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Corpos e Identidades Culturais

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<p>CORPOS QUE ESCAPAM</p><p>Guacira Lopes Louro</p><p>Doutora em Educação pela UNICAMP</p><p>Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS</p><p>Mesa-redonda nº58 – Eixo temático 7 – Educação, Infância e Juventude</p><p>Palavras-chave: corpo, gênero, sexualidade</p><p>Na tradição do humanismo ocidental, aprendi a pensar o corpo como o elemento</p><p>menos nobre de uma série de pares: corpo-alma, corpo-espírito, corpo-mente, corpo-</p><p>razão. Nesses pares, ele ocupava o lugar da natureza em oposição ao da cultura; o local</p><p>do primitivo em oposição ao do civilizado; o lado animal e instintivo em oposição ao</p><p>racional ou ao humano. Para que tais dicotomias “funcionassem” era preciso tomar seus</p><p>pólos como exteriores um ao outro, como independentes e incontaminados. O corpo,</p><p>nesta lógica tradicional, não poderia ser pensado como instância da cultura ou como</p><p>esfera da política.</p><p>No entanto, pergunto: como as sociedades têm distinguidos seus filhos e filhas?</p><p>Para onde se voltam os olhares quando se quer classificar e “localizar” alguém? Quais</p><p>as referências a que se recorre para, de imediato, dizer quem alguém é ?</p><p>A determinação das posições dos sujeitos no interior de uma cultura remete-se,</p><p>usualmente, à aparência de seus corpos. Ao longo dos séculos, os sujeitos vêm sendo</p><p>examinados, classificados, ordenados, nomeados e definidos por seus corpos, ou</p><p>melhor, pelas marcas que são atribuídas a seus corpos.</p><p>Diz o dicionário Houaiss, que aparência é “a configuração exterior de alguém ou</p><p>de algo, aquilo que se mostra imediatamente, o aspecto”. A aparência é, pois, algo que</p><p>se apresenta ou que se representa. Vê-se o que se mostra, o que aparece; e ao que se vê</p><p>se atribui significados. Pele, pêlos, seios, olhos são significados culturalmente. Muitos</p><p>são os significados atribuídos ao formato dos olhos ou da boca; à cor da pele; à presença</p><p>da vagina ou do pênis; ao tamanho das mãos e à redondeza das ancas. Significados que</p><p>não são sempre os mesmos — os grupos e as culturas divergem sobre as formas</p><p>adequadas e legítimas de interpretar ou de ler tais características. Alguns desses</p><p>aspectos podem ser considerados extremamente relevantes (para alguns grupos) e,</p><p>então, podem vir a se constituir em marcas definidoras dos sujeitos — marcas de raça,</p><p>de gênero, de etnia, de classe ou de nacionalidade, decisivas para dizer do lugar social</p><p>de cada um. Para outros grupos, as mesmas marcas podem ser irrelevantes e sem</p><p>validade em seu sistema classificatório. De qualquer modo, há que admitir que, no</p><p>interior de uma cultura, há marcas que valem mais e marcas que valem menos. Possuir</p><p>(ou não possuir) uma marca valorizada permite antecipar as possibilidades e os limites</p><p>de um sujeito; em outras palavras, pode servir para dizer até onde alguém pode ir, no</p><p>contexto de uma cultura.</p><p>O dicionário também diz que a aparência pode ser “uma ilusão, um disfarce”.</p><p>Neste caso, o dicionário faz supor que existe, embaixo desse disfarce, uma “verdade”.</p><p>Se é à aparência dos corpos que se está referindo, então, a verdade deve ser,</p><p>provavelmente, a da natureza, ou melhor, a da biologia. Não é à toa que as discussões</p><p>sobre gênero e sexualidade, embora pretendam aceitar a importância da cultura, acabem</p><p>por se remeter, sempre, a uma “verdade” inexorável dos corpos. Ainda que</p><p>comportamentos, códigos e normas culturais sejam reconhecidos, eles são considerados,</p><p>de certa forma, como algo que se agrega, como algo que é “posto sobre” uma superfície</p><p>2</p><p>preexistente. É como se os corpos portassem, desde o nascimento, a essência e a certeza</p><p>dos sujeitos. Como se os corpos possuíssem um núcleo que poderia ser disfarçado ou</p><p>transfigurado pela cultura, mas que se constituiria, ao fim e ao cabo, essencialmente, em</p><p>sua verdade. Mas onde fica essa essência, esse núcleo? Quais as certezas possíveis sobre</p><p>os corpos, hoje, num tempo em que as intervenções são tantas, tão refinadas, sutis e</p><p>significativas que se tornam, muitas vezes, absolutamente imperceptíveis e, ao mesmo</p><p>tempo, absolutamente subversivas? Como, onde, através de que recursos pode-se</p><p>estabelecer um limite entre natureza e cultura, entre biologia e tecnologia? O que é, de</p><p>fato, natural? Onde começa o artifício? Os corpos são, em algum momento, somente</p><p>biológicos? É possível dizer que na tela do aparelho de ecografia que mostra os</p><p>primeiros momentos da vida de um feto, temos, enfim, um corpo ainda não nomeado</p><p>pela cultura?</p><p>As respostas a essas perguntas indicam a impossibilidade de isolar a natureza, a</p><p>impossibilidade de definir onde “começa” a cultura. Tomaz Tadeu da Silva afirma que</p><p>“não existe nada mais que seja simplesmente ‘puro’ em qualquer dos lados da linha de</p><p>‘divisão’: a ciência, a tecnologia, a natureza puras; o puramente social, o puramente</p><p>político, o puramente cultural. Total e inevitável embaraço” (SILVA, 2000, p.13). Por</p><p>tudo isso, é imprescindível admitir que os corpos são o que são na cultura. A linguagem,</p><p>os signos, as convenções e as tecnologias usadas para referi-los são dispositivos da</p><p>cultura. E se ele, o corpo, “fala”, o faz através de uma série de códigos, de adornos, de</p><p>cheiros, de comportamentos e de gestos que só podem ser “lidos”, ou seja, significados</p><p>no contexto de uma dada cultura.</p><p>Os significados dos corpos deslizam</p><p>Os significados dos corpos deslizam e escapam, eles são múltiplos e mutantes.</p><p>Até mesmo o gênero e a sexualidade — aparentemente deduzidos de uma “base” natural</p><p>— são atributos que se inscrevem e se expressam nos corpos através das artimanhas e</p><p>dos artifícios da cultura. Gênero e sexualidade não são definições seguras e estáveis,</p><p>mas históricas e cambiantes. Deve-se reconhecer que a maioria das sociedades possui</p><p>algum tipo de distinção masculino/feminino e que essa distinção geralmente é</p><p>relacionada ao corpo. Contudo, isso não quer dizer que os corpos são “lidos” ou</p><p>compreendidos do mesmo modo em qualquer tempo ou lugar, nem que seja atribuído</p><p>valor ou importância semelhante às características corporais em distintas culturas.</p><p>Geográfica e historicamente, os significados atribuídos aos corpos mudam. Linda</p><p>Nicholson lembra como o significado das características físicas dos corpos de homens e</p><p>mulheres modificou-se, ao longo dos séculos. Diz ela: “de um sinal ou marca da</p><p>distinção masculino/feminino passaram a ser sua causa, aquilo que dá origem”</p><p>(NICHOLSON, 2000, p. 18). Houve tempo em que a Bíblia era a “fonte de autoridade”,</p><p>lembra a autora, e nela se buscava a explicação sobre o relacionamento entre mulheres e</p><p>homens e também sobre qualquer diferença percebida entre eles. Neste tempo, o corpo</p><p>importava pouco como fonte da distinção, mas, posteriormente, tudo mudou: o corpo</p><p>tornou-se causa e justificativa das diferenças. Os significados das marcas dos corpos se</p><p>alteram, pois, ao longo da existência das sociedades e dos sujeitos: mudam as fontes da</p><p>autoridade, mudam os discursos, mudam os códigos, muda a medicina, a tecnologia e a</p><p>moda, mudam os hábitos; os sujeitos envelhecem, adoecem, morrem.</p><p>Os significados dos corpos deslizam e escapam não apenas porque são alterados,</p><p>mas porque são objeto de disputas. Distintas instâncias culturais falam dos corpos,</p><p>afirmam o que eles são, explicam-nos, dizem como são, como devem ser. Decidem</p><p>sobre a sexualidade, sobre a vida, o prazer, o nascimento e a morte. Foucault afirma</p><p>3</p><p>que, nos últimos séculos mais do que nunca, se produziu um “saber sobre o prazer” e,</p><p>simultaneamente, o “prazer de saber” — “o sexo foi colocado em discurso”</p><p>(FOUCAULT, 1993). A sexualidade, os corpos e os gêneros vêm sendo, desde então,</p><p>descritos, compreendidos, explicados, regulados, saneados e educados, por muitas</p><p>instâncias, através das mais variadas táticas, estratégias e técnicas. Estado, igreja,</p><p>ciência – instituições que, tradicionalmente, arrogavam-se a autoridade para definir e</p><p>para delimitar padrões de normalidade, pureza ou sanidade – concorrem hoje com a</p><p>mídia, o cinema e a televisão, com grupos organizados</p><p>de feministas e de “minorias</p><p>sexuais” que pretendem decidir, também, sobre a sexualidade, o exercício do prazer, as</p><p>possibilidades de experimentar os gêneros, de transformar e viver os corpos.</p><p>Mais do que nunca, o corpo tem de ser compreendido, agora, como “um projeto”</p><p>(cf. SCHILLING, 1997), um empreendimento que é passível de mudanças e de</p><p>alterações. Marcam-se os corpos social, simbólica e materialmente. Marcas distintivas,</p><p>expressivas, sutis ou violentas, que podem ser inflingidas pelo próprio sujeito ou pelo</p><p>grupo social. Seja de quem for a iniciativa, é indispensável reconhecer que essa</p><p>“marcação” tem efeitos. Uma multiplicidade de sinais, códigos e atitudes produz</p><p>referências que “fazem sentido” no interior da cultura e que definem (pelo menos</p><p>momentaneamente) quem é o sujeito. A marcação pode ser simbólica ou física, pode ser</p><p>indicada por uma aliança de ouro, por um véu, pela colocação de um piercing, por uma</p><p>tatuagem, pela implantação de uma prótese... E essa marcação terá, além de seus efeitos</p><p>simbólicos, expressão social e material. Ela irá permitir que o sujeito seja reconhecido</p><p>como pertencendo a uma determinada identidade; que seja incluído ou excluído de</p><p>determinados espaços; que seja acolhido ou recusado por um grupo; que possa (ou não)</p><p>usufruir de direitos; que possa (ou não) realizar determinadas funções ou ocupar</p><p>determinados postos; que tenha deveres ou privilégios; que seja, em síntese, aprovado,</p><p>tolerado ou rejeitado.</p><p>Como um “projeto”, o corpo é construído. A marcação que sobre ele se executa</p><p>é cotidiana; supõe investimento, intervenção. Processos que se fazem ao longo da</p><p>existência de cada sujeito, de forma continuada e permanente. Processos que estão</p><p>articulados aos inúmeros discursos que circulam numa sociedade e que podem ser</p><p>compreendidos como pedagogias voltadas à produção dos corpos. Essas pedagogias são,</p><p>usualmente, reiterativas das normas regulatórias de uma cultura: suas normas de gênero</p><p>e sexuais, em especial. Elas não são, contudo, sempre convergentes ou homogêneas. Os</p><p>sujeitos são alvo de pedagogias distintas, discordantes, por vezes contraditórias. Tudo</p><p>isso torna cada vez mais problemática a pretensão de tomar os corpos como estáveis e</p><p>definidos. Tudo isso torna cada vez mais impossível a pretensão de tomá-los como</p><p>naturais.</p><p>É indispensável admitir, ainda, que o sujeito não é um mero receptor de</p><p>pedagogias exteriores a ele, mas sim que ele participa, ativamente, deste</p><p>empreendimento. Os discursos produzidos e veiculados pelos institutos oficiais de</p><p>saúde, pelas revistas e jornais, pelo cinema, pela internet ou pela moda certamente têm</p><p>efeitos sobre seus corpos e mentes, mas seus efeitos não são previsíveis, irresistíveis ou</p><p>implacáveis. Os sujeitos não somente respondem, resistem e reagem, como também</p><p>intervêm em seus próprios corpos para inscrever-lhes, decididamente, suas próprias</p><p>marcas e códigos identitários e, por vezes, para escapar ou confundir normas</p><p>estabelecidas.</p><p>Num tom um tanto nostálgico, David le Breton afirma:</p><p>Nas nossas sociedades, a parte da bricolagem simbólica se ampliou (...) A</p><p>maleabilidade de si, a plasticidade do corpo tornam-se lugares comuns. A</p><p>4</p><p>anatomia não é mais um destino, mas um acessório da presença, uma matéria</p><p>prima a aperfeiçoar, a redefinir, a submeter ao design do momento. O corpo</p><p>tornou-se, para muitos contemporâneos, uma representação provisória, um gadget,</p><p>um lugar ideal para realização de “efeitos especiais” (LE BRETON, 1999, p.23).</p><p>Seu texto sugere uma crítica ou um lamento pelas certezas que agora escapam.</p><p>Seu texto também parece sugerir que o corpo foi — em algum momento ou num tempo</p><p>remoto ideal — um lugar intocado pela cultura; um lugar no qual hoje, lastima ele, se</p><p>realizam “efeitos especiais”, pirotecnia, artifícios inusitados, invenções. Contudo,</p><p>podem os corpos ser considerados, em alguma circunstância, como um lugar não-</p><p>marcado, não-referido? Acompanhe-se ou não as idéias do autor, parece imprescindível</p><p>reconhecer que os corpos sempre foram e são, agora, de uma forma talvez mais visível</p><p>do que nunca, ditos e feitos na cultura. É imprescindível admitir que os artifícios e as</p><p>invenções se constituem na possibilidade mesma de fazer o corpo falar e dizer de si.</p><p>O autor prioriza, na sua análise sobre a maleabilidade dos corpos, as</p><p>intervenções que o próprio sujeito impõe a seu corpo. Atravessa toda sua análise um</p><p>tom voluntarista que dá ao sujeito a responsabilidade e a autoria pela definição ou</p><p>redefinição de sua aparência. Seria interessante lembrar, contudo, que os corpos são</p><p>também marcados, fortemente, a partir da exterioridade do olhar e do dizer do outro. Os</p><p>corpos são nomeados e discriminados conforme se ajustem, ou não, aos ditames e às</p><p>normas de sua cultura. Portanto, os corpos são feitos, inventados, também, por tudo que</p><p>— de fora — se diz ao sujeito, sobre o sujeito, para o sujeito.</p><p>O gênero e a sexualidade deslizam</p><p>Analisando os corpos de transexuais, Le Breton afirma que, para estes, a</p><p>feminilidade e a masculinidade, longe de serem evidentes, “são objeto de uma produção</p><p>permanente pelo uso apropriado de signos” e, desta forma, tornam-se “um vasto campo</p><p>de experimentação (LE BRETON, 1999, p. 28). Pergunto: essas afirmações deveriam</p><p>ficar restritas a transexuais? Não seria possível pensar que toda forma de feminilidade e</p><p>de masculinidade é objeto de uma produção? Ao assumir que os gêneros são produzidos</p><p>cultural e historicamente, parece ser imprescindível admitir que os gêneros se “fazem”,</p><p>sempre, com as marcas particulares de uma cultura, com os recursos e signos</p><p>específicos de um tempo e de um lugar.</p><p>Colocando-se em outra perspectiva, estudiosas queer1 reconhecem ou até mesmo</p><p>celebram as transformações dos corpos e as transgressões dos gêneros como um</p><p>importante evento da contemporaneidade. Acompanham Foucault em sua constatação</p><p>de que se vive, há algum tempo, uma proliferação e uma dispersão de discursos, bem</p><p>como uma dispersão de sexualidades. Diz o filósofo:</p><p>assistimos a uma explosão visível das sexualidades heréticas, mas sobretudo – e é</p><p>esse o ponto importante – a um dispositivo bem diferente da lei: mesmo que se</p><p>apoie localmente em procedimentos de interdição, ele assegura, através de uma</p><p>rede de mecanismos entrecruzados, a proliferação de prazeres específicos e a</p><p>multiplicação de sexualidades disparatadas (FOUCAULT, 1993, p.48).</p><p>Intelectuais queer concordam que hoje convive uma “multiplicidade de</p><p>sexualidades disparatadas”. Assumindo que as posições de gênero e sexuais se</p><p>multiplicaram, entendem que é impossível lidar com elas apoiadas em esquemas</p><p>binários. Reconhecem que a ambiguidade tornou-se uma constante e que tal</p><p>5</p><p>multiplicidade de posições é constituída por e constituinte de profundas mudanças</p><p>teórico-metodológicas. Conforme Debbie Epstein e Richard Johnson (1988):</p><p>A agenda teórica moveu-se da análise das desigualdades e das relações de poder</p><p>entre categorias sociais relativamente dadas ou fixas (homens e mulheres, gays e</p><p>heterossexuais) para o questionamento das próprias categorias – sua fixidez,</p><p>separação ou limites – e para ver o jogo do poder ao redor delas como menos</p><p>binário e menos unidirecional (p. 37).</p><p>Adotando estratégias descentradoras e desconstrutivas, estudiosas e estudiosos</p><p>queer vão questionar a heteronormatividade compulsória da sociedade, denunciar a</p><p>lógica heterossexual/homossexual como princípio onipresente regulador do</p><p>conhecimento, do poder e da existência dos sujeitos. Contestando qualquer forma de</p><p>normalização, algumas dessas estudiosas apelam para a figura da drag-queen para</p><p>desenvolver suas análises. Escolhem, pois um sujeito que, explicitamente, assume</p><p>fabricar seu corpo, para, a partir dele, pensar o quanto cada sujeito “comum” também</p><p>“fabrica”, cotidianamente, seu corpo manejando os signos e códigos de sua cultura.</p><p>Afirmam que, se a drag-queen propositalmente exagera os traços convencionais do</p><p>feminino,</p><p>se exorbita e acentua “marcas” corporais, comportamentos, atitudes e</p><p>vestimentas, ela não o faz com o propósito de se “passar por uma mulher”, mas sim com</p><p>o propósito de exercer uma paródia de gênero. A drag repete e exagera, se aproxima,</p><p>legitima e, ao mesmo tempo, subverte o sujeito que copia. Conforme acentuam teóricas</p><p>e teóricos, tal paródia — característica da pós-modernidade — não significa a imitação</p><p>ridicularizadora, mas sim uma “repetição com distância crítica que permite a indicação</p><p>irônica da diferença no próprio âmago da semelhança” (HUTCHEON, 1991, p.47). Isto</p><p>pode significar apropriar-se dos códigos ou das marcas daquele que se parodia para ser</p><p>capaz de expo-los, de torná-los mais evidentes e, assim, subverte-los, critica-los e</p><p>desconstrui-los. Por tudo isso, a paródia permite repensar ou problematizar a idéia de</p><p>originalidade ou de autenticidade. E é exatamente neste sentido que a figura da drag-</p><p>queen é produtiva para se pensar sobre os gêneros e a sexualidade: ela põe em questãoa</p><p>essência ou a autenticidade dessas dimensões e leva a refletir sobre seu caráter</p><p>construído. Sua figura estranha e insólita aponta para o fato de que as formas usuais e</p><p>rotineiras com que os sujeitos se apresentam são, sempre, formas inventadas e</p><p>sancionadas pelas circunstâncias culturais.</p><p>A instabilidade dos corpos e as possibilidades de experimentá-los —</p><p>circunstâncias que parecem incomodar a Le Breton e a tantos outros — têm de ser</p><p>compreendidas como eventos da contemporaneidade. O atravessamento das fronteiras</p><p>de gênero e sexuais hoje já não é mais objeto de espanto; de certo modo, tal</p><p>atravessamento já se tornou praticamente um lugar-comum que não merece mais a</p><p>manchete dos jornais de escândalos. Isso não significa afirmar, contudo, que o lugar</p><p>social dos sujeitos que vivem tais práticas seja um lugar reconhecido ou cômodo. Ao</p><p>desafiar as normas regulatórias dos gêneros e da sexualidade e ao ousar afirmar-se como</p><p>sujeitos mutantes, tais sujeitos se assumem como “identidades prescritas e proscritas”,</p><p>como lembra Maria Consuelo Cunha Campos (1999, p. 39). “A identi</p><p>não lhes interessa, também, serem acolhidos ou integrados ao “sistema”. Sua aspiração</p><p>parece ser a de romper com a lógica hegemônica, melhor dizendo, interessa-lhes romper</p><p>com a lógica que, a favor ou contra, continua se remetendo, sempre, ao sujeito central</p><p>(masculino, branco, heterossexual, de classe média). Tais sujeitos se assumem como</p><p>excêntricos (fora-do-centro) e pretendem viver como tais.</p><p>6</p><p>não lhes interessa, também, serem acolhidos ou integrados ao “sistema”. Sua aspiração</p><p>parece ser a de romper com a lógica hegemônica, melhor dizendo, interessa-lhes romper</p><p>com a lógica que, a favor ou contra, continua se remetendo, sempre, ao sujeito central</p><p>(masculino, branco, heterossexual, de classe média). Tais sujeitos se assumem como</p><p>excêntricos (fora-do-centro) e pretendem viver como tais.</p><p>Os desafios para Educação</p><p>Como pensar tais sujeitos no campo da Educação? O que dizem sobre eles</p><p>nossas teorias e nossas tradições? Que recursos ou estratégias teriam de ser acionados</p><p>para integrá-los a nossos projetos?</p><p>Para o campo educacional, a afirmação desses grupos é profundamente</p><p>perturbadora. Não se dispõe de referências ou de tradições para lidar com os desafios aí</p><p>implicados. Não parece mais adequado “encaminhá-los” para os serviços e instituições</p><p>especializados. Provavelmente será ineficaz tentar “corrigi-los”, reorientá-los. Eles</p><p>integram a contemporaneidade e, ainda que não se enquadrem nas referências ditadas</p><p>pelas tradições educacionais e acadêmicas, estão aí, para provocar ou exigir que se</p><p>inventem novas formas de convivência. Considerados por muitos como irreverentes e</p><p>desrespeitosos, eles desafiam e colocam em xeque normas, códigos, comportamentos,</p><p>que, por sua permanência e estabilidade, pareciam ser, há muito tempo, incontroversos,</p><p>inquestionáveis, naturais. Suas críticas são produzidas a partir de um lugar</p><p>praticamente inabitável, a partir de uma posição desconfortável e indesejada e, por isso</p><p>mesmo, uma posição incomum. Daí porque suas críticas são inéditas, são</p><p>desconcertantes. No entanto, por todas essas razões, é possível que essas críticas</p><p>também possam ser produtivas.</p><p>Esses sujeitos estão nas ruas, nos shopping-centers, nas praças e também nas</p><p>escolas. Não se pode deixar de lhes prestar atenção. Sua ambivalência desconforta e</p><p>ameaça; mas também fascina. Talvez seja mais produtivo para estudiosas e intelectuais,</p><p>deixar de lamentar a instabilidade de seus corpos (a instabilidade de todos os corpos) e</p><p>abandonar qualquer pretensão de retorno a um tempo idílico em que as coisas e as</p><p>pessoas pareciam estar todas em seus devidos lugares. (E esse tempo terá existido?) É</p><p>inevitável fazer face a essa diversidade de sujeitos e de práticas É indispensável encará-</p><p>la como constituinte do nosso tempo. Um tempo em que a diversidade não funciona</p><p>mais com base na lógica da oposição e da exclusão binárias, mas, em vez disso, supõe</p><p>uma lógica mais complexa. Um tempo em que a multiplicidade de sujeitos e de práticas</p><p>sugere o abandono do discurso que posiciona, hierarquicamente, centro e margens,</p><p>dominantes e dominados, em favor de outro discurso que assume a dispersão e a</p><p>circulação do poder.</p><p>A diferença se multiplicou. As histórias e as lutas de um grupo cultural são</p><p>atravessadas e contingenciadas por experiências e lutas conflitantes, protagonizadas por</p><p>outros grupos. Por isso, nas escolas e na vida, há que aprender, nesses tempos pós-</p><p>modernos, a aceitar que a verdade é plural, que ela é definida pelo local, pelo particular,</p><p>pelo limitado, temporário, provisório. Há que se voltar para práticas que desestabilizem</p><p>e desconstruam a naturalidade, a universalidade e a unidade dos corpos, da identidade e</p><p>da cultura centrais e que reafirmem o caráter construído, movente e plural de todas as</p><p>posições. É possível, então, que a história, o movimento e as mudanças pareçam menos</p><p>ameaçadores.</p><p>Nota:</p><p>7</p><p>1. Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a</p><p>expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres</p><p>homossexuais. (...) Este termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é assumido por uma</p><p>vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua perspectiva de oposição e de</p><p>contestação. Para esse grupo, queer significa colocar-se contra a normalização – venha ela de onde vier.</p><p>Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade; mas</p><p>não escaparia de sua crítica a normalização e a estabilidade propostas pela política de identidade do</p><p>movimento homossexual dominante. Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada</p><p>ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora (LOURO, 2001, p.</p><p>546).</p><p>Referências bibliográficas</p><p>CAMPOS, Maria Consuelo cunha. Roberta Close e M. Butterfly: transgênero,</p><p>testemunho e ficção. Revista Estudos Feministas. vol. 7 (1e 2), 1999.</p><p>Dicionário Eletrônico HOUAISS da língua portuguesa. Editora Objetiva.</p><p>EPSTEIN, Debbie;</p><p>JOHNSON, Richard. Schooling Sexualities. Buckinghan: Open</p><p>University Press, 1998.</p><p>FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade. Vol.1. A vontade de saber.11ª ed..</p><p>Rio de Janeiro: Graal, 1993.</p><p>HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.</p><p>LE BRETON, David. L’Adieu au corps. Paris: Éditions Métailié, 1999.</p><p>LOURO, Guacira. “Teoria queer — uma política pós-identitária para a educação”.</p><p>Revista Estudos Feministas. Vol. 9 (2), 2001: 541-553.</p><p>NICHOLSON, Linda. “Interpretando o gênero”. Revista Estudos Feministas. Vol. 8 (2),</p><p>2000</p><p>SCHILING, Chris. “The body and difference”. In WOODWARD, K. (org.). Identity</p><p>and Difference. Londres: Sage e The Open University, 1997:71-100.</p><p>SILVA, Tomaz Tadeu. “Nós, ciborgues: o corpo elétrico e a dissolução do humano”. In</p><p>____. (org.) Antropologia do Ciborgue. As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte:</p><p>Autêntica, 2000.</p><p>Guacira Lopes Louro</p><p>Doutora em Educação pela UNICAMP</p><p>Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS</p><p>Os significados dos corpos deslizam</p><p>O gênero e a sexualidade deslizam</p><p>Os desafios para Educação</p><p>Referências bibliográficas</p>

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