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<p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 1/48</p><p>Simbologia dos alimentos</p><p>Prof.ª Laura Eugenia Perez Freitas</p><p>Descrição</p><p>Os aspectos simbólicos da alimentação e sua importância para o profissional da área da Nutrição.</p><p>Propósito</p><p>A compreensão dos aspectos simbólicos da alimentação e do significado dos alimentos nas diferentes culturas é importante</p><p>para formação do profissional de Nutrição, pois facilitará sua atuação e compreensão em relação ao seu público-alvo em outros</p><p>contextos no exercício da profissão.</p><p>Objetivos</p><p>Módulo 1</p><p>Simbólico da alimentação</p><p>Identificar os aspectos reais, simbólicos e imaginários da alimentação.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 2/48</p><p>Módulo 2</p><p>Identidade cultural</p><p>Relacionar a identidade cultural e a comensalidade às dimensões simbólicas da alimentação.</p><p>Módulo 3</p><p>Signi�cados simbólicos</p><p>Reconhecer os significados simbólicos nas práticas de alimentação.</p><p>Introdução</p><p>Neste conteúdo, você aprenderá a identificar os aspectos simbólicos, reais e imaginários da alimentação. Esta carreira que você</p><p>escolheu se situa no âmbito das ciências da natureza. Nossas crenças, nossos valores e conceitos sobre alimentação se</p><p>constroem desde a mais tenra idade e fazem parte da nossa vida. Por esse motivo, para mudar comportamentos, o profissional</p><p>da área da Nutrição não pode ignorar os múltiplos significados que os indivíduos atribuem aos alimentos e às suas práticas</p><p>alimentares.</p><p>No módulo 1, após uma introdução à disciplina e à importância na sua formação acadêmica, discutiremos os aspectos reais,</p><p>simbólicos e imaginários da alimentação. O corpo-máquina construído pelo modelo mecanicista da ciência biomédica será</p><p>pensado no âmbito do real da alimentação. Depois, na vertente simbólica da alimentação, por meio dos múltiplos aspectos</p><p>simbólicos. Em seguida, o imaginário da alimentação será explorado mediante as angústias dos comedores contemporâneos</p><p>em relação à comida.</p><p>No módulo 2, falaremos da construção da identidade cultural a partir da alimentação e sobre a comensalidade e seus múltiplos</p><p>significados socioculturais.</p><p>No módulo 3, discutiremos os significados das práticas de alimentação em diferentes momentos. Começaremos falando sobre a</p><p>importância das comidas afetivas e das memórias gustativas, depois sobre a construção do gosto e como questões de gênero</p><p>estão associadas à alimentação, assim como as relações existentes entre comida e sexo, esses dois polos da sensibilidade e do</p><p>prazer humano.</p><p></p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 3/48</p><p>1 - Simbólico da alimentação</p><p>Ao �nal deste módulo, você será capaz de identi�car os aspectos reais, simbólicos e imaginários da</p><p>alimentação.</p><p>Aspectos reais, simbólicos e imaginários da alimentação</p><p>Por que estudar História e Antropologia da Alimentação</p><p>Você, como estudante de Nutrição, deve estar se perguntando que disciplina é essa e por que ela é importante para você. Então,</p><p>antes de mais nada, vamos refletir juntos sobre isto? Para entendermos primeiramente o que é a Antropologia da Alimentação,</p><p>começaremos falando sobre Antropologia: o que vem a ser Antropologia?</p><p>Resposta</p><p>A Antropologia é uma ciência social que surgiu no século XIX e que é fruto do Neocolonialismo. O Neocolonialismo, isto é, o</p><p>novo colonialismo, está diretamente relacionado à Revolução Industrial e foi a expansão imperialista das potências europeias no</p><p>século XIX em direção à África e à Ásia.</p><p>Diante da crise de superprodução na Europa em função da descoberta da utilização da eletricidade e do petróleo, esses países</p><p>saíram em busca de novos mercados, matérias-primas e mão de obra. Segundo Laplantine (2000), os colonos e viajantes</p><p>começaram assim a acumular informações sobre os povos considerados exóticos desses países e assim se organiza a</p><p>disciplina que se propõe a estudar esses povos, a Antropologia.</p><p>A Antropologia significa literalmente o estudo do homem (a palavra vem do grego anthropos, que significa homem, e logos, que</p><p>significa razão, pensamento). A Antropologia surgiu com o intuito de compreender esse homem exótico de forma global, ou seja,</p><p>sua arte, economia, religião, seu pensamento, parentesco, sua alimentação, cultura material etc.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 4/48</p><p>A Antropologia Cultural pode ser definida como a ciência que está interessada nos aspectos culturais dos grupos e sociedades e</p><p>em suas consequências no comportamento individual e coletivo. Sendo assim, ela reflete sobre o homem, principalmente, a</p><p>partir do conceito de cultura.</p><p>Índios Pataxó, Porto Seguro, Brasil.</p><p>Já a Antropologia da Alimentação, o que ela estuda?</p><p>Ela se ocupa justamente das dimensões culturais da alimentação. Para melhor compreender este ponto, vamos refletir</p><p>primeiramente sobre a centralidade da alimentação em nossas vidas a partir de algumas questões. Por que comemos? O que</p><p>comemos? Como comemos e como preparamos os alimentos? Esta última ideia de modalidade inclui também questões como:</p><p>a que horas comemos? Com quem comemos? Onde comemos?</p><p>Necessidade física</p><p>A primeira coisa que nos vem à cabeça quando pensamos sobre o porquê de nos alimentarmos é que o ato de se nutrir é</p><p>uma necessidade fisiológica primordial. Não é surpreendente que a metáfora bíblica para a sobrevivência seja “o pão nosso</p><p>de cada dia”. A alimentação também está diretamente ligada à saúde humana, como nos diz a ciência nutricional. Comer é</p><p>uma necessidade, mas, diferentemente de respirar, o homem precisa buscar seus alimentos.</p><p>Prazer</p><p>No entanto, esse não é o único motivo que nos leva a comer. Podemos refletir também sobre a questão do gosto. Conforme</p><p>Carneiro (2003), a alimentação está diretamente ligada ao prazer; às associações que encontramos entre a comida e o sexo</p><p>nas mais variadas culturas, pensando somente no vocabulário, confirmando essa relação entre comida, desejo e prazer.</p><p>É interessante observarmos que, se o homem em algum momento de sua história precisou lutar para encontrar alimentos,</p><p>atualmente ele enfrenta a balança: ele luta para não comer. A obesidade já é um problema de saúde pública maior que a</p><p>desnutrição. Se atualmente produzimos tantos alimentos quanto jamais o fizemos, também convivemos, muitas vezes, com o</p><p>desperdício e o consumo pletórico de alimentos, a fome e a desnutrição.</p><p></p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 5/48</p><p>Toda a arte da Gastronomia é desenvolvida a partir do prazer e do desejo. Por outro lado, a alimentação está ligada de outras</p><p>formas à dimensão psicológica dos homens. Muitas vezes comemos, por exemplo, por estarmos ansiosos ou tristes.</p><p>Re�exão</p><p>Quem nunca “assaltou” a geladeira exageradamente depois de um mau dia? Essa conexão entre alimentação e a psicologia</p><p>humana também pode ser percebida nos transtornos do comportamento alimentar, tais como anorexia, bulimia e alimentação</p><p>compulsiva.</p><p>Ainda temos outros motivos para comer. Se não vemos algum amigo há muito tempo, o que fazemos? Se queremos comemorar,</p><p>festejar, o que fazemos?</p><p>Partilhamos a mesa com outros comensais em refeições que podem ser mais ou menos festivas, a dita comensalidade, ou o ato</p><p>de comermos juntos. Na Antropologia da Alimentação, falamos em função social da refeição.</p><p>Se pensamos no que comemos, alguns podem responder: comida! Mas será que todos consideram aquilo que é potencialmente</p><p>ingerível como comida?</p><p>Bife - Hinduísta</p><p>Um bife suculento é um horror para um hinduísta e para um budista, já que, para os hinduístas, a vaca é um animal sagrado e</p><p>para os budistas não devemos comer nenhum animal.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 6/48</p><p>Larvas fritas - orientais e indígenas</p><p>Um</p><p>seus objetivos.</p><p>Vamos praticar alguns conceitos?</p><p>Questão 1</p><p>Leia o trecho da música de Gonzaguinha O Preto que Satisfaz (Feijão Maravilha)</p><p>Dez entre dez brasileiros preferem feijão</p><p>Esse sabor bem Brasil</p><p>Verdadeiro fator de união da família</p><p>Esse sabor de aventura</p><p>O famoso Pretão Maravilha</p><p>Faz mais feliz a mamãe, o papai</p><p>O filhinho e a filha.</p><p>Essa estrofe faz alusão a quais conceitos respectivamente?</p><p>Parabéns! A alternativa D está correta.</p><p>Os dois primeiros versos falam sobre a preferência dos brasileiros em relação ao feijão e como ele é “um sabor bem Brasil”,</p><p>o que faz referência à importância do feijão na construção da identidade cultural do brasileiro. Já a terceira estrofe fala</p><p>sobre a união da família ao comerem juntos o feijão, logo refere-se à comensalidade.</p><p>A Comensalidade e modos à mesa.</p><p>B Comensalidade e identidade cultural.</p><p>C Identidade cultural e modos à mesa.</p><p>D Identidade cultural e comensalidade.</p><p>E Identidade social e modos à mesa.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 37/48</p><p>Questão 2</p><p>Comem muito e com grande avidez e, apesar de embebidos em sua tarefa, ainda acham tempo para fazer grande bulha. A</p><p>altura da mesa faz com que o prato chegue ao nível do queixo; cada qual espalha seus cotovelos ao redor e, colocando o</p><p>pulso junto à beirada do prato, faz com que, por meio de um movimento hábil, o conteúdo todo se despeje na boca. Por</p><p>outros motivos além deste, não há grande limpeza nem boas maneiras, durante a refeição; os pratos não são trocados,</p><p>sendo entregues ao copeiro segurando-se o garfo e a faca em uma mesma mão; por outro lado, os dedos são usados com</p><p>tanta frequência como o próprio garfo. (Extraído de LUCCOCK, J. As refeições no Rio de Janeiro, princípio do século XIX. In:</p><p>CÂMARA CASCUDO, L. Antologia da Alimentação no Brasil. Rio de Janeiro: Livros Técnico e Científicos, 1977)</p><p>O trecho cima refere-se:</p><p>Parabéns! A alternativa B está correta.</p><p>O cronista está claramente falan do da forma como os brasileiros se comportam à mesa.</p><p>A à relação entre gênero e alimentação.</p><p>B aos modos à mesa.</p><p>C à construção social do gosto.</p><p>D às comidas afetivas.</p><p>E à construção social do sabor.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 38/48</p><p>3 - Signi�cados simbólicos</p><p>Ao �nal deste módulo, você será capaz de reconhecer os signi�cados simbólicos nas práticas de alimentação.</p><p>Comida afetiva e memória gustativa</p><p>Os sentimentos atrelados ao alimento</p><p>O que são as comidas afetivas?</p><p>De acordo com Garcia (1997), sabemos que a comida, por ter como ponto de partida o universo doméstico de cada um, tem</p><p>significados afetivos. Mesmo os mais desgarrados têm lembranças relacionadas a momentos de refeições em família e/ou de</p><p>pratos para ocasiões especiais ou para o almoço de domingo que eram feitos por uma tia ou uma avó.</p><p>A história pessoal ilustra bem a questão das comidas afetivas e da memória gustativa. Essa memória é</p><p>aquela que surge muitas vezes involuntariamente quando sentimos um gosto ou um cheiro que nos remete</p><p>ao passado (CORÇÃO, s.d.). Por um instante, aquela sensação nos faz voltar a um momento familiar e</p><p></p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 39/48</p><p>promove uma verdadeira viagem no tempo. Viagem para o acolhimento que proporciona uma refeição em</p><p>família ou o carinho gostoso que foi feito só para agradar.</p><p>Na atualidade, podemos nos perguntar que memórias serão guardadas das comidas afetivas no futuro e quem vai saber fazer as</p><p>receitas de família. Com a correria do dia a dia, a mãe ou a avó não tem mais tempo para cozinhar para a família. Então, elas</p><p>lançam mão de todo os aparelhos eletrônicos, de comidas prontas e semiprontas, comidas delivery e tudo que possa facilitar</p><p>suas vidas e alimentar as famílias. Ora, sabemos que, em um país como o Brasil, que tem uma desigualdade enorme, muitas</p><p>mulheres passam seu tempo de folga cozinhando o trivial para a família se alimentar quando ela está ausente.</p><p>Nesses casos, aquela receita especial da família será talvez perdida. Se considerarmos que as tradições culinárias de um povo</p><p>são fundamentais para a sua identidade cultural, esse saber fazer torna-se um patrimônio imaterial daquela sociedade. Já temos</p><p>desde o ano de 2000 um livro de Registro de Patrimônios Imateriais do IPHAN, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico</p><p>Nacional. Até então, somente se podia tombar patrimônios culturais materiais.</p><p>Curiosidade</p><p>O modo tradicional de fazer o acarajé baiano foi o primeiro inscrito nesse livro em 2005. O esforço para cozinhar e transmitir</p><p>receitas para os seus descendentes é uma maneira de preservar as tradições e a identidade cultural não somente de uma</p><p>família, mas de um povo.</p><p>Fique atento às receitas da família e, se puder, faça um livro de receitas. Um membro da família que vem a falecer sem ter</p><p>transmitido esses saberes é como um livro de receitas afetivas que se queima.</p><p>Por outro lado, essa perda de receitas vem se juntar a outra teoria sobre a alimentação contemporânea, a homogeneização do</p><p>gosto. Esta teoria diz que, em um contexto de alto consumo de produtos industrializados e comidas prontas, há uma tendência à</p><p>pasteurização ou à homogeneização do gosto. Todas as salsichas de uma lata têm o mesmo gosto, assim como todos os</p><p>iogurtes daquele sabor e marca e todos os biscoitos de um pacote. As lasanhas e pizzas prontas, as latas de feijoada,</p><p>igualmente.</p><p>Essa realidade não se aplica ao caso brasileiro. Mesmo que haja um aumento no consumo de produtos industrializados, ainda</p><p>temos o hábito de comprar os ingredientes e fazer a comida em casa, na medida do possível. Nós, no sentido contrário da</p><p>pressão que a indústria e suas publicidades fazem, ainda temos uma gramática tradicional da refeição: arroz, feijão, alguma</p><p>proteína e algum legume ou verdura. Mesmo se comermos fora, vamos buscar na maior parte das vezes um PF – prato feito –</p><p>em um botequim ou uma comida mais caseira em um restaurante a quilo.</p><p>A construção do gosto</p><p>Tipos de gosto</p><p>O gosto é algo bastante complexo. Já houve diferentes teorias sobre como ele funciona fisiologicamente. A tese do mapa de</p><p>língua durou do século XIX até o século XX. Segundo ela, diferentes regiões da língua sentiam diferentes gostos, mas ela já foi</p><p>desacreditada.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 40/48</p><p>O gosto se dá em uma interação entre as substâncias do que estamos comendo e os botões gustativos que cobrem a língua e o</p><p>palato mole. Além dos sabores que já conhecemos, doce, salgado, amargo e azedo, temos o umami e o alcaçuz.</p><p>O umami, um sabor definido pelos japoneses, está presente no peixe, no tomate e no queijo parmesão, mas ele não tem uma</p><p>equivalência na nossa cultura alimentar, o que faz com que ele seja muito difícil de descrever (MARQUES, 2015). Já o alcaçuz é</p><p>uma raiz de sabor forte com a qual se faz um doce comum na Europa e, na verdade, é outro nome da planta regaliz.</p><p>Saiba mais</p><p>No Portal Umami, há um passo a passo que ensina como reconhecer o sabor do umami.</p><p>Atualmente, já se sabe que o sabor envolve o gosto, mas também os estímulos do cheiro, a percepção das formas e a sensação</p><p>tátil na boca (Id.). Comemos com os olhos também. Além de ser o principal determinante das escolhas alimentares, o gosto</p><p>também tem uma determinação genética. Há estudos que falam que até 40% do paladar seria geneticamente determinado.</p><p>Então, sim, a couve é mais amarga para uns do que para outros, e o gosto do alho e do café também mudam (DONAHUE, 2018).</p><p>O gosto vai além do dado fisiológico. Ele é culturalmente construído. Aprendemos a comer determinadas coisas, certas misturas</p><p>desde pequenos, e vamos nos habituando a elas, mas o gosto também tem um componente que é totalmente pessoal.</p><p>Gênero e alimentação</p><p>Relações e o ato de se alimentar</p><p>As relações</p><p>entre gênero e alimentação são velhas conhecidas de todos nós. A mulher sempre foi aquela, desde a Pré-História,</p><p>que cuida e prepara o alimento. Entre dois e quatro milhões de anos atrás, os homens teriam inventado a divisão sexual do</p><p>trabalho. Enquanto os homens caçavam, as mulheres coletavam, cozinhavam e cuidavam das crianças (CARNEIRO, 2003).</p><p>Mesmo que muita coisa tenha mudado desde então, as mulheres continuam sendo as detentoras dos saberes sobre as práticas</p><p>culinárias. Já falamos sobre as receitas, um patrimônio imaterial, e como são transmitidas sobretudo entre mulheres. Durante</p><p>muito tempo, a cozinha foi considerada, e continua sendo atualmente, um território feminino.</p><p>As tarefas domésticas cotidianas das mulheres foram durante muito tempo a maior fonte de construção das identidades de</p><p>gênero femininas. No entanto, esse trabalho ainda é desvalorizado e visto como algo repetitivo e monótono. Mesmo nos</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 41/48</p><p>dias atuais, com as mulheres trabalhando em tempo integral, elas ainda realizam a maior parte das tarefas domésticas.</p><p>Demerteco (2015) analisa livros e cadernos de receita de Curitiba na primeira metade do século XX.</p><p>Ela comenta que as próprias mulheres consideravam esses trabalhos como pouco importantes, mas se sentiam orgulhosas</p><p>de preparar comidas saborosas para sua família.</p><p>Assunção (2013) fez seu trabalho sobre alimentação e relações familiares no Morro do Caixa, uma comunidade que fica na</p><p>cidade de Tubarão, em Santa Catarina. Em um primeiro momento, as mulheres não conseguiam compreender o porquê do</p><p>interesse da pesquisadora em um tema tão banal. O que sugere, a princípio, que esse assunto não é importante, a mesma forma</p><p>de pensar de outras mulheres 50 anos antes. Para as mulheres desse lugar, o cozinhar só faz sentido se a comida é feita para</p><p>outra pessoa. Conhecer as receitas e as preferências alimentares dos membros da família confere a essas mulheres certo poder.</p><p>No entanto, enquanto as mulheres ficam com a barriga no fogão, o glamour da cozinha fica para os grandes chefs, que são, na</p><p>sua maioria, homens. Quando o assunto é cozinhar para a família cotidianamente, a tarefa é monótona e repetitiva, mas, quando</p><p>se trata de usar a criatividade, aí é a vez dos homens.</p><p>Dória (2012) nos conta que, já na Idade Média, a divisão tradicional do trabalho foi mudando. Na França, a preparação de</p><p>alimentos vai sendo passada para os homens. Claro que eles trabalham na rua vendendo seus produtos, como os padeiros, os</p><p>que fazem frios como presunto etc.</p><p>No século XIX, surge a figura do chef, profissão destinada aos homens, obviamente. Se temos atualmente chefs mulheres</p><p>famosas, os maiores entre eles seguem sendo homens. Na Idade Moderna, os homens são os cozinheiros dos nobres, e são os</p><p>que vão trabalhar nos restaurantes que surgem. Até os livros de culinária são escritos por eles.</p><p>Atenção!</p><p>O profissional da área de Nutrição deve ficar atento e sempre procurar ter interlocução privilegiada com as mulheres da família,</p><p>pois ainda são elas que, na maior parte das vezes, ocupam-se da alimentação da família.</p><p>Outra questão relativa ao gênero é que as mulheres são as que tomam as decisões em casa sobre o que se vai comer. Mas, no</p><p>poder público, são sub-representadas, sendo os homens que tomam todas as decisões sobre as políticas relacionadas aos</p><p>alimentos, que dizem respeito diretamente às mulheres (COELHO, 2005).</p><p>Vamos terminar esta seção falando de enfermidades que são culturalmente localizadas e que afetam sobretudo as mulheres: os</p><p>Transtornos do Comportamento Alimentar (TCA).</p><p>Esses transtornos estão ligados à autoimagem e se traduzem pelo medo excessivo de engordar. Eles se</p><p>desenvolvem sobretudo em mulheres jovens. Mesmo se essas doenças já existiam, sua incidência tem</p><p>aumentado muito (OLIVEIRA; HUTZ, 2010).</p><p>Há uma perversão em relação aos padrões de beleza do corpo feminino.</p><p></p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 42/48</p><p>Idade Média</p><p>Na Idade Média e na Renascença, a opulência corporal era sinônimo de opulência econômica, e o corpo mais robusto era o</p><p>mais belo. Nessa época, os mais pobres tinham muitas dificuldades em comer de forma conveniente, logo eram magros e</p><p>considerados feios.</p><p>Atualmente</p><p>Atualmente, quando há excesso de alimentos, pelo menos em uma grande parte da população o corpo belo é o corpo</p><p>magro. A mulher magra é disciplinada, sabe se cuidar; enquanto as obesas sofrem preconceito e são consideradas</p><p>relaxadas, sem força de vontade.</p><p>Como vimos, o sujeito é responsabilizado pela sua doença, em desconsideração a todos os demais fatores, e “só é gordo quem</p><p>quer” (KRAEMER et al., 2014). Enquanto a indústria da beleza impulsiona a um ideal corporal que sequer existe, pois muitas das</p><p>imagens são manipuladas, a indústria alimentar faz produtos cada vez mais calóricos, gordurosos e deliciosos.</p><p>Atenção!</p><p>Os TCA são doenças graves, muitas vezes fatais, e que podem deixar sequelas. Podem fazer adoecer toda uma família, tal qual a</p><p>dependência química. São problemas que têm um componente cultural muito forte e que são muito influenciados pela mídia.</p><p>Comida e sexo</p><p>O prazer associado à alimentação</p><p>Em muitas línguas, o vocabulário relativo ao sexo e à alimentação se assemelha. Desde a inocente lua de mel até o se lambuzar</p><p>no ato sexual, as associações são muitas. Aqui no Brasil, o verbo comer refere-se também à cópula, passando pelo “gostoso(a)”.</p><p>O vocabulário amoroso se entrelaça constantemente com o gastronômico [...] implícito nas</p><p>expressões “pele de pêssego”, “olhos amendoados” ou “cor de avelã”, “boca de cereja”, “lábios</p><p>polpudos”, “formas apetitosas”, sem esquecer a “lua de mel” que, tantas vezes, acaba com o</p><p>“caldo entornado”.</p><p>(NASCIMENTO apud AZEVEDO, 2017).</p><p></p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 43/48</p><p>Não podemos esquecer as mais variadas mulheres frutas aqui no Brasil, que reforçam a associação entre sexo e comida, o</p><p>primeiro é fundamental para a sobrevivência da espécie e o outro imprescindível para a sobrevivência do indivíduo. Duas</p><p>necessidades banais e essenciais que estão do lado da reprodução biológica. Os dois polos do prazer e do desejo. Talvez por</p><p>isso mesmo tenhamos inventado um enorme edifício simbólico para significar ambos com uma séria de regras, valores, crenças,</p><p>preferências, rejeições, medos.</p><p>Falta pouco para atingir seus objetivos.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 44/48</p><p>Vamos praticar alguns conceitos?</p><p>Questão 1</p><p>Sabores de infância: a comida que lembra os tempos de criança. Quando levou à boca a primeira garfada de “ratatouille” –</p><p>um refogado de vegetais tradicional da França – o crítico gastronômico Anton Ego até se esqueceu de que estava ali, à</p><p>mesa, para avaliar o restaurante que acabava de lhe servir aquele prato. De repente, aquele sabor fez o mundo parar, e ele</p><p>pôde se sentir novamente o menino que, depois das brincadeiras, chegava em casa para a refeição, ganhava um afago da</p><p>mãe e comia o “ratatouille” feito por ela com amor. De repente, ele não era mais um adulto ranzinza; era o garoto protegido</p><p>pelos carinhos culinários da mãe. Fonte: Acervo Museu da Pessoa.</p><p>O texto acima faz referência a qual conceito?</p><p>Parabéns! A alternativa C está correta.</p><p>A memória gustativa é justamente quando um sabor nos traz alguma lembrança forte.</p><p>Questão 2</p><p>Ofício das Baianas de Acarajé:</p><p>“Este bem cultural de natureza imaterial, inscrito no Livro dos Saberes em 2005, é uma prática tradicional de produção e</p><p>venda, em tabuleiro, das chamadas comidas de baiana, feitas com azeite de dendê e ligadas ao culto dos orixás,</p><p>amplamente disseminadas na cidade de Salvador, Bahia. Dentre as comidas de baiana, destaca-se o acarajé, bolinho de</p><p>feijão-fradinho preparado de maneira</p><p>artesanal, na qual o feijão é moído em um pilão de pedra (pedra de acarajé), temperado</p><p>e, posteriormente, frito no azeite de dendê fervente. Sua receita tem origens no Golfo do Benim, na África Ocidental, tendo</p><p>sido trazida para o Brasil com a vinda de escravos dessa região.” Fonte: IPHAN.</p><p>A Construção social do gosto.</p><p>B Função social da refeição.</p><p>C Memória gustativa.</p><p>D Real da alimentação.</p><p>E Memória social.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 45/48</p><p>O ofício das Baianas de Acarajé foi o primeiro Patrimônio Cultural Imaterial a ser inscrito no Livro dos Saberes. Por que ele</p><p>tem esse status?</p><p>Parabéns! A alternativa C está correta.</p><p>O que faz com que algo que faça parte da cultura material ou imaterial seja considerado um patrimônio cultural é sua</p><p>importância nas tradições e na identidade cultural de um povo.</p><p>Considerações �nais</p><p>Neste conteúdo, vimos os aspectos simbólicos da alimentação e como não podemos pensar os alimentos somente em termos</p><p>de nutrientes, fora do contexto social e cultural no qual eles se encontram. O nutricionista deve sempre estar atento aos</p><p>múltiplos significados que seus pacientes ou seu público-alvo dão aos alimentos, sob pena de não ser um profissional ético e</p><p>competente.</p><p>Vimos no módulo 1 que, além do aspecto real, que diz respeito às caraterísticas nutricionais e organolépticas dos alimentos, os</p><p>grupos e indivíduos moldam seus hábitos alimentares segundo o imaginário simbólico construído pela sua sociedade. O que</p><p>comer, quando, com quem, antes de que, depois de que, preparado por quem são consequências desses significados simbólicos</p><p>que os homens atribuem aos alimentos.</p><p>Vimos no módulo 1 que, além do aspecto real, que diz respeito às caraterísticas nutricionais e organolépticas dos alimentos, os</p><p>grupos e indivíduos moldam seus hábitos alimentares segundo o imaginário simbólico construído pela sua sociedade. O que</p><p>comer, quando, com quem, antes de que, depois de que, preparado por quem são consequências desses significados simbólicos</p><p>que os homens atribuem aos alimentos.</p><p>A Porque o acarajé é uma comida afetiva para a maior parte dos baianos.</p><p>B Porque o acarajé é uma comida religiosa para a população da Bahia.</p><p>C Porque o acarajé faz parte das tradições e constrói a identidade cultural dos baianos.</p><p>D Porque o acarajé faz alusão à construção do gênero feminino.</p><p>E Porque o acarajé faz alusão à construção do gênero masculino</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 46/48</p><p>No módulo 2, observamos como a alimentação é fonte de pertencimento e de identificação. Discutimos também sobre como o</p><p>fato de se sentar junto à mesa estabelece e reforça os mais variados vínculos entre os comensais. Discutimos igualmente sobre</p><p>as mudanças que estão ocorrendo na comensalidade atualmente e como os modos à mesa são regras muito importantes que</p><p>regem a forma de se abordar o alimento e de se comportar em uma refeição.</p><p>No módulo 3, vimos os significados das práticas de alimentação sob vários aspectos. Falamos sobre como o ato de comer</p><p>desperta em nós diversos afetos; como certas comidas nos remetem a situações e memórias, como elas são parte da nossa</p><p>história. As receitas e os modos de fazer comida de uma família são parte do patrimônio imaterial daquele povo, por isso,</p><p>deveríamos tentar não perder as receitas de família e o hábito de cozinhar juntos. Nestes tempos, em que corremos tanto e mal</p><p>temos tempo de comer, quanto mais de cozinhar e ensinar, é necessário um esforço para mantermos esse patrimônio.</p><p>Seguimos com a construção do gosto e suas variadas facetas e, depois, tratamos da discussão sobre gênero e alimentação e o</p><p>quanto é a mulher que efetivamente se ocupa da alimentação e da saúde da família, sendo assim a melhor interlocutora do</p><p>nutricionista.</p><p>Fechamos discorrendo sobre as associações entre comida e sexo e como esses dois polos do prazer humano tão necessários à</p><p>nossa sobrevivência deram origem a tantos significados distintos.</p><p>Podcast</p><p>No podcast a seguir, veremos um breve resumo sobre o tema.</p><p></p><p>Explore +</p><p>Pesquise na internet e assista aos seguintes documentários:</p><p>Programa Multiponto Alimentação, Cultura e Identidade, que se encontra no site do repositório digital da UFRGS.</p><p>Comida e Afetos reunidos em um documentário, produzido pelo portal de jornalismo da ESPM.</p><p>Comida como cultura, uma reportagem especial que faz parte de um projeto desenvolvido no município de Peritiba, que resgata</p><p>culturas e modos de vida.</p><p>Leia as indicações:</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 47/48</p><p>DÓRIA, C. Flexionando o gênero: a subsunção do feminino no discurso moderno sobre o trabalho culinário. Cadernos Pagu</p><p>(39):251-271, 2012.</p><p>KRAEMER, F. et al. O discurso sobre a alimentação saudável como estratégia de biopoder. Rio de Janeiro: Physis Revista de</p><p>Saúde Coletiva, 24 (4): 1337-1359, 2014.</p><p>Referências</p><p>ALTHOFF, G. Comer Compromete: refeições, banquetes e festas. In: FLANDRIN, J.; MONTANARI, M. (org.). História da</p><p>Alimentação. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 300-310.</p><p>ASSUNÇÃO, V. Comida de mãe: notas sobre alimentação e relações familiares. In: XXVI Reunião Brasileira de Antropologia, 2013,</p><p>Porto Seguro, Bahia, Brasil.</p><p>AZEVEDO, E. Alimentação, sociedade e cultura: temas contemporâneos. Sociologias, Porto Alegre, ano 19, n. 44, , p. 276-30</p><p>jan/abr 2017. Consultado em: 01 set. 2020.</p><p>BARBOSA, L. Feijão com arroz e arroz com feijão: o Brasil no prato dos brasileiros. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano</p><p>13, n. 28, p. 87-116, jul./dez. 2007.</p><p>BOOG, M; ALVES, H. Representações sobre o consumo de frutas, verduras e legumes entre fruticultores de zona rural. Rev. Nutr.,</p><p>Campinas, 21(6):705-715, nov./dez., 2008.</p><p>BUENO, E. Brasil: uma história. Cinco séculos de um país em construção. Rio de Janeiro: Leya, 2012.</p><p>CÂMARA CASCUDO, L. História da Alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004.</p><p>CARNEIRO, H. Comida e Sociedade: Uma História da Alimentação. 6.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.</p><p>COELHO, C. História e Antropologia da Nutrição. Rio de Janeiro: SESES, 2015.</p><p>COIMBRA, C. Estudo de Ecologia Humana entre os Suruí do Parque Indígena Aripuanã, Rondônia. Aspectos Alimentares.</p><p>Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, série Antropologia 2(1) 57-87, 1985.</p><p>CORÇÃO, M. Memória gustativa e identidades: de Proust à Cozinha Contemporânea. Disponível em</p><p>http://www.historiadaalimentacao.ufpr.br/grupos/textos/memoria_gustativa . Acesso 03 abr. 2015.</p><p>CULTURA e Gastronomia. Dossiê Cultura e Gastronomia. Cult. São Paulo, 198,16-18, fev. 2015.</p><p>DA MATTA, R. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.</p><p>DANIEL, J.; CRAVO. V. Valor Social e Cultural da Alimentação. In: CANESQUI, A. M.; GARCIA, R. W. D. (Org). Antropologia e</p><p>Nutrição: Um diálogo possível. Rio de Janeiro: ABRASCO, 2005.</p><p>DEMERTECO, S. De mãe para filha: livros e cadernos de recitas familiares testemunham hábitos e afetos femininos em torno da</p><p>cozinha. Revista de História da Biblioteca Nacional. Decifrando o ato de comer. Ano 10, 115, 34-35, abril 2015.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 48/48</p><p>Material para download</p><p>Clique no botão abaixo para fazer o download do conteúdo completo em formato PDF.</p><p>Download material</p><p>O que você achou do conteúdo?</p><p>Relatar problema</p><p>javascript:CriaPDF()</p><p>punhado de larvas fritas pode parecer repugnante para alguns, mas é uma iguaria para orientais, muitos indígenas</p><p>brasileiros, peruanos e mexicanos, entre outros. Os insetos são muito apreciados por alguns, inclusive aqui no Brasil, com as</p><p>farofas de tronco da formiga saúva tanajura, também conhecida como içá, mas são considerados nojentos para outros.</p><p>Steak Tartare - Franceses</p><p>Os americanos nunca se decidiram a comer os fofinhos coelhos, enquanto os franceses adoram esses animais e ainda</p><p>comem carne de cavalo crua no Steak Tartare, assim como em alguns lugares da Itália, onde não se dispensa um bom ragout</p><p>de cavalo.</p><p>Todos esses exemplos demonstram que aquilo que é considerado comida varia enormemente de acordo com o grupo dos</p><p>indivíduos.</p><p>Os indivíduos se distinguem por aquilo que comem. Nós nos diferenciamos de outros povos nesse quesito; em sociedades</p><p>divididas em classes como a nossa, as diferenças entre essas classes são criadas e mantidas por meio do que se come, de</p><p>como se come. A alimentação funciona a favor desse mecanismo de distinção, desse modo de distinguir pessoas de classes</p><p>sociais diferentes. Resumindo: o que comemos depende de muitos fatores.</p><p>Em relação à última questão, como comemos e como preparamos os alimentos? Comemos todos do mesmo jeito?</p><p>Evidentemente, não. Comemos certas coisas com garfos, facas ou colheres e outras com as mãos. Comemos sentados em uma</p><p>mesa com amigos ou familiares em nossa casa, ou em um restaurante, mas também comemos solitários andando pela rua ou</p><p>de frente para a TV ou para o computador.</p><p>Muitos orientais usam o hachi para comer e, em alguns lugares da África, todos comem com a mão no mesmo prato. Em</p><p>algumas sociedades, come-se no chão; em outras, homens, mulheres e crianças não comem juntos, nem ao mesmo tempo. Já</p><p>em alguns momentos e situações na Antiguidade, comia-se recostado.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 7/48</p><p>Menina indiana comendo com a mão.</p><p>Come-se também de forma diferente nos diferentes estratos sociais. Podemos ter uma mesa simples onde todos comem com</p><p>colheres somente ou com a mão, e uma outra com inúmeros talheres, pratos e copos de todo os tipos somente para uma</p><p>refeição. Toda essa parte relacionada à alimentação na Antropologia da Alimentação é chamada de modos à mesa, que variam</p><p>enormemente entre os povos e sociedades.</p><p>Podemos ver então que a alimentação é um ótimo caminho para pensarmos sobre o ser humano, uma vez que ela engloba</p><p>dimensões fisiológicas, psicológicas, socioculturais e econômicas.</p><p>Por este motivo, é que falamos em Antropologia da Alimentação.</p><p>A nutrição refere-se aos aspectos �siológicos da alimentação, mas a alimentação vai além desses</p><p>aspectos. Os fenômenos ligados à alimentação vão além dos nutrientes, mesmo que sempre seja</p><p>estabelecido um diálogo entre as dimensões culturais e a nutrição.</p><p>E a História da Alimentação? Não é necessário falar tão longamente sobre a disciplina de História, pois você já a conhece bem,</p><p>desde os seus primeiros anos de estudo. Por que estudar tudo isso?</p><p>Comentário</p><p>Quando você estiver diante de seu paciente, ou quando você for planejar o menu semanal de uma escola, empresa ou de um</p><p>hospital, você não estará diante de um aparelho digestivo, e sim de uma pessoa que possui, além do seu histórico médico, uma</p><p>história de vida, crenças e valores acerca dos alimentos e da sua saúde, ou seja, uma pessoa que é um universo único.</p><p>Para ser eficiente como um profissional da área da saúde, você deve compreender que quem está no centro desse processo é o</p><p>seu paciente ou seu público-alvo. As ações devem se adaptar aos pacientes para que haja uma efetiva mudança de</p><p>comportamento no sentido da promoção da saúde. A postura do nutricionista deve ser sempre a de orientar, respeitando as</p><p>particularidades culturais e pessoais dos indivíduos. O olhar sobre as diferenças deve ser generoso e ético.</p><p>Exemplo</p><p>Uma paciente vegetariana foi a um nutricionista procurando auxílio na fase de transição, porém o nutricionista a desaconselhou</p><p>sobre ser vegetariana. Ela foi embora bem chateada e procurou outro profissional. Cabe a um nutricionista aconselhar seu</p><p>paciente a não seguir determinada filosofia alimentar pela qual ele já havia decidido? De modo algum! Nesse caso, ele também</p><p>deveria aconselhar sobre qual religião ou namorado a pessoa deveria escolher. O paciente vegetariano pode ser um desafio para</p><p>o nutricionista, mas cabe a ele orientá-lo dentro da sua escolha de maneira ética e comprometida.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 8/48</p><p>O Real, o Simbólico e o Imaginário na psicanálise de Lacan</p><p>Quando falamos em real, simbólico e imaginário da alimentação, estamos na realidade fazendo referência a uma classificação</p><p>que é oriunda da psicanálise de Lacan. Vamos explorar de forma bem suscinta e simplificada o significado desses termos no</p><p>pensamento do ilustre doutor. Grosso modo, de acordo com Macarini (s.d.), que trata o assunto de modo compreensível, o real</p><p>seria aquilo que descrevemos com palavras, aquilo que existe antes de nós e que não depende de nós.</p><p>O simbólico será resultado da maneira como construímos e como isso vai moldar a forma com que nos relacionamos com os</p><p>demais. Interpretamos o mundo, as palavras, os sons, o que vemos, transformando-os em símbolos que lhes atribuem</p><p>significados. Esses termos são amplamente discutidos pela Filosofia e por outras ciências, como a Antropologia e a História,</p><p>além da Psicanálise.</p><p>O real da alimentação</p><p>O real da alimentação refere-se a todos os aspectos relacionados à ciência da nutrição, ou seja, qual é a composição nutricional</p><p>deste alimento, como é obtido no processo de produção e suas consequências na saúde da população e dos indivíduos. Mas o</p><p>real também se refere às características ditas organolépticas do item alimentar ou da preparação, ou seja, tudo aquilo que diz</p><p>respeito a nossos sentidos, aparência, odor, textura e sabor.</p><p>Preparação</p><p>Quando falamos em preparação, estamos nos referindo a um prato preparado, que pode tanto ser uma salada como um</p><p>coelho à caçadora.</p><p>Item alimentar</p><p>Já quando falamos de item alimentar, pode ser uma fruta, um chocolate ou um legume.</p><p>Há quem vá se manifestar e dizer que comida real ou comida de verdade são alimentos in natura ou levemente processados,</p><p>como os que são adeptos do Real Food (REAL, s.d.), uma tendência alimentar que preza por uma alimentação saudável e pela</p><p>sustentabilidade ambiental. Mas, de acordo com o significado que estamos discutindo aqui, uma lata de sardinha ou um pacote</p><p>de batatas fritas é tão real quanto uma fruta.</p><p>Exemplo</p><p>Vamos dar alguns exemplos sobre o real da alimentação. Uma salada é uma preparação que pode variar nos seus ingredientes,</p><p>mas a nossa salada é feita de folhas verdes como alface e rúcula, pepino sem casca e pimentão verde cru e um molho caseiro</p><p>de iogurte natural comum. É uma comida com poucas calorias, as verduras e legumes têm algumas proteínas, fibras, sais</p><p>minerais e vitaminas e poucas calorias. O iogurte pode ser integral ou desnatado e contém várias vitaminas e nutrientes. Outro</p><p></p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 9/48</p><p>exemplo é o de algumas sardinhas de uma lata em molho de tomate. A sardinha não é muito calórica e possui vários nutrientes</p><p>entre vitaminas e minerais.</p><p>O simbólico da alimentação</p><p>A alimentação e os seus aspectos simbólicos</p><p>No video a seguir, vamos conferir a experiência de uma historiadora especialista na área de alimentos.</p><p>Segundo Lenclud (1992), o simbólico é uma característica de todas as culturas, que é atribuir significado ao mundo. Já o</p><p>simbólico da alimentação refere-se justamente a todos os significados que atribuímos aos alimentos. É importante sinalizar que</p><p>esses significados variam de cultura para cultura.</p><p>Vamos aos nossos exemplos anteriores.</p><p>Exemplo</p><p>Para alguém que deseja ficar em forma e vive em um grande centro urbano, a salada pode ser considerada um ótimo alimento,</p><p>pois é leve e saudável e não engorda. Além disso, faz bem para o intestino, pois o iogurte contém probióticos. Nesse caso, ela já</p><p>atribui vários significados a essa preparação.</p><p>Vimos que o significado real fica no registro da ciência da Nutrição. Por outro lado, o pepino, ainda mais sem casca, assim como</p><p>o pimentão verde cru, dependendo da sensibilidade da pessoa, não são leves e podem dificultar a digestão e provocar azia. E</p><p>somente alguns iogurtes contém probióticos, pois possuem os organismos que sobrevivem aos ácidos do estômago e chegam</p><p>vivos aos intestinos. A maioria não tem essa caraterística.</p><p>Outras pessoas já dispensariam a salada. Em algumas ocasiões, nos churrascos, podemos ver pessoas questionando: “Se há</p><p>tanta carne disponível, por que alguém comeria uma salada em uma situação destas?”.</p><p>Nesse caso, o significado atribuído à salada é que ela é algo menos importante que a carne. E, efetivamente, alguns</p><p>trabalhadores do campo, ou mesmo pessoas nos centros urbanos, consideram as saladas como uma comida que não tem</p><p>sustância e não dá força para o trabalho, sendo desvalorizadas (ALVES; BOOG, 2008).</p><p>Portanto, observamos diferentes valores simbólicos que foram dados à mesma preparação. E quanto às sardinhas em lata? Elas</p><p>tanto podem significar um alimento saudável como também podem ser descartadas por ser um produto enlatado, não</p><p>considerado um alimento natural ou de verdade.</p><p>Você pode observar então que os valores simbólicos que conferimos aos alimentos são culturalmente determinados e um</p><p></p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 10/48</p><p>alimento pode nem significar comida, ou seja, não fazer parte da categoria comida, como comentamos acima.</p><p>Aqui, é preciso sua atenção para uma diferença estabelecida pelo antropólogo Roberto DaMatta (1986) entre alimento e comida.</p><p>Alimento</p><p>É toda e qualquer coisa que pode ser ingerida pelos seres humanos.</p><p>Comida</p><p>É aquilo que comemos dentro de casa, a comida de mãe, comida caseira, que comemos na rua, mas é como se fosse a</p><p>comida de casa. Com a comida, temos proximidade.</p><p>O alimento está na prateleira do supermercado; a comida está no prato, quentinha, gostosa, aconchegante. Em uma viagem, se</p><p>ficamos comendo só lanches, depois de algum tempo nos dá vontade de comer uma “comida de verdade”. Isso porque a comida</p><p>é aquele prato que comemos sentados, que está quente, que nos é familiar.</p><p>O imaginário da alimentação</p><p></p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 11/48</p><p>Vamos agora refletir sobre o imaginário na alimentação. Para Baczko (apud ESPIG 2003/2004), o imaginário refere-se a ideias e</p><p>imagens que são coletivamente construídas.</p><p>Quando pensamos em termos de alimentação, o imaginário comporta construções simbólicas sobre os alimentos que são</p><p>amplamente difundidas entre os membros de uma população ou entre os membros de um grupo específico. O que isso</p><p>significa? Que, em grupos ou populações, os significados que fazem parte do imaginário são comuns e frequentes.</p><p>A partir de Perez (1996), falemos de alguns exemplos relativos a um grupo indígena amazônico que pertence ao tronco</p><p>linguístico Tupi e é conhecido como Cinta-Larga. Esses indígenas eram originariamente guerreiros e antropófagos, como</p><p>costumam ser os Tupi.</p><p>Curiosidade</p><p>O nome Cinta-Larga refere-se a uma armadura feita com a casca de uma árvore que os homens usavam nas guerras para</p><p>proteger seus órgãos vitais de flechadas dos inimigos.</p><p>A pesquisa em questão trata do tema da Antropologia da Saúde e da Doença, ou seja, como esses indivíduos enxergam, do</p><p>ponto de vista tradicional, a doença, o mal, o infortúnio, como eles diagnosticam as enfermidades e como as curam. Nesse</p><p>trabalho, também pretendia-se compreender como os profissionais não indígenas da área da saúde que trabalhavam com saúde</p><p>indígena viam os hábitos e costumes dos Cinta-Larga.</p><p>Pois bem, esses colaboradores tinham um imaginário preconceituoso em relação aos hábitos alimentares e de higiene</p><p>tradicionais desse povo. Eles acreditavam que a comida dos indígenas era estranha e preparada sem nenhuma limpeza.</p><p>Também pensavam que eles eram sujos, que não cuidavam nem limpava bem suas crianças etc.</p><p>Para esses agentes, o problema da saúde indígena era a falta de higiene e seus hábitos bizarros. Enquanto o que ocorre</p><p>efetivamente é que a saúde dessa população se deteriorou, sobretudo por conta das doenças trazidas pelos não indígenas e</p><p>pelos hábitos que eles adquiririam com o contato: consumo de açúcar e carboidratos simples, como o arroz. Você pode observar</p><p>dessa forma que o imaginário das populações que estão próximas a esses indígenas é extremamente preconceituoso.</p><p>Os indígenas também têm um imaginário específico em relação aos não indígenas e seus hábitos. No que concerne à</p><p>alimentação, antes mesmo do contato, os agentes da FUNAI jogavam dos aviões sacos de arroz, farinha e açúcar para os Cinta-</p><p>Larga. Essa era uma prática comum na época.</p><p>Saiba mais</p><p>No início do contato e até antes mesmo de ocorrer, houve grande mortalidade dessa população devido à rubéola, uma doença</p><p>que, para os não indígenas, é praticamente incipiente. Os relatos assemelham-se ao Apocalipse, pois eram aldeias inteiras</p><p>mortas pela doença e crianças chorando no colo de suas mães mortas deitadas na rede. Aos que sobreviviam, cabia enterrar a</p><p>enorme quantidade de mortos. Sabemos que esses povos isolados não possuem anticorpos para uma série de doenças comuns</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 12/48</p><p>entre os não indígenas. Esse é um dos motivos pelos quais a FUNAI estabelecia uma política de não entrar em contato com os</p><p>grupos indígenas isolados.</p><p>Difundiu-se entre os Cinta-Larga a ideia de que os sacos de comida que lhes eram lançados pelos aviões da FUNAI estavam com</p><p>comida envenenada, que tinha como objetivo espalhar a doença entre eles. Essa teria sido a causa da grande mortandade. Isso</p><p>vai ao encontro de um imaginário entre os indígenas de que os “brancos” só querem destruí-los e se apossar de suas terras.</p><p>Infelizmente, isso não está longe da realidade, mas, no caso, não era absolutamente a intenção da FUNAI.</p><p>Um exemplo mais próximo é a relação entre os hábitos higiênicos de franceses e brasileiros. O imaginário sobre limpeza é</p><p>bastante diferente entre esses povos.</p><p>Enquanto no Brasil o pão é colocado em um saco de papel, lá os franceses levam sua baguette debaixo do braço, algo que, para</p><p>nós, entende-se que vai sujar o pão e contaminá-lo com a sujeira do corpo.</p><p>Franceses têm o costume de colocar o pão embaixo do braço e pegá-lo com as mãos.</p><p>A quantidade de banhos que tomamos também é vista como um exagero, pois eles afirmam que esse hábito destrói a camada</p><p>de gordura necessária à saúde da pele. Existem os pressupostos científicos de higiene e contaminação, mas a limpeza e a</p><p>sujeira são, antes de tudo, imaginários culturalmente construídos. Os franceses não deixam de ter um pouco de razão em</p><p>relação à pele. Os pediatras brasileiros insistem com as mães de recém-nascidos que o banho com sabão só deve ser dado uma</p><p>vez ao dia. Caso contrário, a mãe poderia prejudicar a saúde da pele do bebê por excesso de lavagens.</p><p>No artigo de Espig (2004), o que a autora nos traz é que a oposição entre real e imaginário é questionável.</p><p>A ideia é que, mesmo o que chamamos de real é de certa maneira construído pelo imaginário. As fronteiras</p><p>entre eles não são rígidas, e sim �exíveis. O real da alimentação é como ela se baseia também na ciência</p><p>da nutrição, em que a ciência também é uma construção.</p><p>Os carboidratos e as calorias são construções abstratas a partir de dados e observações. Não se está dizendo que eles não</p><p>existem, nem invalidando a ciência, mas, sim, que eles somente existem na</p><p>cabeça de homens que inventaram uma ciência.</p><p>Além disso, as verdades científicas são provisórias e não definitivas. Você pode ver isso claramente na ciência da Nutrição, em</p><p>que os itens alimentares passam constantemente de vilões a heróis e vice-versa.</p><p>O real: o corpo-máquina</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 13/48</p><p>Antes de falarmos sobre a forma como o corpo e a doença têm sido caracterizados pela medicina na contemporaneidade,</p><p>vamos compreender uma oposição clássica da Antropologia, aquela entre natureza e cultura. Isso porque o corpo e as doenças</p><p>são vistos por essa medicina como algo que faz parte da natureza. E o que se está defendendo aqui é que ele é também uma</p><p>construção cultural.</p><p>Sobre essa oposição, os antropólogos preocuparam-se primeiramente com tentar compreender em que</p><p>momento o homem teria deixado de ser um ser natural e teria “inventado” a cultura. Para Lévi-Straus</p><p>(2002), um renomado antropólogo francês, o homem teria se separado do mundo natural quando ele</p><p>inventou uma regra que é exclusivamente humana. E que regra seria essa? Pois bem, Lévi-Strauss diz que</p><p>é a proibição do incesto.</p><p>Todos vocês que têm algum animal de estimação sabem muito bem que esse tipo de proibição não existe entre eles. Para ser</p><p>um parceiro sexual, a única coisa necessária é que o indivíduo tenha maturidade sexual e que, no geral, a fêmea esteja</p><p>disponível. O que você pode ver nesse caso é que, em um domínio extremamente natural, que é aquele da sexualidade, o homem</p><p>diz que existem regras. Quais parentes são considerados incestuosos? Isso varia de sociedade para sociedade, mas na</p><p>esmagadora maioria das vezes, pais, irmãos e filhos são vetados à relação sexual. E outros membros da família podem entrar</p><p>nessa proibição também.</p><p>Mas por que com a proibição do incesto o homem “inventa” a cultura?</p><p>Resposta</p><p>Porque ele diz que as relações incestuosas são erradas, são sujas, levam ao caos e, eventualmente, à morte. A partir daí, inventa-</p><p>se um juízo de valor sobre os mais variados eventos. Ao contrário dos animais, os homens criam um ordenamento em que</p><p>existem coisas que são certas e erradas, puras e impuras, sujas e limpas, justas e injustas etc. Esses valores são uma invenção</p><p>exclusivamente humana. Os animais, até onde se sabe, não têm essa visão da existência.</p><p>Podemos dizer que o tubarão é mau porque comeu o peixe ou que o coelho é bonzinho porque só come plantas, mas esses</p><p>animais não se julgam bons nem maus, nem certos ou errados. Eles seguem os seus instintos.</p><p>Entre algumas sociedades tradicionais (povos nativos que mantiveram formas tradicionais de organização social, de produção e</p><p>de exploração da natureza), o consumo de carne crua também é proibido, podendo levar à loucura, como afirmam os Cinta-Larga</p><p>(PEREZ, 1996). Nessa circunstância, também é questão de natureza e cultura. A carne da caça deve ser passada pelo filtro da</p><p>cultura e ser transformada em comida pelo cozimento. O consumo de carne crua é característico dos animais.</p><p>O corpo humano também faz parte da natureza ou da cultura? De ambos, pois ele também é culturalmente</p><p>construído. Nosso corpo passa por um processo de desenvolvimento que é natural, mas também é</p><p>fabricado pela cultura.</p><p>Aqui no Brasil, por exemplo, recentemente, foi proibido que as orelhas das meninas fossem furadas na maternidade, mas, em</p><p>muitos casos, elas o são logo depois. As mulheres usam salto alto, os homens, terno. Isso também vai no sentido de fabricar um</p><p>corpo feminino e masculino. A busca pelo corpo magro é uma forma cultural pela qual ele é manipulado baseado em certos</p><p>padrões, que também são construções socioculturais.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 14/48</p><p>A forma com que nos higienizamos, aquilo com o que o alimentamos, tudo isso constrói o corpo. As dietas, as cirurgias</p><p>plásticas, as tatuagens, os brincos, colares, pulseiras, anéis, igualmente.</p><p>Vemos uma foto de uma mulher-girafa, um exemplo muito pertinente de como a cultura molda o corpo.</p><p>As chamadas mulheres-girafas da etnia Karen e da tribo Kayan usam anéis de bronze no pescoço. As argolas são parte da</p><p>identidade cultural da tribo e são associadas à beleza das mulheres.</p><p>Agora que vimos como o corpo é culturalmente construído, vamos continuar pensando no jeito como ele é visto e construído</p><p>pela medicina contemporânea, e qual o papel da Nutrição nesse processo.</p><p>Já mencionamos que a ciência também é uma construção. Ela vem também se transformando com o decorrer do tempo e é</p><p>importante enfatizar que não é produzida “do nada”, a partir de uma realidade natural que observa e descreve fielmente. Não</p><p>existe percepção do mundo natural que não seja influenciada pela maneira como se dá uma sociedade e uma cultura</p><p>determinada (QUEIROZ, 1986). Portanto, a ciência também atende a interesses diversos e não é tão neutra assim como você</p><p>pode supor.</p><p>Com o surgimento da ciência moderna no século XVII, formulou-se um modelo mecânico para a</p><p>realidade. Esse modelo tem a influência da vários pensadores, como Descartes, que formulou uma</p><p>separação entre o corpo e a mente, e Galileu e Newton, este último tendo elaborado uma visão</p><p>mecanicista do Universo. Como consequência disso, as ciências biomédicas, muito influenciadas</p><p>por essas concepções científicas, adotam com toda força a visão do corpo-máquina (KRAEMER et</p><p>al., 2014).</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 15/48</p><p>Esse modelo mecanicista que considera somente aquilo que pode ser medido objetivamente desconsidera as dimensões</p><p>simbólicas, psicológicas, sociais, que são decisivas não somente na construção do corpo, como vimos, mas também na</p><p>compreensão de como esse corpo adoece e se cura.</p><p>A medicina científica desenvolveu-se muito depois da Segunda Guerra, sobretudo do ponto de vista tecnológico. Se, por um lado,</p><p>pensava-se que a cura de quase todas as doenças seria descoberta, por outro, a intervenção nos corpos os tornava mais aptos</p><p>para a produção (QUEIROZ, 1986).</p><p>Comentário</p><p>Conforme Morais (2011), entende-se que esses princípios mecanicistas e esse grande desenvolvimento tecnológico, ao invés de</p><p>promover a satisfação da população como um todo, pelo contrário, geraram uma crise na medicina moderna. Isso já era</p><p>apontado por Queiroz, em 1986, e ainda continua sendo um objeto de reflexão.</p><p>As queixas vão no sentido do alto custo dos tratamentos, o atendimento frio dos médicos, do fato de se dedicarem muito mais</p><p>tempo à saúde, e os males antigos não apenas continuarem, como ainda serem somados a outros novos. Há uma elitização da</p><p>saúde e um distanciamento cada vez maior entre pacientes e terapeutas (ibid.). E no caso da Nutrição?</p><p>A Nutrição, como uma ciência biomédica, repete esse modelo mecanicista. Para Kraemer et al. (2014), quando se constituiu, a</p><p>Nutrição teve necessidade de se colocar junto aos saberes biomédicos para poder se legitimar. Consequentemente, isso a levou</p><p>a uma maneira de enxergar os alimentos de forma descontextualizada de imaginário social e de seus vários significados</p><p>socioculturais.</p><p>Para promover uma alimentação saudável, a ciência da Nutrição dita o que se deve comer, as quantidades e quando os itens</p><p>alimentares devem ser ingeridos. Não levando em consideração os aspectos descritos anteriormente, tampouco as conjunturas</p><p>políticas e econômicas nas quais se desenvolvem os comedores e a indústria alimentar, a ciência reduz seu alcance explicativo</p><p>(ibid.).</p><p>Somente os corpos jovens e magros são considerados saudáveis. Para manter esses atributos, a alimentação deve ser</p><p>controlada, as calorias devem ser contadas e os indivíduos se tornam responsáveis pela sua própria saúde ou pela falta dela. Se</p><p>você está acima do peso, ou obeso, é porque você não se cuidou o suficiente (ibid.), porque você é fraco, sem força de vontade.</p><p>Essa forma de ver as coisas, que é comum entre os</p><p>nutricionistas, não leva em conta elementos sociais, psicológicos entre</p><p>outros.</p><p>Saiba mais</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 16/48</p><p>Esse modelo mecanicista acaba por se difundir em toda a população que tem acesso a alguma informação nutricional. Barbosa</p><p>(2007) fez uma ótima enquete sobre alimentação no Brasil do ponto de vista dos comedores e que se dá em um contexto</p><p>urbano. Ele constatou que, em todos os extratos sociais, os indivíduos sabem dizer exatamente os alimentos vistos como</p><p>saudáveis e aqueles que são prejudiciais à saúde.</p><p>Evidentemente que a ciência da Nutrição tem demonstrado a estreita relação entre doenças crônicas não transmissíveis (DCNT)</p><p>e a alimentação. A busca pela saúde deve intervir sobre todo o nosso comportamento alimentar como se existisse um único</p><p>modelo que é válido para todos as situações, como uma verdade absoluta e inquestionável. Segundo Azevedo (2017), questiona-</p><p>se a visão da comida considerando somente seus aspectos bioquímicos que determinam uma dieta específica para uma pessoa,</p><p>desdenhando dos aspectos culturais e sociais.</p><p>A comida e o comer têm múltiplos significados em todas as sociedades, é exatamente disso que trata este conteúdo. E o que se</p><p>pretende aqui é que você seja um profissional que vá além dos nutrientes, além do modelo mecanicista e além do corpo-</p><p>máquina, de forma a enxergar seu paciente ou seu público-alvo como uma totalidade, e não como um aparelho digestivo</p><p>ambulante.</p><p>Existem outras formas de comer que, mesmo do ponto de nutricional, podem nos surpreender. Ribeiro (1995) afirma que a dieta</p><p>dos indígenas amazônicos corresponde a, aproximadamente, 80% a 85% de mandioca, seja na forma de cerveja, na variedade</p><p>“doce”, seja na forma de farinha e seus derivados, na variedade “brava”. Os 15% a 20% restantes equivalem ao consumo de</p><p>proteína animal e a todos os outros produtos da agricultura e da coleta.</p><p>Indígena Kichwa preparando a tradicional bebida chicha, feita de mandioca, típica da Bacia da Floresta Amazônica, no Parque Nacional Yasuni (Equador).</p><p>Por outro lado, até as dietas e o peso ideal têm caráter ideológico. Belasco (2009 apud CULTURA, 2015) nos diz que o modelo</p><p>nutricional ocidental que se tornou padrão considera a carne um alimento fundamental. Sendo que, dentro dessa visão, os</p><p>hindus e os chineses não se alimentariam de forma adequada. O Índice de Massa Corporal é bastante útil, mas ele tem como</p><p>base o padrão da sociedade americana. Até que ponto isso é válido para todos (KRAEMER et al. 2014)?</p><p>Uma dieta pobre em frutas, legumes e verduras (FLV) é o contrário do que determina a Organização Mundial da Saúde e os</p><p>nutricionistas. Todavia, no geral, os indígenas amazônicos têm uma saúde muito boa, ficando doentes justamente quando</p><p>mudam seus hábitos e regimes alimentares em decorrência do contato com não indígenas.</p><p>Coimbra (1985), analisando quimicamente a cerveja feita de mandioca doce, atestou que, devido à fermentação que é provocada</p><p>pela saliva das mulheres, essa preparação contém açúcares mais complexos que aqueles presentes na mandioca in natura.</p><p>Resumindo</p><p>Refletimos nesta seção sobre o aspecto real visto a partir da construção do corpo e da saúde no modelo mecanicista e como</p><p>isso também influencia a ciência da Nutrição. O que vimos é que o corpo não é uma máquina em que a doença é um defeito. O</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 17/48</p><p>corpo, com seu estado de saúde ou doença, é construído no centro das relações sociais e do imaginário simbólico que envolve</p><p>as práticas alimentares e as diferentes maneiras de adoecer e curar.</p><p>O simbólico: os múltiplos signi�cados dos alimentos</p><p>Já comentamos sobre alguns dos significados simbólicos dos alimentos.</p><p>Os alimentos não são apenas comidos, mas também pensados. Em outras palavras, a comida</p><p>possui um significado simbólico – ela fala de algo mais que nutrientes.</p><p>(WOORTMANN, 2006).</p><p>Vamos pensar em alguns itens que são passíveis de serem ingeridos. Qual é a diferença existente, do ponto de vista nutricional,</p><p>entre um bife de carne de boi, um de carne de cachorro, um de carne de cavalo e um de carne humana?</p><p>Só de falar nisso, talvez você já esteja sentido náuseas, mas a resposta à pergunta é: nenhuma. Talvez alguma diferença no</p><p>percentual de gordura, ou de fibras. Mas todas elas vão nutri-lo quase da mesma maneira.</p><p>Então, por que nós humanos desprezamos todas essas carnes que poderiam resolver uma parte do problema da fome no</p><p>mundo?</p><p>Pensando assim, não seria necessário tanto gado e tudo aquilo que eles precisam para viver: terra, água etc. Seria ótimo,</p><p>não? O consumo de carne humana é um tabu enorme, sem falar no fato de que os cadáveres devem ser respeitados.</p><p>Já os cães são como pessoas da família, impossível, para nós, pensarmos em comê-los. E os cavalos, que são comidos em</p><p>vários lugares, para nós são como nossos empregados, que têm um nome, uma função; eles também não podem se</p><p>transformar em comida.</p><p>No entanto, não temos problema algum em comer carne de vaca, porco, carneiro, coelho ou avestruz. Porém, em alguns casos,</p><p>essas carnes são consideradas sagradas, sujas, ou impuras por questões relacionadas a aspectos religiosos ou não.</p><p>Uma anedota conta que perguntaram a um biólogo o que ele diria sobre Deus segundo suas observações da vida na Terra. Ele</p><p>respondeu que Deus, certamente, tinha um grande amor por insetos, sobretudo por besouros. Isso porque eles representam o</p><p>maior número de espécies e de indivíduos em todo o Reino Animal. Surpreendente, não? Mas por que falar de insetos? A</p><p>entomofagia, ou seja, o consumo de insetos, é um assunto apaixonante. Afinal, os insetos são muito numerosos, como nos</p><p>esclareceu o biólogo, extremamente fáceis de serem capturados, muito nutritivos e, segundo aqueles que os comem, muito</p><p>saborosos.</p><p>Por que, nesse caso, nós dispensamos toda uma quantidade de proteínas que tão generosamente a natureza nos oferece?</p><p></p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 18/48</p><p>Resposta</p><p>Precisamente, por conta do significado que atribuímos a esses potenciais alimentos. Mesmo se aqui no Brasil comemos farofa</p><p>de içá, como foi dito; se no Norte do país tem-se o costume de comer formigas aladas, e se restaurantes famosos e estrelados</p><p>servem insetos em pratos gourmets em São Paulo, na maior parte das vezes, os insetos são considerados repugnantes.</p><p>strelados</p><p>Um restaurante estrelado é aquele que recebeu Estrelas do Guia Michelin, um guia turístico e gastronômico muito famoso na França</p><p>e no mundo.</p><p>Como vimos, aquilo que é considerado comida para uns não é para outros. Cada cultura determinará as diferentes possibilidades</p><p>que lhe são ofertadas. A categoria comida é culturalmente construída:</p><p>Se o homem não come tudo que é biologicamente ingerível, é porque nem tudo que é</p><p>biologicamente comestível é culturalmente comestível.</p><p>(FISCHLER apud COELHO, 2015)</p><p>Como salienta Flandrin (1998), desde a Pré-História, os homens têm acesso aos mais variados itens alimentares nos lugares por</p><p>onde passam, mas nem tudo o que esses ambientes lhes oferecem é escolhido para fazer parte da categoria comida. Essas</p><p>escolhas são feitas de acordo com regras impossíveis de serem decifradas na maioria das vezes. Você pode perceber que essas</p><p>escolhas não são baseadas em critérios pragmáticos nem racionais. Caso contrário, todos comeríamos insetos, pois eles</p><p>existem em quase todos os lugares do mundo.</p><p>Escargots</p><p>Na Europa, o ambiente oferece os mesmos recursos, mas somente os franceses comem caramujo, os famosos</p><p>escargots, e rãs. Temos tartarugas também em muitos locais, mas a sopa feita delas é uma especialidade inglesa.</p><p>Poderíamos multiplicar os exemplos, mas já ficou claro que não é o ambiente que determina as escolhas</p><p>alimentares, mesmo que sejam feitas a partir dele.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 19/48</p><p>Esquimós</p><p>É evidente que um esquimó não pode ser vegetariano, pois morreria de fome, mas, mesmo em uma região com</p><p>recursos tão limitados, os homens fazem escolhas culturais diferentes. Laraia (2007) fala sobre os esquimós que</p><p>constroem suas casas de gelo e usam trenós puxados por cães; e os lapões, que vivem no mesmo ambiente, são</p><p>pastores de rena, constroem suas casas com a pele delas e se locomovem tradicionalmente com raquetes de</p><p>neve.</p><p>Carne</p><p>Outro ponto interessante sobre o significado dos alimentos é o simbolismo associado à carne. Carneiro (2003)</p><p>comenta que a Europa sempre valorizou a alimentação carnívora. Desde a Antiguidade Grega, a caça e o consumo</p><p>de carne são considerados importantes para preparar os homens para a guerra, tornando-os mais ferozes e cruéis.</p><p>Sem falar no fato de que a propriedade de rebanhos confere prestígio e riqueza.</p><p>Churrasco</p><p>Os países ocidentais valorizam muito o consumo de carne. Aqui no Brasil, o churrasco é uma verdadeira</p><p>instituição, sendo muito comum na Região Sul, mas também no Sudeste e no Centro-Oeste, onde, no geral, o único</p><p>h t d é di id Fl d i (1998) i f i õ f ti d t d</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 20/48</p><p>Se falamos em consumo de carne, não podemos deixar de lado a antropofagia. De acordo com Bueno (2012), esse costume de</p><p>muitos povos indígenas brasileiros foi o que mais espantou os europeus. Alguns rituais antropofágicos entre os Tupinambás</p><p>foram descritos com precisão por alguns cronistas, sobretudo por Hans Staden (1998), que foi capturado por esses indígenas e</p><p>viveu entre eles por alguns anos.</p><p>ntropofagia</p><p>É a prática na qual um ser humano se alimenta de partes de outro ser humano.</p><p>Saiba mais</p><p>Para saber mais, assista ao filme Hans Staden (Brasil/Portugal, 1999. Direção Luiz Albert Pereira).</p><p>Mesmo se os homens já comeram carne humana para matar a fome, em momento de penúria extrema ou na Pré-História, o</p><p>canibalismo do qual se tem notícia tem sempre um significado ritual. Pode-se consumir os inimigos para se vingar deles, para</p><p>recuperar sua força ou para aniquilá-la, mas, no caso, também pode ser uma obrigação consumir a carne de seus parentes</p><p>mortos para desumanizá-los, uma vez que são comidos como presas e para que sua substância fique entre os membros da</p><p>família.</p><p>Para fecharmos esta seção, vamos falar sobre outra dimensão simbólica da comida: o fato de que ela constitui uma linguagem.</p><p>Quando convidamos alguém para comer em nossa casa, a comida que vamos servir vai falar sobre nós, expressar nosso</p><p>cuidado, nosso carinho, nossa consideração.</p><p>Os diferentes tipos de ingredientes são as letras e as preparações das palavras. Com uma letra, você pode fazer inúmeras</p><p>palavras se combiná-la com outras letras, assim como podemos fazer um monte de receitas diferentes misturando os</p><p>ingredientes-letras. E a frase é a refeição, em que tudo deve ser combinado de uma forma específica para ter sentido</p><p>(MONTANARI, 2008).</p><p>É claro que a forma como a frase-refeição é construída depende da cultura, disponibilidade econômica do responsável, ocasião.</p><p></p><p>Brasil</p><p>acompanhamento da carne é a mandioca cozida. Flandrin (1998) nos ensina que nas refeições festivas de todos</p><p>os tempos sempre foi necessária a presença da carne fresca; e, é claro, das bebidas fermentadas.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 21/48</p><p>Cotidianamente, não costumamos comer entrada, colocando a salada no prato principal. No final da refeição, sobremesa e café.</p><p>Essa ordem é imutável.</p><p></p><p>EUA</p><p>Nas cafeterias, toma-se café durante toda a refeição. Esse café é bem fraco para os nossos padrões: é o famoso “chafé”, de tão</p><p>aguado.</p><p></p><p>França</p><p>Os franceses comem salada verde e queijo no final das refeições, e só depois vem a sobremesa e o café. Eles consideram que a</p><p>salada limpa o paladar.</p><p>A frase é diferente e pode até se tornar um texto em uma refeição festiva, como um banquete de casamento. E mesmo a</p><p>gramática da refeição é diferente nos dias da semana e no fim de semana. Por meio das palavras, damos sentido ao mundo,</p><p>criamos categorias, e a comida faz a mesma coisa. Ela fala de nós, de nossos hábitos, valores, crenças, origem, classe social. A</p><p>comida fala!</p><p>O imaginário: as angústias do comedor moderno</p><p>Como diz Ferrières (2002), além do medo de que falte comida, existe o medo de comer uma comida que esteja contaminada ou</p><p>apodrecida e possa afetar negativamente a saúde. A autora traz no livro A História dos medos alimentares um histórico desde a</p><p>Idade Média das angústias relativas àquilo que vamos incorporar ao nosso corpo. Por conta disso, no Ocidente, desenvolveu-se</p><p>pouco a pouco um controle sanitário sobre o processo de produção dos alimentos.</p><p>Fischler (1990) afirma que o ato de comer é muito íntimo e, mesmo que seja fonte de prazer, ele também traz medo e ansiedade</p><p>no tocante à ingestão dos mais variados itens.</p><p>Na realidade, a ciência e todos os processos controlados da produção de alimentos nas granjas e fazendas,</p><p>nos abatedouros e nas plantações, nas indústrias e na distribuição geraram uma sensação de segurança</p><p>no consumidor.</p><p>No entanto, essa confiança foi quebrada com a Doença da Vaca Louca (Encefalopatia Espongiforme Bovina), que surge na</p><p>Inglaterra por volta de 1985 (POULAIN apud DÓRIA, 2015). Essa doença ataca o Sistema Nervoso Central e mata os animais. A</p><p>origem da doença se deu por conta dos restos de carcaças de mamíferos que entravam na composição da ração que era dada</p><p>aos animais, submetendo os herbívoros a uma espécie de canibalismo.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 22/48</p><p>Na França, essa suspeita recaiu sobre todos os tipos de carnes bovinas e seus derivados. Para conter a doença, milhares de</p><p>animais foram sacrificados. Temia-se que a doença fosse transmitida aos humanos e a outros animais. A utopia da segurança</p><p>em relação ao que comemos foi abalada e gerou ansiedade e medo em relação à qualidade dos alimentos.</p><p>Por outro lado, por conta da globalização que permite uma circulação sem precedentes de mercadorias e pessoas, os fatores de</p><p>risco se multiplicam, como declara Proença (2010). Os riscos são de contaminação por microrganismos, problemas na</p><p>manipulação e na conservação dos alimentos, introdução acidental ou voluntária de substâncias tóxicas, excesso de agrotóxicos</p><p>etc.</p><p>Avião pulverizando plantação com agrotóxicos.</p><p>Aqui no Brasil, vimos leite contaminado com formol (ILHA, 2013), suco à base de soja com soda cáustica (VIGILÂNCIA, 2013) e</p><p>um aumento no número de agrotóxicos liberados para utilização em 2020 (LEITE, 2020). Isso sem falar nos transgênicos que</p><p>são uma grande ameaça à biodiversidade (OLIVEIRA, 2016). Também nos preocupamos com a quantidade de hormônios que os</p><p>animais consomem e que efeitos isso pode ter na nossa saúde, e o assombroso consumo de antibióticos pelo gado bovino.</p><p>Você viu que existem riscos reais à nossa saúde causados pelos alimentos nas mais variadas fases da produção, mas se</p><p>somam a essas outras questões que só aumentam a ansiedade do comedor. Além desses riscos biológicos, questões de ordem</p><p>ética nos preocupam. Nós nos preocupamos com a forma como os alimentos que comemos foram obtidos, isto é, se houve</p><p>agressão ao meio ambiente ou aos trabalhadores envolvidos no processo. Questões de sustentabilidade ambiental e econômica</p><p>nos dizem respeito. Pelo surgimento de uma solidariedade entre espécies, não queremos que os animais que nos servem de</p><p>comida sejam tratados com violência ou desprezo.</p><p>Por conta disso, surgiram novas ideologias alimentares, como, por exemplo, o Slow Food. Esse movimento, fundado pelo italiano</p><p>Carlos Petrini em 1986, acredita que o homem, ao comer, afeta seu meio ambiente e social e que é necessário se conscientizar e</p><p>agir em consequência disso para que esses impactos</p><p>sejam benéficos.</p><p>Símbolo do movimento Slow Food.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 23/48</p><p>Para isso, ao contrário do Fast-Food, é necessário ter prazer ao comer degustando o alimento com consciência, consumir</p><p>produtos artesanais, de preferência que sejam fruto do trabalho de produtores locais e que, nesse processo, sejam respeitados o</p><p>meio ambiente e os trabalhadores envolvidos na produção (MOVIMENTO, 2007).</p><p>Não podemos esquecer do medo de engordar, de desenvolver doenças mesmo que os alimentos não estejam contaminados:</p><p>somente sua composição já pode nos assustar. Tudo isso levou a uma medicalização da nutrição, como já comentamos. Diante</p><p>disso, outro dilema que o comedor enfrenta é a escolha do que comer. A quantidade de opções de itens, de ideologias</p><p>alimentares, de produtos light, diet, orgânicos, sem glúten, sem lactose, fat free disponíveis atualmente para o comedor são</p><p>enormes (VERTHEIN; MEDINA, 2015).</p><p>Em busca do corpo perfeito e, sendo agora o responsável pela saúde e pelas decisões sobre o que comer para atingir esses</p><p>objetivos, o comedor tem cada vez mais angústias, medos, preocupações e culpas.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 24/48</p><p>Falta pouco para atingir seus objetivos.</p><p>Vamos praticar alguns conceitos?</p><p>Questão 1</p><p>Na Espanha, desde sempre, o vinho é considerado um alimento nutritivo, tanto que ele é dado até para as crianças na forma</p><p>de um refresco de vinho feito com água e açúcar. Veja uma conversa entre espanhóis:</p><p>- Mas ela está sempre doente.</p><p>- Claro, ela come pouco, não toma um copo de vinho, normal que sua saúde seja fraca.</p><p>Quais dos aspectos dos alimentos estudados acima faz referência ao texto?</p><p>Parabéns! A alternativa B está correta.</p><p>Os aspectos imaginários da alimentação atribuem significados aos alimentos que são amplamente compartilhados por um</p><p>grupo cultural.</p><p>Questão 2</p><p>A</p><p>Reais, pois o vinho é considerado nutritivo por conta de polifenóis presentes na bebida que, segundo</p><p>pesquisas na área comprovam, protegem a saúde do coração.</p><p>B Imaginário, pois o vinho é considerado nutritivo por esse povo, já que nutre o organismo.</p><p>C Simbólicos, pois a Espanha é uma grande produtora de vinho.</p><p>D Psicológicos, pois o vinho altera o estado de consciência, causando embriaguez.</p><p>E Lúdico, pois o vinho está atrelado ao ilusório.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 25/48</p><p>Leia o texto abaixo:</p><p>“Chinchulin, talvez o mais interessante e menos conhecido prato da culinária dos nossos primitos do Sul (“hermanitos” é</p><p>exagero, tenha dó!). Se você for procurar pelo Google, encontrará muitas referências ao quitute, quase todas em espanhol,</p><p>mas nenhuma em bom português. Chinchulin é o churrasco preparado com o primeiro terço do intestino delgado de uma</p><p>vitela. E vitela, para quem não sabe, é uma vaca teen. (...) Chinchulin – coprofagia à Argentina.” (Disponível em Mesapra1.)</p><p>Quais os aspectos simbólicos que levam os brasileiros a rejeitarem essa preparação?</p><p>Parabéns! A alternativa B está correta.</p><p>Os aspectos simbólicos da alimentação são aqueles que se referem aos significados que os diferentes grupos culturais</p><p>atribuem aos alimentos, além dos seus aspectos nutricionais. Aqui no Brasil, somos muito céticos em relação a tudo que é</p><p>produto da digestão.</p><p>A</p><p>Os chinchulines são muito apreciados pelos argentinos, pois dentro deles o leite ingerido pelo vitelo é como</p><p>um creme de queijo.</p><p>B</p><p>Nós, brasileiros, consideramos intestino uma comida nojenta, independentemente de o recheio ser o início</p><p>da digestão do leite.</p><p>C</p><p>No intestino delgado, ocorre a maior parte da digestão e absorção dos nutrientes. Esse órgão divide-se em:</p><p>duodeno, jejuno e íleo.</p><p>D Uma xícara de cubinhos de chinchulines tem 118 kcal, 16,76 g de proteínas e 587 gramas de sódio.</p><p>E No intestino grosso, ocorre a maior parte da digestão e absorção dos nutrientes.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 26/48</p><p>2 - Identidade cultural</p><p>Ao �nal deste módulo, você será capaz de relacionar a identidade cultural e a comensalidade às dimensões</p><p>simbólicas da alimentação.</p><p>Alimentação e identidade cultural</p><p>A cultura e sua in�uência na escolha dos alimentos</p><p>Diante de tantas mudanças em relação à forma de comer, ao que comer, quando, onde, sozinho ou acompanhado, estabelecem-</p><p>se questões relativas às identidades culturais individuais e coletivas.</p><p>O que é a identidade cultural, como podemos definir esse conceito?</p><p>Cultura</p><p></p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 27/48</p><p>É algo que está dentro e fora de nós, pois, quando nascemos, já existe uma sociedade, mesmo que ela esteja em constante</p><p>transformação.</p><p>Identidade cultural</p><p>É um sentimento de pertencimento que é construído pelo indivíduo com base nos aspectos culturais de dada sociedade.</p><p>Se pensarmos, por exemplo, em um indivíduo que pertença a uma sociedade tradicional, a sua identificação afirma seu</p><p>pertencimento àquela etnia, ao seu gênero e à sua posição na família: pai, mãe, filho, todas essas sendo identidades culturais</p><p>que variam de acordo com a sociedade. As obrigações e funções de pais e filhos são culturalmente construídas.</p><p>O gênero também é uma construção cultural, ser mulher ou homem não significa a mesma coisa para todas as culturas. Mesmo</p><p>em nossa sociedade, a forma como uma mulher e um homem constroem seus pertencimentos de gênero varia no tempo. Logo,</p><p>a identidade cultural é algo que se transforma.</p><p>Mulheres</p><p>Como uma mulher se sentia mulher há 50 anos? Por meio da maternidade, das prendas domésticas e do cuidado com a</p><p>família, a dita “mulher de cama e mesa”. E como as mulheres ocidentais se constroem atualmente? Mediante o estudo e sua</p><p>carreira profissional. Elas têm menos filhos, ou os têm mais tarde, e isso quando os têm, pois a maternidade não é mais</p><p>necessária para a construção do feminino. Expressões machistas como “encalhada” e “ficou para titia” não fazem mais</p><p>nenhum sentido atualmente.</p><p>Homens</p><p></p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 28/48</p><p>E quanto ao homem? Ele deixou de ser o provedor e o chefe de família e, consequentemente, perdeu seu poder sobre o destino</p><p>de sua companheira. Atualmente, temos inversões dos papéis tradicionais: mulheres que trabalham e sustentam a família,</p><p>enquanto os seus maridos cuidam da casa e dos filhos. Essas mudanças identitárias não são fáceis de serem absorvidas e</p><p>alguns homens e mulheres ainda se questionam e ficam incômodos com essas novas atribuições.</p><p>Nas sociedades contemporâneas, a questão da identidade cultural tem novas dimensões. Já não criamos pertencimentos com</p><p>os membros das sociedades tradicionais, em uma sociedade complexa e fragmentada como a nossa, pertencemos aos mais</p><p>variados grupos cultuais e temos múltiplas identidades (HALL, 1999).</p><p>Exemplo</p><p>Pertencemos a uma etnia, temos um gênero, uma religião, uma determinada ideologia política, um hobby, como dança de salão,</p><p>pertencemos a um lugar, a uma classe social etc. Criamos uma identificação com cada um desses grupos culturais. A identidade</p><p>atual, além de subjetiva e, consequentemente, construída, é também fragmentada, múltipla e, muitas vezes, até contraditória.</p><p>Quem nunca foi à missa pela manhã e comungou, depois recebeu um passe em uma sessão de espiritismo à tarde e incorporou</p><p>um Orixá em um terreiro de candomblé à noite?</p><p>As identidades culturais também não são fixas, pois não só mudamos nossos pertencimentos, como também alegamos</p><p>diferentes identidades em diferentes situações. Em alguns casos, é possível enfatizar mais o gênero, a classe social ou o</p><p>pertencimento étnico. Em uma situação de violência contra a mulher, sua identidade de gênero vai prevalecer. Já</p><p>em caso de</p><p>injúria racial, será o pertencimento étnico e, diante de injustiças sociais, prevalecerá o pertencimento de classe e/ou sua</p><p>ideologia política.</p><p>Mas você deve estar se perguntando: e o que a alimentação tem a ver com tudo isso?</p><p>Pois bem, como você se sente brasileiro? Pelo fato de ter nascido no Brasil, pela nacionalidade? Com certeza, mas também</p><p>porque fala português e tem um código corporal diferente dos europeus, por exemplo, nós nos tocamos o tempo todo. E à mesa,</p><p>como você se sente brasileiro? Comendo feijão com arroz, algo que se come no Brasil inteiro, do Oiapoque ao Chuí (BARBOSA,</p><p>2007).</p><p>Aquilo que comemos é uma fonte de pertencimento muito importante. Como nos ensina DaMatta:</p><p>Comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito</p><p>de alimentar-se. E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido, como também aquele</p><p>que o ingere.</p><p>(DAMATTA,1986)</p><p>E as comidas típicas?</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 29/48</p><p>Sul</p><p>Se pensamos no sul do Brasil, logo nos vem à mente um suculento churrasco e um chimarrão.</p><p>Norte</p><p>Já o Norte nos remete a comidas como pato no tucupi e tacacá.</p><p>Nordeste</p><p>O Nordeste tanto nos faz pensar em carne de sol com baião de dois, como em todas aquelas comidas de origem africana.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 30/48</p><p>Nordeste</p><p>Ou os com uma conotação religiosa, as comidas de santo caraterísticas da Bahia: acarajé, vatapá, caruru, xinxim de galinha,</p><p>bobó de camarão etc.</p><p>Mas essas comidas são consumidas no dia a dia?</p><p>De maneira alguma! Geralmente, são consumidas em ocasiões festivas ou especiais. São preparações que foram escolhidas, de</p><p>certa forma, para representar a identidade cultural daquele lugar. Então, come-se feijão – das mais variadas cores, segundo o</p><p>local – com arroz, porque se é brasileiro, mas o pato no tucupi representa o pertencimento da região Norte.</p><p>Mais do que hábitos e comportamentos alimentares, as cozinhas implicam formas de perceber e expressar determinado modo</p><p>ou estilo de vida particular a determinado grupo. Assim, o que é colocado no prato serve para nutrir o corpo, mas também</p><p>sinaliza um pertencimento, servindo como um código de reconhecimento social (MACIEL, 2005).</p><p>A identidade alimentar, assim como as demais, constrói-se por oposição. Sou brasileiro porque como</p><p>fe�oada e não insetos fritos. Assim como falo português, e não chinês. Pensamos sobre nós mesmos e nos</p><p>reconhecemos como diferentes a partir do outro, daquele que pertence à outra cultura (SILVA, 2015).</p><p>Chamamos de alteridade essa percepção que temos de nós mesmos como diferentes a partir da visão que temos dos outros.</p><p>Ou, como dizem os antropólogos, do outro, que representa aquela sociedade que não é a minha. A alteridade se opõe à</p><p>identidade cultural, ao mesmo tempo em que é fundamental na sua construção.</p><p>O discurso da identidade não se confunde com o discurso das origens ou uma suposta autenticidade. Vamos pensar na feijoada,</p><p>um prato que é reivindicado como um dos maiores representante da nossa identidade cultural alimentar. O feijão-preto e a</p><p>mandioca da farofa são nativos das Américas, mas o porco, a couve, o arroz e a laranja são todos ingredientes exóticos no</p><p>sentido literal da palavra, ou seja, aquilo que é estrangeiro, que não é nativo, mas isso não faz da feijoada um prato menos</p><p>brasileiro. Assim como pimentões e os tomates são característicos da cozinha mediterrânea, mas são nativos das Américas e</p><p>somente após as Grandes Navegações apareceram por lá (MACIEL, 2005).</p><p>A esse propósito, é curioso o papel da feijoada na construção da identidade nacional. Reza a lenda que a feijoada é uma</p><p>invenção dos escravos a quem eram deixadas somente as partes menos nobres. Esse mito é difundido mesmo entre</p><p>pesquisadores importantes sobre o tema.</p><p>Câmara Cascudo (2004) já exalta a origem portuguesa da feijoada, comparando-a com pratos europeus feitos de carnes,</p><p>legumes e favas, como os cozidos, o puchero e o cassoulet, este presente desde a Antiguidade.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 31/48</p><p>Ele também sinaliza na mesma obra que os escravos comiam de acordo com as posses do seu senhor, e que muitas das vezes</p><p>nas fazendas era um punhado de farinha de mandioca com o caldo e uma laranja espremida por cima. Entretanto, foi Dória</p><p>(2009) quem trouxe o tema ao debate recentemente.</p><p>Ele argumenta que os escravos, assim como os indígenas, eram povos subalternos, considerados coisas, como cabeças de</p><p>gado, que, inclusive, viajavam de forma muito mais cômoda que os escravos nos navios negreiros, ou tumbeiros, como também</p><p>eram chamados. Eles não escolhiam o que iam comer, e muito menos criavam pratos. Classificar as carnes da feijoada com</p><p>menos nobres também pode ser um equívoco, já que elas são consideradas iguarias em muitas culturas. Na França, existe um</p><p>restaurante chamado Au Pied de Cochon (aos pés de porco, em tradução livre) que só serve pés de porco das mais variadas</p><p>maneiras.</p><p>Curiosidade</p><p>Esse mito é muito interessante e defende uma causa muito nobre, que é a importância dos negros na formação da identidade</p><p>cultural do Brasil. Entretanto, ele é construído com esse propósito e nega, dessa forma, as verdadeiras origens da feijoada, que</p><p>são europeias. Mas, como vimos, a identidade cultural, por ser construída, é manipulável, que é o caso aqui. Ela é mutável, como</p><p>já vimos, bem como é um produto histórico, produzida também no contato com culturas diferentes.</p><p>Comensalidade</p><p>Compartilhamento da comida</p><p>O que é a comensalidade? Certamente, você tem pelo menos uma ideia do que isso significa. Segundo Maciel (2011), o fato de</p><p>comermos juntos é o que faz com que o ato de se nutrir se torne um evento social. A palavra companheiro vem do latim cum</p><p>panem, que significa compartilhar o pão. Já a comensal vem de cum mensa, que significa compartilhar a mesa. A comensalidade</p><p>refere-se àqueles que comem juntos.</p><p>No entanto, mesmo se não existe uma mesa, existiria comensalidade. Câmara Cascudo (2004) nos conta que, assim como os</p><p>indígenas, com esteiras no chão, os mais pobres também comiam no Brasil colonial. Luccock (1997), um cronista inglês, chama</p><p>a atenção para o fato de que, mesmo em famílias mais abastadas, mulheres e crianças comiam da mesma forma nas alcovas, a</p><p>parte íntima da casa. Os orientais também comem em tapetes, sentados no chão (LIMA; NETO; FARIAS, 2015).</p><p>Saiba mais</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 32/48</p><p>Desde a Pré-História, os homens já se sentavam em torno de um fogo comum para comer e conversar. Desde então, sentar-se</p><p>junto à mesa sempre foi sinal de boa paz. Durante a Idade Média, quando ainda não existiam estruturas políticas centralizadas,</p><p>as refeições tomadas em conjunto e os banquetes que ocorriam, tanto entre os nobres como entre os aldeões, eram a melhor</p><p>forma de se comunicar decisões e mudanças (ALTHOFF, 1998). Também serviam para fundar e reafirmar laços sociais, por meio</p><p>das trocas de refeições festivas. Os grupos formavam alianças de comprometimento mútuo que regulavam suas vidas em vários</p><p>aspectos. Estamos falando da função social da refeição.</p><p>Até os dias atuais, em torno de uma mesa ou em um coquetel, como os coffee breaks, faz-se todo o tipo de acordo, de aliança e</p><p>de celebração. São estabelecidas relações de amizade, amorosas, mas também se fecham negócios e acordos políticos, nem</p><p>tão diferente do que acontecia na Europa na Idade Média.</p><p>O clima mais descontraído das refeições festivas e banquetes, no geral, regados a bebida alcoólica, facilita a conversa mais</p><p>sincera. Daniel e Cravo (2015) acreditam que os conchavos políticos se dão também nos banquetes ou nos coquetéis, e não só</p><p>nas câmaras ou nos palácios dos governos. As tribos germânicas discutiam questões</p><p>importantes durante os banquetes, mas</p><p>somente tomavam as decisões no dia seguinte, quando estavam sóbrios (ALTHOFF, 1998).</p><p>Bruxelas, Bélgica. 9 de dezembro de 2019. Ministros das Relações Exteriores no início de uma reunião com café da manhã.</p><p>No entanto, existem exceções a essa regra de estreitar relações sociais em torno da comida. Os balineses, descritos por Geertz,</p><p>associam o ato de se alimentar a algo próximo da animalidade e, para evitar constrangimentos, comem somente sozinhos.</p><p>Atenção!</p><p>Sentar-se à mesa também pode ser uma forma de demonstrar poder e afirmar hierarquias. Os lugares à mesa demonstram isso.</p><p>Quanto mais perto se está do anfitrião, maior a importância do convidado. Em muitas casas, cada membro da família tem um</p><p>lugar específico e imutável, que também afirma a hierarquia dentro da família, com o pai e a mãe sentados nas cabeceiras da</p><p>mesa.</p><p>Mesmo se a generosidade e paz são pontos importantes quando comemos juntos, acontece de as festas e os banquetes darem</p><p>errado por conta de rixas entre seus membros. Elas podem ser frutos de problemas que se pretendia justamente resolver com o</p><p>banquete ou, como muitos de nós já vimos, brigas e desentendimentos que ocorrem nas comemorações familiares. Quem nunca</p><p>teve o peru de Natal amargo por uma discussão entre aqueles primos que não se cruzam?</p><p>O compartilhamento da comida é tão importante que, mesmo em ocasiões nada festivas, é preciso pensar no cardápio que será</p><p>oferecido. Aqui no Brasil, onde ainda se velam os mortos em casa, café e guloseimas para os presentes são obrigatórios. Nos</p><p>Estados Unidos, após a cerimônia de sepultamento, a família sempre oferece uma refeição aos que estavam presentes.</p><p>Atualmente, a comensalidade vem se transformando.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 33/48</p><p>Você consegue fazer refeições com a sua família com frequência? Você consegue sentar-se à mesa para fazer suas refeições?</p><p>Quantas vezes comemos na frente do computador ou da TV? Ou no transporte público e mesmo na rua? Nós, brasileiros,</p><p>valorizamos o momento da refeição em família.</p><p>Conforme Barbosa (2007), é a hora de pais e filhos conversarem e dos laços familiares se estreitarem. Mas será que</p><p>conseguimos fazer refeições diariamente em família? Muitas vezes, aos domingos, sim. Outras somente no aniversário de</p><p>alguém ou no Natal.</p><p>Há também uma tendência da alimentação contemporânea, que é a individualização. Por conta das rotinas diferentes, do</p><p>enfraquecimento da instituição familiar e de uma ideologia individualista, os membros de uma família, mesmo estando juntos</p><p>em casa, comem de forma separada (BARBOSA, 2007).</p><p>Haveria uma individualização do momento da refeição, mas também do seu conteúdo. Na realidade brasileira, mesmo se não se</p><p>come junto, pois os horários de cada um são diferentes, a comida é a mesma para todos, no geral. Isso porque, como já vimos,</p><p>no geral, os brasileiros gostam do momento da refeição em família.</p><p>Já não almoçamos em casa com a família, mas a comensalidade pode ocorrer também de vez em quando</p><p>em casa, com amigos e familiares, na casa dos outros, em restaurantes, nos churrascos etc. (LIMA, 2015).</p><p>Nosso estilo de vida, sobretudo nas grandes cidades, faz com que estejamos sempre correndo, mas a</p><p>comensalidade toma novos formatos, mantendo sua função social.</p><p>As formas de se comportar à mesa também são muito importantes. Mesmo se essas regras sociais não fizerem parte das leis,</p><p>não as respeitar, ou não as conhecer pode causar muitos problemas. Vamos supor que você vá jantar com uma pessoa em</p><p>quem esteja interessado. Você percebe rapidamente que essa pessoa não só mastiga com a boca aberta, como também arrota</p><p>à mesa. Bom, ela pode ser muito interessante e atraente, mas com certeza esse comportamento vai esfriar o seu interesse, ou</p><p>mesmo acabar com ele. Resulta que, se alguém não sabe se comportar à mesa, certamente será colocado em uma situação de</p><p>isolamento social.</p><p>Quando nos sentamos para comer em algum lugar fora de casa, estando ou não acompanhados, involuntariamente observamos</p><p>o comportamento dos outros durante a refeição e fazemos julgamentos de valor sobre sua educação, seu grau de instrução e</p><p>seu pertencimento de classe. Vimos que as diferentes classes sociais criam e afirmam suas diferenças por meio do que se</p><p>come e de como se come.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 34/48</p><p>A história das regras de comportamento à mesa está estreitamente ligada à das boas maneiras</p><p>em sociedade.</p><p>(ROMAGNOLI, 1998).</p><p>Se, atualmente, somente comemos com as mãos sanduíches, lanches, frutas e algumas preparações como frango à passarinho,</p><p>comer com as mãos foi a única forma de comer até pelo menos o século XIV, quando os talheres eram usados em algumas</p><p>cidades italianas. Somente no século XVIII os talheres se popularizaram na Europa, e aqui no Brasil só quase no século XX.</p><p>Curiosidade</p><p>No Brasil, era comum – ainda é em alguns locais – o capitão, um bolinho feito de feijão-de-corda amassado com farinha.</p><p>Originário do Nordeste, era uma comida fácil de ser carregada em pequenas ou grandes viagens ou levada para a roça. Como foi</p><p>dito, em muitos lugares do mundo, ainda se come com a mão (CÂMARA CASCUDO, 2004).</p><p>Os modos à mesa na durante os meados da Idade Média na Europa seriam considerados por nós apavorantes atualmente.</p><p>As formas de comer, a ordem dos pratos, aquilo que é considerado importante ou trivial para a refeição variam de acordo com as</p><p>diferentes culturas. No Japão, o que caracteriza a refeição é o arroz, enquanto no sul da Índia é o pão que cumpre esse papel.</p><p>Até a temperatura pode ser importante na definição de uma refeição. Quantas vezes comemos uma salada, que pode até ser</p><p>feita de massa, e chegamos ao fim do dia sem a sensação de ter comido de verdade?</p><p>O processo de consumo e até de preparo dos alimentos obedece a certas regras. Já comentamos sobre como os pratos têm</p><p>certa ordem durante a refeição segundo os significados que lhes atribuímos. Podemos dizer também que esse processo é</p><p>altamente ritualizado. O ritual remete a um conjunto de ações que devem ser feitas de maneira específica para que se atinja</p><p>dado objetivo.</p><p>Os convivas urinavam na sala de jantar, assoavam o nariz na toalha e não se constrangiam com suas flatulências,</p><p>como diz O Livro do Homem Civilizado, de Daniel de Beccles, um dos primeiros livros sobre etiqueta que data de</p><p>aproximadamente o final do século XII.</p><p>Os pratos, que podiam ser uma fatia de pão, eram compartilhados, assim com os copos.</p><p>Não existia sequer um local apropriado para a refeição nos castelos. Uma mesa sobre cavaletes era trazida para o</p><p>local escolhido, o que deu origem ao que falamos atualmente “botar a mesa”. A preocupação com as boas</p><p>maneiras à mesa iniciaram por volta do século XII, em um caminho que durou vários séculos.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 35/48</p><p>O que, quando, onde, por que, a sequência dos pratos servidos, o tempo, o modo de preparo,</p><p>quem prepara, os acompanhamentos e os comensais. Esses são elementos que constituem a</p><p>ritualização à mesa e dão os significados a essa prática social.</p><p>(STEFANITTI et al., 2018).</p><p>Os rituais religiosos, como, por exemplo, uma missa católica ou uma iniciação no candomblé, devem seguir um passo a passo</p><p>minuciosamente para que o indivíduo saia purificado da missa, ou seja iniciado no candomblé. O mesmo ocorre à mesa. Para</p><p>que o comensal esteja ao final da refeição bem alimentado e feliz, os gestos, a sequência dos pratos, sua combinação devem ser</p><p>colocados nos seus devidos lugares. Como falamos sobre a comida como linguagem, a frase e o texto serão incompreensíveis</p><p>se as letras e palavras não estiverem no lugar certo.</p><p>15/09/2023, 13:31 Simbologia dos alimentos</p><p>https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212sa/00946/index.html# 36/48</p><p>Falta pouco para atingir</p>

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