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<p>Capítulo 1Comunidades tribais:</p><p>a educação difusa</p><p>Segundo uma explicação literal e, port-</p><p>anto, simplificadora, costuma-se caracter-</p><p>izar a vida tribal, marcada pela tradição</p><p>oral dos mitos e ritos, como pré-histórica,</p><p>por ter ocorrido “antes da história”,</p><p>quando os povos ainda não tinham escrita</p><p>e, por conseguinte, não registravam os</p><p>acontecimentos.</p><p>A pré-história constitui um período ex-</p><p>tremamente longo, em que instrumentos</p><p>utilizados para a sobrevivência humana se</p><p>transformaram muito lentamente. É bom</p><p>lembrar que as mudanças não ocorreram</p><p>de forma igual em todos os lugares. Tam-</p><p>bém não há uniformidade no tempo, uma</p><p>vez que o modo de vida das tribos nos</p><p>primórdios não desapareceu de todo,</p><p>tanto que ainda há tribos que vivem dessa</p><p>maneira na Austrália, na África e no interi-</p><p>or do Brasil.</p><p>A Idade da Pedra Lascada (Paleolítico) e</p><p>a Idade da Pedra Polida (Neolítico) repres-</p><p>entam momentos diversos, em que as tri-</p><p>bos passam de hábitos de nomadismo —</p><p>sustentado pela simples coleta de alimen-</p><p>tos — para a fixação ao solo, com o</p><p>desenvolvimento de técnicas de agricul-</p><p>tura e pastoreio.</p><p>A terra pertence a todos, e o trabalho e</p><p>seus produtos são coletivos, o que define</p><p>um regime de propriedade coletiva dos</p><p>meios de produção. Em decorrência, a so-</p><p>ciedade é homogênea, una, indivisível.</p><p>Com o tempo, a metalurgia, a utilização</p><p>da energia animal e dos ventos, a in-</p><p>venção da roda e dos barcos a vela amp-</p><p>liam a produção e estimulam a diversi-</p><p>ficação dos ofícios especializados dos cam-</p><p>poneses, artesãos, mercadores e solda-</p><p>dos, tornando as comunidades cada vez</p><p>mais complexas.</p><p>Veremos neste capítulo as características</p><p>genéricas das comunidades “primitivas”,</p><p>bem como a sua educação difusa. É pre-</p><p>ciso lembrar que essas populações não</p><p>tinham uma cultura homogênea, existindo</p><p>diferenças conforme o lugar e o tempo.</p><p>1. A cultura tribal</p><p>31/685</p><p>Estamos tão acostumados com a escola que às vezes nos</p><p>parece estranho o fato de que essa instituição não existiu</p><p>sempre, em todas as sociedades. Nos demais capítulos, veremos</p><p>as condições do aparecimento da escola, as transformações ao</p><p>longo do tempo, e também a relação indissolúvel entre ela e o</p><p>modo pelo qual os indivíduos interagem para produzir a sua ex-</p><p>istência. Antes, porém, veremos por que não há necessidade de</p><p>escolas nas comunidades tribais.</p><p>Por motivos diversos é muito difícil dar as características</p><p>gerais desse tipo de sociedade. Primeiro porque, por mais que</p><p>façamos generalizações, há muitas diferenças entre tais so-</p><p>ciedades, e depois porque, com frequência, corremos o risco de</p><p>etnocentrismo, ou seja, a tentação de avaliá-las segundo</p><p>padrões da nossa cultura. Dessa perspectiva, diríamos: as so-</p><p>ciedades tribais não têm Estado, não têm classes, não têm es-</p><p>crita, não têm comércio, não têm história, não têm escola.</p><p>Segundo o etnólogo francês Pierre Clastres, explicar as so-</p><p>ciedades tribais pelo que lhes falta impede compreender melhor</p><p>a sua realidade e, em muitos casos, até tem justificado a atitude</p><p>paternalista e missionária de “levar o progresso, a cultura e a</p><p>verdadeira fé” ao povo “atrasado”. Uma abordagem mais ad-</p><p>equada, no entanto, consideraria esses povos diferentes de nós,</p><p>e não inferiores. Mesmo porque, afinal, nem sempre ausência</p><p>significa necessariamente falta. Aliás, o antropólogo Lévi-</p><p>Strauss lembra como nós, urbanos, se por um lado ganhamos</p><p>muito com a tecnologia, por outro perdemos algumas de nossas</p><p>capacidades, por exemplo, por utilizarmos consideravelmente</p><p>menos as nossas percepções sensoriais. Por isso mesmo, à falta</p><p>de um termo melhor, Lévi-Strauss prefere colocar aspas em</p><p>“primitivo”, com a intenção de minorar a carga pejorativa do</p><p>conceito.</p><p>32/685</p><p>De maneira geral as sociedades tribais são predominante-</p><p>mente míticas e de tradição oral. Para esses povos a natureza es-</p><p>tá “carregada de deuses”, e o sobrenatural penetra em todas as</p><p>dependências da realidade vivida e não apenas no campo reli-</p><p>gioso, isto é, na ligação entre o indivíduo e o divino. O sagrado</p><p>se manifesta na explicação da origem divina da técnica, da agri-</p><p>cultura, dos males, na natureza mágica dos instrumentos, das</p><p>danças e dos desenhos.</p><p>Ao agir, o “primitivo” imita os deuses nos ritos que tornam</p><p>atuais, presentes, os mitos primordiais, ou seja, cada um repete</p><p>o que os deuses fizeram no início dos tempos. Só assim a se-</p><p>mente brota da terra, as mulheres se tornam fecundas, as</p><p>árvores dão frutos, o dia sucede à noite e assim por diante. As</p><p>danças antes da guerra, por exemplo, representam uma ante-</p><p>cipação mágica que visa a garantir o sucesso do confronto. Do</p><p>mesmo modo, os caçadores “matam” suas futuras presas ao</p><p>desenhar renas e bisões nas partes escuras e pouco acessíveis</p><p>das cavernas, como ainda podemos ver em Altamira (na</p><p>Espanha) e Lascaux (na França). Também no Brasil foram</p><p>descobertos registros rupestres, como os do centro arqueológico</p><p>de São Raimundo Nonato, no Piauí, datados de 12 mil anos</p><p>antes da chegada dos colonizadores, e os da gruta da Pedra</p><p>Furada, encontrados no Pará.</p><p>Os mitos e os ritos são transmitidos oralmente, e a tradição se</p><p>impõe por meio da crença, permitindo a coesão do grupo e a re-</p><p>petição dos comportamentos considerados desejáveis. Assim</p><p>são constituídas comunidades estáveis, no sentido de que nelas</p><p>as mudanças acontecem muito lentamente. Por exemplo, os</p><p>membros da tribo passam de um estado a outro pelos ritos de</p><p>passagem que marcam o nascimento, a passagem da infância</p><p>para a vida adulta, o casamento, a morte.</p><p>A organização social das tribos baseia-se em uma estrutura</p><p>que mantém homogêneas as relações, sem a dominação de um</p><p>33/685</p><p>segmento sobre o outro. Mesmo que a divisão de tarefas leve as</p><p>pessoas a exercerem funções diferentes, o trabalho e o seu</p><p>produto são sempre coletivos. Também as atividades das mul-</p><p>heres adquirem um caráter social, por não se restringirem ao</p><p>mundo doméstico.</p><p>No exercício do poder, algumas pessoas especiais — como o</p><p>chefe guerreiro ou o feiticeiro xamã — possuem prestígio, mere-</p><p>cem a confiança das demais e geralmente são objeto de consid-</p><p>eração e respeito. Em nenhum momento, no entanto, abusam</p><p>dos privilégios para estabelecer a relação mando–obediência. O</p><p>chefe é o porta-voz do desejo da comunidade como um todo e,</p><p>nesse sentido, não dá ordens, mesmo porque sabe que ninguém</p><p>lhe obedecerá. É sua tarefa apaziguar os indivíduos ou famílias</p><p>em conflito, apelando para o bom senso, para os bons sentimen-</p><p>tos e para as tradições dos ancestrais[12]. Dessa forma, as esfer-</p><p>as do social e do político não se separam, e o poder não constitui</p><p>uma instância à parte, como acontece nas sociedades em que o</p><p>Estado foi instituído.</p><p>As oposições, inexistentes na própria comunidade, geral-</p><p>mente surgem entre as tribos em guerra, ocasião em que o chefe</p><p>assume a vontade que a sociedade tem de aparecer como una e</p><p>autônoma, falando em nome dela. Aliás, o “primitivo” é guer-</p><p>reiro por excelência, e dessa disposição decorrem os valores</p><p>apreciados pela comunidade e que são objeto da educação.</p><p>2. A educação difusa</p><p>Nas comunidades tribais as crianças aprendem imitando os</p><p>gestos dos adultos nas atividades diárias e nos rituais. Tanto nas</p><p>tribos nômades como naquelas que já se sedentarizaram, para</p><p>se ocupar com a caça, a pesca, o pastoreio ou a agricultura, as</p><p>crianças aprendem “para a vida e por meio da vida”, sem que</p><p>34/685</p><p>OEBPS/Text/../Text/notas.xhtml#footnote-226-12</p><p>ninguém esteja especialmente destinado para a tarefa de</p><p>ensinar.</p><p>A cuidadosa adaptação aos usos e valores da tribo geralmente</p><p>é levada a efeito sem castigos. Os adultos demonstram muita</p><p>paciência com os enganos infantis e respeitam o seu ritmo</p><p>próprio. Por meio dessa educação difusa, de que todos parti-</p><p>cipam, a criança toma conhecimento dos mitos dos ancestrais,</p><p>desenvolve aguda percepção do mundo e aperfeiçoa suas</p><p>habilidades.</p><p>A formação é integral — abrange todo o saber da tribo — e</p><p>universal, porque todos podem ter acesso ao saber e ao fazer</p><p>apropriados pela comunidade. É bem verdade que alguns se</p><p>destacam, detendo um conhecimento mais amplo ou</p><p>especial —</p><p>como no caso do feiticeiro —, o que, no entanto, não resulta em</p><p>privilégio, mas apenas em prestígio, como já foi dito.</p><p>O conhecimento mítico imprime uma tonalidade especial à</p><p>educação, pois os relatos aprendidos não são propriamente</p><p>históricos, no sentido da revelação do passado da tribo. Difer-</p><p>entemente, o mito é atemporal e conta o ocorrido no “início dos</p><p>tempos”, nos primórdios. Daí os diversos ritos que marcam as</p><p>passagens, como o nascimento e a morte ou ainda a iniciação à</p><p>vida adulta (ver leituras complementares).</p><p>3. Para além da vida tribal</p><p>A escrita surge como uma necessidade da administração dos</p><p>negócios, à medida que as atividades se tornam mais complexas.</p><p>As transformações técnicas e o aparecimento das cidades em</p><p>decorrência da produção excedente e da comercialização alter-</p><p>aram as relações humanas e o modo de sua sociabilidade. Com o</p><p>tempo, enquanto nas tribos a organização social era homo-</p><p>gênea, indivisa, foram criadas hierarquias devido a privilégios</p><p>de classes, e no trabalho apareceram formas de servidão e</p><p>35/685</p><p>escravismo; as terras de uso comum passaram a ser administra-</p><p>das pelo Estado, instituição criada para legitimar o novo regime</p><p>de propriedade; a mulher, que na tribo desempenhava</p><p>destacado papel social, ficou restrita ao lar, submetida a rigor-</p><p>oso controle da fidelidade, a fim de se garantir a herança apenas</p><p>para os filhos legítimos.</p><p>Finalmente o saber, antes aberto a todos, tornou-se pat-</p><p>rimônio e privilégio da classe dominante. Nesse momento sur-</p><p>giu a necessidade da escola, para que apenas alguns iniciados</p><p>tivessem acesso ao conhecimento. Se analisarmos atentamente</p><p>a história da educação, veremos como a escola, ao elitizar o</p><p>saber, tem desempenhado um papel de exclusão da maioria.</p><p>Algumas dessas transformações e suas consequências para a</p><p>educação serão vistas nos próximos capítulos.</p><p>Dropes</p><p>1 - Em A educação moral, Durkheim observa que as</p><p>punições quase não existem nas sociedades primitivas:</p><p>“Um chefe Sioux achava os brancos bárbaros por</p><p>baterem nos filhos”. A coerção da infância aparece nas</p><p>sociedades em pleno desenvolvimento cultural, como a</p><p>de Roma imperial, ou a da Renascença, onde a ne-</p><p>cessidade de um ensino organizado mais se faz sentir.</p><p>(…) É que à medida que a sociedade progride, torna-se</p><p>mais complexa, a educação deve ganhar tempo e viol-</p><p>entar a natureza, para cobrir a distância sempre maior</p><p>entre a criança e os fins a ela impostos. (Olivier</p><p>Reboul)</p><p>36/685</p><p>Leituras complementares</p><p>1 [Ritos de passagem]</p><p>O rito, a tortura</p><p>(…) De uma tribo a outra, de uma a outra região, diferem as</p><p>técnicas, os meios, os objetivos explicitamente afirmados da</p><p>crueldade; mas a meta é sempre a mesma: provocar o sofri-</p><p>mento. Em outra obra, tivemos a oportunidade de descrever a</p><p>iniciação dos jovens guaiaquis, cujos corpos, em toda a sua su-</p><p>perfície, são escavados e revolvidos. A dor acaba sempre</p><p>tornando-se insuportável: sem proferir palavra, o torturado</p><p>desmaia. (…)</p><p>Poder-se-iam multiplicar ao infinito os exemplos que seriam</p><p>unânimes em nos ensinar uma única e mesma coisa: nas so-</p><p>ciedades primitivas, a tortura é a essência do ritual de iniciação.</p><p>2 - As crianças [nas sociedades orais] seguem os adul-</p><p>tos nas mais diferentes atividades, na caça, na coleta,</p><p>no cuidado com as plantas cultivadas, na pesca. Imit-</p><p>am os adultos e, ao imitá-los, estão imitando os</p><p>próprios heróis culturais, pois foram eles que</p><p>fundaram (…) todas as formas de fazer as coisas no in-</p><p>terior das culturas. Assim, um homem pesca como</p><p>pesca porque assim faziam seus antepassados míticos</p><p>que lhes transmitiram estes conhecimentos, e que</p><p>seguem transmitindo-os sempre que necessário de</p><p>diferentes formas. (Paula Caleffi)</p><p>37/685</p><p>Mas essa crueldade imposta ao corpo, será que ela não visa a</p><p>avaliar a capacidade de resistência física dos jovens, a tornar a</p><p>sociedade confiante na qualidade dos seus membros? Seria o</p><p>objetivo da tortura no rito apenas fornecer a oportunidade de</p><p>demonstração de um valor individual? (…)</p><p>Entretanto, se nos limitarmos a essa interpretação, estaremos</p><p>condenados a desconhecer a função do sofrimento, a reduzir in-</p><p>finitamente o alcance de seu propósito, a esquecer que a tribo,</p><p>através dele, ensina alguma coisa ao indivíduo.</p><p>A tortura, a memória</p><p>(…) Na exata medida em que a iniciação é, inegavelmente,</p><p>uma comprovação da coragem pessoal, esta se exprime — se é</p><p>que podemos dizê-lo — no silêncio oposto ao sofrimento. En-</p><p>tretanto, depois da iniciação, já esquecido todo o sofrimento,</p><p>ainda subsiste algo, um saldo irrevogável, os sulcos deixados no</p><p>corpo pela operação executada com a faca ou a pedra, as cica-</p><p>trizes das feridas recebidas. Um homem iniciado é um homem</p><p>marcado. O objetivo da iniciação, em seu momento de tortura, é</p><p>marcar o corpo: no ritual iniciatório, a sociedade imprime a sua</p><p>marca no corpo dos jovens. Ora, uma cicatriz, um sulco, uma</p><p>marca são indeléveis. Inscritos na profundidade da pele, atest-</p><p>arão para sempre que, se por um lado a dor pode não ser mais</p><p>do que uma recordação desagradável, ela foi sentida num con-</p><p>texto de medo e de terror. A marca é um obstáculo ao esqueci-</p><p>mento, o próprio corpo traz impressos em si os sulcos da lem-</p><p>brança — o corpo é uma memória.</p><p>Pois o problema é não perder a memória do segredo confiado</p><p>pela tribo, a memória desse saber de que doravante são depos-</p><p>itários os jovens iniciados. Que sabem agora o jovem caçador</p><p>guaiaqui, o jovem guerreiro mandan? A marca proclama com</p><p>38/685</p><p>segurança o seu pertencimento ao grupo: “És um dos nossos e</p><p>não te esquecerás disso”. (…)</p><p>Avaliar a resistência pessoal, proclamar um pertencimento</p><p>social: tais são as duas funções evidentes da iniciação como in-</p><p>scrição de marcas sobre o corpo. Mas estará realmente aí tudo o</p><p>que a memória adquirida na dor deve guardar? Será de fato pre-</p><p>ciso passar pela tortura para que haja sempre a lembrança do</p><p>valor do eu e da consciência tribal, étnica, nacional? Onde está o</p><p>segredo transmitido, onde se encontra o saber revelado?</p><p>A memória, a lei</p><p>O ritual de iniciação é uma pedagogia que vai do grupo ao in-</p><p>divíduo, da tribo aos jovens. Pedagogia de afirmação, e não diá-</p><p>logo: é por isso que os iniciados devem permanecer silenciosos</p><p>quando torturados. Quem cala consente. Em que consentem os</p><p>jovens? Consentem em aceitar-se no papel que passaram a ter: o</p><p>de membros integrais da comunidade. (…)</p><p>Os primeiros cronistas diziam, no século XVI, que os índios</p><p>brasileiros eram pessoas sem fé, sem rei, sem lei. É certo que es-</p><p>sas tribos ignoravam a dura lei separada, aquela que, numa so-</p><p>ciedade dividida, impõe o poder de alguns sobre todos os de-</p><p>mais. Tal lei, lei de rei, lei do Estado, os mandan, os guaiaquis e</p><p>os abipones a ignoram. A lei que eles aprendem a conhecer na</p><p>dor é a lei da sociedade primitiva, que diz a cada um: Tu não és</p><p>menos importante nem mais importante do que ninguém. A lei,</p><p>inscrita sobre os corpos, afirma a recusa da sociedade primitiva</p><p>em correr o risco da divisão, o risco de um poder separado dela</p><p>mesma, de um poder que lhe escaparia. A lei primitiva, cruel-</p><p>mente ensinada, é uma proibição à desigualdade de que todos se</p><p>lembrarão. Substância inerente ao grupo, a lei primitiva faz-se</p><p>substância do indivíduo, vontade pessoal de cumprir a lei.</p><p>39/685</p><p>Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado. 2.</p><p>ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978, p.</p><p>125-130.</p><p>2 [Américo Vespúcio tinha razão?]</p><p>Américo Vespúcio, relatando sua viagem às terras do Império</p><p>Português na Índias Ocidentais, em um trecho de carta dirigido</p><p>a Lorenzo de Pietro Medice, desde Lisboa, diz o seguinte:</p><p>“Esta terra é povoada de gentes completamente nuas, tanto os</p><p>homens quanto as mulheres. Trabalhei muito para estudar suas</p><p>vidas pois durante 27 dias dormi e vivi em meio a eles. Não tem</p><p>lei nem fé alguma, vivem de acordo com a natureza e não con-</p><p>hecem a imortalidade da alma. Não possuem nada que lhes seja</p><p>próprio e tudo entre eles é comum; não tem fronteiras entre</p><p>províncias e reinos, não tem reis e não obedecem a ninguém […]</p><p>(1502)”.</p><p>Ao lermos esta carta, e principalmente</p><p>o trecho selecionado</p><p>acima, constatamos que uma leitura a partir de uma outra her-</p><p>menêutica[13] corrobora tanto as descobertas arqueológicas</p><p>sobre as populações indígenas, como os estudos de etnologia.</p><p>A mesma afirmação, examinada sem o preconceito da época</p><p>na qual foi escrita, indica que estas sociedades indígenas eram</p><p>sociedades que se organizavam a partir de laços de parentesco e</p><p>não a partir de um poder separado do corpo social e institucion-</p><p>alizado chamado Estado, por isto Vespúcio não encontra um rei.</p><p>Eram sociedades onde a religiosidade perpassava todos seus as-</p><p>pectos, em todos os momentos, nas quais a relação com a</p><p>natureza era muito importante e o mito possuía um papel fun-</p><p>damental, porém, Vespúcio, não encontrando ídolos, imagens</p><p>ou códices religiosos, considerou que eram sociedades sem fé.</p><p>Eram também sociedades de tradição oral onde as ideias e as</p><p>normas eram transmitidas de outras maneiras que não a escrita.</p><p>40/685</p><p>OEBPS/Text/../Text/notas.xhtml#footnote-226-13</p><p>Vespúcio, novamente não compreendendo esta característica e</p><p>ao não encontrar leis escritas, concluiu que as sociedades indí-</p><p>genas eram sociedades sem lei.</p><p>(…)</p><p>Américo Vespúcio não possuía os recursos da etnologia e da</p><p>história oral para entender as populações indígenas, mas nós os</p><p>possuímos. As populações indígenas que sobreviveram a todo o</p><p>processo de conquista e colonização estão aí, são nossas com-</p><p>panheiras no território nacional. Mudaram desde a época da</p><p>conquista, são sociedades com culturas dinâmicas, nossa so-</p><p>ciedade e cultura também mudaram e continuaram mudando</p><p>no cotidiano, assim como as indígenas, que, mesmo mudando,</p><p>mantiveram a lógica de seus sistemas de tradição oral, de religi-</p><p>osidade, de educação, enfim de compreensão do mundo.</p><p>Paula Caleffi, “Educação autóctone nos séculos</p><p>XVI ao XVIII ou Américo Vespúcio tinha</p><p>razão?”, in Maria Stephanou e Maria Helena</p><p>Camara Bastos (orgs.), Histórias e memórias da</p><p>educação no Brasil. Petrópolis, Vozes, 2004, v.</p><p>I: Séculos XVI-XVIII, p. 35, 36 e 42.</p><p>Atividades</p><p>Questões gerais</p><p>1. Levando em conta as discussões do capítulo in-</p><p>trodutório, quais são as dificuldades de se fazer a</p><p>história das sociedades primitivas?</p><p>41/685</p><p>2. Em que sentido dizemos que a tribo constitui uma</p><p>sociedade sem classes?</p><p>3. De que tipo é o poder exercido pelo chefe e pelo</p><p>feiticeiro?</p><p>4. Explique a natureza da educação tribal usando os</p><p>seguintes conceitos: mítica, espontânea, difusa e</p><p>integral.</p><p>5. Em que circunstâncias surge a necessidade da edu-</p><p>cação formal, ou seja, da escola?</p><p>6. Considerando os ritos de passagem da infância para</p><p>a vida adulta, é de supor que nas sociedades tribais</p><p>não havia adolescência. Discuta a repercussão desse</p><p>fato no processo de educação dos seus membros.</p><p>7. A partir da citação do Oliver Reboul (dropes 1), ex-</p><p>plique em que medida a educação pela disciplina do</p><p>castigo persiste até hoje, apesar de toda a discussão</p><p>pedagógica em torno da sua condenação. Haveria</p><p>saída para esse impasse nas sociedades complexas de</p><p>hoje?</p><p>8. Embora a educação dos povos tribais fosse estrita-</p><p>mente difusa, ainda hoje ocorre esse fenômeno, pela</p><p>educação informal na família, na sociedade e até na</p><p>escola. Dê exemplos.</p><p>Questões sobre as leituras complementares</p><p>Responda às questões a seguir, com base no texto de</p><p>Pierre Clastres.</p><p>42/685</p><p>1. Pierre Clastres argumenta que a tortura no rito não</p><p>visa apenas a demonstrar um valor individual. Qual é,</p><p>portanto, seu maior significado?</p><p>2 . O que o autor quer dizer com “um homem iniciado</p><p>é um homem marcado” e com “o corpo é uma</p><p>memória”?</p><p>3. Que significa “a recusa da sociedade primitiva em</p><p>correr o risco da divisão”?</p><p>4. Compare os trotes de calouros a um rito de</p><p>passagem.</p><p>5. Além dos trotes, que outros costumes contem-</p><p>porâneos poderiam ser comparados, sob certos aspec-</p><p>tos, a “ritos de passagem dessacralizados”?</p><p>Responda às questões a seguir, com base no texto de</p><p>Paula Caleffi.</p><p>6. Explique por que a descrição de Vespúcio sobre os</p><p>indígenas “sem fé, sem rei, sem lei” revela o precon-</p><p>ceito de uma concepção etnocêntrica?</p><p>7. Faça uma pesquisa para exemplificar a última</p><p>afirmação da autora.</p><p>43/685</p><p>Capítulo 1</p>

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