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<p>.ces aa i ces do m, as múltiplas face: JO desejo de ser. Fazer da imaginação, estabelece pela intuição. E, através da ir er.A arte faz nascer o homem. A ar ende de ser socialmente. Um S or dúvida de que o existir começ discurso de transgressão, de sut Marisa Lajolo O QUE É edição LITERATURA editora brasiliense</p><p>Marisa Lajolo "Ela já não serve para nada" Marshal McLuhan "Exprime, de modo a alegria e a angústia, as certezas e os enigmas do homem" Vitor Manuel de Aguiar e Silva Nem parece que esses dois brilhantes intelectuais estão falando da mesma coisa, mas e assim que eles. definem literatura. Optar por um desses enunciados hão e ornais difícil. ComplicadO:<rpesnho é saber se tudo que se escreve literatura. Aqueles contos na as cartas amigas, poemas apaixonados... que os diferencia de um grande romance? E esta contracapa? Seria "... a literatura existe. Ela é lida, vendida, estudada. Ela ocupa prateleiras de bibliotecas, colunas de estatísticas, horários de aula. Fala-se dela nos jornais e na IV. Ela tem suas instituições, seus ritos, seus seus conflitos, suas exigências. Ela é vivida cotidianamente pelo homem civilizado e contemporâneo como uma experiência específica, que não se assemelha a nenhuma outra." (R. Escarpit, Le Littéraire et le social) "Perguntar-se que pode a literatura? é já uma atitude mais científica do que perguntar-se que éa literatura?, mas seria melhor ainda perguntar-se o que podemos fazer da literatura?" Não faz tanto tempo, o mundialmente famoso sociólogo norte-americano Marshal McLuhan cometeu a especial delicadeza de dizer a um grupo de escritores reunidos num congresso do Pen Club que eles, escritofes, eram nada mais nada menos do que "os últimos sobreviventes de uma espécie em vias de extinção" pois "já não serve para nada escrever e publicar livros" (Teoria da Literatura). Um livro que - exatamente por ser um livro - registra e difunde o prognóstico de McLuhan, defende opinião oposta, assinada pelo professor Vitor Manuel de Aguiar e Silva: "a literatura não é um jogo, um passatempo, um produto anacrônico de uma</p><p>sociedade dessorada, mas uma atividade artística que, sob multiformes modulações, tem exprimido e continua a exprimir,d modo alegria e a angústia, as certezas e os enigmas do homem. Foi assim com Esquilo e com Ovídio, com Petrarca e com Shakespeare, com Racine e com Sthendal, com e com James Joyce; continua a ser assim com Sartre e com Beckett, com Jorge Amado e com Nelly Sachs, com Norman Mailer e com Cholokhov, com Miguel Torga ou com Her- berto Helder. E assim há de continuar a ser com os escritores de amanhã. Apenas variará tempo e modo" (Idem). Mas, tanto McLuhan quanto Vitor Manuel são pessoas muito especiais: são intelectuais, pensadores, produtores de conhecimento. Freqüentam congressos, escrevem livros, têm sua opinião ouvida, discutida, comentada. Assim, por mais divergentes e contraditórios que sejam seus pontos de vista sobre a literatura, há algo comum entre eles: ambos assumem suas posições a partir de uma tradição cultural que vem se construindo há séculos. que é literatura, para qualquer um deles como para qualquer intelectual de sua classe e quilate exige uma resposta que retoma, atualiza e prolonga tudo que já foi, até hoje, pensado sobre assunto. Para encurtar a conversa, a posição que cada um deles assume perante a literatura é uma posição culta, inserida numa tradição cultural que, se tem respaldo de muitos tem também a civilização burguesa por horizonte. Aquém e além deles, uma multidão de gente anônima: eu, nós todos eventualmente já nos perguntamos e já nos respondemos que é literatura. Perguntas permanentes, respostas provisórias. Tão permanentes umas e provisórias outras quanto são as perguntas e respostas com que lidam os intelectuais do time dos McLuhan e Vitor Manuel. Só que sem reflexo do espelho, das citações, dos interlocutores. Então, em igualdade de condições, é arregaçar as mangas e pagar pra ver. Será que é errado dizer que literatura é aquilo que cada um de nós considera literatura? Por que não incluir num conceito amplo e aberto de literatura as linhas que cada um rabisca em momentos especiais? Ou aquele conto que alguém escreveu e está guardado na gaveta? Por que excluir da literatura poema que seu amigo fez para a namorada, só para ela e para mais ninguém? Por que não chamar de literatura a história de bruxas e bichos que de noite, à hora de dormir, sua mãe inventava para você e seus irmãos? Por que negar nome de literatura aos poemas mimeografa- dos que jovem autor vende para a plateia depois do espetáculo ou na feira hippie de domingo?</p><p>Estes textos não têm a mesma cidadania literária que romance famoso com crítica no jornal e comentado na escola? E abrir os olhos e olhar em volta, para as pilhas de livros que habitam bibliotecas e livrarias, para os textos que nos contemplam distribuídos em volantes mimeografados ou pintados a spray em alguns, muros e edifícios da cidade, e remeter a eles a pergunta: que é literatura? Certos livros são muito conhecidos. Estão à venda em qualquer livraria, todos conhecem nome de quem os escreveu. 0 todos acima é um modo de dizer. Digamos, quase todos, ou, melhor ainda, quase todos de uma certa classe, pois nenhum MOBRAL conseguiu ainda transformar nem em leitores e muito menos em consumidores de livros a percentagem dos cento e vinte milhões de brasileiros, que, por direito de idade, poderia ter acesso a bibliotecas e congêneres. Mas, então, esses quase todos de uma certa classe dizem ter lido ou pretender ler tal ou qual autor. Jorge Amado, de Morais e Castro Alves parecem se incluir neste caso. São badalados, estudados nas escolas, citados. Os vivos estão sempre recebendo convites para conferências, noites de autógrafos, feiras de livros. E às vezes brigam. Como diz Drummond: 0 poeta municipal discute com poeta estadual qual deles é capaz de bater o poeta federal. Enquanto isso poeta federal tira ouro do nariz. (Reunião) Marisa Lajolo outros escritores nlo desfrutam desta por assim dizer unanimidade. Estão em outro esquema. Seus nomes são desconhecidos, suas obras são difíceis de serem encontradas em livrarias, não constam das bibliotecas, ninguém fala delas são escritores que imprimem seus livros à própria custa e vão vendê-los de porta em porta ou de mesa em mesa, em restaurantes, bares, cinemas e teatros das grandes cidades. Enquanto isso tem-se notícia de que em pequenas cidades, cantadores de feira, repentistas, contadores de histórias embora amados e respeitados por seu público raramente projetam seus nomes para além dos locais por onde passam. Num movimento oposto, em segmentos extremamente modernos e requintados da sociedade, livros de grande sucesso os bestsellers são escritos por uma espécie de trabalho em linha industrial: a produção da obra começa com um levantamento das expectativas do público: tipo de história que prefere, tolerância maior ou menor a sexo e</p><p>violência, cenários e ambientes de maior IBOPE, coisas assim. Com base nesta pesquisa escreve-se um romance por assim dizer sob medida para público. Como investimento comercial, livros deste figurino correm riscos mínimos em termos de retorno financeiro. E aí? Com formas tão diferentes de produção e circulação de objetos igualmente denominados literatura, será que é possível Vamos chamar igualmente de literatura os romances de autores consagrados como Érico e as produções quase de cantadores de feira e autores marginais? Vão para mesmo saco (de gatos .) best-sellers escritos quase que de encomenda e requintadas obras de vanguarda que apenas poucos e eleitos entendem? E cabe também a etiqueta literatura para aqueles autores como Rui Barbosa e Coelho Neto, que sobrevivem apenas em manuais e aulas Antes que você desista e feche este livro, fique sabendo que problema não aflige só leitores e autores anônimos. Confunde também gente mais graúda, diretamente envolvida na questão. Por exemplo, escritores, mesmo os de renome. Mário de Andrade, escritor brasileiro da primeira metade deste século, parece ter resolvido a questão de maneira exemplar: irritado com as intermináveis discussões sobre conto, virou a mesa e puxou tapete das polêmicas sisudas: "Tanto andam agora preocupados em definir conto que não sei bem se que vou contar é conto ou não, sei que é verdade" (Contos Novos). Em outro momento, mesmo Mário de Andrade explode de novo: "Conto é tudo aquilo que autor chama de conto". Primazia absoluta da intenção do autor, denuncia radical do arbitrário e relativo das teorias que definem, rebatem, discutem e muito pouco dizem ao autor e ao leitor. Rubem Braga pode ser outro exemplo de desabafo. Sentindo-se expulso de uma das várias histórias da literatura brasileira que correm mundo (III), considerou-se vingado no momento em que uma antologia de suas crônicas foi incluída numa coleção com um título explicitamente literário. Outros escritores poetas, romancistas, logos tiveram e têm momentos semelhantes de revolta: num gesto largo de independência, deram soberania ao indivíduo que escreve, atribuindo a ele a ele e talvez a seus leitores direito de chamar ou não alguma coisa de literatura. Veja leitor como é fácil ser irreverente quando se vai de mãos dadas com Mário de Andrade e Rubem Braga. Embora não sejam da Academia, eles são da patota. Somos incorrigíveis, não é? Gratos pela força que nos deram, voltamos a indagar de nossos botões. Será que são literatura os poemas adormecidos em gavetas e pastas pelo mundo afora, os romances que a falta de oportunidade impediu que fossem publicados, as peças</p><p>de teatro que, como dizia Fernando Pessoa, jamais encontrarão ouvidos de gente? Será que tudo isso é literatura? E, se não é, por que não é? Para uma coisa ser considerada literatura tem de ser escrita? Tem de ser editada? Tem de ser impressa em livro e vendida ao público? Será então que tudo que foi publicado em livro é literatura? Mesmo aquele romance de alta sacanagem, que todo mundo escondido e gosta? E os livros que nenhum professor manda ler, de que crítico nenhum fala, que jornais e revistas solenemente ignoram? A resposta é simples. Tudo isso é, não é e pode ser que seja literatura. Depende do ponto de vista, do sentido que a palavra tem para cada um, da situação na qual se discute que é literatura.</p><p>Mário de Andrade Mas chega de rodeios. A paciência é curta, não é verdade, impaciente leitor? E vamos a um final- ^ mente que a sensação de que não perdemos tempo, e que, por</p><p>esta altura, já estamos mais próximos de um conceito de literatura do que estávamos quando este livrinho do lado de fora da vitrina da livraria. 0 finalmente é que a obra literária é um objeto social. Para que ela exista, é preciso que alguém a escreva e que outro alguém a leia. Ela só existe enquanto obra neste intercâmbio social. Num mundo como nosso, essa relação binária entre produtor e consumidor de obras literárias é mediada por muitas instâncias: a do editor, a do distribuidor, a dos livreiros, para ficarmos só nas alfândegas que texto paga para ter direito a ser impresso, a circular e, eventualmente, a ser lido. Há, então, na sociedade moderna, uma espécie de corredor comercial pelo qual deve passar a obra literária antes que se cumpra sua natureza social, de criar um espaço de interação estética entre dois sujeitos: autor e leitor (epal com este "espaço de interação estética entre dois sujeitos" parece que os finalmentes vêm de cambulhada e chovem sobre o texto, não é, leitor amigo?). Vamos sair de fininho deste circuito, cujo reconhecimento, no entanto, é indispensável na caracterização do sistema contemporâneo de produção da obra literária. Sob este aspecto, não tem choro nem vela: a literatura iguala- -se a qualquer produto produzido e consumido em moldes capitalistas, isto é, confunde-se com esmaltes de unhas, marcas de carro e supermercados. Mas, há mais coisas, entre autor e leitor, do que a sombra sinistra do sistema- capitalista de produção. Para que um texto seja considerado literatura (e aqui, talvez, alguns leitores gostassem de uma inicial maiuscula Literatura) é preciso algo mais do que livre trânsito entre seu autor e um eventual leitor. Parece ser necessário aval dos canais competentes. Quem são estes canais? Pois é. Quem são? Canais competentes são todas aquelas instâncias às quais cumpre referéndar a Hterariedade. As quais compete, por uma espécie de acordo entre cavalheiros, estabelecer (mesmo que pela crítica demolidora), o valor ou a natureza artística e literária de uma obra considerada literária por seu autor ou eventuais leitores. E necessário, portanto, para que uma obra seja considerada parte integrante do conjunto de obras literárias de uma dada tradição cultural, que ela tenha endosso de certos setores mais especializados, aos quais compete batismo de um texto como literário ou não literário. E quem são estes setores especializados? São poucos, ou muitos, mas sempre os mesmos, que Narciso acha feio que não é espelho: os intelectuais, a crítica, a universidade, a academia. Algumas destas entidades são "entidades" entre aspas.</p><p>Não são institucionalizadas. Sem sede nem cartei- rinha, pairam nas nebulosas esferas do subentendido, do dito nas entrelinhas, do tacitamente consentido. Outras não. A Academia - a Brasileira de Letras, por exemplo - além de sede tem uniforme e espada. A crítica já é mais sutil: inclui tanto as.azedas opiniões de um desafeto do autor, quanto o minucioso (mas nem por isso mais estudo de uma obra numa publicação especializada em crítica literária. Entre as instâncias responsáveis pelo endosso do caráter literário das obras que aspiram ao status de literatura, a escola é fundamental. A instituição escolar é das que há mais tempo e com maior eficiência vêm cumprindo papel de avalista e fiadora da natureza e valor literários dos livros em circulação. Podia-se acompanhar historicamente sucessivo acumular de competências que foi dotando a escola de um poder de censura - em nome do bom gosto - sobre a produção literária. Mas seria demorado, não é, leitor? Vamos então por um atalho, a reflexão sobre a palavra clássico e seus derivados, de trânsito tão freqüente em livros e aulas de literatura, e tema do próximo capítulo.</p><p>A A primeira vista, clássicas são as obras produzidas num determinado período da tradição literária: os velhos autores da antiga Grécia e Roma, os mais modernos - mas igualmente antigos - escritores da Europa renascentista. Mas, desse significado (indicar as obras produzidas numa determinada época), clássico suas flexões e derivados - passou a indicar um juízo de valor: tanto para uma partida de futebol quanto para um livro.</p><p>Nesta outra acepção, a de significar excelência, boa qualidade, um autor ou texto para serem considerados clássicos não precisam ser contemporâneos nem da Grécia de Eurípides, nem da França de Ra- cine, nem mesmo do Portugal de Camões. Basta apenas que escritor ou o texto sejam reconhecidos como excelentes, acima de qualquer suspeita... é só nesse sentido que se pode dizer que Rubem Braga é um clássico da crônica, ou Noel Rosa um clássico da música popular brasileira. E qual foi passe de mágica pelo qual a palavra clássico (a, os, as, ismo...) desenvolveu um significado segundo sobre um significado primeiro? Ou, melhor ainda: qual é o significado primeiro e qual é segundo? Sem cartolas nem coelhos, a jogada está na palavra derivada de classis, palavra latina que significa classe de escola. Os clássicos, então, eram chamados clássicos por serem julgados adequados à leitura dos estudantes, úteis na consecução dos objetivos escolares. E como a escola, na seleção de seus textos, privilegiava os autores mais antigos, vem daf talvez a superposição de significados. Começa assim, bem antigamente, o papel da escola como uma das mais importantes instâncias que legitimam uma obra, não só como boa ou má literatura, mas como literatura ou não literatura. Os traços de instituição avalista e sancionadora da produção que se pretende literária persistem em outras maneiras de dizer: a escola romântica, a escola de Recife e, mais uma vez, na maravilhosa irreverência de Mário de Andrade, para quem "em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade dum Tem, assim, marcas muito fundas de seu lugar social de origem toda a discussão sobre que é literatura. Reconhecer lugar social que marca esta discussão não implica em negar sua validade, sua seriedade. Implica apenas em assumir sua relatividade, em negar sua superioridade, seu caráter de verdade maior e absoluta. Nestes termos a discussão de que é literatura costuma ser séria. Profunda. Bem formulada. Já faz muitos séculos que certas pessoas vêm se empe- j nhando em definir, para melhor compreender e minar, a natureza dos textos que os encantam. Esse esforço contínuo de definição faz com que as for- W mulações mais modernas constituam uma forma de diálogo que retoma, rebate e prolonga as anteriores. Incorporam conceitos de outras ciências humanas. Exigem, de quem quer um mínimo de familiaridade com a linguagem da filosofia, da história, da linguística, da sociologia, da antropologia, de quantas logias mais se quiser. Calma, leitor indignado e impaciente. Para entrar na e participar da plenária desta discussão, é preciso ter ingresso. Para dizer a verdade, comprar in gresso. Não dá para pegar bonde andando, que tombo é quase certo. E os ingressos livros, cursos,</p><p>escolas - nem estão por aí, nem são oferta grátis. Custam exatamente que custa pertencer à classe dominante ou, pelo menos, ter acesso a suas formulações culturais. Que, aliás, é que se costuma exigir quando se pretende avaliar "instrução", "cultura", "saber", etc., etc., etc. De uma vez por todas, a viagem pelos conceitos costuma interessar apenas a uns poucos. Por exemplo, só aos que usam óculos, que os outros estão ocupados demais com a própria sobrevivência e, portanto, ignoram a viagem do bonde fantástico, cujos primeiros passageiros conhecidos foram provavelmente Platão e Aristóteles, revezados depois por uma pequena multidão de cidadãos do mundo igualmente ilustres. Definitivamente, então, quem escreve e um livro como este aqui, já está a meio caminho do oculista. As situações nas quais precisamos de uma resposta para a pergunta que é literatura? são muito marcadas. Se não têm fardão e beca, têm lousas, exames e livros como cenário. script é que nos deram e, queiramos ou não, precisa ser decorado, incorporado, entendido. Há, portanto, que escolher tom de voz certo, que não impede ninguém de mostrar a língua quando todos estão de costas. Ou, os mais afoitos, em pleno palco, de frente para a plateia. Que mais é guardar-se pra quando carnaval chegar. Mesmo e talvez principalmente de uma perspectiva culta, definir literatura exige uma razoável mão-de-obra. Nem do ponto de vista tradicional, acadêmico e elaborado, literatura tem uma definição, no sentido em que podem ser definidos com certa unanimidade um composto químico, um acidente geográfico, um órgão do corpo humano. Pode-se definir, sem muito sangue na arena, água, cordilheira, aparelho respiratório, coisas assim. Mas a poeira é muita quando se tenta definir literatura, liberdade, arte e congêneres. Ai as perguntas são muitas e as respostas poucas. Tem tanta gente pensando no assunto (aliás, sempre teve) e tantas e tão diferentes são as respostas sugeridas que não dá para eleger uma delas como verdadeira e jogar no lixo todas as outras. que é literatura? é uma pergunta que tem várias respostas. E não se trata de respostas que, paulatinamente, vão-se aproximando cada vez mais de uma grande verdade, da Não é nada disso. Não existe uma resposta correta, porque cada tempo, cada grupo social tem sua resposta, sua definição para literatura. Respostas e definições logo para uso interno.</p><p>houve centenas de tentativas de definir que é literatura. Nessas investidas, vários têm sido os critérios pelos quais se tenta identificar que torna um texto literário ou não literário: tipo de linguagem empregada, as intenções do escritor, os temas e assuntos de que trata a obra, a natureza do projeto do escritor... tudo isso já teve ou ainda tem sua hora e sua vez. Cada uma destas definições é parcial em si mesma. E em conjunto, mais do que se anularem umas às outras, complementam-se, ajustam melhor certos aspectos e, acima de tudo, correspondem ao que foi ou é possível pensar de literatura num determinado contexto da vida do homem. Estabelecer, afinal, que uma coisa é pode não valer tanto a pena. Desconfio, e meus botões concordam, que a literatura continuará a ser o que é para cada um, independente do que outros digam que ela é. De qualquer forma, a ascensão e queda de conceitos de literatura parece seguir uma dinâmica própria e não exclusiva: pensadores, escritores, artistas e demais interessados discutem, escrevem, polemizam (antigamente às vezes até duelavam!) e, com isso, modulam conceitos que parecem explicar de forma convincente que é literatura em vista da produção de seu tempo. Giram os ponteiros. De repente, começam a surgir novos tipos de poemas; romances e contos passam a manifestar perfis inovadores, surgem formas novas e não previstas de criação literária e engatam-se novas discussões, novas teorias, até que a poeira assenta, para de novo levantar-se em nuvem tempos depois. que quero dizer é que há uma profunda relação entre as obras escritas num período e que, portanto, configuram a literatura deste período e aquilo que, nestas obras, costuma ser identificado como o específico literário. Desenvolve-se, assim, uma espécie de diálogo ininterrupto entre a prática e a teoria da literatura. Em outras palavras: os conceitos de literatura (lembre-se da ressalva, leitor: certos conceitos, os de tradição intelectual ..) são inspirados pela leitura das obras literárias (perdão, leitor, mas de novo outra ressalva: de certas obras, de livre trânsito nos meios e intelectuais ...). Reciprocamente, as obras literárias de um certo tempo, por serem permeáveis ao intercâmbio, incorporam tais formulações, vali- dando-as aos olhos de seus formuladores. Teoria prática literária correm o risco de se repetirem uma à outra. A partir de certo momento, a quase perfeita identidade entre teóricos e escritores torna-se redundante. Eco recíproco, texto literário e sua teoria chegariam ao impasse do A volta por cima é momento da vanguarda, da subversão de tudo que se disse e se fez em termos de literatura.</p><p>E nessa subversão radical que a literatura retoma sua dinâmica. Brechas no aparato conceituai, linguagens novas no horizonte da produção literária. E recomeça diálogo, não só do texto literário com sua teoria, mas da produção literária de um dado período com todo conjunto de obras que precedeu. Rompe-se circulo vicioso de uma teoria e uma prática que constituem um espelho no qual se miram uns e outros. Mas, seja como for, mesmo de uma perspectiva intelectual, as definições propostas para literatura importam menos do que caminho percorrido para chegar a elas. Ou, como dizia Fernando Pessoa, que importa mesmo é esperar D. Sebastião, quer venha ou não. Apontar, então, como a literatura foi diferentemente concebida em diferentes momentos da história é caminho esperado. No tempo devido iremos a ele, mesmo que esse percurso não me pareça afetar muito relacionamento das pessoas com os textos cuja leitura dá prazer. Reivindico, portanto, o direito a miragens e caretas, para as quais os leitores estão devidamente convidados. No intervalo, um ajuste de contas: da literatura com a linguagem. Vamos começar o ajuste de contas pedindo socorro ao Aurélio que, no lugar competente (página 845), ensina que: LITERATURA Do lat. litteratura.] S.F. 1. Arte de compor ou escrever trabalhos artísticos em prosa ou verso. 2. conjunto de trabalhos literários dum país ou duma época. 3. Os homens de letras: A literatura brasileira fez-se representar no colóquio de Lisboa. 4. A vida literária. 5. A carreira das letras. 6. Conjunto de conhecimentos relativos às obras ou aos autores literários: estudante de literatura brasileira; manual de literatura portuguesa. 7. Qualquer dos usos estéticos da linguagem: literatura oral q.v. 8. Fam. Irrealidade, ficção: Sonhador, tudo quanto diz é literatura. 9. é bem extensa a literatura da física nuclear. 10. Conjunto de escritos de propaganda de um produto industrial. São, como se dez diferentes significados recobertos pela mesma palavra. Mas, antes que algum leitor mal-humorado me acuse de passar a bola para o Aurélio em vez de entrar eu mesma em campo para a partida, aviso: que me interessa lá do verbete dele, por enquanto, é a informação primeira, que vem entre colchetes: do latim litteratura.]. A forma latina litteratura nasce de outra palavra igualmente latina: Httera, que significa letra, istoé, sinal gráfico que representa, por escrito, os sons da linguagem.</p><p>parentesco letras/literatura continua em expressões como cursos e academias de letras, homens letrados, be e tantas outras. Insinua-se, por aí, uma estreita relação entre a palavra literatura e a noção de língua escrita, pergaminho com iluminuras, papel impresso, etc. Corra, leitor cauteloso! Vá conferir no verbete do Aurélio quantas vezes a noção de escrita está implícita ou explícita nos significados que ele atribui a literatura. Aos olhos da nossa tradição cultural, domínio da escrita vale muitos pontos. É timbre de distinção, atestado de superioridade intelectual, marca de valor: tanto para indivíduos quanto para civilizações. Que os escândalos anuais em torno da assim chamada calamidade-redação nos exames vestibulares atestem. que da noção de literatura com a linguagem escrita favorece um conceito de literatura que privilegia a manifestação escrita sobre a oral. Some-se a isso o fato de que, antes de significar que significa hoje, termo literatura recobria outros significados: de erudição, de conhecimentos gramaticais, de domínio das línguas foi i só a partir dos meados do século XVIII que a palavra literatura foi tendo atenuado seu significado de atividade intelectual superior mas generalizada, e fortalecido significado mais próximo do que hoje ela nos sugere. Mas, se contemporaneamente a palavra literatura em algumas situações já rompeu com a conotação de altos saberes e elevadas ciências, este rompimento não foi total: gravita ainda, em tomo da palavra (e da noção de) literatura um restinho do halo de seriedade e respeitabilidade que aureolava seus antigos usos. Ilustrando essa importância da escrita no estabelecimento da teoria e da história literária, vamos voltar no tempo, às primeiras manifestações poéticas do velho Portugal, todas de caráter eminentemente oral: as canções de amigo e de amor. Como sugere a palavra canção, eram originalmente textos orais, cantados e dançados pelos coloridos jograis, e trovadores da Idade Média portuguesa. No entanto, essa produção oral só se transforma em documento literário a partir do momento em que é registrada e recolhida em cancioneiros; curioso é que na compilação, os textos deixam de ser que música, dança e palavra, e passam a ostentar a frialdade e afastamento do texto só escrito, das linhas secas e despidas de música. Distancia-se, assim, o registro que temos (e sobre o qual se constrói a história literária) de nossas origens literárias, das apresentações musicais e movimentadas dos artistas que apresentavam simultaneamente a música, canto, a dança. Neste mesmo sentido da elitização e do resfriamento do que se chama literatura nosso dia-a-dia também é eloqüente: olhando à nossa volta, vemos como explode</p><p>uma cultura rica em matizes visuais, em sonoridades, tons e semitons. O corpo reivindica espaço que tanto tempo a repressão confinou ao limite das roupas e dos movimentos sóbrios do decoro burguês. O corpo reconquistado explode em movimento, em dança, em sensações. Assim, movimento, visualidade, sonoridade, geralmente ausentes (ou apenas latentes) no texto escrito, manifestam-se gloriosamente na música popular, um dos refúgios contemporâneos da literatura. A admissão da MPB no pódio da literatura, no entanto, não é tão tranqüila assim: fora os que torcem de cara nariz, existem os que cobram sua admissão: preço é ser a MPB passível de uma reflexão que, passando por cima de seus elementos não estritamente verbais, aplica a eia os mesmos critérios e categorias tradicionais na literatura escrita. Isto para não falar da telenovela, também sem direito ao pódio literário intelectual nenhum que se preze assiste a ela. Essa desconfiança de tudo o que não é escrito, - ou de tudo que ao escrito acrescenta outros códi- 1 gos, não nasce da azeda má vontade da crítica, não. 1 E, talvez, a marca de sua impotência para lidar com qualquer coisa que, ao contrário dela, não tenha i raízes cultas e nobres."</p>