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Ensaios de Antropologia Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Edgar da Silva Gomes Revisão Textual: Prof. Me. Luciano Vieira Francisco Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais • Compreender como o problema das identidades e diferenças aparecem sob a ótica da Antro- pologia Contemporânea; • Entender como Foucault elaborou suas noções mais importantes – saber e poder – e suas relações com as discussões sobre sexualidade a seu tempo; • Compreender como a Antropologia Contemporânea assimilou as ideias de Foucault, levan- do-se em conta as tensões entre dois conceitos que se desdobram das discussões sobre a cultura em Antropologia: agência e estrutura. OBJETIVOS DE APRENDIZADO • Introdução; • Foucault e a Relação Entre Saber e Poder; • Sexualidade e Política; • Foucault e um Novo Olhar na Antropologia; • Agência Versus Estrutura. UNIDADE Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais Introdução Muitas das discussões produzidas contemporaneamente nas Ciências Sociais dizem respeito a dois aspectos da vida social que, embora apareçam frequentemente como excludentes, têm se mostrado cada vez mais como passíveis de relação e articulação com a questão cultural. São eles: identidade e diferença. Isto é, esses temas, embora inicialmente vistos como em polos opostos da vida, têm uma forma de se articular muito concretamente dentro de elementos de nossa cultura, tais como música, trabalho, deslo- camentos espaciais, festas, entre outros aspectos. Veremos aqui algumas das discussões tratadas em textos importantes que trabalham essas questões. Inicialmente, veremos a relevante contribuição de Michel Foucault para os estudos culturais no que diz respeito a uma analítica do poder, tentando mostrar como a compreensão desse autor acerca de categorias como raça, gênero, etnia – ou, colocando num plano mais concreto, branco e negro, homem, mulher e homossexuais, indígenas e europeus –, que geralmente são tratadas como algo essencializado são cons- truídas dentro de um sistema social que cria o anormal e, assim, o normal. Michel Foucault (Poitiers, França, 15 de outubro de 1926 — Paris, 25 de junho de 1984), foi um importante filósofo e professor da Cátedra de História dos Sistemas de Pensa- mento no Collège de France, de 1970 a 1984. Todo o seu trabalho foi desenvolvido em uma arqueologia do saber filosófico, da experiência literária e análise do discurso. Seu trabalho também se concentrou sobre a relação entre poder e governamentalidade, e das práticas de subjetivação. Foucault morreu de complicações relacionadas ao vírus da imunodeficiência humana (HIV), em 1984. Posteriormente, colocaremos em foco as possíveis articulações entre identidade e diferença nas dinâmicas culturais, isto é, como foi concebida dentro de práticas culturais que estão em constante transformação e reelaboração os modos como se é percebido dentro de algum grupo ou, ao contrário, o outro como diferente de si, com outras for- mas de se relacionar com os mesmos objetos ou, por vezes, com objetos diferentes. Para tal, tomaremos parte das análises pertinentes de Teresa Caldeira (1998) e Avtar Brah (2006) sobre, primeiramente, como os debates epistemológicos acerca da nar- ratividade etnográfica implicaram numa antropologia que reconhece suas invariáveis construções frente a seu objeto como diferença. Em outras palavras, trata-se de mostrar de que modo a Antropologia, a partir de debates muito recentes, pôde perceber que ela própria, ao narrar sobre algum grupo, estava, na verdade, criando esse grupo, ou melhor, criando uma forma de ver o grupo que, embora possua uma correspondência real, não é a única forma de concebê-lo. Em segundo lugar, veremos como a construção das diferenças toma parte em um mesmo debate sobre formas de pensar a identidade, de modo que se reconheça nela, simultaneamente, sua unidade e diferença. Dito de outra forma, trata-se de entender as formas como as pessoas se reconhecem como parte integrante de um determinado grupo e não de outro – mesmo quando imaginamos esse grupo do qual se faz parte 8 9 como heterogêneo ou incoeso. A ideia aqui é mostrar, antes, que a coesão do grupo se relaciona mais com um mesmo tipo de experiência (racismo e homofobia, por exemplo) que ocorrem com pessoas muito diferentes entre si. Por fim, relacionaremos essas questões com as reflexões de Sherry Ortner (2007) sobre a possibilidade de agência dos indivíduos dentro da cultura. Tal debate sobre a agência diz respeito a um tema caro da Antropologia nos últimos quarenta anos, a saber: a relação entre estrutura e agência, entre um sistema fixo de transmissão e difusão de práticas sociais e a forma como os indivíduos agem dentro dele e sobre ele para mudá-lo. Figura 1 Fonte: Getty Images Foucault e a Relação Entre Saber e Poder Em Histoire de la sexualité: la volonté de savoir – História da sexualidade: von- tade de saber –, Foucault (2007) se debruça sobre um objeto que tem sido, há muito tempo, alvo dos mais diversos tipos de empreendimento: o sexo. Tanto intelectualmen- te, no que se refere à produção científica (por meio da Medicina, Demografia e Peda- gogia), quanto de seus correspondentes concretos imediatos na vida social (por meio da polícia e de instituições como hospitais e escolas), o sexo e a sexualidade teriam, segundo Foucault (2007), em nossa sociedade, sido um elemento privilegiado dessas disputas e saberes. Aprofundando suas análises anteriores, presentes em, entre outras obras, Surveiller et punir (1999) – Vigiar e punir –, nas quais, voltando-se contra concepções legalistas de poder, o autor faz a sua crítica a essa noção, principalmente por duas frentes: primei- ramente, contra a noção de poder soberano, unilateral, afixado na figura de um Estado e, em segundo lugar, o poder como interdito, que se exerceria através da repressão de certa liberdade. Antes de nos atermos à concepção foucaultiana de poder, vejamos um pouco mais detidamente as teorias clássicas criticadas pelo autor para entendermos melhor sua crítica. 9 UNIDADE Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais Figura 2 Fonte: Getty Images Figura 3 Fonte: Getty Images As teorias contratualistas do século XVIII são um dos exemplos dessas teorias clássi- cas. Propunham o debate do poder como direito que é cedido ao soberano no interior de um sistema jurídico-administrativo próprio. Os contratualistas partiam da análise de como seriam os grupos humanos antes da existência da sociedade como conhecemos, cheia de regras e normas. Esse estado antes da sociedade seria o que eles chamavam de estado de natureza. É importante ressaltar que o estado de natureza não era concebido pelos contratualis- tas como uma fase que realmente existiu na história humana. Esses filósofos não estão fazendo alusão ao período pré-histórico, ou algo do gênero, quando mencionam estado de natureza – tratava-se de um recurso retórico, um ponto de partida para se pensar como a ordem social e os Estados foram formados. Jean-Jacques Rousseau (1987), por exemplo, um dos expoentes dessa teoria, defen- dia que no estado de natureza o homem vivia em harmonia com os outros e com a natu- reza. Porém, os homens passaram a delimitar o que era seu e de outrem – por exemplo, delimitar as terras e dizer que elas eram suas. Nasciam os interesses privados. Segundo Rousseau, os homens entraram em acordo, por meio de um contrato social, para defen- der o interesse de todos. Os bens são protegidos, porém, cada um deve se privar de uma parte de sua liberdade em prol de um soberano que governaria para o bem de todos. Você Sabia? Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi um filósofo, escritor e compositor suíço. Suas ideias, especialmente a respeito do pensamento político, tiveram influência decisiva no desenvolvimento do movimento iluminista ao redor da Europa, assim como também es- tiveram por trás das motivações político-filosóficas que levaram à RevoluçãoFrancesa. É um dos autores mais importantes para o pensamento social, político, econômico e pedagógico modernos. Fonte: https://bit.ly/35RP7cy Outra corrente da teoria clássica criticada por Foucault é aquela segundo a qual pos- suiria o poder quem obtivesse o uso legítimo da violência. Não há aqui um soberano de onde emana o poder, mas, sim, um Estado racionalizado, isto é, burocratizado, compar- timentado, uma verdadeira máquina. Esse Estado não pode ser personificado na figura de ninguém. No nosso caso, por exemplo, o presidente não toma decisões sozinho, pois depende de todo um aparato político e institucional que dê suporte a suas decisões. Ele 10 11 se manteria como tal e manteria a ordem social pelo uso da força. O Estado possuiria, como diria Weber (2005), o monopólio da violência, pois somente ele tem legitimidade, ou seja, poderia, por Lei, fazer o uso dela. O que Foucault (1999, p. 35) nos mostra é que, primeiramente, “[...] é preciso, em suma, admitir que esse poder se exerce mais do que se possui, que ele não é um ‘pri- vilégio’ adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito conjunto de suas posições estratégicas”. A rigor, esse poder não está em lugar nenhum, não é coisa, ele apenas se manifesta nas relações entre agentes. Assim, rompe-se com a unilateralidade do poder inscrita nos aparelhos do Estado. Ele se dilui em cada microrrelação dentro da sociedade em certas épocas. Em segundo lugar, é preciso ter em mente que, para Foucault (1999), os mecanismos dos quais esse poder se vale são muito mais sutis e eficazes do que simplesmente o uso da violência, da força física. A efetividade dessa relação estaria menos ligada ao uso desse tipo de força, pois, anterior à repressão, as relações de poder criam seus objetos tanto de inclusão, quanto de exclusão, sendo estes, posteriormente, passíveis do uso da violência. Motins da varíola em Milwaukee, disponível em: https://bit.ly/3nN922e Essas relações criam disciplinas para os corpos e assim criam-se identidades como, por exemplo, homem e mulher, pobre e rico, negro e branco. São criados sujeitos que se com- portam segundo as normas por eles partilhadas e reproduzidas, isto é, as normas que são ensinadas por todo um mundo social e, assim, reproduzidas de diversas formas por quase todos. Cria, por outro lado, o desviante da norma, o louco, criminoso, sodomita, todos com uma identidade própria, ditada por essas relações de poder. Identidade desviante que deve ser precisada, tratada e, se possível, normalizada. Em outras palavras, usando uma termino- logia foucaultiana, pode-se dizer que há uma positividade imanente às relações de poder. É enunciada, desse modo, a existência de outro elemento que não pode ser desvincu- lado da questão do poder, para Foucault o saber. Nas palavras de Ortega (1999, p. 67), “[...] somente através da superação da proibição como modelo explicativo foi possível trazer à luz os mecanismos de um complexo saber/poder”. Isto é, quando Foucault per- cebeu que os mecanismos pelos quais se exerce o poder passam, necessariamente, por um “conhecimento” que o corresponda e justifique e que também é, por sua vez, um poder, é que ele pôde criar formas de desvendamento da emergência de determinado acontecimento. Dessa forma, existe intrincada relação entre saber e poder. O Hospital da Salpetrière talvez nos ajude a entender essa relação inseparável entre saber e poder. Fundado no século XVII, em Paris, era uma mistura entre hospício e prisão, onde ao mesmo tempo eram institucionalizados criminosos e desocupados (um tipo criminal da época), assim como loucos, prostitutas e pobres que seriam “tratados” por médicos. Na prá- tica, todos eram prisioneiros do Estado francês e o que dava o aval para suas internações era justamente o conhecimento médico dos séculos XVII ao início do XX. Atualmente, o Hospi- tal da Salpetrière ainda existe, mas funciona como um hospital universitário convencional. Fonte: https://bit.ly/3bLbrbs 11 UNIDADE Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais O saber trata-se, precisamente, desse mecanismo inseparável do poder que, em última análise, é a forma como podemos dar sentido a essa relação, isto é, dar-lhe inteligibilidade. Ou seja, é nosso modo de perceber essas relações e torná-las alvos de nosso olhar, mesmo que essas relações nos passem despercebidas. Sucintamente podemos dizer que, grosso modo, por exemplo, se a relação entre um pai e filho é de poder, onde um manda e o outro obedece, a forma utilizada pelo pai para fazer com que o filho obedeça, seja usando a força, seja apenas conversando, é um saber compartilhado por ambos. Sexualidade e Política Se para Foucault (2007) é preciso problematizar os objetos do conhecimento e as práticas que os dão sentido, uma vez que, como vimos, esses objetos são criados numa relação de poder em um determinado tempo, o autor em Histoire de la sexualité (2007) se vê às voltas a um elemento que há muito tempo era objeto de disputas políticas e dos mais variados saberes: o sexo. Visto que o filósofo não podia conceber um poder que fosse necessariamente repres- sivo, seria necessário problematizar a hipótese corrente à época da repressão da sexua- lidade, isto é, a ideia de que, sinteticamente, o sexo havia sido suprimido em todo o seu potencial biológico para ser enquadrado numa ordem sexual burguesa, onde os silêncios sobre os desejos se sobreporiam à realização destes. Veja uma entrevista de Michel Foucault de 1981, em que ele fala sobre seu livro, intitulado A história da loucura, e muito mais, disponível em: https://youtu.be/yO_F4IH-VqM Dessa forma, “[...] a análise da hipótese repressiva implicava uma crítica geral à con- cepção do poder em termos de repressão”. (CASTRO, 2009, p. 398) Ou seja, o exame da hipótese de um sexo cujo potencial fora aprisionado em um corpo levava, para Foucault (2007, p. 120), a um questionamento mais fundamental acerca da relação entre sexo e poder no sentido jurídico: era preciso “[...] pensar, de uma só vez, o sexo sem a Lei e o poder sem o rei”. O sexo não poderá mais ser pensado enquanto reprimido, ou antes, enquanto uma categoria que nos é pré-existente como um dado empírico inscrito em nosso corpo que forçosamente escondemos em nome de uma vida comum social. Para Foucault (2007, p. 205) o “sexo” terá outro papel, tornando-se [...] um ponto imaginário fixado pelos dispositivos da sexualidade. [...] o elemento mais especulativo, o mais ideal e o mais interior dentro de um dispositivo da sexualidade que o poder organiza em suas capturas sobre os corpos, sua materialidade, suas forças, suas energias, suas sensações, seus prazeres. Significa que, para ele, o que entendemos como sexo (tanto no que diz respeito às genitais, quanto, principalmente, às práticas que envolvem essas genitais) é, na verdade, uma abstração, algo que foi criado muito recentemente em nosso mundo (por volta do 12 13 século XVII), algo que nem sempre foi visto e pensado desse modo e, inclusive, é consi- derado diferentemente em outros lugares do mundo atualmente. Figura 4 Fonte: Getty Images Dessa forma, Foucault (2005) inscreve o sexo na sexualidade ou, em outras palavras, mostra que antes do “sexo” foi preciso existir outro elemento: a sexualidade. Sexo, as- sim, não é o ponto de partida, como se poderia presumir, mas o elemento especulativo necessário ao seu funcionamento. O que esse autor nos está dizendo é que sexo, como um objeto empírico, tais como genitais, hormônios etc., não existe sem um investimento cultural, uma forma de vermos para ele, delimitá-lo, precisá-lo, normalizá-lo, a que ele chama de sexualidade. A isso que, resumidamente, Foucault (2005) denomina disposi- tivo de sexualidade. Em outras palavras, de Gayle Rubin (1993, p. 4), [...] assim como outros aspectos do comportamento humano, as formas institucionais concretas da sexualidade a qualquer tempo e lugar são produ- tos da atividade humana. Elas estão impregnadas de conflitosde interesse e manobras políticas, ambos deliberados e incidentais. Nesse sentido, sexo é sempre político. Para concluirmos ao texto de Michel Foucault (2007), é importante que saibamos que ao autor lançar mão de uma análise preliminar das alterações estratégicas dos meca- nismos de poder na sociedade ocidental nos últimos cinco séculos, mostra a passagem do “[...] velho direito de fazer morrer ou de deixar viver [...]” para “[...] um poder de fazer viver ou de rejeitar à morte [...]”. Isto é, essas mudanças táticas do poder dizem respeito à passagem de um poder soberano, que tinha às mãos a possibilidade de matar seus súditos conforme fosse necessário e desejável para defender sua soberania, para um poder disciplinar, que encontra na gestão da vida particular e pública sua forma mais efetiva de ação. Esse poder sobre vida – ao que o autor chamou de biopoder – teria se desenvolvido a partir do século XVII, através, principalmente, de duas formas não concorrentes: as disciplinas – constituídas como uma anátomo-política do corpo humano – e os controles 13 UNIDADE Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais reguladores – como uma biopolítica da população (FOUCAULT, 2007). As primeiras dizem respeito ao investimento do corpo como máquina através do cálculo de suas ap- tidões, redirecionamento de suas forças, sua integração a um sistema de controles efica- zes. Os segundos, formados um pouco mais tarde, dizem respeito a intervenções sobre as populações no espaço, por meio do controle de natalidade, da mortalidade infantil, da saúde pública etc. (FOUCAULT, 2007). Foucault e um Novo Olhar na Antropologia Não se trata aqui de atribuir todas as mudanças que ocorreram efetivamente na Antropologia apenas à obra de Foucault. Entretanto, para bem ou mal (ou para além de ambos), embora sua morte tenha ocorrido há quase 30 anos, a obra foucaultiana continua a possuir potencial crítico indispensável para uma série de debates contempo- râneos e, sem dúvidas, faz pensar algumas de nossas práticas mais íntimas, ou antes, faz perguntar sobre o papel dessas práticas como perpetuadoras de um determinado mecanismo que, ainda que não seja estável, reproduza efeitos de dominação. Questiona quais operações essas práticas colocam em funcionamento as quais ainda não podemos ou conseguimos prescindir. O que nos é importante aqui, sobre as ideias de Foucault, é entender que, a partir dessa concepção que impõe desconfortos aos saberes convencionais, questionando po- sições naturalizadas, essencializadas, tanto da identidade, quanto da diferença, o autor abriu potencial crítico para diversos movimentos sociais e teóricos. Figura 5 Fonte: Getty Images Isso porque, se radicalizarmos o que o autor nos apresenta acerca da sexualidade e, portanto, das identidades sexuais, poderemos pensar todos os tipos de identidade como produzidas no âmbito de relações de poder. Se essas identidades são produzidas nesse âmbito, então podemos afirmar, sem medo, que todas as identidades são políticas. Elas podem e devem ser questionadas e entendidas no interior de um sistema que as 14 15 normalize e que cria formas de dizer sobre elas, abrindo pouco espaço para a diferença – em resumo, trata-se de entender que as identidades e diferenças estão imersas num campo de disputas. Uma das ressonâncias dessa concepção pode ser encontrada no artigo de Teresa Caldeira (1998), intitulado A presença do autor e a Pós-Modernidade em Antropologia. Embora não haja referências especificamente a Foucault, é interessante como a autora apresenta as mudanças dos paradigmas nos relatos dos textos antropológicos, perceben- do, gradativamente, por meio de mudanças teóricas de cada tempo, as formas como os etnógrafos criavam narrativas acerca do “nativo”, apresentando-o como figura de alteri- dade, como alguém fora do normal (nesse sentido, é só lembrarmos das nomenclaturas referentes a eles como “selvagens”, ao contrário de nós, ocidentais, “civilizados”). Para entender melhor como um imaginário sobre a alteridade foi criado, não apenas na An- tropologia, a dica é ler um livro interessantíssimo chamado Orientalismo, de Edward Said. Segundo Caldeira (1998), inicialmente, na Antropologia havia a tentativa de descre- ver nos mínimos detalhes a cultura de um lugar. Assim, o etnógrafo assumia o papel de especialista daquela cultura e porta-voz daquelas pessoas. Nesse caso, o papel de autoridade conferida a ele se dava a partir do modo em que ele poderia conhecer deta- lhadamente o que via – e conhecer, aqui, significava ser possível descrever – e, desse modo, ser quem dava ordem às mais caóticas peculiaridades dos “selvagens”. Contudo, gradativamente, esse modo de fazer Antropologia foi dando espaço a de- bates críticos em que se percebeu que o antropólogo também discorria de uma posição, em geral, em que enxergava o que a ele parecia importante naquela cultura. Esse ponto é importante, pois trata-se da percepção do etnógrafo não como uma pessoa neutra, apenas observando, mas alguém que também tem uma história em outra cultura que seria impossível dissociar no momento de observar como as pessoas agem em lugares completamente diferentes de sua terra natal. Guerreiros de Dani no festival do vale de Baliem, disponível em: https://bit.ly/3oLBUcn Acompanhado a esse debate, houve crise também das fontes. Isso porque não ape- nas o antropólogo possuiria uma posição na observação, como seus informantes (sejam eles pessoas ou documentos) também possuem uma posição dentro da própria socieda- de. Dessa forma, no estudo, entrevistar, por exemplo, um homem ou uma mulher, um pai ou irmão, uma pessoa hierarquicamente “superior” ou “inferior”, interferiria radical- mente nos resultados da pesquisa. Assim, aponta Caldeira (1998), pouco a pouco os etnógrafos se retiraram das narra- tivas, dando espaço para que os nativos mesmo falassem e, ao mesmo tempo, deixando claro de onde o nativo fala, qual a posição dele na estrutura de poder daquelas sociedades. Essa noção de que há disputas em torno da produção e reprodução do que se pensa sobre algo ou alguém é central também em Diferença, diversidade, diferenciação, de 15 UNIDADE Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais Avtar Brah (2006), embora nesse trabalho ela confira privilégio para formas de pensar esse tipo de análise a partir do “diferente”. Isto é, nesse trabalho a autora reflete como é possível articular diferença e identidade. Para Brah (2006), nesse artigo, ao fazer uma revisão nos debates feministas, volta-se para uma compreensão mais sofisticada da ideia de diferença nos movimentos sociais e, ao mesmo tempo, para um exame crítico dos diversos essencialismos a que esses mo- vimentos estiveram submetidos. Desse modo, apresenta como essas diferenças, dentro de um mesmo movimento contestatório (no caso dela, o feminista), constituídas como essenciais, fixas e em oposição umas às outras, podem ser vistas “[...] como campos historicamente contingentes de contestação dentro de práticas discursivas e materiais” (BRAH, 2006, p. 331). Assim, Brah (2006) inicia a sua exposição tratando da categoria “negro” que, na Grã-Bretanha do Pós-Segunda Guerra Mundial, abarcava tanto africanos-caribenhos, quanto sul-asiáticos, ou seja, pessoas com características físicas pouco equivalentes, mas que, no entanto, eram identificadas igualmente como “niggers”. Figura 6 Fonte: Getty Images Figura 7 Fonte: Getty Images Segundo ela, a construção da identidade desse grupo se deu, primeiramente, atra- vés da raça como princípio produtor de alteridade; em outras palavras, “raça” foi o cri- tério para estabelecer quem era inglês e quem não o era. Desse modo, “racializou-se” classe e gênero em torno de uma “não brancura”. Assim, embora a incidência dessa racialização não tenha sido igual naquele conjunto heterogêneo de pessoas (africanos- -caribenhos e sul-asiáticos), enfrentavam experiências comuns de exclusão e/ou discri- minação (BRAH, 2006). O conceitode “negro”, portanto, tornou-se uma categoria política para aqueles que eram alvos desse tipo de preconceito, unindo-os em torno de um mesmo movimento que lutava por um mesmo objetivo. Em outras palavras, esse conceito “[...] constituiu um sujeito político inscrevendo a política de resistência contra racismos centrados na cor” (BRAH, 2006, p. 333). Entretanto, o que estava em jogo era a articulação de um conceito – o de “negro” – constitutivo de uma identidade que, embora se apresente de modo coeso, como uma unidade, não deve ser visto em termos essencialistas. Segundo Brah (2006), as dinâ- micas internas desse grupo no período pós-Segunda Guerra Mundial não negavam as diferenças culturais entre os grupos, mas o princípio que os organizavam dentro da prá- tica política era a luta contra o racismo. E mais: esse processo mesmo de reorganização 16 17 em torno de um objetivo comum, isto é, a forma como grupos heterogêneos adquirem novas funções em um conjunto, dita os diferentes resultados políticos e as estratégias que precederam esses resultados. Importante! Para Avtar Brah (2006) algumas identidades não são produzidas pelas semelhanças en- tre aqueles que partilham dela, mas sim nas afinidades que se formam por uma mesma situação de preconceito e exclusão. A crítica da autora a essa concepção essencializada de categorias sociais apresenta ainda outra nuance importante: para ela a análise de uma categoria de diferença deve ser inscrita num quadro geral produtor dessas diferenças. Em outras palavras e de modo parecido a Foucault, as diferenças devem ser pensadas no interior de um sistema que produz e reproduz desigualdades. A questão, portanto, passa, de modo semelhante ao aporte crítico contemporâneo no artigo de Caldeira (1998), de “qual diferença?”, para “[...] quem define a diferença, como categorias [...] são representadas dentro do discurso da ‘diferença’ e se a ‘diferença’ diferencia lateral ou hierarquicamente” (BRAH, 2006, p. 358) . Em outras palavras, é necessário que se coloque em questão o que Ortner (2007) apresenta como a relação entre agência, cultura e poder. Agência Versus Estrutura Para Ortner (2007b) na análise das dinâmicas sociais durante muito tempo foi deixado de lado o aspecto da ação. Em fins da década de 1970, os três grandes paradigmas no cenário antropológico eram: o interpretativismo, cujo maior representante era Clifford Geertz; o economicismo político marxista de, não apenas, mas principalmente, Eric Wolf; e o estruturalismo lévistraussiano. Para a autora, essas teorias tendiam a privile- giar o aspecto coercitivo do mundo social. Em resposta a essas teorias, autores representantes do interacionismo como, destaca- damente, Goffman, propuseram outra abordagem de análise que foi, como Ortner (2007b) denomina, uma teoria da ação. Assim, colocavam a questão da agência dos indivíduos em relação às estruturas, destacando interações interpessoais, deixando praticamente de lado as coerções estruturais, mas ainda assim mantendo a oposição ação/estrutura. Você Sabia? Erwing Goffman (1922-1982) foi um sociólogo, psicólogo social e escritor canadense. Foi considerado o sociólogo norte-americano mais importante do século XX. Suas áreas de estudos se concentravam na sociologia do cotidiano, no interacionismo simbólico, na cons- trução social da personalidade e em como organizações sociais enquadram a experiência social. Sua obra mais conhecida é A representação do eu na vida cotidiana, de 1956. 17 UNIDADE Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais Assim, Ortner (2007a) se propõe a analisar a agência, isto é, a possibilidade de ação dos indivíduos, de uma nova forma, a saber, inserindo essa possibilidade de ação de su- jeitos em um campo de desigualdades, assimetrias e forças sociais. Dessa forma, segun- do ela, a agência é uma capacidade humana culturalmente construída, de modo que os atores, assimetricamente empoderados, têm as suas possibilidades de ação influenciadas quanto ao seu tipo e extensão, de acordo com o lugar que ocupam numa relação de poder. Em outras palavras, trata-se de entender o lugar que determinado sujeito ocupa na sociedade como, por exemplo, hierarquicamente superior ou inferior, com maior ou menor poder econômico, homem, mulher ou homossexual etc. Nesse sentido, é preciso entender que a relação entre agência e poder não é neces- sariamente inscrita na dualidade dominação-resistência. Para Ortner (2007a) deve ser complexificada para abarcar jogos que podem ser contraditórios em relação à agência de poder, mas que esteja de pleno acordo com projetos culturais. Aqui vale se ater um pouco mais: por projetos culturais a autora chama essa estrutura social que nos imputa alguns limites e nos diz o que é normal e o que não o é, o que pode e o que não pode ser feito. Assim, Ortner (2007a) nos mostra que precisamos fugir do binarismo dominador- -dominado, pois, segundo ela, mesmo que o sujeito esteja em situação de “dominar”, eventualmente alguns “projetos culturais” acabam sendo mais importantes do que essa “dominação” e, assim, ele cede. O que está em jogo aqui é conciliar numa mesma aná- lise estrutura (projetos culturais) e agência (ação interessada dos sujeitos). Figura 8 Fonte: Getty Images Figura 9 Fonte: Getty Images Percebemos, portanto, que a questão mesma da identidade se insere no debate sobre a agência na medida em que, como afirma Sovik (2009, p. 15), a “[...] identidade é um lugar que se assume, uma costura de posição e contexto”, isto é, é o lugar em que se co- loca o indivíduo de acordo com as suas possibilidades de ação em um tempo específico, dentro de um determinado grupo que, embora seja composto de um conjunto de atores heterogêneos, une-se em torno de uma identidade de modo a garantir força política estratégica para embates maiores no campo da cultura. 18 19 Em Síntese A relação entre produção das identidades e diferenças continua em aberto. Por muito que Foucault e os outros autores aqui apresentados tenham contribuído de forma sig- nificativa para o aprofundamento da discussão, ainda há muito o que fazer e muito a ser pensado e repensado. Isso porque, quando se trata das dinâmicas culturais, como o próprio termo dinâmica pode sugerir, nada é estática. O motivo disso está em se tratar, em todos os casos de identidade e, portanto, diferença, de processos em constante mudança e, por isso mesmo, em necessária reelaboração. Isto é, as lutas concretas dos diversos movimentos sociais mostram, o tempo todo, no- vos grupos que são deixados de lado e, por isso, é fundamental que estejamos sempre reformulando nossas formas de pensar sobre os que são excluídos e o que faz com que outros sejam incluídos. 19 UNIDADE Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Filmes As sufragistas Dir. Sarah Gavron. Reino Unido, 2015. No início do século XX, após décadas de manifestações pacíficas, as mulheres ain- da não possuem o direito de voto no Reino Unido. Um grupo militante decide coor- denar atos de insubordinação, quebrando vidraças e explodindo caixas de correio, para chamar a atenção dos políticos locais à causa. Maud Watts (Carey Mulligan), sem formação política, descobre o movimento e passa a cooperar com as novas feministas. Ela enfrenta grande pressão da polícia e dos familiares para voltar ao lar e se sujeitar à opressão masculina, mas decide que o combate pela igualdade de direitos merece alguns sacrifícios. https://youtu.be/R8le4sZHRdE Filadélfia Dir. Jonathan Demme. Estados Unidos, 1993. Andrew Beckett (Tom Hanks) é um promissor advogado que trabalha para um tradicional escritório da Filadélfia. Após descobrirem que ele é portador do vírus da AIDS, Andrew é demitido da empresa. Ele contrata os serviços de Joe Miller (Denzel Washington), um advogado negro que é homofóbico. Durante o julgamen- to, este homem é forçado a encarar seus próprios medos epreconceitos. https://youtu.be/uv-5se01Apg Me chame pelo seu nome Dir. Lucas Guadagnino. Itália; Estados Unidos; Brasil; França, 2017. O sensível e único filho da família americana com ascendência italiana e francesa Perlman, Elio (Timothée Chalamet), está enfrentando outro verão preguiçoso na casa de seus pais na bela e lânguida paisagem italiana. Mas tudo muda quando Oliver (Armie Hammer), um acadêmico que veio ajudar a pesquisa de seu pai, chega. https://youtu.be/7yCwv8FjidU Milk: a voz da igualdade Dir. Gus Van Sant. Estados Unidos, 2008. Início dos anos 70. Harvey Milk (Sean Penn) é um nova-iorquino que, para mudar de vida, decidiu morar com seu namorado Scott (James Franco) em San Francisco, onde abriram uma pequena loja de revelação fotográfica. Disposto a enfrentar a violência e o preconceito da época, Milk busca direitos iguais e oportunidades para todos, sem discriminação sexual. Com a colaboração de amigos e voluntários (não necessariamente homossexuais), Milk entra numa intensa batalha política e conse- gue ser eleito para o Quadro de Supervisor da cidade de San Francisco em 1977, tornando-se o primeiro gay assumido a alcançar um cargo público de importância nos Estados Unidos. https://youtu.be/kOCx5Bht9io 20 21 Referências BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, n. 26, jun./jul. 2006. CALDEIRA, T. A presença do autor e a Pós-Modernidade em Antropologia. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 21, p. 133-157, 1998. CASTRO, E. Sexualidade. In: Vocabulário de Foucault. Belo Horizonte, MG: Autên- tica, 2009. FOUCAULT, M. La volonté de savoir. Paris: Gallimard, 2007. ________. Surveiller et punir. Paris: Gallimard, 1999. ORTEGA, F. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1999. ORTNER, S. Poder e projetos: reflexões sobre a agência. In: GROSSI, M. P.; ECKERT, C.; FRY, P. H. (Org.). 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