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Lírica medieval Quer’eu en maneyra de proençal fazer agora hun cantar d’amor e querrey muit’i loar mha senhor, a que prez nem fremusura non fal, nem bondade, e mays vos direi en: tanto a fez Deus comprida de bem que mays que todas las do mundo val. Ca mha senhor quis o Deus fazer tal quando a fez, que a fez sabedor de todo bẽ e de mui grã valor e cõ tod’est[o] é mui comunal, aly hu deue; er deu-lhi bõ sen, e des y nõ lhi fez pouco de ben, quando nõ quis que lh’outra foss’igual. Ca, en mha senhor nũca Deus pos mal, mays pos hi prez e beldad’ e loor e falar mui bẽ e rijr melhor que outra molher; des y é leal muyt’ e por esto nõ sey oi’eu quẽ possa compridamẽte no seu bẽ falar, ca nõ á, tra lo seu ben, al. (CV 123, CBN 485 – D. Dinis) Que soydade de mha senhor ey, quãdo me nenbra d’ela qual a ui, e que me nenbra que ben a oy falar, e, por quanto bẽ d’ela sey, rogu’eu a Deus, que end’á o poder, que mha leixe, se lhi prouguer, ueer Cedo, ca, pero mi nũca fez bẽ, se a nõ uir, nõ me posso guardar, d’enssandecer ou morrer cõ pesar, e, por que ela tod’ en poder tẽ rogu’eu a Deus, que end’á o poder, que mha leixe, se lhi prouguer, ueer Cedo, ca tal a fez Nostro Senhor; de quãtas outras [e] no mũdo son nõ lhi fez par, a la minha fé, nõ, e, poy-la fez das melhores melhor, rogu’eu a Deus, que end’á o poder, que mha leixe, se lhi prouguer, ueer Cedo, ca tal a quis [o] Deus fazer que se a non uyr, nõ posso uiuer. (CV 119, CBN 481 – D. Dinis) 1- Que soydade de mha senhor ey, A cantiga define-se como de amor ao enunciar o sintagma evocativo da amada, no primeiro verso: mha senhor. O sentimento da saudade, tão frequente na literatura portuguesa, assinala a ligação afetiva com essa senhora, operacionalizando noções de espaço, pelo afastamento físico, e de tempo, pois traz à lembrança o momento em que a viu e ouviu (falar bem), lembrança que persiste obsessivamente no interior do eu-lírico no presente, fazendo com que deseje novamente rever tal dama. Dela ele também só sabe bem, o que remete à ação da Fama, predispondo os seres humanos ao amor, facilitando a ação de Cupido, como se observa n’Os Lusíadas. O eu-lírico acumula-a com atributos que a dignificam e promovem acima de todas as outras, marca distintiva de uma superioridade elevada ao grau superlativo. A relação com essa senhora ocorre, portanto, através do ver, do ouvir e do saber. O contexto social assinala a quase impossibilidade de ver essa senhora: somente Deus tem o poder de lhe conceder tal graça, assim mesmo caso ao poder se alie a vontade divina, o querer. A urgência de seu desejo manifesta-se pelo advérbio cedo e pelo fato de ser a cantiga ateúda (apresentando o encadeamento entre as estrofes), o que projeta o significado para a linha seguinte, acelerando a própria leitura do texto. A incorrespondência amorosa é reiterada, pois esse sentimento nunca lhe trouxe prazer: “pero mi nunca fez bem”. Instala-se a coita: o eu-lírico se percebe impotente face à possibilidade de se resguardar da dor, o que gera o morrer de amor ou a loucura, morte também, ainda que civil. A trajetória dos sintomas da “morte por amor” parece haver consistido, primeiramente, na visão da mulher; logo a seguir – a entrega total do sujeito a essa impressão; a elaboração de um drama interior – a coita – com base psicológica no doloroso cuidar; o alheamento do real e perda do equilíbrio da sensibilidade; finalmente a sandeçe, a “perda do sen”: nisto devia ter consistido o “morrer d’amor” dos trovadores galego-portugueses.1 Tal como Deus, “ela tod’ en poder tẽ”, alçada à posição de deusa inatingível, única, sem par. Na hierarquização do poder, acima de todos, Deus (Nostro Senhor), que o pode salvar através do ver; abaixo, numa posição quase que de deusa - tal como Vênus, por todos adorada - a senhora, que tem o poder de conduzi-lo à loucura ou à morte; por último, o eu-lírico, completamente desprovido de poder, servo e vassalo por amor, vassalo do amor. O amor conserva, mesmo nos dias de hoje, esse aspecto obsessivo. Analisando o sentimento amoroso, Jacob Needleman, professor de Filosofia, assegura que só “nos sentimos seguros quando o outro é obcecado por nós”, acrescentando: Consideramos ansiedade e obsessão como sinal de zelo; nosso mundo muitas vezes requer uma espécie de fanatismo como prova do nosso compromisso. (...) A sociedade nos encoraja a sermos compulsivos, ou pelo menos a agirmos como tal. E sem dispormos de qualquer outra visão autêntica do significado do zelo, essa forma de agir muitas vezes nos torna aprisionados. O nosso mundo favorece uma espécie de insanidade.2 2- Quer’ eu en maneyra de proençal Outra cantiga de D. Dinis, bastante conhecida, inicia-se com uma referência ao próprio fazer poético, um cantar de amor à moda provençal, atestando a influência dos trovadores dessa região sobre o lirismo galaico-português. Cumpre destacar que a cantiga se tece ao redor do loar a senhora, realçada por seus atributos físicos (fremusura, beldade), morais (prez, palavra de origem provençal que indica o valor, a honra da dama), psicológicos (destacando a bondade de seu coração), além de características que tornam essa dama sociável e, certamente, humilde: apesar de todos as qualidades descritas (cuja ciência poderia torná-la soberba e orgulhosa), é comunal, falante e risonha. Intencionalmente ou não, ao destacar esses atributos que tangenciam a licenciosidade – a cantiga poderia conduzir à ideia de que a dama é “simpática demais” – o eu lírico imediatamente limita essa atuação: ela é “mui comunal” (com as acepções de “sociável, tratável, amável, lhano, universal, vulgar”3), “aly hu deue”, ali onde deve ser simples e comum, no âmbito restrito do seu espaço social, de seu dever moral; da mesma forma, ao afiançar que ela sabe “falar mui bẽ e rijr melhor / que outra mulher”, logo após confirma sua lealdade e o bem que a caracteriza inteiramente, a fim de que não pairem dúvidas sobre a sua reputação. A figura divina que aqui aparece é o Deus artifex, responsável pela beleza da senhora e, consequentemente, pelo amor e sofrimento do eu-lírico que, diante da perfeição dessa mulher, nada mais pode fazer do que se lançar a seus pés. O querer divino é constantemente reiterado na cantiga, sendo Deus o sujeito em muitas orações, ainda que oculto. O querer divino consubstancializa-se na criação humana feminina; o querer do eu-lírico, na criação poética, almejando recuperar na cantiga a perfeição da dama, o fazer divino. (Regina Michelli) 1 SPINA, S. A lírica trovadoresca. Rio de Janeiro, São Paulo: Grifo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1972, p. 299. 2 NEEDLEMAN, Jacob. Sobre o amor. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, p. 69. 3 OLIVEIRA, Corrêa de e MACHADO, Luís Saavedra. Textos portugueses medievais. Coimbra: Coimbra., 1973, p. 731.
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