmo tempo é objeto</p><p>do pensamento, não podendo se desvincular. Ao tentar responder o que é o pre-</p><p>sente não poderá, o filósofo, se retirar do presente para olhá-lo de fora.</p><p>Assim, pela primeira tradição, Kant contempla a racionalidade moderna</p><p>e chama atenção para a importância de se conhecer os limites da razão. Adverte</p><p>que o desdém aos saberes metafísicos não garante que as questões metafísicas a-</p><p>bandonem o espírito humano. Nas palavras de Kant</p><p>É vão, com efeito, afectar indiferença perante semelhantes investigações, cujo</p><p>objeto não pode ser indiferente à natureza humana. Esses pretensos indiferen-</p><p>tistas, por mais que busquem tornar-se irreconhecíveis, substituindo a termino-</p><p>logia da Escola por uma linguagem popular, não são capazes de pensar qualquer</p><p>coisa sem recair, inevitavelmente, em afirmações metafísicas, porém, esta indife-</p><p>rença, que se produz no meio do florescimento de todas as ciências e ataca pre-</p><p>cisamente aquela, a cujos conhecimentos, se pudéssemos adquiri-los,</p><p>renunciaríamos com menos facilidade do que a qualquer outro, é um fenômeno</p><p>digno de atenção e de reflexão. Evidentemente que não é efeito de leviandade,</p><p>mas do juízo amadurecido da época, que já não se deixa seduzir por um saber</p><p>aparente. (KANT, I. Crítica da razão pura. Fundação Calouste Gulbenkian. Lis-</p><p>boa: Terceira edição. 1994. p. 5).</p><p>A segunda tradição, que norteia os trabalhos de Foucault, abre espaço</p><p>para a parresia, que será realocada na economia do pensamento moderno. Note-</p><p>mos que Aristóteles, a primeira tradição kantiana de que nos fala Foucault e Hei-</p><p>degger, fazem figurar a verdade no âmbito da Lógica e da Teoria do Conhecimento.</p><p>Mas a segunda tradição kantiana faz a verdade, enquanto parresia, figurar na po-</p><p>lítica. Em textos menores, fora das três Críticas escritas por Kant, vemos se delinear</p><p>algumas pistas para o exercício da parresia política na Modernidade.</p><p>Segundo Kant, a Revolução Francesa constitui, para a Modernidade, a</p><p>expressão de um processo que ultrapassa o próprio fato histórico da Revolução e</p><p>se apresenta como acontecimento irreversível. Em 1798, no texto O conflito das fa-</p><p>culdades, ele aponta a Revolução como a realização de um progresso na história da</p><p>humanidade que consiste na possibilidade, a partir de então, de se escolher a forma</p><p>de regime político e dispor esse regime de dispositivos capazes</p><p>de evitar guerras.</p><p>Por trás do entusiasmo pela Revolução, Kant enxerga uma disposição nos</p><p>homens, inclusive naqueles que não participaram diretamente dela, de escolher</p><p>sua própria constituição política e eliminar as possibilidades de conflitos. De a-</p><p>cordo com Foucault, é bem sabido que são igualmente estes dois elementos [...], e</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>23</p><p>é também isso que é o próprio processo da Aufklärung, isto é, de fato a Revolução é</p><p>o que remata e continua o próprio processo da Aufklärung. (FOUCAULT, M. O</p><p>governo de si e dos outros: Curso no Collège de France 1982-1983. Tradução de</p><p>Eduardo Brandão. Editora: WMF Martins Fontes. São Paulo, 2010. p. 19).</p><p>Mas o que é a Aufklärung? Kant procura definir esse termo em seu texto O</p><p>que é o Esclarecimento? Para o filósofo alemão, Aufklärung é a saída do homem de seu</p><p>estado de menoridade. E esta saída se constitui pela capacidade do homem de pen-</p><p>sar por si mesmo. Nesse sentido todos os homens seriam convidados a abandona-</p><p>rem seu estado de tutelados.</p><p>É importante perceber que o convite à coragem de pensar por si mesmo</p><p>só pode ser realizado na medida em já se tenha em mãos os instrumentos para se</p><p>pensar corretamente. Assim a analítica da verdade inaugurada na Crítica da Razão</p><p>Pura estabelece as bases do pensamento, enquanto o diagnóstico do presente requisita</p><p>um adicional que é a ousadia e a coragem, e nisto Foucault verá o retorno da par-</p><p>resia na cena moderna.</p><p>Essas duas tradições ensejadas pelo pensamento kantiano abrem o cami-</p><p>nho para a constituição dos regimes democráticos em nossa Modernidade. A Te-</p><p>oria Política tradicional que tanto debateu sobre o poder do soberano, agora pode</p><p>abrigar reflexões sobre os homens que escolhem o regime político sob o qual de-</p><p>sejam ser governados. É nesse sentido que chamamos de déspotas esclarecidos os</p><p>soberanos que não tutelam os súditos. É por esta razão que Kant, no texto O que é</p><p>o Esclarecimento? Tece elogios a Frederico da Prússia. Segundo Kant</p><p>Um Príncipe que não acha indigno de si dizer que tem por dever nada prescrever</p><p>aos homens em matéria de religião, mas deixar-lhes aí a plena liberdade, que, por</p><p>conseguinte, recusa o arrogante nome de tolerância, é efectivamente esclarecido</p><p>e merece ser encomiado pelo mundo grato e pela posteridade como aquele que,</p><p>pela primeira vez, libertou o gênero humano da menoridade, pelo menos por</p><p>parte do governo, e deu a cada qual a liberdade de se servir da própria razão em</p><p>tudo o que é assunto de consciência. (KANT. I. “Resposta à pergunta: que é o</p><p>Iluminismo”. In: KANT, I. A paz perpétua e outros opúsculos. 1995. p. 17)</p><p>De acordo com Kant, Frederico foi capaz de equilibrar o par raciocínio/o-</p><p>bediência. Para obedecer, não necessariamente se precisa cessar a atividade de ra-</p><p>ciocinar. Assim como o livre raciocínio não resulta necessariamente na</p><p>desobediência cível. Alocando-se as condições para o funcionamento perfeito</p><p>desse par, o súbito alçaria cada vez mais a condição de cidadão. O cidadão é aquele</p><p>corresponsável pala cidade, e a parresia é o elemento que lhe dará condições de</p><p>efetivamente participar da vida pública. Qualquer modelo de educação que não se</p><p>atenha a essas considerações falhará.</p><p>Kant nos oferece uma saída para o falso impasse de que quanto mais se</p><p>pensa, menos se obedece. Em regimes democráticos, esse impasse pode ser</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>24</p><p>dissolvido pelas atitudes de cada um dos atores – sociedade civil e governo – sem</p><p>que um não afete o funcionamento do outro.</p><p>Assim, Kant lançará mão de outro par: uso privado da razão/uso público</p><p>da razão para harmonizar as forças políticas no seio social. Por uso privado das</p><p>nossas faculdades racionais ele entende o modo como utilizamos nossa razão no</p><p>interior das instituições, em atividades profissionais e outras funções públicas.</p><p>Kant denomina uso privado, porque o sujeito assume uma posição particular em</p><p>suas considerações e tomadas de decisão. Sua atividade pode ser pública, mas sua</p><p>fala é restrita, porquanto se dirige a uma comunidade específica.</p><p>Respectivamente, o uso público da razão refere-se a uma posição do su-</p><p>jeito que se estende universalmente. No uso público da razão não se fala a um</p><p>grupo restrito, mas ao conjunto de seres racionais. Na leitura de Foucault, Kant</p><p>estaria se referindo à relação entre um erudito e seu público letrado9. A esse pú-</p><p>blico corresponde a esfera no pensamento livre, ao passo que ao público constitu-</p><p>ído pelo uso privado da razão corresponde a obediência.</p><p>É dessa maneira que não se abandona a obediência nem o raciocínio livre.</p><p>Tomando como exemplo a atividade docente, podemos ter funcionando ao mesmo</p><p>tempo a obediência – quando se executa o currículo diluído no plano de aula – e o</p><p>livre uso do raciocínio – quando docentes reunidos num congresso, por exemplo,</p><p>questionam a validade do currículo que aplicam.</p><p>Na visão de Kant a constituição desses dois públicos, a saber o público</p><p>movido pelo uso privado da razão e o público movido pelo uso público da razão</p><p>é o que constituirá o equilíbrio entre governo e sociedade civil. Foucault enxerga</p><p>aí o campo para o uso da parresia, especialmente no espaço do uso público do</p><p>entendimento.</p><p>Estendendo o alcance o pensamento kantiano, podemos dizer a Educação</p><p>é a condição para o bom funcionamento da Democracia. Os homens e mulheres</p><p>precisam ser educados para reconhecerem e se reconhecerem em cada esfera. Seja</p><p>no espaço físico das instituições, seja no espaço simbólico do público letrado.</p><p>Num país como o Brasil, no qual o acesso ao ensino de qualidade é tão limitado,</p><p>logo percebemos que a construção dos públicos, se acha prejudicada. Tanto o</p><p>9 “Nem sempre se tem o direito de concluir, da palavra universitas, a existência de uma universidade</p><p>organizada num lugar determinado, basta que se tenha tido a necessidade de se dirigir ao conjunto</p><p>dos professores e estudantes residentes no mesmo lugar para que a expressão tenha sido</p><p>naturalmente empregada”. (GILSON. E. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes. 1995.</p><p>P. 483). Como se vê, professores e alunos são o público que faz uso da razão em sentido universal, e</p><p>é esse caráter que constitui o sentido do termo universitas. Nesse público a circulação de ideias é</p><p>fomentada, ao passo que no interior das instituições as ideias novas são vistas como perigosas,</p><p>porquanto põem em risco a estrutura mesma do funcionamento dessas instituições. O termo público</p><p>letrado utilizado por Foucault, é ainda mais extensivo do que o termo universitas, pois aqueles que já</p><p>não frequentam a universidade se sentem ainda pertencentes ao público universitário. Nota-se que</p><p>importa menos o local, e mais a coparticipação no mesmo universo do letramento.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>25</p><p>alcance da voz de um erudito não tem penetração num grande número de indiví-</p><p>duos como o funcionamento das instituições precariza-se com o empobrecimento</p><p>do capital humano. Não se quer dizer aqui que todos os indivíduos devam tornar-</p><p>se eruditos, ou tornarem-se especialista em qualquer que seja a área técnica, mas</p><p>que recebam uma educação que lhes possibilitem serem conscientes de seu papel</p><p>transformador e de sua importância na sociedade.</p><p>Conclusão</p><p>Foucault trata longamente da parresia na relação de mestria – mestre e</p><p>discípulo – no curso A Hermenêutica do Sujeito. O dizer franco do mestre ao discípulo</p><p>não o impede de estabelecer consigo mesmo uma relação autônoma. “O objetivo</p><p>da parresia é fazer com que, em um dado momento, aquele a quem se endereça a</p><p>fala se encontre em uma situação tal que não necessite mais do discurso do outro”</p><p>(Foucault, M. A hermenêutica do sujeito. Curso no Collège de France 1981-1982.</p><p>São Paulo: Martins Fontes, 2004. P. 340). Trata-se de uma transmissão da verdade</p><p>que, malgrada sua condição persuasiva, não mantém familiaridade com a erística,</p><p>porquanto o objetivo nesse caso não é a destruição de um adversário discursivo.</p><p>O</p><p>objetivo é a edificação do discípulo. Assim, a parresia lançada pelo mestre, logo é</p><p>subjetivada, preservando a autonomia do outro, uma vez que o conteúdo transmi-</p><p>tido não constitui uma contradição; o que há realmente é o encontro entre verdade</p><p>e sujeito pela parresia na relação de mestria.</p><p>Temos, pois, de um lado a parresia política, que, na democracia, se dá no</p><p>âmbito erístico do combate à retórica e ao discurso de lisonja. E de outro, a parre-</p><p>sia na relação de mestria cujo sentido modifica diametralmente a função da escuta</p><p>e a intenção dos atores. Os oponentes políticos se escutam a fim recolher as fragi-</p><p>lidades do discurso e apresentá-las ao público. A parresia política desmantela esse</p><p>jogo sofístico por meio de uma verdade que irrompe a cena adicionando ao jogo da</p><p>linguagem desprovida de sentido moral um componente subjetivo, irredutível às</p><p>frias regras da Lógica. As intenções dos atores preservam, no entanto, o caráter</p><p>agonístico do jogo político.</p><p>Por sua vez, a parresia do mestre atende ao desejo de conhecimento que,</p><p>em termos foucaultianos, equivale ao “conhecimento de si” para o “governo de si”</p><p>como condição para o “governo dos outros”. Nesse caso, escuta e intenções não</p><p>guardam o caráter agonístico do jogo político. Notadamente a parresia na relação</p><p>de mestria é tomada como condição para uma governabilidade fundada na ver-</p><p>dade. E essa governabilidade passa pelo gerenciamento da cidade enquanto corpo</p><p>social, mas também pelo gerenciamento da própria vida. A conexão entre Ética e</p><p>Política consiste na formação dos educandos pelo mestre educador, sendo a fina-</p><p>lidade dessa formação a implantação da verdade no espaço democrático. Como</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>26</p><p>pressuposto dessa importante tarefa, todo docente, deve, pelo uso privado da ra-</p><p>zão, obedecer e ensinar obediência às leis, mas, por outro lado, pelo uso público</p><p>do entendimento, deve avaliar democraticamente o valor das leis a fim de aperfei-</p><p>çoa-las e ajustá-las ao propósito da coexistência democrática e pacífica entre ho-</p><p>mens e mulheres.</p><p>Têm-se trabalhos atuais realocando o uso da parresia em áreas como Di-</p><p>reito, Psicologia, Pedagogia e outras atividades humanas que envolvem distribui-</p><p>ção de poder. Esse novo olhar remete a trabalhos anteriores de Foucault nos quais</p><p>o filósofo afirma que a constituição desses saberes modernos emanam do exercício</p><p>de certos poderes. A importância de tais estudos consiste na imposição de uma</p><p>vitória do poder que cuida em detrimento do poder que domina. Quanto mais</p><p>conscientes, menos dominados.</p><p>Foi nesse sentido, que procurou-se aqui reunir elementos para uma refle-</p><p>xão sobre a verdade como pano de fundo da Política, da Filosofia, da Educação, da</p><p>História da Filosofia na figura de suas áreas tradicionais. E essa verdade é a parre-</p><p>sia. Não é a verdade do desvelamento das coisas dadas – alethéia – mas é a verdade</p><p>como acontecimento que irrompe no tempo fazendo coisas desaparecerem e ou-</p><p>tras novas surgirem. A parresia é a verdade criadora e transformadora do mundo.</p><p>Cabe ao homem democrático ampliar e aprimorar os espaços de aparição desse</p><p>tipo de palavra. Diretamente proporcional é o sufocamento da verdade em relação</p><p>ao assombro da dominação, seja qual for a relação de poder: assistente/assistido,</p><p>educador/educando, médico/paciente, clérigos/leigos, governantes/governados.</p><p>Como se pode ver, o poder sem a verdade é dominação, ao passo que o poder atre-</p><p>lado à verdade é cuidado, e esse cuidado é dever da comunidade humana.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>27</p><p>Referências</p><p>DUBOIS, C. Heidegger: Introdução a uma leitura. Tradução de Bernardo Barros</p><p>Coelho de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2004.</p><p>FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. Curso no Collège de France 1981-</p><p>1982. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo:</p><p>Martins Fontes, 2010.</p><p>_______________. A coragem da verdade: O governo de si e dos outros II : Curso no</p><p>Collège de France 1983-1984. Tradução de Eduardo Brandão. Editora: WMF</p><p>Martins Fontes. São Paulo. 2010.</p><p>_______________. O governo de si e dos outros: Curso no Collège de France 1982-</p><p>1983. Tradução de Eduardo Brandão. Editora: WMF Martins Fontes. São Paulo,</p><p>2010.</p><p>GILSON. E. A Filosofia na Idade Média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:</p><p>Martins Fontes. 1995.</p><p>HEIDEGGER, M. Introdução à filosofia. Tradução de Marco Antônio Casanova.</p><p>2ed. São Paulo: Martins Fontes. 2009.</p><p>KANT, I. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e</p><p>Alexandre Fradique Morujão. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa: Terceira</p><p>edição. 1994.</p><p>_______________. “Resposta à pergunta: que é o Iluminismo”. In: KANT, I. A paz</p><p>perpétua e outros opúsculos. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70. 1995.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>29</p><p>SALA DE AULA INVERTIDA COMO FACILITADOR</p><p>PARA RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS</p><p>NO ENSINO DE MATEMÁTICA</p><p>Aldair Martins do Nascimento</p><p>1. BREVE HISTÓRICO DO ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL</p><p>Nas últimas décadas, o ensino público brasileiro, tem passado por muitas</p><p>transformações, promovidas primordialmente pelo menos no âmbito teórico, por</p><p>documentos como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e mais recente-</p><p>mente a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Estes dois documentos apon-</p><p>tam para a necessidade de renovação do ensino escolar em âmbito nacional,</p><p>considerando aspectos como a formação de professores, estrutura e materiais di-</p><p>dáticos e uma renovação no currículo escolar, que atenda às necessidades emer-</p><p>gentes no mercado de trabalho.</p><p>Por outro lado, cada vez mais têm aparecido nestes documentos, orienta-</p><p>ções que apontam para a formação do ser humano de maneira integral. Tal pers-</p><p>pectiva considera não só o desenvolvimento de competências técnicas, mas</p><p>também dá mais ênfase na consolidação de competências socioemocionais, neces-</p><p>sárias para formar um cidadão mais consciente de si e das relações que desempe-</p><p>nha com os outros.</p><p>As formas de ensinar sempre estiveram passando por transformações, no</p><p>entanto, há uma demanda por parte do mercado de trabalho e da sociedade como</p><p>um todo que essas transformações ocorram de maneira mais acelerada. Neste con-</p><p>texto, o ensino de matemática também deve se modernizar, principalmente no que</p><p>se refere aos métodos de ensino.</p><p>Antes de elencar algumas metodologias contemporâneas no ensino de</p><p>matemática, torna-se pertinente realizarmos uma breve retrospectiva histórica,</p><p>formando assim uma visão ampla de como as metodologias, e as concepções do</p><p>ensino de matemática foram sendo construidas ao longo do tempo.</p><p>Iniciando pelo Brasil colônia, período entre 1500 a 1822, marcado pela in-</p><p>fluência dos grupos jesuítas. Os jesuítas foram os responsáveis por criar as primei-</p><p>ras escolas elementares nas vilas do Brasil, segundo Gomes (2012):</p><p>O primeiro grupo de jesuítas chegou ao Brasil em 1549, junto com o primeiro</p><p>governador-geral, Tomé de Souza. Esses seis padres, liderados pelo padre Ma-</p><p>nuel da Nóbrega, foram os responsáveis pela criação da primeira escola elemen-</p><p>tar, na cidade de Salvador. A rede de educação jesuíta ampliou-se com a fundação</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>30</p><p>de outras escolas elementares (em Porto Seguro, Ilhéus, São Vicente, Espírito</p><p>Santo e São Paulo de Piratininga) e dos colégios, gradualmente estabelecidos na</p><p>Bahia (1556), no Rio de Janeiro (1567), em Olinda (1568), no Maranhão (1622),</p><p>em São Paulo (1631) e, posteriormente, também em outras regiões. (GOMES,</p><p>2012, p. 14)</p><p>O grande objetivo dos jesuítas era levar a palavra de Deus para os índios,</p><p>que eram divididos em muitas tribos ao longo do Brasil e tinham uma cultura bem</p><p>distinta dos Europeus. Para os portugueses era necessário ensinar ao povo indí-</p><p>gena sobre a visão de mundo cristã imposta pela Igreja Católica, para que suas</p><p>almas fossem salvas da condenação eterna. Sobre essas missões Aranha (2006) sa-</p><p>lienta que:</p><p>Desde o século XVI</p><p>e durante o XVII, o modelo de catequese dos índios alterava-</p><p>se, com o confinamento dos indígenas nas reduções ou missões, povoamentos</p><p>com organização bem complexa, que incluía conversão religiosa, educação e tra-</p><p>balho. As que mais se destacaram foram as missões da Amazônia e, ao Sul, as da</p><p>região do Rio da Prata. Na Amazônia, as missões dos carmelitas e dos francisca-</p><p>nos instalaram-se na margemesquerda do rio Amazonas, e na margem direita,</p><p>para o sul, acomodaram-se os jesuítas. Dentre estes, destacou-se a atuação do</p><p>Padre Antônio Vieira, que ficou na história devido à sua eloquência e aos Ser-</p><p>mões, considerados verdadeiras peças literárias. Mas a luta de Vieira contra os</p><p>colonos que escravizaram indígenas foi cheia de percalços, desde a primeira vez</p><p>em que esse missionário, conselheiro do rei português D. João IV, chegou ao Bra-</p><p>sil, em 1653. Sua tarefa era evangelizar erguer igrejas e realizar missões entre os</p><p>índios do Maranhão. Vencido pelos colonos, por duas vezes precisou se retirar,</p><p>retornando em 1680, ao recuperar seu prestígio. A essa altura, as missões jesuíti-</p><p>cas já eram bastante ativas, com criação de gado e plantações de cana, algodão e</p><p>cacau. (ARANHA, 2006, p. 167)</p><p>Nas primeiras escolas construídas pelos jesuítas, além de ensinar a ler e</p><p>escrever, a língua portuguesa e os preceitos bíblicos, já ensinavam conteúdos ma-</p><p>temáticos básicos. Porém, como esclarece Gomes (2012), o ensino de matemática</p><p>não era prioridade nessa época, o que contribuiu para um estudo superficial dessa</p><p>disciplina nas escolas elementares do Brasil colônia.</p><p>[...] no quediz respeito aos conhecimentos matemáticos, contemplava-se o en-</p><p>sino da escrita dos números no sistema de numeração decimal e o estudo das</p><p>operações de adição, subtração, multiplicação e divisão de números naturais.</p><p>Nos colégios, o ensino ministrado era de nível secundário, e privilegiava uma</p><p>formação em que o lugar principal era destinado às humanidades clássicas. Ha-</p><p>via pouco espaço para os conhecimentos matemáticos e grande destaque para o</p><p>aprendizado do latim. Sobre o ensino desses conhecimentos, conhece-se pouco:</p><p>por exemplo, sabe-se que a biblioteca do colégio dos jesuítas no Rio de Janeiro</p><p>possuía muitos livros de Matemática. No entanto, estudos realizados por muitos</p><p>pesquisadores conduzem à ideia geral de que os estudos matemáticos eram re-</p><p>almente pouco desenvolvidos no ambiente jesuíta. (GOMES, 2012. p.14)</p><p>Nesse sentido,pode-se concluir o relato de Gomes (2012), no começo do</p><p>Brasil colonial, as poucas instituições que tinham a prerrogativa de ensinar, esta-</p><p>vam preocupadas em evangelizar ao contrário de trabalhar com um conhecimento</p><p>mais científico, a exemplo da matemática. No ano de 1759, um acontecimento</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>31</p><p>modificou esta dinâmica de ensino brasileiro, neste ano, os jesuítas foram expulsos</p><p>peloentãoprimeiro-ministro de Portugal, Sebastião José de Carvalho e Melo, o</p><p>marquês de Pombal.</p><p>Quando o marquês ordenou a expulsão de todos os padres jesuítas do</p><p>Brasil, os 17 colégios que haviam na época ficam sem administração por um curto</p><p>período, visto que os padres jesuítas eram os principais responsáveis por tais ins-</p><p>tituições. De acordo com Gomes (2012) a situação foi um pouco atenuada quando</p><p>o Marquês de Pombal, em 1772, publicou um alvará criando as chamadas as “aulas</p><p>régias”, que eram efetivadas de maneira isolada, “primeiramente a gramática, o la-</p><p>tim, o grego, a filosofia e a retórica, posteriormente, as disciplinas matemáticas:</p><p>aritmética, álgebra e geometria. Eram aulas avulsas, em relação aos conhecimentos</p><p>matemáticos, há indícios de que haviam poucos alunos e, também, que era difícil</p><p>conseguir professores.”</p><p>Em resumo, o que se conhece dessa fase é que o número de aulas de Matemática</p><p>era pequeno e essas aulas tinham baixa frequência. Uma ocorrência importante,</p><p>no Brasil do fim do século XVIII, no que diz respeito ao destaque à Matemática</p><p>e às ciências, foi a criação do Seminário de Olinda pelo bispo de Pernambuco,</p><p>Dom Azeredo Coutinho, em 1798. Essa instituição, que funcionou a partir de</p><p>1800 e não formava somente padres, tornou-se uma das melhores escolas secun-</p><p>dárias do Brasil2. Ela conferiu importância ao ensino dos temas matemáticos e</p><p>científicos, e era estruturada em termos de sequenciamento dos conteúdos, du-</p><p>ração dos cursos, reunião dos estudantes em classes e trabalho de acordo com</p><p>um planejamento prévio. (GOMES, 2012 p. 15)</p><p>As aulas régias criadas pelo Marquês de Pombal possibilitou o acréscimo</p><p>de disciplinas aos colégios que antes serviam principalmente para estudos relaci-</p><p>onados a Bíblia. O enfoque no estudo de conteúdos matemáticos não eram priori-</p><p>dade, mas em relação a lista de conteúdos matemáticos depois do alvará de</p><p>Pombal, observa-se que houve um avanço, mesmo que ainda tímido. Durante todo</p><p>o período do Brasil colônia e em boa parte do Brasil Império, segundo Gomes</p><p>(2012) a educação brasileira se resumia às “aulas avulsas, havia seminários e colé-</p><p>gios mantidos por ordens religiosas, escolas e professores particulares, e os cha-</p><p>mados Liceus nos atuais estados do Rio Grande do Norte, da Bahia e da Paraíba”.</p><p>Entretando uma modificação mais radical no ensino e no meio cultural ocorre com</p><p>a chegada de D. João VI e da corte portuguesa ao Brasil, em 1808.</p><p>1.1 A educação no Brasil Império (1822-1889)</p><p>Incentivado por muitos atritos com a corte portuguesa, Dom João VI de-</p><p>cide vir para o Brasil com toda a corte portuguesa e se instalar no Rio de Janeiro.</p><p>Essa mudança provocou transformações estruturais e culturais, a cidade do Rio</p><p>de Janeiro teve que se adaptar com às necessidades do Rei e sua corte, junto com</p><p>várias decisões administrativas, promoveram uma enorme transformação social.</p><p>EDUCAR É UM ATO DE CORAGEM</p><p>32</p><p>A partir desse momento foram criadas várias instituições culturais até</p><p>então inexistentes nas colônias, dentre elas podemos destacar a Academia Real da</p><p>Marinha (1808) e a Academia Real Militar (1810), ambas localizadas no Rio de Ja-</p><p>neiro, esta última foi criada com o intuito de formar engenheiros civis e militares;</p><p>cursos de cirurgia, agricultura e química, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios</p><p>(1816), o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, entre outras.Sobre este período his-</p><p>tórico brasileiro Aranha (2006) aponta que:</p><p>Medidas econômicas adotadas beneficiava a aristocracia rural, que, no entanto,</p><p>seachavaexcluídadasdecisões políticas, esferaemqueosricoscomerciantes portu-</p><p>gueses tinham melhor trânsito. A tensão entre esses dois segmentos da socie-</p><p>dade, a alta taxação de impostos e as ideias iluministas contra o absolutismo real</p><p>criaram um clima de animosidade que preparou a Independência do Brasil.De-</p><p>vido a turbulências em Portugal, D. João VI retorna à metrópole, deixando aqui</p><p>o príncipe, que proclamou a Independência em 1822, assumindo o nome de D.</p><p>Pedro I. Esse movimento significou a vitória do partido brasileiro, dos modera-</p><p>dos, constituído pelosgrandesproprietários de terra, defensores da manutenção</p><p>do escravismo, bem como de liberais conservadores. Assim, enquanto na Europa</p><p>o liberalismo caminhava a passos largos para a industrialização, no Brasil a re-</p><p>forma política não propiciou mudanças econômicas e sociais significativas.Em</p><p>1831, D. Pedro I abdicou (para assumir a Coroa em Portugal, como Pedro IV),e,</p><p>devido à menoridade de seu filho, o Brasil foi governado por regentes desde a-</p><p>quela data até 1840, quando começou o Segundo Império, com D. Pedro II [...]. O</p><p>trabalho assalariado de milhares de imigrantes também já se tornara significa-</p><p>tivo na década de 1870, substituindo aos poucos a mão de obra escrava. A atua-</p><p>ção do barão de Mauá imprimiu pequeno surto industrial com a produção de</p><p>navios a vapor, construção de estradas de ferro, instalação de telégrafo e abertura</p><p>de bancos. Embora o processo de industrialização não tenha sido levado a bom</p><p>termo, devido às falências, às cidades cresceram e a sociedade tornou-se mais</p><p>complexa</p>

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