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<p>Dimensões Humanas da Biodiversidade</p><p>Petrópolis - 2006 447</p><p>Reserva de Desenvolvimento</p><p>Sustentável: Manejo Integrado</p><p>dos Recursos Naturais e Gestão</p><p>Participativa</p><p>Helder L. Queiroz e Nelissa Peralta</p><p>Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá</p><p>Avenida Brasil, 197. Juruá, Caixa-Postal 38. CEP 6970-000. Tefe, AM.</p><p>E-mail: helder@mamiraua.org.br</p><p>Introdução</p><p>As unidades de conservação de uso sustentado têm assumido um papel funda-</p><p>mental na conservação da biodiversidade na Amazônia. Em 1996, a Reserva de</p><p>Desenvolvimento Sustentável (RDS), uma nova categoria de unidade de conser-</p><p>vação, foi criada no Estado do Amazonas e foi posteriormente incorporada ao</p><p>Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) em 2000. Este tipo de</p><p>Unidade de Conservação tem como objetivo básico promover a conservação da</p><p>biodiversidade e, ao mesmo tempo, assegurar as condições e os meios necessários</p><p>para a reprodução social, a melhoria dos modos e da qualidade de vida por meio</p><p>da exploração racional e sustentada dos recursos naturais por parte das popula-</p><p>ções tradicionais, bem como valorizar, conservar e aperfeiçoar o conhecimento e</p><p>as técnicas de manejo do ambiente desenvolvido por estas populações (SNUC,</p><p>2000). Esta categoria de Unidade de Conservação foi criada a partir de um mo-</p><p>delo implantado no início dos anos 90, baseado na co-gestão de uma Unidade de</p><p>Conservação, a então Estação Ecológica Mamirauá, celebrada entre o governo</p><p>do Estado do Amazonas e a organização não-governamental Sociedade Civil</p><p>Mamirauá. Com o objetivo de traçar um perfil desta categoria de Unidade de</p><p>Conservação, o presente capítulo visa apresentar os processos através dos quais</p><p>este modelo de conservação da biodiversidade se consolidou, além de identificar</p><p>suas principais características.</p><p>I. Garay e B.K. Becker (orgs.)</p><p>448 Editora Vozes</p><p>O modelo RDS de conservação da biodiversidade: um breve</p><p>histórico</p><p>As Unidades de Conservação são espaços territoriais (com sua biodiversidade,</p><p>seus respectivos recursos ambientais, suas águas jurisdicionais etc.) que possuem</p><p>características naturais relevantes, legalmente instituídos pelo Poder Público, com</p><p>objetivos de conservação e com limites bem definidos, operando sob regime</p><p>especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção e</p><p>diferentes categorias de manejo (IBAMA, MMA, 2002). Existem várias catego-</p><p>rias de Unidades de Conservação que estão regulamentadas no Sistema Na-cional</p><p>de Unidade de Conservação (SNUC, Lei No 9.985). O artigo 7° do SNUC</p><p>categoriza estes espaços territoriais em dois grupos principais com características</p><p>específicas: as unidades de proteção integral e as unidades de uso sustentado. O</p><p>objetivo básico das unidades de uso sustentado é compatibilizar a conservação da</p><p>natureza com o uso de parcela de seus recursos naturais (SNUC, 2000). As Reser-</p><p>vas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) fazem parte deste grupo de unidades</p><p>de conservação. Esta categoria foi inicialmente proposta pela Sociedade Civil</p><p>Mamirauá ao Governo do Estado do Amazonas em 1995 (Ribeiro, 1994) e criada</p><p>pela Assembléia Legislativa do mesmo Estado no ano seguinte (Amazonas, 1996).</p><p>A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá foi a primeira Unidade</p><p>de Conservação desta categoria implementada no Brasil. Sua criação é resultado</p><p>direto de uma solicitação encaminhada em 1985 pelo biólogo José Márcio Ayres</p><p>e pelo fotógrafo Luis Cláudio Marigo ao Governo Federal (na época o órgão</p><p>responsável era a SEMA – Secretaria Especial de Meio Ambiente), para a criação</p><p>de uma área de cerca de 200.000 hectares para a proteção do primata uacari-</p><p>branco (Cacajao calvus calvus Geoffroy), que na época já constava na lista das</p><p>espécies ameaçadas de extinção oficial do Brasil, bem como da IUCN (International</p><p>Union for the Conservation of Nature).</p><p>Atendendo à proposta do biólogo, a SEMA criou a Estação Ecológica Mamirauá</p><p>em 1986, e a mesma foi transferida para a administração do governo do Estado</p><p>do Amazonas, que a recebeu por meio do decreto nº 12.836 de 9 de março de</p><p>1990, em que a Unidade foi expandida até a sua superfície e limites definitivos.</p><p>A nova unidade estadual passou a ser limitada pelos rios Solimões e Japurá e pelo</p><p>canal Uati-Paraná, num total de 1.124.000 ha.</p><p>A Estação Ecológica é uma categoria de manejo de Unidades de Conservação</p><p>de proteção integral, que proíbe a permanência de populações residentes. As</p><p>restrições desta categoria de manejo mostravam-se inviáveis em face da realidade</p><p>de ocupação tradicional da área. Com a elaboração do Plano de Manejo e a</p><p>publicação da nova proposta criada pelo grupo de pesquisadores da Sociedade</p><p>Civil Mamirauá, e após várias negociações políticas visando viabilizar as propos-</p><p>tas de anteprojeto de lei elaboradas em 1994 e 1995, a Unidade de Conservação</p><p>Dimensões Humanas da Biodiversidade</p><p>Petrópolis - 2006 449</p><p>foi re-categorizada no nível estadual, passando à categoria de Reserva de Desen-</p><p>volvimento Sustentável.</p><p>O grupo de pesquisadores1 percebeu que sem a participação da população lo-</p><p>cal, tanto no manejo dos recursos, como na gestão da área, a unidade de conser-</p><p>vação não seria viável no longo prazo. Por este motivo, segundo a proposta da</p><p>época, as populações continuariam a ter direito de residir na área e utilizar os</p><p>recursos naturais locais, desde que cumprissem com as normas do plano de ma-</p><p>nejo e acatassem o sistema de zoneamento a ser elaborado para a unidade. Além</p><p>deste importante aspecto, existiu outra característica igualmente fundamental: a</p><p>abordagem da gestão e manejo da Reserva de Desenvolvimento Sustentável teria</p><p>como base a combinação do conhecimento científico com o conhecimento tradi-</p><p>cional. Um forte programa de pesquisas foi implantado tanto para prover subsí-</p><p>dios localmente para a regulamentação das normas do plano de manejo quanto</p><p>também como base para influenciar políticas públicas nos níveis regional e na-</p><p>cional. As principais características do modelo de RDS que se criava era então o</p><p>manejo participativo aliado à pesquisa científica que o subsidia.</p><p>O modelo nascente foi proposto para Unidades de Conservação de relevante</p><p>importância biológica, mas com presença continuada de populações tradicio-</p><p>nais. Central no conceito de RDS era desde o seu início a idéia da gestão</p><p>participativa dos recursos naturais, assim como as técnicas de manejo destes re-</p><p>cursos. O modelo, conforme se consolidou com o passar dos anos, não pretende</p><p>substituir nem ignorar as urgentes necessidades de criação e implementação de</p><p>Unidades de Conservação nas categorias de proteção integral. A importância destas</p><p>unidades é reconhecida pelo modelo que considera que esta estratégia pode e</p><p>deve ser adotada onde e sempre que cabível dentro do contexto regional.</p><p>Em 2000, observou-se por fim a consolidação do modelo quando o Congresso</p><p>Nacional incluiu no seu Sistema Nacional de Unidades de Conservação a nova</p><p>categoria “Reserva de Desenvolvimento Sustentável” (criada no nível do Estado</p><p>do Amazonas apenas quatro anos antes). Este foi um reconhecimento da poten-</p><p>cialidade deste modelo de conservação como uma solução viável para alguns</p><p>contextos bem específicos no âmbito das relações das populações tradicionais e</p><p>as necessidades de conservação da biodiversidade.</p><p>A gestão da Unidade de Conservação em Mamirauá foi concedida à Sociedade</p><p>Civil Mamirauá por meio de um convênio celebrado entre esta organização, logo</p><p>após a criação da Estação Ecológica, em 1991. O governo do Estado do Amazo-</p><p>nas, na época por meio da antiga Secretaria Estadual de Ciências, Tecnologia e</p><p>Meio Ambiente (SECTAM) e hoje através do Instituto de Proteção Ambiental do</p><p>Amazonas (IPAAM), compreendeu a importância de apostar em regimes alterna-</p><p>1. O grupo contava com uma combinação de cientistas sociais (como as antropólogas Débora Lima e Ana Rita</p><p>Alves) e biólogos (como o próprio Márcio Ayres e outros como Richard Bodmer e Helder Queiroz).</p><p>I. Garay e B.K. Becker (orgs.)</p><p>450 Editora Vozes</p><p>tivos de co-gestão naquele início da década de 1990. A co-gestão teve continui-</p><p>dade quando a categoria</p><p>probabi-</p><p>lidades de sucesso serão sensivelmente reduzidas.</p><p>I. Garay e B.K. Becker (orgs.)</p><p>474 Editora Vozes</p><p>1</p><p>2</p><p>3</p><p>4</p><p>5</p><p>6</p><p>7 8</p><p>9 10</p><p>Dimensões Humanas da Biodiversidade</p><p>Petrópolis - 2006 475</p><p>11</p><p>12</p><p>13 14</p><p>15 16</p><p>17</p><p>18</p><p>Mamirauá</p><p>Marcos Amend - Fotos 1, 2, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11</p><p>Luis Claudio Marigo - Fotos 3 (Saimiri sciureus),</p><p>4, 12 (Marise Reis discutindo mapa), 13, 14</p><p>(fiscais voluntários), 15, 16, 17 e 18</p><p>I. Garay e B.K. Becker (orgs.)</p><p>476 Editora Vozes</p><p>Agradecimentos</p><p>Este trabalho contou com a grande ajuda de vários pesquisadores e extensionistas</p><p>atuando em Mamirauá, que gentilmente ofereceram informações por eles produ-</p><p>zidas para que fossem utilizadas neste texto. As populações tradicionais de</p><p>Mamirauá são também uma de nossas mais importantes fontes de informação. Os</p><p>autores agradecem àqueles membros destes dois grupos que nos permitiram de-</p><p>senvolver as idéias aqui registradas. Queremos agradecer também a quem inspi-</p><p>rou boa parte destas idéias, o criador de Mamirauá e seu principal gestor, Dr. José</p><p>Márcio Ayres, falecido em março de 2003.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>AMAZONAS 1996. Lei No 2.411, 16 de julho de 1996. Diário Oficial do Estado do Amazonas,</p><p>No. 38481:1-2.</p><p>Brandon, K. 1995. Etapas Básicas para incentivar a participação local. In: Ecoturismo um Guia</p><p>para Planejamento e Gestão, Lindberg, K. e Hawkins, D. (eds.). São Paulo, Editora Senac.</p><p>BRASÍLIA 2000. Sistema Nacional das Unidades de Conservação. Lei No 9.985, 18 de julho</p><p>de 2000.</p><p>Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis − IBAMA 2002.</p><p>Ecoturismo e Parques Nacionais: Oportunidades de Negócios 2002. http://</p><p>www.ibama.gov.br/</p><p>Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá 2001. Relatório Anual do Programa de</p><p>Ecoturismo da RDSM. Tefé.</p><p>Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá 2003. Relatório do Contrato de Gestão</p><p>IDSM/MCT. Tefé.</p><p>Lima-Ayres, D. & Alencar, E. 1993. Histórico da ocupação humana e mobilidade geográfica de</p><p>assentamentos na área da EE Mamirauá. Anais do IX Encontro Nacional de Estudos</p><p>Populacionais, ABEP, Caxambu, V. 2:353-384.</p><p>Lima-Ayres, D. 1992. The social category caboclo: history, social organisation, identity and</p><p>outsider’s local social classification of the rural population of an amazonian region. Tese</p><p>de Doutorado, Universidade de Cambridge, Cambridge.</p><p>Pires, A. 2004. Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. http://www.mamiraua.org.br,</p><p>acessado em 21 de julho de 2004.</p><p>Queiroz, H.L. 1999. A pesca, as pescarias e os pescadores de Mamirauá. In: Estratégias Para</p><p>Manejo de Recursos Pesqueiros em Mamirauá, Queiroz, H.L. & Crampton, W.G.R. (eds.).</p><p>SCM, CNPq, Brasília, 208p.</p><p>Queiroz, H.L. & Sardinha, A.D. 1999. A preservação e o uso sustentado dos pirarucus (Arapaima</p><p>gigas, Osteoglossidae) em Mamirauá. In: Estratégias Para Manejo de Recursos Pesqueiros</p><p>em Mamirauá, Queiroz, H.L. & Crampton, W.G.R. (eds.). SCM, CNPq, Brasília, 208p.</p><p>Ribeiro, N.F. 1994. Um Novo Modelo de Proteção Ambiental Para Mamirauá. Anteprojeto de</p><p>Lei. Relatório de Consultoria. Manuscrito não-publicado. 25p.</p><p>Sociedade Civil Mamirauá 1996. Plano De Manejo. RDSM. SCM, IPAAM, MCT/CNPq,</p><p>Brasília, 96p.</p><p>de manejo foi alterada em 1996, e foi renovada oficial-</p><p>mente em fins de 2003.</p><p>A necessidade de perpetuação da conservação da área levou a Sociedade Civil</p><p>Mamirauá (SCM) a tentar estabelecer estruturas institucionais de longo prazo,</p><p>com o objetivo de incrementar suas capacidades institucional e administrativa</p><p>buscando maior segurança para gerenciar as áreas protegidas com sucesso. Além</p><p>disso, a necessidade de ampliação dos trabalhos para outras áreas, o interesse do</p><p>governo em transformar as Reservas em um laboratório nacional de pesquisa</p><p>aplicada e a necessidade de apresentar contrapartida do governo aos apoiadores</p><p>privados contribuíram para a criação do Instituto de Desenvolvimento Sustentá-</p><p>vel Mamirauá (IDSM) em 1999. O IDSM é desde 2001 uma das unidades de</p><p>pesquisa do Ministério da Ciência e Tecnologia, o MCT. A instituição foi criada</p><p>como uma organização social (OS), que é definida como “uma pessoa jurídica de</p><p>direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à</p><p>pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação</p><p>do meio ambiente, à cultura e à saúde”2. O IDSM é uma organização gerida sob</p><p>as regras do direito privado, embora mantenha características de instituição pú-</p><p>blica obedecendo aos critérios de controle de gastos e a auditorias internas e</p><p>externas. A instituição tem um contrato de gestão com o governo federal, com</p><p>metas e indicadores preestabelecidos. Os resultados destes trabalhos são avalia-</p><p>dos semestralmente por uma comissão de avaliação do MCT composta por mem-</p><p>bros de várias instituições do governo. O IDSM objetiva não apenas promover a</p><p>conservação da Reserva Mamirauá por meio do uso participativo e sustentado</p><p>dos recursos naturais, mas também produzir conhecimento para subsidiar a ges-</p><p>tão participativa com base científica de áreas protegidas e recursos naturais na</p><p>Amazônia.</p><p>A Reserva Mamirauá e suas principais características</p><p>A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (RDSM) (correspon-</p><p>dente à Categoria VI no sistema de classificação da IUCN) está situada na região</p><p>do Médio Solimões, na confluência dos rios Solimões e Japurá, entre as Bacias</p><p>do Rio Solimões e do Rio Negro. Sua porção mais a leste fica nas proximidades</p><p>da cidade de Tefé, no Estado do Amazonas. Esta é a maior reserva existente</p><p>dedicada exclusivamente a proteger a várzea amazônica. Como é considerada</p><p>uma área alagada de importância internacional, ela é inscrita como um dos sítios</p><p>brasileiros da Convenção Ramsar das Nações Unidas, que protege áreas alagáveis</p><p>em todo o mundo. A RDS Amanã liga a RDS Mamirauá ao Parque Nacional do</p><p>Jaú e estão próximas a outras oito unidades de conservação federais ou estaduais.</p><p>2. Lei nº 9.637, de 15.05.98.</p><p>Dimensões Humanas da Biodiversidade</p><p>Petrópolis - 2006 451</p><p>As três unidades contíguas formam um bloco de floresta tropical oficialmente</p><p>protegido com cerca de 6.500.000 ha, o embrião do Corredor Central da Amazô-</p><p>nia (MMA/PPG7), da Reserva da Biosfera da Amazônia Central (MAB/Unesco)</p><p>e Sítio Natural do Patrimônio Mundial (Unesco/IUCN). A Figura 1 abaixo mos-</p><p>tra a localização destas Unidades de Conservação.</p><p>Figura 1. Mapa de localização das Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (em</p><p>azul) e Amanã (em verde).</p><p>Características ambientais</p><p>Provavelmente a principal característica ambiental da região do médio Solimões</p><p>é a grande variação no nível das águas dos rios ao longo dos meses. O alagamento</p><p>sazonal do Rio Solimões causa uma elevação do nível d’água de 10 a 12 metros</p><p>da estação seca para a cheia anualmente. Esta incrível dinâmica da água é causada</p><p>pelas chuvas nas cabeceiras dos rios da região associadas ao degelo anual do</p><p>verão andino. Quando a alagação do ano é excepcionalmente alta, virtualmente</p><p>toda a reserva, ou mais de um milhão de hectares, fica submersa.</p><p>A enchente traz consigo uma gigantesca quantidade de sedimentos das encos-</p><p>tas dos Andes, uma enorme concentração de nutrientes associados às argilas em</p><p>suspensão. Este é o principal causador da enorme produtividade das várzeas ama-</p><p>I. Garay e B.K. Becker (orgs.)</p><p>452 Editora Vozes</p><p>zônicas, observada tanto nos sistemas aquáticos quanto terrestres. Estas alaga-</p><p>ções, com a conseqüente deposição anual destes sedimentos, definem a</p><p>geomorfologia da várzea, a sua fauna e flora, a sua biogeografia e mesmo os seus</p><p>padrões de ocupação humana.</p><p>A geomorfologia característica de Mamirauá permite a ocorrência de um grande</p><p>número de ambientes aquáticos dentro da reserva. Estes variam desde o hábitat</p><p>de água aberta dos rios e braços de rios (ou paranãs), dos canais e lagos até outros</p><p>ambientes não-perenes, como os baixios com campos alagados ou as florestas</p><p>alagadas e, mesmo, ambientes de muito curta existência como o hábitat das poças</p><p>d’água nas praias de areia ou nas de lama, onde uma dinâmica toda própria de</p><p>comunidades de espécies se estabelece, desenvolve e morre num pe-ríodo de</p><p>poucas semanas.</p><p>As diferenças no tempo de alagamento, que são devidas às variações do relevo</p><p>da várzea, levam num longo prazo ao desenvolvimento de tipos de vegetação de</p><p>floresta diferenciados, que ocorrem apenas neste tipo de ecossistema e que possu-</p><p>em uma estrutura e uma composição bem distintas: são os chavascais e as restingas</p><p>(alta e baixa), como são conhecidos localmente.</p><p>A fauna encontrada nestes ambientes de Mamirauá apresenta um alto grau de</p><p>endemismo. As difíceis condições criadas pelas enchentes prolongadas a cada ano</p><p>por um lado limita o número de espécies que conseguem sobreviver a tão dramá-</p><p>ticas condições, mas por outro lado propicia o surgimento de adaptações únicas</p><p>que podem definir ao longo do tempo especiações e endemismos neste ambiente.</p><p>Há, também, grupos taxonômicos particularmente distintos, como os peixes, que</p><p>apresentam uma fauna mais diversa que nas áreas circundantes. A presença de</p><p>importantes espécies de vertebrados ameaçados de extinção também é um fator</p><p>relevante na fauna de Mamirauá.</p><p>Boa parte destas espécies é explorada pelas populações amazônicas em muitos</p><p>locais, mas em Mamirauá elas continuam existindo em níveis satisfatórios. Neste</p><p>sentido, a Reserva cumpre um papel de berçário para vários recursos naturais que</p><p>lá nascem e amadurecem antes de partir para aqueles pontos externos onde serão</p><p>captados. As várzeas de Mamirauá funcionam também como um grande depósito</p><p>de nutrientes, que são exportados às regiões vizinhas por meio das mais distintas</p><p>formas de carreamento.</p><p>A ocupação humana</p><p>A ocupação humana atual de Mamirauá data do início deste século. Anterior-</p><p>mente, a área era habitada por vários grupos indígenas, dentre os quais predomi-</p><p>navam os Omágua (Medina, 1988 apud Plano de Manejo, 1996, p.102). No</p><p>presente, as comunidades indígenas que ainda habitam a área têm alto grau de</p><p>miscigenação (Plano de Manejo, p.35).</p><p>Dimensões Humanas da Biodiversidade</p><p>Petrópolis - 2006 453</p><p>A população humana da Reserva Mamirauá é composta principalmente por</p><p>ribeirinhos ou caboclos. O principal estudo sobre a população local foi desenvol-</p><p>vido pela antropóloga Débora Lima-Ayres que categorizou o termo caboclo como:</p><p>“O pequeno produtor familiar que vive na região</p><p>amazônica da exploração dos recursos das flo-</p><p>restas. Seu conhecimento sobre a floresta, seus</p><p>hábitos alimentares e seus padrões de moradia</p><p>distinguem os caboclos dos produtores que mi-</p><p>graram mais recentemente.” (Lima-Ayres, 1992,</p><p>p.12).</p><p>A região onde hoje se encontra a Reserva Mamirauá foi muito influenciada</p><p>pela economia da borracha, que tinha como alicerce um sistema de aviamento3</p><p>consolidado na época do auge daquela produção. Nos anos 60, houve a decadên-</p><p>cia deste sistema de aviamento, acelerando o processo de urbanização na região.</p><p>O declínio da produção da borracha deu origem a vários assentamentos na região</p><p>onde hoje existe a Reserva Mamirauá. Muitos desses assentamentos foram funda-</p><p>dos por trabalhadores que abandonaram as regiões de extração da borracha, a</p><p>oeste do Médio Solimões. Houve também uma reestruturação social dos assenta-</p><p>mentos, ação promovida pela</p><p>Igreja Católica, seguindo o modelo de comunida-</p><p>des de base (Plano de Manejo, p.35). Cada uma destas comunidades possui uma</p><p>liderança política eleita pelos moradores. Conjuntos de comunidades se organi-</p><p>zam na área em Setores, que são unidades políticas, e cada um destes setores</p><p>possui um coordenador. A área focal4 da Reserva possui 63 assentamentos que</p><p>estão agrupados politicamente em oito Setores. Os Setores são, portanto, um</p><p>conjunto de assentamentos localizados próximos uns dos outros, que tomam de-</p><p>cisões conjuntas sobre o manejo dos recursos e sobre questões políticas locais.</p><p>Cada setor tem seu coordenador, que organiza e facilita as reuniões, distribui</p><p>informações e contribui com a pauta das reuniões.</p><p>A maioria das comunidades da Reserva Mamirauá localiza-se nas margens dos</p><p>rios Japurá e Solimões. Estudos antropológicos (Lima-Ayres, 1992 e Alencar,</p><p>1994) demonstram que a sazonalidade ambiental na várzea do Mamirauá produz</p><p>um padrão de ocupação humana caracterizado pela mobilidade e pela curta dura-</p><p>ção. De acordo com Lima e Alencar (1993), este padrão de grande mobilidade é</p><p>provocado pelas constantes modificações geomorfológicas do leito do rio, pro-</p><p>3. O principal produto de troca do sistema de aviamento era a borracha produzida pelos seringueiros e entregue</p><p>aos seringalistas (donos dos seringais). Estes dois elos da cadeia (seringueiros e seringalistas) possuíam uma</p><p>relação de patrão e cliente, mediada por uma dívida obtida através do recebimento de produtos manufaturados</p><p>no crédito. Durante esta época, os seringueiros eram forçados a pagar suas dívidas com borracha.</p><p>4. A Reserva divide-se em duas áreas principais: uma área focal com 260.000 hectares, onde foram concentra-</p><p>dos os trabalhos de pesquisa e extensão nos primeiros 10 anos, e uma área subsidiária, para onde algumas</p><p>atividades estão sendo replicadas.</p><p>I. Garay e B.K. Becker (orgs.)</p><p>454 Editora Vozes</p><p>vocando a formação de praias ou, ao contrário, a queda do barranco em frente às</p><p>comunidades. Desta forma, a dinâmica das águas interfere fortemente no padrão</p><p>e distribuição de assentamentos na região.</p><p>O Modelo RDS de conservação da biodiversidade</p><p>Como já foi descrito, o “Modelo RDS” está fundamentado na permanência e</p><p>participação das populações locais e na formação e manutenção de uma forte</p><p>base científica. Estes dois pilares fundamentais, quando atuam concomitantemente,</p><p>criam as condições necessárias para a consolidação de normas de manejo social-</p><p>mente aceitas e baseadas nas premissas de conservação da biodiversidade. Isso se</p><p>concretiza na elaboração e aprovação de normas de uso dos recursos naturais e de</p><p>um sistema de zoneamento, apreciado e votado pela população e seus represen-</p><p>tantes. Conseqüentemente, o zoneamento elaborado − e submetido à aprovação</p><p>local − tem que contemplar a necessidade tanto de zonas onde se admite o uso</p><p>sustentado dos recursos naturais, quanto de zonas de completa preservação de</p><p>todos os componentes da biodiversidade. O sistema de zoneamento e as normas</p><p>de uso da área terminam por ser apropriados pelas populações locais, pois estas</p><p>foram consultadas e participaram não apenas da coleta das informações iniciais,</p><p>como também na elaboração das normas e regulamentos e, inclusive, na fase de</p><p>negociação. O processo de discussão e aprovação é longo o suficiente para per-</p><p>mitir uma boa aceitação dos conceitos e a apropriação dos resultados aprovados</p><p>pelo voto.</p><p>Assim, o manejo integrado e participativo da Unidade de Conservação é con-</p><p>solidado em um Plano de Manejo, que contém tanto as normas de uso quanto o</p><p>zoneamento da área. Mas a existência de um Plano de Manejo cientificamente</p><p>embasado e bem apropriado pela população local não é uma garantia de efetividade</p><p>na conservação da Unidade. A garantia de um envolvimento duradouro e a for-</p><p>mação de um compromisso claro entre as populações locais e as ações de conser-</p><p>vação só se atinge por meio do estabelecimento de uma clara relação entre a</p><p>conservação dos recursos naturais e a melhoria da qualidade de vida. Esta melhoria</p><p>pode ser percebida na evolução da geração de renda destas populações, mas tam-</p><p>bém em fatores relacionados ou decorrentes de ações de educação e saúde das</p><p>comunidades, ações de extensão para aperfeiçoamento da produção local e para o</p><p>melhoramento tecnológico. Estes são fatores que também produzem melhores</p><p>níveis de vida para a população local. Uma vez estabelecida esta relação, decorre</p><p>conseqüentemente a redução da pressão antrópica sobre o meio ambiente e sobre</p><p>aquelas espécies sobre as quais estava anteriormente concentrado todo o impacto</p><p>da ação humana. A redução desta pressão, sua regulamentação e seu confinamento</p><p>àquelas zonas de uso sustentado resultarão em melhores níveis de conservação da</p><p>biodiversidade, que são o objetivo final de uma RDS.</p><p>Dimensões Humanas da Biodiversidade</p><p>Petrópolis - 2006 455</p><p>Os componentes do modelo: gestão participativa</p><p>A participação comunitária na gestão da RDS acontece em vários aspectos:</p><p>através da agregação do conhecimento tradicional ao conhecimento científico,</p><p>por meio do envolvimento das comunidades em todas as etapas de execução das</p><p>atividades e, também, na determinação a priori (independente da existência de</p><p>um marco legal mais claro e incisivo) de que a população tradicional local tem</p><p>prioridade na apropriação dos recursos naturais (ou ao acesso a eles) e na parti-</p><p>ção dos benefícios gerados pela biodiversidade. Adicionalmente, este envolvimento</p><p>também se observa por meio do poder de decisão que as comunidades possuem</p><p>sobre a gestão dos seus recursos. Todo este processo participativo é baseado num</p><p>sistema de capacitação e fortalecimento de lideranças locais, que é realizado atra-</p><p>vés de oficinas de cidadania, cursos de capacitação de liderança e de intercâmbi-</p><p>os com outras áreas e instituições para partilha de experiências.</p><p>A gestão participativa da RDS é feita através de fóruns de comunitários e lide-</p><p>ranças, onde são tomadas as principais decisões referentes ao manejo dos recursos</p><p>naturais. Na Figura 2 observa-se a evolução na participação e representatividade</p><p>das Assembléias Gerais de Mamirauá.</p><p>0</p><p>20</p><p>40</p><p>60</p><p>80</p><p>100</p><p>120</p><p>140</p><p>160</p><p>1993 1994 1995 1996 1998 1999 2000 2001 2002 2003</p><p>Figura 2. Evolução do envolvimento e participação das comunidades na gestão participativa,</p><p>exemplificado pelo número de lideranças comunitárias representando assentamentos</p><p>(comunidades, vilas e sítios) da área focal da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá</p><p>nas Assembléias Gerais Anuais de 1993 a 2003 (Fonte: Isabel Souza).</p><p>O fórum máximo para tomada de decisão na Unidade de Conservação é a</p><p>Assembléia Geral de Usuários da Reserva Mamirauá, que acontece uma vez ao</p><p>ano. As assembléias são parte de uma estrutura representativa com lideranças</p><p>eleitas pelas comunidades. Antes das assembléias, cada grupo de comunidades,</p><p>ou Setores, propõe uma pauta de tópicos relevantes que é transmitida previamen-</p><p>te às comunidades. Assim, cada comunidade discute internamente os assuntos da</p><p>I. Garay e B.K. Becker (orgs.)</p><p>456 Editora Vozes</p><p>pauta e elege um representante como porta-voz destas decisões. Estes represen-</p><p>tantes eleitos das 63 comunidades se reúnem anualmente na Assembléia, onde</p><p>interagem com outras instituições locais para discutir os avanços, retrocessos e</p><p>novas estratégias na implantação do Plano de Manejo. Os encaminhamentos e</p><p>decisões são feitos inteiramente pelas lideranças e somente elas detêm o direito</p><p>de voto.</p><p>Além disso, outros fóruns para tomada de decisão também são articulados em</p><p>Mamirauá. As reuniões de Setor, por exemplo, reúnem grupos de comunidades</p><p>onde são tomadas as decisões referentes ao manejo dos recursos especificamente</p><p>daquele Setor. Cada comunidade possui sua estrutura de organização política</p><p>para a tomada de decisão. Por vezes esta estrutura é formalizada através de uma</p><p>associação de moradores (com presidente, tesoureiro, secretário etc.) e, outras</p><p>vezes, esta estrutura é informal. As comunidades ribeirinhas da Reserva Mamirauá</p><p>estão organizadas com base em laços de parentesco</p><p>e, assim, muitas das decisões</p><p>tomadas estão intimamente ligadas com estes interesses familiares.</p><p>As estruturas existentes para propiciar a participação intensa das comunidades</p><p>nas tomadas de decisão são garantidas dentro da própria formulação do modelo.</p><p>Há uma intensa negociação, que ocorre em diferentes níveis, no sentido de</p><p>compatibilizar as expectativas de comunitários e técnicos e pesquisadores no</p><p>manejo das áreas. Há casos concretos em que as posições adotadas pelas comu-</p><p>nidades, contrárias às dos técnicos, prevaleceram ao fim da negociação. Entre-</p><p>tanto, a garantia de proteção à biodiversidade sempre orienta todas as ações e</p><p>negociações na RDS.</p><p>Os componentes do modelo: pesquisa científica</p><p>A gestão participativa das Unidades de Conservação na Amazônia deve ser</p><p>estruturada sobre forte embasamento científico, para que sejam produzidos sub-</p><p>sídios consistentes que avaliem as estratégias de zoneamento e uso dos compo-</p><p>nentes da biodiversidade. O uso de bases pouco científicas, somente apoiadas em</p><p>Planos de Manejo pouco rigorosos, ou somente apoiados em uma série de levan-</p><p>tamentos rápidos, não consegue gerar estratégias capazes de oferecer resultados</p><p>significativos para a conservação da biodiversidade.</p><p>Apesar de o modelo estabelecer que a manutenção (e regulamentação) dos</p><p>meios de sobrevivência das populações locais sejam um importante instrumento</p><p>para a conservação da Unidade e sua biodiversidade, o objetivo que permeia a</p><p>criação das próprias Unidades é conservação da biodiversidade da área e a manu-</p><p>tenção de seus processos ecológicos e evolutivos. Tais processos são relevantes</p><p>não só ao nível local, mas também regional e internacionalmente, na manutenção</p><p>das pessoas, seus modos de vida, na reprodução dos recursos naturais explorados</p><p>Dimensões Humanas da Biodiversidade</p><p>Petrópolis - 2006 457</p><p>em outros locais e, ainda, no oferecimento de vários outros serviços ambientais.</p><p>Sendo assim, as normas de uso e o sistema de zoneamento destas áreas devem</p><p>estar fundamentalmente baseados em estudos científicos que considerem da me-</p><p>lhor forma possível os aspectos de manutenção e reprodução dos principais com-</p><p>ponentes da biodiversidade, a resiliência natural dos hábitats presentes e outras</p><p>formas de recuperação dos ambientes naturais. Assim, aumentam-se as garantias</p><p>de conservação da biodiversidade local como um todo e por um longo prazo.</p><p>Obviamente, aliando o uso tradicional e o saber ancestral das populações locais</p><p>ao conhecimento científico, haverá uma maior probabilidade de que as Unidades</p><p>de Conservação de uso sustentado alcancem resultados mais positivos para a</p><p>conservação da biodiversidade.</p><p>Antes da transformação da Estação Ecológica Mamirauá em Reserva de De-</p><p>senvolvimento Sustentável Mamirauá, a Sociedade Civil Mamirauá produziu uma</p><p>ampla gama de estudos científicos para servirem de base na elaboração cuidado-</p><p>sa de seu Plano de Manejo. Este programa de pesquisas dirigido ao Plano de</p><p>Manejo durou cerca de três anos, o que foi considerado o tempo mínimo neces-</p><p>sário para a obtenção de conhecimento suficiente para a primeira proposição de</p><p>manejo, oferecida para discussão às populações, em 1995, e finalmente aprovada</p><p>e sancionada pelo governo estadual, em 1996. Na Tabela 1 encontram-se as prin-</p><p>cipais linhas de pesquisa adotadas entre 1992 e 1995 para subsidiar a elaboração</p><p>do Plano de Manejo.</p><p>Tabela 1. Principais Linhas de Pesquisa para elaboração do Plano de Manejo da RDS Mamirauá</p><p>(1992-1995).</p><p>áuarimaMSDRadojenaMedonalPodoãçarobalearapasiuqsepedsahnilsiapicnirP</p><p>aflaedadisrevidedsotnematnaveL</p><p>atebedadisrevidedsotnematnaveL</p><p>siarutansosrucersiapicnirpsodaigoloibadsodutsE</p><p>socimônoce-oicóssotnematnaveL</p><p>sosrucersodeoçapseodlanoicidartosuodsodutsE</p><p>sosrucersodlevátnetsusosuedsadauqedasamrofedoãçagitsevnIuo/eotnematnaveL</p><p>adivededadilauqadoãçomorpaarapsadairporpasaigoloncetedodutsE</p><p>Os componentes do modelo: sistema de zoneamento</p><p>O sistema de zoneamento foi elaborado principalmente em função da distri-</p><p>buição do uso dos recursos pesqueiros, que são o principal recurso natural explo-</p><p>rado pela população local. O sistema proposto à apreciação e voto das lideranças</p><p>em 1995 partiu de duas principais fontes. A primeira delas foi o resultado de</p><p>I. Garay e B.K. Becker (orgs.)</p><p>458 Editora Vozes</p><p>várias pesquisas que tiveram, dentre seus objetivos, determinar preliminarmente</p><p>a distribuição espacial da ocorrência das principais espécies de recursos na Área</p><p>Focal, bem como a distribuição espacial das atividades de uso destas espécies</p><p>realizadas pelas populações locais. Este conjunto de estudos gerou uma série de</p><p>mapas da Área Focal de Mamirauá onde foram registradas estas distribuições. A</p><p>segunda fonte de informações foi uma releitura, e nova interpretação, dada a um</p><p>sistema de categorização de lagos originalmente proposto pela Prelazia de Tefé</p><p>(Igreja Católica) aos comunitários da região nos anos 70, que lançou as primeiras</p><p>sementes do movimento de base pela preservação de lagos.</p><p>Este sistema anterior de ordenamento espacial dividia os lagos da região em</p><p>três categorias principais: lagos de preservação (ou procriação), lagos de subsis-</p><p>tência e lagos de comercialização. Haviam outras categorias menos relevantes e,</p><p>também, outras categorias mistas resultantes da fusão de duas dessas categorias</p><p>principais. As funções de manejo dessas três categorias principais estavam</p><p>estabelecidas pelo próprio nome de cada uma delas. Entretanto seu significado</p><p>prático diferia sensivelmente. Os lagos de comercialização e de subsistência ser-</p><p>viam ao propósito de uso para pesca por parte das comunidades ribeirinhas (com</p><p>exclusividade de acesso), para venda do pescado ou para a manutenção das co-</p><p>munidades, respectivamente. Os lagos de preservação destinavam-se à formação</p><p>de uma reserva de pescado, não utilizada costumeiramente, mas a ser utilizada</p><p>no futuro ou em face a qualquer dificuldade maior a ser enfrentada pela comuni-</p><p>dade (Queiroz, 1999; Queiroz e Sardinha, 1999). Este sistema, com todos os</p><p>méritos de seu pioneirismo, não possuía muito embasamento na biologia dos</p><p>recursos pesqueiros. A princípio, o então Projeto Mamirauá propôs algumas pe-</p><p>quenas modificações e adaptações ao sistema de ordenamento dos lagos criados</p><p>pela Igreja Católica, além de um sistema de zoneamento compatível com as cate-</p><p>gorias de manejo dos lagos. Neste ponto foram propostas três categorias princi-</p><p>pais de zonas de manejo: a zona de uso sustentável, a zona de proteção total e a</p><p>zona de assentamentos permanentes.</p><p>A zona de proteção total foi criada para proteger os recursos genéticos da</p><p>Reserva, agindo como uma fonte de estoque para as zonas adjacentes, onde o uso</p><p>sustentado de recursos é permitido. Nesta zona não são permitidas quaisquer</p><p>atividades humanas além daquelas de fiscalização e controle. Na zona de uso</p><p>sustentável os recursos estão disponíveis para os moradores da Reserva, mas o</p><p>uso destes recursos deve ser ordenado e regulado pelas normas do Plano de Ma-</p><p>nejo. Nas zonas de assentamento, estão localizadas as comunidades e são permi-</p><p>tidas modificações mais intensas do meio, necessárias para a manutenção do</p><p>modo de vida da população local, como a agricultura. Num segundo momento as</p><p>zonas de assentamento permanente foram absorvidas na zona de uso sustentado,</p><p>uma vez que os assentamentos também estão sob a regulação das normas do</p><p>Plano de Manejo. Além dessas três zonas existem também as zonas de manejo</p><p>Dimensões Humanas da Biodiversidade</p><p>Petrópolis - 2006 459</p><p>especial que são áreas que regulam a proteção de um recurso específico dentro</p><p>das zonas de uso sustentável ou em suas adjacências (SCM, 1996).</p><p>As pesquisas científicas para estabelecimento dos subsídios ao zoneamento da</p><p>área tiveram como ponto de partida o uso tradicional dos recursos locais. Foi</p><p>importante identificar, em conjunto com os moradores, como as comunidades</p><p>historicamente dividiam seu espaço e utilizavam seus recursos, de modo a elabo-</p><p>rar um sistema de uso correspondente que integrasse estes interesses locais com</p><p>o conhecimento científico gerado</p><p>pelas pesquisas biológicas sobre as principais</p><p>espécies. Este sistema tradicional foi representado através da aplicação de técni-</p><p>cas de mapeamento participativo dos recursos realizado pelas comunidades lo-</p><p>cais, o que serviu também para identificar as áreas de sobreposição de uso e áreas</p><p>potenciais de conflitos (e, claro, aquelas de conflitos correntes). Nestas áreas</p><p>conflituosas um processo de intensa negociação foi levado a cabo com o objetivo</p><p>de integrar os diversos interesses locais e produzir um sistema de uso que fosse</p><p>realmente apropriado pelas populações moradoras da área.</p><p>Os componentes do modelo: as normas de uso dos recursos</p><p>As mesmas pesquisas biológicas que geraram as informações a respeito das</p><p>distribuições espaciais da ocorrência do recurso e de seu uso, também fornece-</p><p>ram importantes informações sobre melhores práticas de uso ou de adequação</p><p>desse uso. Tais informações foram baseadas nas características biológicas das</p><p>espécies estudadas, especialmente em aspectos relevantes da dinâmica populacional,</p><p>tais como o recrutamento, seja por natalidade ou por migração, e a mortalidade,</p><p>seja natural ou induzida pelo uso. Portanto, aspectos importantes como a repro-</p><p>dução do recurso e sua capacidade de regeneração ou resiliência foram sempre</p><p>considerados, quando conhecidos. Estes foram aspectos fundamentais para gerar</p><p>recomendações de manejo para espécies-chave tais como pirarucus, tambaquis e</p><p>peixes miúdos (categoria local de migradores que engloba principalmente os</p><p>peixes das famílias Curimatidae e Prochilodontidae), jacarés, peixes-boi, e espé-</p><p>cies de árvores de importância madeireira. Estudos mais ligados a processos de</p><p>uso das espécies, e não a elas próprias, também foram fundamentais para o esta-</p><p>belecimento de raios de ação das comunidades da região, tal foi o caso dos pri-</p><p>meiros estudos sobre a caça e daqueles sobre os sistemas agrícolas e</p><p>agrossilviculturais desenvolvidos em Mamirauá. Estes estudos também investiga-</p><p>ram as tecnologias empregadas na utilização da biodiversidade e estimaram, sempre</p><p>que possível, o seu impacto ambiental de maneira mais geral.</p><p>As normas de uso decorrentes foram sugeridas pelos pesquisadores e ofereci-</p><p>das para debate e negociação com as lideranças locais. Estas normas estabelece-</p><p>ram restrições ao uso, seja pela limitação do esforço, criando ou reforçando</p><p>estações de uso já existentes, com períodos de pousio ou de proibição, localmente</p><p>I. Garay e B.K. Becker (orgs.)</p><p>460 Editora Vozes</p><p>conhecidos como “defeso”, seja pela limitação da produção, criando ou reforçan-</p><p>do tamanhos mínimos de captura, diâmetros mínimos de abate, limitando o sexo</p><p>que pode ser removido, criando limitações ao emprego de aparelhos de pesca ou</p><p>de outras tecnologias de produção etc. Todas estas normas visavam um uso sus-</p><p>tentável do ponto de vista ecológico, partindo do princípio que um indivíduo, ou</p><p>um grupo de indivíduos, só pode ser removido quando já teve a oportunidade de</p><p>produzir uma descendência que pelo menos o substitua.</p><p>É relevante dizer que o Plano de Manejo também dispõe sobre espécies que</p><p>eram (ou ainda são) protegidas pela legislação vigente, e cujo uso era (ou ainda</p><p>é) estritamente proibido. Este tipo de recomendação ou regulação foi desenvolvi-</p><p>do a partir da constatação de que tais espécies estavam efetivamente sendo utili-</p><p>zadas pela população local, e que não havia (como realmente ainda não há) pos-</p><p>sibilidade do poder público garantir o cumprimento da lei, por diversos motivos</p><p>alheios à presente discussão. Portanto, uma forma eficiente de avançar na prote-</p><p>ção local destas espécies seria admitir que seu uso é corrente, o que não supõe sua</p><p>“legalização”, e a orientação para a adoção de práticas menos danosas à espécie.</p><p>Este foi o caso do uso de jacarés ou de peixes-boi, protegidos legalmente mas</p><p>continuamente utilizados pelas populações locais de Mamirauá no período da</p><p>elaboração do Plano de Manejo. Tais regulamentos foram cuidadosamente discu-</p><p>tidos com as lideranças, de modo que fosse claramente compreendido que aquela</p><p>não era uma tentativa de legalização local do uso daquelas espécies por parte do</p><p>Projeto Mamirauá, algo impossível pelos princípios legais que regem a União e,</p><p>também, inadequado por causa da concordância de que há realmente a necessidade</p><p>de proteger algumas dessas espécies. As normas de uso para estas espécies tenta-</p><p>vam, naquele contexto, diminuir o impacto do uso sobre a reprodução das espécies,</p><p>e sua capacidade de resistir à pressão antropogênica exercida sobre elas.</p><p>Tanto o sistema de zoneamento como as normas de uso a serem respeitadas</p><p>dentro das zonas de uso sustentável foram aprovados por meio de votação nos</p><p>fóruns locais e posteriormente ratificados pelo órgão ambiental governamental</p><p>(Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas, IPAAM) para serem considera-</p><p>dos oficiais.</p><p>Os componentes do modelo: alternativas econômicas</p><p>Embora o Plano de Manejo da RDS Mamirauá, o seu sistema de zoneamento</p><p>e as várias normas de uso tenham sido baseados no formato de uso tradicional dos</p><p>recursos pelas comunidades locais, em alguns casos novas normas de uso e de</p><p>acesso foram implementadas. Tanto as normas de uso quanto o sistema de</p><p>zoneamento provocaram assim restrições (de acesso e de uso dos recursos) que</p><p>poderiam causar mudanças socioeconômicas bastante relevantes nas comunida-</p><p>des locais. O impacto do acatamento dessas normas chegou a ser estimado em</p><p>alguns casos.</p><p>Dimensões Humanas da Biodiversidade</p><p>Petrópolis - 2006 461</p><p>Como medidas compensatórias às restrições de uso determinadas no Plano de</p><p>Manejo, foram criadas propostas de alternativas econômicas com base nos resul-</p><p>tados das pesquisas científicas e no monitoramento do uso dos recursos naturais.</p><p>As “alternativas econômicas”, como são chamadas em Mamirauá, são atividades</p><p>produtivas tradicionais ou não-tradicionais, de baixo impacto ambiental, de cará-</p><p>ter compensatório, que foram implementadas com vários objetivos. Os princi-</p><p>pais deles foram (a) valorizar os produtos da biodiversidade local no mercado,</p><p>(b) agregar valor a estes produtos e a produtos similares produzidos localmente,</p><p>(c) impedir a diminuição da geração de renda local, tipicamente baixa, em decor-</p><p>rência do acatamento das normas de manejo, (d) promover uma correlação direta</p><p>entre geração de renda e conservação, com amplas implicações educativas e de-</p><p>monstrativas, e (e) sempre que possível, aumentar a geração de renda por meio</p><p>de mecanismos não impactantes, ajudando a aperfeiçoar a qualidade de vida lo-</p><p>cal. As alternativas econômicas têm como diferencial o uso de novas práticas de</p><p>produção aliando o uso tradicional às atuais técnicas de manejo, a diversificação</p><p>do número de espécies exploradas (diluindo a pressão de uso), a comercialização</p><p>dos produtos em novos mercados, o gerenciamento contábil e acesso dos peque-</p><p>nos produtores a financiamentos e carteiras de crédito.</p><p>Estas iniciativas envolvem necessariamente atividades complexas, como a or-</p><p>ganização de grupos de produtores, a capacitação de recursos humanos dentre os</p><p>produtores, a implantação de infra-estrutura adequada à produção e o desenvol-</p><p>vimento de sistemas de informações sobre o mercado visando à comercialização</p><p>dos produtos desenvolvidos (Viana e Damasceno, 2004). As alternativas econô-</p><p>micas visam principalmente avanços em três principais âmbitos: o âmbito econô-</p><p>mico, como o aumento da renda; o âmbito sociopolítico, como a criação de</p><p>sistemas de gestão de recursos naturais que integrem o acesso aos recursos com a</p><p>participação da população na sua proteção; e o âmbito ecológico, como a busca</p><p>de melhores níveis de conservação dos recursos naturais renováveis envolvidos</p><p>na produção.</p><p>Em alguns casos, estas “alternativas econômicas” representam uma adaptação</p><p>ou reestruturação de atividades tradicionalmente já desenvolvidas, como a pesca,</p><p>a exploração madeireira, o artesanato e a agricultura. Em outros casos, são</p><p>introduzidas novas atividades econômicas, como o ecoturismo ou a exploração</p><p>de produtos florestais não-madeireiros. Os sistemas de manejo de</p><p>recursos natu-</p><p>rais implantados foram desenvolvidos a partir de práticas tradicionais aliadas às</p><p>técnicas de mínimo impacto baseadas em pesquisa científica. Um sistema de</p><p>monitoramento foi construído e é utilizado para avaliar a eficácia dos modelos e</p><p>práticas de manejo da biodiversidade.</p><p>Uma das grandes inovações dos programas de alternativas econômicas criados</p><p>em Mamirauá é a criação de uma correlação direta entre conservação e geração</p><p>de benefícios econômicos. Esta ligação é parte de uma estratégia de conservação</p><p>I. Garay e B.K. Becker (orgs.)</p><p>462 Editora Vozes</p><p>mais ampla incluindo muitas outras ações, como os sistemas de fiscalização e</p><p>controle, o fortalecimento político de grupos locais e suas lideranças e as ativida-</p><p>de de educação ambiental e de apoio à saúde comunitária.</p><p>A promoção de uma correlação clara entre a conservação e a geração de renda</p><p>tem sido a abordagem principal através da qual o modelo de conservação de</p><p>Mamirauá tem sido aplicado. Um exemplo disso é o ordenamento do acesso aos</p><p>benefícios econômicos provenientes da conservação da biodiversidade. A im-</p><p>plantação das alternativas econômicas provocou discussões sobre a regulamenta-</p><p>ção do acesso aos recursos. No manejo dos recursos de pesca, por exemplo, a</p><p>exploração comercial hoje é feita através de uma associação e cada membro desta</p><p>tem direito a uma cota anual. Esta cota é determinada pelo desempenho do asso-</p><p>ciado em relação a alguns critérios predeterminados pela própria associação, como</p><p>sua participação nos cursos e encontros promovidos pela associação, sua partici-</p><p>pação no sistema voluntário de vigilância e sua obediência às normas do Plano de</p><p>Manejo em geral. Embora cada membro da associação tenha direito a uma cota</p><p>mínima para comercialização, a possibilidade de aumento desta cota encoraja os</p><p>pescadores a apoiar as iniciativas de conservação.</p><p>Um outro exemplo foi o efeito similar produzido pelo programa de ecoturismo,</p><p>segundo o qual os lucros obtidos são divididos entre as sete comunidades locais</p><p>envolvidas com esta atividade. O acesso destas comunidades a estes recursos</p><p>monetários também sofreu uma regulamentação. Os benefícios econômicos dire-</p><p>tos, como prestação de serviços na Pousada, pertencem àqueles que respeitam as</p><p>normas do Plano de Manejo. Além disso, cada comunidade recebe parte dos</p><p>lucros de acordo com seu desempenho no manejo sustentável daquela parte da</p><p>reserva e no nível de participação nas ações de conservação. É importante notar</p><p>que as próprias comunidades locais elaboram, regulamentam e acompanham o</p><p>sistema de acesso aos recursos naturais, e/ou aos benefícios econômicos deriva-</p><p>dos destes. A geração de benefícios econômicos através do uso sustentável dos</p><p>recursos tem catalisado mais apoio local e promovido melhores níveis de conser-</p><p>vação (o que, por sua vez, deve gerar mais benefícios econômicos) que muitas</p><p>ações tradicionais de proteção da biodiversidade, e se apresenta como uma das</p><p>principais estratégias para a conservação da Amazônia hoje.</p><p>As alternativas econômicas já consolidadas nas comunidades da RDS Mamirauá</p><p>são o manejo da pesca comercial, o manejo de recursos madeireiros, o ecoturismo,</p><p>o artesanato e a agricultura familiar. Junto a estas, outras alternativas estão em</p><p>fase de consolidação, como o manejo de recursos florestais não madeireiros.</p><p>Outras encontram-se hoje (2004) em fase de implantação, como o manejo de</p><p>quelônios, ou em fase de estudos visando os testes-piloto, como o manejo de</p><p>peixes ornamentais ou o manejo de jacarés.</p><p>Para exemplificar de modo mais concreto e detalhado, a seguir as ações de três</p><p>dos programas de alternativas econômicas de Mamirauá.</p><p>Dimensões Humanas da Biodiversidade</p><p>Petrópolis - 2006 463</p><p>Manejo da pesca</p><p>O recurso pesqueiro é a principal fonte de renda para as comunidades da Re-</p><p>serva Mamirauá. A conservação deste recurso através de seu manejo sustentável</p><p>é, portanto, fundamental tanto para a subsistência da população humana e persis-</p><p>tência das populações de peixes quanto para a manutenção da sua comercialização</p><p>e perpetuação de uma cadeia econômica importante.</p><p>O Programa de Manejo de Pesca tem cinco componentes principais: a organi-</p><p>zação comunitária, a capacitação da população local, a pesquisa, o monitoramento</p><p>e a comercialização do pescado. A organização comunitária é essencial para o</p><p>desenvolvimento do manejo dos recursos pesqueiros tanto como incentivo para o</p><p>manejo através das reuniões e intercâmbios entre as comunidades como através</p><p>da assessoria às associações comunitárias, seu registro e documentação etc. Além</p><p>disso, um outro aspecto essencial na implantação deste componente do manejo é</p><p>o mapeamento participativo dos recursos para detecção de conflitos, conheci-</p><p>mento dos modos de uso tradicional dos recursos pesqueiros e implantação do</p><p>sistema de zoneamento. A capacitação também é parte fundamental do Progra-</p><p>ma, principalmente em processamento e tecnologia de pesca e manejo de esto-</p><p>ques. A pesquisa e o monitoramento são essenciais para indicar as cotas de produ-</p><p>ção e os níveis ou parâmetros populacionais dos peixes explorados, e para avaliar</p><p>o estado de conservação daquelas espécies. Além dessa aplicação, a pesquisa ci-</p><p>entífica gera as informações sobre a biologia e a ecologia das espécies que são</p><p>levadas em conta quando da elaboração de normas para seu manejo. Este papel</p><p>subsidiário da pesquisa científica no manejo dos recursos naturais é fundamental</p><p>para manter o sistema em bom funcionamento no longo prazo.</p><p>Construído sobre os componentes citados acima, o Programa de Manejo de</p><p>Pesca que teve início em 1998, em um dos setores da reserva, o Setor Jarauá. Mas</p><p>desde então esta iniciativa tem se multiplicado e, em 2004, existem cinco asso-</p><p>ciações que realizam a pesca manejada (do pirarucu e de outras 10 espécies de</p><p>peixes). Essas associações aglutinam hoje aproximadamente 300 pescadores, sendo</p><p>que três delas estão localizadas na RDS Mamirauá, uma na RDS Amanã e uma na</p><p>sede do município de Maraã, envolvendo pescadores comerciais não-moradores</p><p>das reservas, mas dentro de sua zona de influência.</p><p>Este programa tem como principais objetivos a promoção da conservação dos</p><p>recursos pesqueiros existentes em Mamirauá por meio da organização e diversi-</p><p>ficação do sistema de produção pesqueira local, formando uma estrutura produ-</p><p>tiva organizada em associações de pesca, capacitando os pescadores locais, ga-</p><p>rantindo a qualidade da produção, incentivando regionalmente a pesca artesanal</p><p>sustentável e promovendo a melhoria da qualidade de vida das comunidades</p><p>ribeirinhas ligadas ao programa.</p><p>I. Garay e B.K. Becker (orgs.)</p><p>464 Editora Vozes</p><p>Para a implantação das atividades foi essencial que os pescadores estivessem</p><p>organizados em associações e treinados em técnicas básicas de pesca manejada,</p><p>técnicas de processamento de pescado e de gerenciamento de organizações de</p><p>produtores. Esta organização e capacitação fortaleceram enormemente as asso-</p><p>ciações trabalhadas. Uma das principais exigências para integrar o Programa de</p><p>Manejo de Pesca foi a de que o pescador teria que respeitar as normas estabelecidas</p><p>no Plano de Manejo e na Legislação de Pesca vigente, bem como as portarias do</p><p>IBAMA.</p><p>Em 1996, uma portaria da gerência estadual do IBAMA do Amazonas proibiu</p><p>a comercialização do pirarucu no estado, pois havia evidências que os estoques</p><p>da espécie estavam diminuindo a cada ano. Esta proibição estadual vigente des-</p><p>de então tem a duração anual de seis meses, e se complementa com a proibição</p><p>anual da pesca nos outros seis meses, válida para toda a região amazônica. Na</p><p>prática a decisão tornou ilegal a pesca da espécie no Amazonas pelos últimos oito</p><p>anos consecutivos. O principal impacto desta decisão recaiu sobre os pescadores</p><p>que tinham o pirarucu como espécie-chave na composição de sua base de gera-</p><p>ção de renda.</p><p>Este impasse na vida dos pescadores de Mamirauá foi resolvido inicialmente</p><p>pela implementação do manejo de pesca na reserva: os pescadores locais apresen-</p><p>taram uma proposta no primeiro ano de operação (1999) para um sistema de</p><p>rodízio em 31 dos 133 lagos existentes na zona de uso sustentável do Setor Jarauá,</p><p>na parte nordeste da área focal da Reserva Mamirauá. Neste rodízio, os pirarucus</p><p>seriam pescados num sistema de cotas, durante dois meses ao ano, seguindo-se as</p><p>orientações do Plano de Manejo. A proposta foi aprovada pelo IBAMA, que</p><p>estabeleceu uma cota inicial de três toneladas a serem retiradas daquele Setor.</p><p>Desde então as cotas anuais são calculadas através de estimativas conservadoras</p><p>para o número de pirarucus adultos existentes na área do Setor, calculadas através</p><p>de uma técnica de contagem visual dos estoques desenvolvida pelos pescadores</p><p>locais e pesquisadores do IDSM. As propostas de cota são aprovadas e homologa-</p><p>das anualmente pelo IBAMA. Estas cotas crescem a cada ano, à medida que os</p><p>estoques se recuperam vertiginosamente da situação inicial de sobrepesca.</p><p>O levantamento dos estoques é essencial para obter-se a licença do IBAMA</p><p>para a comercialização do pescado. Este levantamento foi realizado através de</p><p>uma técnica que utiliza o conhecimento dos próprios pescadores5, que através da</p><p>visão e audição, conseguem estimar com grande precisão o número de pirarucus</p><p>em um determinado local.</p><p>5. O pirarucu precisa respirar na superfície em intervalos regulares e alguns pescadores observaram que cada</p><p>indivíduo tem seu próprio modo de fazer isso. Para diferenciar os indivíduos, são observados: o barulho que os</p><p>peixes fazem quando vêm à superfície, a cor e a forma de suas nadadeiras e o padrão deixado na superfície da</p><p>água quando estes submergem. Com estas características individuais em mente, os pescadores conseguem iden-</p><p>tificar cada indivíduo. A técnica foi testada e publicada por Leandro Castello, que comparou a estimativa dos</p><p>pescadores com suas próprias contagens através de métodos de captura e marcação.</p><p>Dimensões Humanas da Biodiversidade</p><p>Petrópolis - 2006 465</p><p>A renovação da autorização para a pesca manejada é feita anualmente e medi-</p><p>ante a submissão de relatórios ao IBAMA-Amazonas. Os resultados dos últimos</p><p>anos indicam que o sistema de manejo do pirarucu está produzindo excelentes</p><p>resultados e não apenas em relação à recuperação dos estoques, mas também com</p><p>respeito ao aumento da renda dos pescadores e a sua organização comunitária.</p><p>0</p><p>50</p><p>100</p><p>150</p><p>200</p><p>250</p><p>300</p><p>350</p><p>400</p><p>6</p><p>0</p><p>-7</p><p>0</p><p>7</p><p>0</p><p>-8</p><p>0</p><p>8</p><p>0</p><p>-9</p><p>0</p><p>9</p><p>0</p><p>-1</p><p>0</p><p>0</p><p>1</p><p>0</p><p>0</p><p>-1</p><p>1</p><p>0</p><p>1</p><p>1</p><p>0</p><p>-1</p><p>2</p><p>0</p><p>1</p><p>2</p><p>0</p><p>-1</p><p>3</p><p>0</p><p>1</p><p>3</p><p>0</p><p>-1</p><p>4</p><p>0</p><p>1</p><p>4</p><p>0</p><p>-1</p><p>5</p><p>0</p><p>1</p><p>5</p><p>0</p><p>-1</p><p>6</p><p>0</p><p>1</p><p>6</p><p>0</p><p>-1</p><p>7</p><p>0</p><p>1</p><p>7</p><p>0</p><p>-1</p><p>8</p><p>0</p><p>1</p><p>8</p><p>0</p><p>-1</p><p>9</p><p>0</p><p>1</p><p>9</p><p>0</p><p>-2</p><p>0</p><p>0</p><p>2</p><p>0</p><p>0</p><p>-2</p><p>1</p><p>0</p><p>2</p><p>1</p><p>0</p><p>-2</p><p>2</p><p>0</p><p>2</p><p>2</p><p>0</p><p>-2</p><p>3</p><p>0</p><p>2</p><p>3</p><p>0</p><p>-2</p><p>4</p><p>0</p><p>1998</p><p>1999</p><p>2000</p><p>2001</p><p>2002</p><p>2003</p><p>P</p><p>ir</p><p>a</p><p>ru</p><p>c</p><p>u</p><p>s</p><p>p</p><p>e</p><p>s</p><p>c</p><p>a</p><p>d</p><p>o</p><p>s</p><p>classes de tamanho (cm)</p><p>Figura 3. Evolução do número e tamanho dos pirarucus pescados por uma das associações de</p><p>pescadores da RDS Mamirauá participantes do Programa de Manejo de Pesca, realizado</p><p>anualmente entre outubro e dezembro desde 1999 (fonte: João Paulo Viana e Guillermo Estupiñan).</p><p>Desde o primeiro ano de operações até os dias de hoje muitos desenvolvimen-</p><p>tos se registraram. Houve um aumento do número de pescadores participantes,</p><p>um enorme aumento da produção, um aumento no número de espécies explora-</p><p>das (o que indica que os pescadores estão diminuindo a pressão de pesca sobre as</p><p>espécies que eram preferencialmente exploradas), um bom aumento no valor</p><p>médio de mercado do pirarucu, aumento do faturamento bruto e da renda média</p><p>por pescador participante no programa durante os períodos de funcionamento do</p><p>Programa de Manejo de Pesca.</p><p>Manejo florestal6</p><p>A exploração de madeira é uma das atividades tradicionais dos povos de vár-</p><p>zea, principalmente durante a época da cheia, e a população tradicional de</p><p>Mamirauá não é uma exceção. Mas até a implantação do Programa de Manejo</p><p>6. Texto adaptado de www.mamiraua.org.br, julho de 2004, elaborado por Andréa Pires.</p><p>I. Garay e B.K. Becker (orgs.)</p><p>466 Editora Vozes</p><p>Florestal Comunitário na RDSM a atividade tinha sido realizada de forma ilegal,</p><p>assim como em outras regiões da Amazônia. Até recentemente, a legalização do</p><p>manejo florestal comunitário não era prevista na legislação. Entretanto, o Decre-</p><p>to 2.788, de 28 de setembro de 1998 criou o manejo comunitário simplificado.</p><p>Na Reserva Mamirauá está sendo implantada a primeira experiência deste tipo</p><p>em área de várzea da Amazônia brasileira. O objetivo da experiência é promover</p><p>a conservação dos recursos madeireiros por meio de seu aproveitamento de for-</p><p>ma sustentável, contribuindo para a melhoria da renda das populações locais. O</p><p>manejo florestal comunitário na RDS Mamirauá também é realizado por asso-</p><p>ciações comunitárias de moradores. As comunidades se organizam em associa-</p><p>ções para explorar os recursos madeireiros existentes nas suas áreas de uso. Em-</p><p>bora esta organização seja espontânea, alguns de seus aspectos legais tiveram que</p><p>ser induzidos e catalisados pelo grupo responsável pelos trabalhos e condução do</p><p>processo. Os comunitários interessados receberam treinamento e assistência téc-</p><p>nica e desde então participam ativamente do planejamento, execução e</p><p>monitoramento do manejo florestal.</p><p>Através de um mapeamento participativo são determinadas as áreas de explo-</p><p>ração de cada comunidade. Esta área é então dividida em 25 partes (ou talhões) e</p><p>a cada ano explora-se cada uma dessas áreas, que permanecerá em repouso até</p><p>que todos os talhões tenham sido explorados, o que se dará dentro de um ciclo de</p><p>25 anos, tempo suficiente para a renovação da floresta.</p><p>Há um intenso processo de capacitação envolvido também neste programa,</p><p>que trabalha a constituição legal, formalização e documentação das associações,</p><p>as técnicas de inventário florestal nas áreas de uso das comunidades, as técnicas</p><p>de derrubada de baixo impacto nos talhões etc. O processo de comercialização</p><p>também é atentamente acompanhado, e as primeiras experiências de “balcão de</p><p>negócios”, reunião de potenciais compradores e estabelecimento do contato dire-</p><p>to entre produtores e compradores foram muito bem-sucedidas.</p><p>A produção de madeira manejada na área focal da Reserva Mamirauá ainda é</p><p>baixa quando comparada com a antiga produção de madeira ilegal, interrompida</p><p>pela ação do grupo de Mamirauá na década anterior. Apesar disso este número é</p><p>crescente, e começa a envolver comunidades e produtores da área subsidiária, numa</p><p>iniciativa que conta com o apoio do Governo do Estado do Amazonas (SDS).</p><p>O Programa possui características ímpares, além do seu pioneirismo no Esta-</p><p>do e além de seu pioneirismo na várzea. Várias premissas que são adotadas a</p><p>priori visam focalizar a conservação das espécies e o incremento da qualidade de</p><p>vida das populações tradicionais locais. Estas preocupações são estabelecidas desde</p><p>os primeiros estágios do trabalho, de modo a minimizar ao máximo os impactos</p><p>cultural e ambiental envolvidos na exploração de madeira.</p><p>Dimensões Humanas da Biodiversidade</p><p>Petrópolis - 2006 467</p><p>De acordo com Pires (2004), ainda na fase de delimitação da área de uso da</p><p>comunidade para exploração madeireira, sempre que possível são utilizados li-</p><p>mites culturalmente definidos pelos participantes. Concomitantemente, são con-</p><p>siderados sempre que possível os contextos ambientais, como os limites naturais</p><p>das áreas de exploração (canos, igarapés, lagos etc.), a delimitação de talhões, a</p><p>identificação cuidadosa das espécies madeireiras presentes ou predominantes na</p><p>área e a seleção de indivíduos a serem derrubados no sistema de rodízio. Todas as</p><p>informações pertinentes à exploração de cada associação são anualmente delimi-</p><p>tadas por um plano de manejo específico, submetido ao IBAMA e ao IPAAM</p><p>para obtenção das licenças necessárias para execução da exploração.</p><p>Até o momento já existem 16 planos de manejo aprovados na área focal da</p><p>Reserva Mamirauá. As áreas de manejo são pequenas e com baixa intensidade de</p><p>exploração, o que garante a minimização dos impactos. A obtenção de licenças</p><p>específicas permite que o produto alcance valores de mercado muito superiores</p><p>àqueles proporcionados pela extração não-manejada. Esta última</p><p>encontra-se</p><p>praticamente extinta da área focal da RDSM nos últimos anos, como pode ser</p><p>visto na Figura 4, abaixo.</p><p>0</p><p>1000</p><p>2000</p><p>3000</p><p>4000</p><p>5000</p><p>6000</p><p>7000</p><p>8000</p><p>9000</p><p>1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003</p><p>ano</p><p>to</p><p>ra</p><p>s</p><p>d</p><p>e</p><p>rr</p><p>u</p><p>b</p><p>a</p><p>d</p><p>a</p><p>s</p><p>Figura 4. Declínio da produção anual de toras de madeira não-manejada (ilegal) na Área Focal</p><p>da Reserva Mamirauá desde 1993 (Fonte: Andréa Pires e Marlon Menezes).</p><p>Ecoturismo</p><p>O ecoturismo é entendido pelos pesquisadores e extensionistas que trabalham</p><p>em Mamirauá como “uma atividade que utiliza, de forma sustentável, o patrimônio</p><p>natural e cultural, incentiva sua conservação e busca a formação de uma consci-</p><p>ência ambientalista através da interpretação do ambiente, promovendo o bem-</p><p>I. Garay e B.K. Becker (orgs.)</p><p>468 Editora Vozes</p><p>estar das populações envolvidas”. A atividade é desenvolvida na Reserva Mamirauá</p><p>desde 1998 e seu principal objetivo é promover a conservação dos recursos natu-</p><p>rais servindo como fonte de renda alternativa para as populações moradoras da</p><p>unidade de conservação.</p><p>Para atingir tais objetivos, o Programa de Ecoturismo tem desenvolvido vári-</p><p>as ações estratégicas, como o planejamento turístico e os estudos de viabilidade,</p><p>realizados nos primeiros anos do programa, a implantação de infra-estrutura tu-</p><p>rística de mínimo impacto, envolvimento da população local e geração de bene-</p><p>fícios socioeconômicos para esta população. Ações complementares são também</p><p>desenvolvidas, como a promoção da capacitação e organização da associação</p><p>local, o desenvolvimento do produto turístico oferecido e da exploração otimizada</p><p>dos nichos existentes, dentro de uma estratégia de marketing responsável, e a</p><p>minimização e monitoramento dos impactos gerados pela atividade, tanto do ponto</p><p>de vista ambiental quanto social.</p><p>São sete as comunidades de Mamirauá e redondezas envolvidas com este pro-</p><p>grama de ecoturismo, por serem elas os assentamentos localizados na Zona Es-</p><p>pecial de Ecoturismo identificada pelo Plano de Manejo em 1996. As populações</p><p>destas sete comunidades exercem naturalmente uma variedade de atividades eco-</p><p>nômicas como a pesca, a agricultura familiar e a extração de madeira, dependen-</p><p>do da estação do ano. Esta produção doméstica é voltada tanto para o consumo</p><p>quanto para venda no mercado. O ecoturismo não foi idealizado para substituir</p><p>estas atividades produtivas tradicionais, mas sim para ser uma fonte de renda</p><p>extra para a população local, ampliando a base de geração de renda e reduzindo</p><p>a dependência às espécies tradicionalmente exploradas, visando à redução da</p><p>pressão humana sobre o ambiente daquela zona específica.</p><p>Antes que se levantassem muitas expectativas locais e um maior investimento</p><p>na atividade turística fosse realizado, foi elaborado um estudo de viabilidade,</p><p>analisando a possibilidade real de se desenvolver o produto. Na ocasião foram</p><p>identificados atrativos, seus diferenciais e sua posição competitiva no mercado</p><p>amazônico. Além disso, o estudo de viabilidade também teve o papel de identifi-</p><p>car o público-alvo e o segmento de mercado onde o produto poderia ser inserido.</p><p>Foram abordados vários aspectos de demanda e oferta turística, chegando-se ao</p><p>desenho do tipo de produto a ser oferecido. Um plano de negócios foi elaborado</p><p>para guiar a gestão administrativo-financeira do projeto. Com o resultado favo-</p><p>rável do estudo de viabilidade, verificou-se e confirmou-se o interesse das comu-</p><p>nidades locais e investiu-se na implantação da infra-estrutura turística de pequena</p><p>escala e mínimo impacto.</p><p>A hospedagem dos ecoturistas é hoje feita na Pousada Flutuante Uacari que se</p><p>encontra no interior da Reserva. Os serviços oferecidos na Pousada são de alta</p><p>qualidade, segundo uma pesquisa realizada com os próprios visitantes, e os</p><p>Dimensões Humanas da Biodiversidade</p><p>Petrópolis - 2006 469</p><p>prestadores dos serviços hoteleiros, assim como os condutores de visitantes, são</p><p>moradores da Reserva que foram treinados extensivamente pelos membros do</p><p>programa e pela associação de moradores locais criada para atender às necessida-</p><p>des da atividade, a AAGEMAM (Associação de Guias e Auxiliares de Ecoturismo</p><p>do Mamirauá).</p><p>Os atrativos turísticos naturais, culturais e científicos oferecidos pela reserva e</p><p>pelos pesquisadores que lá atuam combinam-se proporcionando ao visitante uma</p><p>experiência diversificada. Mas o forte atrativo da área é sua vida selvagem abun-</p><p>dante, resultado de 14 anos de conservação. Além disso, o contato com a cultura</p><p>local também é importante e as visitas às comunidades ribeirinhas que utilizam e</p><p>manejam seus recursos naturais de forma sustentável também fazem parte da</p><p>experiência.</p><p>Em Mamirauá, as visitas às comunidades foram elaboradas utilizando</p><p>metodologias participativas em reuniões que tinham como objetivo identificar os</p><p>atrativos existentes em cada comunidade, segundo sua própria visão de atratividade,</p><p>e estabelecer regras de conduta para os turistas durante estas visitas. As quatro</p><p>comunidades normalmente visitadas desenvolveram calendários anuais das</p><p>atividades tradicionais que seriam atrativas, como a colheita da mandioca,</p><p>fabricação da farinha, as festas dos padroeiros etc. Com o objetivo de possuir</p><p>maior grau de controle sobre a visita e minimizar seus impactos negativos, as</p><p>comunidades escolheram pessoas dentre seus membros que seriam os responsáveis</p><p>pelas visitas, decidindo o quê e como mostrar suas atrações e também orientando</p><p>a conduta do turista dentro da comunidade.</p><p>A idéia de que o ecoturismo pode promover a conservação, mostrando às</p><p>comunidades locais a importância da área natural para a geração de renda através</p><p>desta atividade econômica, é bastante difundida. Acredita-se que a destinação e</p><p>conservação de uma determinada área para atividades de ecoturismo devem agir</p><p>como incentivo para o manejo adequado dos recursos que nela se encontram</p><p>(Brandon, 1995). Em Mamirauá, os benefícios econômicos gerados ao longo de</p><p>sua implantação foram significativos o bastante para demonstrar a importância</p><p>da conservação do local. Assim, foi observado nos últimos anos um aumento</p><p>considerável das populações de recursos-chave na Zona de Manejo Especial de</p><p>Ecoturismo (IDSM, 2001). A geração de benefícios econômicos diretos em</p><p>curto prazo se mostrou uma ótima oportunidade para fixar benefícios econô-</p><p>micos no local, evitar a dispersão da receita do ecoturismo e também promover</p><p>uma correlação rápida e clara entre a conservação de recursos e a geração de</p><p>renda. Além disso, a associação entre a operação turística e outras atividades</p><p>econômicas locais também foi essencial no sentido de manter as atividades</p><p>tradicionais e distribuir benefícios econômicos. As duas atividades que mostra-</p><p>ram maior sinergia com o ecoturismo foram a produção e venda de artesanato</p><p>e a produção de alimentos.</p><p>I. Garay e B.K. Becker (orgs.)</p><p>470 Editora Vozes</p><p>Desde o ano de 2002, o empreendimento produz excedentes que são divididos</p><p>entre as sete comunidades envolvidas na reserva, que formam o Setor Mamirauá</p><p>e que estão ligadas à zona de manejo. Metade dos excedentes é aplicada em</p><p>benefício das comunidades e de seus moradores, enquanto que a outra metade</p><p>custeia o sistema de fiscalização do Setor. No primeiro ano de divisão dos exce-</p><p>dentes, as sete comunidades do setor decidiram dividi-lo em partes iguais entre</p><p>elas. A partir de 2003, as comunidades elaboraram normas de conduta, que são</p><p>utilizadas como critérios de avaliação para determinar o valor total que cada</p><p>comunidade deverá receber. Foi eleita uma comissão com membros de todas as</p><p>comunidades, responsável por avaliar o desempenho de cada uma delas em rela-</p><p>ção às normas de conduta previamente estabelecidas. De acordo com o total de</p><p>recursos atribuído a cada comunidade, cada uma elabora um projeto de desen-</p><p>volvimento comunitário para aplicar o recurso. Estes projetos são analisados,</p><p>aprovados e monitorados pela comissão de avaliação.</p><p>A principal instituição local parceira do programa de ecoturismo é a Associa-</p><p>ção de Guias e Auxiliares de Ecoturismo do Mamirauá (AAGEMAM).</p><p>O proces-</p><p>so de criação e consolidação da associação durou cerca de três anos. Seus asso-</p><p>ciados levaram algum tempo para discutir quais seriam os principais objetivos da</p><p>associação, para elaborar seu estatuto e para formalizar sua organização e docu-</p><p>mentar os associados. A associação iniciou com cerca de 15 pessoas e hoje conta</p><p>com cerca de 40 associados. A AAGEMAM tornou-se um dos principais atores</p><p>na tomada de decisão sobre a gestão da Pousada e sobre a divisão dos excedentes</p><p>da atividade. Ela é gerida por uma diretoria que, por sua vez é supervisionada por</p><p>um conselho fiscal.</p><p>As decisões referentes à atividade de ecoturismo são discutidas com as comu-</p><p>nidades do Setor Mamirauá, mas a AAGEMAM também se tornou um importan-</p><p>te interlocutor, veiculando os interesses dos associados, não apenas em questões</p><p>referentes ao ecoturismo, mas em relação à conservação e ao uso dos recursos</p><p>naturais do local.</p><p>Com forte base comunitária, boa posição no mercado e bons resultados finan-</p><p>ceiros, o ecoturismo desenvolvido em Mamirauá tem grande possibilidade de</p><p>continuar crescendo e atingir seus objetivos de conservar os recursos naturais da</p><p>área natural e também oferecer uma alternativa econômica aos moradores da</p><p>área (Figura 5). Para isso a atividade deve vencer seus principais desafios, que</p><p>são implantar a gestão comunitária do empreendimento, atingir a sustentabilidade</p><p>da qualidade dos serviços e produtos e viabilizar a continuidade das atividades</p><p>produtivas tradicionais para evitar a total dependência local ao mercado interna-</p><p>cional de ecoturismo.</p><p>Inúmeras intervenções realizadas junto às populações tradicionais de Mamirauá</p><p>têm sido de importância fundamental no estabelecimento deste modelo de uso</p><p>Dimensões Humanas da Biodiversidade</p><p>Petrópolis - 2006 471</p><p>sustentado, envolvimento político e de gestão compartilhada. Uma das mais im-</p><p>portantes foi o estabelecimento de um fundo de microcrédito em 2000, que ajuda</p><p>a financiar as contrapartidas destes e de outros programas de alternativas econô-</p><p>micas que foram implementados ou que estão em vias de implementação em</p><p>Mamirauá.</p><p>0</p><p>10.000</p><p>20.000</p><p>30.000</p><p>40.000</p><p>50.000</p><p>1998 1999 2000 2001 2002 2003</p><p>0</p><p>100</p><p>200</p><p>300</p><p>400</p><p>500</p><p>600</p><p>R</p><p>e</p><p>a</p><p>is</p><p>n</p><p>ú</p><p>m</p><p>e</p><p>ro</p><p>d</p><p>e</p><p>v</p><p>is</p><p>it</p><p>a</p><p>n</p><p>te</p><p>sbenefícios-excedentes</p><p>benefícios-pagamentos</p><p>visitantes</p><p>Figura 5 – Evolução do número anual de ecoturistas recebidos na Pousada Uacari, em Mamirauá,</p><p>e a geração de renda da atividade transferido às comunidades locais (pagamentos são transferências</p><p>diretas relativas à prestação de serviços e à compra de produtos locais, enquanto excedentes são</p><p>aplicados em projetos comunitários ou em fiscalização, veja texto).</p><p>Resultados integrados das ações desenvolvidas</p><p>A combinação de um sistema de zoneamento baseado em pesquisa científica e</p><p>conhecimento local e de uma gestão participativa, aliada e de fortes programas</p><p>de extensão, com a implantação de alternativas econômicas, gerou no médio pra-</p><p>zo um conjunto de resultados significativos em relação à conservação da</p><p>biodiversidade e à melhoria dos níveis de vida da população local.</p><p>Durante o período de 1998 até 2003, o sistema de monitoramento realizado</p><p>pelos pesquisadores de Mamirauá detectou a grande recuperação das populações</p><p>de recursos naturais que se encontravam em declínio nos 10 anos anteriores.</p><p>Uma grande diminuição das taxas anuais de transformação de hábitat (reduzidas</p><p>para cerca de 0%) foi também observada. Aparentemente foi interrompida a</p><p>conversão de ambientes florestados para outros tipos de uso na Reserva. O que se</p><p>observa é que são usados como sítios de exploração e plantio somente áreas de</p><p>uso antigas, capoeiras, e mesmo, no caso de plantio, áreas não florestadas, como</p><p>as praias de lama, que não eram utilizadas até que a atuação dos extensionistas de</p><p>I. Garay e B.K. Becker (orgs.)</p><p>472 Editora Vozes</p><p>Mamirauá introduzisse localmente este novo conceito. No mesmo período tam-</p><p>bém foi observado o ressurgimento de várias espécies de vertebrados antes rara-</p><p>mente avistadas (como felinos, sirênios, quelônios etc.). Estas espécies possuem</p><p>em comum a baixa taxa reprodutiva, os longos períodos de maturação dos ani-</p><p>mais e uma grande vulnerabilidade à pressão exercida pelos humanos. São espé-</p><p>cies especialmente sensíveis, cuja recuperação nos sugere que as medidas de pro-</p><p>teção adotadas estejam sendo bem-sucedidas.</p><p>Observando os avanços alcançados por uma perspectiva ou dimensão humana</p><p>ao longo de mais de uma década de ações e interferências de manejo em Mamirauá,</p><p>nota-se uma grande transformação estrutural. Houve um incremento generaliza-</p><p>do da renda domiciliar nas comunidades-alvo dos trabalhos de alternativas eco-</p><p>nômicas. Este incremento foi, em média, de 107% nos últimos oito anos, já</p><p>descontadas as taxas inflacionárias. O acompanhamento da geração da renda está</p><p>sempre analisado em relação à variação do custo de uma “cesta básica” regional,</p><p>que permite a indexação dos parâmetros econômicos locais. Outros avanços im-</p><p>portantes na qualidade de vida da população local foram o fortalecimento de</p><p>mais de 40 escolas rurais, que atendem à população da área focal de Mamirauá, e</p><p>a diminuição das taxas de poliparasitismo intestinal (redução de 29,3% em ape-</p><p>nas três anos). Um indicador de qualidade de vida que tem adquirido grande</p><p>importância nos trabalhos de Mamirauá tem sido a taxa de mortalidade infantil</p><p>local. Esta taxa também apresentou uma diminuição drástica desde que os traba-</p><p>lhos em Mamirauá se iniciaram. Em meados da década anterior as taxas anuais de</p><p>mortalidade infantil estavam em torno de 86 óbitos por cada 1.000 crianças nas-</p><p>cidas vivas na Área Focal de Mamirauá, e esta taxa encontra-se agora em 31/</p><p>1.000, pouco abaixo do patamar nacional, demonstrando uma queda de mais de</p><p>58% em apenas oito anos (IDSM, 2003).</p><p>É essencial considerarmos que a abordagem multidisciplinar utilizada em</p><p>Mamirauá é fundamental para que se alcançassem estes avanços. A existência de</p><p>uma equipe de pesquisadores e extensionistas com variada formação, distintas</p><p>abordagens e experiências, proporciona o ambiente adequado à busca e efetiva</p><p>solução de conflitos ambientais sociais os mais variados. A dinâmica de discussões</p><p>internas, a diversidade de pontos de vista e de caminhos alternativos disponíveis</p><p>pode garantir a boa condução do processo de gestão participativa, mesmo quando</p><p>o SNUC ainda não havia sido aprovado e que as ações visando à formação do</p><p>Conselho Deliberativo da unidade de conservação nem sequer haviam-se iniciado.</p><p>A visão multidisciplinar, e não exclusivamente biológica, também tem sido</p><p>fundamental no envolvimento da população local em processos pouco atraentes,</p><p>como o de fiscalização e controle, e não apenas naqueles processos participativos</p><p>de geração de renda. Certamente os níveis de proteção e conservação da</p><p>biodiversidade hoje observados não seriam verdade sem que a população local</p><p>fosse adequadamente envolvida, esclarecida e organizada, transformando-se num</p><p>Dimensões Humanas da Biodiversidade</p><p>Petrópolis - 2006 473</p><p>parceiro efetivo das ações desenvolvidas.</p><p>A dimensão humana impregnada nos trabalhos de conservação da</p><p>biodiversidade desenvolvidos em Mamirauá nos últimos 14 anos exemplifica de</p><p>forma bastante enfática que o sucesso das intervenções ambientalistas na Amazô-</p><p>nia brasileira visando à conservação in situ está definitivamente dependente da</p><p>capacidade de se identificar e envolver eficientemente as populações humanas</p><p>diretamente ligadas ao local a ser conservado. São os moradores da área, são os</p><p>grupos que possuem laços culturais e econômicos com a área, são os agentes</p><p>econômicos externos que interagem de alguma forma com a área. A unidade de</p><p>conservação não pode ser vista como uma “ilha de proteção”, alheia à dinâmica</p><p>humana que ocorre no seu interior ou em suas bordas, em sua zona de amorteci-</p><p>mento, ou, mesmo, em sua zona de influência mais extensa. Se estes fatores</p><p>humanos não forem considerados intrinsecamente no planejamento de conserva-</p><p>ção in situ das áreas amazônicas e do restante de sua biodiversidade, as</p>