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<p>AULA 01 – O Reino de Deus e o Império das Trevas</p><p>Leandro Lima</p><p>Disciplina - Escatologia</p><p>Ao abrir o Novo Testamento, o leitor logo toma consciência de que eventos</p><p>escatológicos estão se cumprindo, enquanto que outros estão sendo preditos. A vinda de</p><p>Jesus foi uma manifestação escatológica, um verdadeiro ato apocalíptico1, pois quando</p><p>veio aqui, Jesus revelou que estava estabelecendo o reino de Deus (Mt 3.2, Lc 17.20-21).</p><p>Entender esse conceito inaugural da escatologia no Novo Testamento é essencial para</p><p>entender a mensagem escatológica da Bíblia como um todo2.</p><p>A vinda de Cristo a este mundo, desde seu nascimento em Belém até seu retorno</p><p>na Ascensão, se compôs de eventos que encontram-se diretamente ligados à atuação</p><p>maligna neste mundo. A vinda de Cristo foi uma declaração de guerra contra os inimigos.</p><p>Porém, não uma guerra convencional. A característica mais notável da guerra que teve</p><p>início com o nascimento de Jesus foi a natureza jurídica desta guerra. Não foi uma guerra</p><p>com base em “força” ou “número de soldados”, mas uma guerra por “direito”, por</p><p>“legitimidade”.</p><p>O primeiro dos grandes eventos da batalha escatológica foi justamente o</p><p>nascimento de Cristo. O ensino do Novo Testamento é que Deus enviou seu filho para</p><p>um mundo perverso, um frágil bebê foi enviado para o meio de um lugar dominado por</p><p>demônios. Esse envio foi cercado de elementos paradoxais. Céus e terra entraram em</p><p>conflito, enquanto um casal de humildes trabalhadores marchava da Galiléia para Belém.</p><p>A maior profecia de todos os tempos estava para se cumprir. Quando o rei nascesse, o</p><p>grande tirano seria derrotado, e o mundo nunca mais seria o mesmo.</p><p>1. A batalha pelo nascimento do rei</p><p>Há um forte envolvimento dos anjos no nascimento de Jesus. Como mensageiros</p><p>do céu (anjo significa mensageiro), eles vêm à terra para anunciar aos homens que o rei</p><p>vai nascer. A presença deles é uma indicação de que existe algo mais em cena, um conflito</p><p>maior, que os olhos humanos não podem ver.</p><p>O primeiro dos anjos a entrar em ação é Gabriel. Ele foi enviado para anunciar</p><p>tanto o nascimento de Jesus, quanto o de João Batista (Lc 1.18-19, Lc 1.26ss). Para Maria,</p><p>especificamente, ele prometeu que um filho seria gerado nela de forma sobrenatural. A</p><p>descrição dos atributos e direitos desse filho foram descritos assim: “Este será grande e</p><p>será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele</p><p>reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim". (Lc 1.32-33).</p><p>No capítulo 2 de Lucas, o envolvimento dos anjos no nascimento de Jesus é mais uma</p><p>vez descrito:</p><p>1 O termo “apocalipse” significa revelação.</p><p>2 Devemos nos acostumar a ver a mensagem escatológica em todos os eventos redentivos, e em</p><p>todo o processo de revelação divina. Tudo na Bíblia é escatologia, porque desde o início Deus já</p><p>anunciou o fim. Van Groningen diz: “As Escrituras do Antigo Testamento revelam-nos que</p><p>Deus incluiu o fim no começo” (Gerard Van Groningen. Criação e Consumação. São Paulo:</p><p>Cultura Cristã, 2002, Vol 1, p. 30). Nesse sentido, a mensagem de Jesus também foi</p><p>essencialmente escatológica, porque apontava para o início e para o fim.</p><p>"Naqueles dias, foi publicado um decreto de César Augusto, convocando toda a</p><p>população do império para recensear-se. Este, o primeiro recenseamento, foi feito</p><p>quando Quirino era governador da Síria. Todos iam alistar-se, cada um à sua própria</p><p>cidade. José também subiu da Galiléia, da cidade de Nazaré, para a Judéia, à cidade de</p><p>Davi, chamada Belém, por ser ele da casa e família de Davi, a fim de alistar-se com</p><p>Maria, sua esposa, que estava grávida” (Lc 2.1-5).</p><p>Os dados históricos mencionados por Lucas além de apontarem para a</p><p>historicidade dos fatos, e localizarem o nascimento de Jesus no tempo e no espaço, têm</p><p>também o poder de montar o cenário completo do nascimento do Senhor. Percebe-se que</p><p>não se trata de um cenário meramente criado por homens, algo aleatório ou coincidente,</p><p>mas de um cenário preparado por Deus. A profecia dizia que Jesus devia nascer em Belém</p><p>(Mq 5.2, Mt 2.5-6), mas seus pais moravam na Galiléia. Então, um decreto do imperador</p><p>romano possibilitou que a profecia fosse cumprida. Ele ordenou um recenseamento de</p><p>seu império, obrigando todos a retornarem às suas cidades natais para se alistarem. E</p><p>assim, utilizando-se de instrumentos humanos, como homens comuns ou até mesmo o</p><p>imperador de Roma, Deus conduziu os eventos da história humana para se encaixarem à</p><p>história de seu Filho que precisava nascer em Belém.</p><p>Uma vez instalados em Belém, Lucas continua: “Estando eles ali, aconteceu</p><p>completarem-se-lhe os dias, e ela deu à luz o seu filho primogênito, enfaixou-o e o deitou</p><p>numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2.7-8). Porém,</p><p>essa descrição não parece se encaixar com o nascimento de um grande rei. Não há</p><p>anúncios para outros reis, não há festejos, não há canções. Então, mais uma vez os anjos</p><p>entram em cena para completar o que está faltando:</p><p>“Havia, naquela mesma região, pastores que viviam nos campos e guardavam</p><p>o seu rebanho durante as vigílias da noite. E um anjo do Senhor desceu aonde eles</p><p>estavam, e a glória do Senhor brilhou ao redor deles; e ficaram tomados de grande</p><p>temor. O anjo, porém, lhes disse: Não temais; eis aqui vos trago boa-nova de grande</p><p>alegria, que o será para todo o povo: é que hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o</p><p>Salvador, que é Cristo, o Senhor. E isto vos servirá de sinal: encontrareis uma criança</p><p>envolta em faixas e deitada em manjedoura. E, subitamente, apareceu com o anjo uma</p><p>multidão da milícia celestial, louvando a Deus e dizendo: Glória a Deus nas maiores</p><p>alturas, e paz na terra entre os homens, a quem ele quer bem” (Lc 2.8-14).</p><p>O anjo cumpriu a digna e apropriada função de anunciar o nascimento de Jesus, o</p><p>rei do céu, chamando-o pelos três impressionantes títulos de “Salvador, Cristo e Senhor”.</p><p>Cada um desses títulos demanda a confecção de tratados teológicos inteiros para que</p><p>sejam suficientemente explicados. Em resumo, entretanto, podemos dizer que Salvador3</p><p>é sua missão, Cristo é sua identidade distinta, e Senhor é sua posição. Essa é uma</p><p>sequência interessante, pois vista de uma perspectiva invertida, vemos que o soberano foi</p><p>escolhido para salvar, o que significa dizer que o soberano foi destinado a morrer.</p><p>O anjo ainda advertiu da precária situação humana dele: encontrareis uma criança</p><p>envolta em faixas e deitada na manjedoura. Esse foi o modo paradoxal que Deus usou</p><p>3 Esse termo (e também o termo Senhor) foi aplicado aos imperadores romanos. Apesar das</p><p>origens da linguagem aqui poderem ser satisfatoriamente explicadas em termos de pano de</p><p>fundo judaico, Lucas pode ter desejado que seus leitores vissem um contraste com as</p><p>declarações estrangeiras sobre reis ( I. Howard Marshall. The Gospel of Luke: a commentary on</p><p>the Greek text. New International Greek Testament Commentary. Exeter: Paternoster Press,</p><p>1978, p.110). Isso destacaria a pessoa de Cristo sobre os reis e imperadores estrangeiros.</p><p>para enviar seu filho ao mundo. O guerreiro celeste, o rei conquistador, nasceu num</p><p>estábulo e foi posto em uma manjedoura. Uma simples criança veio a um mundo tomado</p><p>por demônios. Um bebê anônimo e aparentemente indefeso, uma criança frágil e pobre</p><p>enviada contra o grande usurpador. Porém, a descrição parece não conseguir ocultar</p><p>totalmente a identidade da criança, pois assim que o anjo fez seu anúncio, algo súbito</p><p>aconteceu, os céus se rasgaram e surgiu uma “multidão da milícia celestial”, que explodiu</p><p>em louvores a Deus, em comemoração ao nascimento. Literalmente, Lucas disse que “um</p><p>grande exército do céu” (πλῆθος στρατιᾶς οὐρανίου) apareceu ali. A pergunta que fica é:</p><p>o que um numeroso exército de guerreiros</p><p>celestes estava fazendo no nascimento de uma</p><p>criança? Podemos dizer que eram os soldados da criança. Quem estava nascendo era, na</p><p>verdade, aquele que podia solicitar ao pai para que legiões de anjos lhe fossem enviados</p><p>(Mt 26.53). Portanto, o grande general havia nascido. E, muito mais do que um general,</p><p>na verdade, o próprio Rei celeste.</p><p>A aparição desse grande exército celeste no exato momento do nascimento de</p><p>Jesus nos revela a real natureza de seu nascimento. Foi uma ação de guerra. Céus e terra</p><p>estavam entrando em rota de colisão. A decisiva batalha escatológica havia começado.</p><p>Porém, aquele exército lá em cima, dos guerreiros angélicos que festejaram o nascimento</p><p>do grande rei, teria pouca participação nessa batalha. Aqueles guerreiros teriam que se</p><p>limitar a assistir seus feitos, e servi-lo algumas vezes (Mt 4.11), porém todas as</p><p>esperanças estavam depositadas naquele bebê. Ele teria que lutar sozinho contra todas as</p><p>forças das trevas. As legiões jamais seriam chamadas a participar (Mt 26.53).</p><p>Apocalipse 12 é o lugar onde a batalha escatológica que teve início com o</p><p>nascimento de Jesus está descrita da forma mais extraordinária possível:</p><p>“Viu-se grande sinal no céu, a saber, uma mulher vestida do sol com a lua</p><p>debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas na cabeça, que, achando-se grávida, grita</p><p>com as dores de parto, sofrendo tormentos para dar à luz. Viu-se, também, outro sinal</p><p>no céu, e eis um dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez chifres e, nas cabeças,</p><p>sete diademas. A sua cauda arrastava a terça parte das estrelas do céu, as quais lançou</p><p>para a terra; e o dragão se deteve em frente da mulher que estava para dar à luz, a fim</p><p>de lhe devorar o filho quando nascesse. Nasceu-lhe, pois, um filho varão, que há de reger</p><p>todas as nações com cetro de ferro” (Ap 12.1-5a).</p><p>O capítulo 12 de Apocalipse reverbera, amplia e interpreta a antiga narrativa do</p><p>capítulo 3 de Gênesis, a respeito da mulher e da serpente. Os dois textos falam sobre uma</p><p>mulher grávida que sofre as dores do parto, e sobre um filho (descendente) da mulher.</p><p>Ambos mostram o inimigo (dragão - serpente), e, principalmente, mencionam uma</p><p>inimizade. As semelhanças são claras, mas não se pode deixar de notar a ampliação do</p><p>sentido dado pelo texto do Apocalipse através de todo o seu simbolismo. A mulher, (que</p><p>estivera nua em Gênesis, depois vestida com folhas de figueira, e depois com as vestes</p><p>de peles que o Senhor preparou), agora está vestida de sol, com a lua debaixo dos pés e</p><p>uma coroa de doze estrelas. Aqui também é possível ver a sobreposição das interpretações</p><p>do Antigo Testamento na visão, pois há outra cena do Antigo Testamento que fala em</p><p>sol, lua e doze estrelas. Trata-se do sonho de José. O filho de Jacó relatou seu sonho para</p><p>seu pai e irmãos do seguinte modo: “Sonhei também que o sol, a lua e onze estrelas se</p><p>inclinavam perante mim” (Gn 37.9). José estava se referindo ao seu pai, mãe e onze</p><p>irmãos, sendo ele próprio o décimo segundo, ou a décima segunda estrela, ou seja, o</p><p>simbolismo se aplica ao núcleo da família de Jacó com as doze tribos de Israel</p><p>representadas por seus patriarcas. Portanto, João está asseverando que a mulher gloriosa</p><p>é realmente o povo da antiga aliança (Israel), porém regredindo genealogicamente até</p><p>Eva, que foi tentada pela serpente (dragão) em Gênesis. Portanto, é todo o povo santo de</p><p>Deus, ao longo de todo o Antigo Testamento. Diversas vezes, no Antigo Testamento, a</p><p>nação de Israel é descrita como uma mulher, a esposa da Yahweh, porém, uma esposa</p><p>muitas vezes infiel, como Eva de certo modo o foi ( Jr 31.32, Ez 16.1ss, Os 3.1). De</p><p>qualquer modo, a cena da mulher grávida é o anúncio divino de que o Messias finalmente</p><p>vai nascer e, assim, todas as promessas de libertação vão se concretizar para a mulher</p><p>(povo de Deus). Aponta para a expectativa de toda a Bíblia, desde Gênesis 3: a vinda do</p><p>Messias que trará a benevolência de Deus para seu povo, e o julgamento sobre os</p><p>perversos. Tudo isso, no entanto, está em completa e total relação com o dragão, o qual é</p><p>descrito em seguida como se aproximando da mulher para devorar o filho.</p><p>Justamente no estado de glória-fragilidade da mulher, aparece o outro grande sinal</p><p>também no céu. Nesse ponto, João chama a atenção dos leitores. Ele diz “olhe” (uma</p><p>espécie de imperativo4 - καὶ ἰδοὺ), aí está um dragão5, grande, vermelho, com sete</p><p>cabeças, dez chifres e sete diademas! E deste modo, João faz a visão do leitor ser</p><p>direcionada da beleza radiante da mulher grávida para o poder e repugnância do dragão.</p><p>As intenções do dragão são reveladas nesse momento. A criatura gigante e terrível</p><p>está diante da mulher com um propósito nefasto: devorar o filho. Ele quer frustrar todas</p><p>as expectativas de vida e bênção prometidas ao povo de Deus através do nascimento</p><p>daquela criança. Portanto, com esse quadro, João completa o significado da grande guerra</p><p>cósmica que alcançou seu ápice com o nascimento de Jesus.</p><p>Em Gn 3.15, Deus anunciou à serpente que um descendente da mulher iria lhe</p><p>esmagar a cabeça. Levando-se em conta o uso indireto que João faz do Antigo</p><p>Testamento, é possível interpretar, que a referência do Apocalipse para o momento em</p><p>que o dragão “espera” o nascimento do Filho para o devorar, portanto, tem relação com</p><p>a própria promessa-maldição proferida por Deus para a serpente em Gn 3.15. Aqui está o</p><p>motivo pelo qual João descreve o dragão, em Apocalipse, diante da mulher com a</p><p>intenção de devorar o seu descendente. Afinal, Deus revelou desde o início que o esforço</p><p>da serpente seria picar o calcanhar do descendente. É possível que o texto evoque as</p><p>diversas vezes que o Antigo Testamento revelou que a continuidade da “semente da</p><p>mulher” esteve ameaçada. Como aconteceram nas passagens do Gênesis quando Caim</p><p>assassinou seu irmão Abel, ou quando o próprio Deus decidiu destruir o mundo no</p><p>Dilúvio. A cada passo, no Antigo Testamento, narra-se que a descendência prometida da</p><p>mulher está sob o risco de desaparecer, e sempre está sendo resgatada por uma</p><p>intervenção divina6. Como quando Abraão precisava ter um filho, porém Sara era estéril;</p><p>ou quando o próprio Deus mandou que Abraão sacrificasse Isaque, mas providenciou um</p><p>substituto. Ao longo de todo o Antigo Testamento, o povo de Deus e a descendência</p><p>prometida enfrentam riscos, extermínios, fugas, e experimentam o socorro divino por</p><p>caminhos inusitados (2Rs 11.1-2). Aí está a razão dos “tormentos” (βασανιζομένη) que a</p><p>mulher sofre para dar à luz, ou seja, não se tratam apenas das dores naturais de parto, mas</p><p>de uma terrível provação, um grande e custoso esforço para dar à luz7. A ameaça contínua</p><p>do dragão é a razão desse esforço.</p><p>4 Simon J. Kistemaker. Apocalipse. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 452.</p><p>5 No Antigo Testamento, o dragão é a imagem de um grande monstro marinho, que recebe</p><p>diversos títulos em hebraico como tannin (Jó 7.12, Is 27.1), raabe (Sl 87.4, 89.10) e leviatã (Jó</p><p>3.8, 41.1, Sl 74.14, 104.26, Is 27.1, Jr 51.34). Em alguns momentos, a figura simboliza nações</p><p>como o Egito ou Babilônia (Is 51.9, Jr 51.34, Ez 29.3, 32.2). Em Apocalipse, entretanto, ele é</p><p>identificado como Satanás, aquele que engana as nações.</p><p>6 William Hendriksen. Mais Que Vencedores. São Paulo: Cultura Cristã, 1987, p. 167-171</p><p>7 G. K. Beale. The Book of Revelation: a commentary on the greek text. The new international</p><p>greek testament commentary. Grand Rapids: Eerdmans, 1999, p. 630</p><p>Porém, a derrota do dragão está expressa pelo fato de ele não ter conseguido</p><p>impedir isso: “Nasceu-lhe, pois, um filho varão”. Esse filho veio para reinar. Portanto, o</p><p>nascimento de Cristo foi o começo da grande derrota escatológica do dragão8. Deus</p><p>cumpriu sua antiga promessa de enviar um descendente de Eva ao mundo, porém, agora</p><p>sabemos que o "filho da mulher" não seria um mero homem, mas o próprio</p><p>Filho de Deus.</p><p>2. O primeiro confronto com o Inimigo</p><p>Com o nascimento de Jesus, Satanás perdeu uma batalha decisiva. Porém, pelas</p><p>reações do inimigo depois disso, percebe-se que ele acreditava que ainda poderia vencer</p><p>a guerra de alguma forma. Intensas batalhas aconteceram durante toda a vida de Jesus.</p><p>O batismo de Jesus marcou o início de seu ministério. Porém, mais do que marcar</p><p>o momento em que Cristo começou a proclamar sua mensagem e realizar seus milagres,</p><p>o batismo marcou o momento do início do conflito de Cristo com as forças das trevas.</p><p>Após receber a unção do Espírito Santo e ouvir a aprovação divina através da voz</p><p>celeste (Mt 3.16-17), Mateus relata: “foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser</p><p>tentado pelo diabo” (Mt 4.1). É significativo que o texto parece sugerir que Jesus estava</p><p>cumprindo uma espécie de “agenda”. Ele se deixou levar pelo Espírito ao deserto, com o</p><p>objetivo de que fosse “tentado" pelo diabo. É significativo que tenha acontecido logo após</p><p>o batismo. Antes de iniciar sua obra de proclamação, ele teve que passar pelo teste.</p><p>Portanto, isso parece marcar um momento reivindicado por Satanás. O inimigo desejava</p><p>testá-lo para ver se ele fazia jus a tudo o que aconteceu e foi dito em seu batismo, onde</p><p>Deus o reconheceu como “Filho”. Portanto, o inimigo dirá: “se és Filho de Deus…”.</p><p>Jesus jejuou por quarenta dias e quarenta noites. Naturalmente estava com muita</p><p>fome. A fome enfraquece tanto o corpo, quanto a mente. Satanás não desprezou o óbvio.</p><p>Ele agiu com relativa simplicidade. Apenas aproveitou a ocasião, e se manteve dentro de</p><p>seu “terreno seguro”, pois sabia que a imensa maioria das pessoas cai no primeiro nível</p><p>da tentação, o nível da carne.</p><p>As palavras de Satanás foram: "Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se</p><p>transformem em pães” (Mt 4.3). Satanás não parece reconhecer o direito exclusivo de</p><p>Cristo de ser chamado “Filho de Deus”. Ele não disse “se és o Filho de Deus”, mas “se</p><p>és Filho de Deus”, omitindo o artigo definido, quase como a sugerir que Jesus talvez fosse</p><p>apenas “um” filho de Deus. Talvez, igualmente, haja aqui uma reminiscência da antiga</p><p>dúvida que ele sugeriu à Eva: "Deus é justo?”, que é o que parece estar por detrás da</p><p>declaração: “É assim que Deus disse, não podereis comer de nenhuma árvore…”. A</p><p>primeira pergunta pode trazer implícito o questionamento: “é justo um filho de Deus</p><p>passar fome?”. A dúvida que se tenta semear no coração é: Deus é injusto por não permitir</p><p>que você satisfaça seus desejos (tentação de Eva). Ele, sem dúvida, tem usado com</p><p>sucesso a mesma técnica ao longo da história.</p><p>A resposta de Cristo apontou a tática adotada por ele para vencer Satanás em todas</p><p>as ocasiões: confiar na Palavra de Deus. E assim, ele fez exatamente o oposto do que</p><p>Adão e Eva fizeram, e também o oposto daquilo que Israel fez no deserto, quando não</p><p>acreditou na Palavra de Deus (Jd 6). A vitória de Cristo, portanto, é uma vitória “pela</p><p>8 Por fim, sem conseguir impedir que o filho da mulher nascesse, restou ao dragão tentar matá-lo ainda</p><p>criança. A matança dos meninos com menos de dois anos em Belém, ordenada por Herodes, por certo</p><p>fixou-se na mente dos leitores de João quando leram a descrição da fúria do dragão tentando devorar o</p><p>filho da mulher. Nota-se, porém, que o filho fora arrebatado. O Evangelho de Mateus diz que José,</p><p>sabendo por meio dos magos que Herodes pretendia fazer algum mal à criança, fugiu para o Egito (Mt</p><p>2.13-18).</p><p>Palavra”. Ele respondeu: "Está escrito”. Ou seja, ele tem um porto seguro, uma fonte</p><p>confiável, uma arma que não falha. Esse é o poder da verdade para libertar do mal.</p><p>Diferentemente de Adão e Eva, que caíram nesse primeiro nível de tentação,</p><p>Satanás encontrou em Cristo um adversário muito mais poderoso. Porém, o inimigo não</p><p>esgotou seu arsenal na batalha da carne. Ele ainda tinha armas poderosas para usar contra</p><p>o Filho de Deus.</p><p>Satanás subiu o nível do teste quando abandonou as questões relacionadas com a</p><p>satisfação dos desejos do corpo, e se encaminhou para tratar de aspectos mais sutis, e</p><p>mais difíceis de serem vencidos na natureza humana.</p><p>Mateus segue a narrativa dizendo que Satanás conduziu Jesus ao pináculo do</p><p>templo, e, citando as Escrituras, o induziu a dar uma prova de ser filho de Deus. Em</p><p>resposta à citação de Jesus do Deuteronômio, o diabo o levou até o pináculo do templo e</p><p>mostrou que também sabia citar as Escrituras. Ao contrário de citar o Deuteronômio,</p><p>entretanto, o diabo citou os Salmos. Se isso tem alguma implicação aqui é difícil dizer.</p><p>Mas o fato é que ele contrapôs a afirmação de Jesus com outra afirmação bíblica.</p><p>Segundo o diabo, Jesus devia exigir um sinal de Deus. Ao longo de seu ministério,</p><p>as pessoas sempre pediram a Jesus que desse um sinal de sua autoridade, pois não estavam</p><p>dispostas a crer sem alguma prova palpável (Jo 4.41, 6.30). Mas, o sensacionalismo, os</p><p>sinais, os milagres, nunca deram muito resultado. Jesus acusou a multidão de segui-lo só</p><p>para ver um sinal. Fez muitos sinais, mas todos o abandonaram na sexta feira da paixão.</p><p>Jesus sabe que a fé verdadeira não depende de sinais ou prodígios, mas apenas do que</p><p>“está escrito”.</p><p>O último nível da tentação relatada por Mateus é o que revela Satanás sem</p><p>dissimulações. No deserto Jesus estava em comunhão com Deus através do jejum, no</p><p>templo estava no centro da religião judaica, mas no monte alto, Satanás pôde mostrar o</p><p>que realmente valoriza: os reinos do mundo e a glória deles. Naquele momento, ele não</p><p>usou a Palavra de Deus, antes lutou com suas próprias armas. Ele arriscou o último trunfo.</p><p>Opôs seu poder diretamente ao de Deus. A tentativa foi uma só: Apostasia. Sua proposta</p><p>a Cristo de lhe dar todos os reinos do mundo e a glória deles em troca de adoração, aponta</p><p>para seu esforço último de que os homens, conscientes e decididos, dêem um passo para</p><p>longe de Deus. É uma troca definitiva de senhorio: de Deus para nós mesmos, e,</p><p>finalmente, para o diabo. C. S. Lewis escreveu a respeito do pecado do diabo: "De acordo</p><p>com os mestres do Cristianismo, o pecado principal, o supremo mal, é o orgulho. A falta</p><p>de pureza, a ira, a ganância, a embriaguez e tudo o mais, em comparação com ele, são</p><p>ninharias. Foi pelo orgulho que o demônio tornou-se o demônio. O orgulho conduz a</p><p>todos os outros pecados: é o mais completo estado de alma anti-Deus.”9 Numa palavra:</p><p>ele transfere sua queda para nós. Torna-nos cúmplices de seu próprio pecado. O que isso</p><p>evoca é autonomia, senso de superioridade, vontade de dominar sobre os outros.</p><p>No entanto, a atitude do diabo, de se colocar como “dono" dos reinos deste mundo</p><p>merece um pouco mais de atenção da nossa parte. Mateus relata que o diabo mostrou-lhe</p><p>todos os reinos do mundo e a glória deles, então declarou: “Tudo isto te darei se,</p><p>prostrado, me adorares” (Mt 4.9). Isso soa um tanto quanto farsante num primeiro</p><p>momento, pois o diabo não pode ser considerado o “dono deste mundo”, uma vez que o</p><p>mundo pertence a Deus (Sl 24.1). Será que Satanás estava blefando com Cristo? Por um</p><p>lado, de fato, isso não seria estranho para o “pai da mentira” (Jo 8.44). No entanto, é</p><p>estranho que Cristo não tenha desmentido a suposta pretensão maligna. E, certamente,</p><p>Cristo não se deixaria enganar pelas mentiras do diabo.</p><p>9 C. S. Lewis. Cristianismo Puro e Simples. 2. ed. São Paulo: Abu, 1985. p. 162.</p><p>A solução nos é dada no Evangelho de Lucas, onde mais detalhes são</p><p>acrescentados: “Disse-lhe o diabo: Dar-te-ei toda esta autoridade e a glória destes reinos,</p><p>porque ela me foi entregue, e a dou a quem eu quiser. Portanto, se prostrado me adorares,</p><p>toda será tua” (Lc 4.6-7). Ao que parece, Satanás não está dizendo que é o dono dos</p><p>“reinos” do mundo, mas que tem “autoridade" sobre eles, e sobre a “glória” deles. A</p><p>palavra em destaque</p><p>no texto de Lucas é “autoridade”. Literalmente, ele disse que recebeu</p><p>“toda essa autoridade" (τὴν ἐξουσίαν ταύτην ἅπασαν). Enfaticamente, ele disse: “pois</p><p>para mim foi dada” (há um enfático ἐμοὶ - “para mim” - no texto). E, consequentemente,</p><p>ele alega ter condições de conceder essa “autoridade" a quem ele quiser. Isso soa coerente</p><p>com o restante do ensino das Escrituras, de modo que aí está a razão pela qual Cristo não</p><p>o desmentiu. O diabo estava falando a verdade quando disse que havia recebido toda</p><p>aquela autoridade sobre os reinos do mundo. Só o próprio Deus poderia ter concedido</p><p>aquela autoridade para ele. “Autoridade" é um termo jurídico. Desde o Éden, Satanás</p><p>recebeu a “autoridade" de enganar as nações. Porém, logo chegaria o momento quando</p><p>essa autoridade lhe seria cassada, e em contrapartida, Jesus diria, praticamente repetindo</p><p>cada palavra do diabo, que “recebeu toda a autoridade (ἐδόθη μοι πᾶσα ἐξουσία) nos céus</p><p>e na terra” (Mt 28.18). Por esse motivo, percebemos que a verdadeira batalha entre Cristo</p><p>e Satanás é de natureza jurídica ou legal. É a batalha por autoridade. Satanás ofereceu um</p><p>caminho rápido através do qual Cristo poderia receber a autoridade sobre os reinos do</p><p>mundo. Porém, Jesus recusou, primeiramente porque esse caminho significava quebrar a</p><p>Lei, e em segundo lugar, porque ele já havia se decidido pelo caminho mais longo e</p><p>doloroso. Ao vencer a tentação de Satanás, portanto, Jesus mostrou que estava preparado</p><p>para vencer aquele que mantinha o mundo nas trevas, “sua própria resistência a essas</p><p>seduções satânicas foi o início da derrota do diabo”10, até que Jesus pudesse “tomar dele”</p><p>as nações.</p><p>3. A ousadia dos inimigos</p><p>Após o batismo, Jesus precisou enfrentar seu primeiro duelo com Satanás, no qual</p><p>sagrou-se vencedor. Sua única arma de defesa foi a confiança irrestrita na Palavra de</p><p>Deus. Repreendido por Cristo, “apartou-se dele o diabo, até momento oportuno” (Lc</p><p>4.13). Isso pode significar que, por algum tempo, forçosamente, o próprio Satanás teve</p><p>que se manter à distância, apenas acompanhando os passos de Jesus, até que nova</p><p>oportunidade lhe fosse dada. No entanto, seus subalternos não ficaram parados. O general</p><p>maligno se viu repreendido e momentaneamente impossibilitado de atacar, porém, enviou</p><p>seus soldados para o campo de batalha.</p><p>Já nas primeiras páginas do Evangelho de Marcos, tão logo Jesus venceu seu</p><p>primeiro teste contra Satanás (Mc 1.12-13), ele anunciou que o tempo estava cumprido e</p><p>o reino próximo (Mc 1.14-15), então, precisou enfrentar o atrevimento dos inimigos</p><p>espirituais.</p><p>Marcos relata que Jesus chamou seus quatro primeiros discípulos junto ao mar da</p><p>Galileia, e com eles, se dirigiu para Cafarnaum, uma pequena cidade de pescadores</p><p>localizada próxima ao lago de Genesaré (Mc 1.16-21). Ele, então, se dirigiu à sinagoga</p><p>da cidade e proclamou sua “doutrina”, ensinando-os de uma forma que mostrava uma</p><p>autoridade superior à que os escribas demonstravam (Mc 1.22). É interessante que os</p><p>ouvintes de Cristo destaquem justamente essa questão da "autoridade" com a qual Jesus</p><p>10 G. K. Beale. A New Testament Biblical Theology: The Unfolding of the Old Testament in the</p><p>New. Grand Rapids: Baker Academic, 2011, p. 419-420.</p><p>ensinava. Então, um espírito maligno, imediatamente, se dirigiu à sinagoga possuindo um</p><p>homem. Ele vai justamente tentar contrapor essa autoridade de Cristo.</p><p>Eles claramente estão desconfortáveis com a chegada de Cristo: “Não tardou que</p><p>aparecesse na sinagoga um homem possesso de espírito imundo (πνεύματι ἀκαθάρτῳ), o</p><p>qual bradou: Que temos nós contigo, Jesus Nazareno? Vieste para perder-nos? Bem sei</p><p>quem és: o Santo de Deus!” (Mc 1.23-24). É interessante observar que esses espíritos</p><p>impuros parecem ser bem conhecidos das pessoas, ou seja, a aparição deles ali não causou</p><p>admiração, mostrando que era um fenômeno até certo ponto comum naqueles dias. As</p><p>pessoas ficaram espantadas pelo fato de Jesus ter autoridade sobre eles, e os expulsar com</p><p>relativa facilidade. Não se pode ignorar que no quadro do mundo pintado pelo Novo</p><p>Testamento, esses espíritos imundos ou malignos ocupam um espaço considerável.</p><p>Mentes modernas, frequentemente, têm dificuldades de entender e aceitar isso. Mas, não</p><p>se chega a um entendimento completo da mensagem do Novo Testamento ignorando</p><p>esses aspectos.</p><p>É interessante notar o modo intrometido e intempestivo desse personagem. Ele</p><p>entrou na sinagoga e “gritou” (ἀνέκραξεν) algo contra Cristo. Essa não é a postura de um</p><p>fugitivo, ou de alguém que acredita não ter direito de estar ali. Ainda deve ser notada a</p><p>interessante “reclamação” que eles fizeram contra Cristo: “que temos nós contigo, Jesus</p><p>Nazareno?”. Até esse momento, Marcos não disse se tratar de mais de um espírito. Ele</p><p>disse apenas que um homem possesso de “espírito impuro” apareceu lá. Porém, a fala do</p><p>espírito é plural. Ele usou o pronome pessoal “nós”. Literalmente, ele disse “o que nós e</p><p>tu (τί ἡμῖν καὶ σοί), ó Jesus Nazareno?”. Isso é obviamente um desafio, uma contestação.</p><p>No Antigo Testamento, esse tipo de expressão representava uma expressão de</p><p>“desassociação”. Quando os soldados de Davi quiseram matar Simei porque estava</p><p>amaldiçoando Davi, o rei disse: "Que tenho eu convosco, filhos de Zeruia? Ora, deixai-o</p><p>amaldiçoar” (2Sm 16.10). Porém, quando essa expressão foi usada no caso de uma</p><p>possível agressão, ela significou algo como “vá embora e deixe-me sozinho” (Jz 11.12,</p><p>1Rs 17.18)11. Aqueles demônios, portanto, estavam exigindo que Jesus se retirasse, que</p><p>não os atormentasse. Isso fica claro pela próxima pergunta deles: “Vieste para perder-</p><p>nos?”. A pergunta parece bem óbvia, e justamente por isso, sugere que eles estavam</p><p>questionando esse “direito” dele. Em seguida, o espírito fez uma afirmação</p><p>surpreendente: “Bem sei quem és: o Santo de Deus!”. Lucas volta a narrar no singular,</p><p>como se apenas um demônio estivesse falando agora. Literalmente o espírito disse: “eu</p><p>te conheço, que tu és o santo de Deus” (οἶδα σε τίς εἶ, ὁ ἅγιος τοῦ θεοῦ). Provavelmente,</p><p>isso possa refletir a crença judaica de que conhecer o nome de uma entidade espiritual</p><p>garante domínio sobre ela12. Por isso, embora a afirmação aponte para o reconhecimento</p><p>do senhorio de Cristo, a postura dos espíritos malignos é um desafio à chegada de Cristo,</p><p>não um mero desafio com base em força bruta, e sim um desafio em termos “legais”. É a</p><p>disputa por "autoridade". É a legitimidade de Cristo de “destruí-los” que eles estão</p><p>questionando. Em contrapartida, “Jesus o repreendeu, dizendo: Cala-te e sai desse</p><p>homem” (Mc 1.25). E o resultado foi que, apesar de uma aparente resistência, o espírito</p><p>imundo teve que obedecer: “Então, o espírito imundo, agitando-o violentamente e</p><p>bradando em alta voz, saiu dele” (Mc 1.26). Ainda assim, deve ser notado, que expulsão</p><p>não significa “destruição”. O verdadeiro temor daqueles demônios não era o de serem</p><p>11 R. T. France. The Gospel of Mark: a commentary on the Greek text. New International Greek</p><p>Testament Commentary. Grand Rapids, MI; Carlisle: W.B. Eerdmans; Paternoster Press, 2002, p. 103.</p><p>12 James R. Edwards. The Gospel according to Mark. The Pillar New Testament Commentary. Grand</p><p>Rapids, MI; Leicester, England: Eerdmans; Apollos, 2002, p. 57.</p><p>“expulsos”, mas o de serem destruídos (vieste para perder-nos?). De algum modo, a</p><p>expulsão operada por Cristo aponta para essa realidade final, porém, naquele momento,</p><p>isso ainda não poderia ser feito. Cristo tinha legitimidade para estar ali e expulsá-los, mas</p><p>ainda não havia conquistado o direito de subjugá-los completamente.</p><p>No Evangelho de Marcos, a tensão da narrativa vai aumentando, até que chegará</p><p>o momento quando outros espíritos malignos questionarão ainda mais ousadamente a</p><p>presença de Cristo ali. O momento mais enfático é o do</p><p>episódio do Gadareno, narrado</p><p>pelos três evangelistas (Mc 5.1-20, Lc 8.26-39, Mt 8.28-34). Portanto, são descrições</p><p>complementares. O fato aconteceu logo após eles terem atravessado o mar, na famosa</p><p>cena em que Jesus dormiu e os discípulos ficaram nervosos por causa disso. Jesus</p><p>repreendeu o mar13 (como quem repreende um demônio), e este se aquietou. Ao chegar</p><p>no outro lado, ele enfrentou demônios literalmente. Era a terra dos gerasenos (ou</p><p>gadarenos), domínio dos gentios, eles criavam porcos, portanto, não eram judeus. Um</p><p>homem possesso veio, imediatamente, ao encontro de Jesus. De fato, se o primeiro</p><p>desafiante foi até a sinagoga desafiar Cristo, espera-se da narrativa que esse seja ainda</p><p>mais hostil, afinal, Jesus estava na terra dos gentios. A descrição do homem é muito</p><p>interessante. Marcos diz:</p><p>“Ao desembarcar, logo veio dos sepulcros, ao seu encontro, um homem possesso</p><p>de espírito imundo, o qual vivia nos sepulcros, e nem mesmo com cadeias alguém podia</p><p>prendê-lo; porque, tendo sido muitas vezes preso com grilhões e cadeias, as cadeias</p><p>foram quebradas por ele, e os grilhões, despedaçados. E ninguém podia subjugá-lo.</p><p>Andava sempre, de noite e de dia, clamando por entre os sepulcros e pelos montes,</p><p>ferindo-se com pedras” (Mc 5.2-5).</p><p>Ele veio dos sepulcros (local de impureza para os judeus). Tratava-se claramente</p><p>de um demônio violento, que oferecia risco às pessoas e ao próprio possesso, por isso</p><p>tentavam prendê-lo com correntes, mas ele sempre conseguia escapar. Era, portanto, um</p><p>demônio muito “valente”. E os homens não conseguiam amarrá-lo14.</p><p>Porém, se a reação esperada pelo leitor era que esse demônio avançasse contra</p><p>Cristo, o que ele fez foi, na verdade, surpreendente: “Quando, de longe, viu Jesus, correu</p><p>e o adorou” (Mc 5.6). Sua corrida não terminou num ato de ofensa a Cristo, mas numa</p><p>atitude de se prostrar diante dele (προσεκύνησεν αὐτῷ). Portanto, ele sabia quem estava</p><p>ali. Reconheceu estar diante de uma autoridade divina. Porém, ainda assim, ele</p><p>questionou o direito dessa autoridade divina em estar ali. Ainda prostrado, ele “gritou em</p><p>13 Na literatura bíblica o mar representa as forças contrárias a Deus. O mar esteve entre Israel e a</p><p>libertação, por isso, precisou ser ferido por Deus, e como que cristalizado quando se abriu ao meio para</p><p>que o povo passasse. Os salmos descrevem poeticamente aquele momento em que Moisés feriu o mar e o</p><p>povo de Israel passou pelo meio como um ato de ferir um monstro: “Tu, com o teu poder, dividiste o mar;</p><p>esmagaste sobre as águas a cabeça dos monstros marinhos. Tu despedaçaste as cabeças do crocodilo</p><p>(Leviatã) e o deste por alimento às alimárias do deserto” (Sl 74.13- 14, 77.18-20). O Salmo 89 descreve o</p><p>Senhor soberano e temível, rodeado de seres celestes que compõem a “assembleia dos santos” (Sl 89.5-8).</p><p>Na sequência, o Salmo diz: “Dominas a fúria do mar; quando as suas ondas se levantam, tu as amainas.</p><p>Calcaste a Raabe, como um ferido de morte; com o teu poderoso braço dispersaste os teus inimigos” (Sl</p><p>89.9-10). Raabe é uma espécie de dragão marinho, um monstro marinho muitas vezes identificado com o</p><p>Egito. Ou seja, ao abrir o mar e fazer seu povo passar a pé, enxuto, Deus pisou tanto sobre o mar quanto</p><p>sobre o Egito Em Habacuque 3.8-15, a descrição do Senhor como um guerreiro formidável que esmaga as</p><p>nações e abala o mar corrobora com essa ideia de que o mar representa a junção dos inimigos divinos,</p><p>sobre os quais Deus domina.</p><p>14 Isso, provavelmente, seja uma descrição intencional, ou seja, ao contrário dos homens, Jesus</p><p>podia amarrar o valente.</p><p>alta voz”: Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te por Deus</p><p>que não me atormentes! Porque Jesus lhe dissera: Espírito imundo, sai desse homem!</p><p>(Mc 5.7-8). Portanto, há um claro desafio por parte dele à chegada Cristo, uma espécie</p><p>de acusação.</p><p>A primeira expressão é similar à do demônio que foi à sinagoga, expressando tanto</p><p>a dissociação entre ambos, bem como seu desejo de que Jesus fosse embora dali. Também</p><p>este demônio chamou Jesus pelo nome, mostrando que tal nome certamente corria de</p><p>“boca em boca” entre os espíritos imundos. Todos, portanto, estavam advertidos da</p><p>presença de Jesus. Porém, o reconhecimento desse demônio foi maior do que o anterior,</p><p>ao reconhecer Jesus como “filho do Deus altíssimo”. Entre os atributos que o título</p><p>“altíssimo” evoca no Antigo Testamento em relação a Deus está o fato de ele ser o rei de</p><p>toda a terra, e aquele que faz justiça (Sl 47.2, Dn 7.22). Talvez por isso, o demônio tenha</p><p>feito um pedido tão formal, um pedido em nome do próprio Deus, o altíssimo, que ele</p><p>reconheceu como Pai de Jesus. O uso do termo “esconjuro-te” pelo demônio é algo muito</p><p>surpreendente, pois isso é geralmente esperado que seja dito pelo exorcista (At 19.13)15.</p><p>Portanto, foi como se o demônio estivesse querendo “expulsar” Cristo daquele lugar. E,</p><p>mais uma vez, deve ser lembrado que ele chamou Jesus “pelo nome”, ou seja, ele estava</p><p>querendo obter controle sobre Cristo, mesmo reconhecendo que Jesus era uma autoridade</p><p>superior. O aspecto aqui, sem dúvida, é mais uma vez jurídico. O demônio está usando</p><p>todos os recursos “legais” contra Jesus, pois não reconhece a legitimidade de Cristo estar</p><p>ali, fora do território judaico. Isso fica ainda mais forte pelo fato de ele ter esconjurado</p><p>Cristo “por Deus”. O pedido da esconjuração é para que Cristo não o “atormente”. Isso</p><p>provavelmente seja uma alusão ao “tormento eterno” que se seguirá ao julgamento final16.</p><p>Isso transparece especialmente no texto de Mateus: “Que temos nós contigo, ó Filho de</p><p>Deus! Vieste aqui atormentar-nos antes de tempo?” (Mt 8.29). Há, portanto, uma</p><p>consciência por parte desses espíritos de que Cristo veio para atormentá-los, porém, ao</p><p>mesmo tempo, eles parecem entender que o tempo determinado para que isso aconteça</p><p>ainda não havia chegado, e, que, portanto, Cristo não estava agindo com legitimidade.</p><p>Diante disso, Jesus retomou o controle da situação. Quando pediu que o espírito</p><p>dissesse qual era o nome dele, talvez estivesse indicando para os demônios que ele não</p><p>iria recuar, que estava ali para ganhar terreno, e que os demônios teriam que se submeter:</p><p>“E perguntou-lhe: Qual é o teu nome? Respondeu ele: Legião é o meu nome, porque</p><p>somos muitos” (Mc 5.9). Por um lado, percebe-se que o demônio parece estar, de algum</p><p>modo, se negando a dizer o nome. Ele continuou tentando resistir a Cristo. Porém, ao</p><p>mencionar que seu nome é “legião”, ele estava desafiando Cristo mais uma vez. Uma</p><p>legião romana podia ter até seis mil homens. Então, em outras palavras, ele disse que ali</p><p>não estava apenas um demônio tentando resistir a Cristo, mas um exército. Porém, que a</p><p>batalha não é por força ou violência, mas jurídica, fica revelado pelo pedido “encarecido”</p><p>ou formal: “E rogou-lhe encarecidamente que os não mandasse para fora do país” (Mc</p><p>5.10). O termo usado (παρεκάλει) denota um apelo urgente e com propriedade17. O que</p><p>eles requisitaram de Cristo? Marcos diz que eles pediram que Cristo não os enviasse para</p><p>“fora do país”. E, segundo Lucas, eles rogaram a Cristo que não os enviasse para “o</p><p>abismo” (Lc 8.31). Essas duas expressões devem ser vistas de maneira complementar.</p><p>15 R. T. France. The Gospel of Mark: a commentary on the Greek text. New International Greek</p><p>Testament Commentary. Grand Rapids, MI; Carlisle: W.B. Eerdmans; Paternoster Press, 2002, p. 228.</p><p>16 James A. Brooks. Mark. The New American Commentary. Nashville: Broadman & Holman</p><p>Publishers, 1991, 23:90.</p><p>17 Johannes P. Louw e Eugene Albert Nida. Greek-English lexicon of the New Testament: based on</p><p>semantic domains, 1996, 1, 407.</p><p>Eles, portanto, pediram “duas coisas” para Cristo. Ser enviado para “fora do país” (ἔξω</p><p>τῆς χώρας) representaria ser expulso da área de atuação</p><p>à qual eles julgavam ter direito</p><p>de estar. Talvez, isso seja uma reminiscência do ensino de Daniel de que havia espíritos</p><p>que exerciam domínio sobre países como a “Pérsia” e a “Grécia" (Dn 10.13, 20). Aqueles</p><p>demônios, portanto, argumentaram com Cristo de que tinham direito de estar ali, pois não</p><p>estavam em Israel, e sim no território estrangeiro. Ao mesmo tempo, também</p><p>requisitaram que Cristo não os enviasse para o abismo (τὴν ἄβυσσον). Essa expressão,</p><p>por certo, aponta para o destino final daqueles demônios18.</p><p>Todas essas expressões apontam para o reconhecimento daqueles demônios de</p><p>que está determinado um tempo quando eles perderão completamente o direito de agir</p><p>nesse mundo, e serão enviados para o abismo (lago de fogo). Porém, isso só pode</p><p>acontecer, no entendimento deles, após o juízo final. Assim, com base nisso, eles</p><p>questionam a presença de Cristo ali.</p><p>Porém, percebendo que Cristo não permitiria que eles permanecessem no homem,</p><p>eles fizeram um pedido intermediário: “E os espíritos imundos rogaram a Jesus, dizendo:</p><p>Manda-nos para os porcos, para que entremos neles” (Mc 5.12). Não deixa de ser curioso</p><p>o fato de Jesus atender ao pedido deles: “Jesus o permitiu.” (Mc 5.13). Pode parecer</p><p>estranho que Jesus atenda a uma solicitação de demônios, porém, isso significa que Jesus</p><p>reconheceu, ainda que parcialmente, o “direito” deles. Ele não os enviou para “fora do</p><p>país”, nem “para o abismo”, porém, igualmente não permitiu que eles ficassem no</p><p>homem. Assim, dois mil porcos receberam o exército de mais de seis mil demônios.</p><p>O desfecho da passagem, entretanto, ainda reserva uma surpresa: “Então, saindo</p><p>os espíritos imundos, entraram nos porcos; e a manada, que era cerca de dois mil,</p><p>precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do mar, onde se afogaram” (Mc 5.13).</p><p>Há, sem dúvida, uma ironia na descrição. Os demônios não queriam ser enviados para</p><p>fora do país, nem para o abismo, mas acabaram caindo junto com os porcos</p><p>“despenhadeiro abaixo, para dentro do mar”. Isso sugere que algo não acabou bem para</p><p>eles. Talvez, tenha sido uma indicação divina de que, apesar do temporário “direito" deles</p><p>ter sido observado por Jesus, se aproximava o tempo quando eles perderiam todos os seus</p><p>direitos. No nosso entendimento, na cruz Jesus os enviou “para fora do país”, e na sua</p><p>segunda vinda, ele os enviará "para o abismo”.</p><p>18 O termo “abismo", na literatura intertestamentária tem a conotação de um lugar de prisão de</p><p>alguns anjos, talvez similar ao termo “tártaro" que Pedro usa em 2Pe 2.4, e que foi traduzido</p><p>como “inferno" na ARA. Em Apocalipse, um exército demoníaco parece sair desse lugar para</p><p>atormentar os homens incrédulos (Ap 9.1-11). Ver mais informações no Excurso abaixo: “Os</p><p>anjos em prisão”.</p>

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