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<p>HEIDEGGER E O ESCURO DO EXISTIR:ESBOÇOS PARA UMA INTERPRETAÇÃO DOS TRANSTORNOS</p><p>EXISTENCIAIS</p><p>Marco Antonio Casanova</p><p>O fisiológico é uma condição necessária para a possibilidade de uma relação humana com o</p><p>outro. No entanto, apenas o fato de que a paciente vê na verdade um “tu” como próximo, isso</p><p>definitivamente não é uma percepção sensorial, pois não ha um órgão sensorial para aquilo</p><p>que se chama “o outro. O fisiológico não é uma condição suficiente, no sentido literal da</p><p>palavra “alcançar”, pois o fisiológico não pode alcançar o espaço até o outro e constituir a</p><p>relação.</p><p>Martin Heidegger, Seminários de Zollikon, p.195.</p><p>A relação essencial entre o pensamento de Martin Heidegger e a Psicologia precisa ser</p><p>considerada no âmbito de um diálogo mais amplo entre o pensamento heideggeriano e as</p><p>ciências ônticas em geral. Seguindo a esteira do projeto fenomenológico de seu mestre Edmund</p><p>Husserl, Heidegger procura, desde o princípio de seu percurso investigativo, ao mesmo tempo</p><p>colocarem questão as bases fenomenológicas das ciências particulares e apresentar as condições</p><p>de possibilidade de acontecimento mesmo da ciência. Seus esforços iniciais estão voltados</p><p>fundamentalmente para uma descrição dos fenômenos científicos e dos seus campos de gênese</p><p>em geral. No momento em que leva a termo tais esforços, porém, Heidegger vai paulatinamente</p><p>modificando de maneira substancial uma série de elementos característicos da fenomenologia</p><p>husserliana e abrindo espaço para a constituição de seu próprio caminho na fenomenologia.</p><p>Desse modo, é decisivo que levemos em conta aqui, em primeiro lugar, os traços estruturais</p><p>desse caminho e suas consequências para a interpretação heideggeriana das bases</p><p>fenomenológicas das ciências em geral e da Psicologia em particular. Realizar tal tarefa passa,</p><p>por sua vez antes de tudo, por uma consideração do termo ser-ai e de sua correlação com a</p><p>noção de ser-no-mundo. Como teremos a oportunidade de acompanhar melhor durante o</p><p>presente trabalho, é a partir das noções de ser-aí e de ser-no-mundo que Heidegger vai pensar</p><p>uma intencionalidade mais originária do que aquela descrita por Husserl nas relações entre os</p><p>atos de consciência e os campos de dação dos objetos, uma intencionalidade que se articula</p><p>imediatamente com um horizonte hermenêutico de realizações de todas as possibilidades de</p><p>concreção do existir. Ao levarmos a termo esse primeiro momento de nosso texto, nos</p><p>aproximaremos do âmbito propício para a colocação de um problema decisivo para todas as</p><p>nossas discussões ulteriores. Boa parte dos problemas da Psicologia e da Psicanálise gira em</p><p>torno de uma discussão que aponta para à inserção de elementos condicionantes originários,</p><p>para a pressuposição da possibilidade de se apelar para determinações orgânico-fisiológicas,</p><p>psíquicas ou psicofisiológicas nas considerações dos transtornos existenciais em geral, Dito de</p><p>maneira mais clara: há uma tendência primordial da Psicologia e mesmo da Psicanálise de</p><p>pressupor algo assim como uma estrutura orgânica ou como um psiquismo ao descrever o modo</p><p>de estruturação de nossas experiências existenciais. Como veremos na primeiraparte do texto,</p><p>porém, o pensamento heideggeriano parte exatamente de uma suspensão de tal tendência.</p><p>Assim, precisamos em um segundo momento tratar justamente de uma questão fundamental</p><p>nesse contexto: até que ponto é possivel falar de determinações materiais prévias para o</p><p>homem? Nós, por outro lado, trataremos essa questão situando-a em um campo investigativo</p><p>mais concreto, por meio da pergunta sobre quando nascem afinal os bebês e sobre como eles</p><p>experimentam a si mesmos. O que buscamos alcançar por essa via é uma visão clara do modo</p><p>próprio do acontecimento do existir humano. Somente se alcançarmos essa visão estaremos</p><p>realmente em condições de, por fim, traçar alguns primeiros esboços para uma hermenêutica</p><p>dos transtornos existenciais, uma hermenêutica que se confunda com o sentido mais próprio do</p><p>projeto heideggeriano de uma Daseinsanalyse.</p><p>Comecemos, então, com o problema ser-aí/ser-no-mundo.</p><p>1. Ser-aí como ser-no-mundo: sentido e negatividade do existir humano</p><p>Se olharmos para a história da filosofia moderna, ela por si só revela a legitimidade</p><p>propriamente dita da noção do ser-aí como ente dotado de caráter de poder-ser. De certa forma,</p><p>podemos tomar os desdobramentos históricos da filosofia moderna partindo tanto de um</p><p>paulatino encurtamento da ideia de uma subjetividade nuclear quanto de uma descrição das</p><p>aporias que constituem as hipostasias ligadas ao conceito de sujeito. Se o sujeito em Descartes</p><p>ainda se mostra como substancial e nuclear, funcionando como suporte ontológico das ações,</p><p>ele passa a se mostrar como um mero sujeito adesivo em Kant — uma configuração de</p><p>consciência que acompanha apenas o proferimento dos juízos —, como uma dinâmica histórica</p><p>em Hegel, como um simples resultado das configurações relacionais que escapam</p><p>completamente ao seu controle em Nietzsche. até se mostrar, por fim, em Husserl, como</p><p>“entretecimento das vivências na unidade do fluxo vivencial”. Nesse sentido, a determinação</p><p>heideggeriana do ser-aí não se mostra como um postulado acerca do ser do homem, mas como</p><p>resultado justamente da suspensão de todos os posicionamentos ontológicos tanto quanto</p><p>como à sintese definitiva do próprio percurso do pensamento moderno. No momento em que</p><p>nos deparamos, no entanto, com tal conclusão, ela mesma nos articula de imediato com o outro</p><p>elemento decisivo para nós no presente contexto: a noção de ser-no-mundo.</p><p>Heidegger não se vale da palavra homem para designar o ente que cada um de nós é. Ele</p><p>prescinde dessa palavra exatamente por conta das decisões ontológicas que se encontram nela</p><p>sedimentadas. Ao escutarmos à palavra homem, sempre pensamos imediatamente em algo</p><p>assim como animal racional, como ser vivo que possui linguagem, como animal social, como</p><p>animal político, etc. Todas essas determinações se acham, porém, em franca contradição com O</p><p>caráter de poder ser. Com isso, Heidegger opta pela expressão à princípio algo esmaecida “ser-</p><p>aí”, Por detrás dessa expressão, fala toda uma compreensão da junção entre o ser-aí e o seu aí,</p><p>entre O ser-aí e o mundo. O ser-aí humano é marcado pelo caráter de poder-scr. Ser um ente</p><p>marcado pelo caráter de poder-ser significa ser um ente marcado por uma indeterminação</p><p>ontológica originária. O ser-aí não possui nenhuma propriedade quididativa, nenhuma essência</p><p>a priori constituída no sentido metafísico do termo, nenhuma substância ou aspecto especifico.</p><p>Desse modo, largado à sua própria sorte, o ser-aí jamais conseguiria escapar inicialmente dessa</p><p>indeterminação. Como ser um ente ontologicamente indeterminado significa não possuir</p><p>nenhuma determinação primária, o ser-aí jamais encontraria em si uma medida para sair de tal</p><p>indeterminação. Ele precisa que alguma instância o retire de imediato da condição de</p><p>indeterminação. E essa instância, por sua vez, precisa apresentar certos caracteres peculiares.</p><p>Para um ente marcado pelo caráter de poder-ser, não faz sentido falar em um espaço</p><p>previamente dado com o qual esse ente entraria originariamente em contato. Para tanto, O ser-</p><p>aí precisaria de algo assim como uma faculdade que lhe permitisse o contato com o espaço</p><p>exterior. Ele teria que trazer consigo algo como uma sensibilidade ou uma percepção que</p><p>possibilitasse tal contato. A reinserção das noções de sensibilidade e percepção, contudo,</p><p>inviabilizaria por completo a noção de poder-ser. Dito de outra forma, a instância que arranca o</p><p>ser-ai de sua indeterminação originária precisa surgir juntamente com o próprio ser-aí. E tal</p><p>gênese cooriginária da instância responsável pela saídado ser-aí de sua indeterminação só é</p><p>possível porque o ser-aí já sempre acontece extaticamente, porque o ser-aí, nas palavras de</p><p>Heidegger no $ 9 de Ser e tempo,</p><p>tem “sua essência residindo em sua existência”. Heidegger</p><p>parte do mesmo ponto que o leva à noção de ser-aí para pensar o movimento existencial</p><p>originário do ser-aí. Como tivemos a oportunidade de acompanhar, o termo ser-aí nasce da</p><p>suspensão de todos os posicionamentos ontológicos, uma suspensão exigida de início pelo</p><p>projeto fenomenológico husserliano. Essa suspensão, porém, não lança o ser-aí no nada, mas o</p><p>vincula à dinâmica extáfica característica das relações intencionais. Ao se voltar sobre si mesmo</p><p>por o ser-aí é, em outras palavras, lançado para Ek-sistir, portanto. significa estar aberto origina</p><p>Como o espaço para o qual o ser-aí se acha ou não pode se mostrar como um espaço</p><p>previamente constituído, existir envolve necessariamente à projeção desse espaço. Não no</p><p>sentido de que o ser-aí estabelecer desse espaço em meio a uma avaliação prévia deveria ser</p><p>produzido, mas no sentido de que libera a instância capaz de suprimir a sua ela se mostre como</p><p>o correlato intenciona significa aqui deixar que, sem qualquer ser-aí, o seu campo existencial</p><p>aconteça. Simultaneamente o projeto do campo existencial precisa ser de uma ordem tal que o</p><p>campo projetado não faça, ele mesmo, limite com qualquer dimensão material específica. Se o</p><p>campo existencial fizesse fronteira com algum espaço materialmente constituído, ele teria</p><p>necessariamente a mesma textura material, o que exigiria a presença de alguma faculdade</p><p>primária que permitisse a sua apreensão. Em suma, o campo existencial projetado</p><p>internacionalmente pelo existir humano precisa ser um campo total. Justamente o mundo é o</p><p>termo utilizado por Heidegger campo globalizante no interior do qual o ser-aí já sempre se</p><p>movimenta e com o qual ele incessantemente se mantém em contato.</p><p>O ser-aí é um ente marcado pelo caráter de poder-ser. Ser um ente marcado por tal caráter</p><p>implica necessariamente ser um ente que precisa projetar originariamente de maneira total o</p><p>campo existencial no interior do qual cada ser-aí já sempre se movimenta. Esse campo é o</p><p>mundo como horizonte intencional correlato do existir humano. A relação entre o ser-aí e o</p><p>mundo não tem, nem pode ter qualquer mediação. Por um lado, porque o mundo se dá: por</p><p>outro lado, o mundo só se dá porque o ser-aí ek-siste. Mundo. por sua vez, nunca é um campo</p><p>abstrato de determinação do ser-ai, mas sempre se mostra incessantemente como um “campo</p><p>de manifestação dos entes em geral” * Ele é um horizonte que inaugura a possibilidade de falar</p><p>de algo como algo. Não temos como acompanhar aqui de maneira minuciosa à descrição</p><p>fenomenológica rigorosa que leva Heidegger a determinar em Ser e tempo o mundo como</p><p>totalidade conformativa responsável pela gênese dos significados dos entes em geral, como</p><p>totalidade de significados e de sentidos indispensáveis para a concreção dos projetos cotidianos</p><p>dos seres-ai e como discurso expresso em sua versão sedimentada. Tal acompanhamento exigiria</p><p>toda uma detida reconstrução dos passos que levam em Ser e tempo dos utensílios como entes</p><p>intramundanos para o mundo como horizonte de manifestação dos utensílios. O que nos</p><p>importa aqui é apenas marcar os traços estruturais da descrição heideggeriana do mundo e a</p><p>sua repercussão para o ser-aí como ser-no-mundo. Nesse caso, é decisivo acentuar o mundo</p><p>como horizonte hermenêutico essencial para todos os comportamentos possíveis do ser-aí.</p><p>Como o ser-aí não possui nenhuma determinação quididativa prévia, todas as suas</p><p>determinações se confundem com os seus modos de ser, com os seus modos de relacionamento</p><p>como os entes intramundanos, com os outros seres-aí e consigo mesmo.</p><p>Esses seus modos de ser, contudo, só são possiveis pelas orientações que o ser-aí recebe a cada</p><p>vez do mundo que é o seu. Em verdade, é no mundo que cada ente significa o que significa e é</p><p>apenas com base no significado de um ente no mundo que eu posso assumir um comportamento</p><p>em relação ao ente. Somente em um mundo determinado, cadeira significa o que cadeira</p><p>significa, e eu posso usar a cadeira em sintonia com o seu significado. Somente em um mundo</p><p>filosofia significa o que significa, e eu posso construir enunciados adequados sobre ela. Mundo,</p><p>portanto, não é outra coisa senão o horizonte hermenêutico primevo no interior do qual os</p><p>comportamentos do ser-aí são possíveis. Esse horizonte hermenêutico globalizante, por sua vez,</p><p>sempre se estrutura a partir de uma familiaridade com a miríade de significados do mundo e</p><p>com os sentidos em virtude dos quais as ações dos seres-aí em geral a cada vez se dão e podem</p><p>vir a se dar. Temos aqui a mistura de um contexto teórico aristotélico com uma reflexão</p><p>propriamente kantiana sobre a essência das ações humanas. Por um lado, Aristóteles acentua o</p><p>papel central do hou heneka, daquilo em virtude de que se realiza uma ação, para que a ação</p><p>possa efetivamente ser realizada. Na verdade, para Aristóteles, é o hou heneka que fornece o</p><p>télos propriamente dito de uma ação e torna possível que ela se realize plenamente no interior</p><p>de seu campo específico de realização. É em virtude de um contexto particular de uso, por</p><p>exemplo, do contexto de uso de uma cela de cavalo para a montaria em uma batalha, que certo</p><p>tipo de material, que certo tipo de costura, que certo aspecto da cela vai ganhar corpo em meio</p><p>à feitura da cela. Por outro lado, uma reflexão sobre a essência das ações humanas exige uma</p><p>modulação dessa ideia. Tal como bem o descreve Kant na Critica da razão pura, o que constitui</p><p>a liberdade humana no plano teórico é sua capacidade de funcionar como o princípio de uma</p><p>nova ordem causal. Não há como negar, para Kant, que nós todos estamos sujeitos às leis que</p><p>regulam e normatizam os fenômenos naturais em geral. Para estar presente na conferência em</p><p>que apresentei este escrito, tive de passar por uma série de fenômenos regulados por leis</p><p>causais. No entanto, esse fato não é suficiente para explicar a razão pela qual eu estava lá, Nesse</p><p>sentido, de acordo com Kant, sou um cidadão de dois mundos, uma vez que a liberdade de minha</p><p>vontade se expressa justamente pela minha capacidade de quebrar o determinismo causal dos</p><p>fenômenos naturais € iniciar uma nova cadeia de causas. Heidegger interpreta nesse contexto a</p><p>ideia aristotética do hou heneka. É incontestável que preciso de toda uma familiaridade com um</p><p>sem número de significados para que pudesse estar presente na conferência. Sc não soubesse o</p><p>que é carro, rua, porta, entrada, auditório, etc., não poderia estar lá. No entanto, estar</p><p>familiarizado com todos esses significados não dá conta da razão pela qual eu me encontrava lá.</p><p>Ao contrário. é sempre necessária a presença de um sentido que de sustentação aos atos em</p><p>geral do ser-aí. Tal como Heidegger descreve no parágrafo 32 de Ser e tempo, o “sentido é aquilo</p><p>em que se mantém a compreensibilidade de algo”, ele é “a estrutura de suporte formal e</p><p>existencial do descerramento que pertence ao compreender”. Dizer isso é O mesmo que afirmar</p><p>que é justamente o sentido aquilo em virtude do que o campo compreensivamente aberto do</p><p>mundo do ser-aí torna possível a atualização de possibilidades interpretativas que constituem</p><p>própria c incessantemente o existir de todo ser-aí. Para que seja possível falarmos de sentido,</p><p>porém, precisamos estar diante de um ente dotado de um caráter bastante peculiar.</p><p>Dito a princípio de maneira bastante sintética, podemos afirmar que só um ente</p><p>desprovido em si mesmo de todo e qualquer sentido de seu ser precisa constantemente da</p><p>projeção de um campo de sentido para ser. Uma pedra não precisa de sentido para ser, porque</p><p>ela já tem o sentido de seu ser previamente dado nela mesma. Um animal não precisa de sentido</p><p>para ser, porque ele tem em seu modo de ser como vivente o esgotamento originário de toda</p><p>carência propriamente dita de sentido. É antes apenas o ser-aí que precisa de sentido para ser,</p><p>uma vez que</p><p>sua indeterminação ontológica originária sempre O confronta com a necessidade</p><p>de algo em virtude do que ele realize suas ações. Sem a presença de um sentido, O ser-aí não</p><p>consegue agir, ele não consegue realizar as ações mais simples de sua cotidianidade mediana,</p><p>ele simplesmente não consegue ser. Todavia, os sentidos de sua existência nascem diretamente</p><p>de seu caráter de poder-ser. Tal circunstância cria uma situação deveras peculiar. O ser-aí</p><p>humano precisa absolutamente de sentido para ser. À necessidade de sentido. porém, é</p><p>expressão direta de sua falta total de sentido originário, de sua negatividade. Em outras palavras,</p><p>é a própria negatividade estrutural do ser-aí que se mostra como à origem e a fonte do sentido.</p><p>O problema é que a negatividade, como origem e fonte da necessidade de sentido, jamais</p><p>permite uma estabilidade total dos campos das ações humanas, uma vez que às ações repousam</p><p>em última instância sobre a negatividade do ser-aí. O escuro constitutivo da existência humana,</p><p>a presença opressiva daquilo que Paul Klee chamou em um dos quadros pintados no seu último</p><p>ano de vida “O portal da profundidade”, funciona como um elemento de instabilização constante</p><p>das ações humanas. Temos aqui, então, O jogo estrutural do existir humano.</p><p>O ser-aí depende fundamentalmente do mundo para escapar de sua indeterminação</p><p>ontológica originária. O mundo, como totalidade significativa com a qual o ser-aí paulatinamente</p><p>vai se familiarizando, como a morada transcendental do existir humano, fornece a base</p><p>primordial para que O ser-aí possa desdobrar o poder-ser que ele é. Tal base se constitui, por sua</p><p>vez, na medida em que o mundo funciona não apenas como uma totalidade significativa, mas</p><p>também na medida em que ele contém um repertório de sentidos sedimentados, que tornam</p><p>possível a operacionalização da vida cotidiana sem uma atenção fenomenológica para a</p><p>negatividade que assola e torna constantemente instáveis os projetos cotidianos de ser do ser-</p><p>aí. Assim, o ser- aí se vê entre uma absorção imediato no mundo, que o desarticula de sua</p><p>negatividade estrutural e 0 lança cm um horizonte hermenêutico sedimentado que ele</p><p>constantemente operacionaliza em seus diversos modos de ser, eos riscos incessantes de crise</p><p>desse horizonte, com a abertura concomitante da possibilidade de ressignificações. Tais crises</p><p>evidentemente não interessam a Heidegger como base para a construção de tipologias</p><p>psicológicas relativas a transtornos existenciais em geral, mas apenas como intermediadoras de</p><p>uma experiência de ruptura com a estagnação hermenêutica vigente no mundo cotidiano. Fiel</p><p>ao projeto de sua hermenêutica da facticidade, ele procura pensar com base nas crises</p><p>singularizantes do ser-aí possibilidades de se alcançar uma transparência hermenêutica capaz de</p><p>propiciar um processo de reinterpretação do mundo por si mesmo em sintonia com o ser-aí. Ao</p><p>apontar o caráter da crise, contudo, Heidegger acaba trazendo à tona indiretamente indicações</p><p>formais para a constituição de tal tipologia, abrindo, com isso, a possibilidade de se pensar, por</p><p>exemplo, uma psicologia com bases ontológico-existenciais. Ir ao encontro dessas indicações é</p><p>osentido propriamente dito do presente texto. Antes de chegarmos a esse ponto, contudo,</p><p>gostariamos de tocar em um ponto indispensável para tanto: a questão do nascimento do ser-</p><p>aí, a questão acerca do momento em que nascem os bebês.</p><p>2. Quando nascem os bebês: do problema do corpo originário ao sex appeal do discurso</p><p>científico</p><p>Muito se fala sobre a insuficiência da concepção heideggeriana do nascimento. Antes de</p><p>tratar dessa insuficiência, no ser-aí humano não tenha nenhuma determ nação corporal e que a</p><p>medicina, juntamente com todo o seu saber acumulado por méio de um número enorme de</p><p>pesquisas e investigações, não passa de uma gigantesca ilusão. Ou seja, por mais que a ciência</p><p>procure determinar de maneira isenta o nosso corpo. o máximo que ela consegue fazer é instituir</p><p>certo modo de relação que acaba por demarcar o espaço do que significa ter um corpo. O</p><p>mundo, portanto, é ele a medida de todas as nossas relações com os entes intramundos, com os</p><p>outros seres-ai e com nos mesmos, de tal forma que mesmo as nossas relações com o nosso</p><p>corpo são debitárias desse horizonte prévio. Não é possivel escapar desse horizonte. Não é</p><p>possível escapar das orientações prévias que são por ele fornecidas.</p><p>Não há nenhum corpo originário, nenhuma determinação corporal previamente dada que</p><p>independesse da todo E qualquer mundo fático sedimentado. Um amigo antigo e há algum</p><p>tempo já falecido dizia sempre em tom de brincadeira que educação vinha de berço, c que o</p><p>problema, no caso dele, é que ele tinha nascido numa rede. Essa brincadeira diz muito sobre 0</p><p>sentido primordial da afirmação heideggeriana de que não há nerd corpo ou de- terminação</p><p>corporal essencial ao homem. Que tipo de espago nos espera ao nascermos, que tipo de FompA</p><p>seremos imediatamente obrigados a usar ou a não usar, que cuidados ou ausência de dados vão</p><p>estar dedicados ao bebê e mesmo ao feto em seus primeiros movimentos existenciais: tudo isso</p><p>depende sempre necessariamente de em que mundo nascemos. No mundo da ontologia</p><p>da ciência médica, com suas preocupações incessantes, é claro que uma criança vai ser cercada</p><p>na primeira infância por uma série de cuidados de higiene visando justamente a proteger o seu</p><p>estado de saúde pleno. Em uma comunidade indígena,por outro lado, na qual 9 nascimento é</p><p>marcado por elementos rituais muito peculiares, é por vezes o pai que [az o parto, que corta o</p><p>cordão umbilical e que acompanha na oca a relação da mãe com a criança até o momento em</p><p>que o cordão cai completamente. Os instrumentos que ele utiliza para cortar o cordão também</p><p>são muito diferentes. Ao invés da tesoura cirúrgica, o dente ou uma pedra. Aqui, a assepsia não</p><p>tem nenhuma relevância, nem vai orientar os comportamentos dos membros da tribo em geral.</p><p>Bem, mas esses exemplos dizem respeito ao nascimento efetivo de umacriança, ao momento</p><p>em que ela sai do útero materno e conquista a sua primeira separação. Será que a inexistência</p><p>de um corpo originário também se sustenta no caso de um embrião humano, no caso do</p><p>crescimento e do desenvolvimento orgânico de um feto? Essa pergunta é muito interessante,</p><p>porque ela já utiliza termos que não deixam qualquer dúvida quanto ao seu solo de proveniência.</p><p>Falar em embrião humano, em feto, em desenvolvimento orgânico, fisiológico, neurológico,</p><p>coronariano, etc. já é pressupor um determinado horizonte hermenêutico no qual a questão se</p><p>movimenta. Um bebê no ventre da mãe é necessariamente um feto, um embrião? Mais ainda:</p><p>o discurso acerca de um feto e de um embrião é um discurso isento em termos hermenêuticos?</p><p>Vou contar rapidamente uma história que me parece inequívoca quanto ao ponto que está aqui</p><p>em jogo, uma história que revela ao menos o elemento de tensão com essa pré-compreensão</p><p>com a qual nós hoje trabalhamos de maneira tão imediata. Em um programa de televisão</p><p>realizado por uma emissora alemã, assisti certa vez a um documentário sobre tensões entre</p><p>mães e obstetras causadas por diagnósticos bastante específicos, que pareciam indicar de</p><p>maneira inequívoca o aborto como unica opção. Os diagnósticos variavam entre sindromes &</p><p>anomalias genéticas que simplesmente inviabilizavam as possibilidades de sobrevivência do feto</p><p>e que tornavam assim a gestação um suplicio sem sentido. Dentre os casos tratados no</p><p>documentário estava o caso da mãe de uma criança com anencefalia, ou seja, com um</p><p>diagnóstico incontestável de má formação cerebral e de ares parciais irreparáveis em uma parte</p><p>considerável do cérebro. Diante desse diagnóstico, o médico explicou para a mãe que a criança</p><p>não tinha qualquer condição biológica de sobrevivência, o que tornava a gestação um espaço</p><p>desnecessário de dor e sofrimento.</p><p>Se a criança chegasse a nascer, ela viveria por algo em torno</p><p>de 10 minutos e, em seguida, morreria. O aconselhável em tal situ- ação não poderia ser outra</p><p>coisa senão o aborto. A mãe porém, não apenas se negou a aceitar o que o médico sugeria como</p><p>se decidiu imediatamente a ter a criança. Com isso, depois de nove meses de uma gravidez</p><p>bastante normal, a criança nasceu em um parto em casa, acompanhada do pai, da mãe e dos</p><p>irmãos. Ela foi vestida, recebeu um nome, passou pelo colo de cada uma das pessoas da casa e,</p><p>depois dos dez minutos previstos, realmente morreu. Todavia, ela não morreu como matéria</p><p>biológica, mas como uma criança que, nas palavras de Heidegger em Ser e tempo citando uma</p><p>homilia medieval, “logo que [...] chega à vida, já está suficientemente velha para morrer” * Esse</p><p>é para nós, então, o ponto fundamental. Todo corpo é necessariamente determinado pelo</p><p>horizonte hermenêutico no interior do qual ele se encontra. Isso não suspende o valor das</p><p>descobertas da medicina contemporânea, nem entrega ao corpo do homem uma maleabilidade</p><p>absurda. Ao contrário. isso diz apenas que toda descoberta das ciências naturais se encontra no</p><p>interior de um horizonte historicamente constituído e precisa ser compreendida na perspectiva</p><p>sua determinação propriamente dita. As ciências naturais, por outro lado, tendem a exercer</p><p>certo poder de sedução sobre nós, justamente porque elas nos dão a impressão de deter a</p><p>verdade definitiva e derradeira sobre os fenômenos de que tratam. Por mais que a ciência</p><p>contemporânea já não trabalhe com a pretensão de dar conta de uma vez por todas do ser dos</p><p>fenômenos em geral, ela sempre e a cada vez requisita para suas descobertas uma possibilidade</p><p>de ter chegado efetivamente a determinações que, se não são eternas, permitem uma descrição</p><p>rigorosa do modo de acontecimento dos fenômenos por elas tratados. As ciências nos seduzem,</p><p>portanto, na medida mesma em que parecem resolver de maneira apodítica os problemas que</p><p>estão em jogo, por exemplo, no nosso corpo ou na nossa alma. Em contraposição a essa posição,</p><p>o projeto hermanêutico-fenomenológico de Heidegger busca justamente acentuar a</p><p>impossibilidade de pensar um corpo para além de todo e qualquer horizonte historicamente</p><p>constituido. A consequência dessa posição para o problema do nascimento é, então, a seguinte:</p><p>como não há qualquer possibilidade de pensar um corpo anterior ao horizonte do mundo fático</p><p>que é o nosso, não é tampouco possível pensar o nascimento corpóreo do homem. Como o ser-</p><p>aí não é a princípio coisa alguma, ele nunca pode ter vindo a ser ou ele já sempre veio a ser. Seu</p><p>despontar no mundo é sempre abrupto e instaurado por alguma relação consigo mesmo. Seja</p><p>em uma maternidade, em um parto na floresta ou em uma banheira de casa, o mundo já sempre</p><p>se mostrou antes de toda e qualquer possibilidade de um nascimento biológico e do surgimento</p><p>de algo assim como necessidades biológicas. O biológico é, para nós, sempre tardio e sempre</p><p>curto demais para dar conta de nosso modo de ser originário. Jogados abruptamente no mundo,</p><p>é o mundo mesmo que torna possível algo como à sublimação posterior de nossa condição e a</p><p>construção de metáforas que retiram de nossa condição o que desde 0 princípio a determina.</p><p>Dar à luz, gerar uma criança, dar vida a um novo ser são expressões que procuram se colocar</p><p>sobre o caráter mais próprio de nosso repentino acordar em meio aos entes, retirando desse</p><p>acontecimento a sua precariedade. a sua indigência, o seu total desabrigo. Juntamente com à</p><p>perda dessa precariedade e indigência, contudo, o que se obscurece é a nossa situação</p><p>primordial, assim como o encanto constitutivo de nossa relação existencial com todos os seres.</p><p>É por isso que é preciso insistir no fato estranho de que os homens não nascem, mas morrem;</p><p>de que não possuem um corpo biológico originário, mas sofrem incessantemente a dor de sua</p><p>corporificação; de que atravessam a totalidade sob um céu que esconde por detrás das estrelas</p><p>um infinito profundo e impenetrável e sobre uma terra que acompanha em silêncio os nossos</p><p>passos. Não buscar esclarecer de uma vez por todas esse escuro do existir, por outro lado, é o</p><p>início de uma nova relação com o sentido mesmo de nosso ser.</p>