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<p>Curso de Políticas sobre Drogas e Segurança Pública</p><p>em Perspectiva Comparada</p><p>O SURGIMENTO DAS</p><p>“DROGAS” E AS PREMISSAS</p><p>PARA SEUS CONTROLES</p><p>MÓDULO</p><p>1MÓDULO</p><p>1</p><p>O SURGIMENTO DAS “DROGAS”</p><p>E AS PREMISSAS PARA</p><p>SEU CONTROLE</p><p>M I N I S T É R I O D A</p><p>J U S T I Ç A E</p><p>S E G U R A N Ç A P Ú B L I C A</p><p>MÓDULO 1</p><p>O SURGIMENTO DAS “DROGAS”</p><p>E AS PREMISSAS PARA</p><p>SEU CONTROLE</p><p>Fernanda Novaes Cruz</p><p>Frederico Policarpo de Mendonça Filho</p><p>Marcos Alexandre Veríssimo da Silva</p><p>Roberto Kant de Lima</p><p>GOVERNO FEDERAL</p><p>PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL</p><p>Luís Inácio Lula da Silva</p><p>MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA</p><p>Ricardo Lewandowski</p><p>SECRETÁRIA NACIONAL DE POLÍTICAS SOBRE DROGAS E GESTÃO</p><p>DE ATIVOS</p><p>Marta Rodriguez de Assis Machado</p><p>DIRETOR DE PESQUISA, AVALIAÇÃO E GESTÃO DE INFORMAÇÕES</p><p>Mauricio Fiore</p><p>COORDENADORA-GERAL DE ENSINO E PESQUISA</p><p>Natália Neris da Silva Santos</p><p>COORDENADORA DE ARTICULAÇÃO DO OBSERVATÓRIO</p><p>BRASILEIRO DE INFORMAÇÕES SOBRE DROGAS</p><p>Geórgia Belisário Mota</p><p>CONTEUDISTAS</p><p>Fernanda Novaes Cruz</p><p>Frederico Policarpo de Mendonça Filho</p><p>Marcos Alexandre Veríssimo da Silva</p><p>Mauricio Fiore</p><p>Roberto Kant de Lima</p><p>REVISÃO DE CONTEÚDO</p><p>Jessica Santos Figueiredo</p><p>Grazielle Teles de Araújo</p><p>APOIO</p><p>Brenda Juliana Silva</p><p>Laudilina Quintanilha Mendes Pedretti de Andrade</p><p>Luana Rodrigues Meneses de Sá</p><p>Maria Aparecida Alves Dias</p><p>EXPEDIENTE</p><p>Todo o conteúdo do COMPASSO – Curso sobre Políticas de Drogas e Sociedade:</p><p>perspectivas e discussões atuais, da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas</p><p>e Gestão de Ativos (SENAD), Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) do</p><p>Governo Federal - 2024, está licenciado sob a Licença Pública Creative Commons</p><p>Atribuição - Não Comercial- Sem Derivações 4.0 Internacional.</p><p>BY NC ND</p><p>UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA</p><p>COORDENAÇÃO GERAL</p><p>Luciano Patrício Souza de Castro</p><p>FINANCEIRO</p><p>Fernando Machado Wolf</p><p>SUPERVISÃO TÉCNICA EAD</p><p>Giovana Schuelter</p><p>SUPERVISÃO DE PRODUÇÃO DE MATERIAL</p><p>Francielli Schuelter</p><p>SUPERVISÃO DE MOODLE</p><p>Andreia Mara Fiala</p><p>SECRETARIA ADMINISTRATIVA</p><p>Elson Rodrigues Natario Junior</p><p>DESIGN INSTRUCIONAL</p><p>Supervisão: Milene Silva de Castro</p><p>Larissa Usanovich de Menezes</p><p>Sofia Santos Stahelin</p><p>DESIGN GRÁFICO</p><p>Supervisão: Sonia Trois</p><p>Eduardo Celestino</p><p>Giovana Aparecida dos Santos</p><p>Luana Pillmann de Barros</p><p>Vanessa de Oliveira Vieira</p><p>REVISÃO TEXTUAL</p><p>Cleusa Iracema Pereira Raimundo</p><p>PROGRAMAÇÃO</p><p>Supervisão: Alexandre Dal Fabbro</p><p>Luan Rodrigo Silva Costa</p><p>Luiz Eduardo Pizzinato</p><p>AUDIOVISUAL</p><p>Supervisão: Rafael Poletto Dutra</p><p>Andrei Krepsky de Melo</p><p>Julia Britos</p><p>Luiz Felipe Moreira Silva Oliveira</p><p>Robner Domenici Esprocati</p><p>SUPERVISÃO TUTORIA</p><p>João Batista de Oliveira Júnior</p><p>Thaynara Gilli Tonolli</p><p>TÉCNOLOGIA DA INFORMAÇÃO</p><p>Alexandre Gava Menezes</p><p>André Fabiano Dyck</p><p>Curso de Políticas sobre Drogas e Segurança Pública</p><p>em Perspectiva Comparada</p><p>O SURGIMENTO DAS</p><p>“DROGAS” E AS PREMISSAS</p><p>PARA SEUS CONTROLES</p><p>MÓDULO</p><p>1MÓDULO</p><p>1</p><p>O SURGIMENTO DAS “DROGAS”</p><p>E AS PREMISSAS PARA</p><p>SEU CONTROLE</p><p>GUIA DE AMBIENTAÇÃO</p><p>COMO LER O E-BOOK</p><p>MÓDULOS</p><p>Este curso está dividido</p><p>em módulos. O módulo</p><p>correspondente e o conteúdo</p><p>principal estão localizados na</p><p>capa do e-book, logo abaixo do</p><p>nome do curso.</p><p>GUIA DE AMBIENTAÇÃO</p><p>COMO LER O E-BOOK</p><p>PÁGINAS INTERNAS</p><p>As páginas internas do e-book</p><p>estão estruturadas em</p><p>duas colunas.</p><p>A coluna mais estreita</p><p>e externa (à esquerda)</p><p>é utilizada para enquadrar</p><p>ícones criados com a finalidade</p><p>de destacar os recursos e</p><p>elementos instrucionais,</p><p>como o “VÍDEO”.</p><p>VÍDEO</p><p>Os vídeos contemplam</p><p>conteúdos complementares para</p><p>enriquecimento do aprendizado</p><p>e seus links estão representados</p><p>pelo recurso QR Code.</p><p>GUIA DE AMBIENTAÇÃO</p><p>COMO LER O E-BOOK</p><p>ÍCONES</p><p>Ajudam a localizar, focalizar</p><p>e ressaltar respectivos textos</p><p>informativos. Cada ícone apresenta</p><p>uma função:</p><p>SAIBA MAIS</p><p>Ao clicar no link, você é direcionado</p><p>para documentos disponibilizados na</p><p>internet, como leis e normas técnicas.</p><p>É preciso estar conectado à internet</p><p>para acessar o conteúdo.</p><p>PARA PENSAR</p><p>Frase ou parágrafo que incentiva</p><p>o cursista à reflexão, trazendo</p><p>perguntas retóricas, reflexões ou</p><p>questões que são respondidas logo</p><p>depois do recurso.</p><p>PODCAST</p><p>Este recurso apresenta de maneira</p><p>transcrita o trecho do conteúdo que</p><p>foi narrado e apresentado em formato</p><p>áudio na versão on-line do curso.</p><p>CITAÇÃO</p><p>Transcrições exatas de partes dos</p><p>conteúdos dos autores utilizados nos</p><p>materiais didáticos.</p><p>OUTRA PERSP CTIVA</p><p>Trecho de conteúdo que traz outras</p><p>perspectivas em relação às questões</p><p>enraizadas no senso comum.</p><p>SÍNTESE DO MÓDULO</p><p>Trecho de conteúdo que contempla</p><p>uma síntese dos pontos mais</p><p>importantes vistos no módulo.</p><p>DESTAQUE</p><p>Trechos de conteúdos importantes</p><p>para contribuir no aprendizado</p><p>do cursista.</p><p>VERBETE</p><p>Recurso utilizado para</p><p>explicar termos que</p><p>podem ser desconhecidos</p><p>ao cursista.</p><p>SIGLAS</p><p>CDESC - Centro de Estudos sobre Drogas e Desenvolvimento</p><p>Social Comunitário</p><p>EUA - Estados Unidos da América</p><p>LSD - Dietilamida do Ácido Lisérgico</p><p>MDMA - Metilenodioximetanfetamina/Ecstasy</p><p>PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento</p><p>SENAD - Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos</p><p>SIMCI - Sistema Integrado de Monitoramento de Cultivos Ilícitos</p><p>SNC - Sistema Nervoso Central</p><p>UNODC - Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime</p><p>SUMÁRIO</p><p>APRESENTAÇÃO 12</p><p>UNIDADE 1 | AS “DROGAS” NO MUNDO OCIDENTAL 14</p><p>UNIDADE 2 | POR QUE E COMO SÃO ESTUDADAS AS</p><p>DROGAS NA PERSPECTIVA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS? 17</p><p>2.1 O senso comum e o método científico 17</p><p>2.2 Os “sensos comuns” em torno das drogas 21</p><p>UNIDADE 3 | CRIMINALIZAR, DESCRIMINALIZAR,</p><p>LEGALIZAR: O QUE SIGNIFICA CADA UMA</p><p>DESSAS PALAVRAS? 24</p><p>UNIDADE 4 | O TEMA DAS DROGAS NA HISTÓRIA 28</p><p>4.1 Primeiras regulações e proibições das drogas 33</p><p>REFERÊNCIAS 40</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>10</p><p>Frederico Policarpo de Mendonça Filho</p><p>CONTEUDISTAS DO MÓDULO</p><p>Marcos Alexandre Veríssimo da Silva</p><p>Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de</p><p>Janeiro (IFCS/UFRJ-2003), mestrado em Antropologia pela Universidade</p><p>Federal Fluminense (PPGA/UFF-2007), doutorado em Antropologia pela</p><p>mesma universidade (PPGA/UFF-2013), com bolsa-sanduíche na Univer-</p><p>sity of California, Hastings College of the Law/EUA (CAPES/2011-2012).</p><p>É professor adjunto de Antropologia no Departamento de Segurança</p><p>Pública do Programa de Pós-Graduação em Justiça e Segurança e do</p><p>Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, na Universidade</p><p>Federal Fluminense. É pesquisador vinculado ao Instituto Nacional de</p><p>Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Admi-</p><p>nistração de Conflitos (INCT-InEAC/UFF). Tem experiência na área de</p><p>Antropologia, atuando principalmente nos seguintes temas: consumo</p><p>de drogas e sistema de justiça criminal.</p><p>Possui graduação em Ciências Sociais (bacharelado e licenciatura)</p><p>pela Universidade Federal Fluminense, mestrado em Antropologia</p><p>pelo mesmo programa, especialização em Políticas Públicas de Justiça</p><p>Criminal e Segurança Pública pela Universidade Federal Fluminense</p><p>e doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da</p><p>Universidade Federal Fluminense. Pesquisador associado ao Instituto</p><p>de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos</p><p>(INCT-InEAC), onde coordena o subprojeto Laboratório de Iniciação</p><p>Acadêmica em Administração de Conflitos (LABIAC). Áreas de in-</p><p>teresse: conflitos relacionados às “drogas” (lícitas e ilícitas) e seus</p><p>usos, mercados, produção e repressão; antropologia visual; e estudos</p><p>de manifestações artísticas e culturais construídas por grupos sociais</p><p>mais ou menos definidos.</p><p>Fernanda Novaes Cruz</p><p>Pesquisadora no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São</p><p>Paulo - NEV/USP. Fez estágio de pós-doutorado no NEV/USP (2019-</p><p>2024). Doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos</p><p>(IESP-UERJ).</p><p>Mestre em Ciências Sociais pelo PPCIS- UERJ. Graduada</p><p>em Ciências Sociais (UERJ) e Comunicação Social (UFRJ). Pesquisa-</p><p>dora Associada do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Sui-</p><p>cídio (IPPES) e do Núcleo de Pesquisas em Direito e Ciências Sociais</p><p>(DECISO-IESP-UERJ). Realizou Doutorado Sanduíche pela CAPES no</p><p>Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Oxford e Bolsa</p><p>de Estágio de Pesquisa no Exterior (BEPE-FAPESP) na Universidade de</p><p>Bradford. Tem experiência com pesquisas quantitativas e qualitativas,</p><p>especialmente com ênfase em violência e segurança pública, atuando</p><p>principalmente nos seguintes temas: qualidade de vida do trabalho</p><p>policial, suicídio policial, política de drogas e funcionamento das ins-</p><p>tituições policiais e judiciais.</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>11</p><p>Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade</p><p>Federal do Rio Grande do Sul (1968), mestrado em Antropologia Social</p><p>pelo Museu Nacional UFRJ (1978), doutorado em Antropologia pela Har-</p><p>vard University (1986), pós-doutorado na University of Alabama at Bir-</p><p>mingham (1990). É coordenador do Instituto de Estudos Comparados em</p><p>Administração de Conflitos, professor emérito da Universidade Federal</p><p>Fluminense (INCT-InEAC/ UFF), professor permanente do Programa</p><p>de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga de Almeida (UVA),</p><p>professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia</p><p>e professor colaborador do Mestrado em Justiça e Segurança da Universi-</p><p>dade Federal Fluminense (UFF). Membro titular da Academia Brasileira</p><p>de Ciências e comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico do</p><p>Governo do Brasil. Tem experiência na área de Teoria Antropológica, com</p><p>ênfase em Método Comparativo, Antropologia do Direito e da Política,</p><p>Processos de Administração de Conflitos e Produção de Verdades.</p><p>Roberto Kant de Lima</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>12</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>Olá, cursista!</p><p>Bem-vindo(a) ao nosso primeiro módulo do curso COMPASSO - Curso</p><p>sobre Políticas de Drogas e Sociedade: perspectivas e discussões atuais.</p><p>O termo “drogas” não tem uma definição clara e objetiva. O seu sig-</p><p>nificado depende do contexto social em que é utilizado, bem como da</p><p>área de conhecimento que o mobiliza. Neste módulo, apresentaremos</p><p>uma abordagem para o tema das drogas a partir da perspectiva das</p><p>ciências sociais. Introduziremos alguns dos modelos de regulamen-</p><p>tação que têm sido adotados para lidar com o tema; e começaremos</p><p>a discutir os processos sócio-históricos que contribuíram para a</p><p>proibição do uso, da produção e da comercialização de uma série de</p><p>substâncias em diversos países do mundo.</p><p>Para aprofundar sua compreensão sobre a temática do curso, conforme</p><p>apresentado no vídeo de ambientação e funcionamento do curso,</p><p>utilize o “Glossário de termos sobre drogas”, que foi desenvolvido e</p><p>publicado por meio de uma cooperação internacional entre o Centro</p><p>de Estudos sobre Drogas e Desenvolvimento Social Comunitário</p><p>(CDESC) e o Sistema Integrado de Monitoramento de Cultivos Ilícitos</p><p>(SIMCI – Colômbia) com o objetivo de padronizar termos e promover</p><p>um melhor entendimento de conceitos relacionados às drogas.</p><p>O CDESC é uma parceria entre a Secretaria Nacional de Políticas</p><p>sobre Drogas e Gestão de Ativos (SENAD) do Ministério da Justiça</p><p>e Segurança Pública do Brasil, o Programa das Nações Unidas para</p><p>o Desenvolvimento (PNUD) e o Escritório das Nações Unidas sobr</p><p>Drogas e Crime (UNODC).</p><p>Esse glossário está disponível em formato PDF no Ambiente Virtual</p><p>de Aprendizagem, no menu lateral de todos os módulos do curso,</p><p>denominado GLOSSÁRIO GERAL.</p><p>OBJETIVOS DO MÓDULO</p><p>z Permitir aos cursistas a compreensão crítica do conceito de</p><p>“drogas” na contemporaneidade e suas implicações.</p><p>z Abordar a diferenciação entre formulações obtidas</p><p>a partir do senso comum e aquelas construídas a partir</p><p>de método científico.</p><p>z Explicar a diferenciação entre a enunciação de problemas</p><p>sociais e a formulação de perspectivas analíticas.</p><p>z Apresentar os aspectos históricos mais relevantes sobre o</p><p>tema das drogas e das políticas sobre drogas.</p><p>MÓDULO 1</p><p>Aponte a</p><p>câmera do seu</p><p>dispositivo móvel</p><p>(smartphone ou</p><p>tablet) para o QR</p><p>Code ao lado e</p><p>assista ao vídeo</p><p>de apresentação</p><p>do módulo!</p><p>VÍDEO</p><p>https://youtu.be/AaI6OeZVH2I</p><p>MÓDULO 1</p><p>UNIDADE 1</p><p>AS “DROGAS” NO MUNDO OCIDENTAL</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>14</p><p>UNIDADE 1</p><p>AS “DROGAS” NO MUNDO OCIDENTAL</p><p>Antes de tudo, vamos começar este curso com uma pergunta simples:</p><p>você sabe o que são drogas? Apesar de ser simples, a resposta a essa</p><p>pergunta é complexa, porque a definição de drogas depende de uma</p><p>série de fatores. Por exemplo, podemos, em uma primeira abor-</p><p>dagem, pensar as drogas do ponto de vista farmacológico e, portanto,</p><p>defini-las como substâncias que podem afetar o funcionamento de</p><p>um organismo. As drogas especificamente psicoativas podem ser</p><p>classificadas em grupos a partir dos efeitos que elas podem gerar</p><p>no funcionamento do Sistema Nervoso Central (SNC), conforme</p><p>apresentado a seguir.</p><p>Diminuem a velocidade das mensagens que viajam</p><p>entre o cérebro e o corpo. Eles podem reduzir</p><p>a excitação e a estimulação, fazendo com que a pessoa</p><p>se sinta relaxada ou sonolenta.</p><p>Depressoras/sedativas</p><p>Aceleram as mensagens que viajam entre o cérebro e o</p><p>corpo. Elas podem fazer com que a pessoa se sinta mais</p><p>desperta, alerta, confiante ou enérgica.</p><p>Estimulantes</p><p>Afetam todos os sentidos, alterando o pensamento,</p><p>a percepção do tempo e as emoções de uma pessoa.</p><p>Também podem fazer com que a pessoa tenha</p><p>alucinações, veja ou ouça coisas que não existem</p><p>ou que estejam distorcidas.</p><p>Psicodélicas</p><p>Há controvérsias a respeito de uma quarta classificação, a dos pertur-</p><p>badores, que se refere notadamente aos canabinoides e que, embora</p><p>próximas dos psicodélicos, têm efeitos associados às outras três</p><p>classificações. Resumidamente, elas podem fazer com que a pessoa</p><p>se sinta feliz, relaxada, ansiosa ou paranoica.</p><p>Também podemos responder à referida pergunta traçando relação</p><p>com a natureza da substância: e desse ponto de vista as drogas são</p><p>classificadas como sintéticas, como a anfetamina e os ansiolíticos,</p><p>ou como de origem “natural”, como a maconha e a cocaína.</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>15</p><p>Por outro lado, a pergunta daqueles que querem saber o que são</p><p>drogas poderia ter como base o ponto de vista do estatuto jurídico,</p><p>que classifica as substâncias entre lícitas e ilícitas.</p><p>Lícitas</p><p>Álcool</p><p>Tabaco</p><p>Cafeína</p><p>Solventes</p><p>Ilícitas</p><p>Cocaína</p><p>Maconha</p><p>LSD</p><p>MDMA (Ecstasy)</p><p>Heroína</p><p>Fonte: Adaptado de Alarcon</p><p>(2012, p. 105).</p><p>Não é preciso ficar confuso com essas listas, ou ficar preocupado em</p><p>tentar decorá-las para ter a resposta na ponta da língua.</p><p>Para pensar</p><p>O mais importante para responder à pergunta disparadora</p><p>do nosso debate é entender que a resposta será sempre</p><p>contextual. Ou seja, é preciso entender que a própria palavra</p><p>“droga” é utilizada de formas variadas, para classificar uma</p><p>série de substâncias.</p><p>Além disso, essas classificações são dinâmicas, o que corresponde</p><p>a dizer que podem ser reformuladas. Por exemplo, atualmente, a</p><p>planta Cannabis Sativa L., mais conhecida no Brasil como maconha,</p><p>está deixando de ser uma droga ilícita e, aos poucos, sendo consi-</p><p>derada – e não sem muita controvérsia – como uma droga lícita.</p><p>Em alguns países, a mudança na classificação legal da planta Can-</p><p>nabis para lícita já é uma realidade, inclusive com a permissão do</p><p>seu livre consumo por adultos, como no Uruguai e no Canadá, para</p><p>citar apenas dois casos.</p><p>MÓDULO 1</p><p>UNIDADE 2</p><p>POR QUE E COMO SÃO ESTUDADAS AS DROGAS</p><p>NA PERSPECTIVA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS?</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>17</p><p>UNIDADE 2</p><p>POR QUE E COMO SÃO ESTUDADAS</p><p>AS DROGAS NA PERSPECTIVA DAS</p><p>CIÊNCIAS SOCIAIS?</p><p>Conforme vimos na Unidade 1, existem muitas abordagens possíveis</p><p>para estudarmos o tema das drogas. Poderíamos estudar a compo-</p><p>sição ou as suas peculiaridades químicas, os diferentes efeitos que</p><p>o consumo de uma determinada substância gera nos indivíduos,</p><p>ou ainda os elementos que contribuíram para que uma determinada</p><p>droga seja considerada lícita ou ilícita.</p><p>Todas essas abordagens podem nos oferecer conhecimentos impor-</p><p>tantes sobre o assunto. E, apesar das diferenças, todas elas possuem</p><p>algo em comum: um método científico. O método científico é o que</p><p>nos ajuda a analisar cientificamente uma hipótese, fazer um expe-</p><p>rimento, comprovar e/ou rejeitar uma hipótese, e talvez o elemento</p><p>mais central: possibilita ser analisado, criticado e ou validado por</p><p>outros pesquisadores da área.</p><p>Neste curso, vamos explorar o tema das drogas a partir do paradigma</p><p>das ciências sociais. Com essa abordagem, esperamos que você, cur-</p><p>sista, seja capaz de analisar os fatores históricos, sociais e culturais</p><p>que contribuíram para a formação das percepções e opiniões das</p><p>pessoas sobre o tema das drogas.</p><p>2.1 O senso comum e o método científico</p><p>O sociólogo Anthony Giddens (2012) nos ensina que a maior parte</p><p>das pessoas interpreta o mundo a partir do que é familiar a elas.</p><p>Essas interpretações, que promovem uma espécie de sabedoria de</p><p>navegação social, são identificadas na literatura sociológica pela</p><p>expressão senso comum.</p><p>O chamado senso comum é tudo aquilo que um</p><p>determinado sujeito, inserido em uma dada realidade</p><p>social, compartilha de sua cultura, de seus hábitos e de</p><p>suas práticas sociais. Forma também o conteúdo das</p><p>conversas e, por extensão, informa as redes interpretativas</p><p>através das quais amplos consensos sociais vão sendo</p><p>formados, reformados e eventualmente contestados.</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>18</p><p>O senso comum é marcado por:</p><p>Aplicabilidade Acessibilidade Praticidade</p><p>Se aplica às</p><p>rotinas e desafios</p><p>da vida social.</p><p>Seus vocabulários</p><p>e lógicas são</p><p>acessíveis a</p><p>praticamente</p><p>toda a população.</p><p>Resolvem ou</p><p>administram</p><p>problemas</p><p>práticos</p><p>da vida</p><p>cotidiana.</p><p>Sendo assim, o senso comum tende a operar na lógica da simplificação</p><p>e da naturalização. Essa forma de ler o mundo, apesar de ser simples</p><p>e acessível a todos, por vezes pode estar impregnada de preconceitos,</p><p>especialmente quando diz respeito ao desconhecido.</p><p>Podemos encontrar autores e professores que afirmam, para exem-</p><p>plificar, que o senso comum é como o ato de dirigir um veículo au-</p><p>tomotor nas ruas e estradas de nossas cidades. Ou seja, o condutor</p><p>de veículo atento ao que faz, que dirige como se imagina que se deve</p><p>dirigir, fará uma série de movimentos, com os membros superiores,</p><p>os inferiores e o pescoço, automaticamente, enquanto conduz o veí-</p><p>culo. Imagine se o motorista se vê diante de um caminhão aparen-</p><p>temente desgovernado, deslocando-se rápida e perigosamente em</p><p>sua direção. A sequência de movimentos muito bem coordenados que</p><p>terá que fazer para escapar dessa situação de extremo perigo soará</p><p>como automática, inconsciente. De fato, se tivesse que reproduzir</p><p>uma equação matemática para calcular a velocidade e a angulação</p><p>da rota de colisão do caminhão em direção a seu carro, certamente</p><p>não sobreviveria para contar a história.</p><p>Esse hipotético viajante das ruas aqui retratado, que utiliza sua des-</p><p>treza adquirida na prática da condução de veículos, está em uma</p><p>posição análoga à dos sujeitos, pessoas, indivíduos que utilizam o</p><p>senso comum para navegar socialmente, para ganhar a vida, namorar,</p><p>cumprir obrigações sociais, profissionais e de parentesco, interpretar</p><p>os fatos que lhes são apresentados ao longo da vida etc.</p><p>A ciência, em contrapartida, utiliza métodos sistemáticos de inves-</p><p>tigação empírica, análise de dados, pensamento teórico e a avaliação</p><p>lógica de argumentos para desenvolver um corpus de conhecimento</p><p>sobre um determinado assunto (Giddens, 2012).</p><p>Para ser aceita como válida, uma pesquisa científica precisa seguir</p><p>uma série de etapas, tal como demonstra o esquema a seguir.</p><p>Aponte a</p><p>câmera do seu</p><p>dispositivo móvel</p><p>(smartphone ou</p><p>tablet) para o QR</p><p>Code ao lado e</p><p>assista ao vídeo</p><p>de animação</p><p>sobre os aspectos</p><p>do senso comum!</p><p>VÍDEO</p><p>https://youtu.be/T0qwOoDYNxY</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>19</p><p>Definição do problema: o pesquisador</p><p>seleciona o problema que ele deseja investigar.1</p><p>Execução da pesquisa: etapa de coleta</p><p>dos dados.5</p><p>Etapas da pesquisa científica</p><p>Seus resultados são registrados e discutidos</p><p>na comunidade acadêmica mais ampla –</p><p>levando talvez ao início de novas pesquisas.</p><p>Interpretação dos resultados: análise</p><p>dos dados coletados anteriormente;</p><p>o pesquisador analisa se a hipótese</p><p>da pesquisa se confirma ou não.</p><p>6</p><p>Apresentação dos resultados</p><p>da pesquisa: o pesquisador apresenta</p><p>os seus resultados, analisando-os em</p><p>relação aos estudos anteriores realizados</p><p>sobre o tema. A apresentação pode se dar</p><p>por meio de artigos científicos, em reuniões</p><p>ou congressos científicos, bancas</p><p>de avaliação, entre outros.</p><p>7</p><p>Revisão de literatura: o pesquisador deve</p><p>familiarizar-se com as pesquisas realizadas</p><p>anteriormente no tema a ser investigado</p><p>ou em temas correlatos.</p><p>2</p><p>Formulação da hipótese: usualmente,</p><p>nesta etapa, o pesquisador formula uma</p><p>pergunta de pesquisa que pode ou não ser</p><p>confirmada pela pesquisa.</p><p>3</p><p>Delineamento da pesquisa: o pesquisador</p><p>escolhe as técnicas e métodos que serão</p><p>utilizados e que poderão contribuir</p><p>para responder à(s) sua(s) pergunta(s)</p><p>de pesquisa.</p><p>4</p><p>Fonte: Adaptado de Giddens (2012).</p><p>As ciências sociais se dedicam a compreender, de forma mais ampla do</p><p>que as explicações do senso comum, por que agimos e como agimos.</p><p>Por meio de métodos científicos, as pesquisas nessa área do conhe-</p><p>cimento buscam demonstrar como muitas coisas que interpretamos</p><p>como naturais são profundamente influenciadas por fatos históricos</p><p>e processos sociais.</p><p>Diferentemente daquilo que acontece com físicos, químicos e boa</p><p>parte dos biólogos, cujas pesquisas se dão em laboratórios guardados</p><p>em condições controladas de temperatura e pressão, os cientistas</p><p>sociais têm a vida social, na qual circulam como seres viventes, como</p><p>seu “laboratório”. Enquanto sujeito que não apenas estuda, mas vive</p><p>imerso nesse meio social, as inquietações que dão origem a seus</p><p>projetos de pesquisa, não raro, surgem em articulação com seus</p><p>desejos ou sistemas corporativos de crenças.</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>20</p><p>Embora esse fenômeno afete todos os campos de produção do conhe-</p><p>cimento, os pesquisadores das ciências sociais estão especialmente</p><p>intricados com os problemas sociais que estudam, e isso pode ser um</p><p>grande complicador para seu trabalho. Como observou o sociólogo</p><p>francês Remi Lenoir (1998), é para isso que devemos cuidadosamente</p><p>atentar no momento de construir nossas análises sociológicas a partir</p><p>do terreno minado dos problemas sociais.</p><p>O papel do pesquisador é compreender os “problemas sociais”, é,</p><p>portanto, fornecer subsídios confiáveis na forma de conhecimento</p><p>para avançarmos no entendimento dos processos sociais. O primeiro</p><p>passo para se compreender um “problema social” é considerá-lo</p><p>como resultado de um trabalho social permanente, da atividade</p><p>coletiva de várias pessoas, com interesses e motivações diversos.</p><p>Isto é, transformar o “problema social” em um objeto sociológico.</p><p>O que é construído como ‘problemas sociais’ varia segundo as</p><p>épocas e as regiões e pode desaparecer como tal, precisamente</p><p>no momento em que subsistem os fenômenos designados por</p><p>eles. É o caso, por exemplo, da pobreza que, nos Estados Unidos,</p><p>foi um grave ‘problema social’ durante os anos 30, desapareceu</p><p>na década de 1940-1950 e voltou a aparecer nos anos 80;</p><p>ou ainda o caso do racismo que só se transformou em</p><p>um</p><p>‘problema social’ nos anos 60.</p><p>Lenoir, 1998, p. 64</p><p>Considerando que o “problema social” não é algo dado, mas cons-</p><p>truído socialmente, o passo seguinte para compreendê-lo é analisar</p><p>o contexto em que surge.</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>21</p><p>PODCAST TRANSCRITO</p><p>Para que alguma prática ou condição social se torne um</p><p>“problema social”, é preciso que um grupo de pessoas consiga</p><p>chamar a atenção de todo mundo, que seja capaz de mobilizar a</p><p>opinião pública em seu favor, fazendo com que a sua definição</p><p>seja aceita. Se esse primeiro esforço for bem-sucedido,</p><p>o “problema social” começa a ser “resolvido”, isto é, serão</p><p>criados meios e ferramentas para, dependendo do “tipo de</p><p>problema”, avaliar a sua “dimensão”, por meio de estatísticas</p><p>de empresas e institutos, para “combatê-lo” com novos</p><p>departamentos policiais; para “estudá-lo”, com novas</p><p>especialidades de formação, e assim por diante. Quanto mais</p><p>bem-sucedido for o trabalho de definição, mais investimentos e</p><p>atenção o “problema social” vai receber.</p><p>A análise sociológica de todos esses elementos, dos grupos envolvidos,</p><p>passando pelos meios de veiculação mobilizados, até a institucionali-</p><p>zação das ações para “resolver” o “problema social”, é o que produz</p><p>evidências científicas. Ao contrário do senso comum, as evidências</p><p>científicas são testadas e discutidas.</p><p>2.2 Os “sensos comuns” em torno</p><p>das drogas</p><p>A formulação “as ‘drogas’ matam e fazem mal” é uma afirmação</p><p>amplamente compartilhada por porções da população brasileira e</p><p>mundial atualmente. A cientista política canadense Line Beauchesne,</p><p>com vasta experiência de pesquisa nesse campo, demonstra que certo</p><p>terror criado sobre as “drogas”, muito longe de poupar os indivíduos</p><p>e as coletividades dos males que tais substâncias eventualmente</p><p>podem trazer, acaba se tornando parte do problema.</p><p>As drogas podem corresponder a necessidades de descontração,</p><p>bem-estar e servir de suporte de maneira adequada a certas</p><p>atividades e certos estilos de vida. Todavia, se o consumo</p><p>de drogas pode fornecer benefícios tanto físicos quanto</p><p>psicológicos, estes podem se transformar em malefícios para a</p><p>saúde do consumidor e, mesmo, para sua organização de vida,</p><p>se o consumo não puder mais ser controlado adequadamente</p><p>segundo as necessidades e capacidades do consumidor,</p><p>ou os valores e limites de seu meio social. Os benefícios podem</p><p>também se transformar em malefícios caso os indivíduos</p><p>tenham associado um medo muito forte a estes produtos e a</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>22</p><p>uma forte convicção de seu teor nocivo. No Quebec,</p><p>por exemplo, como em outros lugares, no passado, quando</p><p>médicos e pacientes curados convenceram uma parte da</p><p>população de que a masturbação podia causar cegueira, loucura</p><p>e, mesmo, provocar a morte, diversas pessoas, após a prática da</p><p>masturbação, ficaram cegas, loucas, e mesmo morreram.</p><p>A crença no efeito de uma ação ou efeito placebo de um produto</p><p>não pode ser negligenciada no que diz respeito ao discurso-</p><p>pânico sobre a questão das drogas. O estresse da desobediência,</p><p>a culpa e a crença, na realidade dos efeitos anunciados, podem</p><p>ser suficientes para levar pessoas a confirmar em seus corpos e</p><p>comportamentos os malefícios dos produtos.</p><p>Beauchesne, 2014, p. 28</p><p>Portanto, mais do que negar as ideias do senso comum, neste curso</p><p>exploraremos as origens delas e demonstraremos que muitas das</p><p>que parecem inatas ou imutáveis estão sujeitas às mutações sociais.</p><p>Além disso, apresentaremos como as evidências vindas do mundo</p><p>científico têm contribuído para desmistificarmos algumas das visões</p><p>vigentes nos sensos comuns sobre o tema das drogas.</p><p>Aponte a</p><p>câmera do seu</p><p>dispositivo móvel</p><p>(smartphone ou</p><p>tablet) para o QR</p><p>Code ao lado e</p><p>assista ao vídeo</p><p>que trata sobre</p><p>a distinção entre</p><p>senso comum</p><p>e perspectiva</p><p>analítica.</p><p>VÍDEO</p><p>https://youtu.be/MXHXARFvdLk</p><p>MÓDULO 1</p><p>UNIDADE 3</p><p>CRIMINALIZAR, DESCRIMINALIZAR, LEGALIZAR:</p><p>O QUE SIGNIFICA CADA UMA DESSAS PALAVRAS?</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>24</p><p>UNIDADE 3</p><p>CRIMINALIZAR, DESCRIMINALIZAR,</p><p>LEGALIZAR: O QUE SIGNIFICA CADA</p><p>UMA DESSAS PALAVRAS?</p><p>Uma vez que propomos estudar o tema das drogas a partir da pers-</p><p>pectiva da sociedade, precisamos compreender o estado atual do</p><p>tema em uma determinada sociedade, assim como os processos que</p><p>nos guiaram até o momento que estamos hoje.</p><p>Émile Durkheim, considerado um dos pais fundadores da sociologia,</p><p>contribuiu significativamente para que as questões que antes eram</p><p>atribuídas a um comportamento individual passassem a ser concebidas</p><p>como forças e relações sociais (Giddens, 2011). Durkheim analisou</p><p>temas como o crime, o desvio e o direito. Para ele, o direito é um in-</p><p>dicador da evolução das sociedades (Lallement, 2008). A partir dele</p><p>podemos identificar os valores e crenças vigentes em uma determi-</p><p>nada sociedade. Ele afirma que no mundo social o direito teria duas</p><p>funções: atingir aqueles que cometem as transgressões e restituir a</p><p>sociedade, um determinado indivíduo ou um grupo de pessoas do</p><p>direito que foi lesado. Em uma sociedade em movimento, as normas</p><p>e leis que a regem também estão em movimento. Em razão disso,</p><p>determinadas condutas, que em dado momento são consideradas</p><p>criminosas, podem deixar de ser, ou pode ocorrer o processo inverso,</p><p>uma conduta que não era considerada criminosa em um determinado</p><p>momento histórico tornar-se criminosa.</p><p>Outra contribuição importante para o tema é a do sociólogo estadu-</p><p>nidense Howard Becker (2005). Ele é um dos principais autores do</p><p>que chamamos de “sociologia do desvio”. A partir de uma pesquisa</p><p>de campo com musicistas de jazz e usuários de maconha na cidade</p><p>de Chicago (EUA), ele defende que o desvio é uma criação social,</p><p>ou seja, a sociedade define o que é o comportamento normal e, con-</p><p>sequentemente, o comportamento anormal (desviante). Em geral,</p><p>as regras que definem um desvio seriam criadas por pessoas em</p><p>posição de maior poder em uma sociedade e se direcionariam às que</p><p>estão em posição de menor poder.</p><p>Émile Durkheim.</p><p>Fonte: Wikipédia.</p><p>Howard Becker.</p><p>Fonte: © [Sophie Bassouls/Sygma]</p><p>|The New York Times.</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>25</p><p>Portanto, para Becker, o quanto um determinado ato será</p><p>tratado ou não como desvio depende de quem o comete</p><p>e de quem se sente prejudicado por ele, assim como as</p><p>regras tendem a ser aplicadas mais a algumas pessoas</p><p>do que a outras.</p><p>Portanto, se Durkheim nos ensina que compreender as regras formais</p><p>– definidas pelo direito – nos ajuda a compreender os valores de</p><p>uma determinada sociedade, Becker nos ensina como a construção</p><p>dessas regras usualmente reproduz estruturas de poder vigentes</p><p>na sociedade. Além das contribuições de Durkheim e de Becker,</p><p>uma série de autores, no Brasil e no mundo, tem se dedicado a</p><p>compreender diversos aspectos sobre o tema das drogas a partir</p><p>das ciências sociais. Alguns deles serão apresentados ao longo deste</p><p>curso. Mas, em resumo, uma abordagem para o tema das drogas a</p><p>partir das ciências sociais busca demonstrar que:</p><p>[...] não há uma substância e nem um indivíduo como elementos</p><p>universais e objetivos, mas há contextos sociais e culturais</p><p>diferentes, de substâncias diferentes e realizados por indivíduos</p><p>diferentes e, sem a devida atenção a essa diversidade, não é</p><p>possível uma compreensão razoável do fenômeno.</p><p>Fiore, 2020, p. 26-27</p><p>Se consideramos que a forma de gestão do tema das drogas é social,</p><p>precisamos conhecer algumas das formas como as sociedades vêm</p><p>lidando com essa questão, seja no sentido de proibir, controlar ou até</p><p>mesmo de não opinar sobre o seu uso. No esquema a seguir, apresen-</p><p>tamos algumas dessas possibilidades. No Módulo 5, discutiremos um</p><p>pouco mais o que alguns desses termos significam nos atuais debates</p><p>a respeito</p><p>da política sobre drogas.</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>26</p><p>Tornar uma conduta/prática um crime previsto pelo Código Penal.</p><p>Criminalizar</p><p>O consumo da substância continua sendo crime de acordo com o</p><p>Código Penal, mas é retirada a pena de prisão para o usuário.</p><p>Despenalizar o uso</p><p>Retira a conduta/prática do Código Penal, portanto, deixa de ser</p><p>crime. No entanto, podem ser estabelecidas ou medidas</p><p>administrativas, tais como multa, para determinadas condutas</p><p>consideradas inadequadas.</p><p>Descriminalizar</p><p>Estabelecer uma ou mais normas ou leis para a produção, venda</p><p>ou consumo de substâncias psicoativas.</p><p>Regulamentar</p><p>Torna lícita todas as atividades ligadas a produção, comércio</p><p>e consumo das drogas.</p><p>Legalizar</p><p>Aponte a câmera</p><p>do seu dispositivo</p><p>móvel (smartphone</p><p>ou tablet) para o</p><p>QRCode ao lado</p><p>e assista ao vídeo</p><p>sobre as diferentes</p><p>categorias de</p><p>controle das drogas.</p><p>VÍDEO</p><p>https://youtu.be/e2uTHrXC2HU</p><p>MÓDULO 1</p><p>UNIDADE 4</p><p>O TEMA DAS DROGAS NA HISTÓRIA</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>28</p><p>UNIDADE 4</p><p>O TEMA DAS DROGAS NA HISTÓRIA</p><p>Conhecer os processos históricos em que se desenvolveram as nossas</p><p>concepções nos ajuda a desnaturalizar ideias que pareciam naturais e</p><p>compreender como foram construídas as visões que possuímos hoje</p><p>sobre um determinado assunto. Isso se aplica ao tema das drogas.</p><p>O historiador Henrique Carneiro (2005), um dos principais especia-</p><p>listas sobre o tema no Brasil, nos indica uma possível etimologia da</p><p>palavra drogas.</p><p>Verbete</p><p>Etimologia:</p><p>1. Parte da gramática que trata da</p><p>origem e formação das palavras.</p><p>2. Origem de uma palavra.</p><p>A palavra ‘droga’ provavelmente deriva do termo holandês</p><p>droog, que significava produtos secos e servia para designar,</p><p>dos séculos XVI ao XVIII, um conjunto de substâncias naturais</p><p>utilizadas, sobretudo, na alimentação e na medicina. Mas o</p><p>termo também foi usado na tinturaria ou como uma substância</p><p>que poderia ser consumida por mero prazer.</p><p>Carneiro, 2005, p. 11</p><p>Sendo assim, a análise da provável origem da palavra “droga” já nos</p><p>mostra que o termo foi usado com diferentes significados ao longo dos</p><p>séculos: na alimentação, na medicina, na tinturaria ou para definir</p><p>as práticas sociais mais diversas.</p><p>Fonte: © [master1305] / Freepik.</p><p>Se observarmos a grafia da palavra utilizada em diversos idiomas</p><p>contemporâneos, veremos que a vinculação etimológica, tese de</p><p>Carneiro, é consistente.</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>29</p><p>“Droga” → português, espanhol, italiano</p><p>“Drug” → inglês</p><p>“Drogue” → francês</p><p>“Drosch” → alemão</p><p>Esses exemplos são para citar algumas línguas faladas ao redor do</p><p>mundo e de alguma forma vinculadas ao que se convencionou chamar</p><p>de cultura ocidental. Temos, inequivocamente, na etimologia dessa</p><p>palavra, um radical compartilhado.</p><p>Aprofundando mais o assunto, o antropólogo Eduardo Viana Vargas nos</p><p>fornece mais algumas informações importantes sobre o contexto do</p><p>surgimento da palavra “droga” e seus usos. Ele diz que essa etimologia:</p><p>[...] também nos permite situar a emergência do vocábulo</p><p>[droga] diretamente no contexto dos contatos entre os povos</p><p>europeus e seus outros (encarnados, na época, sobretudo pelos</p><p>árabes e demais povos do Oriente), tais como esses contatos se</p><p>deram nos últimos séculos da Idade Média.</p><p>Vargas, 2008, p. 42</p><p>Portanto, além de diferentes significados, a palavra “droga” parece</p><p>ter surgido para dar conta de sentidos que apareceram com força no</p><p>contexto do contato dos povos europeus com outros povos, como os</p><p>árabes e os africanos, e posteriormente os ameríndios, após o fim da</p><p>Idade Média. Ou seja, a palavra “droga” começou a ser usada para</p><p>designar substâncias exóticas, estranhas ao mundo europeu da época,</p><p>coincidindo com o período de inovações nas ciências náuticas, que</p><p>permitiram, por sua vez, uma exploração do mundo em níveis antes</p><p>praticamente impensáveis.</p><p>É importante ressaltar que esse é o período da “expansão europeia”,</p><p>inicialmente para o Oriente, e adiante para a África e América, com as</p><p>“grandes navegações”, que impulsionaram a criação de rotas comerciais</p><p>e, consequentemente, o contato entre os povos. Em suma, ensejaram</p><p>a experiência da diferença cultural em níveis até então inéditos.</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>30</p><p>SAIBA MAIS</p><p>O comércio europeu na época da “expansão” se baseava em</p><p>diversos produtos, entre eles, especiarias, açúcar, temperos</p><p>como cravo, canela, pimenta, gengibre e noz-moscada.</p><p>Também, tecidos, corantes e alimentos típicos de cada região.</p><p>Para saber mais sobre esse período, acesse o link, disponível</p><p>em: https://atlas.fgv.br/marcos/grandes-navegacoes/mapas/</p><p>grandes-navegacoes.</p><p>Através desse contato, uma série de substâncias amplamente classifi-</p><p>cadas como drogas se tornaram conhecidas e muito apreciadas pelos</p><p>europeus. E que drogas eram essas tão valiosas? Muito provavelmente</p><p>você tem na despensa de sua casa, mas nunca pensou nessas substân-</p><p>cias dessa forma: essas “drogas” são as especiarias, tão comuns na</p><p>culinária brasileira. Além delas, outras substâncias que hoje consi-</p><p>deramos alimentos também já foram mais comumente classificadas</p><p>como “drogas”. Veja em seguida alguns exemplos.</p><p>https://atlas.fgv.br/marcos/grandes-navegacoes/mapas/grandes-navegacoes</p><p>https://atlas.fgv.br/marcos/grandes-navegacoes/mapas/grandes-navegacoes</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>31</p><p>Na mesma direção, as substâncias que atraíram o interesse europeu</p><p>por seus efeitos psicofarmacológicos, ou, dito de outra maneira,</p><p>por sua capacidade de alterar os estados de consciência, como o tabaco,</p><p>a maconha e a coca, também foram nomeadas de “drogas”.</p><p>O ponto a ser destacado aqui é que há inúmeras substâncias diferentes</p><p>entre si, além das citadas. Ainda poderíamos incluir o pau-brasil,</p><p>a quina, a copaíba. Como já mencionado, não adianta tentar separar</p><p>essas substâncias em listas ou decorar seus nomes.</p><p>A solução, como também já destacamos, é entender que o</p><p>uso da palavra “droga” se modificou ao longo da história.</p><p>Portanto, não há uma qualidade intrínseca em qualquer</p><p>substância que a conduza a ser classificada, ou não, como</p><p>droga. O foco não deve ser na substância, qualquer que seja</p><p>ela, mas na escolha que é feita, em determinado momento,</p><p>sobre o que é ou não droga.</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>32</p><p>Em seguida, uma vez que se entende como uma substância é defi-</p><p>nida, deve-se focar em como sua produção, circulação, mercados</p><p>e consumo são regulados pela sociedade, por meio de instituições,</p><p>leis e costumes. Assim, há um ponto em comum entre todas essas</p><p>substâncias que, ao longo da história, foram classificadas dessa forma:</p><p>[...] todas essas substâncias vieram de longe, de fora da Europa:</p><p>o açúcar e o café da Arábia, o chá da China, o chocolate e o tabaco</p><p>da América, e mesmo as bebidas destiladas, que aparentemente</p><p>foram inicialmente elaboradas na Europa, só o foram em virtude</p><p>da introdução, naquele continente, do alambique, aparelho que,</p><p>ao que tudo indica, é de origem árabe.</p><p>Vargas, 2008, p. 48</p><p>Esse é um ponto muito importante que a análise etimológica e histórica</p><p>nos indica e que merece ser destacado. A palavra “droga” surgiu no</p><p>contexto de complexos encontros culturais e começou a ser usada para</p><p>classificar substâncias exóticas, desconhecidas do mundo europeu.</p><p>Por serem desconhecidas, as “drogas” foram consideradas muito</p><p>valiosas e desejadas, de tal forma que despertaram muito interesse</p><p>e grande aceitação, por suas potencialidades mercadológicas, espa-</p><p>lhando-se assim pelo mundo todo. É interessante observar que essa</p><p>dupla característica das “drogas”, de algo exótico e desconhecido,</p><p>mas que desperta desejo e aceitação, continua ainda presente</p><p>na</p><p>maneira como os Estados modernos lidam com essas substâncias.</p><p>Por um lado, classificamos como</p><p>“drogas” as substâncias que não</p><p>deveriam fazer parte do mundo</p><p>atual, que devem ser criminalizadas</p><p>e proibidas, taxadas como venenos.</p><p>Por outro lado, também são</p><p>denominadas como “drogas”</p><p>substâncias que nos salvam a vida,</p><p>amplamente desejadas e aceitas,</p><p>que se tornam medicamentos e são</p><p>produzidas em escala industrial.</p><p>Foto: © [itakdalee] / iStock.</p><p>Foto: © [Pixabay] / Pexels.</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>33</p><p>Entre as concepções de veneno e remédio, abre-se ainda um arco de</p><p>outros usos possíveis, hedonísticos, ritualísticos etc.</p><p>Um dos termos mais utilizados como sinônimo de drogas é o de</p><p>fármaco – daí a farmácia e a farmacopeia –, e sua origem é a língua</p><p>grega. Pharmakon era um termo polissêmico (de muitos sentidos)</p><p>e poderia ser remédio, veneno ou até inócuo, a depender da dose,</p><p>do contexto e do objetivo de quem usa ou ministra para uso a outra</p><p>pessoa (Serson, 2007).</p><p>Aponte a câmera</p><p>do seu dispositivo</p><p>móvel (smartphone</p><p>ou tablet) para o</p><p>QR Code ao lado</p><p>e assista ao vídeo</p><p>sobre a diversidade</p><p>na caracterização,</p><p>mercados e consumo</p><p>de “drogas”</p><p>em diferentes</p><p>sociedades!</p><p>VÍDEO</p><p>4.1 Primeiras regulações e proibições</p><p>das drogas</p><p>É difícil assegurar qual foi a primeira regulação estatual ou mesmo</p><p>a primeira proibição de alguma droga no mundo. Isso porque nem</p><p>sempre temos os registros históricos acessíveis das normas e regras</p><p>que regeram determinadas sociedades. No entanto, a partir da histo-</p><p>riografia, somos capazes de encontrar alguns momentos históricos</p><p>que são considerados marcos no mundo Ocidental. Nesta unidade,</p><p>falaremos sobre o caso do álcool e da maconha.</p><p>Atualmente o consumo de álcool é amplamente disseminado; portanto,</p><p>ele é considerado uma droga lícita em diversos países. Entretanto,</p><p>ao longo da história, o consumo e a venda de álcool foram objetos</p><p>de uma série de disputas que culminaram em diferentes iniciativas</p><p>de proibição e/ou controle.</p><p>https://youtu.be/HsX-LGM78mU</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>34</p><p>1730</p><p>Em poucas décadas, seu consumo</p><p>proliferou e, por volta de 1730,</p><p>o consumo massivo, especialmente</p><p>entre as pessoas mais pobres,</p><p>se tornou um problema social.</p><p>Naquele contexto, o álcool aparecia</p><p>para os mais pobres como uma saída</p><p>para lidar com as condições de</p><p>miserabilidade enfrentadas pelo país.</p><p>Sérgio Shecaira (2014) analisa a</p><p>gênese da proibição do álcool e</p><p>demonstra como, por volta de</p><p>1690, sua produção e consumo</p><p>foram amplamente incentivados</p><p>na Inglaterra.</p><p>1690</p><p>Em resposta a esse uso, os setores</p><p>mais privilegiados da sociedade</p><p>passaram a defender políticas que</p><p>restringissem o acesso das classes</p><p>mais pobres ao álcool.</p><p>Em 1736, foi aprovada uma forte</p><p>taxação à bebida, o que acabou por</p><p>restringir a possibilidade de</p><p>consumo pelos setores mais pobres.</p><p>Em paralelo a isso, desenvolveu-se</p><p>uma série de práticas para alterar a</p><p>percepção social acerca do álcool,</p><p>e o seu consumo, que antes era</p><p>incentivado, passa a ser considerado</p><p>algo a ser combatido.</p><p>1736</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>35</p><p>Um processo semelhante também foi experienciado nos Estados</p><p>Unidos anos depois. Durante o final do século XIX, o chamado “mo-</p><p>vimento de temperança”, sustentado por setores tradicionais e com</p><p>tendências religiosas, intensificou o incentivo pela proibição do uso</p><p>de bebidas alcóolicas no país. Diversas políticas de controle do ál-</p><p>cool foram implementadas nos Estados Unidos ao longo de décadas,</p><p>chegando ao auge com a promulgação de sua proibição através da Lei</p><p>Seca, que vigorou entre 1919 e 1933 (Shecaira, 2014).</p><p>Mesmo com a revogação da Lei Seca, o espírito de proibição</p><p>que pairava sobre as drogas permaneceu, e novos hábitos</p><p>de consumo foram sendo impostos estatalmente. Nos anos</p><p>seguintes, outras proibições mais severas e abrangentes</p><p>estariam por vir. O próximo passo seria a proibição da maconha.</p><p>Shecaira, 2014, p. 337-338</p><p>Quando chegamos a um riacho, encontramos por lá pelo menos</p><p>umas dez pessoas, rapazes e moças de uma fazenda vizinha que</p><p>já eram conhecidos do Belchior e nos receberam muito bem.</p><p>Eles tinham liamba, e me ofereceram. Eu já tinha sentido o</p><p>cheiro na senzala e percebido que as pessoas ficavam muito</p><p>felizes de fumar, e foi essa sensação que eu tive, de alegria.</p><p>Primeiro achei que não tinha acontecido nada, mas logo comecei</p><p>a sentir uma moleza pelo corpo, os movimentos ficando cada vez</p><p>mais preguiçosos, assim como também tive a impressão de que a</p><p>água do riacho corria mais devagar.</p><p>Gonçalves, 2021, p. 120</p><p>Já o tema da proibição da maconha nos remete quase que imedia-</p><p>tamente à história da proibição que ocorreu nos Estados Unidos a</p><p>partir do século XIX, tema que exploraremos no próximo módulo do</p><p>curso. Mas você sabia que a primeira proibição da maconha do mundo</p><p>ocorreu aqui no Brasil? No romance “Um defeito de cor”, Ana Maria</p><p>Gonçalves narra a história de uma menina escravizada, desde a vinda</p><p>da África até a rotina da escravidão no Brasil. A história narrada mis-</p><p>tura elementos ficcionais com relatos de uma série de documentos</p><p>encontrados pela autora durante uma viagem para a Bahia. Em uma</p><p>passagem do livro, há o registro acerca do uso da “liamba de Angola”,</p><p>outro nome utilizado para maconha:</p><p>Embora não possamos aferir com certeza que essa passagem advém</p><p>dos materiais de pesquisa coletada pela autora, registros trazidos por</p><p>outros historiadores também demonstram como o uso de maconha</p><p>era disseminado entre os escravizados no Brasil. O historiador Edison</p><p>Carneiro (1958), ao estudar o Quilombo dos Palmares, afirma também</p><p>que a “liamba” era utilizada pelos escravizados em momentos de</p><p>tristeza e/ou de saudade da África.</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>36</p><p>Anos antes do final do período da escravidão – que ocorreu no país</p><p>apenas em 1888 – foi editada no Brasil a primeira norma legal que</p><p>proibiu o uso e a venda de maconha, na época chamada de “pito do</p><p>pango” ou “diamba”.</p><p>Reportagem do jornal “O Globo”, década de 30.</p><p>Fonte: smokebuddies.</p><p>O código de postura municipal do Rio de Janeiro de 1830 previa multa</p><p>para os vendedores e três dias de cadeia para os consumidores,</p><p>destacando, entre estes, os escravizados.</p><p>É proibida a venda e o uso do pito do pango, bem como a</p><p>conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão</p><p>multados, a saber: o vendedor em 20$000, e os escravos e mais</p><p>pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia.</p><p>Mott, 1986, p. 131</p><p>A lei é considerada uma forma de controle social da população negra,</p><p>assim como outras leis que foram promulgadas antes e depois da</p><p>abolição da escravidão no país que proibiam ou controlavam uma</p><p>série de condutas e práticas realizadas majoritariamente por essa</p><p>parcela da população.</p><p>Além de precursor na proibição da planta, o Brasil, por meio da atuação</p><p>de José Rodrigues Dória, também contribuiu para a proibição da</p><p>planta internacionalmente. Em dezembro de 1915, durante o II Con-</p><p>gresso Científico Pan-Americano, o médico e professor das faculdades</p><p>de Direito e Medicina da Bahia apresentou um trabalho intitulado</p><p>“Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício”.</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>37</p><p>Suas bases teóricas eram o evolucionismo social do</p><p>século XIX e as teorias racistas da degenerescência,</p><p>as quais tinham à época o status de legitimidade</p><p>científica, que posteriormente deixariam de ter.</p><p>Rodrigues Dória se esforçou para incluir a maconha entre as “drogas”</p><p>que deveriam ser proibidas de existir no mundo, e esse esforço teve</p><p>resultado positivo.</p><p>SAIBA MAIS</p><p>Para saber mais sobre o evolucionismo social dessa época,</p><p>assista ao vídeo “A entrada das teorias raciais no Brasil”,</p><p>com Lilia Schwarcz,</p><p>disponível em: https://www.youtube.com/</p><p>watch?v=93f7nkbD7tY.</p><p>É notável que grande parte dos dados utilizados por Dória foram ob-</p><p>tidos em segunda mão, por via de médicos colaboradores, que traba-</p><p>lhavam em sanatórios, quartéis e prisões. Sendo assim, a associação</p><p>(melhor dizendo, as relações de causalidade), que o autor alega, entre</p><p>o hábito de fumar maconha com a criminalidade e as doenças men-</p><p>tais, toma como base dados claramente enviesados, uma vez que são</p><p>produzidos em interação com populações já compostas, em grande</p><p>parte, por pessoas em tratamento de doenças mentais, sob regime de</p><p>internato, ou cumprindo penas por crimes anteriormente cometidos.</p><p>Por volta da década de 1930, seu trabalho era tido como uma refe-</p><p>rência de estudo sobre a maconha, em um tempo em que a planta</p><p>havia caído na ilicitude, interditando assim a existência de novas</p><p>pesquisas. Contudo, com o passar do tempo, tais “verdades” sobre a</p><p>maconha e os adeptos de seu uso passaram a ser contestadas quando</p><p>postas à prova. Um exemplo disso é que alguns dos aspectos que Dória</p><p>apontava como fazendo parte dos “males do vício”, como os efeitos</p><p>Suas descrições da planta, dos plantios às margens do Rio São Fran-</p><p>cisco, no Nordeste brasileiro, e de espaços de sociabilidade são de-</p><p>talhadas. A sua tese era a de que a planta era perigosa e representava</p><p>um castigo à civilização branca que colonizou o Brasil por meio da</p><p>escravidão de povos de origem africana. Ele denunciava o que afirmava</p><p>ser o efeito “degenerante” do consumo da maconha na população</p><p>brasileira e que sua cultura teria entrado no Brasil pelas mãos dos</p><p>“povos oriundos da África”. O efeito de alguém se tornar adepto dessa</p><p>substância seria, com o tempo, segundo suas conclusões, converter-se</p><p>em um pervertido, um imbecil, em suma, um degenerado.</p><p>https://youtu.be/93f7nkbD7tY?si=c6sqAS0mnAQ7MeU5</p><p>https://youtu.be/93f7nkbD7tY?si=c6sqAS0mnAQ7MeU5</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>38</p><p>Para pensar</p><p>Dória mobiliza um sistema de crenças aceito à época</p><p>como conhecimento científico, que seria posteriormente</p><p>ultrapassado e destituído da condição acadêmico-científica,</p><p>mas que vez por outra volta na condição de mais nova</p><p>mitologia do senso comum. O estudo de Dória nos alerta</p><p>como tanto para o pesquisador, ou para o professor, ou para</p><p>o estudioso, o importante é estar atento para que nossos</p><p>desejos não embotem nosso senso crítico em relação ao que</p><p>nos é dado como dados da pretensa realidade.</p><p>afrodisíacos e antidepressivos da maconha, fartamente descritos</p><p>no trabalho, seriam considerados, no contexto da medicina atual,</p><p>promotores de bem-estar.</p><p>O exemplo da proibição do álcool no contexto inglês e estadunidense</p><p>e o da proibição da maconha no Brasil reforçam questões que a so-</p><p>ciologia vem apontando desde sua gênese sobre o tema do desvio e</p><p>das regras. Entre elas:</p><p>A criação e a imposição</p><p>de regras é um processo</p><p>construído socialmente.</p><p>Assim como a sociedade é</p><p>dinâmica, as regras e leis</p><p>que a regem também são</p><p>e, portanto, alterações nos</p><p>contextos sociais e culturais</p><p>podem implicar também</p><p>alterações nas normas e</p><p>valores vigentes.</p><p>Usualmente, a definição dos</p><p>atos desviantes reproduz as</p><p>estruturas de poder vigentes</p><p>em uma sociedade; portanto,</p><p>a compreensão dos atos</p><p>desviantes nos ensina também</p><p>sobre os poderes e valores</p><p>vigentes em uma sociedade.</p><p>Curso COMPASSO</p><p>Módulo 1- O surgimento das “drogas” e as premissas para seu controle</p><p>39</p><p>Esses pontos, embora não sejam os únicos, são fundamentais para</p><p>entendermos como o tema das drogas vem sendo tratado pela so-</p><p>ciedade atualmente.</p><p>[...] mais do que se apropriar da experiência do consumo de</p><p>drogas, o que as sociedades contemporâneas parecem ter</p><p>feito foi criar literalmente o próprio fenômeno das drogas:</p><p>mais remotamente, com a loucura das especiarias e, mais</p><p>recentemente, com o duplo processo da invasão farmacêutica e</p><p>da criminalização das drogas assim tornadas ilícitas.</p><p>Vargas, 2010, p. 55</p><p>Veja a seguir os pontos mais importantes demonstrados neste módulo.</p><p>SÍNTESE DO MÓDULO</p><p>Neste módulo, procuramos introduzir o tema do curso</p><p>por meio da problematização de sua categoria central,</p><p>que é a de “droga” (intencionalmente deixada entre</p><p>aspas). Em seguida, a partir de uma leitura do tema</p><p>sob a perspectiva das ciências sociais, buscamos</p><p>problematizar os sensos comuns vigentes sobre o</p><p>tema e ultrapassar formas naturalizadas de interpretar</p><p>a realidade. Por isso, nos atentamos para as distinções</p><p>entre a perspectiva científica e a do senso comum</p><p>na busca pelo conhecimento. Demonstramos ainda</p><p>como uma série de questões culturais, econômicas</p><p>e sociais são fundamentais para entendermos como</p><p>as sociedades têm lidado com o tema das drogas,</p><p>sobretudo a partir do caso do álcool e da maconha.</p><p>Nos próximos módulos, continuaremos a explorar esse</p><p>tema no mundo contemporâneo.</p><p>Você finalizou o Módulo 1!</p><p>No próximo módulo abordaremos a construção daquilo que cha-</p><p>mamos de paradigma médico-jurídico e seus consequentes efeitos</p><p>nas políticas de segurança pública.</p><p>40</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>ACSELRAD, G. Drogas, a educação para a autonomia como garantia de</p><p>direitos. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 16, n. 63, p. 96-104, out./</p><p>dez. 2013. Edição especial.</p><p>ALARCON, S. Drogas psicoativas: classificação e bulário das principais</p><p>drogas de abuso. In: ALARCON, S.; JORGE, M. A. S. (org.). Álcool e outras</p><p>drogas: diálogos sobre um mal-estar contemporâneo. Rio de Janeiro:</p><p>EPSJV/RJ, 2012. v. 1. p. 103-130.</p><p>ARAUJO, T. Guia sobre drogas para jornalistas. São Paulo: IBCCRIM-</p><p>-PBPD-Catalize-SSRC, 2017. Disponível em: https://pbpd.org.br/publi-</p><p>cacao/guia-sobre-drogas-para-jornalistas/. Acesso em: 13 dez. 2023.</p><p>BEAUCHESNE, L. Legalizar as drogas: para melhor prevenir os abusos.</p><p>Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015.</p><p>BECKER, H.S: Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Editora Jorge</p><p>Zahar, Rio de Janeiro, 2008.</p><p>CARNEIRO, E. de S. O Quilombo dos Palmares. 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