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<p>2019</p><p>Comitê Editorial</p><p>Alexsandro Rodrigues</p><p>Alfrâncio Ferreira Dias</p><p>Amana Rocha Mattos</p><p>Anderson Ferrari</p><p>Antonio Luciano Morais Melo Filho</p><p>Carlos Eduardo De Oliveira Bezerra</p><p>Felipe Bruno Martins Fernandes</p><p>Gabriel De Oliveira Rodrigues</p><p>José Wellington De Oliveira Machado</p><p>Luma Nogueira De Andrade</p><p>Marcos Lopes De Souza</p><p>Marcos Salviano Queiroz</p><p>Maria De Fátima Lima Santos</p><p>Wilton Garcia Sobrinho</p><p>Luma Nogueira de Andrade</p><p>(Organização)</p><p>Sobre o ebook</p><p>Design da Capa Realize Editora</p><p>Projeto Gráfico e Editoração Jefferson Ricardo Lima Araujo</p><p>REALIZE EVENTOS CIENTÍFICOS & EDITORA LTDA.</p><p>Rua: Aristídes Lobo, 331 - São José - Campina Grande-PB | CEP: 58400-384</p><p>E-mail: contato@portalrealize.com.br | Telefone: (83) 3322-3222</p><p>Andrade, Luma Nogueira</p><p>Diversidade Sexual, gêneros e Raça: Diálogos Brasil-África / Luma Nogueira</p><p>Andrade. Realize Editora: Campina Grande-PB, 2019.</p><p>1972 f. : il</p><p>ISBN: 978-85-61702-57-1</p><p>Modo de acesso: http://www.editorarealize.com.br/</p><p>1. Diversidade Sexual. 2. Gênero. 3. Raça. 4.Brasil. 5. África. I. , . II. Título.</p><p>Ficha catalográfica</p><p>4 www.congressoabeh.com.br</p><p>ISBN: 978-85-61702-57-1</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>Este E-book é resultado do IX Congresso Internacional da ABEH (IX CINABEH) realizado de 28 a 30</p><p>de novembro de 2018 no Centro de Convivência e Instituto de Cultura e Arte ( ICA) do Campus</p><p>do PICI da UFC e no Centro Dragão do Mar de Arte e Culturade Fortaleza. O evento foi realizado</p><p>pela Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH) em parceria com a Universidade da</p><p>Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e a Universidade Federal do Ceará</p><p>(UFC).</p><p>Assumi a coordenação dessas atividades por ter sido eleita presidenta da ABEH em 2016, se</p><p>tornando a primeira pessoa a se posicionar politicamente enquanto travesti a ocupar este espaço.</p><p>Durante a gestão construímos essa proposta de pensar o conhecimento de maneira intersecciona-</p><p>lizada, aproximando diversidade sexual, gênero e raça. Essa ideia surgiu a partir dos debates na</p><p>Diretoria e possui relação direta com minha experiência de vida como uma travesti docente e pes-</p><p>quisadorada UNILAB. A minha presença nessa Universidade e a presença dessa Universidade em</p><p>mim, contribuiu para que surgisse essa integração epistemológica internacional a partir dos países</p><p>de Língua Portuguesa. A diretoria da ABEH foi desafiada a construir um tema que explicitasse a</p><p>nossa intenção. Foi assim que nasceu a proposta: “Diversidade Sexual, Gênero e Raça: Diálogos</p><p>Brasil-África”.</p><p>Não se trata apenas de realizar um congresso internacional, o desafio era tocar nas feridas que</p><p>surgem a partir das violências cometidas contra as pessoas que estão de alguma forma conecta-</p><p>dascom este tema. A intenção maior era provocar os pesquisadores e as pesquisadoras para que</p><p>pudéssemos pensar de maneira mais ampla, para além das caixinhas, percebendo a intersecção que</p><p>existe entre nossos estudos e entre as vidas e as mortes que estudamos de maneira separada. Não</p><p>se trata apenas de falar sobre a violência contra os corpos das pessoas, é preciso pensar na violência</p><p>epistemológica que as vezes cometemos quando não conseguimos ver as pessoas como sujeitos/as</p><p>da sua própria história. No mundo da história vivida, ao contrário do mundo criado em parte das</p><p>nossas histórias escritas, não existe essa separação radical, as diferenças convivem no mesmo espaço</p><p>e muitas vezes no mesmo corpo, carregando o estigma da violência e do preconceito.</p><p>Segundo a ONG Transgender Europe (TGEU) desde 2016 o Brasil é o país que mais mata tra-</p><p>vestis, transexuais e pessoas não binárias no mundo. Como mostrou uma das reportagens do jornal</p><p>Estadão de 05 de junho de 2018 a taxa de homicídios de negros no Brasil chega a 40,2, enquanto a</p><p>de não negros fica em 16 por 100 mil habitantes. Pessoas negras e LGBTIs, brasileiras e estrangeiras,</p><p>resistem cotidianamente para sobreviver nesta sociedade machista, racista e xenofóbica. Nossas insti-</p><p>tuições insistem em exterminar (ou capturar) as diferenças como forma de higienizar a humanidade.</p><p>5 www.congressoabeh.com.br</p><p>ISBN: 978-85-61702-57-1</p><p>Ser negro ou negra LGBTI no Brasil muitas vezes significa passar pelas situações de opressão,</p><p>descriminação, preconceito e violênciaque anossa sociedade conservadora produz. Os grupos eco-</p><p>nômicos, políticos e religiosos, fazem uso do estado, das igrejas e de outras instituições disciplinares</p><p>e de controle, para negar os direitos e colocar em prática os efeitos nefastos da necropolítica. Ao</p><p>mesmo tempo que temos lutas e lutos que poderiam ser vistos como algo em comum, caminhamos</p><p>para uma sociedade cada vez mais segregada, onde negros e LGBTIs neoliberais falam em meritocra-</p><p>cia e empreendedorismo de si.</p><p>É isso que Mbembe chama de "O devir negro do mundo" em ação, há uma tendência de indivi-</p><p>dualização das conquistas e das derrotas. Mas, ao mesmo tempo há uma flexibilização dos direitos,</p><p>uma tentativa de destruição das Legislações Trabalhistas e Ambientais, de negação da própria</p><p>História, os indivíduos não tem passado (ou produzem um passado sem fundamentação histórica).</p><p>Vivemos em um eterno presentismo, onde o passado e o futuro coletivo são descartáveis, aprende-</p><p>mos a fazer passados e futuros através de memes, como se todas as temporalidades se resumissem</p><p>as linhas do Twiter, do facebook, do instagran e do whatsaap. Essa não é apenas uma realidade dos</p><p>novos negros e LGBTs do mundo, é um devir negro ou LGBT do mundo, estamos nos transformando</p><p>em peças descartáveis com a ilusão de que basta querer para conseguir, como se fosse apenas uma</p><p>questão de vontade pessoal.</p><p>Nesse contexto de pós-verdade não podemos falar nem mesmo das política de identidade, por-</p><p>que tudo é visto como“vitimismo”. A expressão “mimimi” se transformou em uma maneira velada</p><p>(ou não) de mostrar que concorda com as atrocidades da sociedade e que é contra as vítimas, legi-</p><p>timando (muitas vezes de maneira cínica) o chicote dos agressores. Mas, as vezes quem fala que</p><p>os nossos estudos ou as nossas lutas são apenas “mimimi”e“vitimismo” são os próprios negros e</p><p>homossexuais, impregnados por essa visão racista e LGBTIfóbica. Chegamos a uma situação que</p><p>precisamos defender a legitimidade das políticas de identidade e dos movimentos históricos con-</p><p>quistados ao longo do século XX. Mas, essa situação não pode nos impedir de pensar para além das</p><p>fronteiras da identidade, de encontrar as brechas, as fissuras, de caminhar fora das linhas desses-</p><p>contornos, de perceber os encontros, os choques e as conexões que existem entre esses conjuntos.</p><p>Aprendemos a estudar separadamente os coletivos de cada diferença, como se cada pesquisador</p><p>ou pesquisadora fosse responsável por um grupo, se tornando especialistas nesse ou naquele tema.</p><p>Precisamos de uma visão mais ampla, capaz de perceber as diferenças,sem esquecer da(re)uniões</p><p>e das intersecções que fazem parte dessa cartografia. As identidades negrasnão estão isoladas, elas</p><p>se cruzam comas identidadesLGBTIs e produzem novas geografias, que borram essas fronteiras. Não</p><p>podemos falar de racismo e de LGBTIfobia sem relacionar com classe, com religiosidade, com origem</p><p>geográfica, com a ausência de saúde, educação e de empregabilidade, sem AFROntar esse momento</p><p>histórico de avanço das forças conservadoras. Não se trata apenas de um debate sobre o tipo de</p><p>ciência que queremos, é sobre o tipo de sociedade que desejamos, não podemos aceitar os retroces-</p><p>sosque estão sendo planejados paraosnegros e as negrasLGBTIsdo Brasil, das Américas e das Áfricas.</p><p>6 www.congressoabeh.com.br</p><p>ISBN: 978-85-61702-57-1</p><p>Este e-book tenta expressar um pouco desse sentimento de resistência, com a presença dos</p><p>saberes de pesquisadores/as que contribuem com produções científicas e que lutam pela superação</p><p>do racismo,do machismo, da LGBTIfobia e da Afrofobia. Agradeço a todos/as que contribuíram para o</p><p>sucesso do IX CINABEH. A Diretoria da ABEH, aos pesquisadores/as que disponibilizaram seus textos</p><p>para esta publicação, a UNILAB, a UFC, a CAPES, oMDH, a SEPPIR,</p><p>ao Conselho Federal de Psicologia,</p><p>ao Governo do Estado do Ceará, SEDUC-CE, ao Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT,</p><p>a Diretora LGBT Marina Reidel, a Deputada Federal Luiziane Lins, ao Ex Deputado Federal Jean Wyllis,</p><p>a extinta SECAD/MEC,ao Departamento de AIDS do MS, a UNAIDS e a todos(as) que participaram</p><p>desse Congresso.</p><p>Profa. Dra. Luma Nogueira de Andrade</p><p>Presidenta da ABEH na gestão 2017-2018</p><p>293 www.congressoabeh.com.br</p><p>ISBN: 978-85-61702-57-1</p><p>A CULTURA GAY, SEGUNDO MICHEL FOUCAULT, COMO</p><p>ESPELHO PARA NOVAS FORMAS RELACIONAIS ÉTICAS E</p><p>RESISTENTES NA CONTEMPORANEIDADE.</p><p>Antônio Alex Pereira de Sousa1</p><p>Resumo: O presente trabalho lança um olhar sobre a ideia de cultura gay apresentada Michel Foucault</p><p>(1926-1984), quando, ao analisar novos processos de subjetivação na contemporaneidade, afirma que</p><p>as experiências sexuais e relacionais dos gays, assim como práticas não ortodoxas como o sadomaso-</p><p>quismo, são possibilidades de novas formas de se relacionar que fomentam outros modos de uso dos</p><p>prazeres. Nesse contexto, uma nova ética relacional tem efeitos éticos, pois fomenta mudanças refletidas</p><p>na subjetividade dos homens, e também políticos, já que se apresentam como resistência às formas</p><p>socialmente estabelecidas de viver.</p><p>Palavras-chave: Cultura gay; Processos de Subjetivação; Relações Homoafetivas; Michel Foucault;</p><p>Resistência.</p><p>1 Mestrando em Filosofia - UFC. Professor de Filosofia – FACULDADE RATIO e SEDUC/CE.</p><p>E-mail: alexsousa.filosofia@gmail.com.</p><p>294 www.congressoabeh.com.br</p><p>ISBN: 978-85-61702-57-1</p><p>Introdução</p><p>O pensamento de Michel Foucault potencializou lutas de movimentos sociais de várias vertentes,</p><p>das ligadas à questão da saúde pública, como a luta antimanicomial, às ligadas a questões de gênero,</p><p>como a despatologização da homossexualidade. Na busca de compreender o que seriam os dispositivos</p><p>de poder ligados ao sujeito e à verdade, Foucault desenvolveu pesquisas que questionaram radical-</p><p>mente conhecimentos científicos que sustentavam discursos com efeitos de poder.</p><p>A sexualidade foi um tema que Foucault percebeu ser objeto desses discursos científicos que criam</p><p>verdades utilizadas por instâncias de poder que atingem toda a sociedade. Em outras palavras, a sexua-</p><p>lidade foi utilizada por saberes como a psiquiatria, a medicina e a psicologia para criar verdades que</p><p>não tinham legitimidade científica, mas por ser proferidas por “cientistas” tinham um poder de verdade.</p><p>A sexualidade, desse modo, se tornara um elemento utilizado por novos mecanismos de poder, a que</p><p>Foucault chamou poder disciplinar e biopoder.</p><p>Nesse contexto, o presente trabalho não visa argumentar sobre a forma como os homens passaram</p><p>a exercer poder sobre os outros como na modernidade (poder disciplinar e biopoder), mas sobre expe-</p><p>riências de exercício de poder sobre si mesmo no intuito de constituir-se como sujeito livre, autônomo</p><p>e ético, o que ficou conhecido como terceiro Foucault ou sua fase ética. Assim, este trabalho apresenta</p><p>breves considerações sobre a experiência da homossexualidade, bem como práticas não ortodoxas do</p><p>uso da sexualidade - sadomasoquismo-, vistas como possibilidade de constituição de uma vida ética.</p><p>A pesquisa teve como metodologia o estudo bibliográfico e conceitual da obra de Michel Foucault,</p><p>principalmente os artigos das coletâneas Ditos e escritos V e IX. Ainda lançamos mão da obra de comen-</p><p>tadores, como Francisco Ortega e Sandra Fernandes.</p><p>Amizade e resistência no modo de vida gay</p><p>A produção filosófica de Michel Foucault na década de 80 do século passado ficou conhecida por</p><p>obras que tinham a cultura greco-romana antiga como objeto central de análise. Diferente do que</p><p>anteriormente tinha feito nas décadas de 60 e 70, pesquisando respectivamente as condições de pos-</p><p>sibilidades do surgimento de saberes na modernidade (arqueologia) e as relações poder (genealogia)</p><p>que permeiam o mundo ocidental nos três últimos séculos, suas últimas pesquisas analisaram a forma</p><p>como os indivíduos se relacionaram consigo mesmo e, dentre outros temas, colocaram a sua sexuali-</p><p>dade como objeto de cuidado. Em outras palavras, como a sexualidade foi meio para o homem se auto</p><p>constituir como sujeito ético.</p><p>Em entrevistas dadas na década de 80 sobre assuntos diversos, mas interligados à questão da</p><p>sexualidade, Foucault nos mostrou o que pensava sobre as relações homoafetivas e sua importância</p><p>no contexto do seu pensamento filosófico. Uma das hipóteses está na compreensão de que as relações</p><p>homossexuais, bem como as relações não ortodoxas como as práticas sadomasoquistas (SD), por uti-</p><p>lizarem o corpo e o prazer de modo que escapa à norma, seriam possibilidades de um modo de vida</p><p>295 www.congressoabeh.com.br</p><p>ISBN: 978-85-61702-57-1</p><p>ético numa perspectiva nova. O uso dos prazeres de forma não normativo seria exemplo do como a</p><p>sexualidade pode ser elemento da existência humana que possibilite a constituição de vidas livres e</p><p>autônomas.</p><p>Para Foucault, as relações homossexuais usam dos prazeres, do corpo e constituem a subjetividade</p><p>dos partícipes de modo singular, um modo de vida que poderia ser chamado de estilo de vida gay.</p><p>Segundo o filósofo, esse estilo de vida poderia se aproximar daquilo que chamou de cuidado de si,</p><p>uma prática comum na antiguidade greco-romana no qual os homens eram incitados a cuidarem de</p><p>seus pensamentos e de suas ações, no sentido de não esquecerem de si mesmos e tornarem-se sujeitos</p><p>éticos. Aquele que cuidava de si, no objetivo de constituir sua vida de forma única e singular como uma</p><p>obra de arte, estaria compondo sua vida como uma obra de arte, realizando o que Foucault chamou de</p><p>estética da existência.</p><p>A relação entre aquele que cuida de si e cuida do outro, contudo, não necessitava de práticas</p><p>sexuais. Na verdade, a prática sexual entre dois homens não era a principal atividade de cuidado entre</p><p>ambos. Essa relação de cuidado, que podia ser acompanhada de relações sexuais, foi chamada por</p><p>Foucault de amizade.</p><p>Essa relação de amizade não teria sua potência se não fosse acompanhada de uma ascese, um</p><p>trabalho de si consigo mesmo de transformação da própria subjetividade. Essa ascese é um elemento</p><p>necessário para que qualquer indivíduo possa se auto constituir de forma consciente, livre e autônoma.</p><p>Só através da ascese o homem poderia constituir sua vida como uma obra de arte. Esse trabalho de si</p><p>consigo teria na relação com um outro, no caso o amigo, um apoio importante. Com diz Ortega (1999,</p><p>p. 154-155)</p><p>A amizade é uma forma de existência considerada por Foucault quando pensa numa</p><p>possível atualização da estética da existência, apesar de limitar sua análise quase exclu-</p><p>sivamente à cultura homossexual, falando assim de um “estilo de vida gay” – o que, por</p><p>um lado, não exclui uma ampliação a outros grupos. Trata-se de chegar a uma nova forma</p><p>de existência mediante a sexualidade. Esta forma de existência alcançável através de um</p><p>certo trabalho sobre si mesmo, de uma certa ascese, tem a forma de amizade.</p><p>Desse modo, a sexualidade torna-se, nos últimos textos e falas de Foucault, uma forma de resis-</p><p>tência, já que constituir a subjetividade nos moldes do cuidado de si a partir de uma ascese e uma</p><p>relação de amizade ética, fugiria da normatividade constituída pelos micropoderes característicos do</p><p>poder disciplinar. Se no primeiro volume da História da sexualidade Foucault nos mostrou como o sexo</p><p>se tornou um elemento central utilizado pelos dispositivos de poder que surgiam no mundo ocidental,</p><p>nas suas últimas obras a sexualidade se tornaria uma forma de resistência, de escapatória à normativi-</p><p>dade, de constituição de uma vida livre. O estilo de vida gay se mostrava como um exemplo real do uso</p><p>da sexualidade como resistência.</p><p>296 www.congressoabeh.com.br</p><p>ISBN: 978-85-61702-57-1</p><p>É importante pontuar que o “modo vida gay”, ou “cultura gay”, que é diversa e difusa, além de</p><p>periférica, não se organiza de modo único seguindo uma normatividade, tendo a heteronormatividade</p><p>como padrão</p><p>normativo da sexualidade, uma norma que é forma de exercício dos micropoderes, pois</p><p>ao ser posto como anormal o indivíduo homossexual funciona como instrumento para que as instân-</p><p>cias de poder desqualifiquem alguns sujeitos em favor de outros. As práticas, modos, pensamentos ou</p><p>características dos sujeitos anormais estariam suscetíveis aos investidos de microinstâncias de poder</p><p>que vigiam e punem2. Desse modo, por serem postos como anormais, estes sujeitos que escapam à</p><p>heteronormatividade estão livres para experimentarem de outros modos seus prazeres. Neste contexto</p><p>surgem novos espaços de sociabilidade, como boates gays, saunas, casas de massagem, bares gays,</p><p>cinemões e outros.</p><p>Foucault coloca a experiência das sexualidades gays como possibilidade de fuga diante da normati-</p><p>vidade disciplinar, que se exerce sobre os indivíduos através de instituições e de um biopolítica que tem</p><p>a população como objeto de investimento de poder.</p><p>Foucault entende que o modo de vida gay possibilitaria novas formas de relação entre os sujeitos.</p><p>Para ele, essas relações expressam uma outra noção de amizade, amparados na concepção caracterís-</p><p>tica dos gregos e romanos antigo, em que a relação entre aquele que cuidava de si e o que era cuidado</p><p>era estabelecida de um modo outro, onde a liberdade era fator primordial para a criação e aceitação</p><p>de uma verdade.</p><p>As relações de amizade, nesse contexto, teriam efeitos políticos. A amizade, por ser uma outra</p><p>modalidade de relação entre os homens, diversa das relações normatizadas, traria efeitos na consti-</p><p>tuição dessa subjetividade autônoma, livre e ética; consequentemente, por ser relacional, teria efeitos</p><p>sociais e políticos. A amizade torna-se, para Foucault, um problema para se pensar o presente e seu</p><p>novo objeto de interesse (FOUCAULT, 2014c, p. 260).</p><p>A amizade era vista como relação que possibilita a mudança na subjetividade de ambos os envolvi-</p><p>dos. Ela era um exercício de si consigo mesmo, uma ascética, que inclui outro. Para Fernandes:</p><p>[...] a constituição de si passa pela abertura do outro, mas não de qualquer outro. Pois</p><p>o lugar do amigo não é o de qualquer outro. É neste momento que a amizade aparece.</p><p>Esse outro é o outro de nossa eleição, de nossa afinidade, por quem sentimos afeto,</p><p>simpatia e temos prazer em conviver. Será ele que, ao nos confrontarmos, irá nos fazer</p><p>pensar sobre nós e que contribuirá para “uma mudança dentro de nós, uma fabricação</p><p>de nós que é ao mesmo tempo uma fabricação do outro”. (2011, p. 388)</p><p>Esta potencialidade para o presente, a experiência da amizade que se constitui pelo uso não</p><p>normatizado da sexualidade, teria uma história onde os primeiros exemplos estariam na antiguidade</p><p>greco-romana. Essas primeiras relações de amizade foram, a partir da Idade Média, sofrendo um</p><p>2 Sobre a punição, ver a obra de Michel Foucault Vigiar e Punir.</p><p>297 www.congressoabeh.com.br</p><p>ISBN: 978-85-61702-57-1</p><p>processo de desqualificação, pois a relação entre dois homens tornava-se motivo de desconfiança. Na</p><p>modernidade passou a ser objeto dos novos conhecimentos científicos e instituições de poder, visto</p><p>como algo anormal, e por isso, uma relação que não devia existir. Para Foucault, todos esses discursos</p><p>em torno da amizade estavam relacionados ao tema da homossexualidade. (FOUCAULT, 2014c, pag.</p><p>260-261).</p><p>Essa relação outra que tem uma história, e passa por um processo de desqualificação desde a</p><p>idade medieval, deveria ser vista pelos sujeitos no presente como possibilidade de tornar-se um novo</p><p>direito relacional. Foucault nos alerta que, para além das lutas por direitos individuais relacionados à</p><p>sexualidade, como o casamento, deveríamos lutar por um novo direito relacional, que mostrasse a limi-</p><p>tação das relações institucionalizadas formuladas na modernidade, como o casamento e o parentesco,</p><p>também consideradas corretas e aceitáveis. Esse novo direito relacional teria no modo de vida gay um</p><p>potente modelo, pois ao estar fora da norma seria mais difícil de administrar, o que não ocorre nas</p><p>aceitáveis relações sociais.</p><p>O direito relacional é a possiblidade de fazer reconhecer, em um campo institucional,</p><p>relações de individuo para indivíduo que não passem necessariamente pela emergência</p><p>de um grupo reconhecido. É algo completamente diferente. Trata-se de imaginar como a</p><p>relação entre dois indivíduos pode ser validada pela sociedade e se beneficiar das mes-</p><p>mas vantagens que as relações – perfeitamente honrosas – que são as únicas a serem</p><p>reconhecidas: as relações de casamento e de parentesco. (FOUCAULT, 2012e, pag. 122)</p><p>Esse novo direito relacional era visto como potencialidade para novas estruturas sociais que não</p><p>surgiriam de um projeto político geral para uma população, como discursos de liberação geral da sexua-</p><p>lidade. Já que as relações homossexuais são micro, potentes e resistentes, deveríamos lutar por um</p><p>novo direito relacional, e não unicamente um direito geral.</p><p>Neste ponto, Fernandes (2011, p. 381) ajuda a compreender os efeitos políticos que uma sexuali-</p><p>dade divergente, constituída por uma ascese que possibilita uma subjetividade ética, teria na política.</p><p>Fernandes também relaciona a crítica de Foucault a um programa político, lembrando das considera-</p><p>ções o filósofo fez sobre o descrédito no presente em fundar uma ética baseada na religião e no direito,</p><p>ressaltando a confiança de Foucault numa outra forma de relação que fosse realizada por sujeitos que</p><p>cuidassem de si mesmo.</p><p>Nesse contexto, a visão foucaultiana sobre as práticas sexuais homossexuais e sadomasoquistas</p><p>possibilitam uma nova experiência de si consigo mesmo (ética) que escaparia à normalização, desen-</p><p>cadeando efeitos políticos. É na experiência da amizade entre dois homens que Foucault visiona uma</p><p>possibilidade de existência ética, tendo a sexualidade como elemento transformador no sentido posi-</p><p>tivo, criativo, de não anulação da diferença. Nessa relação as subjetividades se transformam e se auto</p><p>constituem de forma singular por intermédio do exercício ascético.</p><p>298 www.congressoabeh.com.br</p><p>ISBN: 978-85-61702-57-1</p><p>Essa mesma possibilidade era observada por Foucault nas relações que usavam a sexualidade de</p><p>forma não ortodoxa, onde o próprio corpo era revisto a partir de uma desconstrução acerca do ponto</p><p>central do prazer, sempre visto nos órgãos genitais. As práticas sadomasoquistas (SD) eram também</p><p>exemplos reais dessa nova forma de se relacionar e usar dos prazeres.</p><p>Conclusões</p><p>Foucault oferece com seus escritos uma caixa de ferramentas que desconstrói a norma em torno</p><p>das práticas que fogem à norma heterossexual. Para a população LGBTQI, essas ferramentas são possi-</p><p>bilidades para uma reconstrução de si a partir da desconstrução de verdades criadas por instâncias de</p><p>saber e poder que anulam subjetividades diferentes da norma estabelecida.</p><p>Nesse sentido, Foucault nos mostra que as “verdades” experimentadas nas práticas sexuais</p><p>homoafetivas podem ser, ao contrário do que a norma heterossexual sempre proferiu, afirmando uma</p><p>anormalidade nos gays, uma possibilidade de fuga à norma e, consequentemente, a vivência de uma</p><p>sexualidade que daria liberdade e singularidade à vida. O modo de vida gay seria uma possibilidade de</p><p>liberdade, pois usa da sexualidade fugindo da norma de poder que a limita.</p><p>Foucault nos mostra que o modo de vida gay seria um exemplo de constituição de vidas livres e, por</p><p>esse motivo, potencialmente ético. Entretanto, essa vida ética não seria possível sem uma ascese que</p><p>modificaria a subjetividade do indivíduo. É aí que a vivência da sexualidade e, consequentemente, da</p><p>amizade gay, tem sua potência, já que por ser periférica terá mais condições de escapar da norma que</p><p>anula a diferença e a reflexão livre sobre as próprias ações, a ética.</p><p>299 www.congressoabeh.com.br</p><p>ISBN: 978-85-61702-57-1</p><p>Referências</p><p>FERNANDES, S. Foucault: a experiência da amizade. In: Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica</p><p>editora, 2011. p. 377-391.</p><p>FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade</p><p>de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011b.</p><p>FOUCAULT, M. Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e política da identidade. In: Ditos e escritos IX:</p><p>genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014c. p. 251-263.</p><p>FOUCAULT, M. O triunfo social do prazer sexual: uma conversação com Michel Foucault. In: Ditos e escritos V:</p><p>ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012e. p. 116-122.</p><p>ORTEGA, F. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011.</p>