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<p>José Luiz Ames FILOSOFIA POLÍTICA: REFLEXÕES Temas de filosofia para ensino médio PROTEXTO CURITIBA - 2012 5 4</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames Copyright © 2012 by José Luiz Ames Direitos desta edição: PROTEXTO - Editora Zamoner Ltda Projeto gráfico PROTEXTO Rua Anibal Antonio Aguiar Maia, 34 83420-000 - QUATRO BARRAS/PR Fone: (41) 3672-2612 http://www.protexto.com.br Responsabilidade pela revisão: autor Ames, José Luiz, 1957 - Filosofia Política: reflexões / José Luiz Ames - Curitiba - Protexto, 2012. vi, 178 p. ; 21 cm ISBN: 978-85-7828-280-6 1. Ciência Política. Título. CDD 320 Proibida a reprodução total ou parcial. Os infratores serão processados na forma da lei. Aos que educam para a autonomia, fazendo da PROTEXTO - Editora Zamoner Ltda Filosofia um caminho para a liberdade. 6 7</p><p>8 a</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames APRESENTAÇÃO V emos a palavra "política" empregada para descrever situações completamente opostas. Por vezes, é utilizada para indicar uma atividade própria de certos profissionais: os "políticos". Outras vezes, diz respeito à organização e administração de grupos: os "partidos". que há de comum aos dois sentidos? Em ambos a política aparece como algo distante da vida das pessoas. É uma atividade exercida por indivíduos, os "políticos", que através dos partidos se ocupam exclusivamente dela. A política é feita "por eles" e não "por nós". Ela aparece como um poder distante e exercido por pessoas diferentes dos cidadãos comuns. Por isso, aqueles que a realizam, os "políticos", são vistos como interesseiros, isto é, indivíduos que falam do bem comum, mas se preocupam de fato com o bem particular. Essa imagem da política como um poder do qual somos vítimas condescendentes contradiz tudo o que os grandes pensadores escreveram sobre o assunto. Afinal, por que os homens inventaram a política? Certamente, não para preencher esta finalidade que o senso comum lhe atribuiu. Em primeiro lugar, a política foi inventada para regular os conflitos entre os homens. Somos diferentes e temos interesses e visões de mundo divergentes. A política foi inventada para permitir que expressássemos essas diferenças sem causar a destruição uns dos outros. Em segundo lugar, toda sociedade está internamente dividida. Esta divisão nasce das diferenças em relação à posição que os indivíduos ocupam na estrutura social e, consequentemente, dos objetivos diferentes que cada qual visa. Por isso, a política foi inventada para servir de instrumento de discussão e deliberação conjuntas daquilo que diz respeito a todos de modo a evitar que os interesses de alguns prevaleçam sobre o bem coletivo. 10 11</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames que me leva a escrever sobre esse tema? A finalidade Originalmente, estas reflexões foram artigos publicados dessas contribuições é auxiliar, ainda que modestamente, na semanalmente em diversos jornais. É bem provável que você já formação da consciência política. Pretendo mostrar que, por um tenha lido alguma destas meditações. Provocado por amigos e lado, não há como nos livrar da política. Mesmo quando nos muitos ex-acadêmicos do curso de filosofia que hoje são professores isolamos e nos recusamos a participar de tudo o que tem cunho de filosofia nas escolas de ensino médio, e que procuravam por político, "fazemos política". Com efeito, ao deixarmos que os textos auxiliares às suas aulas, me decidi a reorganizá-los e publicá- "outros" façam política à sua maneira contribuímos para que los em livro. continue tal como ela é e, dessa maneira, fazemos a política da Assim, este livro não se dirige ao especialista em filosofia, consolidação do status quo. Por outro lado, quero deixar clara a ao pesquisador. Seu destinatário privilegiado é o estudante e o ideia de que o único modo de opor-nos às práticas deploráveis dos professor da disciplina de filosofia no ensino médio. Penso que "profissionais da política" é através da própria política, isto é, poderá ser uma leitura complementar às aulas de filosofia. Mantive fazendo política. o modo informal próprio ao texto jornalístico e a abordagem simples O objetivo não é o de "ensinar política" com estas breves e coloquial dos temas. Mantive também as repetições: como eram reflexões. A política é uma prática (ainda que teoricamente inspirada) originalmente artigos publicados semanalmente nos jornais, às e sabemos que a prática é aprendida muito mais com exemplos do vezes algumas ideias foram repetidas para dar-lhes mais que com teoria. Em outras palavras: a prática se aprende praticando. Imagino que a forma breve dos textos poderá ser útil para subsidiar Por isso, este livro não tem a pretensão de apresentar a "teoria" a discussão, para atividades em grupo, ou mesmo aprofundar o dos filósofos. Não é um "manual" de filosofia política para o ensino entendimento dos temas de filosofia política. médio! De modo algum deve substituir o acesso direto às obras Este destinatário privilegiado, o estudante e o professor dos próprios pensadores. o propósito é tão somente provocar uma de filosofia, não exclui todos os demais interessados em reflexões reflexão sobre a prática a partir das lições dos clássicos do pensamento político. No centro do debate deve estar não o sobre a realidade política atual a partir dos clássicos da filosofia pensamento deste ou daquele pensador, e sim a realidade política política. Ao melhorar nosso nível de formação, nos munimos de atual. pensamento do filósofo é apenas um meio, um instrumento informações indispensáveis para uma intervenção mais efetiva na para melhor pensar, e transformar, a realidade política atual. As cena política. Se a leitura desses breves textos provocar a reflexões visam servir, portanto, de motivação e iluminação teóricas interrogação, o questionamento, a dúvida sobre as estruturas para a discussão da situação política concreta. Penso que, políticas atuais, já terá valido a pena publicá-los. Se estimular a fomentando o debate não sobre o filósofo, mas sobre a vida política criação de novas formas de participação e motivar ao brasileira a partir do filósofo, será possível desmascarar as comprometimento com a vida pública, terá sido um prêmio cujo intenções que se escondem atrás da apropriação da política por mérito será daqueles que fizeram a ponte adequada entre teoria e alguns profissionais especializados. Com entendo ser possível prática. desfazer a ideia negativa que muitas pessoas têm da política. Igualmente, entendo que o estudo dos clássicos será um guia seguro para formar uma consciência cidadã, construindo uma ideia positiva da política e, dessa maneira, contribuirá para um engajamento e comprometimento mais intensos na vida política brasileira. 12 13</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames SUMÁRIO APRESENTAÇÃO, 11 19 1 - Aristóteles: o intelectual da política, 19 2 - Por que vivemos coletivamente?, 21 3 - que é ser 23 4 - - O homem bom e o bom cidadão, 25 5 - que é um governo justo?, 27 6 - É melhor que o povo governe ou o povo governa melhor?, 29 7 - que é um governo 31 8 - A defesa de interesses é a destruição da vida política, 33 9 - Os partidos e o governo do estado, 34 10 - A burocracia é uma estrutura de exclusão política, 36 II - AGOSTINHO, 39 1 - - Estado: instrumento de Deus para o aperfeiçoamento do homem, 39 III - TOMÁS DE AQUINO, 42 1 - - A finalidade do Estado, 42 2 - Estado não é tudo, 44 3 - A tirania e o direito à revolução, 45 4 - Monarquia mista: a melhor forma de governo, 47 5 - Poder secular e poder religioso, 48 IV - MARSÍLIO DE PÁDUA, 51 1 - Marsílio de Pádua: um republicano medieval, 51 2 - - que torna um governo 52 3 - melhor governante é o eleito pelo povo, 54 4 - conflito entre igreja e Estado, 55 V - MAQUIAVEL, 58 1 - Maquiavel: o mestre da política, 59 2 - Política é ação aqui e agora, 60 3 - É melhor prevenir ou 61 4 - A vitória sem memória, 63 14 15</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames 5 bom político aspira à perfeição, 64 2 Os direitos naturais do homem, 118 6 Vencer é fácil, difícil é mudar, 66 3 - contrato: a base do Estado civil, 120 7 Favores novos não eliminam males antigos, 68 4 - fundamento do direito à propriedade, 121 8 - bode expiatório na política, 70 5 Os limites do direito à propriedade e o dinheiro, 123 9 - Sem a força a lei é vazia, 72 6 - direito à resistência, 125 10 - pior mal é aquele que nunca acaba, 73 7 - Locke e os pobres, 127 11 - A injustiça pode dar poder, mas jamais glória, 75 12 Ninguém ajuda a eleger alguém gratuitamente, 76 VIII - JEAN-JACQUES ROUSSEAU, 130 13 "Quem constrói sobre o povo não constrói sobre o lodo", 78 1 - o defensor moderno da democracia, 130 14 - A oposição é a consciência crítica da situação, 80 2 - estado de natureza ou a bondade originária do homem, 131 15 - A história é como trem sobre trilhos ou como pêndulo de 3 - A sociedade civil ou a natureza corrupta do homem, 133 relógio?, 81 4 - A instituição da república ou o contrato legítimo, 135 16 - - A utopia é o ópio do povo, 83 5 - Poder soberano é somente a vontade geral, 137 17 - A virtude está nos extremos, 84 6 - governo está subordinado à assembleia popular, 139 18 - A verdadeira segurança está no povo, 86 7 Arepresentação política é expropriação da soberania popular, 141 19 - poder não deve ser transferido, 87 20 - Ser e parecer ou a dissimulação na política, 88 IX - DEMOCRACIA E CIDADANIA HOJE, 143 21 - Bem e mal dependem do resultado, 91 1 - - A tríplice dimensão do conceito atual de cidadania, 143 22 "... se os homens fossem todos bons..." 93 2 - Cidadania e estado democrático, 145 23 - Pode o político mentir?, 95 3 - Cidadãos e lideranças, 147 24 - A luta política exige força e astúcia, 97 4 - Cidadania e opinião pública, 149 25 É melhor ser amado ou temido?, 98 5 - Voto consciente: é 151 26 A fatalidade e a incompetência política, 100 6 - Eleições: momento de julgamento e escolha, 153 7 - Público e o privado nas eleições, 155 VI - THOMAS HOBBES, 103 8 - Voto escolhe pessoas ou propostas?, 157 1 o fundador da ciência política moderna, 103 9 - Função dos partidos políticos nas eleições, 159 2 - - estado de natureza é de guerra generalizada, 104 10 - Eleições e democracia, 161 3 Razão é cálculo, 106 11 - Democracia e representação, 163 4 - A vontade do Estado e do cidadão, 108 12 - Governo representativo e democracia direta, 165 5 - Na origem do Estado está um pacto, 109 13 - Princípios fundamentais da democracia representativa, 167 6 - A política e a guerra, 112 14 - Democracia delegativa, 169 7 - A guerra civil e o poder da igreja, 113 15 - Democracia deliberativa, 171 16 Democracia e a regra da maioria, 172 VII - JOHN LOCKE, 116 17 - Democracia e segredo, 174 1 pai do liberalismo moderno, 116 BIBLIOGFRAFIA, 177 16 17</p><p>José Luiz Ames Filosofia Política: Reflexões I-ARISTÓTELES 1 Aristóteles: o intelectual da política Nossa ossas reflexões sobre política começam com os gregos, pois ela é uma invenção grega. vocabulário político deita raízes na cultura deste povo. Ainda hoje em dia empregamos termos cuja origem está na língua grega, tais como: "tirania", "monarquia", "oligarquia", "aristocracia", "democracia". Claro, em primeiro lugar, a própria palavra "política". É derivada de "polis", que significa "cidade". Ainda que não seja equivalente ao termo "Estado" na acepção atual, é o termo mais próximo à ideia contida na palavra polis. Não viver numa "polis" (num "Estado") é, para um grego da época clássica, o mesmo que não viver "politicamente". Por "política" os gregos entendiam tanto o conjunto de práticas às quais os cidadãos se entregavam para coexistirem pacificamente, quanto o estudo ou ciência dessas mesmas práticas. É verdade que muito antes do surgimento da política, em ambos os sentidos, os homens já viviam em sociedade. Contudo, não "faziam política". Por quê? Porque não pensavam sobre esse modo de existir coletivo como algo que dependia deles. Submetiam-se ao poder dos chefes como a um destino contra o qual nada pode ser feito. Os gregos são os inventores da política, porque a compreenderam como aquilo que depende dos homens. Para esta cultura, a maneira como o poder se organiza resulta da vontade dos homens. Por isso, a política sempre pode ser diferente, e melhor! A política para os gregos abarca todas as atividades práticas relativas a um mundo comum. Mesmo aquelas que hoje colocamos na esfera "privada" como a moral, a religião e a educação dos filhos -, para os gregos são do domínio "público", isto é, político. 19 18</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames Por isso, "fazer política" é uma atividade que toca a essência da 2 Por que vivemos coletivamente? vida humana. Recusar-se a praticá-la seria um absurdo impensável para um grego, pois seria a mesma coisa do que preferir ser um Vivemos organizados em Esta forma de animal a ser um humano. existência pode parecer óbvia, mas jamais para um filósofo. Este Vamos examinar a maneira como os gregos refletiam se pergunta: que explicação pode ser dada ao fato de vivermos isso a partir do mais influente representante de seu pensamento, organizados em coletividades em vez de existirmos isoladamente? embora não tenha sido grego de nascimento: Aristóteles. Ele nasceu Qual a finalidade deste tipo de vida coletiva? Aristóteles, na sua em 384 a.C. em Estagira, cidade na qual se falava grego, mas que obra "Política", traz uma explicação que se tornou vivemos pertencia à Macedônia. Aos 18 anos chegou ao maior centro cultural em coletividade, porque "o homem é por natureza um animal e artístico da Grécia, Atenas. Na época, duas escolas disputavam político". o interesse dos jovens. De um lado a de Isócrates, um sofista que A explicação de Aristóteles aponta para a ideia de que se propunha preparar os jovens através da retórica para se tornarem existe na natureza humana uma tendência a viver em sociedade e oradores eficientes na Assembleia, ou seja, a busca do De que ao realizar esta inclinação o homem realiza sua natureza. Quer outro lado Platão, que ensinava que a base para a ação política dizer, se vivemos em sociedade é porque esta é a finalidade do ser deveria ser a investigação científica, ou seja, a busca da verdade. humano. Isso é tão próprio do homem quanto é próprio da semente Aristóteles preferiu o último e frequentou a Academia, nome da de pessegueiro tornar-se uma árvore e produzir pêssegos. fato de tender naturalmente à vida coletiva mostra escola de Platão, por cerca de 20 anos. Depois que Platão morreu, saiu da cidade. Em 343 a.C. que o homem é um ser carente. Carente de alguma coisa que o leve a desejar e carente de alguém que o leve a se associar. A Aristóteles foi chamado por Felipe para educar seu filho, Alexandre, carência aponta para a incompletude humana: o homem tem sempre entregando-se à missão até a morte de Felipe. Retornou, então, a necessidade de um outro semelhante a ele e tão imperfeito quanto Atenas e fundou sua própria escola, o Liceu, que passou a rivalizar ele. Associa-se para alcançar uma vida perfeita e autossuficiente. com a Academia de Platão. Apesar da estima que Alexandre, o Um ser que não sentisse a necessidade de associar-se seria um Grande, sempre teve por seu mestre, Aristóteles discordava da Deus ou um animal, diz Aristóteles. Deuses não fazem política, fusão da civilização grega com a oriental (processo conhecido por porque são perfeitos; animais, porque não pensam, nem falam. "helenismo") realizada por aquele grande estadista. Ele pensava homem tende à vida em sociedade, porque nela, e que era impossível transferir e implantar o regime político grego somente nela, se torna plenamente humano. Pode-se, portanto, (fundado na "polis", isto é, na cidade) em outros povos. Depois dizer que a vida política é para o homem a melhor das vidas da morte de Alexandre, Aristóteles passou a ser hostilizado pela possíveis. Um homem vivendo em sociedade está no lugar certo facção antimacedônica em Atenas. Acusado de impiedade, refugiou- na hierarquia dos seres. Não é nem Deus nem animal, mas o melhor se em Eubeia, onde morreu em 322 a.C. dos animais, porque capaz de justiça. Fora da cidade, o homem é Nas reflexões seguintes trataremos de algumas o pior dos animais, porque dispõe de faculdades intelectuais que contribuições deste grande filósofo para o aperfeiçoamento de nossa constituem armas temíveis sem a educação para a justiça. realidade política atual. Faremos isso partir de uma obra magistral A lição que Aristóteles nos proporciona é de que viver escrita por ele chamada "Política". coletivamente é a única chance de sermos humanos. Existir 20 21</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames politicamente é viver solidariamente com outros seres semelhantes. Esta lição de Aristóteles nos abre o caminho para outra: isolamento significa a destruição de nossa humanidade. Quanto se nós somos seres naturalmente inclinados para a vida em sociedade mais interagimos tanto mais humanos nos tornamos. e se esta vida é a melhor vida possível, então ninguém pode A aspiração à felicidade conhece um único caminho para dispensar-se da tarefa de construir a coletividade. Este assunto se realizar: a vida em comunidade. Fora dela não apenas não há merece uma reflexão mais profunda sobre o significado de chance para uma vida plena, como simplesmente é impossível qualquer vida humana. Quem se fecha na vida privada da família, do clube, do trabalho, da igreja nega a si próprio a possibilidade de 3 que é ser cidadão? ser plenamente humano. Esta ideia de Aristóteles em questão Para Aristóteles, o homem realiza sua natureza a prática atual das democracias liberais. Nelas cada vez mais as participando da comunidad política, ou polis, como a pessoas se recolhem aos seus afazeres privados deixando as denominavam os gregos. Estado, que é a palavra moderna com atividades políticas aos cuidados de "profissionais". a qual designamos a comunidade política, existe para possibilitar a A monopolização do poder real de decisão nas mãos de vida plena, a melhor das vidas possíveis, aos homens. A questão é: poucos impede a neutralização recíproca dos interesses privados quando pertenço ou faço parte do Estado? Será que basta nascer representados pelos representantes eleitos. Acrescente-se a isso o num território para pertencer automaticamente ao Estado? Para desencantamento com a política: muitos cidadãos sentem a responder a estas questões, é preciso saber o que é ser "cidadão". participação como um fardo que procuram descarregar sobre os Aristóteles oferece uma definição curta e precisa: ombros daqueles que se mostram dispostos a exercer estas funções. "cidadão é aquele que participa dos poderes do Estado". Quer Certamente, há consciência de que o abandono nas mãos de outros dizer, para ser membro da comunidade política não basta nascer e da gestão de tarefas que dizem respeito a cada um poderá levar a morar num país. É imprescindível possuir um poder efetivo de decisões contrárias ao interesse de todos. Apesar disso, julga-se intervenção na vida política. Quais poderes? Aqueles que que é o preço a pagar para gozar livremente das liberdades civis: a possibilitam ao povo governar, legislar e julgar os assuntos públicos. participação ativa tomaria o tempo e privaria do gozo dos direitos. Quem só obedece não é cidadão. Ser cidadão é obedecer e mandar. A situação atual mostra que o custo deste comportamento Não resta dúvida de que o número de pessoas aptas a político talvez seja excessivo. Resumidamente, podemos citar como serem cidadãs depende do tipo de regime existente num Estado. consequências: separação entre governantes e governados; perda Aristóteles divide os tipos de regime em dois grandes grupos: os do espírito cívico; passividade em relação às questões comuns; que governam em favor dos interesses privados (do tirano, dos profissionalização excessiva da política (vista como coisa técnica ricos ou da massa) e os que governam em favor do bem comum. para especialistas) e a corrupção latente que isso gera; Os primeiros são injustos e os últimos são justos. Somente é possível fracionamento das sociedades em grupos de pressão; ausência de ser cidadão nestes, pois quando se governa em favor dos interesses solidariedade no interior dos gupos humanos. Em suma, e privados, todo poder está concentrado nas mãos de quem controla o Estado. paradoxalmente, a renúncia à participação ativa na vida pública em benefício do gozo privado dos direitos compromete muitas Contrariamente ao que costumamos ouvir, Aristóteles vezes a satisfação mesma destes direitos. não pensa que a cidadania é um privilégio automático concedido a 22 23</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames alguns em virtude de seu nascimento. A pergunta mais importante envolvimento justificadoras do autoritarismo sob a aparência de para Aristóteles não é: "quem pode ser cidadão?". Muito antes é: democracia. Um governante, quando não quer ou não consegue "que é cidadão?" Isto é, em termos filosóficos, ele pergunta acerca resolver um problema, o transfere a um Conselho. Com isso, a da compreensão e não da extensão do termo "cidadão". É verdade culpa pelo fracasso passa do governante para o povo! Em lugar de que ele não reconhece o direito de cidadania às mulheres, aos ser uma prática de inclusão, torna-se uma forma de exclusão escravos, aos estrangeiros e aos menores de idade. Contudo, dois política. mil e quinhentos anos depois, quanto se avançou? Além de haver Finalmente, Aristóteles mostra que exercemos nossa sido suprimida legalmente a escravidão (de fato ela continua cidadania quando temos assegurado nosso poder real de intervenção existindo entre nós em muitos lugares, como o confirmam as na esfera pública para deliberar e decidir sobre a vida coletiva e seguidas denúncias), somente foram incluídas as mulheres! Quando para julgar acerca das questões que dizem respeito a todos. Assim, examinamos mais de perto esta inclusão, a mudança não parece as ações sociais (em favor do meio ambiente, de inclusão social, muito expressiva: quantas mulheres participam, efetivamente, dos do compromisso com a educação e a saúde, etc.), por mais poderes do Estado? Além disso, enquanto para Aristóteles o cidadão meritórias que sejam, não são, rigorosamente falando, expressões deveria exercer diretamente os poderes públicos (de governar, de cidadania, mas da vida social. Ser cidadão é ter um poder de legislar e julgar), hoje o único poder que o cidadão exerce decidir e julgar politicamente e não um direito de agir socialmente. diretamente é o da escolha de seus representantes. Ele apenas Como podemos notar, reorganizar o conceito de cidadania a partir decide quem vai decidir por ele! Somente os eleitos exercem da definição aristotélica implica em redefinir o papel das instituições efetivamente todos os poderes em conjunto com um outro grupo políticas brasileiras atuais. responsável pelas funções judiciárias que sequer é eleito pelo povo e os governantes (prefeitos municipais, governadores de 4 O homem bom e bom cidadão estado e presidente da república). Por um lado, a lição que Aristóteles nos oferece é a de Aristóteles pergunta-se se aquilo que se exige para ser que, para ser cidadão, é preciso participar efetivamente da vida da um homem bom é o mesmo que é preciso para ser um bom cidadão. comunidade política. Esta participação não pode limitar-se à escolha No fundo, é a discussão de um tema que, em linguagem moderna, dos nossos representantes. Ela implica no direito de dizer livremente é entendido como a relação entre ética e política. Devido à atualidade nossa de exigir os direitos garantidos pela lei, de cumprir da questão, convém um breve exame do problema no pensamento os deveres estabelecidos na Constituição, de inserir-se ativamente de Aristóteles. nas diferentes formas de organização da sociedade em vista de Para o pensador grego, é preciso responder a duas uma vida feliz para todos. questões: do que depende ser um bom cidadão e o do que depende Por outro lado, denuncia a demagogia escondida sob ser um homem bom. Comecemos pela primeira. Para Aristóteles, determinados mecanismos de participação popular introduzidos por somente é cidadão aquele que detém o poder de legislar e julgar. alguns governantes tais como os "Conselhos". Vistos mais de perto, Assim sendo, ser um bom cidadão ou não depende da forma de muitas vezes estes Conselhos respondem tão somente aos comandos governo vigente. Para Aristóteles estava claro que era impossível dos próprios governantes. Em lugar de serem instrumentos de ser bom cidadão sob uma forma injusta de governo, isto é, aquela participação direta e efetiva no poder, tornam-se formas de na qual o poder é exercido em favor dos interesses privados 24 25</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames daqueles que exercem o mando no Estado. Nesta situação, somente Identidade e Título de Eleitor. É preciso querer e procurar a um ou alguns desempenham funções públicas. Por isso, é impossível participação. ser cidadão num regime injusto. Aristóteles nos convoca a assumir nossa condição cidadã. Do que depende ser um "homem bom"? Para Aristóteles, A política é uma atividade que se exerce no cotidiano da vida depende da posse das virtudes em grau máximo. É um homem pública. Fazemos política sempre que agimos com todos os demais bom aquele cujas qualidades são as melhores, são excelentes. Todo em concerto, isto é, em ação conjunta em favor do bem de governante, na opinião do pensador grego, deveria ser Aquele que pensa que política é coisa que compete a um necessariamente um homem bom. Era inadmissível para ele que profissional, o "político", renunciou à cidadania. aqueles que exercem o poder máximo no Estado não fossem É necessário lembrar que a cidadania não é um "direito". também pessoas virtuosas. Direitos são concessões. A cidadania, pelo contrário, é o modo Aristóteles tinha plena consciência de que na comunidade mesmo de viver coletivamente em agir comum com todos os demais política era impossível que todos os cidadãos fossem igualmente em vista do bem de todos. Ser cidadão é, pois, um modo de vida homens bons. Isso, porém, não impedia que cada um fosse um ativo que assume a existência pública como tarefa sua. É necessário "bom cidadão", isto é, uma pessoa que cumpre com sua função criticar aqueles que nos governam por sua conduta indigna, mas de participar ativamente da vida da coletividade. O governante, sem esquecer de assumir a construção da vida coletiva como tarefa porém, deveria possuir necessariamente as qualidades éticas que o que cabe a cada um de nós. A passividade e o desencanto que distinguiam acima de todos os demais, ou seja, deveria ser também caracterizam grande parte do comportamento atual podem até ser um homem bom. o motivo desta exigência é simples: aquele que explicados, mas jamais justificados. governa tem o dever de conduzir a coletividade para a justiça; seria absurdo pensar que um governante mau fosse capaz de 5 O que é um governo justo? governar para o bem. A lição do grande pensador grego é uma crítica tanto aos "O homem é, por natureza, um animal político". Esta governantes quanto aos Os primeiros são alertados para ideia fundamental de Aristóteles ensina que o homem realiza sua a necessidade de primarem pela virtude. Somente homens virtuosos natureza, isto é, atinge sua finalidade última, somente na podem aspirar exercer o comando sobre a coletividade. Os comunidade política. A finalidade da existência desta é possibilitar os falsos, os mentirosos, os desonestos sequer poderiam a realização da felicidade de seus membros. que faz com que o ser admitidos à vida coletiva. o destino deles seria, no tempo de poder exercido nesta comunidade seja "político" é o fato de ser Aristóteles, a expulsão da comunidade e em nossos dias, a cadeia! exercido entre iguais e visar o bem de todos. E quando ele visa exercício da função soberana do Estado exige homens íntegros. apenas o bem de alguns, podemos chamar este poder de "político"? alerta aos cidadãos em geral é para a necessidade de Segundo Aristóteles, para saber se um governo é justo, é cada um assumir seu lugar na vida da comunidade. Aquele que se preciso responder a duas perguntas: "quem governa?" e "para quem omite, que não participa dos mecanismos criados para discutir e se governa?". A primeira resolve o problema de saber quantos são decidir sobre o bem-estar geral, também não pode reivindicar os os governantes: pode ser um só (Monarquia ou Tirania), alguns benefícios da vida coletiva. Viver é conviver. Ser cidadão é, na (Aristocracia ou Oligarquia) ou a maioria (Regime Constitucional verdade, ser concidadão. Para isto não basta ter Carteira de Politeia ou Democracia). A segunda pergunta nos responde a 26 27</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames questão de saber a favor de quem é exercido o poder e, dessa convém ou não. A coletividade como um todo está apta para maneira, se ele é justo ou injusto: é justo o governo que tem em governar, isto é, para deliberar o que é mais conveniente aos vista o bem de todos, pouco importa se o poder é exercido por um objetivos que ela estabelece a si mesma. só (Monarquia), por alguns (Aristocracia), ou pela maioria (Regime Finalmente, pode soar estranho que Aristóteles coloque Constitucional/Politeia). Resulta claro que Tirania, Oligarquia e a democracia na coluna das formas injustas de governo. motivo Democracia são formas injustas (ou corrompidas) de governo. disso é porque a democracia era, para Aristóteles, aquela forma de Notamos que Aristóteles não se interessa pela questão governo exercida pela massa pobre em favor dos interesses dela de saber qual é a melhor forma governo possível, nem mesmo mesma e não de todos. Aristóteles critica a democracia pelo mesmo qual a mais justa. Como, então, escolher entre Monarquia, motivo que critica a tirania e a oligarquia: todas estas formas de Aristocracia e Regime Constitucional? A opção não pode levar em governo perderam de vista o bem coletivo para visar unicamente o conta saber em qual destas formas o poder é repartido de modo benefício particular daqueles que controlam o governo. Aristóteles, mais justo, pois todos os regimes que visam o bem comum são ao invés disso, é favorável à forma popular de governo e que ele justos. que podemos é perguntar qual forma de governo é mais denomina Politeia. Nesta o poder é exercido pelo povo em favor capaz de tomar as melhores decisões em favor de todos. Neste de todos e não em proveito de quem controla o Estado. caso, a resposta recai sobre o Regime Constitucional: em geral, o Isto nos faz pensar seriamente sobre o que é democracia conjunto do povo decide melhor do que um só ou do que alguns, hoje. Em geral ela nos é apresentada como a única forma legítima ainda que estes sejam os mais preparados. de governo unicamente porque os governantes foram eleitos. Não Aristóteles permite desmascarar algumas ideias questionamos em favor de quem os eleitos governam. Pensamos fortemente enraizadas no pensamento político atual. Por exemplo, que eles têm direito ao mandato, pouco importa se o exercem em de que um governo é justo só porque as decisões são tomadas pela favor de interesses privados (seus ou de grupos) ou não. Aristóteles maioria. A maioria também pode ser excludente: 51% é maioria, nos ajuda a duvidar do critério de legitimidade fundado no número: mas é justo que governe contra os interesses dos 49% restantes? um governo não é legítimo, mesmo que apoiado pela maioria, se Num governo justo não existem excluídos. Uma outra ideia que os fins que ele persegue não têm em vista o bem de todos. Um Aristóteles desmascara é de que, por ser algo muito complexo, a governo que exclui jamais pode ser legítimo, pouco importa quantos vida política é um negócio para especialistas. Por isso, as pessoas tenham votado nele nas eleições. acham que aquele que se deu bem no seu negócio privado estaria também necessariamente preparado para ser um bom governante. 6 É melhor que o povo governe Quem é um empresário de sucesso, por exemplo, estaria preparado ou povo governa melhor? para ser um bom governante! Aristóteles ensina que é absurda a opinião de que existem alguns que sabem e devem mandar e outros As duas ideias colocadas no título aparentemente não que não sabem e devem obedecer. Quem sabe se a comida é boa é têm maior diferença entre si. Será que não têm mesmo? A pergunta quem a faz ou quem a come? Na política também é assim: todos que Aristóteles coloca à nossa reflexão é a seguinte: quem pode somos "consumidores" da vida política, porque ela diz respeito a exercer de modo mais justo o governo num Estado? A princípio, tudo o que é público. Por isso, cabe a todos nós opinar sobre ela e todos os partidos pleiteiam esta condição. São eles, então, todos dizer se ela presta ou não, se ela é justa ou injusta, se ela nos iguais e é indiferente quem exerce o poder soberano no Estado? 28 29</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames Não é isso que Aristóteles pensa. Ele não tem dúvidas de que a é algo que diz respeito "a nós" e não "aos outros", os políticos política é algo que diz respeito a todos. Logo, cabe ao povo exercer profissionais. o poder soberano no Estado. Se levássemos a sério esta reflexão de Aristóteles, acabaria No entanto, cabe ao povo porque é melhor que este a picaretagem política. Hoje prevalece a ideia de que bom político governe, ou cabe ao povo porque ele governa melhor? Quando é aquele que realiza os interesses dos grupos dos quais se diz dizemos que "é melhor que o povo governe" estamos dizendo que representante. Se o Estado tivesse estruturas que possibilitassem a apenas um "partido", a massa, (ou a maioria) é capaz de realizar participação efetiva da coletividade, estes pretensos representantes um governo justo. Agora, quando dizemos que "o povo governa perderiam sua importância em favor do sujeito principal da política, melhor" estamos defendendo a ideia de que o governo exercido o cidadão. pelo povo resolve com maior eficiência os problemas em favor do bem de todos. Não é possível, porém, dizer que, por princípio, ele 7 que é um governo democrático? é mais justo do que o governo de qualquer outro partido. Aristóteles fica com a segunda alternativa, porque pensa que o povo, tomado A ideia que fazemos de democracia é bem diferente do em seu conjunto, é superior aos indivíduos, mesmo que estes sejam que aquilo que se entendia por ela nas suas origens gregas. Na os melhores. atualidade, em geral, entendemos por democracia uma forma de Por que as deliberações coletivas são melhores do que governo na qual o povo escolhe periodicamente seus representantes aquelas tomadas pelos singulares, mesmo estes que sejam os mais e em que todos são livres para pensar e agir segundo seu arbítrio, sábios? motivo é que a deliberação tomada pelo povo no seu desde que não contrariem a lei. conjunto é a única capaz de ver as coisas desde múltiplos pontos Para Aristóteles, o termo tem uma significação bem de vista. Diante da "tecnocrata", de que deve decidir aquele diferente. Ele dá ao governo popular o nome de Politia, o regime que é competente (o especialista), Aristóteles responde: há assuntos da soberania popular. Quer dizer, é uma forma de governo na qual e a política é um deles que devem ser decididos pelos usuários. os cidadãos exercem pessoalmente o poder legislativo e judiciário Quer dizer, os destinatários da política são os cidadãos no seu em favor de todos. Aristóteles era do entendimento de que nestas conjunto. Somente eles mesmos podem saber o que é bom ou não questões era imprescindível a multiplicidade dos pontos de vista, para eles. Pensar o contrário seria como afirmar que a autoridade pois o objeto sobre o qual se delibera em política não é algo que para dizer se a comida é saborosa é o cozinheiro e não quem a possa ser conhecido de modo absolutamente seguro. Acerca das consome! questões políticas somente é possível ter uma isto é, Aristóteles mostra que a superioridade do governo popular um ponto de vista. Segundo Aristóteles, a assembleia do povo, não está tanto nos motivos práticos, que ele próprio destaca: é o uma vez que é constituída por um mosaico de opiniões divergentes, mais estável e equilibrado dos regimes e o único a permitir a é o espaço mais adequado à deliberação, porque supõe a palavra alternância real dos cargos entre os cidadãos. Hoje, em geral, pública e a contradição. Consequentemente, as deliberações e tendemos a ver somente nestes aspectos a superioridade da julgamentos coletivos são mais completos, pois focalizam as coisas democracia. pensador grego mostra que o principal não está ali. de um maior número de pontos de vista. decisivo é que o povo governa melhor. Somente quando o poder Em relação a esta compreensão, Aristóteles refutou uma está nas mãos de todos os cidadãos, e não de um grupo, existe um que frequentemente ouvimos até os dias de hoje. sentimento de amor à comunidade. Somente nesta situação a política Poderíamos chamá-la de a posição segundo a qual 30 31</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames legislar e julgar devem ser tarefas para peritos, isto é, para deliberar e decidir coletivamente nosso destino, destituindo de seus especialistas na área. Deixar que qualquer cidadão se ocupe destas postos aqueles que se mostram indignos no exercício de seus cargos. tarefas seria a mesma coisa do que permitir que um leigo tratasse da doença em vez do médico. Aristóteles rebate o argumento 8 - A defesa de interesses dizendo que a política não é uma arte como a medicina, onde deve é a destruição da vida política reinar a competência. Antes, é uma arte como a arquitetura ou a culinária, nas quais prevalece o ponto de vista do usuário: este é Política é do gênero de atividades que diz respeito ao quem decide se a casa é confortável ou a se comida é saborosa. interesse coletivo. A coletividade, quando delibera, tem sempre A análise de Aristóteles mostra claramente que a em vista aquilo que mais convém ao conjunto da vida dos cidadãos. democracia atual expropriou o povo dos seus direitos políticos. Cidadania é uma qualidade de pertença a uma coletividade e não a "Fazer política" se tornou em nossos dias uma tarefa para uma parcela dela. Por isso, quando o cidadão é chamado a decidir, especialistas, os "políticos", que fazem isso "profissionalmente" a deve ter em consideração o bem de todos e não de uma parcela. ponto de até poderem receber uma "aposentadoria" vitalícia ao Aristóteles, consciente da tendência humana de buscar o termo de um determinado número de mandatos! A queixa que benefício próprio, refere um sábio dispositivo da constituição dos ouvimos frequentemente, de que as pessoas não se interessam por atenienses: quando a assembleia deliberava sobre assuntos que política, deve ser vista como uma consequência deste processo envolviam a possibilidade de uma guerra com um Estado vizinho, histórico de exclusão do povo do espaço da decisão pública. É os habitantes da zona fronteiriça deviam ser excluídos da votação. uma afronta cobrar participação sem conferir a mínima importância motivo dessa medida é que eles poderiam deixar-se levar pelos à decisão das pessoas. Só há "participação" quando aquele que interesses particulares em vez de orientar-se pelos gerais. participa tem o poder de mudar as coisas. Fora disso é pura Isso mostra uma concepção política oposta à mentalidade manipulação inescrupulosa: populismo barato para legitimar as atual. Nossos parlamentares organizam-se em "blocos" para decisões dos "políticos profissionais". defender interesses particulares. Assim, temos a "bancada ruralista", Aristóteles nos oferece uma lição que é uma dura crítica a "bancada evangélica", a "bancada da bola", etc. Qual a à forma como se pratica a política nos dias atuais: quando o direito consequência desse tipo de prática política dos dias atuais? Nossos das pessoas está limitado à escolha daqueles que tomarão as representantes perderam de vista o bem geral. Eles se reconhecem decisões em nome da coletividade, estamos diante de um arremedo como representantes de determinados setores ou grupos da de democracia. Não opinar, não participar, deixar que uma elite de sociedade e não da sociedade no seu conjunto. Os acordos e supostos especialistas (os "políticos") decida tudo por nós é negociações, próprios da prática política, acabam se transformando contribuir para que prevaleçam os interesses mesquinhos e uma troca de favores. Os privilégios concedidos a um grupo particularistas na política. É isso que está na raiz da corrupção. redundam em prejuízo da coletividade. Segundo a bela comparação de Aristóteles, na política como na Todo problema começa já na campanha para conquistar arquitetura e culinária cabe aos usuários dizer quando gostam ou o voto dos eleitores. Os candidatos se apresentam com a promessa não daquilo que é oferecido. Na eleição, julgamos nossos de defenderem os interesses de uma região (um bairro, uma representantes. Podemos mais: decidir quem é digno destes postos. comunidade rural, um município, etc.) ou grupos (jovens, Sobretudo, deveríamos fazer como os gregos: discutir publicamente, agricultores, mulheres, funcionários públicos, etc.). A afirmação 32 33</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames desses interesses tem por consequência a fragmentação do espaço dos poderes do Estado é o povo no seu conjunto. A lição que nos político. Em vez de ser a discussão do interesse público (isto é, de ocupa aqui é entender o argumento de Aristóteles contra as todos), torna-se a defesa do interesse privado (ou seja, de alguns). pretensões universalistas dos "partidos", isto é, os grupos que As aberrações legais nascem desse tipo de prática: leis que disputam o poder no Estado. concedem privilégios àqueles que possuem determinada cor de Antes de qualquer coisa, é preciso observar que, no tempo pele, que desempenham certa função sexual, que moram em dada de Aristóteles, não existiam partidos políticos na forma como os área geográfica, que realizam uma atividade profissional específica, conhecemos hoje. Na Grécia daquele tempo os grupos que que estudam em determinada dependência administrativa, etc. disputavam o poder do Estado eram chamados de "facções". No Ninguém quer abrir mão de um "direito adquirido", como se entanto, se comportavam de modo semelhante aos modernos pudessem existir direitos privados opostos ao interesse público! partidos políticos. Por isso, parece adequado designá-los pelo Deveríamos aprender com os gregos: proibir que aqueles mesmo nome. que estão identificados com determinados interesses de grupos Os "partidos", diz Aristóteles, fundamentam sua pudessem votar em propostas que dizem respeito a esses grupos: reivindicação a exercer o poder do Estado no princípio da justiça fazer com que a "bancada ruralista" não votasse em propostas distributiva. Este princípio diz o seguinte: cada um tem direito a sobre agricultura e pecuária; a "bancada da bola" sobre questões receber de modo proporcional à qualidade da qual se considera do esporte; a "bancada feminista" sobre temas que envolvem as única detentora. O problema todo, como é fácil notar, é pôr-se de mulheres; e assim por diante. acordo sobre essa "qualidade". Por exemplo, na eleição para reitor Isso implica numa reeducação política. Hoje nossos numa universidade pública (ou para diretor de uma escola), os representantes ficam orgulhosos quando conseguem provar que alunos poderiam argumentar que a "qualidade" comum a todos é atenderam os "interesses de suas bases"! Imaginam que cumpriram o fato de todos serem igualmente membros da comunidade integralmente sua missão quando defenderam os interesses privados acadêmica. Logo, o voto de cada membro deveria ter o mesmo daqueles que, supostamente, os elegeram. Compreendem-se como peso. Os professores, por outro lado, poderiam argumentar que a representantes de grupos e não da coletividade! São uma espécie "qualidade" deles (dos professores) está em serem responsáveis de "despachantes de luxo". Os eleitores, do mesmo modo, cobram pelos fins (ensino, pesquisa e extensão) da universidade. Logo o dos eleitos o cumprimento de promessas miúdas, aquelas que lhes seu voto deveria valer mais do que o dos outros. Cada "partido" concedem favores e privilégios. Sem uma reeducação política, nossa achará injusta a decisão diferente daquela que defende. vida coletiva continuará sendo uma luta selvagem pelo interesse No Estado, os diferentes partidos raciocinam de modo privado. privilégio, meu direito adquirido de hoje, é a destruição semelhante. Cada um deles pensa que a qualidade da qual se acha do direito de todos amanhã. Se, a continuar assim, houver ainda possuidor é a mais importante para a coletividade alcançar o bem política amanhã. estar de todos. Sob o ponto de vista dos fatos, diz Aristóteles, é inegável que cada partido tem credenciais suficientes para exercer 9 Os partidos e o governo do Estado o poder soberano do Estado. Sob o ponto de vista do direito, os argumentos de cada um deles são refutáveis. De que maneira? Para Aristóteles, somente é cidadão aquele que participa Aplicando-se o princípio "a cada um segundo o valor de efetivamente da administração do Estado. melhor administrador suas qualidades", temos uma consequência que ninguém aceita. 34 35</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames Se as qualidades de um partido, seja este qual for, possuir sozinho moderna de democracia representativa seria absurda para um grego. mais valor do que o resto da comunidade tomada em seu conjunto, Na concepção grega de democracia, a existência de representantes o poder soberano lhe deveria ser entregue por justiça. Neste caso, permanentes implicaria, necessariamente, na expropriação da este partido deveria governar sozinho. Eis o que ninguém aceita. autoridade política e da atividade e iniciativa do corpo dos cidadãos Aristóteles examina a hipótese seguinte: e se o partido por parte desses "representantes". em questão fosse um indivíduo excepcional? Se os defensores dos Ligada ao princípio da democracia direta está a visão demais partidos fossem totalmente fiéis ao princípio defendido, grega dos "especialistas". Não há "especialistas" em questões deveriam ceder o poder a este único homem. Por quê? Porque o políticas, porque não é possível uma ciência da política. A política princípio diz: "a cada um segundo o valor de sua qualidade". Se, trata do que desejamos que aconteça de determinada maneira, ao por hipótese, as qualidades deste único homem fossem superiores passo que a ciência só pode estudar o que é ou foi. Quer dizer, a à soma das qualidades de todos os demais partidos, então este política depende da vontade e das opiniões dos indivíduos acerca deveria governar sozinho! daquilo que desejam realizar. Entre os gregos, as decisões eram A lição de Aristóteles é de que nenhum partido tem razão tomadas após ouvir a opinião de vários oradores sobre o assunto. no seu argumento. O Estado não deve ser governado por uma Havia, é verdade, um corpo técnico de peritos nas várias áreas "parte". A administração da comunidade política é tarefa do (guerra, finanças, administração, etc.). Estes, porém, não tinham conjunto dos cidadãos. Nenhum partido pode pretender substituir qualquer poder decisório. Apenas subsidiavam com informações a a coletividade inteira no exercício do poder. Quando um partido deliberação que a assembleia deveria tomar. faz isso, exclui aqueles que não pertencem a ele do direito de A estrutura administrativa do Estado, embora existente, participar da administração do Estado. Neste caso, a comunidade não exercia quaisquer funções políticas. Muitas vezes, a deixa de ser "política" para ser "despótica". Quer dizer, deixa de administração era composta de escravos, inclusive em seus mais ser uma forma de exercício dos poderes em vista do bem geral altos escalões (polícia, guarda dos arquivos públicos, finanças para tornar-se o exercício do poder em favor dos interesses privados públicas, etc.). Sua atribuição era estritamente executiva das (mesmo que sejam os interesses privados da maioria da sociedade!). decisões tomadas soberanamente pelo povo na assembleia. Assim, Aristóteles destituiria de legitimidade o argumento daqueles Quando olhamos para a maneira como funciona a que defendem um "governo dos trabalhadores", do mesmo modo democracia em nossos dias, notadamente em nosso país, e a que desqualificaria um "governo dos empresários", ou qualquer comparamos com o seu significado originário tal como era praticada outra determinação desse tipo. Governo justo, para Aristóteles, em Atenas, nos damos conta da sistemática exclusão política do não é o governo de uma parte contra a outra e sim o governo de ator os cidadãos. Hoje, as funções políticas são uma parte em favor de todos. Sem excluídos. coordenadas por indivíduos que na Grécia antiga seriam escravos! Para quem acompanha o noticiário, fica evidente a polarização da 10 A burocracia é uma estrutura de exclusão política cena política em torno dos cargos da estrutura administrativa do Estado. Um jogo desavergonhado de troca de favores determina a A forma de governo vigente em Atenas no tempo de ocupação das funções burocráticas. Estas pessoas, numa Aristóteles era a democracia direta. Nela o povo exercia o poder democracia de verdade como a grega, não passariam de subalternos. de forma absoluta e irrestrita. Não havia representação. A ideia Entre nós, roubaram a cena e o espaço do agente principal: o 36 37</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames cidadão. Chega a ser vexatória a maneira como os ocupantes de II AGOSTINHO insignificantes funções burocráticas ocupam o lugar do cidadão na ordem da discussão política, dando-se ares de quem pode falar e Estado: um instrumento de Deus decidir em nome dele! para o aperfeiçoamento do homem Podemos dizer que, de certa maneira, a democracia atual perdeu a referência. A causa principal desse fato é a exclusão sistemática do cidadão do processo de discussão política e sua substituição pela estrutura burocrática do Estado. Não há democracia sem participação do detentor da nasceu em 354 na cidade de Tagaste, norte soberania: a comunidade dos cidadãos. O cidadão foi expropriado de África, que fica na atual Argélia, filho de pai pagão, de nome do seu direito de "tomar parte" (isto é, de "participar") do processo Patrício e de mãe católica, Mônica. Convertido ao cristianismo em de discussão e deliberação. Nossos "representantes" (executivos e 386, abandonou sua carreira na retórica e passou a dedicar-se ao legislativos) estão desobrigados da fidelidade para com os cidadãos sacerdócio, ao qual foi ordenado em 391, e cinco anos depois se que os investiram nos cargos. Por isso, o povo não tem como lhes tornou bispo. Agostinho vivia num período em que o império revogar o mandato toda vez que violam o pacto que firmaram na romano estava em decadência. Embora o cristianismo já tivesse eleição. sido reconhecido como religião oficial, precisava ainda defender- Ainda que seja impossível o exercício da democracia se do poder político: os cristãos eram acusados de haverem direta em Estados continentais como o nosso, o significado das arruinado o império com a sua recusa de honrar os deuses pagãos instituições políticas gregas é perfeitamente realizável ainda hoje. e o imperador. Agostinho se contrapõe a esta explicação. Vamos É injustificável a criação de estruturas burocráticas que reduzem o analisar alguns aspectos de seu pensamento a partir da sua obra povo a mero figurante da cena política. No microcosmo, esta Cidade de Deus. situação pode ser resumida na figura do "comício": um indivíduo, Agostinho sustenta que o sumo bem reside na vida eterna postado sobre um palanque erguido acima do nível da platéia, faz e o mal supremo na morte eterna. objetivo da vida da Cidade uma arenga. povo, situado abaixo do arengador, ouve calado e de Deus está em conquistar a primeira e evitar a segunda. aplaude. Esta é a paródia da democracia brasileira. Naturalmente, ambas são alcançadas somente depois da morte do corpo. Nesta concepção, a vida terrena não tem qualquer finalidade nela mesma: considerando que a existência terrena é somente um momento de passagem da alma, a atividade humana só pode ser fútil e a felicidade impossível. É, então, totalmente sem sentido a vida neste mundo? Não é o que pensa Agostinho. Os males que atingem o homem durante sua existência, defende Agostinho, são instrumentos nas mãos da vontade divina, pois não são mais do que merecidas punições ao pecado original. Agostinho vê, portanto, na sociedade terrena uma contínua manifestação da vontade divina. Estado 38 39</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames tem valor teológico porque é um instrumento de Deus. Estado voluntariamente aos comandos da Cidade terrena que não conflitam assegura ordem e paz semelhantes às anteriores à queda original e com a fé cristã, sua lealdade é para com a Cidade Celeste. Nos das quais o peregrino tira proveito. Estado é consequência do séculos seguintes a Igreja, aproveitando-se da fraqueza do Império, pecado sem o qual o domínio do homem sobre o homem (no qual passou de uma recusa de participar das atividades do Estado típicas consiste o Estado) não existiria. Assim, o Estado é um mal, pois da concepção agostiniana, a um ativo empenho na vida civil. consiste num domínio do homem sobre o homem (e não somente Progressivamente a Igreja assumiu a feição de poder temporal que sobre os seres irracionais), mas é um mal necessário, pois é o rivalizava com o poder civil pelo comando do Estado. auge único modo de assegurar a ordem e a paz após a queda originária. disso se dá com a doutrina da plenitude do poder papal pela qual Nas reflexões de Agostinho dois conceitos paz e ordem o papa se arrogava pleno poder tanto sobre a organização eclesiástica são centrais. A finalidade do Estado é promover a paz e a ordem quanto a civil. Veremos a origem desta ideia a partir de algumas terrenas. Contudo, ainda que o Estado as promova, elas não têm reflexões sobre Tomás de Aquino e sua crítica por meio da análise valor político: paz e ordem são exigências da própria natureza do pensamento de Marsílio de Pádua. humana; como esta é de criação divina, o Estado é um mero instrumento da finalidade divina. Em que consistem a paz e a ordem de uma cidade? Do mesmo modo que a paz do homem com Deus consiste na sua obediência à lei eterna, a paz de uma Cidade consiste numa ordenada concórdia dos cidadãos no que se refere a comandar e obedecer. A paz de todas as coisas é a tranquilidade da ordem que reinará sem contestação na Cidade celeste. Para Agostinho, o que sustenta a peregrinação dos homens neste mundo, o que torna possível uma existência terrena pacífica e ordeira, é a convicção de uma vida futura perfeita na Cidade celeste, após a morte do corpo. Assim, o Estado, por melhor que seja, é sempre apenas um instrumento nas mãos de Deus. A felicidade que ele é capaz de promover é fugaz e passageira. Na vida terrena, sob a organização do Estado, existem distinções entre senhor e servo. senhor tem obrigação de comportar-se com o servo do mesmo modo que o pai em relação aos filhos. Agostinho entende que esta ordem não deve ser perturbada, pois é necessária para assegurar a ordem e a paz. No entanto, ela é puramente terrena. Na Cidade de Deus existe plena uniformização, pois não há mais necessidade de comando. A concepção agostiniana está marcada, pois, pela ideia de que o homem é prisioneiro sobre a terra. Ainda que deva obedecer 40 41</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames III TOMÁS DE AQUINO Estabelecida a necessidade de um princípio diretivo único, surge o problema da finalidade da vida política. Neste ponto Tomás 1 - A finalidade do Estado se afasta de Aristóteles: enquanto para este a polis esgota todas as possibilidades humanas, para Tomás a vida política aponta para a plenitude celeste. Assim, existem dois fins que o homem deve alcançar: um é a vida boa na vida terrena e o outro é a felicidade eterna após a morte. A vida política está em função da obtenção Tomas de Aquino nasceu no Condado de Aquino da felicidade celeste. Com isso Tomás não retorna a Agostinho, pois admite um valor intrínseco à vida política ao reconhecer nela (Reino da Sicília) em 1225. Aos 19 anos, contra a vontade da o caminho para uma vida virtuosa, que somente pode ser alcançada família, entrou na ordem dominicana. Morreu aos 49 anos, quando em comunhão ou comunidade. se dirigia a Lião a fim de participar do Concílio de Lião a pedido No plano da vida política, Tomás refere dois objetivos do papa Gregório X. É o mais conhecido teólogo e filósofo da como essenciais a serem realizados para obter a vida boa: viver Igreja Católica. Sua característica mais marcante é a assimilação segundo a virtude e possuir bens materiais suficientes para uma do pensamento de Aristóteles e aplicação deste ao pensamento vida digna. Para que seja possível haver a vida boa neste mundo é filosófico e teológico. o tema da política é abordado por Tomás preciso: (1) que todos vivam em unidade; (2) que a multidão seja em vários escritos. Dentre estes, destaca-se a obra "Do Reino", estimulada à prática das boas ações; (3) que exista abundância de dedicada ao rei de Chipre. Este texto foi escrito entre 1265 e 1266 bens necessários à vida. e foi deixado incompleto, tendo sido terminado por Ptolomeu de Cabe ao governante zelar para que estas condições se Luca, um discípulo de Tomás. Será a partir desta obra que realizem. A unidade entre os homens pode ser corrompida tanto teceremos nossas reflexões. pelo caráter corruptível da vontade humana, quanto pelo ataque Tomás reformula completamente a visão agostiniana, de inimigos externos. Para evitar que isso ocorra, o governante segundo a qual o Estado era consequência do pecado. Apoiando- deve alternar os homens encarregados das funções públicas; usar se em Aristóteles, afirma que "o homem é, por natureza, animal a lei, prêmios e castigos para induzir os homens à prática da virtude; sociável e político, vivendo em multidão, ainda mais que todos os e prover meios de defesa contra os inimigos externos. outros animais, o que se evidencia pela natural necessidade". Por Em suma, na visão de Tomás de Aquino, a vida política que, então, precisa o homem de um governo, de uma vida deve propiciar condições para uma vida digna: meios materiais politicamente organizada? suficientes, segurança, estímulo à prática das boas ações. Estes Para responder, Tomás serve-se da imagem do navio: objetivos somente são alcançados sob um governante virtuoso: é a para chegar ao destino, precisa da habilidade do piloto. homem vida correta deste que leva a multidão a inspirar-se para a prática também age em vista de um fim, mas deixado a si cada qual o da virtude. perseguirá de modos diferentes, o que comprometerá a sua Já imaginaram como seria a vida em nossa sociedade se obtenção. Será como um navio deixado ao sabor dos ventos. cada um de nós devesse orientar sua vida segundo o exemplo dos "Portanto, precisa o homem de um dirigente para o fim", defende nossos governantes (sejam eles executivos ou parlamentares)? Será Tomás. Assim, uma comunidade deve ter um fim único e uma a vida deles um exemplo de "virtude" capaz de inspirar a vida dos única deve ser a autoridade que a dirige. cidadãos? 42 43</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames 2 Estado não é tudo A segunda lição é que o Estado não é a verdade última do homem na face da terra. homem está destinado à realização A política em Tomás tem um conteúdo ético. Está de finalidades superiores do que aquelas que o Estado é capaz de subordinada a valores transcendentes e se ordena ao bem comum. assegurar. Quer dizer, a finalidade da existência humana não se Os bens particulares, quer sejam as riquezas, a erudição ou a esgota com a realização das necessidades materiais. O homem eloquência, devem ser ordenados em favor do bem de todos. tem uma abertura para o Absoluto e essa busca é um anseio infinito que caracteriza a existência de uma vida política e infindo. Esta ideia de Tomás é uma crítica muito forte aos nossos voltada para a realização do bem comum? Para Tomás, a existência governantes, que sequer são capazes de assegurar a realização das de duas ordens de coisas. A primeira: uma estrutura jurídica que necessidades materiais (alimentação, segurança, moradia, etc.). As assegura a paz e possibilita levar uma vida virtuosa. A segunda: necessidades espirituais superiores (educação, esporte, lazer, arte, serviços prestados à coletividade por meio dos governantes. É filosofia, etc.) geralmente permanecem na ordem do discurso, da obrigação dos governantes instaurar uma vida boa, conservá-la e promessa. melhorá-la. Uma sociedade que mal consegue prover as necessidades bem comum terreno assegurado pelo governante está básicas (ou materiais) está próxima da animalidade: todo ser animal ordenado à bem-aventurança eterna. fim último da vida em tende a proteger sua prole e garantir sua continuidade. Somente a comunidade não é viver segundo a virtude, mas sim pela vida sociedade que se preocupa em assegurar as necessidades espirituais virtuosa chegar à vida eterna. Em outras palavras, para Tomás de realiza algo especificamente humano: nenhum animal é capaz de Aquino, o Estado não é o fim último. É apenas um meio, ainda filosofia, de arte, de religião, etc. Tem o cidadão o direito de que imprescindível, para alcançar a felicidade eterna. desobedecer legitimamente ao governante que não cumpre sua A concepção política de Tomás de Aquino nos ensina obrigação de zelar por aquilo que é propriamente humano? É o duas lições fundamentais. A primeira é de que não pode existir um tema do direito à revolução e à desobediência civil, que merece uma reflexão à parte. bem particular que esteja em contradição com o bem coletivo. Por exemplo, o conhecimento que um indivíduo possui só é legítimo 3 - A tirania e o direito à revolução se for colocado a serviço de todos. Eu não estudo para mim, por um prazer solitário do meu espírito. Estudo para melhorar a vida Tomás de Aquino não tem dúvidas de que a vida social de todos. Só isso já é uma crítica severíssima contra aqueles precisa de uma autoridade sem o que se dispersaria na anarquia. profissionais, estudantes e professores, que não se consideram Qual a forma de autoridade preferida de Tomás? É aquela, diz ele, obrigados a devolver para a sociedade a ciência adquirida. A mesma que combina o princípio das três formas justas de governo: a crítica se aplica à ideia de propriedade particular. Tomás de Aquino monarquia, a aristocracia e a democracia. Esta forma é encontrada jamais admitiria que um indivíduo possuísse mais do que necessita na monarquia hereditária (princípio controlada por para sua própria subsistência. Toda acumulação de bens que conselhos de homens sábios e prudentes (princípio aristocrático) possibilita o usufruto do supérfluo e uma vida sem trabalho é um eleitos pelo povo (princípio democrático). Tomás se pergunta sobre roubo do direito dos demais a levarem uma vida digna. Na o que é legítimo fazer quando o governo, em vez de realizar a linguagem de hoje, podemos dizer que, para Tomás, a propriedade justiça, é exercido por um tirano. Neste caso, é lícito derrubá-lo tem uma "função social". pela força? É o problema do direito à revolução. 44 45</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames Na solução do problema, Tomás lembra sua filosofia governante, ainda mais intolerável, que és tu. Portanto, se fores social. A posse das coisas materiais corresponde ao direito natural derrubado, sucederá um pior no teu lugar". do homem de servir-se dos bens para sua preservação. No entanto, A narrativa dispensa explicações e sua atualidade não a posse não pode excluir dessa utilização aqueles que dependem poderia ser maior. Conhecemos pela história passada da América dela para sua sobrevivência. Assim, numa situação de necessidade Latina e do Brasil a sequência de regimes autoritários que parecem extrema, pode o homem tirar de outro, se ninguém o socorre, o justificar a preocupação da velhinha de Siracusa lembrada por necessário à vida. Por exemplo, se alguém passa fome e ninguém Tomás de Aquino. Mesmo nos dias atuais, nossas democracias o socorre, ele pode tomar de quem possui aquilo de que necessita não parecem muito mais alvissareiras. Nossos governantes são para continuar vivendo. Não é furto, pois a existência de pessoas depostos por um processo eleitoral, mas o decepcionante é constatar que passam fome é resultado do abuso de propriedade. Alguns que o sucessor escolhido muitas vezes é pior do que o antecessor. passam fome, porque outros acumulam mais bens materiais do Talvez o receio da velhinha de Siracusa explique porque o povo que necessitam para viver. reeleja os mesmos governantes que ele antes havia criticado. Na política, a pergunta se o homem pode resistir às leis injustas é respondida deste modo por Tomás: estas leis não são 4 Monarquia mista: a melhor forma de governo verdadeiras leis, mas perversões, violências. poder tirânico é ilegítimo: do mesmo modo que o direito à propriedade cessa com Na Ética a Aristóteles afirma que toda ação é o seu abuso, o governante que não zela pela suficiência dos bens teleológica: ou seja, tudo o que muda, muda em vista de um fim. materiais e pela prática da virtude, perde o direito de exercer a Tomás de Aquino segue Aristóteles afirmando que o homem existe autoridade sobre o seu povo. Assim, um movimento para depor o em vista de uma finalidade última. No entanto, diferente do que tirano pela força pode ser justo. para o estagirita, para o qual o fim último do homem se realizava Dissemos pode, porque Tomás condiciona o direito à na polis, para Tomás o finalidade última é a felicidade eterna. revolução a certas condições. Primeiramente, a ação contra o tirano Todas as suas ações estão orientadas para a obtenção deste fim. não deve ser individual, mas precisa ser pública. Em segundo lugar, A questão é: embora toda a vida e ações humanas estejam antes de agir pela força é preciso esgotar todos os outros meios naturalmente orientadas para a realização de seu fim último, por possíveis. Em terceiro lugar, o movimento não deve acarretar males que o homem necessita de alguém que o dirija até ele? Por que o maiores do que a tirania que se pretende extinguir. Finalmente, é homem não pode ser seu próprio guia? Tomás responde que isso preciso estar certo de que o governo seguinte à insurreição será seria possível se o homem vivesse isolado. Como, porém, vive em melhor do que o deposto. comunidade, "é mister haver algum dirigente pelo qual se atinja A propósito deste último ponto, Tomás de Aquino evoca diretamente o devido fim", do mesmo modo que um navio a história da bondosa velhinha de Siracusa, que orava diariamente impulsionado pelos ventos contrários só chega ao porto graças à pela conservação da vida do tirano Dioniso. Informado do fato, o habilidade do piloto. tirano mandou chamá-la e a interrogou sobre a razão desse do navio e do piloto, serve para Tomás comportamento, já que ele sabia ser por todos odiado. A boa mostrar a conveniência de um dirigente único em vez de muitos: senhora respondeu: "quando eu era menina, estávamos assim como em um navio só pode haver um único capitão, é melhor subordinados a um grave tirano, cuja morte eu desejava; uma vez à comunidade política ter um governante único. Por quê? Qual é o morto, sucedeu-lhe um outro ainda mais duro, e eu não via a hora argumento de Tomás? Tomás explica que, como o fim do governo de nos vermos livres dele. E começamos a ter um terceiro é a unidade, esta é melhor obtida se for um só a governar. Ele 46 47</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames pretende encontrar o fundamento dessa conclusão na própria em guerras sangrentas e a inquisição. Produziu dois partidos natureza em que tudo tem um centro de comando único: existe um políticos: os gibelinos, que apoiavam o imperador e os guelfos, só Deus para o governo do mundo, uma só alma para reger o que defendiam o papado. No plano teórico, os pensadores retornam corpo e um só coração para mover os membros do corpo. a Tomás de Aquino para fundamentar suas tanto aquelas Embora o melhor governo seja o Tomás a favor das pretensões do papa quanto às favoráveis ao imperador distingue várias formas de governo retomando a classificação de (do poder espiritual ou do poder temporal, respectivamente). Vamos Aristóteles, para quem a cada forma justa corresponde outra examinar brevemente a apresentação deste problema em Tomás, corrompida ou injusta. Assim, à politia corresponde a democracia; tema que ele trata no final do livro Do Reino. à aristocracia a oligarquia e à monarquia a tirania. A novidade na Tomás começa sua análise retomando o duplo fim classificação tomista em relação à aristotélica é a escala: quanto humano que já mencionamos anteriormente: um imanente, que se melhor é a forma boa, tanto pior sua forma corrompida. Desta realiza neste mundo, e outro transcendente, que se concretiza na maneira, por ser a monarquia a melhor das formas boas de governo, vida eterna. A finalidade imanente compete ao poder temporal a tirania é a de todas; do mesmo modo, por ser a politia a realizar: dirigir os governados de modo que cultivem uma vida menos boa das formas justas, a democracia é menos ruim das virtuosa. A finalidade transcendente cabe ao poder espiritual: orientar formas injustas. os fiéis de modo a alcançar a felicidade eterna. critério estabelecido por Tomás para distinguir as Embora existam duas finalidades para a existência formas boas das formas más de governo é o bem comum: quanto humana, elas não são equivalentes. A finalidade terrena está mais se afasta do bem comum, isto é, quanto mais trata do bem subordinada à finalidade eterna. A felicidade celeste é, pois, o próprio em prejuízo do bem da coletividade, tanto mais injusto é o verdadeiro fim ao qual o homem está destinado. Consequentemente, governo. Por este motivo a tirania é a pior de todas as formas de a máxima autoridade cabe àquele que está encarregado de assegurar governo, pois visa unicamente o bem do tirano. a obtenção deste fim, ou seja, à Igreja. Tomás se apoia em A reflexão de Tomás nos mostra que a vida coletiva não Aristóteles para sustentar esta conclusão. Segundo este, governar é possível sem um corpo dirigente. Ainda que nossas ações e vida é conduzir o governado ao seu verdadeiro fim. Se este fim pudesse estejam naturalmente orientadas para alcançar a felicidade eterna, ser alcançado tão somente pelo cultivo das virtudes humanas, isso não acontece espontaneamente. Tomás assume aqui a deveria ser reconhecido ao poder temporal a máxima autoridade contribuição de Agostinho: devido à queda originária, a vontade neste mundo. Como, porém, o verdadeiro fim transcende a vida humana é falha e pode querer o que é contrário à sua natureza. mundana, o governo por meio do qual ele é alcançado deve ser Por isso é preciso orientar as ações humanas na direção verdadeira, aquele que zela pelas coisas espirituais. aquela que coincide com a sua natureza. Assim, Tomás reconhece duas autoridades cada qual com sua esfera própria de atuação. rei é supremo nos assuntos 5 Poder secular e poder religioso temporais; papa nos assuntos espirituais. No entanto, as finalidades corporais, cujo cuidado cabe à autoridade temporal, estão A alta Idade Média é atravessada pela questão da disputa subordinadas às finalidades espirituais, as quais cabe à Igreja zelar. entre poder temporal e poder espiritual. Esta disputa, como sabemos Assim, do mesmo modo que o corpo está subordinado à alma, pela história, não foi somente teórica ou filosófica, mas resultou aquele que cuida do corpo deve estar subordinado àquele que cuida 48 49</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames da alma. Em outras palavras: o poder régio deve submeter-se ao IV MARSÍLIO DE PÁDUA poder papal. Esta posição de Tomás será sucessivamente retomada 1 Marsílio de Pádua: um republicano medieval pelos pensadores seguintes. Alguns a interpretarão no sentido de mostrar o direito papal à plenitude de todo poder, tanto espiritual quanto temporal (Egídio Romano). Outros entenderão que existem duas esferas autônomas de ação, temporal e espiritual, exercidas pelo poder régio e poder papal respectivamente, que não se subordinam uma à outra (João Quidort). Finalmente, uma terceira posição é a que afirma como única autoridade legítima o poder A Idade Média é conhecida como o período das trevas. temporal subordinando a este o poder espiritual (Marsílio de Pádua). o cinema e a literatura, especialmente, são responsáveis por esta Na sequência examinaremos brevemente a posição de Marsílio de imagem. No imaginário das pessoas, este período foi dominado Pádua, um pensador leigo que esboça em plena Idade Média uma pela intolerância e superstição patrocinadas pela Igreja. Pouca, ou proposta republicana. nenhuma, contribuição esta época teria fornecido à humanidade. Tão logo, porém, nos dedicamos à leitura dos grandes pensadores desta etapa da história humana, esta imagem se transforma. Notamos que não é possível fazer uma ponte entre o pensamento grego e moderno sem passar pelos medievais. É imprescindível abrir caminho pela Idade Média, porque ali, talvez mais até do que entre os antigos, foram gestadas as raízes da nossa cultura atual. Na filosofia política medieval destacou-se, além de Tomás de Aquino, outro grande intelectual: o italiano Marsílio de Pádua. Nascido em torno de 1285, jamais pertenceu aos quadros da hierarquia da igreja católica. Estudou direito, filosofia e medicina. Aos 27 anos foi reitor da Universidade de Paris. Durante os anos em que passou na França, escreveu sua obra-prima: "O Defensor da Paz", concluída em 1324. Três anos depois foi convocado a apresentar-se diante da Cúria Romana para esclarecer as posições defendidas nesta obra. Temendo represálias (a Inquisição estava em plena atividade!), refugiou-se na corte do príncipe alemão Luís da Baviera. Este príncipe alemão havia sido eleito imperador em 1314. A tradição da época determinava que o arcebispo de Colônia, representando o papa, ungisse e coroasse o eleito, o que acabou não ocorrendo. Após a eleição do novo pontífice romano, João 50 51</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames XXII, em 1316, o bávaro apelou à Sua Santidade para solucionar Marsílio apresenta diversos argumentos para fundamentar o conflito. papa, porém, declarou vago e trono e avocou a si a esta posição. Primeiro, que o conjunto dos cidadãos é capaz de administração do Império. Luís da Baviera resolveu, então, usar perceber com mais precisão uma falha na lei do que uma pequena da força e invadiu a Itália. O papa, por sua vez, decidiu usar das parte, ainda que esta seja constituída de peritos. Segundo, uma lei armas da doutrina e excomungou o príncipe. Durante estes aprovada por todos é observada na prática, porque ela não aparece acontecimentos Marsílio já estava junto à corte do nobre alemão. como uma imposição externa e sim como uma obrigação imposta Uma vez conquistada Roma, o príncipe alemão, orientado por a si mesmo. Terceiro, uma lei nascida da vontade do conjunto dos Marsílio, destituiu o papa, ordenou a escolha de um antipapa pelo cidadãos necessariamente expressa o que interessa a todos, porque povo romano e fez-se coroar imperador. Pouco mais de meio ano ninguém prejudica a si mesmo depois, porém, com auxílio das tropas francesas, foi expulso da A exigência da participação do conjunto dos cidadãos cidade e obrigado a retornar à Alemanha. o papa João XXII para a formulação da lei aponta para a sua origem humana. Esta excomungou Marsílio e proibiu a leitura de sua obra. posição é frontalmente contrária à concepção medieval, que atribuía Marsílio permaneceu na corte do príncipe alemão até o fundamento da legitimidade da lei à conformidade com a lei sua morte, ocorrida provavelmente em 1343. Os conflitos que divina e com a lei natural. Além disso, ao cobrar a participação da envolveram a Igreja e o nobre alemão influenciaram o modo como totalidade dos cidadãos, mostra a necessidade do consenso para esse grande intelectual italiano propôs sua solução ao clássico dar legitimidade à lei. Marsílio torna-se, assim, o primeiro a defender problema medieval da relação entre poder espiritual, representado em plena Idade Media a discussão pública valorizando a do pelo papa, e poder temporal, representado pelo imperador. povo na formação da comunidade política. Nas próximas reflexões vamos mostrar que Marsílio A esta lei todos, sem distinção, estão submetidos de defendeu vigorosamente a soberania popular. único poder maneira igual. Não há privilégios nem aos ricos, nem ao clero. Os legítimo, de qualquer natureza, pertence ao conjunto da população próprios governantes estão submetidos à lei, podendo ser depostos e a ninguém mais Essa compreensão tornava ilegítima a pretensão pelo povo sempre que comprovadamente a violarem. Assim, o do papa tanto ao exercício do poder temporal, quanto espiritual. problema de saber o que torna legítimo o mando fica respondido: Nestas análises nos guiaremos pela obra mais importante de Marsílio é o governo segundo a vontade soberana do povo. o povo não de Pádua: "O Defensor da Paz". obedece a um poder estranho e oposto a ele, mas a si mesmo. governante é aquela pessoa encarregada pelo povo para aplicar a 2 que torna um governo legítimo? lei. Seu poder tem a exata dimensão daquilo que o povo lhe confere. Não lhe cabe fazer promessas, nem inventar regras segundo sua Na vida política estamos acostumados à ideia de que conveniência. necessariamente devem existir alguns que mandam (os governantes) A contribuição de Marsílio para nossa vida política atual e outros que obedecem (os governados). Por que obedecer? está em mostrar a necessidade de buscar o consentimento do que torna o mando legítimo? Marsílio de Pádua tem uma resposta conjunto dos cidadãos para dar legitimidade às ações políticas. que prenuncia os grandes ideais republicanos dos séculos seguintes. Marsílio recomendaria a resistência cívica às leis impostas contra Para este pensador, a fonte originária do poder reside no povo a vontade dos cidadãos, fonte última da legitimidade de todo direito. tomado em seu conjunto. A lei é inventada pelos cidadãos. Uma Ele tinha claro que a justeza da lei não é uma questão moral e sim lei que não tenha merecido a aprovação do corpo dos cidadãos é de consentimento público do conjunto do corpo político expresso ilegítima. pela vontade da maioria. Nossas orgulhosas instituições 52 53</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames democráticas atuais em muito melhorariam se aprendessem esta indivíduos justos e capazes, cada um se esforçará por ser melhor lição deste pensador político medieval. de modo a um dia poder ser candidato. Assim, as eleições são também um instrumento para melhorar a qualidade moral dos 3 melhor governante é o eleito pelo povo homens. Com estas considerações Marsílio revela toda sua Durante a Idade Média a forma de organização política atualidade. Em plena Idade Média já percebeu que o melhor típica é a do reino. Um reino é governado por um monarca. Era instrumento para escolha daqueles que devem dirigir a vida pública incontestável que a sucessão hereditária era a maneira mais legítima é a eleição. Ele não estava cego para problemas que conhecemos de continuidade do poder político. Fundado nesse direito, muito bem em nossos dias, como a possibilidade de ludibriar a constituíam-se as dinastias: famílias que detinham de forma vitalícia opinião dos eleitores com promessas ou de intimidar os eleitores o privilégio de dirigir o reino. com ameaças. Mas estava convencido de que era impossível iludir Marsílio de Pádua contesta frontalmente esta tradição. ou intimidar o conjunto da população. Enfrenta os defensores da monarquia hereditária, examina os As reflexões de Marsílio mostram que certas frases que argumentos que estes apresentam e os refuta um a um. Diziam, circulam em nosso meio sobre a legitimidade conferida pelo voto por exemplo, os defensores da monarquia hereditária que o rei popular não podem ser citadas como se fossem criações recentes. com direito à sucessão zelaria com muito mais empenho pela coisa Dizer que o "governo mais legítimo e democrático (ou a Câmara, pública, considerando-a como sua propriedade; diziam ainda que ou o Poder Legislativo, etc.) é aquele que o povo elege", é o monarca hereditário estaria menos sujeito a governar praticamente uma paráfrase de Marsílio de Pádua, pensador que despoticamente; que estaria mais propenso à prática das virtudes; escreveu sua obra prima há quase 700 anos atrás. Para Marsílio, o que a ausência de eleições evitaria despertar nos súditos a ambição eleito pelo voto popular é também o melhor. Seria prova de extrema pelo poder; etc. presunção alguém pretender que seu julgamento individual fosse Marsílio rebate dizendo que o zelo pela coisa pública é mais sábio do que aquele feito pelo conjunto dos cidadãos. Assim, garantido pela escolha de um governante justo e capaz, e pela lei dizer que o povo nem sempre escolhe o melhor governante (ou a aprovada pela coletividade. Somente a eleição garante que o povo melhor Câmara, ou o melhor Poder Legislativo, etc.) é sinal de será governado pelo melhor dos cidadãos. Marsílio estava soberba, ou preconceito de quem se imagina um iluminado. convencido de que o povo escolheria seu soberano a partir das A reflexão de Marsílio sobre a legitimidade da eleição virtudes que este apresenta. Ele quatro qualidades comprova que o pensamento político é uma lenta maturação em imprescindíveis a um candidato a governante: prudência, justiça, que a originalidade não está em dizer coisas inéditas, mas em dizê- equidade e zelo pelo bem geral dos cidadãos. Quanto ao risco de las de modo novo em cada circunstância concreta. governar despoticamente, Marsílio argumenta que isso é fruto da impunidade. Governa despoticamente quem pensa estar acima da 4 conflito entre Igreja e Estado lei. Enfim, quanto ao argumento de que as eleições despertariam no coração das pessoas a ambição pelo poder, Marsílio responde conflito entre Igreja e Estado conheceu durante a Idade que, pelo contrário, desperta nos homens o desejo de serem Média o seu período mais agudo. Havia uma tradição firmada pela virtuosos. Sabendo que as pessoas querem ser governadas por Igreja que atribuía ao Papa a prerrogativa da plenitude do poder. 54 55</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames Quer dizer, o Papa era a autoridade suprema tanto em questões Para Marsílio era inconcebível que ela se apresentasse como civis quanto nas religiosas. Príncipes e imperadores, comunidades detentora de um poder próprio capaz de rivalizar com o poder do e indivíduos, todos deviam obediência ao pontífice romano. Este Estado. privilégio causou intermináveis disputas pelo poder protagonizadas A novidade das lições de Marsílio de Pádua está na sua pelos papas e bispos de um lado e pelos imperadores e príncipes percepção da causa dos conflitos que dilaceravam a sociedade de outro. Os primeiros utilizavam-se das "armas espirituais" da medieval. Ele percebeu claramente que as intermináveis "guerras excomunhão e dos interditos e os últimos das "armas temporais" de eram motivadas pela sede de poder de uma instituição, dos soldados e da guerra. a Igreja. Era preciso reduzir o Papa ao seu verdadeiro tamanho e a Marsílio de Pádua, em plena Idade Media, combateu igreja à sua missão específica: o Papa era bispo de Roma e a igreja severamente a pretensão papal à plenitude do poder. Ele percebeu estava encarregada da missão de orientar os fiéis para que claramente que ali estava a causa do caos que reinava na Europa. alcançassem a vida eterna. Sustentava que o exercício do poder pelo Papa era "uma peste melhor do pensamento desse italiano de Pádua é o terrivelmente contagiosa e nociva ao ser humano", porque fato de defender já na Idade Média que o único poder legítimo transformava o cristão num cidadão de dois mundos: o temporal e vem do povo. Imperadores, príncipes, bispos e Papa exercem a o espiritual. Somente suprimindo esta divisão a "paz e a autoridade que lhes foi delegada pelo povo. Por eles mesmos não tranquilidade" poderiam ser restauradas. possuem qualquer poder a mais do que qualquer cidadão. Não Por que ele considerava o exercício do poder pelo Papa estão acima da lei, mas devem obedecer-lha como todos os demais. ilegítimo? No entendimento de Marsílio, isso se devia à natureza Oxalá nossos governantes e poderosos de hoje ouvissem esta voz! da missão conferida por Cristo à igreja: "ensinar o evangelho e mostrar o que se deve acreditar, fazer e evitar a fim de alcançar a bem-aventurança no outro mundo e fugir à condenação eterna". Esta missão, na sua opinião, era incompatível com o exercício de qualquer forma de poder. poder, entendia Marsílio, só é real quando aquele que o exerce é capaz de coagir, de obrigar à obediência. A missão da igreja, no seguimento de Cristo, era a de ensinar e aconselhar. Por isso, quando ela se arrogava o direito de obrigar os homens a seguir determinado comportamento, estava usurpando indevidamente a autoridade que era dos imperadores e príncipes. Papa, os bispos e o clero em geral eram cidadãos como todos os outros. Por este motivo, deveriam submeter-se à autoridade civil como todos os demais. Não poderiam ter privilégios, tais como isenções de impostos ou um foro especial para serem julgados. A igreja, como instituição, deveria estar submetida ao poder do Estado assim como todas as demais instituições que existem na sociedade. 56 57</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames V MAQUIAVEL o poder à família, que manteve o controle sobre Florença até o século XIX. 1 Maquiavel: o mestre da política No final do ano de 1512, com a ascensão dos Medici, Maquiavel, por haver trabalhado no governo de um grupo político adversário desta família, foi demitido de todos os seus cargos, multado, proibido de entrar no Palácio do Governo e de deixar a cidade. Não bastasse tudo isso, foi acusado de conspiração, preso e torturado. Posteriormente, foi libertado graças a uma anistia geral N icolau Maquiavel viveu em Florença, Itália, de 1469 promovida pelo governo da cidade em homenagem à eleição do cardeal Giovanni Medici ao papado (papa Leão X). a 1527. Aos 29 anos tornou-se Segundo Secretário da República Mesmo nesta situação infeliz, Maquiavel sonhava de Florença (espécie de ministro de assuntos internos) retornar ao seu antigo posto. Pensava que tudo o que lhe acontecera permanecendo no cargo por 14 anos (1498 -1512). Durante este fora fruto de mal-entendidos, típicos dos períodos de turbulência. período, representou sua pátria em mais de vinte missões Retirado em sua propriedade rural, começou a escrever uma obra diplomáticas. Foi graças a estas missões que conheceu na intimidade na qual pretendia resumir sua experiência de embaixador e o funcionamento das grandes potências da época e entendeu a conselheiro, iluminando-a com a leitura dos clássicos da política. lógica da ação política. Maquiavel imaginava-se um funcionário objetivo era apresentá-la ao jovem Lourenço Medici, novo chefe público exemplar. Quando a oposição derrubou o governo do Estado de Florença. Imaginava Maquiavel que este governante republicano liderado por Pedro Soderini e ao qual ele prestara perceberia de imediato quanta sabedoria estava guardada com o seus serviços, nem de longe imaginava que pudesse perder o seu fiel funcionário e o chamaria para reocupar seu posto. Quando a posto. Não foi isso, porém, o que o destino (ou a família Medici...) obra foi enfim oferecida ao chefe da cidade, a frustração: sequer lhe reservou. mereceu um olhar, muito menos um comentário ou um convite! A família Medici, poderosos banqueiros italianos, Esta é a origem deste livro tão popular, "O Príncipe". comandou o Estado de Florença de 1434 até 1494. Neste ano, Desiludido em relação às pretensões de retornar ao cargo na Carlos VIII, rei da França, invadiu a Itália. Inconformado com o república de Florença, Maquiavel passou a dedicar-se comportamento indigno de Pedro de Medici, filho de Lourenço o exclusivamente à escrita. Sua passagem à história da literatura Magnífico, o povo de Florença expulsou-o da cidade e o poder mundial deveu-se à frustração de seu projeto pessoal de ser um caiu nas mãos da oposição liderada pelo frei Gerônimo Savonarola. dedicado funcionário público! Perdeu, certamente, Florença ao Em 1498 o frei foi condenado pela Inquisição e morto em praça não readmiti-lo no cargo. Ganhou, contudo, a humanidade. A pública; essa mudança de poder possibilitou o acesso de Maquiavel frustração de seu projeto pessoal de ser conselheiro deu nascimento ao cargo de Secretário da Segunda Chancelaria. No final do ano a um lúcido e penetrante observador da cena política e do cotidiano de 1512 a Espanha invadiu a Itália e, apoiada pela família Medici, do Renascimento. Como a maior parte dos grandes nomes, morreu derrubou o governo republicano de Florença. Graças a isso, a família pobre e ignorado em junho de 1527. Por pouco tempo ficou Medici retornou ao poder até 1527, quando os republicanos o esquecido. Nenhum dos grandes escritores que o seguiram deixou retomaram, mas por pouco tempo. Em 1530, novo golpe devolveu de ler sua obra. Estadistas e oportunistas até hoje se utilizam dela. 58 59</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames Nossas reflexões sobre Maquiavel terão como guia o circularidade grega, assim como com o finalismo agostiniano cristão: livro cuja origem acima descrevemos. "O Príncipe" inspirará a nas duas concepções a falha política é sempre inessencial, não nossa reflexão no sentido de compreendermos melhor o cotidiano tem efeito positivo próprio, mas só negativo, pois ela pode retardar de nossa política atual e descobrirmos a alma do político. Alertamos, o curso, mas é incapaz de impedir o processo empírico de porém, que a ordem de apresentação dos temas não segue totalização da história. rigorosamente a ordem dos capítulos do livro de Maquiavel. A ideia maquiaveliana de que existe um tempo certo para agir indica sua convicção de que o tempo histórico não é um 2 Política é ação aqui e agora contínuo homogêneo. Há "nós estratégicos", isto é, momentos singulares e únicos na solução dos quais se revela toda a habilidade A obra de Maquiavel gira em torno do problema da ação do dirigente político. Estes momentos privilegiados da história são política: sua preocupação é com a solução do problema prático apresentados por Maquiavel na forma de dilemas: é o "agora ou dado na situação atual, situação singular e concreta na qual o homem nunca", o "isto ou aquilo". Esta escolha é dramática por dois age. Apesar de sua preocupação ser fundamentalmente prática e motivos: primeiro, porque a solução dada para um momento não teórica, a compreensão do "aqui e agora" de um momento determinado decide a orientação para um longo tempo futuro; dado implica na compreensão das relações prevalecentes naquele segundo, porque um passo em falso, que na situação ordinária momento. Quando o "aqui e agora" não é intelectualmente pode ser um erro sem consequência, torna-se irreparável nos dominado, a questão central do "que fazer?" fica sem fundamento momentos de crise. dramático fica ainda mais acentuado por e sem resposta consequentes. Qual a fonte desse conhecimento? uma peculiaridade: estas situações são marcadas por um caráter Para Maquiavel, a observação atenta da vida histórica de "claro-escuro", razão pela qual para aqueles que a vivem e nela presente e passada permite constatar certa identidade da natureza se enfrentam, a solução nunca se impõe com a evidência da solução humana através dos tempos, pois responde aos mesmos estímulos perfeita e sem contestação. de forma parecida. Por outro lado, porém, a situação na qual cabe Este quadro revela porque Maquiavel dá tanta agir é cada vez singular, única e irrepetível. Saber reconhecer o importância à capacidade do dirigente político (a segundo que mudou é saber identificar aquilo que há de singular no momento sua terminologia). No curso de sua ação não tem onde apoiar-se: o atual, é delimitar seus traços originais. Quando o presente não é homem de Estado maquiaveliano depende exclusivamente de sua inteligível, o amanhã não poderá mais ser tarefa humana, pois o própria capacidade para determinar a resposta, impostergável, que curso histórico será determinado por forças estranhas à vontade a situação presente e concreta permanentemente lhe coloca, ou do sujeito (a fortuna como dirá Maquiavel). seja, a questão "que fazer?". A arte de conduzir a luta política, sendo a arte de inserir- se no tempo, no momento determinado, num processo objetivo, 3 É melhor prevenir ou remediar? requer a apreensão da oportunidade. Esta é singular e irrepetível e, por isso, quando o agente político perde o momento de agir, o Como deve agir o governante em relação aos problemas tempo certo, nem muito cedo, nem muito tarde, é inútil esperar que enfrenta na administração? Maquiavel procura iluminar esta por seu retorno. Esta perspectiva evidencia o da questão comparando o trabalho do político com o do médico. identificação da noção maquiaveliana de tempo com a teoria da problema enfrentado pelo dirigente é semelhante à doença 60 61</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames enfrentada pelo médico. A comparação é a seguinte: "no princípio, prejudica toda a comunidade. Do mesmo modo que o conselho de uma doença é fácil de ser curada, mas difícil de ser diagnosticada. classe cassa o diploma do médico fajuto, deveria existir um Com o passar do tempo, não tendo sido nem reconhecida nem mecanismo para cassar o mandato do dirigente incompetente. o medicada, torna-se mais fácil diagnosticá-la, mas também mais primeiro leva à morte uma pessoa; o último conduz à falência a difícil curá-la" (O Principe cap. III). Quando o câncer é coletividade inteira! diagnosticado logo no seu início, as chances de cura são praticamente plenas. Já quando está em estágio avançado... 4 A vitória sem memória Na política, explica Maquiavel, acontece algo semelhante. "Quando se percebe com antecedência os males que surgem, eles Na aurora do Estado moderno um problema crucial era são curados facilmente. Quando, porém, por não haverem sido conseguir manter o poder num quadro institucional em que, no identificados, se deixa que cresçam a ponto de todos passarem a lugar do direito, prevalecia a força. A conquista do mando supremo conhecê-los, não há mais remédio" (O Principe cap. III). Os acontecia à custa da eliminação física dos outros pretendentes ao problemas na política são como um câncer no corpo: quando o cargo. Em semelhante contexto, qual a maneira mais eficaz de governante os deixa crescer, destroem os melhores planos que ele lidar com os inimigos políticos? Maquiavel coloca-se este problema porventura possa ter. e mostra como ele tem sido resolvido pelos governantes que A por Maquiavel para explicar o modo alcançaram êxito. Não se trata de uma recomendação moral. o de agir de um político é muito apropriada para entender o nosso que está em questão é saber como manter sob controle o poder cotidiano. Notamos muitos dirigentes que parecem incapazes de conquistado. perceber a gravidade de um problema. Estão inteiramente voltados A tese de Maquiavel é a seguinte: quem conquistou o às "grandes metas" de sua administração. Na verdade, os problemas poder numa luta ferrenha contra seus antigos ocupantes, "deve não podem ser separados entre si conforme o tamanho. Tal como observar duas regras: extinguir os antigos governantes e manter as um câncer num organismo vivo, o perigo está naquilo que o leis e os tributos" (O cap. III). Como acabar com os problema pode causar ao projeto político. Basta, por exemplo, antigos governantes? Está ali a segunda parte da "regra de uma licitação mal explicada para comprometer a honestidade de do florentino: não se pode tomar meias medidas. Nas palavras do toda administração... florentino, "é preciso mimar ou aniquilar os homens, porque eles A verdadeira inteligência política está naqueles que têm se vingarão de pequenas ofensas, mas não poderão vingar-se de a sensibilidade de perceber os grandes problemas no seu nascedouro. agressões definitivas" (O cap. III). o governante que Estes são políticos talhados para o ofício, porque combatem os pretende vencer não pode olhar para os meios que emprega. Quando obstáculos na sua raiz. Os infelizmente a maioria, ele persegue os antigos ocupantes do poder e seus simpatizantes "empurram com a barriga". Pensam que, "deixando rolar", as deve ser drástico. Para assegurar seus planos precisa matar toda coisas se acomodarão sozinhas. É o que geralmente acontece, só lembrança antiga. Não pode deixar pedra sobre pedra. Precisa que da pior forma: como numa doença não tratada, amplia o quadro praticar a política da "terra arrasada". de deterioração da comunidade política. Maquiavel recorda aos que, porventura, forem tomados dirigente incompetente, aquele que não resolve no de diante do tamanho da injustiça que precisam praticar começo os problemas, é também perigoso. Assim como o médico o princípio seguinte: "tem uma regra geral que nunca ou quase que não diagnostica a doença a tempo pode levar o paciente à nunca falha: quem se torna instrumento para que outro se torne morte, o governante que não combate as dificuldades no nascedouro poderoso se arruína" (O cap. III). governante que não 62 63</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames destrói a lembrança do antigo mandatário não faz seu sucessor. que o único momento em que eles se propõem a elaborar um Mais: ao deixar espaço para o inimigo, fornece alimento para que plano de governo plurianual e global é por ocasião da campanha cresça e reconquiste o poder perdido. eleitoral. Segundo, quando analisamos tais "planos", observamos Na atualidade, a eliminação dos adversários políticos que as metas fixadas são determinadas pelo pragmatismo imediatista: é Afinal, vivemos num Estado de Direito em que prevalece via de regra são listados um conjunto de ações de execução imediata a lei no lugar da força. No entanto, a lógica que comanda a mudança pensando que o volume impressionará os cidadãos e que, com no mando do poder de Estado permanece a mesma, em todas as isso, estes lhe emprestarão o apoio que almejam. Quando olhamos esferas da administração pública. A primeira iniciativa do novo mais de perto, mais parecem passos de um cego sem guia: incapaz Prefeito, Governador ou Presidente, especialmente quando é de de vislumbrar o horizonte, só percebe o que é capaz de tocar. oposição em relação ao anterior, é apagar toda lembrança da gestão precedente. Para tanto, substituem-se todas as pessoas que As ações propostas pelos dirigentes podem ser todas ocuparam cargos de comando na estrutura de poder, mudam-se as necessárias, corresponder até ao apelo popular. mais importante, placas de inauguração, trocam-se os nomes dos prédios e dos porém, está faltando: em geral não se percebe nestes planos um projetos, abandonam-se as obras que deram certo, difamam-se as "fio condutor" para a consecução de um projeto global. Quer pessoas que ocuparam o poder. Enfim, destroem-se todos os dizer, falta o principal de um bom plano de governo: é preciso que símbolos que possam evocar a gestão anterior. É verdade, ninguém as metas propostas apontem um "norte" de modo que (em geral) é assassinado. No entanto, há uma morte simbólica as ações que sucessivos dirigentes desenvolverão convirjam para tanto das pessoas que atuaram na gestão precedente, quanto dos a realização do modelo desenhado. Na falta disso, cada novo projetos por elas desenvolvidos. governante que assume o posto de comando pretende "reinventar Maquiavel escreveu isso olhando para a política tal como a roda": age como se não houvesse história, como se tudo ela efetivamente acontecia. Ele jamais disse que "seria bom" se começasse com ele. Pelo modo como se comportam assemelham- todos agissem assim. Infelizmente, muitos dos que o leram o se a pesquisadores de labirintos: correm por mil caminhos sem que interpretaram desta maneira. Escondem-se atrás de uma falsa pareçam preocupados com o único caminho que conduz à saída. ciência política para encobrir sua ambição sem medida. Dizem A esse propósito, é útil aprender com Maquiavel. Ensina que política é assim mesmo, como se fosse uma fatalidade. Tudo ele que os governantes sábios agem como os arqueiros que, passa a girar em torno da conquista do poder pelo poder. Em vez "julgando muito distantes os alvos que pretendem alcançar e de a política ser um instrumento a serviço do bem-estar de todos, torna-se um fim em si mesma. Com isso ela se degrada e perde conhecendo bem o grau de exatidão de seu arco, orientam a mira sua originária força organizadora do bem comum. Os seus agentes, para bem mais alto do que o alvo visado, não para atingir tal altura os "políticos", são execrados como parasitas, algumas vezes não com a flecha, mas para poder, por meio de mira tão elevada, chegar sem razão. ao objetivo" (O Principe cap. VI). Em outras palavras, o que Maquiavel sugere é que, para 5 bom político aspira à perfeição saber se determinada gestão foi ou não plena de não basta confrontar o prometido com o realizado. É bem possível que o A observação da ação política de nossos governantes, governante tenha pesquisado infinitos labirintos e saído no mesmo seja na esfera em que for da estrutura do Estado, leva-nos a fazer ponto por onde entrou. Quer dizer, é possível que o governante algumas constatações que são, no mínimo, angustiantes. Primeiro, tenha melhorado tudo o que estava aí: as ruas, os postos de saúde, 64 65</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames a educação, tenha plantado flores e construído prédios. Ao fim, manutenção. Isto é particularmente verdadeiro quando o objetivo porém, deixou sem resposta a angustiante pergunta: para onde é introduzir mudanças estruturais, que é exatamente o caso daqueles vamos? A saída do labirinto ficou sem ser descoberta. governante que estavam na oposição, pois lutaram pelo controle político com saiu pela porta de entrada! a promessa de transformar radicalmente "o que está Maquiavel ensina que o bom dirigente político é um ilustre florentino ensina: "devemos convir que não há caçador do invisível. Dá flechadas para o alto como se mirasse coisa mais difícil de se fazer, mas duvidosa de se alcançar, ou mais absurdamente o céu. Quem tem coragem de mirar para cima quando perigosa de se manejar do que ser o introdutor de uma nova ordem" o alvo está a frente? Por receio ou ignorância, nossos políticos (O cap. VI). De onde nasce essa dificuldade? Maquiavel rendem-se ao "realismo pragmatista" e, com isso, ficam eternamente distingue duas fontes. Uma está na resistência que oferecem aqueles a desenvolver a política do "feijão com arroz", a resolver os que eram privilegiados pelas antigas leis, pelas velhas formas de problemas menores e imediatos sem imprimir real mudança e dar ação, pelas antigas iniciativas dos governantes, enfim, "todos rumo à ação. Quer dizer, salvo raras e honrosas somos aqueles que se beneficiavam com a antiga ordem" (O Principe governados pelos mediocres. Somente eles se contentam com o cap. VI). imediato, se satisfazem em percorrer os caminhos já conhecidos No entanto, as dificuldades não estão somente nos do labirinto. E o imediato tem o gosto do aplauso fácil. Míopes adversários. É evidente que aqueles que perderam o controle do são capazes de mirar e acertar distâncias curtas. Já mirar alvos poder verão em todas as iniciativas novas uma ameaça aos longínquos exige visão, perspicácia, sabedoria. Será que é demais privilégios que usufruíram enquanto comandavam. Resistem exigir isso de nossos dirigentes políticos? também às mudanças aqueles que, a princípio, poderiam beneficiar- se com a nova ordem. A razão da relutância destes está no fato de 6 Vencer é fácil, difícil é mudar desconfiarem da competência e correção do novo governante. Quando a oposição passa a governar, carrega consigo uma enorme "O desejo de conquistar é efetivamente algo muito natural expectativa de mudança: afinal, foi a promessa de transformações e comum" (O cap. III). Com essa frase Maquiavel resume radicais que proporcionou sua ascensão ao poder. Contudo, explica a explicação de um fenômeno conhecido desde que o homem Maquiavel, "os homens só creem na verdade das coisas novas passou a viver em grupo: o desejo de poder faz parte da natureza depois de comprovadas por uma firme experiência" (O Principe humana. Por esse motivo, continua o florentino, "as vezes em cap. VI). Se, enquanto oposição, bastavam palavras para receber que aqueles homens que são capazes realizam esse desejo, merecem aplausos, agora é preciso ação. Embora todo novo governante ser louvados e não criticados" (O Principe cap. III). prometa operar "mudanças profundas" antes de assumir o cargo, Isso permite compreender porque aqueles que estão alijados depois da posse geralmente limita-se a maquiar. É, por isso, do controle do poder canalizam todas as suas energias na formulação justificada a desconfiança do povo em relação à rotatividade no da melhor estratégia para conquistá-lo. Quando, finalmente, chega a comando político: nada mais parecido a um oposicionista do que oportunidade, geralmente repetem no cargo os mesmos erros que um governista no poder. criticaram enquanto militaram na oposição. Aqui, novamente, Por tudo isso, aquele dirigente cujo propósito é introduzir Maquiavel vem em nosso socorro para nos ajudar a perceber que uma nova ordem encontra-se só. De um lado, os setores a dificuldade maior não está na conquista do poder, mas na sua politicamente aliados que, a princípio, poderiam apoiá-lo, estão 66 67</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames reticentes com as novas propostas devido às experiências frustrantes Giuliano della Rovere. Para obter os votos dos cardeais espanhóis vividas com os governantes anteriores. De outro lado, os novos ligados aos Borgia, o cardeal prometeu ao duque que, se eleito adversários se valem da situação para mostrar que não houve nem papa, o tornaria chefe geral dos territórios da Igreja. César Borgia haverá qualquer mudança substantiva, mas que tudo se resumirá a acreditou nas promessas do cardeal e tudo fez para elegê-lo. Uma uma mera troca de favorecidos. vez no poder, o papa della Rovere (papa Júlio II) rasgou suas Nesta situação, ensina Maquiavel, o governante que promessas e perseguiu o duque, que perdeu todos os seus domínios conquistou o poder contrariando as forças ativas da sociedade estará e riqueza e foi obrigado a refugiar-se na Espanha, onde foi morto perdido se não criar um consenso efetivo e imediato que alimente sem glória. episódio permitiu que Maquiavel confirmasse a "regra a confiança. Além de conservar os amigos que permitiram sua geral da política que raramente falha": "Engana-se quem crê que, ascensão, precisa conquistar os céticos e desmoralizar os nos grandes personagens, os benefícios novos fazem esquecer as adversários. Precisa convencer os cidadãos de que as novas ordens velhas injúrias" (O Principe cap. VII). que pretende introduzir não criam novos favorecidos, mas realizam A análise de Maquiavel acerca ações levadas a efeito por uma justiça equitativa. Numa frase: precisa dar conta com ações César Borgia alerta para a necessidade da prudência na formação da expectativa que alimentou enquanto militava na oposição. das alianças operadas pelos dirigentes. A estratégia de cooptação dos adversários deve considerar a correlação de forças: quando 7 Favores novos não eliminam males antigos ela é levada a efeito por aquele que está em posição desfavorável, que era o caso do duque no exemplo citado, é desastrosa. modo curso da ação política oferece situações nas quais o de agir do papa eleito explica o motivo: o rancor contido e governante, desejoso de ampliar seu leque de alianças para dissimulado somente aguarda a ocasião favorável para a sua fortalecer sua base de apoio e garantir-se no poder, aproxima-se manifestação. governante inteligente e hábil aproxima-se de seus de seus piores adversários com o objetivo de cooptá-los. Imagina inimigos políticos apenas quando está em vantagem, pois nesta que, se os cumular de benefícios cargos, privilégios, distinções, situação, ao atrai-los para o círculo do poder, anula o poder de facilidades conquistará o apoio incondicional dos mesmos ao ação destes ao mesmo tempo em que amplia o seu. Em outras seu governo. Contrapondo-se a isso, Maquiavel ensina que palavras: o governante traz a cobra para dentro de seu próprio semelhante estratégia política cai no erro de pensar que é possível ninho com a finalidade de melhor controlar seus movimentos. comprar a lealdade de adversários com benefícios. Por mais favores A consideração sobre o modo de tratar os opositores que recebam, alerta ele, jamais considerarão reparados os males revela toda importância da astúcia por parte do dirigente político. antigos dos quais se consideram vítimas e, por isso, nunca serão A governabilidade exige a formação de maioria favorável. Como gratos àquele que os auxiliou. Esta tese é ilustrada por Maquiavel dificilmente isso é alcançado contando unicamente com os quadros com as ações levadas a efeito pelo duque César Borgia, filho do de seu partido, precisa buscar a maioria de coalizão, aquela que papa Alexandre VI, durante o conclave convocado para escolher o resulta da atração dos grupos fora de seu partido e que poderiam, sucessor de seu pai ao papado. Vamos fazer um breve resumo eventualmente, fazer-lhe oposição. Na formação dessa base de destes acontecimentos. apoio, Maquiavel ensina que o governante não pode confiar A família Borgia, de origem espanhola e à qual pertencia naqueles que foram prejudicados em algum momento de suas vidas o papa Alexandre VI, tinha como inimigo declarado o cardeal italiano por sua ação. Quando menos espera, o rancor dissimulado destes 68 69</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames se voltará com toda força contra aquele que os encheu de benefícios certo ódio contra ele, quis mostrar que, se ocorrera alguma pensando em conquistá-los. Em outras palavras: é possível distrair crueldade, ela não se originara dele, mas da natureza dura do a cobra, mas é tolice pensar que se pode evitar o seu bote. ministro [Ramiro de Orco]. Aproveitando-se da ocasião, certa governante não deve ter ilusões acerca dos grupos políticos que o manhã mandou que o cortassem ao meio em praça pública, tendo apoiam: como cobras, vivem unicamente na espreita do momento ao lado um bastão de madeira e uma faca ensanguentada. A mais oportuno para lançar seu ataque. ferocidade daquele espetáculo fez o povo ficar, ao mesmo tempo, satisfeito e atônito" (O Principe cap. VII). 8 bode expiatório na política O relato fala por si: para trazer de volta a paz e fundar a ordem numa região entregue ao banditismo, o chefe cruel e eficaz É conhecido o ritual bíblico, descrito no Antigo satisfaz às necessidades. Quando, porém, a paz já está estabelecida, Testamento, da expiação da culpa humana por um animal. É dali um sábio presidente de um Tribunal civil substitui com vantagem que deriva a expressão "bode expiatório": uma vítima inocente o homem cruel e eficaz. Como sua crueldade certamente provocou redime do mal os verdadeiros culpados. Em nenhuma outra prática inimizades, o ideal é sacrificá-lo à ira popular de modo que o duque humana é mais frequente este recurso do que na política. Para pareça inocente em relação às maldades cometidas em seu nome. compreender como funciona, servimo-nos de um fato histórico do Podemos horrorizar-nos pela maneira fria e início do século XVI descrito por Maquiavel: a execução à morte desapaixonada com a qual Maquiavel descreve o modo de proceder de um ministro de César Borgia para garantir seus domínios na de César Borgia e até questionar-nos se basta que uma medida Itália central. seja eficaz para estar autorizado a utilizá-la. Certamente nos duque César Borgia, após haver ocupado a Romanha, repugnam meios como a tortura e morte utilizados por César Borgia descobriu que esta estava "sob o comando de pequenos senhores para manter o poder, pois ainda estão vivas na nossa memória as sem poder, que mais espoliavam do que governavam os seus tristes lembranças da ditadura militar. Contudo, se deixarmos por súditos. [...] Dado que a província estava coberta de latrocínios, ora de lado as questões morais implicadas no uso deste tipo de tumultos e todas as formas possíveis de insolência, julgou o duque meios, podemos extrair desta lição a chave de compreensão da necessário, para pacificá-la e reduzi-la à obediência ao braço régio, ação do dirigente político de todos os tempos: ele se serve dos dar-lhe um bom governo. Colocou ali Ramiro de Orco, homem seus auxiliares de acordo com suas habilidades e se desfaz deles cruel e diligente, a quem conferiu plenos poderes. Em pouco tempo, com a mesma naturalidade com que os contratou. Embora hoje a Orco a pacificou e uniu, granjeando grande reputação. A seguir, o eliminação física apareça como odiosa e seja condenada duque julgou desnecessária tão excessiva autoridade [...] e propôs criminalmente, a política instituiu uma espécie de "morte a instalação de um tribunal civil na província, com um o governante aniquila politicamente aqueles auxiliares que lhe são excelentíssimo presidente, onde todas as cidades teriam um incômodos ao "fritá-los" junto à opinião pública. Procurando advogado próprio" (O Principe cap. VII). Qual foi a recompensa isentar-se dos erros de seu governo, descarrega nos seus auxiliares merecida por este fiel e eficiente servidor em troca de sua dedicação a responsabilidade pelos fracassos e os entrega à ira popular. A e lealdade? estratégia é exatamente a mesma do que a descrita por Maquiavel É aqui que a ideia de "bode expiatório" se esclarece. no caso de César Borgia e seu ministro: hoje como ontem a catarse César Borgia, "sabendo que os rigores passados haviam gerado dá espaço à escolha de novos auxiliares. Hoje como ontem todos 70 71</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames aplaudem a execração pública do servidor em desgraça. Hoje como E qual "cálculo" fazem aqueles que não pagam, apesar dessas ontem a política vive de "bodes expiatórios". E a roda continua penalidades? Estes fazem outra conta: que não cairão na "malha girando... até a próxima vítima! fina" da Receita; que, se negociarão; que ninguém é condenado por sonegação fiscal; que, se houver condenação, será 9 Sem a força a lei é vazia possível recorrer à justiça, etc. Este tipo de homens, literalmente, ver". que permite a um governante realizar as metas a que As leis refreiam, contêm ou corrigem a disposição se propõe? Para Maquiavel, o é impossível sem o apoio da malévola dos homens. Por meio delas as pessoas realizam ações população. Veremos agora que Maquiavel se coloca uma questão boas por medo do castigo. Isto é, as leis só têm eficácia por causa nova: por que as pessoas cooperam? Na resposta, o florentino da força. É preciso esclarecer, porém, que a força da qual Maquiavel inverte a posição tradicionalmente defendida pelo cristianismo. Com fala não é algo ostensivamente usado, mas uma ação coercitiva efeito, para o pensamento cristão existe uma finalidade que a que todos sabem que podem sofrer em determinadas circunstâncias, vontade humana realiza movida por um impulso natural, possível ainda que jamais sintam concretamente seu peso. simples receio de ser atingida e desfrutada antes da bem-aventurança eterna: o diante de seu emprego basta para ordenar o comportamento dos bem-comum. Maquiavel rompe esse elo entre natureza e fim: o homens. bem-comum continua o objetivo da vida coletiva, mas os homens Para Maquiavel quem constrói seu poder prescindindo já não o atingem naturalmente. Os impulsos humanos não são da força ignora uma "regra geral" da política: "todos os profetas cooperativos, mas antissociais: egoístas, ambiciosos, invejosos, armados vencem, enquanto os desarmados fracassam" (O traiçoeiros, vingativos. Isto é, se os homens pudessem fazer tudo cap. VI). Seria preferível se todos cumprissem a lei o que desejam, reinaria a desordem. Se há ordem, é porque o espontaneamente. Contudo, alerta, "convém estar organizado de desejo dos homens foi domado. Quem controla o desejo humano modo que, quando não acreditarem mais, seja possível fazê-los é a lei e a força: "os principais fundamentos de todos os Estados crer à força" (O cap. VI). A força precisa ficar como um (...) são boas leis e boas armas", ensina Maquiavel (O Principe recurso do qual o governante pode valer-se a qualquer momento. cap. XII). A "força da lei" está, em última instância, na força. Isto é, a lei Os homens substituíram, pois, a competição violenta pela sem a força é como uma bolha de sabão. A lei não acaba com a colaboração pacífica em virtude de uma coerção externa e não violência. Apenas a disfarça. porque se convenceram da superioridade da cooperação em relação aos impulsos Assim, se os homens cumprem as leis 10 pior mal é aquele que nunca acaba espontaneamente não é porque consideram isso um valor moral. Na verdade, pondera Maquiavel, as pessoas se perguntam: o que Todo aquele que assume o poder defronta-se com um pode me acontecer se eu não cumprir a lei? Por exemplo: a lei conjunto de tarefas ingratas. Primeiramente, precisa afastar de seus manda que eu faça anualmente a declaração de meus rendimentos cargos os indivíduos que representaram os interesses dos antigos e pague o imposto devido. Por que faço isso? Porque considero governantes. A decisão de afastá-los geralmente é recebida pela que é mais vantajoso pagar o imposto em dia do que pagá-lo com sociedade como se fosse uma atitude revanchista: pessoas multa ou até mesmo ser condenado à prisão por sonegação fiscal. consideradas "altamente competentes e idôneas" estariam sendo 72 73</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames perseguidas unicamente por pertencerem à outra facção política. vale das demais medidas: tudo o que desagrada deve ser feito de Dada a tendência humana de solidarizar-se com aqueles que são um só golpe e não gradativamente para que seus efeitos não "vítimas", muitas vezes até mesmo os que apoiaram a mudança perdurem durante todo seu governo. Uma vez consumadas, haverá de governo tendem a defender os que estão sendo desalojados de tempo suficiente para recuperar a imagem de governo justo. seus postos. Quanto aos benefícios, estes podem e até devem vir a Além desta tarefa, outras igualmente ingratas apresentam- conta-gotas: eles "devem ser feitos pouco a pouco, para serem se ao novo governante: muitas vezes precisa suprimir serviços melhor apreciados" (O Principe cap. VIII). Aquilo que agrada anteriormente prestados, seja porque não há recursos disponíveis deve ser amplamente anunciado de modo que resultem em amplo para bancá-los, seja porque contrariam as novas propostas de apoio ao governante. Maquiavel sugere inclusive que todas as governo; precisa aumentar impostos ou mudar a sistemática de medidas desagradáveis sejam anunciadas por seus auxiliares, ao sua arrecadação; deve alterar procedimentos administrativos para passo que as agradáveis pelo próprio dirigente. Qualquer conformá-los às políticas propugnadas na campanha. Todos esses semelhança eventos geram insegurança e muitas vezes um elevado grau de insatisfação popular. 11 A injustiça pode dar poder, mas jamais glória A questão é: quando e de que modo implementar tais mudanças? Deve o governante dosá-las ou implementá-las de forma Muitas vezes ouvimos de políticos a frase, segundo eles radical? Neste particular novamente Maquiavel vem em nosso extraída de Maquiavel: "os fins justificam os meios". Não se socorro: os piores males, explica ele, "são aqueles que, ainda que encontra, no entanto, em parte alguma de sua obra esta máxima, de início sejam poucos, crescem com o tempo, ao invés de se cunhada durante a contrarreforma católica para denegri-lo. extinguirem" (O Principe cap. VIII). Por esse motivo, continua o A história mostra que os políticos sempre procuraram pensador, o governante "realizar todas as injúrias de uma só vez e um modo de justificar as atrocidades, a fraude, a mentira, o não renová-las todos os dias [...] a fim de que, tomando-se menos descumprimento da lei, o autoritarismo. Disso não escapou sequer o seu gosto, ofendam menos" (O cap. VIII). A linguagem Moisés, que mandou massacrar milhares de inocentes porque de Maquiavel é clara: o remédio de gosto ruim deve ser tomado de contestavam sua autoridade sob o argumento de que Deus exigia um só gole, ao passo que o licor delicioso é sorvido aos poucos um povo fiel (Ex 32,25 -29). Maquiavel recorda este tipo de para prolongar seu sabor... Quer dizer, tudo o que tiver de ser feito exemplos históricos, mas o faz não para ensinar como os homens de desagradável e impopular precisa ser realizado no começo do deveriam agir, e sim para descrever o modo como os políticos governo. É evidente que tais medidas geram conflito, mas como realmente agem. não é possível evitá-lo, sua postergação só ajuda os adversários. E Na verdade, diz Maquiavel, os governantes cometem o governante que contribui para o fortalecimento de sua oposição as piores barbaridades, mas não querem que os cidadãos os tem um destino conhecido por antecipação: está arruinado! condenem por isso. Por isso, enfeitam estas ações com a o governante, quando assume o poder, deve "extinguir justificativa de que foram imprescindíveis para o bem-estar e a a dinastia do príncipe que o antecedeu" (O Principe III). Quer salvação de todos! Em vez de recomendar este modo de agir, dizer, não pode deixar ninguém da confiança de seu antecessor em Maquiavel denuncia: "não se pode propriamente chamar de virtude seu posto. Precisa eliminar toda lembrança do antigo governo e o fato de assassinar seus trair os amigos, não ter fé, deve fazê-lo de uma só vez, para não dar tempo a estas pessoas de piedade, nem Deste modo pode-se adquirir poder, mas se articularem e o governante ver seu poder enfraquecido. mesmo não glória" (O Principe cap. VIII). 74 75</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames A bem da verdade, o que assistimos são figuras políticas dirigente é mandar sozinho. Como isso (felizmente), em geral, não que omitem informações ao povo; desviam verbas das finalidades é possível, procura reduzir ao mínimo a influência dos opositores. a que estavam destinadas; se locupletam no exercício de seus Como conseguir isso? Maquiavel formula uma regrinha: para cargos; criam leis para favorecer a si próprios; empregam seus comandar despreocupado, "basta evitar a transgressão dos costumes parentes nos melhores cargos para encobrir suas maracutaias; tradicionais e saber adaptar-se às circunstâncias imprevistas" (O castigam o povo com impostos cada vez mais escorchantes. Enfim, cap. II). Se o governante resistir à tentação de mudar, usam e abusam da paciência do povo. Quando são descobertos e nada e ninguém o incomodará no cargo! denunciados e não têm como justificar-se, recorrem à máxima Acontece que todo mandatário se imagina incumbido de acima enunciada: "os fins justificam os meios"! Quer dizer, atrás uma missão. Como qualquer missionário, se considera encarregado de tudo isso que fizeram estaria um objetivo nobre e elevado: o de uma tarefa sagrada. Ele não fala nem age em nome próprio. É bem-estar da coletividade. Com isso, emprestam à sua mediocridade tão somente um mensageiro. A autoridade de sua mensagem brota um ar de importância com o qual pensam encobrir sua daquele que lhe delegou a tarefa. No caso do governante, do povo incompetência e fracasso. que o elegeu. dirigente político, feito um missionário religioso, Não há dúvida de que, para Maquiavel, como ele próprio se considera encarregado de implantar mudanças. Quando as afirma, "não é possível governar Estados com Pais-Nossos" e que mudanças são implantadas, continua Maquiavel, o governante sofre é preciso entrar no mal para fazer política. É verdade também um novo susto: "não poderá manter a amizade dos que o ajudaram que, para ele, não existem meios a priori bons ou a priori maus. na conquista do poder, porque não lhe é possível satisfazer suas Só sabemos se eles são bons ou maus em função de seu resultado expectativas. Também não poderá aplicar medidas enérgicas contra prático e, portanto, apenas depois de levados a efeito. Contudo, estes últimos, devido às obrigações contraídas" (O Principe cap. bem e mal não se confundem e Maquiavel se preocupa em distinguir III). claramente a ação boa da má: enquanto a primeira visa o bem da Até aqui parece que a missão do governante está fadada coletividade, a segunda tem em mira unicamente a satisfação de ao fracasso. Por um lado, ninguém quer que ele mexa nos "costumes um bem particular. Por isso, a eficiência prática deve ter como tradicionais". De outro, sofre a oposição das próprias pessoas que objetivo o bem de todos e não unicamente o benefício individual. o ajudaram a alcançar o poder. Pior ainda: não pode agir contra Difícil é admitir que, por exemplo, opor obstáculos à investigação elas, porque elas conhecem os segredos da campanha. Maquiavel da corrupção ou acobertar fraudadores possam ter em mira o bem- sugere uma saída: buscar o apoio daqueles que eram contra sua estar da coletividade! A menos que essas pessoas imaginem sua ascensão ao cargo: "é muito mais fácil ganhar a amizade dos que importância tamanha que seus interesses próprios se confundam estavam satisfeitos com sua antiga situação e, portanto, eram com os da coletividade. inimigos, do que dos descontentes, que se aliaram ao príncipe ajudando-o a conquistar o poder" (O Principe cap. XX). 12 Ninguém ajuda a eleger alguém gratuitamente A lição vai no sentido de mostrar que ninguém ajuda a conquistar o poder de graça. Sempre tem interesses envolvidos. Todo governante que assume seu posto começa sua governante que não souber se livrar dessas pessoas, torna-se gestão com o problema: o que fazer para alcançar o máximo de prisioneiro delas. É esta impressão que nos deixam a maioria dos aliados e o mínimo de adversários? Na verdade, o sonho de todo dirigentes políticos. Parecem reféns de grupelhos. As decisões que 76 77</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames esses mandatários tomam podem não trazer o bem-estar de todos, (O cap. IX). o povo reconhece em quem o governa uma mas, com certeza, fazem a alegria de alguns. Seguissem a lição autoridade legítima à qual se submete. Os grandes, pelo contrário, de Maquiavel, se livrariam desses parasitas e confiariam naqueles consideram o governante "um dos seus" e não pretendem obedecer. que não têm coragem de cobrar nada, porque foram contrários à Maquiavel mostra com muita lucidez qual o objetivo das elites sua ascensão ao posto. quando escolhem um governante: querem alguém que os acoberte Os acontecimentos políticos da vida brasileira provam a em seus propósitos de acumulação. Querem que o governante cada novo mandato a verdade desta ideia de Maquiavel. Para lhes facilite o uso das estruturas do Estado em benefício próprio. chegarem ao posto, os eleitos vendem sua alma a determinados A verdade disso pode ser conferida cotidianamente no noticiário: grupos econômicos e políticos. Uma vez no poder, os planos devem licitações dirigidas que favorecem determinados grupos econômicos, adequar-se aos interesses destes grupos. Assim, seja da esquerda entre tantas outras formas de uso da máquina estatal, em proveito ou da direita, reproduzem a política de exclusão. próprio. Em relação aos poderosos, o dirigente não pode ter 13 "Quem constrói sobre o povo ilusões. "Como eles veem mais longe e são mais espertos, agem não constrói sobre o lodo" sempre oportunamente para salvar-se e em qualquer disputa ficam do lado de quem seja o vencedor" (O Principe cap. A frase é de Maquiavel. Para o florentino, a segurança e IX). Já em relação ao povo, pode contar com sua fidelidade desde a estabilidade de um governo são conferidas pelo povo. raciocínio que se mostre seu protetor. é o seguinte. Existem duas forças principais em todas as sociedades: A lição de Maquiavel parece clara. governante que os grandes e o povo. o governante pode apoiar-se sobre um ou deseja implementar mudanças significativas precisa tomar partido. outro desses grupos. o objetivo de cada um deles, porém, é lado mais seguro é o do povo. No entanto, o político pode completamente diferente. contar com ele apenas na medida em que não o decepciona. Por "Quando os grandes percebem que não podem resistir isso, precisa afastar-se claramente dos interesses dos grupos ao povo, exaltam a reputação de um dos seus e o tornam príncipe privilegiados da sociedade. para poder sob sua proteção desafogar seus desejos" (O Essa posição de Maquiavel diferencia-se claramente do cap. IX). Quer dizer, os poderosos veem no poder unicamente um instrumento para aumentar sua riqueza e influência. Por isso, diz conhecido populismo que ainda grassa em nosso meio. Esta praga Maquiavel, quem se ampara neles torna-se refém da sua ambição. da política brasileira consiste em utilizar-se do povo como montaria Os poderosos, continua o florentino, não respeitam o governante, para favorecer a ambição pessoal pelo poder. Para essa ideologia, porque "acreditam que são iguais a ele" (O Principe cap. IX). o povo não é fim. É mero instrumento manipulado a favor dos "O povo, também, vendo que não pode resistir aos interesses dos grupos de mando. povo pode não saber, mas grandes, aumenta a reputação e o prestígio de alguém e o faz sente quando é usado. Felizmente, nossa história pátria registra príncipe para ser defendido com sua autoridade" (O cap. também exemplos em que o povo apeou do poder esses falsos IX). povo espera do governante que ele o proteja da ambição salvadores que ofendem a memória política. Resta sempre a dos ricos. Seus objetivos são mais honestos: "enquanto os esperança de que a praga populista seja extinta pela convicção de poderosos querem oprimir, o povo deseja apenas evitar a opressão" que o bem de todos é fim, não meio. 78 79</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames 14 A oposição é a consciência crítica da situação discordância realizam uma obra que, além de ser inócua, só favorece a tirania. A oposição, além de inevitável, é salutar à própria situação, Para aqueles que acompanham a cena política é comum, pois é sua consciência crítica. e chega até a parecer óbvio, o elogio à harmonia e à união. que A segunda ideia ressalta o princípio de que o conflito mais se ouve é a defesa de uma sociedade harmônica, sem disputa não bom em si. Quando ele é deixado livre, sem controle, causa a de interesses em que todos os indivíduos e grupos convergem para quebra da ordem interna e pode até ameaçar a integridade da a consecução dos mesmos objetivos. Este discurso não brota apenas coletividade política. conflito, explica Maquiavel, precisa ser da boca dos dirigentes políticos, mas também de lideranças canalizado através de instituições capazes de dar vazão às vozes comunitárias e religiosas. É a tal ponto forte esta que discordantes no seio da totalidade. Se todos puderem dizer e fazer os indivíduos e grupos que defendem posições contrárias àquelas o que bem quiserem, se não houver limites à crítica e à desordem, dos grupos dominantes e/ou dirigentes, são execrados como inimigos ela se converte em calúnia, difamação e semeia a cisão da coletividade. Isso é particularmente verdadeiro quando descemos impunemente. Por isso, é preciso que o Estado institua mecanismos à arena política: a oposição é sempre qualificada pela situação legais que permitam a manifestação livre dentro de regras como aquela que impede a consecução dos objetivos maiores da institucionais. coletividade através de suas "manobras" e denúncias. Maquiavel A sociedade não é homogênea. Exigir que todos tem relativamente a isso uma posição inovadora. defendam os mesmos interesses é uniformizá-la. Só governos "Em todas as cidades, diz ele, encontramos dois partidos tirânicos ousam cometer tal atrocidade. Felizmente a história ensina antagônicos, que nascem do desejo do povo de evitar a opressão que todos eles sucumbem, infelizmente sem que os homens dos poderosos, e da tendência destes últimos para comandar e aprendam a lição de que o indicador e a garantia de governo oprimir o povo. Desses dois interesses que se surge uma duradouro e livre é a garantia da livre manifestação dos cidadãos. destas três consequências: o principado, a liberdade ou a desordem" A paz e a ordem sem oposição é a paz e a ordem de cemitério. (O Principecap. o inovador nesta posição consiste, em primeiro Uma sociedade em que os conflitos estão impedidos de manifestar- lugar, em reconhecer a irredutibilidade do conflito social, ou seja, se livremente é sinal de povo amordaçado e aniquilado naquilo a impossibilidade de haver qualquer homogeneização da sociedade que é mais digno do ser humano: a liberdade! por meio de um princípio ético ou religioso, motor de todas as nossas ações. Em segundo lugar, em acreditar que esses conflitos, 15 A história é como trem sobre trilhos causa de todos os males sociais quando entregues a si, possam ser ou como pêndulo de relógio? solucionados de uma vez para sempre. A primeira ideia ressalta o fato de o conflito ser inerente Para onde caminha a humanidade? A observação da à condição humana. Ele deita raízes em última instância na natureza história nos autoriza a acreditar que nos aguarda um futuro radiante, dos homens, "ingratos, instáveis, simuladores e dissimuladores, ou nos espera a destruição total? Conhecemos os defensores de medrosos, avarentos [...], maus e infiéis" (O Principecap. XVII). cada uma destas teorias. Maquiavel não compartilha com nenhuma Dado que é impossível extirpar tal tendência humana, a constatação delas. da existência de conflitos é indicador de governo livre. Governantes Para Maquiavel, a história nos ensina que passamos de e lideranças que usam de seu poder e influência para suprimir a formas de organização políticas justas para injustas e destas para 80 81</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames justas novamente. A história não anda sobre trilhos. Não funciona boas, mas também jamais desesperar quando estão más. Não há como trem que só vai numa direção; não é progressiva. Ela é bem que sempre dure, nem mal que não passe. como o pêndulo de um relógio: vai de um lado a outro, do bem ao mal e do mal ao bem, sem fixar-se jamais. que explica esse 16 A utopia é o ópio do povo funcionamento da história? Segundo o ilustre florentino, o motivo de tudo está na Quem já não se deixou encantar por um ideal? Os mestres forma como a sociedade se organiza. Explica ele que "existem em em oferecê-lo são os políticos e os religiosos. A diferença entre todas as cidades dois partidos antagônicos que nascem do seguinte ambos é que, para os primeiros, este ideal um dia acontecerá neste fato: o povo não deseja ser comandado nem oprimido pelos grandes mundo ao passo que, para os últimos, será usufruído pelos justos ao passo que estes desejam comandar e oprimir o povo" (O somente depois da morte. Este ideal é conhecido na literatura Principe cap. IX). Esta oposição não é necessariamente má. Graças política por "utopia". a ela, surgem leis e instituições que favorecem o bem-estar de que é uma utopia? É um pensamento que tem por todos. Disso não se pode concluir, porém, que a discórdia seja boa objeto uma realidade futura que funciona ao mesmo tempo como em si mesma. Toda sociedade supõe certa concórdia. Esta, no valor e como verdade. Quer dizer, toma um ideal como sinônimo entanto, não pode ser adquirida à custa de instituições que do bem e do justo (e, por isso, é a única coisa que realmente vale) mascaram a divisão dos desejos. ao mesmo tempo em que toma este ideal como o verdadeiro mundo problema é, pois, este: por um lado, toda sociedade em oposição ao existente tido por falso, aparente e passageiro. política é marcada pela divisão. Por outro lado, ela somente pensamento utópico acredita na existência objetiva de um ideal sobrevive na medida em que supera a divisão. Todo segredo da que vale mais e é melhor do que a realidade presente. Ser idealista engenharia política está em dar vazão ao conflito no interior do Estado, é julgar aquilo que é (o real) em nome do que não é (o ideal). Por não em sufocá-lo. Mesmo no melhor dos regimes, a igualdade de exemplo, a utopia da "sociedade sem classes" para os comunistas todos perante a lei é apenas formal. Concretamente, os homens são ou do "reino de Deus" para os cristãos é usado para avaliar a sociedade existente. desiguais: uma minoria, os poderosos, quer dominar e uma maioria, o No caso da política (deixemos as religiões povo, resiste. Somente devido ao temor que o povo inspira é que os momentaneamente de lado), qual a consequência do pensamento poderosos fazem concessões. Quanto mais ostensivamente o povo utópico? Maquiavel responde: "muitos imaginaram repúblicas e resiste, tanto mais agudo é o conflito. Contudo, e paradoxalmente, principados que jamais foram vistos e que nem se sabe se existiram tanto maiores serão as chances de nascerem leis e instituições favoráveis na verdade. De fato, há tamanha distância entre como se vive e à concórdia. Para Maquiavel, o desejo dos poderosos somente como se deveria viver, que aquele que troca o que se faz por pode ser detido pela resistência do povo. aquilo que se deveria fazer aprende antes sua ruína do que sua que parece pessimismo é na verdade uma visão lúcida preservação" (O cap. XV). da história. Oscilamos entre formas livres e tirânicas de governo. que levou Maquiavel a pensar desta maneira? Acontece Acreditar que é possível acabar definitivamente com toda que, quando acreditamos numa utopia, somente o futuro é possibilidade de tirania é um sonho perigoso. Além de ser falso, verdadeiro. Seremos todos felizes, mas somente amanhã! Nossa pois não há como saciar o desejo humano, leva ao surgimento de vida presente não passa de um sonho... ou um pesadelo. Com governos absolutistas como aqueles que a história registrou no efeito, quando os defensores do pensamento utópico tomam o leste europeu, para não falar dos que sobrevivem na América... poder, a invocação da sociedade por vir se torna não mais a Maquiavel é mais lúcido: nunca se iludir quando as coisas estão condenação, mas a desculpa e a justificação da sociedade presente. 82 83</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames Assim, podem ouvir-se as clássicas consolações: "agora ilude-se quem pensa atender a todos ao não escolher nenhum. É vocês sofrem, mas serão felizes"; "há erros, mas eles serão esta lição que Maquiavel ensina com a regra geral acerca da posição superados pela verdade futura"; "há crimes, mas eles preparam a adotada por certos dirigentes para alcançar êxito na ação política: justiça de "há repressão, mas é a única maneira de trazer "os príncipes irresolutos que, para fugir dos perigos imediatos, a liberdade vindoura". Como a utopia está por vir, é preciso suportar geralmente seguem a via da neutralidade, quase sempre se pacientemente os sofrimentos que o merecem e o anunciam. Tudo arruínam" (O Principe cap. XXI). o que acontece agora é justificado, santificado, anulado. Tudo Maquiavel tem clareza de que "um príncipe é estimado está bem, pois vai na direção do melhor. Todo aquele que se insurge quando é um verdadeiro amigo ou um verdadeiro inimigo, isto é, contra a crueldade, a injustiça, a opressão atual está no erro. Não quando, sem temor algum, declara-se a favor de um e contra outro" compreendem a grandeza do ideal futuro e as condições para (O Principe cap. XXI). E ele prossegue, explicando sua posição: realizá-lo. Nada que uma boa lavagem cerebral não resolva... "partido é sempre melhor do que se manter neutro, porque se dois alerta de Maquiavel é mais atual do que nunca: "quem poderosos vizinhos a ti entrarem em guerra e um deles vencer, das despreza o que se faz pelo que deveria fazer aprenderá antes sua duas uma: ou tens o que temer do vencedor, ou não. Em qualquer desgraça do que sua salvação" (O cap. XV). Em nome dessas alternativas, será sempre mais útil declarar-se e fazer jogo de um futuro radiante, livre dos males presentes, as pessoas limpo, pois no primeiro caso, se o príncipe não se manifestar, será sujeitam-se a qualquer atrocidade. A cada nova eleição, a grande sempre presa de quem vencer [...], uma vez que o vencedor não tentação é deixar-se embalar pelo sonho, suportando as promessas vai querer amigos suspeitos que não o ajudaram na adversidade ao postergadas sem prazo para se realizar. Aguardem, nos dizem, o passo que o perdedor te rejeitará porque não quiseste, com armas sofrimento de agora é necessário para preparar a felicidade de em punho, partilhar da sua sorte" (O cap. XXI). amanhã. Servindo-nos de uma das metáforas tão caras a certo Dado que é impossível conciliar sempre todos os presidente, poderíamos dizer: são os incômodos da gestação; depois interesses, é inevitável escolher um lado, isto é, fazer a opção por virão as dores do parto, as cólicas do bebê.. uma política que inevitavelmente contraria algum grupo ou até Votamos num sonho. Sonhos são ilusões. Existem mesmo setores dentro do próprio poder instituído. Maquiavel enquanto dormimos. Ao que parece, grande parte da sociedade, ensina que, sendo inevitável o confronto, quanto antes tomarmos alimentada por uma certa mídia conivente, continua dormindo: a decisão melhor será, pois quem decide iniciar o jogo determina continua o sonho de um país sem esfomeados, sem analfabetos; as diretrizes. o grupo ou os setores contrariados não terão tempo com casa, terra, emprego, acesso à saúde, à escola... Tivéssemos de armar uma contraestratégia evitando, deste modo, que se ouvido Maquiavel, teríamos evitado o sofrimento presente... e a fortaleçam e se organizem contra o poder instituído. desgraça futura. o governante bom e sábio não é aquele que evita o confronto e busca a via da composição e do acordo com todo 17 A virtude está nos extremos mundo e a qualquer preço, e sim aquele que é determinado na realização dos objetivos de seu projeto político e não teme escolher Vivemos numa sociedade de classes. Há ricos e pobres e um lado e contrariar outro para torná-lo possível. Quem quer agradar os interesses de uns e outros nem sempre coincidem a todos tende a ser que nem camaleão: pega a cor daqueles em necessariamente. Temendo contrariar um dos lados em conflito, quem se gruda. Quem se comporta assim não merece confiança e, 84 85</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames segundo Maquiavel, cava sua própria ruína, pois não tem a quem governante que corre para os braços do povo apenas recorrer na governante que só quer acomodar as na hora em que se vê abandonado pelos "grandes" não encontrará coisas acaba se acomodando. É nele apoio: "é preciso ter o povo como amigo, caso contrário o príncipe não encontrará remédio na adversidade" cap. 18 A verdadeira segurança está no povo IX), ensina Maquiavel. Tem o povo como amigo quem o torna um aliado. tem como inimigo quem o ludibria e faz o jogo dos Se o governante não pode contar nem com os adversários "grandes". E a pior coisa que pode acontecer a um governante é nem com os aliados, com quem governará? Maquiavel é sem ser hostilizado e abandonado por ele, pois, diz Maquiavel, "o povo ambiguidade na resposta: com o povo. A princípio, o povo apoiou lhe for favorável, o príncipe deve ter em pouca conta as a escolha do novo dirigente, porque "homens gostam de mudar de conspirações, mas quando este se tornar seu inimigo ou lhe tiver senhor, acreditando com isso melhorar" (O cap. III). ódio, deverá temer todas as coisas do mundo" (O cap. Num primeiro momento, o povo assume uma postura de espectador: XIX). poder do dirigente político é derivado, não próprio. Nem não oferece ao governante nem amizade, nem o hostiliza. Cabe ao a pior ditadura é capaz de sustentar-se por muito tempo quando se dirigente transformar essa passividade em adesão decidida. E ele opõe ao povo. Paradoxalmente, a força está nos fracos. pode contar com ela na medida em que não o decepciona, isto é, na medida em que consegue convencê-lo de que está atento aos 19 poder não deve ser transferido seus interesses, procura responder às suas necessidades e mostrar- se claramente afastado dos interesses dos grupos privilegiados da Para candidatar-se a um cargo de direção do poder sociedade. político não basta popularidade. governante, como líder político, Maquiavel deixa muito claro que é o povo quem torna deve ter e transmitir segurança nas suas políticas e forte um governante e que este tem tanto mais poder quanto mais demonstrar domínio das ações que pretende empreender. Aquele poder transfere a ele. Nesta situação, o povo apoia o governante que necessita a todo momento que seus auxiliares lhe digam o que não porque o teme, e sim porque está convencido de que sua sorte dizer e fazer revela sua fraqueza e se mostra incapaz de alcançar depende da dele. Quando transfere uma parcela de seu poder de os objetivos de seu governo. decisão, o governante constrói as bases seguras de seu governo, Falando da ação militar, Maquiavel ensina que o explica Maquiavel: "a melhor fortaleza que existe é não ser odiado governante deve evitar as forças mercenárias e auxiliares, porque pelo povo" (O cap. XX). estas estão interessadas unicamente no soldo "que é insuficiente Certamente, para que o povo seja "a melhor fortaleza" é para motivá-las a morrer por ti" cap. XII). Com esse preciso que sua participação na estrutura do poder aconteça através tipo de forças, explica Maquiavel, "perdem, és derrotado junto de mecanismos institucionalizados. Não basta uma participação com elas e, quando vencem, te aprisionam" (O Principe cap. XIII). eventual. É necessário criar instrumentos permanentes de acesso Transportando isso para o terreno da ação política, ao poder, pois o povo sabe discernir perfeitamente envolvimento e podemos extrair uma lição muito útil e atual. Um dirigente, para manipulação de participação efetiva nas decisões. Tem muita levar a efeito determinada meta de governo, pode encarregar disso diferença chamar o povo para apenas confirmar uma decisão ou pessoas descomprometidas com a comunidade e que a realizarão convocá-lo para tomá-la. unicamente pelo dinheiro que receberão. Tal como numa guerra, 86 87</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames essas "forças auxiliares" fugirão ao primeiro obstáculo. São os preocupação pelos resultados não vinha ao caso, e sim a pureza das famosos "tecnocratas" contratados a peso de ouro para desenvolver intenções e a coerência da intenção em relação à ação. Desta maneira, ações geralmente distantes das reais necessidades da população. E o fim coincidia com o meio. Isto é, partia-se do pressuposto de que Maquiavel acrescenta uma consequência muito ilustrativa: quando o bem só pode gerar o bem e o mal só pode dar origem ao mal. essas "forças auxiliares" fracassam, o governante fracassa com Devemos a Maquiavel a primeira, talvez a melhor, elas. Quando, porém, obtêm o dirigente torna-se dependente formulação da necessidade de, na ação política, levar em conta a delas, do mesmo modo como aqueles que contratam tecnocratas, aparência e os resultados em lugar das intenções e pois dominam com exclusividade a informação que tornou possível subjetivas dominantes no plano privado. E Maquiavel o fez numa alcançar o resultado almejado repassando-a somente em troca de formulação que lhe valeu o ódio e a má-reputação até os dias de mais dinheiro ou favores. hoje. A fórmula é a seguinte: "A um portanto, não é A propósito da equipe de governo, confirma-se necessário ter de fato todas as qualidades supracitadas, mas é indispensável parecer tê-las. Aliás, ousarei dizer que, se as tiver e plenamente o adágio popular: Diga-me com quem andas e te direi utilizar sempre, serão danosas, enquanto, se parecer tê-las, serão quem és. Pela qualidade da equipe de governo é possível avaliar a úteis" (O Principe cap. XVIII). do governante, explica Maquiavel: "estes homens forem Se nos limitarmos à leitura da passagem citada sem competentes e fiéis, o príncipe poderá ser reputado sábio [...]; considerar o que se segue imediatamente, só podemos ter de quando, porém, não são assim, se pode fazer mau juízo do Maquiavel a imagem de "mestre do mal", como dizia Leo Strauss, governante, pois cometeu seu primeiro erro nesta escolha" (O ou "professor do Diabo", como defendia o cardeal inglês Reginald Principe cap. XXII). Como um dirigente pode saber se escolheu a Pole. Quando nos atemos estritamente a este texto, o político é pessoa certa para auxiliá-lo? Segundo Maquiavel, há "um modo um farsante, um sujeito que encena virtudes que não possui para infalível" de descobri-lo: "vês que um ministro pensa mais em si enganar os cidadãos. Seria até pertinente a qualificação de imoral mesmo do que em ti e, em todas as ações, busca primeiro o seu ou ao menos amoral atribuída ao seu pensamento. próprio benefício, jamais será um bom ministro, e nunca poderás A falsidade da interpretação fica clara com a simples confiar nele" (O Principe cap. XXII). Isso tudo evidencia "regra leitura da sequência da passagem citada: "Assim, deves parecer geral que não falha jamais: se um príncipe não for sábio por si clemente, fiel, humano, íntegro, religioso e sê-lo, mas com a mesmo, não poderá ser bem aconselhado" (O cap. XXIII). condição de estares com o ânimo disposto a, quando necessário, A pior desgraça que pode acontecer a um povo é ele mesmo dar- não o seres, de modo que possas e saibas como tornar-te o se por governantes pessoas privadas de sabedoria. contrário" (O Principe cap. XVIII). Maquiavel diz com todas as letras que príncipe deve parecer e ser virtuoso e não que deva 20 Ser e parecer ou a dissimulação na política apenas parecer. A exigência de parecer não o dispensa de ser virtuoso, mas se acrescenta a ela. Trata-se de uma exigência Durante dois mil anos, dos gregos até Maquiavel, a adicional para aquele que age na cena política em relação ao que se exige do homem comum. filosofia política insistiu nas virtudes de um príncipe como A conclusão do parágrafo em pauta reforça a mesma qualidades permanentes de um caráter reto. Um bom príncipe era ideia: "[O Príncipe] precisa, portanto, ter o espírito preparado para um príncipe bom. Segundo essa ética, "o que deve ser" era algo voltar-se para onde lhe ordenarem os ventos da fortuna e as anterior e fundante em relação a "o que devo fazer". Assim, a variações das coisas e, como disse acima, não se afastar do bem, 88 89</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames mas saber entrar no mal, se necessário" cap. Estado à falência e, com ele, o bem-estar da coletividade, ainda Aquele que age politicamente deve manter-se fiel aos princípios que todos os seus atos estejam em conformidade com a ética das éticos: ele deve não se afastar do bem, alerta Maquiavel. Os valores virtudes. A exigência de parecer se impõe como uma necessidade morais não ficam, de forma alguma, suspensos a partir do momento política de construção da imagem. Não pode ser interpretada de em que se entra no universo da ação política. No plano da vida forma alguma como mera representação, como pura encenação. privada como da vida pública estamos submetidos à exigência de Muito antes, como uma atitude deliberada e consciente de agir com bondade. evidenciar o caráter virtuoso de que estão revestidas as ações Embora ação política não esteja dispensada da exigência praticadas. do cumprimento das virtudes éticas, pode haver momentos em segundo motivo vincula-se à necessidade de o príncipe que aquele que atua neste universo veja-se na situação de ter de não se deixar determinar em suas ações de forma unilateral e escolher entre a fidelidade aos princípios éticos e a obrigação de absoluta por virtudes, mas também não por vícios. Quer dizer, o responder pelas consequências de suas decisões. Maquiavel tem clareza quanto a esta questão. Ainda que o príncipe deva ser bom, sujeito político deve ter em vista as consequências previsíveis de ou então, deva não se afastar do bem, deve ser capaz de entrar suas ações e decidir conforme estas e não segundo suas inclinações, no mal se necessário. Na formulação weberiana, a fidelidade à seja para o bem, seja para o mal. Em outras palavras, o homem ética dos princípios não pode impedir o príncipe de tomar decisões político deve preocupar-se com o significado público de suas ações, que a violem quando as circunstâncias o exigirem. Por exemplo, com a imagem que os cidadãos fazem delas. Aquele que só matar é uma ação que contraria a exigência maquiaveliana de ser consegue decidir segundo suas convicções internas pode levar a bom (ou a ética dos princípios de Weber). No entanto, quando resultados que parecerão o contrário do intencionado pelo autor um terrorista ameaça uma coletividade e a única forma de evitar delas. esta ameaça é a eliminação do terrorista, o príncipe não pode No fim das contas, Maquiavel mostra que o governante sacrificar a vida da coletividade unicamente para manter-se fiel deve simplesmente fazer o que deve ser feito para garantir o bem- aos seus princípios éticos que lhe proíbem de matar. Precisa, como estar e a segurança de todos sem olhar para os meios que emprega. diz Maquiavel, "saber entrar no mal", mas sem se tornar mau. Os meios em si mesmos não são nem bons nem maus. Serão bons Quais as razões pelas quais é exigido do homem político ou maus pelos resultados que produzirem. Uma faca é um o parecer? Fundamentalmente por dois motivos. Primeiro, porque instrumento (um meio) que serve para cortar. Ela não é boa nem o ser do príncipe é exterior. Ele é moldado pela aparência. Suas má. Pode ser boa, se for utilizada para cortar o alimento. Pode ser qualidades são aquelas que os súditos lhe atribuem: "todos os má se for empregada para ferir ou matar alguém. homens, especialmente os príncipes, por estarem em posição mais elevada, se fazem notar por certas qualidades que lhes trazem 21 Bem e mal dependem do resultado reputação ou louvor" (O cap. XV). modelo de príncipe está, pois, na mente dos súditos. Esse modelo é constituído de virtudes. príncipe que age de modo manifestamente contrário Qual é o dever do político? Para que fim deve tender ao ideal de bem que o súdito quer ver espelhado no seu soberano sua conduta? Que direção deverá dar à vida da coletividade? Quais provoca sua própria queda. Podemos dizer então que o governante regras adotarão o cidadão em geral e o dirigente? As normas para que não se preocupa com a interpretação pública de seus atos, o agir político são e devem ser diferentes das normas para o agir com aquilo que eles parecem aos olhos das pessoas, pode levar o comum? bem para o qual deve olhar o governante pode ser o 90 91</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames mesmo que deve ser visado pelo o cidadão comum? Maquiavel Somente é possível saber se o resultado de uma ação é posiciona-se do seguinte modo diante destes questionamentos: bom ou mau depois de desenvolvida. Por isso, o governante que "Todos reconhecem o quanto é louvável que um príncipe mantenha se deixa inibir por suas morais internas pode prejudicar a palavra empenhada e viva com integridade e não com astúcia. a consecução do bem público. Pode acontecer que determinada Entretanto, a experiência nos mostra que, nos nossos tempos, ação viole a moral do cidadão comum e mesmo assim deva ser aqueles príncipes que tiveram em pouca conta a palavra dada levada a efeito pelo governante. Noutra ocasião, algo que é justo fizeram grandes coisas e souberam, com astúcia, mudar a mente para a consciência moral em geral e que, se levado a efeito, pode dos homens superando, enfim, aqueles que se pautaram pela produzir efeitos contrários ao bem coletivo. Assim, ensina lealdade" (O cap. XVIII). A chave de tudo está na Maquiavel, "se examinarmos tudo muito bem, encontraremos expressão "grandes coisas": na ação política não contam os alguma coisa que parecerá bom sendo praticada, levaria à ruína; princípios, e sim as "grandes coisas", os resultados. Quais enquanto outra que parecerá vício, mas quem a praticar poderá resultados, qual bem deve visar o governante? Maquiavel não tem alcançar segurança e bem-estar" (O Principe cap. XV). dúvidas de que é a sobrevivência do corpo político. Como a O "teste" do bem político é, pois, o ou a eficiência coletividade não existe como tal a não ser no interior de alguma no cumprimento dos objetivos essenciais da coletividade. ordem política, sua sobrevivência tende a confundir-se com a da governante não pode sobrepor a esses objetivos seus ordem dada, a da estrutura de poder que a garante. Toda vez que morais internos. Ele não pode olhar para o que é bom ou mau de esta estrutura de poder estiver ameaçada, o governante pode e acordo com a consciência moral do cidadão comum. Em outras deve envidar quaisquer esforços para garantir sua permanência, palavras, se o governante quiser salvar sua alma não deve ser mesmo que isso implique uma recorrente violação da dirigente político. político deve levar a efeito ações que serão Para aqueles que defendem que a política não pode ser julgadas por suas consequências e serão aprovadas não porque são conformes à moral, e sim porque trouxeram benefício à assim, que ela não pode violar os princípios morais, mas deve formar os homens, torná-los melhores e orientá-los ao bem, coletividade. O bom governante pode não alcançar o céu depois da morte, mas pode construir um pouco dele na terra... Maquiavel responde que este é o modo de analisar a política tal como ela deveria ser e não como ela efetivamente é. E faz um 22 se os homens fossem todos bons..." alerta: "que trocar o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes sua ruína do que sua preservação" (O Principe A doutrina aristotélico-tomista acostumou-nos a pensar que cap. XV) Diante disso fica claro que as normas morais que orientam os homens são altruístas cooperando para o bem-estar da o agir do cidadão em geral não podem ser as mesmas que inspiram Os impulsos maus e manifestos nas práticas humanas podem o homem político. Embora Maquiavel não conceba a política como ser convertidos para o bem. Essa tradição nos ensinou a acreditar na completamente separada da ética, é forçoso admitir que as ideia de que todo homem pode ser educado moralmente e que ele é responsabilidades do governante obrigam-no a observar critérios capaz de seguir os preceitos morais inculcados pela educação. Por éticos diferentes daqueles do homem comum: enquanto este orienta isso a sociedade, através do Estado, financia "campanhas de sua ação por suas convicções morais internas e é julgado pela conscientização" sobre os mais variados assuntos (por ex., da saúde, coerência em relação às mesmas, aquele se orienta pelo resultado quando desaconselha o consumo de cigarro, ou quando recomenda e por ele é julgado. o uso de preservativos nas relações sexuais). 92 93</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames Maquiavel mostra que essa maneira de pensar confunde pois se trata de um ser que dispõe do isto é, o homem o modo como gostaríamos que os homens fossem com o modo é alguém capaz de decidir se quer ou não realizar determinada como eles realmente são. Esta maneira de pensar cobra seu preço: ação. Contudo, embora tenham ideia do bem, não o realizam por "existe tanta distância entre como se vive e como se deveria viver, um impulso natural, mas somente coagidos: "os homens sempre que aquele que deixa o que se faz por aquilo que se deveria fazer se revelarão maus, se não forem forçados pela necessidade a serem aprende antes sua ruína do que sua preservação" (O bons" XXIII). Isto é, os homens fazem o mal sempre cap. XV). Seria sem dúvida melhor, confessa o florentino, "a que tiverem ocasião, mas o bem somente quando obrigados. Por palavra empenhada e viver com integridade e não com astúcia" (O esse motivo, a segunda coisa que Maquiavel diria se pudéssemos cap. XVIII). Esse modo de proceder seria o desejável entrevistá-lo sobre a corrupção é: o que acontece com as pessoas "todos os homens fossem bons" (O Principe cap. No flagradas cometendo atos ilícitos? Considerando a extensão dessa entanto, "homens são ingratos, volúveis, simulados e dissimulados, chaga e o tempo que perdura, a única conclusão coerente é de que fogem dos perigos, são ávidos de ganhar e, enquanto lhes fizeres a corrupção compensa. "CPIs", "Corregedorias", etc., parecem bem, pertencem inteiramente a ti, te oferecem o sangue, o ser tão somente mecanismos institucionais para deixar inalteradas patrimônio, a vida e os filhos, desde que o perigo esteja distante. as estruturas que alimentam a corrupção. Quando, porém, precisas deles, revoltam-se. príncipe que se Maquiavel ensina que é preciso partir do pressuposto de apoia inteiramente sobre suas palavras, descuidando-se de outras que o homem é mau e egoísta e não que ele é bom e altruísta. precauções, se arruína" (O Principe cap. XVII). Vejam bem: Maquiavel não diz que o homem mau, e sim que Maquiavel edifica suas reflexões acerca do homem sobre é preciso partir desta hipótese para a organização da vida política. um terreno reconhecidamente baixo, mas que tem a vantagem de As leis e a coação física são os freios com os quais o Estado conta para controlar a tendência intrínseca aos homens de buscar antes ser sólido. Quer dizer, pressupondo que os homens são maus, o de tudo a satisfação de seus próprios interesses. governante que governante pode prevenir-se com as medidas necessárias à manutenção não se empenha em domar essa tendência é conivente com a do bem-estar coletivo orientando suas ações no sentido de descobrir maldade praticada e deveria ir para cadeia junto com o infrator. os procedimentos mais adequados às circunstâncias. Por exemplo, se pudéssemos perguntar a opinião de Maquiavel acerca da corrupção 23 Pode o político mentir? presente em todos os níveis da organização do Estado, certamente a primeira coisa que diria é: falharam os dirigentes quando imaginaram No vasto problema das relações entre ética e política, que os homens agem naturalmente para o bem da coletividade. A Maquiavel coloca uma questão que nos faz pensar. Diz ele que, segurança da vida política não pode apoiar-se sobre o pressuposto da "como não há tribunal onde reclamar das ações de todos os homens integridade moral dos homens e sim sobre a solidez das instituições. [...], o que conta por fim são os resultados" (O Principe cap. que os homens buscam é a realização de seus próprios interesses XVIII). Por esse motivo, o governante "ão deve preocupar-se com mesmo que isso implique em roubar, matar, trair, enganar. Os a prática notória daqueles vícios sem os quais é difícil salvar o primeiros punidos deveriam ser os legisladores e governantes que Estado, porque, tudo bem considerado, será fácil perceber que deixaram a corrupção acontecer. certas qualidades que parecem virtudes levam à ruína enquanto Evidentemente, é preciso ressalvar que a inclinação outras que parecem vícios trazem como resultado o aumento da natural dos homens ao mal não elimina sua consciência do bem, segurança e do bem-estar" (O cap. XV). 94 95</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames Maquiavel chama a atenção para o fato de os critérios A questão dramática que Maquiavel coloca é: quando de avaliação da ação política serem radicalmente distintos daqueles existe a possibilidade de vitória de alguém que sabidamente levará usados na vida privada. o objetivo da política é o bem do Estado a coletividade ao vale a pena correr tão grande risco enquanto o da moral cristã é a salvação pessoal. A juíza das ações apenas para seguir o mandamento de não mentir? dilema colocado políticas não é a moral, e sim a história. A moral pode absolver, desta forma simplista faz com que a política seja vista por vezes mas a história condena aquele que, por seguir à risca os princípios como o "reino do se é legítimo mentir, por que não éticos e religiosos, leva o Estado à destruição. dramático da usar da difamação contra os adversários? Por que não aliar-se a ação política se revela aqui: por vezes é necessário praticar o mal, grupos corruptos e criminosos? Por que não usar de fraude? A mesmo quando se gostaria de fazer o bem. indivíduo que queira lista é infindável. É preciso considerar que se na política é inevitável permanecer na política praticando apenas boas ações corre o risco praticar o mal, isso só é justificável quando o bem-estar da de ser trucidado pelos maus e o efeito será o domínio do mal. Tem coletividade está em jogo, o que não é absolutamente o caso na o político o direito de consentir com isso? maior parte das vezes quando nossos políticos mentem. Assim, se Essa constatação torna-se particularmente incômoda Maquiavel separa a ética da política, a ética não se separa do quando refletimos sobre certas práticas institucionalizadas na vida político a quem cumpre assumir inteira responsabilidade por todas política. Tomemos, por exemplo, a mentira. Todos sabem que os as suas ações, sejam elas políticas ou não. políticos, em geral, mentem: ao fazerem promessas durante a campanha eleitoral; ao esconder da opinião pública seus conchavos 24 A luta política exige força e astúcia políticos; ao pregar a moralidade cobrando propinas; enfim, o noticiário diário está repleto de exemplos muito mais ricos do que Segundo Maquiavel, "existem dois gêneros de combates: estes. É até divertida a ideia de pensar o que aconteceria se todos um com as leis e outro com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo é dos animais. Como, porém, frequentemente aqueles flagrados por mentir fossem julgados por "quebra do decoro o primeiro não basta, convém recorrer ao segundo [...]. Visto que parlamentar": quem seriam os juízes? Existe algum inocente? De um príncipe, se necessário, precisa saber usar bem a natureza qualquer modo, a prática da mentira é má tanto do ponto de vista animal, deve escolher a raposa e o leão, porque o leão não tem da moral privada, pois compromete a confiabilidade, quanto do defesa contra os laços, nem a raposa contra os lobos. Precisa, ponto de vista político: como o eleitor poderá fazer escolhas corretas portanto, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar se os seus líderes trapaceiam sistematicamente? os lobos. Os que fizerem simplesmente a parte do leão não serão A pergunta incômoda que esta prática coloca é: um bem sucedidos" (O cap. XVIII). político que não minta jamais pode ter É preciso lembrar dirigente político, para implementar suas metas de que a fronteira entre a promessa demagógica e o compromisso de governo, precisa enfrentar pessoas e grupos cujos interesses são campanha não cumprido por circunstâncias imprevisíveis, assim contrariados. Para superar esse tipo de obstáculo, nem sempre como a diferença entre o "conchavo" e a "articulação" políticas é basta a sagacidade da raposa. É preciso a força, isto é, necessita muito tênue e, por isso, é muito difícil saber quem é mentiroso e agir como leão para impor sua vontade ainda que ferindo os quem não é. Por esse motivo, aquele que procura ser sempre interesses desses grupos. Por outro lado, embora a política seja honesto parece estar em desvantagem em relação àqueles que usam uma forma de guerra, é preciso compreender que essa guerra de meios escusos, desvantagem essa que pode significar a diferença obedece a imperativos particulares. Ela não depende da violência entre a vitória e a derrota. pura e o governante não triunfa pelo simples fato de ser o mais 96 97</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames forte. Não basta ser "leão" Quem só fizer a parte do leão, alerta são sempre singulares. Quer dizer, não temos como orientar nossa Maquiavel, fracassará. A força por si só é insuficiente, porque o ação presente por alguma outra do passado ou levada a efeito em governante precisa coexistir com aqueles que dirige, necessita impor- algum outro lugar. Isto não significa, porém, que o tempo histórico lhes dia a dia sua autoridade, conter dia após dia as desordens nascentes seja homogêneo, que as situações concretas sejam todas da mesma e quando busca isso exclusivamente pela força, torna-se odiado. importância. Bem ao contrário. curso histórico, pensa Maquiavel, Isso deixa claro que a astúcia é uma virtude é marcado por momentos cruciais, situações nas quais uma dada imprescindível ao governante. Tal como a raposa, deve ter a esperteza decisão repercutirá por um longo tempo futuro. Maquiavel dá o de saber livrar-se dos laços que seus adversários e pretensos aliados nome de "oportunidade" ou "ocasião" a esses momentos lhe armam. Na posição em que se encontra precisa aprender a simular privilegiados da ação política. e dissimular. Precisa desconfiar da adulação do aliado, mas também valor do homem político se mede por sua capacidade das propostas de composição dos adversários. Particularmente, alerta de apreender a oportunidade. A oportunidade é singular e irrepetível Maquiavel, "precisa estar atento para jamais fazer aliança com alguém e, por isso, quem perde o momento de agir, o tempo certo, fica mais poderoso do que ele" (O Principe XXI). impossibilitado de interferir no curso da história. Esta falha não Um bom governante precisa aprender a ser amado e a tem como ser reparada, pois a história jamais volta. Ela não conhece ser temido, ensina Maquiavel. Não deve esquecer, porém, que "os marcha ré. Todo acontecimento é único e singular. Nunca um fato homens têm menos receio de ofender a quem se faz amar do que é repetição de outro. daqueles que se fazem temer" (O XVII). Isso se deve Governar é optar. Optar contra alguém e a favor do ao fato, explica o florentino, de o amor ser mantido pelo interesse de outro. Em cada situação concreta a tarefa de optar é reconhecimento, "é rompido sempre que lhes interessa, enquanto imposta que governa. A decisão, seja qual for, o temor é mantido pelo medo ao castigo, que nunca abandona os necessariamente desagradará a alguns. Por supor uma opção, é homens" cap. XVII). Quer dizer, os vínculos de afeto impossível atender os interesses de todos. Aquele cujo interesse entre governante e governado criam relações de compromissos não foi atendido, aquele contra quem a decisão foi dirigida, que são rompidos de acordo com as conveniências, ao passo que considera a ação má, cruel. Será amado por aqueles cujos interesses foram realizados e temido pelos o temor faz com que os governados cumpram a lei por receio do Essa constatação, diz Maquiavel, nos faz levantar a castigo por sua transgressão. Dentre todos os defeitos de um seguinte questão: "é melhor ser amado ou temido? A resposta é governante, Maquiavel entende que o pior é a fraqueza, pois torna que seria de desejar ser ambas as coisas, mas, como é difícil de o dirigente desprezível aos olhos de seus cidadãos e alvo de chacota combiná-las, é muito mais seguro ser temido do que amado" (O dos seus auxiliares. Um governante fraco é aquele incapaz de tomar Principe cap. XVII). que leva Maquiavel a essa conclusão? É as decisões necessárias à implementação das políticas de seu uma constatação acerca da natureza humana: "os homens têm governo, seja por medo, receio ou insuficiência intelectual. menos receio de ofender a quem se faz amar do que a outro que se faça temer" (O Principe cap. XVII). Por que se comportam 25 É melhor ser amado ou temido? assim? Porque, ensina o florentino, amor é mantido por vínculo de reconhecimento, o qual, sendo os homens perversos, é rompido tempo privilegiado da ação política é o presente. É sempre que lhes interessa, enquanto o temor é mantido pelo medo sempre num "aqui e agora" que cabe agir. As situações concretas ao castigo, que nunca os abandona" (O cap. XVII). 98 99</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames Assim, dado que política é ação num aqui e agora Para tudo têm explicações "técnicas" que isentam o governante da concreto e considerando que a decisão obrigatoriamente se dirige culpa: são "fatalidades" ou eventos derivados de "causas estruturais" contra alguns e a favor de outros, aquele que governa deve agir fora do alcance de intervenção do dirigente político. "sem se preocupar com a fama de cruel" (O Principe cap. XVII). Esse modo de safar-se da responsabilidade já foi Não pode pautar suas decisões pela opinião momentânea. denunciado por Maquiavel há 500 anos! Ele compara esse governante será julgado pela história, segundo o resultado das comportamento com a enchente de um rio que arrasa tudo por medidas implantadas. onde passa. Contudo, embora não seja possível evitar que chova e Quanto à questão de saber se é melhor ser amado ou o rio transborde, "nada impede que os homens tomem providências, temido, diz Maquiavel, é preciso ter presente que "os homens construam barreiras e diques, de modo que, nas cheias, ou o rio amam segundo sua vontade e temem segundo a vontade do flua por um canal, ou sua força se torne menos livre e danosa" (O príncipe" (O Principe cap. XVII). Ora, pondera o florentino, é Principe cap. XXV). óbvio que é mais seguro "contar com o que é seu e não com o que Com essa comparação, Maquiavel deixa claro que os é de outros" (O cap. XVII). Logo, é preferível ser temido acontecimentos políticos não surgem por acaso, mas sempre têm a ser amado, pois o temor é incutido por quem governa ao passo alguma causa e, por isso, podem ser previstos, quando não evitados que o amor brota unicamente da vontade de quem o oferece. seus efeitos nefastos. Com a comparação Maquiavel ensina que A conclusão de Maquiavel precisa ser corretamente não existe nada acima da ação e do conhecimento humanos a entendida: quando sustenta que é preferível ser temido a ser amado, comandar o seu destino. supostamente casual atribuído à sorte chama a atenção sobre os fundamentos da segurança política. e ao azar deita raízes numa omissão faltosa de governantes Pensar que o afeto é seguro é iludir-se sobre o comportamento politicamente incompetentes. Interpretações fatalistas de humano. Nada mais frágil do que as convicções morais. Fundar acontecimentos políticos são uma maneira de os dirigentes se nelas a integridade da vida política é sucumbir à corrupção. A isentarem da responsabilidade pelo fracasso. Assim, por exemplo, estabilidade é dada pelas leis e instituições, que são estruturas quando um rio alaga as ruas de uma cidade, inunda casas e edifícios, abstratas e que não dependem dos afetos individuais. Assim, fazer- a s)culpa cai sobre a natureza. Se o governante falasse a verdade, se temer é fazer valer a lei. Esta só é eficaz porque sustentada pela deveria confessar que se trata de obras mal projetadas e de serviços força capaz de obrigar ao cumprimento. mal administrados e, nesse caso, a responsabilidade deixaria de ser da imprevisível e anônima natureza para recair sobre dirigentes 26 A fatalidade e a incompetência política despreparados. Ou então, quando as pessoas não conseguem trabalho ou perdem seu emprego, a responsável é a "globalização", Muitas vezes ouvimos dos governantes a frase: "é uma como se fosse uma força invencível diante da qual só cabem duas fatalidade; não há nada que possa ser feito!" A expressão não se opções: seguir seu curso ou capitular. Igualmente, quando dirigentes refere apenas às calamidades, como enchentes, secas ou queimadas, são denunciados de que sabiam que estava havendo corrupção, mas também às tragédias de trânsito, à escalada do crime, à revolta mas não tomaram qualquer providência por "razões de Estado", popular. Também não veem como responsabilidade sua a morte agem como se fossem imperativos invioláveis. das pessoas nos postos de saúde, a falta de casa, de terra e de Assim, a lição que Maquiavel ensina é ao mesmo tempo escola, a fome e o desemprego, a corrupção e a troca de favores. uma denúncia: a importância da fatalidade na política é tanto maior 100 101</p><p>Filosofia Política: Reflexões José Luiz Ames quanto menor for a competência do governante. Aqueles que VI THOMAS HOBBES apelam a fatores fora de seu controle para explicar as desgraças de seu governo passam um atestado de ignorância e incompetência e 1 - O fundador da ciência política moderna consideram seus governados idiotas. Sorte e azar só existem para políticos incompetentes que fracassaram no cumprimento de suas tarefas. Em outras palavras, não existe sorte ou azar. Existem pessoas preparadas e despreparadas para governar. Talvez mais do último tipo... O Estado moderno está fundado sobre o monopólio do uso da força física legítima. Por isso ele pode, com direito, proibir, matar, encarcerar, multar. Diferentemente do que para os antigos, para os quais o Estado resultava da natureza associativa do homem, os modernos têm uma visão individualista do Estado. Quando se compreende o Estado como uma consequência da inclinação natural do homem a viver em sociedade, a legitimidade do poder exercido por ele é dada pela natureza. Os modernos não aceitam mais esta visão. Se, por natureza, o Estado não exerce um poder legítimo sobre os indivíduos, como, então, explicar a lealdade que prestamos ao Estado? Além disso, se por natureza não tendemos mais à vida coletiva, como pensavam os antigos, por que os indivíduos formam uma sociedade? O primeiro pensador moderno a dar uma resposta consistente a estes problemas foi Thomas Hobbes. Ele nasceu em 1588 em Westport, na Inglaterra. De origem humilde, sua educação esteve ao encargo de seu tio Francis Hobbes. Aos 20 anos recebeu o título de Bacharel em Artes e passou a trabalhar para o Barão de Cavendish como preceptor de seu filho. Preocupado com os rumos da guerra civil inglesa liderada por Cromwell, decidiu refugiar-se em Paris, onde viveu de 1640 a 1651 Em 1651 publicou sua obra política mais importante: "O trabalho lhe rendeu o ódio do clero católico francês pelas críticas à Igreja, à qual acusava de pretender imiscuir-se nos assuntos do Estado. Por causa da obra, perdeu também o apoio da família real inglesa, refugiada em Paris, o que o obrigou a retornar 102 103</p>

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