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<p>enfrentamento coletivo eenfrentamento coletivo e</p><p>amoroso aos efeitos daamoroso aos efeitos da</p><p>guerra às drogas sobreguerra às drogas sobre</p><p>populações em situação depopulações em situação de</p><p>vulnerabilidadevulnerabilidade</p><p>Santos</p><p>2024</p><p>Redução de Danos comoRedução de Danos como</p><p>Política Decolonial:Política Decolonial:</p><p>Organizadoras</p><p>Luciana Togni de Lima e Silva Surjus</p><p>Julia Kamata de Castro</p><p>Katharina Basílio do Rosário</p><p>Título:</p><p>Redução de Danos como Política Decolonial:</p><p>enfrentamento coletivo e amoroso aos efeitos da</p><p>guerra às drogas sobre populações em situação de</p><p>vulnerabilidade</p><p>Organizadores:</p><p>Revisão:</p><p>Diagramação e Capa:</p><p>Luciana Togni de Lima e Silva Surjus</p><p>Júlia Kamata de Castro</p><p>Katharina Basilio do Rosário</p><p>Bruno Ferrari Emerich</p><p>Stefania Vallado Alves</p><p>Katharina Basílio do Rosário;</p><p>Redução de Danos como política decolonial: enfrentamento coletivo</p><p>e amoroso aos efeitos da guerra às drogas sobre populações em</p><p>situação de vulnerabilidade / ( organizadoras ) - Santos: UNIFESP,</p><p>2023.</p><p>Diagramação: Katharina Basílio do Rosário</p><p>Revisão: Bruno Ferrari Emerich; Stefania Vallado Alves</p><p>ISBN: 978-65-85919-37-1</p><p>Palavras Chave: política sobre drogas; direitos humanos; amor;</p><p>liberdade</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)</p><p>RDRD REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Sumário</p><p>Prefácio………………………………………………………………………...........…....….4</p><p>Apresentação……………………………………..…………………………...……...........7</p><p>Parte I : Formação e Saberes…..…………………...…………………..…….…20</p><p>Cuidado em Liberdade..............................…......……………...…...........21</p><p>Por que as pessoas usam drogas ?..............…………….................23</p><p>Por uma nova política de drogas.........…………….........…...….......32</p><p>Marcha da Maconha : resistência, alegria e cultura…............36</p><p>Sistema Endocanabinoide : implicações terapêuticas e</p><p>políticas…...........…………………………………………………………..............44</p><p>Redução de danos como forma de afeto e cuidado................57</p><p>Dichavando as diferentes substâncias.......……………….......…......60</p><p>Refletindo sobre prevenções às ISTs/ Aids/Hepatite</p><p>Virais.....................................…….............................…………………....….62</p><p>Atualizações em ISTś..............................................………………........70</p><p>Interseccionalidade e usos de drogas..……...…......................…...86</p><p>Relato de uma sobrevivente......................….........................….....94</p><p>Viver também é resistir ! .......….......................………………..………..95</p><p>Bons encontros, emancipação e cuidado entre</p><p>mulheres..............................................................................................96</p><p>A transformação social pelo paradigma da redução de danos:</p><p>população em situação de rua, redução de danos e centro de</p><p>conivência ……........……......................…..........................…..…..........106</p><p>Parte II : Relatos das Equipes.............................................................132</p><p>Equipe MORROS…..……….......................…………………………………...133</p><p>Equipe POP RUA SANTOS……........................…………………………..138</p><p>Equipe POP RUA SÃO VICENTE…........................…………………....143</p><p>Equipe GAM…..……………......................……………………………………....149</p><p>Equipe Indígena………………………………………………………………………156</p><p>Autores…………………………………………………......................…………….......165</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Prefácio</p><p>Inicio este prefácio, com satisfação e alegria por chegar em</p><p>minhas mãos este livro que avança em vários sentidos nas</p><p>propostas de Redução de Danos (RD) no Brasil. A RD é um tema, por</p><p>incrível que pareça, ainda polêmico, de um lado causado pelas</p><p>investidas fortes do proibicionismo, de outro no entanto já</p><p>possuímos muitos pesquisadores, profissionais das várias áreas,</p><p>redutores de danos, militantes que vem dedicando a vida, a partir</p><p>dos avanços da Reforma Psiquiátrica e o surgimento da Aids na</p><p>década de 1980, nas práticas de cuidado baseados nas estratégias</p><p>de RD na área de cuidado de pessoas que usam substâncias, com</p><p>evidências animadoras nos resultados.</p><p>Não podemos esquecer as lutas para instituirmos a atenção e</p><p>cuidado às pessoas que se encontram em sofrimento pelo uso de</p><p>substâncias e estão vivendo em contextos diversos e adversos a</p><p>partir da filosofia e das práticas de Redução de Danos (RD). Isso</p><p>entretanto tem sido um grande desafio, pois enfrentamos ondas de</p><p>avanços e retrocessos. As últimas ondas de retrocessos, ocorreram</p><p>após o golpe contra a Presidenta Dilma Rousseff e o governo</p><p>anterior que prestou desserviço à saúde pública do Brasil, com</p><p>vários resultados catastróficos dentre eles a morte de 700 mil</p><p>pessoas na pandemia COVID-19 e o descaso com a saúde mental,</p><p>incluindo a atenção às pessoas em sofrimento pelo uso de</p><p>substâncias psicoativas. Observamos também que no atual governo</p><p>da (RE)construção eleito democraticamente, as políticas de RD</p><p>precisam de mais atenção e cuidado para que possamos levar</p><p>adiante a proposição de uma política de cuidado psicossocial huma-</p><p>Reexistir e Resistir é preciso!</p><p>Eroy Aparecida da Silva</p><p>04</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>nizado e já instituído anteriormente, em detrimento de um modelo</p><p>hospitalocêntrico arcaico e ultrapassado a partir de 2016.</p><p>Neste sentido este livro, com a proposta de Redução de Danos sob</p><p>a perspectiva Decolonial, desenvolvido pelo DiV3rso, grupo de</p><p>Estudo, Pesquisa e Extensão da Universidade Federal de São Paulo</p><p>do campus da Baixada Santista é uma grande luz no início do túnel</p><p>neste tempo de mudança, além de ser prova viva que reexistir e</p><p>resistir é preciso!....... Não por acaso em Santos, o berço de</p><p>resistência, onde a Redução de Danos foi gerada, cresceu, floresceu,</p><p>deu frutos e espalhou sementes para todo o país. Sementes que</p><p>geraram frutos que podem ser observadas em cada um dos</p><p>capítulos que compõem este livro. Cada leitor poderá observar</p><p>claramente a potência da proposta conjunta construída por muitas</p><p>mãos, mentes e afetos além da marca indelével de práticas</p><p>colaborativas no cuidado para com as pessoas em vulneração social.</p><p>O DiV3rso inova mais uma vez porque é produto de construção</p><p>“rizomática”, que na sua base espalha horizontalmente os</p><p>pressupostos de juntar estudo e ação, com o compromisso de</p><p>formação política cidadã, trazendo para dentro da Universidade as</p><p>vozes do povo da rua, trabalhadores, redutores de danos, sem</p><p>discriminar ou excluí-los.</p><p>A proposta da construção de caminhos para a Redução de Danos</p><p>sob a perspectiva Decolonial, avança, porque é transdisciplinar,</p><p>ousada, e tem como ponto de partida a horizontalidade nas relações,</p><p>destituindo formas de poder corporativistas e centralizadoras</p><p>características básicas de instituições totais, demarcadas pelo</p><p>neoliberalismo, ou seja, propõe mudanças profundas nas</p><p>estratégias de cuidado. Além disso, na sua essência é traduzido pelo</p><p>conjunto dos capítulos que formam um grande coral de vozes</p><p>resistentes, mas ao mesmo tempo sensível, respeitando a</p><p>diversidade, engajando de forma horizontalizada na busca de</p><p>garantia de seus próprios direitos. A proposta de RD Decolonial pio-</p><p>05</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>neiramente proposta pelo DiV3rso e reunida nesta obra apontam</p><p>novos horizontes de um cuidado humanizado de baixa exigência,</p><p>fortalecida pela educação popular, o antirracismo, feminismo,</p><p>abrindo alas para políticas de resistência revolucionárias a caminho</p><p>das verdadeiras práticas antipunitivista, antihigienista,</p><p>antimanicomial e antiproibicionista. O livro convida cada leitor a</p><p>avançar junto, e colocar sua própria voz neste coral resistente. Boa</p><p>leitura e vamos juntos!</p><p>06</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>Sejam bem-vindos ao 5º (quinto) ebook do Grupo de Estudos,</p><p>pesquisa e Extensão DiV3rso: Saúde Mental, Redução de Danos e</p><p>Direitos Humanos!</p><p>As</p><p>atuam ativando de maneira parcial ou total</p><p>receptores canabinóides, mas também interagem com outros</p><p>receptores como canais iônicos (TRP), receptores nucleares (PPARs)</p><p>entre outros tipos de receptores. Existe uma importância na</p><p>manutenção do funcionamento do sistema endocanabinoide para o</p><p>organismo, neste sentido existe uma redundância quanto o papel de</p><p>diferentes vias de síntese e degradação para a realização de uma</p><p>mesma função. Ainda uma interação inespecífica com outros</p><p>mediadores lipídicos que apresentam papel fundamental na</p><p>resposta imunológica, sobretudo no que se refere ao</p><p>compartilhamento das vias metabólicas (Cristino et al., 2020). O papel</p><p>funcional do sistema endocanabinóide é abrangente e diverso no</p><p>sistema nervoso, atua e interfere em diversas estruturas, núcleos</p><p>cerebrais, tipos celulares, sendo capaz de modular a atividade de</p><p>outros sistemas de neurotransmissão, e sendo responsável por</p><p>uma série de funções neste sistema como neuroproteção, equilíbrio</p><p>energético e regulação de processos vitais.</p><p>45</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Dependendo da expressão dos receptores em células e regiões</p><p>específicas, o sistema endocanabinóide pode inibir a atividade de</p><p>neurotransmissores como glutamato, GABA, serotonina, dopamina,</p><p>noradrenalina e acetilcolina, em diferentes tipos celulares. Acaba</p><p>modulando de maneira retrógrada a liberação de outros</p><p>neurotransmissores regulando a atividade dos mesmos. Vale</p><p>destacar que alguns destes neurotransmissores apresentam</p><p>funções antagônicas, enquanto alguns estimulam, como o</p><p>glutamato, outros inibem a atividade neuronal, como o GABA. E o</p><p>sistema endocanabinóide tem a capacidade de regular a atividade de</p><p>ambos, o que destaca sua importância na modulação dos sistemas</p><p>de comunicação celular (Dale et al., 2007).</p><p>O sistema endocanabinóide, descrito há cerca de 25 anos,</p><p>desperta grande interesse ao permitir a compreensão de sua</p><p>função fisiológica ampla em nosso organismo e de como</p><p>canabinóides exógenos, naturais e sintéticos, afetam o mesmo, anto</p><p>positivamente, em termos terapêuticos, quanto relacionados a seus</p><p>possíveis eventos adversos. A interação de canabinóides presentes</p><p>em espécies vegetais, em maior concentração nas variedades da</p><p>cannabis, e estruturas que compõem nosso sistema</p><p>endocanabinoide como receptores e enzimas podem ser viáveis</p><p>para desempenhar efeitos terapêuticos relevantes para uma</p><p>diversidade de enfermidades. Visto que o sistema endocanabinóide</p><p>desempenha papel fisiológicos, metabólicos e psicológicos diversos,</p><p>fundamentais para o bom funcionamento do organismo, e quando</p><p>existe algum desequilíbrio encontramos no sistema</p><p>endocanabinoide a influência em processos patológicos, na</p><p>manifestação de sintomas e possíveis abordagens terapêuticas.</p><p>Os componentes do sistema endocanabinoide estão expressos e</p><p>distribuídos por todo o sistema nervoso, central e periférico, bem</p><p>como pelo sistema imunológico e ainda em tecidos</p><p>cardiocirculatórios, muscular-esqueléticos, hepáticos, adiposos,</p><p>excretores, respiratórios, reprodutivos entre outros. Os canabinói-</p><p>46</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>des regulam atividades celulares importantes nestes tecidos</p><p>permitindo, defesa, equilíbrio energético e a manutenção do</p><p>funcionamento pleno destes sistemas (Zou e Kumar, 2018).</p><p>Até mesmo animais com sistemas nervosos menos estruturados,</p><p>como esponjas e cnidários, expressam genes canabinóides. Em</p><p>todos os animais vertebrados, como em nós seres humanos, esse</p><p>sistema desempenha um papel fisiológico crucial, influenciando</p><p>processos como apetite, sono, equilíbrio, motivação, memória,</p><p>humor, regulação emocional, entre outros. Desequilíbrios neste</p><p>sistema estão associados ao surgimento de várias enfermidades e</p><p>sintomas, tornando-o um possível alvo terapêutico para reduzir</p><p>sintomas e auxiliar na reabilitação de diversas condições. A ciência</p><p>contemporânea está confrontando essa hipótese ousada, fazendo</p><p>descobertas interessantes, como aquela já comentada para</p><p>epilepsia.</p><p>O sistema endocanabinóide, especialmente em sua forma</p><p>expandida, é notavelmente complexo, exibindo características de</p><p>promiscuidade e redundância (Cristino et al., 2020). Uma série de</p><p>moléculas naturais, tanto fitocanabinoides quanto</p><p>endocanabinoides, além de compostos de outros sistemas de</p><p>neurotransmissão e mediadores lipídicos além de compostos</p><p>canabinóides sintéticos são capazes de interagir com receptores,</p><p>transportadores e enzimas deste sistema, desencadeando</p><p>respostas comportamentais, metabólicas e fisiológicas específicas e</p><p>características e que pode ser mais ou menos intensa a depender</p><p>da característica das moléculas que integram o tratamento.</p><p>As moléculas sintéticas podem ser mais específicas e, por vezes,</p><p>mais potentes do que os canabinóides naturais. Atualmente, o</p><p>mercado ilícito produz canabinoides sintéticos, que são substâncias</p><p>muito mais potentes, aumentam a probabilidade de riscos de saúde</p><p>às pessoas que consomem e podem acarretar eventos adversos</p><p>mais graves à saúde do que os canabinóides naturais. Sobretudo por</p><p>motivos psicossociais, visto que a população que vem fazendo o uso</p><p>47</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>mais nocivo destas substâncias coincidentemente são pessoas em</p><p>extrema vulnerabilidade social, crianças e adolescentes</p><p>hipossuficientes economicamente e pessoas em situação de rua.</p><p>O CBD, é um fitocanabinoide que possui ampla capacidade de</p><p>interação com o nosso organismo, pode ser considerado uma</p><p>substância promíscua que atua em receptores canabinóides como</p><p>agonista inverso, bloqueando a enzima de degradação da</p><p>anandamida, ativando receptores de potencial transiente e também</p><p>de receptores ativados por proliferadores de peroxissomo,</p><p>antagoniza receptores órfãos, canais iônicos dependentes de</p><p>voltagem e interage com receptores de outros sistemas de</p><p>neurotransmissão como de serotonina, adenosina e acetilcolina.</p><p>Assim exerce diversos efeitos terapêuticos, como ação</p><p>anticonvulsivante, ansiolítica, antipsicótica, antiinflamatória entre</p><p>outras (Lucas et al., 2018).</p><p>Em contraste, o THC, além dessas funções, tem um efeito</p><p>euforizante e modula humor e prazer, podendo gerar</p><p>compulsividade associada ao seu consumo e também pode</p><p>aumentar a probabilidade de um evento adverso, sobretudo</p><p>atrelado à intoxicação aguda que pode deflagrar sintomas mentais</p><p>de ansiedade, paranóia e psicose além de sintomas físicos de</p><p>taquicardia, hipotensão e boca seca que retroalimentam os estados</p><p>mentais. Um aspecto crucial sobre os canabinóides é o seu efeito</p><p>paradoxal, ou seja, a mesma substância pode ter efeitos distintos de</p><p>acordo com a dose. Por exemplo, em doses baixas, o THC pode</p><p>reduzir a ansiedade e o limiar convulsivo, enquanto em doses altas</p><p>pode desencadear ansiedade e convulsões (Lucas et al., 2018). Estes</p><p>eventos, assim como todo e qualquer fenômeno de uso de</p><p>substâncias depende de características multifatoriais que levam em</p><p>conta o indivíduo, a substância e o contexto, suas características e</p><p>particularidades.</p><p>48</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Enfermidades neurológicas, imunológicas, metabólicas,</p><p>cardiovasculares e oncológicas são particularmente alvos de</p><p>estudos relacionados à manipulação do sistema endocanabinoide</p><p>para alívio de sintomas e manejo dos transtornos. Entretanto, as</p><p>evidências de eficácia são escassas e se restringem a poucos</p><p>transtornos neurológicos, como no tratamento de epilepsia</p><p>refratária, doenças neurodegenerativas como Parkinson e</p><p>esclerose múltipla, bem como em dor crônica, entre outras. Outras</p><p>enfermidades, como diabetes, obesidade, cardiovasculares,</p><p>respiratórias e até mesmo o câncer, estão sendo estudadas para</p><p>ampliar a compreensão de como estes compostos que interagem</p><p>com o sistema endocanabinóide podem reduzir sintomas, melhorar</p><p>a qualidade de vida e, possivelmente, oferecer tratamentos</p><p>terapêuticos promissores (Fiocruz, 2023).</p><p>No Brasil, graças ao movimento social, o cenário regulatório em</p><p>torno da cannabis passou por mudanças significativas nos últimos 10</p><p>anos,</p><p>refletindo uma evolução no entendimento sobre o uso</p><p>terapêutico e o acesso à planta e seus componentes para fins de</p><p>saúde. Num país polarizado politicamente parece haver um</p><p>consenso quanto ao emprego terapêutico da planta. A Portaria</p><p>344/1998 estabeleceu os critérios e premissas para a lista de</p><p>substâncias consideradas ilícitas, incluindo a maconha. Sobretudo</p><p>balizada pelas convenções internacionais sobre drogas narcóticas</p><p>de 1961, 1971 e 1988, das quais o Brasil é signatário. Contudo, nos</p><p>últimos anos, um movimento amplo busca reavaliar essa</p><p>classificação e permitir o acesso para fins terapêuticos. A ONU em</p><p>2020 acatou a recomendação da Organização Mundial da Saúde</p><p>(OMS) e retirou a maconha da lista IV da convenção de 1961, na</p><p>prática, reconheceu as propriedades terapêuticas da planta (WHO,</p><p>2019).</p><p>49</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Por aqui o debate ganhou força com uma enxurrada de ações</p><p>judiciais e políticas. O Recurso Extraordinário (RE) 635.659 empacado</p><p>no Supremo Tribunal Federal (STF) vem finalmente sendo pautado</p><p>pela corte suprema, abrindo discussões sobre a</p><p>inconstitucionalidade do consumo pessoal. Infelizmente o Supremo</p><p>ao buscar estabelecer parâmetros objetivos sobre o que deve ou</p><p>não ser considerado inconstitucional na lei de drogas, peca ao</p><p>propor um julgamento tímido, que foge de sua atribuição, ao deixar</p><p>de fazer valer a Constituição Federal e se apequena ao despenalizar</p><p>apenas o porte de pequena quantidade de maconha. Além disso, a</p><p>corte discute, a Arguição de Descumprimento de Preceito</p><p>Fundamental (ADPF) 5708/2017, que também questionou a proibição</p><p>do cultivo para uso terapêutico, fomentando o diálogo sobre a</p><p>regulamentação.</p><p>Os tribunais de primeira e segunda instâncias, além do STJ vem</p><p>reconhecendo a validade do cultivo para fins terapêuticos em</p><p>algumas situações específicas, graças ao trabalho de advogados</p><p>ativistas pela reforma na política de drogas, em especial aqueles que</p><p>se organizam na Rede Jurídica pela REFORMA da Política de Drogas,</p><p>milhares de salvos-condutos autorizaram com que famílias cultivem</p><p>maconha em prol da saúde, sinalizando uma mudança progressiva</p><p>na abordagem legal. Além do cultivo pessoal, centenas de</p><p>associações vêm buscando através do respaldo jurídico ou da</p><p>desobediência civil realizar trabalho hercúleo de oferecer</p><p>informação e tratamento às pessoas que não se adequam à</p><p>regulação oferecida pelo Estado.</p><p>Após grande mobilização em torno do fato social o informativo</p><p>794 STJ de novembro de 2023 resume que o plantio e a aquisição</p><p>das sementes da Cannabis sativa, para fins medicinais, não</p><p>configuram conduta criminosa, independente da regulamentação da</p><p>Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Essa sinalização é</p><p>um avanço, visto que pessoas que buscam obter de forma</p><p>autônoma canabinoides para fins terapêuticos são criminalizadas</p><p>por essa conduta.</p><p>50</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>A discussão também vem sendo impulsionada nas casas</p><p>legislativas, que criticam a competência da corte em atitudes no</p><p>exercício do poder consideradas inadequadas pelos legisladores, ao</p><p>mesmo tempo em que se mostram incapazes ou desinteressados</p><p>em avançar com a reformulação da lei atual. São 29 projetos de lei</p><p>tramitando que buscam de alguma forma alterar a lei de drogas ou</p><p>ao menos ampliar o acesso da cannabis para fins terapêuticos. Uma</p><p>série de audiências públicas foram realizadas sobre o tema em</p><p>diferentes comissões legislativas. A temática está em pauta, embora</p><p>o avanço legal seja tímido. A intenção de parte destes projetos, com</p><p>destaque para o 399/2015, é criar um arcabouço legal que permita o</p><p>cultivo em território nacional por pessoa jurídica para produção de</p><p>insumos e medicamentos, que garanta o acesso seguro e</p><p>controlado à planta e seus componentes para tratamentos em</p><p>saúde. Ainda 15 estados da federação aprovaram leis que visam</p><p>garantir acesso a canabinoides para fins terapêuticos pelo Sistema</p><p>Único de Saúde - SUS. No entanto, a regulamentação dessas leis são</p><p>incipientes e não conseguem atender à demanda.</p><p>Enquanto isso, o mercado ilícito se transformou, expandindo-se</p><p>para oferecer não apenas a planta, mas também extratos,</p><p>comestíveis e produtos derivados. Grupos que controlam a venda de</p><p>substâncias proscritas diversificaram suas ofertas, territórios e</p><p>mercados consumidores. Com isso cidades pequenas passam a</p><p>apresentar formas de territorialização de grandes cidades. Essa</p><p>realidade ressalta a necessidade urgente de uma regulamentação</p><p>que não apenas viabilize o acesso aos consumidores de forma</p><p>segura e informada, mas deve priorizar a regulação da cadeia</p><p>produtiva da planta no país, que essa regulação preveja e perpasse</p><p>por questões como o perfilamento racial, do machismo e do racismo</p><p>estrutural, criminalização da pobreza, acolhimento e cuidado à</p><p>populações vulneráveis, crianças e adolescentes, LGBTQIAPN+,</p><p>pessoas com transtornos mentais, aquelas que abusam de</p><p>substâncias psicotrópicas, população em situação de rua, entre</p><p>51</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>outras que devam ser incluídas num tratado de paz que buscará</p><p>por fim na guerra às drogas e que deverá trazer propostas e</p><p>estratégias que reparem as consequências causadas pela</p><p>iatrogênica política proibicionista, que sejam contempladas e</p><p>orientadas pela justiça social, pelos direitos humanos e pela redução</p><p>de danos.</p><p>O panorama regulatório da maconha no Brasil demanda por uma</p><p>mudança de paradigma radical, que deverá impactar a sociedade, a</p><p>economia, o sistema de justiça, o legislativo e o executivo. A primeira</p><p>mudança significativa deverá ser a democratização de acesso à</p><p>maconha e seus componentes, especialmente para fins</p><p>terapêuticos, através da regulação do cultivo em território nacional.</p><p>Mudanças nas políticas públicas deverão vir acompanhadas de</p><p>estratégias para mitigar os danos sociais provocados pela guerra,</p><p>como por exemplo destinar os impostos oriundos dos produtos do</p><p>mercado da cannabis para políticas que contemplem as populações</p><p>afetadas pela proibição. Ainda deverão ser acompanhadas de</p><p>processo de avaliação e aperfeiçoamento, pautadas nas melhores</p><p>evidências. Devem prever a redução da letalidade policial, da</p><p>violência e da corrupção do Estado e do encarceramento por</p><p>crimes relacionados à drogas. É necessário que as políticas de</p><p>drogas protejam de fato a saúde pública e toda a sociedade. A</p><p>dinâmica complexa entre a interação do sistema endocanabinoide,</p><p>com canabinóides exógenos em um ambiente desafiador como se</p><p>manifesta a sociedade brasileira contemporânea são desafios que</p><p>nos permite refletir em novas práticas e desafios para lidar com as</p><p>drogas e sua cadeia produtiva de maneira estratégica, a fim de</p><p>disputar o monopólio com o crime organizado, mitigar a violência, a</p><p>corrupção e a lavagem de dinheiro atreladas a essa prática.</p><p>O sistema endocanabinóide, centro dessa reflexão, revela-se um</p><p>fascinante campo de estudo para a pesquisa biomédica, aplicação</p><p>terapêutica e para as políticas de saúde. Desde os primórdios até os</p><p>avanços contemporâneos, sua interação com canabinóides exóge-</p><p>52</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>nos desperta não apenas interesse científico, mas também</p><p>implicações sociais e regulatórias. O trabalho visionário de Raphael</p><p>Mechoulam e Elisaldo Carlini, explorando os efeitos terapêuticos dos</p><p>canabinóides, lançou luz sobre o potencial dessas substâncias para</p><p>fins de saúde e, ao mesmo tempo, desafia paradigmas legais. No</p><p>Brasil, o panorama regulatório segue lentamente em evolução,</p><p>refletindo um movimento crescente em direção à democratização</p><p>do uso terapêutico da maconha. As decisões judiciais e a discussão</p><p>política em torno do cultivo para fins medicinais são indicativos de</p><p>uma sociedade em busca de novos caminhos, orientados pela</p><p>compreensão científica e pela humanização das políticas de saúde. A</p><p>transformação desse cenário demanda não apenas ações</p><p>legislativas mais assertivas, mas também um olhar compassivo para</p><p>com aqueles que mais necessitam, impulsionando uma mudança</p><p>radical de paradigma que priorize a saúde, a justiça social e a</p><p>redução de danos numa postura de civilidade, respeito e empatia.</p><p>53</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Referências:</p><p>Bonini SA, Premoli M, Tambaro S, Kumar A, Maccarinelli G, Memo M,</p><p>Mastinu A. Cannabis sativa: A comprehensive ethnopharmacological</p><p>review of a medicinal plant with a long history. J Ethnopharmacol.</p><p>2018 Dec 5;227:300-315. doi: 10.1016/j.jep.2018.09.004. Epub 2018 Sep 8.</p><p>PMID: 30205181.</p><p>UNODC, World Drug Report 2023 (United Nations publication, 2023).</p><p>Howlett AC, Barth F, Bonner TI, Cabral G, Casellas P, Devane WA,</p><p>Felder CC, Herkenham M, Mackie K, Martin BR, et al. International</p><p>Union of Pharmacology. XXVII. Classification of cannabinoid</p><p>receptors. Pharmacol Rev. 2002;54:161–202.</p><p>Cunha JM, Carlini EA, Pereira AE, Ramos OL, Pimentel C, Gagliardi R,</p><p>Sanvito WL, Lander N, Mechoulam R. Chronic administration of</p><p>cannabidiol to healthy volunteers and epileptic patients.</p><p>Pharmacology. 1980;21(3):175-85. doi: 10.1159/000137430. PMID: 7413719.</p><p>Devinsky O, Cross JH, Laux L, Marsh E, Miller I, Nabbout R, Scheffer IE,</p><p>Thiele EA, Wright S; Cannabidiol in Dravet Syndrome Study Group.</p><p>Trial of Cannabidiol for Drug-Resistant Seizures in the Dravet</p><p>Syndrome. N Engl J Med. 2017 May 25;376(21):2011-2020. doi:</p><p>10.1056/NEJMoa1611618. PMID: 28538134.</p><p>Mechoulam R, Parker LA. The endocannabinoid system and the brain.</p><p>Annu Rev Psychol. 2013;64:21-47. doi: 10.1146/annurev-psych-113011-</p><p>143739. Epub 2012 Jul 12. PMID: 22804774.</p><p>Cristino L, Bisogno T, Di Marzo V. Cannabinoids and the expanded</p><p>endocannabinoid system in neurological disorders. Nat Rev Neurol.</p><p>2020 Jan;16(1):9-29. doi: 10.1038/s41582-019-0284-z. Epub 2019 Dec 12.</p><p>PMID: 31831863.</p><p>Dale A. Fortin, Eric S. Levine, Differential Effects of Endocannabinoids</p><p>on Glutamatergic and GABAergic Inputs to Layer 5 Pyramidal</p><p>Neurons, Cerebral Cortex, Volume 17, Issue 1, January 2007, Pages</p><p>163–174, https://doi.org/10.1093/cercor/bhj133</p><p>54</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>https://doi.org/10.1093/cercor/bhj133</p><p>RDRD</p><p>Zou S, Kumar U. Cannabinoid Receptors and the Endocannabinoid</p><p>System: Signaling and Function in the Central Nervous System. Int J</p><p>Mol Sci. 2018 Mar 13;19(3):833. doi: 10.3390/ijms19030833. PMID:</p><p>29533978; PMCID: PMC5877694.</p><p>Grotenhermen, F. Pharmacokinetics and Pharmacodynamics of</p><p>Cannabinoids. Clin Pharmacokinet 42, 327–360 (2003).</p><p>https://doi.org/10.2165/00003088-200342040-00003 Lucas CJ,</p><p>Galettis P, Schneider J. The pharmacokinetics and the</p><p>pharmacodynamics of cannabinoids. Br J Clin Pharmacol. 2018</p><p>Nov;84(11):2477-2482. doi: 10.1111/bcp.13710. Epub 2018 Aug 7. PMID:</p><p>30001569; PMCID: PMC6177698.</p><p>Nota técnica do Programa Institucional de Políticas de Drogas,</p><p>Direitos Humanos e Saúde Mental da Fiocruz. Estado atual das</p><p>evidências sobre usos terapêuticos da cannabis e derivados e a</p><p>demanda por avanços regulatórios no Brasil. 2023. Fiocruz.</p><p>https://portal.fiocruz.br/documento/nota-tecnica-do-programa-</p><p>institucional-de-politicas-de-drogas-direitos-humanos-e-saude</p><p>Acessado em 14 de dezembro de 2023.</p><p>Expert Committee on Drug Dependence (ECDD). Cannabis</p><p>recommendations. WHO REFERENCE NUMBER: ECDD41. 2019, World</p><p>Health Organization.</p><p>55</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>https://doi.org/10.2165/00003088-200342040-00003</p><p>https://portal.fiocruz.br/documento/nota-tecnica-do-programa-institucional-de-politicas-de-drogas-direitos-humanos-e-saude</p><p>https://portal.fiocruz.br/documento/nota-tecnica-do-programa-institucional-de-politicas-de-drogas-direitos-humanos-e-saude</p><p>RDRD</p><p>Redução de Danos</p><p>como forma de afeto e</p><p>cuidado</p><p>Redução de danos como forma de afeto e cuidado é a maior</p><p>prática que aprendi no coletivo do DiV3rso através de formações,</p><p>ações e da troca direta vivenciada com as pessoas que compõem o</p><p>grupo ou que até mesmo perpassam durante a ação.</p><p>A falta de humanização é algo presente e vivenciado por muitas</p><p>pessoas em situação de vulnerabilidade nos serviços diários e no</p><p>cotidiano, são vítimas de preconceito, despreparo de profissionais e</p><p>na rua sofrem desprezo e são ignorados ou tratados como</p><p>incômodos. A escuta qualificada e de acolhimento são atos simples</p><p>que levam 5 minutos do dia de uma pessoa, o ato de olhar alguém</p><p>nos olhos, ouvir o que o outro tem a dizer e tratá-lo com o mínimo de</p><p>respeito que lhe é negado diariamente faz a diferença. Vejo como</p><p>uma prática de redução de danos, como o mínimo que alguém pode</p><p>fazer, tratar o outro com dignidade, respeito e cuidado.</p><p>Durante as ações já tiveram pessoas que se emocionaram pelo</p><p>simples ato de lembrarem e serem chamados pelos seus nomes,</p><p>pessoas que só queriam alguém que escutassem um pouco sobre</p><p>sua vida e seu dia, ter contato com o outro faz a diferença, pois isso é</p><p>negado diariamente, as pessoas passam ao seu lado e se negam a</p><p>olhar, ignoram porque acham que a mínima atenção já vão lhe pedir</p><p>dinheiro. Essa situação de total violação de direitos, não revolta a</p><p>maioria, pois é resultado da desumanização desses indivíduos os</p><p>quais se tornam invisíveis ou vistos como incômodos. A redução de</p><p>Katharina Basílio do Rosário</p><p>56</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>danos neste caso relembra que essas pessoas são cidadãos de</p><p>direito e têm o poder de reivindicá-los de ter o acesso que lhes é</p><p>negado. Essa prática se torna um compromisso político de reduzir o</p><p>dano que o Estado causa (Rosário, K. 2023, p. 54 ).</p><p>É difícil conceituar a redução de danos a uma coisa só, pois ela</p><p>depende do contexto, território e da pessoa, sendo uma série de</p><p>fatores que interferem. São diferentes as ações em festas</p><p>universitárias, das ações de convivência, assim como, das ações nas</p><p>ruas em ambos territórios - Santos e São Vicente - pois são diversos</p><p>contextos que perpassam no momento e diferentes adversidades</p><p>que decorrem em cada população. Entretanto, acredito que todas</p><p>dividem o mesmo ideal, é a aproximação sem causar danos (FIALHO,</p><p>A. D. 2023, p.75), durante uma de nossas formação Ezequias um de</p><p>nossos queridos redutores que me ensina demais disse: “Não tem</p><p>errado na Redução de Danos”. Isso me fez refletir e concordar, pois</p><p>quando analisamos cada pessoa tem sua fórmula, compreende seus</p><p>limites e o que vai funcionar ou não para ela, não cabe ao outro julgar</p><p>se isso é certo ou errado, uma vez que, que reduz o dano dela e se</p><p>aplica ao seu contexto e realidade de vida.</p><p>O DiV3rso é um grupo de Estudo, Pesquisa e Extensão da</p><p>Universidade Federal de São Paulo do campus da Baixada Santista e</p><p>dá jus ao nome, pois mistura pessoas e lideranças da comunidade,</p><p>estudantes, profissionais e docentes não de uma maneira</p><p>hierarquizada, mas um saber direto sem distinção de quem ensina e</p><p>quem aprende, onde todos têm sua contribuição e seu aprendizado.</p><p>Como estudante de Serviço Social e extensionista, a bagagem que</p><p>me foi proporcionada é maior do que qualquer ensino teórico-</p><p>prático propiciado na faculdade, é uma perspectiva de quem já</p><p>passou pelo serviço, sofreu pela sua insuficiência, é conhecer o</p><p>território da maneira viva e intrínseca, o DiV3rso fez eu me</p><p>apaixonar e me revoltar pelo cuidado com a população em situação</p><p>fragilizada , lutar pelos seus direitos compreender cada indivíduo e</p><p>sua história.</p><p>57</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>A Redução de Danos se tornou um dos meus maiores princípios, a</p><p>sua prática é diária e está presente até mesmo em pequenas ações</p><p>do seu dia a dia!</p><p>Referência Bibliográfica</p><p>DUARTE, J.F; ROSÁRIO, K.B, Redução de danos: experiências sociais e</p><p>redes afetivas na produção de novos saberes. Santos : Unifesp, 202</p><p>58</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>DICHAVANDO AS</p><p>DIFERENTES SUBSTÂNCIAS</p><p>Quando cheguei neste mundo, eu residia em um abrigo. Minha</p><p>vida na época estava centrada na luta contra o uso de substâncias.</p><p>Eu já reconhecia que essas substâncias estavam prejudicando</p><p>minha saúde e meu bem-estar. Sob sua influência, meu raciocínio</p><p>ficava turvo, minha alimentação era inadequada e meu sono era</p><p>irregular. Foi</p><p>uma época difícil.</p><p>Tive que tomar uma decisão crucial: continuar nesse caminho</p><p>autodestrutivo ou buscar uma vida melhor. Optei por viver. Foi então</p><p>que a abordagem de redução de danos entrou em minha vida como</p><p>um apoio vital. Eu me sentia muito solitário e enfrentava angústias,</p><p>tristezas e decepções que só eram agravadas pelo uso de drogas. O</p><p>que começou como uma forma de escapismo acabou se tornando</p><p>um vício que consumia minha existência.</p><p>Minha jornada para sair desse ciclo começou por volta de 2017</p><p>ou 2018, após quase duas décadas vivendo nas ruas, mergulhado no</p><p>mundo das drogas. A vida nas ruas era marcada por uma constante</p><p>movimentação e pela ameaça de violência por parte de outros</p><p>usuários. Enquanto alguns admiravam minha capacidade de</p><p>sobreviver nesse ambiente hostil, isso também me tornava alvo de</p><p>inveja e rivalidade</p><p>Percebi que precisava de uma mudança radical. Passei por</p><p>programas de recuperação, mas percebi que muitos deles eram</p><p>apenas ilusões. A redução de danos, por outro lado, ressoou comigo</p><p>devido à sua abordagem prática e sem julgamentos. Encontrei apoio</p><p>em um coletivo de pessoas que compartilhavam experiências</p><p>semelhantes e isso me deu forças para seguir em frente.</p><p>Ezequias Santana Rocha e Douglas Martins</p><p>59</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Hoje, estou em um ponto da vida em que vejo progresso e</p><p>oportunidades. Não busco a perfeição, mas sim a melhoria contínua.</p><p>Abandonei completamente as substâncias e estou focado em</p><p>reconstruir minha vida. Estou me educando, buscando qualificação e</p><p>sonhando em proporcionar um futuro melhor para minha filha.</p><p>Embora tenha enfrentado muitos desafios, estou grato por estar</p><p>onde estou hoje, longe das drogas e com uma nova perspectiva de</p><p>vida.</p><p>.</p><p>60</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Refletindo sobre</p><p>prevenção às</p><p>IST/AIDS/hepatites</p><p>virais</p><p>Por muitos anos, desde o início da epidemia de HIV, vivemos sob a</p><p>voz de comando que nos ‘doutrinava’: “USE CAMISINHA!”.</p><p>Ao longo de mais de 30 anos, esse, e somente esse, era o lema</p><p>para prevenção às IST/HIV/AIDS e hepatites virais.</p><p>Hoje, com tantos estudos, pesquisas, e evolução da tecnologia,</p><p>podemos lançar mão de outras ferramentas, que vêm compor um</p><p>pacote de estratégias de prevenção.</p><p>Estamos falando da chamada Prevenção Combinada, que associa</p><p>diferentes ações de prevenção ao HIV, e também às IST e hepatites</p><p>virais, como também para a saúde integral das pessoas, levando em</p><p>conta individualidades e contexto de vida. Todos esses métodos</p><p>podem ser utilizados isoladamente, ou combinados.</p><p>Ana Zaher Cabral Cordeiro</p><p>Conhecendo a Mandala da Prevenção</p><p>Combinada</p><p>A Mandala da Prevenção Combinada</p><p>nos sinaliza estratégias</p><p>comportamentais e biomédicas, das</p><p>quais podemos e devemos fazer uso,</p><p>devidamente orientados por um</p><p>serviço de saúde, capacitado para esse</p><p>atendimento.</p><p>61</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>TESTAGEM REGULAR PARA O HIV, OUTRAS IST E</p><p>HIV</p><p>A testagem pode ser realizada no Sistema Único de Saúde (SUS):</p><p>nas Unidades Básicas de Saúde ou nos CTA (Centro de Testagem e</p><p>Aconselhamento).</p><p>No CTA, a testagem é acompanhada do processo de</p><p>aconselhamento, onde se reflete condições de vulnerabilidade e</p><p>exposições, através da gestão de riscos. O aconselhador é o</p><p>profissional capacitado para ouvir, avaliar, discutir e realizar a</p><p>gestão de riscos, considerando o contexto individualizado do usuário</p><p>que procura o serviço.</p><p>No Brasil, existem dois tipos de testes: os exames laboratoriais e os</p><p>testes rápidos.</p><p>Os testes rápidos são práticos e de fácil execução, podem ser</p><p>realizados com a coleta de uma gota de sangue na ponta do dedo, ou</p><p>por amostra de fluido oral, com resultado em 30 minutos. Para os</p><p>exames laboratoriais, é realizada coleta de sangue venoso (da veia).</p><p>Entendendo o teste :</p><p>Janela diagnóstica</p><p>Todos os testes possuem um período chamado “janela</p><p>diagnóstica”, que corresponde ao tempo entre o contato com o</p><p>vírus, e a produção, pelo nosso organismo, do marcador da infecção</p><p>(antígeno ou anticorpo). É preciso respeitar e permitir o tempo que o</p><p>nosso corpo leva para essa reação, podendo acontecer da pessoa</p><p>estar infectada e o resultado do teste dar negativo.</p><p>É preciso ter claro o período que o teste ‘nos mostra’, avaliando a</p><p>necessidade de retestagem em caso de exposição recente.</p><p>Você também pode realizar o autoteste para o HIV (processo no</p><p>qual uma pessoa coleta sua própria amostra (fluido oral ou sangue)</p><p>e, em seguida, realiza o teste e interpreta o resultado, sozinho ou</p><p>com alguém em quem confiar. Informe-se no CTA do seu município.</p><p>62</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>PEP (PROFILAXIA PÓS-EXPOSIÇÃO AO HIV)</p><p>A PEP é uma medida de prevenção de urgência, para ser</p><p>utilizada em situações de risco à infecção pelo HIV, consistindo no</p><p>uso de medicamentos para reduzir o risco de adquirir essa infecção:</p><p>violência sexual;</p><p>acidente ocupacional (com instrumentos perfurocortantes ou</p><p>contato direto com material biológico);</p><p>relação sexual desprotegida (sem o uso de camisinha ou em caso</p><p>de rompimento).</p><p>Deve ser iniciada o mais rápido possível, preferencialmente nas</p><p>primeiras duas horas após a exposição de risco e, no</p><p>máximo, em até 72 horas (3 dias).</p><p>A profilaxia deve ser realizada por 28 dias, e a pessoa é</p><p>acompanhada pelo serviço de saúde, realizando os exames</p><p>necessários, até que seja liberada.</p><p>PrEP (PROFILAXIA PRÉ-EXPOSIÇÃO)</p><p>A estratégia consiste na tomada de comprimidos, de forma</p><p>regular e disciplinada, que permite ao organismo estar preparado</p><p>para enfrentar um possível contato com o HIV.</p><p>Todo o processo é acompanhado pelo Serviço de Atendimento, do</p><p>município do usuário, com testagem para o HIV, outras IST e</p><p>acompanhamento de seu histórico clínico, com realização regular de</p><p>exames laboratoriais.</p><p>Existem duas modalidades de PrEP indicadas: a PrEP diária e a</p><p>PrEP sob demanda.</p><p>PrEP diária: consiste na tomada diária dos comprimidos, de</p><p>forma contínua, indicada para qualquer pessoa em situação de</p><p>vulnerabilidade ao HIV.</p><p>63</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>PrEP sob demanda: é uma alternativa para quem se expõe</p><p>eventualmente ao HIV, e não quer tomar medicação diária; opção</p><p>para quem tem relações sexuais com frequência menos que 2</p><p>vezes por semana, ou se for possível planejar quando a relação</p><p>sexual acontecerá.</p><p>Importante: a PrEP só oferece proteção se você tomar o</p><p>medicamento conforme a orientação do profissional de saúde, pois</p><p>pode não haver concentração suficiente das substâncias ativas em</p><p>sua corrente sanguínea para bloquear o vírus, comprometendo sua</p><p>proteção.</p><p>PREVENÇÃO DA TRANSMISSÃO VERTICAL</p><p>Durante a gestação e no parto, pode ocorrer a transmissão do</p><p>HIV (e também da sífilis e da hepatite B) para o bebê; o HIV também</p><p>pode ser transmitido durante a amamentação.</p><p>Por isso, as gestantes, e suas parceiras sexuais, devem realizar os</p><p>testes para HIV, sífilis e hepatites durante o pré-natal e no parto: no</p><p>1º e no 3º trimestre da gestação, e realizar o teste rápido no</p><p>momento do parto, independente de exames anteriores.</p><p>O diagnóstico e o tratamento precoce podem garantir o nascimento</p><p>saudável do bebê.</p><p>As gestantes que forem diagnosticadas com HIV durante o pré-</p><p>natal, têm indicação de tratamento com os medicamentos</p><p>antirretrovirais durante toda a gestação e, se orientado pelo</p><p>médico, também no parto, prevenindo a transmissão vertical do HIV</p><p>para o bebê.</p><p>O recém-nascido deve receber o medicamento antirretroviral</p><p>(xarope) e ser acompanhado no serviço de saúde; recomenda-se</p><p>também a não amamentação, evitando a transmissão do HIV para a</p><p>criança, através do leite materno.</p><p>64</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Importante: mulheres com diagnóstico negativo para HIV</p><p>durante o pré-natal ou parto, devem utilizar camisinha (masculina ou</p><p>feminina) nas relações sexuais, inclusive durante o período de</p><p>amamentação, prevenindo a infecção para o bebê.</p><p>IMUNIZAR</p><p>PARA HBV E HPV</p><p>IMUNIZAR PARA A HEPATITE B (HBV)</p><p>A hepatite B é considerada uma IST, e seu vírus é altamente</p><p>transmissível nas relações sexuais desprotegidas; por isso, a</p><p>importância do uso do preservativo em todas as relações sexuais.</p><p>A hepatite B também pode ser prevenida com a vacina; ela está</p><p>disponível no SUS e é altamente protetiva, sendo necessário fazer as</p><p>três doses:</p><p>Importante: o esquema vacinal é composto por 3 doses para</p><p>completar a imunização.</p><p>- 1ª dose, a 2ªdose (um mês depois da 1ª) e a 3ª dose (6 meses</p><p>depois da 1ª)</p><p>Caso você não esteja com o esquema completo, procure uma</p><p>Unidade Básica de Saúde.</p><p>IMUNIZAR PARA O HPV</p><p>O papiloma vírus humano (HPV) é uma IST e pode provocar câncer</p><p>do colo do útero e verrugas genitais. Existem cerca de 200 subtipos</p><p>do HPV, e alguns deles são mais efetivos em provocar câncer e,</p><p>outros, as verrugas genitais.</p><p>O Brasil implantou essa vacina em 2014, com o objetivo de</p><p>fornecer imunidade para os subtipos que mais provocam câncer e</p><p>verrugas; atualmente a vacina está disponível para meninos e</p><p>meninas, de 9 a 14 anos.</p><p>65</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>REDUÇÃO DE DANOS</p><p>No âmbito da prevenção às IST, ao HIV/AIDS e às hepatites virais,</p><p>as ações de redução de danos estão voltadas, principalmente, às</p><p>pessoas que usam álcool e outras drogas, silicone líquido industrial e</p><p>hormônios e têm por objetivo evitar a transmissão, promover a</p><p>melhoria da qualidade de vida e garantir o acesso à saúde.</p><p>As ações podem variar desde a oferta de insumos, de forma</p><p>singularizada, para prevenir a transmissão sexual ou parenteral, por</p><p>meio de intervenções comportamentais, até intervenções</p><p>estruturais relacionadas à redução do estigma, de iniquidades e de</p><p>barreiras de acesso à saúde.</p><p>As pessoas que usam álcool e outras drogas, independente do</p><p>padrão de uso, são uma população desproporcionalmente afetada</p><p>pelas IST, pelo HIV/aids e pelas hepatites virais, seja em relação ao</p><p>risco de exposição sexual ou pelo compartilhamento de objetos para</p><p>uso de drogas.</p><p>Além disso, o uso de drogas é uma prática encontrada em todas</p><p>as demais populações chave e prioritárias para o HIV, para outras</p><p>IST e para as hepatites virais.</p><p>DIAGNOSTICAR E TRATAR AS PESSOAS COM IST</p><p>E HIV</p><p>O objetivo dos serviços que trabalham com testagem para HIV e</p><p>outras IST, é diagnosticar precocemente as pessoas, e encaminhá-</p><p>las ao SAE (Serviço de Atendimento Especializado), ou para as</p><p>Unidades Básicas de Saúde, para acompanhamento clínico.</p><p>Importante: disciplina e adesão ao tratamento são os fatores</p><p>principais para melhor qualidade de vida e saúde.</p><p>66</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>POR QUE USAR O PRESERVATIVO?</p><p>O preservativo (ou camisinha), é o método mais conhecido,</p><p>acessível e eficaz para se prevenir da infecção pelo HIV e outras</p><p>infecções sexualmente transmissíveis (IST), como a sífilis, a gonorreia</p><p>e também alguns tipos de hepatites; além disso, ele evita uma</p><p>gravidez não planejada.</p><p>Existem dois tipos de camisinha: a masculina, que é feita de látex e</p><p>deve ser colocada no pênis ereto, antes da penetração, e a feminina,</p><p>que é feita de látex ou borracha nitrílica e é usada internamente na</p><p>vagina, podendo ser colocada algumas horas antes da relação</p><p>sexual, não sendo necessário aguardar a ereção do pênis.</p><p>ONDE PEGAR OS PRESERVATIVOS?</p><p>Os preservativos masculino e feminino são disponibilizados em</p><p>qualquer serviço público de saúde. Caso você não saiba onde retirá-</p><p>los, ligue para o Disque Saúde (136).</p><p>A retirada de preservativos nas unidades de saúde é um direito</p><p>seu; por isso, não devem ser impostas quaisquer barreiras ou</p><p>condições para que você tenha acesso. Retire quantos</p><p>preservativos masculinos ou femininos você julgar que necessite.</p><p>USAR PRESERVATIVOS MASCULINOS,</p><p>FEMININOS E GEL LUBRIFICANTE</p><p>TRATAR TODAS AS PESSOAS VIVENDO COM</p><p>HIV/AIDS</p><p>Os medicamentos antirretrovirais (ARV) surgiram na década de</p><p>1980 para impedir a multiplicação do HIV no organismo, ajudando a</p><p>evitar o enfraquecimento do sistema imunológico. Por isso, o uso</p><p>67</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>regular dos ARV é fundamental para aumentar o tempo e a</p><p>qualidade de vida das pessoas que vivem com HIV, e reduzir o</p><p>número de internações e infecções por doenças oportunistas.</p><p>Desde 1996, o Brasil disponibiliza os ARV a todas as pessoas</p><p>vivendo com HIV que necessitam de tratamento.</p><p>Uma pessoa com boa adesão ao tratamento, pode atingir níveis de</p><p>carga viral tão baixos, que é praticamente nula a chance de</p><p>transmitir o vírus :</p><p>(I = I -> Indetectável = Intransmissível)</p><p>Além disso, fazendo uso correto do medicamento, o paciente não</p><p>adoece e garante qualidade de vida.</p><p>68</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>O curso deste ano de Redução de Danos como Política Decolonial</p><p>da UNIFESP de Santos, trabalhou muito, como era esperado, com o</p><p>tema drogas e redução de danos. No tema abordado aqui,</p><p>trabalhamos mais o sexo, sendo focado em infecções de</p><p>transmissão sexual e HIV/AIDS.</p><p>Começamos pela epidemiologia. Com essa formação no meu</p><p>doutorado, eu não consigo pensar como resolver um problema sem</p><p>entender a dimensão desse problema. A epidemiologia para mim é</p><p>uma espécie de luz no fim do túnel que mostra o caminho de como</p><p>podemos avançar no controle de doenças, se entendermos quais os</p><p>desafios, ou melhor do tamanho dos desafios que temos pela frente.</p><p>As referências, são boletins epidemiológicos, produzidos pelo</p><p>Ministério da Saúde do Brasil, datados de 2022 . Até o dia que</p><p>apresentamos esses dados, os boletins de 2023 não estavam</p><p>disponíveis.</p><p>Também falamos que nem todas as doenças de transmissão sexual</p><p>são compulsoriamente reportadas ao Ministério da Saúde (MS),</p><p>conforme a portaria federal 264 de 17/02/2020 (atualizada), que fala</p><p>sobre a importância de notificar doenças como HIV e AIDS, a</p><p>infecção pelo vírus da imunodeficiência humana em gestantes e em</p><p>crianças expostas ao risco de transmissão vertical, a sífilis</p><p>adquirida, congênita e em gestantes.</p><p>Aí mostramos a figura a seguir (Figura 1), publicada no boletim do</p><p>MS, que mostra a taxa de detecção de sífilis em gestantes e de sífilis</p><p>congênita por 1000 nascidos vivos, segundo Unidade da Federação.</p><p>Nele vemos a desigualdade do nosso país onde algumas cidades</p><p>capitais e alguns estados têm uma taxa de detecção em gestantes</p><p>Figura 1 :</p><p>RDRD</p><p>69</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Atualizações em</p><p>ISTs e AIDS</p><p>Fábio Mesquita</p><p>RDRD</p><p>de sífilis congênita, muito maior do que a média nacional. Na verdade,</p><p>ser feliz tem sido um grande desafio em vários países do mundo,</p><p>onde a transmissão cresce de maneira acentuada, apesar de</p><p>termos tratamento para a doença disponível a mais de 100 anos.</p><p>Figura 1 :</p><p>Também fizemos questão de falar de dados globais, lembrando</p><p>que a última informação disponível da Organização Mundial da Saúde</p><p>sobre sífilis é do ano de 2020, e neste ano a Organização Mundial de</p><p>Saúde (OMS) estimou que 7,1 milhões de adultos de 15 a 49 anos</p><p>adquiriram sífilis em todo o mundo. Os países que sistematicamente</p><p>monitoram a sífilis estão apresentando um aumento importante de</p><p>casos principalmente entre homens que fazem sexo com homens, e</p><p>também de sífilis congênita. Já o dado sobre mulheres grávidas no</p><p>mundo que tinham sífilis, é do ano de 2016, e mostra que 7 em cada</p><p>1000 mulheres grávidas tinham sífilis. Esse dado ainda aponta que</p><p>neste ano os casos de sífilis materna levaram a 143000 mortes fetais</p><p>precoces e natimortos, 61000 mortes neonatais, 41000 nascimentos</p><p>prematuros ou com baixo peso ao nascer, e 109000 bebês com sífilis</p><p>congênita diagnosticada. Alguns segmentos da sociedade são</p><p>70</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>desproporcionalmente afetados pela sífilis segundo a OMS, por</p><p>exemplo 7,5 % dos homens gays e outros homens que fazem sexo</p><p>com homens tem sífilis, em comparação com 0,5% dos homens da</p><p>população geral.</p><p>Ainda no tema ISTs poderemos falar de gonorréia,</p><p>onde</p><p>globalmente se encontrou uma alta da resistência ao tratamento</p><p>clássico com penicilina (mais de 25%), nos colocando a necessidade</p><p>de termos como opção na primeira linha de tratamento a Cefixima</p><p>que é uma cefalosporina de terceira geração.</p><p>Em relação às clamídias, outra importante infecção bacteriana</p><p>sexualmente transmissível, o tratamento de primeira linha incluiria</p><p>azitromicina 1 g oral em dose única, ou doxiciclina 100 mg, de 12 em 12</p><p>horas, por 7 dias. A clamídia nos homens geralmente causa uretrite,</p><p>proctite, e até conjuntivite. Em mulheres, cervicite, uretrite e</p><p>conjuntivite.</p><p>Uma outra IST muito importante é o HPV. O HPV é o papilomavírus</p><p>humano. O HPV causa, entre outros sinais e sintomas, em sua</p><p>evolução clínica, o câncer do colo do útero que é uma das principais</p><p>causas de morte entre as mulheres no Brasil e em vários outros</p><p>países do mundo. A boa notícia é que desde o governo da presidenta</p><p>Dilma Rousseff existe vacina disponível no SUS para HPV. Esta vacina</p><p>serve a homens e mulheres crianças e adolescentes e faz parte do</p><p>calendário de vacinas nacional. Para além do câncer do colo de</p><p>útero, o HPV pode causar lesões verrucosas, algumas vezes visíveis,</p><p>outras vezes microscópicas, no pênis, no ânus, e na orofaringe.</p><p>Impressões são popularmente conhecidas como “crista de galo” ou</p><p>"condiloma acuminado". Elas podem também evoluir para câncer,</p><p>geralmente com um poder de complicação menor do que o câncer</p><p>de colo de útero. Os tratamentos para eliminar essas lesões são</p><p>feitos com eletrocautério, ácidos, podofilina, laser etc. O tratamento</p><p>local, com as técnicas propostas acima, costuma ser bastante</p><p>resolutivo. Mas insisto, que não há nada melhor do que a vacina para</p><p>proteger as pessoas do HPV. Esta vacina já gerou muita polêmica</p><p>desde sua implementação no Brasil, sobretudo por ataques que</p><p>71</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>seguem sofrendo de conservadores que tentam dizer que o</p><p>estímulo a vacinação e, portanto, proteção, seria um estímulo ao</p><p>sexo precoce. Mais uma dessas idiotices do conservadorismo que se</p><p>expressa em segmentos da população brasileira.</p><p>Vamos falar aqui agora de outras doenças de transmissão sexual</p><p>que são muito conhecidas no Brasil e no mundo, daria um capítulo à</p><p>parte, talvez um livro inteiro, mas vou fazer um esforço para</p><p>resumir a importância de 3 dos subtipos de hepatites virais, que são</p><p>transmitidos também através do relacionamento sexual. O mais</p><p>comum dos três é a hepatite B. A hepatite B tem sido transmitida por</p><p>relações sexuais sem proteção, principalmente relações anais, mas</p><p>não exclusivamente. O sem proteção mencionado aqui, pode ser o</p><p>uso de preservativos para sexo vaginal ou anal, mas principalmente</p><p>ausência de vacinação, uma vez que esta é uma doença que pode ser</p><p>completamente protegida por uma vacina disponível no SUS.</p><p>Portanto, a melhor forma de se proteger da transmissão sexual (e</p><p>na verdade, todas as formas possíveis de transmissão) da hepatite B,</p><p>é estar vacinado corretamente.</p><p>A hepatite C, é um outro subtipo das hepatites virais, que</p><p>historicamente foi transmitida, principalmente através da</p><p>transfusão de sangue, ou do compartilhamento de seringas e</p><p>agulhas por pessoas que usam drogas injetáveis, mas que</p><p>recentemente foi também identificada com potencial de</p><p>transmissão sexual, principalmente por sexo anal, mas em pessoas</p><p>HIV positivas, passando a ser uma importante coinfecção também</p><p>no comportamento sexual. Atualmente a forma de prevenção mais</p><p>clássica (uso de camisinha) tem sido o melhor instrumento de</p><p>proteção da transmissão sexual da hepatite C, uma vez que não</p><p>existe vacina para este subtipo. Importante mencionar, que desde a</p><p>introdução dos antivirais de ação direta (DAAs) – meados da primeira</p><p>década deste século - existe uma concreta possibilidade de</p><p>tratamento com cura e, portanto, futura eliminação da hepatite C</p><p>(adaptadamente, pode ser considerado também como um</p><p>tratamento como prevenção).</p><p>72</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>O terceiro subtipo chamou mais a atenção por parecer inusitada a</p><p>relação entre este subtipo das hepatites virais, a hepatite A, e o sexo.</p><p>Até então a hepatite A era considerada um subtipo de transmissão</p><p>principalmente alimentar ou por água contaminada. No entanto se</p><p>identificou recentemente vários episódios de surtos de transmissão</p><p>da Hepatite A no relacionamento sexual oral/anal (popularmente</p><p>conhecido como beijo Grego). Mais uma vez, existe proteção de</p><p>vacina para a hepatite A disponível no SUS. A pessoa vacinada estará</p><p>protegida de qualquer forma de transmissão.</p><p>O HIV</p><p>Voltamos aqui à Epidemiologia, com o destaque para o quadro</p><p>Global. Me lembrei da Conferência da International AIDS Society (IAS –</p><p>Sociedade de AIDS Internacional) na África do Sul no ano de 2000, que</p><p>tive o privilégio de estar presente. Eram 19 anos de Epidemia e o</p><p>Continente Africano havia sido abandonado à deriva. Na África do Sul,</p><p>por exemplo, a prevalência do HIV era de 25% da população geral (de</p><p>cada 4 pessoas, uma tinha HIV). Foi sem dúvida um momento</p><p>histórico, porque a partir de ali, o mundo passou a dar importância</p><p>ao controle da epidemia na África Subsaariana. Dali surgiram as</p><p>ideias da criação do Fundo Global de Luta Contra a AIDS, Tuberculose</p><p>e Malária, e da iniciativa do Governo Norte-Americano de criar o</p><p>PEPFAR (um fundo Presidencial de apoio a Luta Contra a AIDS).</p><p>Foi também naquela conferência, que eu passei a gostar muito</p><p>mais de ex-presidentes do que de presidentes. Ali, dois ex-</p><p>presidentes fizeram autocrítica de suas gestões em relação ao tema</p><p>AIDS. Um deles, era nada mais nada menos do que Nelson Mandela,</p><p>ex-presidente da África do Sul. Um símbolo global de resiliência,</p><p>resistência e de luta vitoriosa contra a discriminação sintetizada no</p><p>aparthaid, Nelson Mandela usou a conferência para fazer uma</p><p>autocrítica de um certo “negacionismo” de sua gestão em relação ao</p><p>HIV/AIDS. Chamou a atenção do mundo ali representado por</p><p>pesquisadores, ativistas, estudantes, autoridades de saúde e</p><p>imprensa, de que entrava para a luta contra a AIDS a partir dali.</p><p>73</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Outro ex-presidente que fez uma autocrítica de sua gestão foi Bill</p><p>Clinton. Reconheceu que como ex-presidente dos Estados Unidos da</p><p>América havia feito muito pouco para apoiar a luta global contra o</p><p>HIV, ou mesmo para apoiar todas as iniciativas que tentavam</p><p>controlar o HIV dentro do seu próprio país. Bill Clinton foi outro que</p><p>se engajou na luta contra a AIDS global neste evento histórico.</p><p>Lembro aqui do ex-Presidente do Brasil, Fernando Henrique</p><p>Cardoso, que nada tinha a ver com a Conferência, mas que desde</p><p>que virou ex é um dos maiores símbolos da luta por uma política de</p><p>drogas global humanitária, o que não conseguiu fazer quando era</p><p>Presidente. Eu sou fã dele neste seu papel de Ex. Presidentes.</p><p>Mas ressalto aqui a África do Sul e a África Subsaariana mais</p><p>genericamente, porque nos últimos 12 anos, entre 2010 e 2022, foi a</p><p>região do planeta Terra que mais derrubou a epidemia do HIV. O</p><p>número de casos novos nessa região caiu 57%. Para se ter um</p><p>comparativo, na mesma época entre 2010 e 2022, aqui na região da</p><p>América Latina o número de casos novos aumentou 8%. As outras</p><p>regiões do planeta que tiveram um desempenho muito ruim nos</p><p>últimos 12 anos foram o Leste Europeu e a Ásia Central (área da</p><p>Rússia e da antiga União Soviética), ou ainda a região do Oriente</p><p>Médio e do Norte da África. Estas regiões são conhecidas como</p><p>regiões cheias de preconceito contra a população LGBTQIA+, ou a</p><p>grande criminalização das pessoas que usam drogas. Os</p><p>crescimentos aí do número de casos novos foram da ordem de 49%</p><p>para a região do Leste Europeu e a Ásia Central; e de 61% na região</p><p>do Oriente Médio e do Norte da África. Não há nenhuma dúvida que o</p><p>preconceito, o conservadorismo e a criminalização de</p><p>comportamentos humanos, criam enormes dificuldades para o</p><p>controle da epidemia.</p><p>Quando paramos para observar o Brasil, vimos algumas</p><p>características bastante importantes na</p><p>evolução da epidemia</p><p>entre os anos de 2011 e 2021. Neste período a epidemia cresceu</p><p>sobretudo na Juventude, e embora políticas arrojadas para esse</p><p>segmento tenham sido desenvolvidas entre julho de 2013 a junho de</p><p>2016 (como por exemplo vários treinamentos de Jovens Lideranças, 74</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>que ocorreram em parceria do Ministério da Saúde do Brasil, da</p><p>UNAIDS, da UNICEF e da UNESCO), estas idéias de sucesso foram</p><p>abandonadas nos últimos 7 anos (incluindo aqui 2023). Hoje, jovens</p><p>capacitados naquele período são chaves na luta em todo o país, mas</p><p>a descontinuidade prejudicou tremendamente o trabalho específico</p><p>neste segmento da população.</p><p>Uma outra característica da epidemia no Brasil dos nossos tempos,</p><p>é o que chamamos informalmente de PPP (referente à população</p><p>Preta, Periférica e Pobre), que estão entre as mais atingidas pela</p><p>epidemia, com maior mortalidade entre mulheres negras e também</p><p>uma incidência desproporcional de casos novos nesse segmento da</p><p>população. Além destes segmentos de populações mais vulneráveis,</p><p>a ciência mostra que ainda há populações chaves como a população</p><p>Trans, Gays e Homens que fazem sexo com homens, profissionais do</p><p>sexo e pessoas que usam drogas, que são mais impactadas que a</p><p>população geral. Não se pode esquecer ainda as diferenças</p><p>geográficas em um país da dimensão do Brasil. Já há alguns anos, é</p><p>evidente a desproporção da disseminação do HIV em estados como</p><p>o Amazonas, o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul. Elaborar políticas</p><p>públicas de equidade faz toda a diferença porque não dá para tratar</p><p>igual, coisas tão diferentes. Distribuir os recursos e tratar todos da</p><p>mesma forma é manter a desigualdade e por isso não podemos</p><p>defender políticas de igualdade, mas sim de equidade.</p><p>Um dos aspectos que expõe estes segmentos mais vulneráveis é a</p><p>falta de acesso a todas as formas de Prevenção Combinada que vêm</p><p>sendo implementadas desde 2013. Chama atenção que no final do</p><p>ano de 2023 ainda 10% da população estimada como sendo</p><p>portadora do HIV, não tenha sido testada para o HIV. Nesta altura do</p><p>campeonato, apenas 81% das pessoas que já foram diagnosticadas</p><p>estão sob tratamento com medicamentos antirretrovirais. Há um</p><p>tremendo gap de acesso e isto precisa ser reparado urgentemente,</p><p>não apenas porque o país assumiu compromissos internacionais</p><p>com o SDG (Metas do Desenvolvimento Sustentável), mas sobretudo</p><p>porque hoje a ciência e a tecnologia nos levaram a uma situação em</p><p>75</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>que o HIV AIDS é considerada uma doença crônica manejável, e em</p><p>várias cidades do mundo, as pessoas que vivem com HIV já tem uma</p><p>expectativa de vida ainda maior do que a da população geral.</p><p>São agora 42 anos desde que o primeiro caso foi identificado no ano</p><p>de 1981 nos Estados Unidos da América. Aquilo que durante a</p><p>primeira década era considerada uma sentença de morte, virou na</p><p>quarta década a ser uma doença crônica manejável, com</p><p>medicamentos de excelente qualidade, praticamente livres de</p><p>efeitos colaterais, e com o uso de uma a duas pílulas por dia. Para</p><p>quem em 1995 tomava de 12 a 16 pílulas por dia, e tinha uma</p><p>enormidade de efeitos colaterais, parece até que não estamos</p><p>falando da mesma doença, tamanho foi o desenvolvimento da ciência</p><p>e da tecnologia neste curto espaço de tempo (sob a perspectiva</p><p>histórica). Num curto espaço de tempo teremos disponível</p><p>tratamento injetável trimestral ou até anual.</p><p>A falta de uma política de comunicação adequada é outra triste</p><p>característica da resposta brasileira nos últimos anos. Sabendo que</p><p>I = I, nos dias de hoje é inaceitável que isto não seja divulgado</p><p>massivamente para contribuir de forma estratégica para o</p><p>combate ao estigma e discriminação. Já há bastante tempo que não</p><p>há campanhas de televisão sobre o HIV nem no Dia Mundial de Luta</p><p>Contra a AIDS, nem no Carnaval. Bolsonaro foi mais longe, e retirou o</p><p>nome de AIDS do Departamento. Mas qual não foi a surpresa que na</p><p>atual gestão do Ministério da Saúde, já sob o Governo Lula, se</p><p>constituiu um Comitê Interministerial para a eliminação da</p><p>Tuberculose e de Outras Doenças Determinadas Socialmente</p><p>(CIEDS), e acreditem se quiser, AIDS agora está sob a denominação</p><p>de “outras doenças”, como se não fosse mais um problema relevante</p><p>de saúde pública, com óbvios determinantes sociais e com 11 mil</p><p>mortes no Brasil só no ano de 2022.</p><p>O quadro global mostra que ao final de 2022, embora com todos</p><p>estes avanços mencionados, ainda tivemos 1,3 milhões de casos</p><p>novos no mundo, com um total de 630 mil mortes relacionadas ao</p><p>HIV/AIDS. Hoje se considera que há 39 milhões de pessoas vivendo</p><p>com HIV no Planeta, um super importante problema de Saúde</p><p>Pública.</p><p>:</p><p>76</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Mas o que chamamos de prevenção combinada? O conceito</p><p>passou a ser incorporado no mundo sobretudo a partir de 2012, e no</p><p>Brasil, a partir de meados de 2013. A prevenção combinada sai do</p><p>conceito camisinhocêntrico e mostra que há várias formas de se</p><p>prevenir a Transmissão do HIV nos dias de hoje. O primeiro passo,</p><p>sem nenhuma dúvida, é ampliar o quanto for possível o acesso a</p><p>testagem. Uma vez testada a pessoa pode ser dirigida para 2 opções:</p><p>Se for positivo deve ser imediatamente encaminhado para o</p><p>tratamento. O imediatamente aqui não é expressão de linguagem,</p><p>é mesmo uma decisão baseada em evidência científica que diz</p><p>que quanto mais cedo se inicia o tratamento, melhor para o</p><p>paciente e para toda a comunidade. O ideal é no mesmo dia iniciar</p><p>o tratamento, mas é aceitável um tempo de espera de no máximo</p><p>uma semana. Esta medida deveria ser inegociável. Ao adotar o</p><p>tratamento o paciente em pouco tempo vai ter a carga viral</p><p>suprimida, e estando indetectável, não tem como transmitir o HIV.</p><p>I = I (indetectável = intransmissível). Até a conferência mundial de</p><p>AIDS do ano de 2023 ainda havia um grau de vacilação sobre este</p><p>conceito. Na Conferência, a Organização Mundial da Saúde, e</p><p>cientistas que estudaram o tema nos últimos 12 anos, publicaram</p><p>diretivas (OMS) e artigos científicos que acabaram com a dúvida:</p><p>sim I = I. Esta é hoje uma das formas de prevenção extremamente</p><p>importantes no pacote de prevenção combinada.</p><p>1.</p><p>Se for negativo para o teste de HIV, a pessoa poderá ser</p><p>encaminhada para várias estratégias de prevenção que hoje são</p><p>tão fundamentais no controle da epidemia.</p><p>2.</p><p>A outra estratégia que ganhou dimensão global na última década é</p><p>a profilaxia pré- exposição (PrEP). A PrEP é considerada hoje, junto</p><p>com o I=I, duas estratégias essenciais no controle da epidemia.</p><p>Existem hoje três formas de administrar a PrEP. A de uso diário, foi</p><p>adotada inicialmente com a tentativa de que a pessoa engajada na</p><p>PrEP tomasse pelo menos 4 pílulas por semana, o suficiente para</p><p>proteção da transmissão do HIV. As pílulas são medicamentos</p><p>antirretrovirais que vão impedir a reprodução do vírus dentro do</p><p>organismo da pessoa que está utilizando, no caso da pessoa ter um</p><p>77</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>relacionamento sexual ou um compartilhamento de seringas e</p><p>agulhas, com pessoas portadoras do HIV. Mais tarde os franceses</p><p>desenvolveram uma técnica, que foi adotada pela OMS e por vários</p><p>países do mundo, incluindo o Brasil, que é a PrEP sob demanda. Na</p><p>PrEP sob demanda, os medicamentos são tomados em 2 pílulas,</p><p>duas horas antes do relacionamento sexual (requer um certo</p><p>planejamento), uma pílula 24 horas depois, e a quarta pílula 48 horas</p><p>depois. Embora de uma forma diferente, a técnica sob demanda</p><p>também utiliza 4 pílulas, o suficiente para proteção desejada. A</p><p>grande inovação é a PrEP injetável. Já aprovada em 7 países e uma</p><p>região, está em uso em 6 dos países e na União Européia. Estados</p><p>Unidos da América, Austrália, África do Sul, Zimbabwe, Malawi e</p><p>Botswana, além da União Europeia. No Brasil, aprovado pela Agência</p><p>Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em 2023, ainda não foi</p><p>incorporado no SUS. A PrEP injetável exige que a pessoa tome uma</p><p>injeção a cada 3 meses. Os cientistas estão trabalhando</p><p>de maneira</p><p>incansável, para que essa injeção possa ser a cada 6 meses ou até</p><p>uma vez por ano. A medicação necessária para a prevenção deixa,</p><p>portanto, de ser uma tomada diária ou sob demanda de 4 pílulas</p><p>(pelo menos) e passa a ser uma injeção a cada 3 meses. Os estudos</p><p>em curso, que incluem estudos no Brasil, mostram que a população</p><p>que adere à PrEP, prefere muito a sua forma injetável do que ter que</p><p>tomar as pílulas. Ademais, os estudos ainda mostram que a proteção</p><p>com a medicação injetável é ainda maior do que com a medicação</p><p>oral. O que já era muito bom, está ficando excelente. Mais um viva</p><p>para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia.</p><p>Já conhecíamos a profilaxia pós exposição (PEP), que foi</p><p>inicialmente desenvolvida para proteger profissionais de saúde de</p><p>acidentes de trabalho. Um pouco depois a PEP foi estendida para</p><p>casos de violência sexual, lamentavelmente ainda tão frequentes por</p><p>este mundo adentro. Em 2013, o então departamento de DST/AIDS e</p><p>Hepatites Virais do MS no Brasil, em um novo protocolo, estendeu a</p><p>PEP para qualquer tipo de acidente que pudesse expor as pessoas</p><p>ao HIV. Desta forma se conseguiu um instrumento adicional na</p><p>prevenção, que é fundamental, mas que tem que ser iniciado em no</p><p>78</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>máximo 72 horas após o “acidente” e os comprimidos antiretrovirais</p><p>devem ser tomados por 28 Dias. Com base na experiência da pílula</p><p>do dia seguinte como método de anticoncepção, carinhosamente</p><p>chamamos a PEP de pílula dos 28 dias seguintes. A proteção segue a</p><p>mesma lógica da PrEP, de que o medicamento antirretroviral</p><p>protegerá a pessoa para que o HIV não se multiplique e se aloje em</p><p>quem se expôs ao risco de infecção.</p><p>Uma outra parte da estratégia de prevenção combinada é de fazer</p><p>o diagnóstico e o tratamento das ISTs. Há várias ISTs que causam</p><p>lesões físicas no pênis, no ânus, na boca e na vagina, que podem</p><p>romper barreiras e facilitar a transmissão de vírus como o HIV. É</p><p>por isso que diagnosticar e tratar ISTs é parte fundamental da</p><p>prevenção combinada. Já foi mencionado anteriormente neste</p><p>capítulo, que há vacinas para ISTs importantes como o HPV, a</p><p>hepatite A e a hepatite B. Vacinas são instrumentos fundamentais na</p><p>prevenção.</p><p>A prevenção da transmissão vertical do HIV (que também se</p><p>aplica para as hepatites B, C e a sífilis) é uma estratégia fundamental</p><p>durante o pré Natal e após o parto. Está na verdade foi a maior</p><p>escola que tivemos nos ajudando a pensar a ciência de uma forma</p><p>mais ampla. Desde o final dos anos 90 sabíamos que se usássemos</p><p>antirretrovirais numa mulher grávida vivendo com HIV</p><p>protegeríamos a criança que estava sendo gestada. Demorou até o</p><p>ano de 2011 para concluirmos que qualquer pessoa vivendo com HIV</p><p>que estivesse tomando antirretrovirais protegeria a pessoa com a</p><p>qual tivesse contato (seja na gravidez, na relação sexual de todas as</p><p>formas ou no uso de drogas injetáveis), porque sob a medicação não</p><p>transmitiria o HIV. Foi a prevenção da transmissão vertical que nos</p><p>chamou a atenção para isso. Apesar de sabermos isso há tanto</p><p>tempo, é praticamente inaceitável que até hoje ainda tenhamos</p><p>transmissão do HIV de mãe para filho, não por causa da mãe ou do</p><p>filho, mas por causa da negligência dos serviços de saúde durante o</p><p>pré-natal e após o parto. Ressalto após o parto, porque hoje em</p><p>alguns lugares onde o pré-natal melhorou muito e praticamente se</p><p>eliminou a transmissão intrauterina ou no momento do parto, a falta</p><p>79</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>de cuidado e atenção à gestante e ao bebê pelos serviços de saúde</p><p>após o parto, fez com que aumentasse muito nos últimos tempos a</p><p>transmissão vertical pelo aleitamento materno. Portanto é</p><p>fundamental, numa perspectiva de saúde integral, que pensemos</p><p>nas pessoas vivendo com HIV não só em serviços específicos, mas</p><p>em todos os serviços de saúde. Felizmente temos algumas cidades</p><p>no Brasil e alguns países do mundo que já eliminaram a transmissão</p><p>vertical do HIV.</p><p>Uso de preservativos internos ou externos com lubrificante de</p><p>preferência, segue sendo muito importante na prevenção do HIV e</p><p>de outras ISTs. Embora explicitamente estejamos contra a</p><p>estratégia camisinhocêntrica, sabemos que no conjunto das</p><p>estratégias de prevenção combinada a promoção da camisinha</p><p>ainda é bastante importante. Todavia, como principalmente nós</p><p>médicos, mas vários dos profissionais de saúde, precisamos perder</p><p>a arrogância de prescrever a vida das pessoas. A gente goste ou</p><p>não, há pessoas que não querem utilizar camisinha, e isto deixou de</p><p>ser um problema na medida que temos outras formas de prevenção</p><p>importantes. Aqui sempre vem as pessoas que vão dizer que isso</p><p>está errado porque se não usarem camisinha nós estamos</p><p>estimulando o crescimento de ISTs. Só lembrando que as ISTs</p><p>existem há muito tempo, e por exemplo, todos os estudos de PrEP</p><p>encontraram entre os candidatos ao uso, antes de que começassem</p><p>a utilizar, altas taxas de ISTs. Claro que devemos mostrar a</p><p>importância e insistir, mas hoje existem várias opções para a</p><p>prevenção de doenças, incluindo as ISTs.</p><p>Claro que em sendo um capítulo por mim escrito, mas não só por</p><p>isso, porque isto é parte da prevenção combinada, a redução de</p><p>danos é outro componente fundamental da prevenção combinada.</p><p>Digo isso por que no ano de 2001 em Deli na Índia, durante a</p><p>Conferência Internacional de Redução de Danos, fui laureado com o</p><p>International Rolleston Award, o maior prêmio que se dá a ativistas</p><p>de redução de danos, na época reconhecido como pioneiro de</p><p>Redução de Danos na América Latina, pelo trabalho que durante a</p><p>gestão da prefeita Telma de Souza (PT) e do Secretário Municipal de</p><p>80</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Saúde da Cidade de Santos (SP) doutor David Capistrano da Costa</p><p>Filho, quando então eu era o coordenador do primeiro programa</p><p>municipal de AIDS no Brasil aqui na cidade de Santos, lançamos na</p><p>celebração do Dia Mundial de Luta contra a AIDS do ano de 1989, o</p><p>programa de trocas de seringas. A cidade de Santos era então</p><p>considerada pela imprensa “a capital da AIDS”, onde mais da metade</p><p>dos casos de AIDS eram relacionados ao compartilhamento de</p><p>seringas e agulhas para o uso de cocaína injetável. Santos, que tem o</p><p>maior Porto da América Latina, acabou se tornando um local de</p><p>grande consumo de cocaína, na época em sua forma injetável.</p><p>Redução de danos é importante como parte da prevenção</p><p>combinada porque embora as pessoas achem que esse fenômeno</p><p>diminuiu muito aqui no Brasil, esta é uma estratégia global, e em</p><p>várias partes do mundo ainda é extremamente importante a</p><p>disseminação do HIV e das hepatites virais pelo uso de drogas</p><p>injetáveis. A redução de danos foi ganhando um novo conceito no</p><p>Brasil e no mundo todo, deixando de ser aplicado apenas para o HIV,</p><p>mas passando a ser uma estratégia extremamente importante para</p><p>todo tipo de consumo de álcool e outras drogas. Ela é uma política</p><p>adotada formalmente no Brasil, inicialmente em 1998 por um projeto</p><p>de lei do então deputado estadual Paulo Teixeira, sancionado pelo</p><p>governador do Estado de São Paulo Mário Covas, na abertura da</p><p>única Conferência Internacional de Redução de Danos realizada em</p><p>São Paulo no Brasil, da qual eu tive o privilégio de ser o presidente.</p><p>Momento histórico, a sanção da lei que abriu o caminho para que</p><p>mais tarde outros estados, mas também a união, mudassem as leis e</p><p>incorporassem redução de danos como parte das políticas públicas</p><p>sobre drogas em nosso país.</p><p>Nos últimos tempos, principalmente após o golpe que sofreu a</p><p>presidenta Dilma Rousseff, houve um ataque incansável à redução</p><p>de danos como política pública. O ápice aconteceu durante o</p><p>governo de Bolsonaro, comandado por um médico chamado Osmar</p><p>Terra (que o movimento social apelidou de Osmar Terra Plana), que</p><p>chegou a extinguir a política pública de redução de danos. Felizmente</p><p>o Brasil é um país Federativo e algumas das idiotices que o governo</p><p>81</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Federal tentou impor dos últimos tempos, não se aplicaram</p><p>necessariamente a todas as Unidades da Federação (vide</p><p>enfrentamento da Pandemia de COVID-19). Ademais, o movimento</p><p>social de redução de danos, bem como professores e cientistas da</p><p>área, profissionais de saúde engajados em RD, são hoje muito</p><p>poderosos no Brasil, e não deixaram de forma alguma que esta</p><p>“resolução federal” afetasse a vida real. Lamentavelmente, após um</p><p>ano de governo Lula, ainda não recuperamos o engajamento federal</p><p>na estratégia de redução de danos. Ao contrário nos surpreendeu</p><p>profundamente saber que até novembro de 2023 o governo federal</p><p>através do Ministério do Desenvolvimento Social financiava 14982</p><p>vagas de 602 comunidades terapêuticas, que como já reiterei em</p><p>vários artigos, não são comunidades, muito menos terapêuticas.</p><p>Essas instituições, em sua maioria geridas por pastores</p><p>pentecostais, são o maior desperdício de dinheiro público com apoio</p><p>formal do governo federal no setor saúde. É lamentável que o</p><p>governo atual tenha se preocupado em criar um departamento de</p><p>apoio às comunidades terapêuticas e não tenha dado a mesma</p><p>importância às políticas de redução de danos.</p><p>Lembramos aqui, que o Brasil é membro das Nações Unidas. A</p><p>ONU, através de várias de suas agências, condena a internação</p><p>compulsória e apoia explicitamente a política de redução de danos. O</p><p>Brasil, ao deixar a redução de danos de lado, contraria vários dos</p><p>acordos internacionais firmados, e nesta área de políticas públicas</p><p>de drogas, o Brasil não só não voltou ao cenário Internacional como</p><p>liderança, mas também se apresenta como um país muito atrasado</p><p>neste tema. Uma coisa é, enquanto o Supremo Tribunal Federal</p><p>trabalha pela legalização do uso médico e recreativo da maconha, e</p><p>o Senado trabalha na direção contrária pelo proibicionismo radical</p><p>(no estilo da política de “Guerra Contra as Drogas, um fracasso</p><p>global); o Governo Federal se perde na política de apoio aos</p><p>Pentecostais das Comunidades Terapêuticas e não promove a</p><p>política desenhada e apoiada pela evidência científica de Redução de</p><p>Danos. Aquele desmonte que aconteceu desde os tempos de Temer</p><p>e Bolsonaro aos CAPS e CAPS ADs, nem sequer foi tocado com a</p><p>82</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>energia necessária até o momento. Esperamos que a partir de 2024</p><p>o Governo ouça a sociedade que na Conferência Nacional de Saúde e</p><p>na Conferência Nacional de Saúde Mental exigiram o fim de recursos</p><p>públicos para as comunidades terapêuticas.</p><p>Como é possível ver no texto deste capítulo, a Prevenção</p><p>Combinada é um conjunto de estratégias que são fundamentais</p><p>para o controle da epidemia do HIV/AIDS. Embora tenhamos</p><p>avançado muito na ciência na tecnologia, há um campo que ainda</p><p>avançamos muito pouco, não tem por exemplo uma pílula capaz de</p><p>combater o estigma e a discriminação. O estigma e a discriminação,</p><p>embora fortemente associado as pessoas que vivem com HIV, não se</p><p>limitam a elas, são também vítimas os jovens, as pessoas pretas</p><p>pobres e periféricas, populações chaves como as pessoas trans,</p><p>gays e homens que fazem sexo com homens, profissionais do sexo e</p><p>pessoas que usam drogas. Não é um tema simples, e a maioria dos</p><p>estudos mostra que um dos lugares onde as pessoas são muito</p><p>discriminadas é exatamente o serviço de saúde. Capacitar os</p><p>profissionais de saúde de todas as categorias é um elemento</p><p>fundamental no combate ao estigma e à discriminação. Mas isso</p><p>também envolve famílias, a população em geral, autoridades e assim</p><p>vai. A discriminação é parte da sociedade brasileira desde a sua</p><p>colonização, onde sempre alguns se achavam melhores do que os</p><p>outros, mas nem por isso devemos sossegar nessa área e achar que</p><p>tudo isso é natural. É claro que temos avançado incluindo na</p><p>legislação que criminaliza a discriminação sob alguns dos segmentos</p><p>aqui mencionados, mas entre a lei e a aplicação da lei, há ainda um</p><p>largo caminho. Tem sido fundamental, desde sempre, nesta curta</p><p>história da epidemia de HIV/AIDS, o papel da sociedade civil, mas não</p><p>há como resolver um problema estrutural de uma forma muito</p><p>simples. É preciso fazer mais para seguir o combate do estigma e da</p><p>discriminação.</p><p>Para concluir esse capítulo, vamos falar um pouco das novidades</p><p>que estão a caminho. Durante um evento Internacional de ciência</p><p>muito relevante no tema HIV AIDS (o CROI de 2023) foi apresentada</p><p>uma nova técnica de prevenção, chamada PIP. PIP quer dizer, PEP in</p><p>83</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>the pocket, ou PEP dentro do bolso. Assim a pessoa teria a profilaxia</p><p>pós exposição no bolso e poderia utilizá-la se corresse algum risco a</p><p>qualquer momento. Os trabalhos apresentados até o momento</p><p>nessa nova estratégia são bastante alvissareiros.</p><p>Uma outra questão para a qual devemos dedicar mais atenção</p><p>é um fenômeno recente chamado de sexo químico. CHEMSEX em</p><p>inglês, mostra que esse é um fenômeno global, que alguns dos</p><p>países, como por exemplo a Grã-Bretanha e Austrália já</p><p>desenvolveram políticas públicas, com base em redução de danos</p><p>em documentos oficiais do Ministério da Saúde de seus países. O</p><p>sexo químico é o uso de substâncias estimulantes (muitas vezes</p><p>injetável), durante baladas de algumas horas ou dias em que as</p><p>pessoas fazem sexo sob o estímulo mais frequentemente de</p><p>metanfetaminas, hoje segundo o programa de drogas e crimes das</p><p>Nações Unidas (UNODC), a droga mais produzida e mais utilizada no</p><p>planeta Terra. No Brasil apenas 2 ONGs estão trabalhando esse tema</p><p>até o momento. O Instituto Multiverso e o É de Lei.</p><p>Finalmente vale a pena mencionar que a ANVISA em 2023 aprovou</p><p>mais de 40 autotestes (que inclui hoje Sífilis e Hepatites B e C),</p><p>seguindo os passos que o então Departamento de DST/AIDS e</p><p>Hepatites Virais em 2015, abriu a porta para o autoteste de HIV (até</p><p>então só existiam disponíveis em farmácias autotestes de gestação</p><p>e diabetes).</p><p>Enfim, avançamos muito na Luta Contra a AIDS, todavia ainda há</p><p>muito o que fazer e precisamos do envolvimento de todes.</p><p>84</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>A aula “Interseccionalidade e usos de drogas”, ministrada pelas</p><p>três redutoras de danos Matuzza Sankofa (É de Lei), Lorrayne</p><p>Moraes (DiV3rso) e Juliana Vicente de Freitas (DiV3rso). A</p><p>necessidade desta aula esteve em trocar com os redutores de</p><p>danos em formação sobre como aspectos fundantes de gênero,</p><p>raça e classe estruturam a sociedade contemporânea e como as</p><p>opressões sociais reverberam em nossos trabalhos com as</p><p>populações que fazem usos de drogas.</p><p>O campo de estudo e de práticas de cuidado sobre os usos de</p><p>drogas, é amplo, complexo, composto de disputas políticas, teóricas</p><p>e é diverso em suas epistemologias. Enquanto proposta,</p><p>acreditamos na Redução de Danos (RD) como direcionamento de</p><p>cuidado, de práticas e de construção de políticas públicas, visto que</p><p>a RD contempla o cuidado em liberdade, a garantia de direitos</p><p>humanos, a aposta em uma vida que seja implicada com lutas sociais</p><p>em diversas esferas (SURJUS; PASSADOR, 2021). Enquanto o olhar</p><p>hegemônico sobre as drogas é baseado no proibicionismo e na</p><p>regra da abstinência completa para toda a sociedade como único</p><p>modelo possível de “tratamento”, a RD investe na construção de um</p><p>cuidado que seja horizontal e personalizado, de forma que</p><p>compreenda as diversas complexidades e diferenças que existem</p><p>de pessoa para pessoa e que atue nas várias camadas da vida social</p><p>e individual.</p><p>Interseccionalidade</p><p>e usos de drogas</p><p>Juliana Vicente de Freitas</p><p>85</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Portanto, a RD não prega a centralidade na droga como fonte</p><p>de problemas ou soluções. Justamente por conta da complexidade</p><p>que é o fenômeno dos usos de drogas, é importante que o olhar se</p><p>amplie para a tríade “drogas, pessoas e contextos”, como propôs o</p><p>psiquiatra e psicanalista estadunidense Norman Zinberg, em sua</p><p>obra “Drug, set and setting: the basis for controlled intoxicant use”,</p><p>de 1986. O autor, em suas pesquisas acadêmicas, estudou sobre a</p><p>importância que os contextos, ritos e sanções sociais produzem no</p><p>ato de usar</p><p>drogas. Ou seja, o que torna um uso de drogas saudável,</p><p>recreativo, abusivo, ritualístico, religioso, de dependência, etc, passa</p><p>por compreender quais são as relações dialógicas entre as drogas,</p><p>as pessoas e os contextos em questão.</p><p>Um dos estudos que fez foi estudar o sistema britânico de</p><p>manutenção de heroína na Inglaterra em 1968. Naquela época, usar</p><p>heroína não era crime, o que fazia com o que os usuários não</p><p>tivessem que enfrentar nenhum tipo de penalidade judicial e</p><p>inclusive, o país fornecia suprimento da droga. Esse contexto, ou</p><p>setting, de descriminalização da heroína produzia um ambiente de</p><p>segurança, tanto pela ausência de risco de os usuários serem</p><p>estigmatizados e violentados pelo seu uso, quanto por usarem</p><p>heroína de qualidade fornecida pelo governo (MACRAE; ALVES, 2018).</p><p>Edward Macrae (2021) escreve sobre como a experiência do uso de</p><p>drogas não pode ser apenas determinada pelas características</p><p>farmacológicas de como as drogas funcionam em nosso corpo</p><p>biológico, mas sim como resultado da interação de vários elementos,</p><p>de fatores sociais, psíquicos e também fisiológicos. É a partir daí que</p><p>podemos adentrar nos conceitos de drug, set e setting, ou, droga,</p><p>personalidade e aspectos psicológicos, e contextos,</p><p>respectivamente.</p><p>Usando o recorte da descriminalização do uso, no contexto de</p><p>pesquisa de Zinberg como um fator de proteção para os usuários de</p><p>heroína em questão e usando as ideias trabalhadas por Edward</p><p>Macrae, como podemos pensar nos contextos sociais de quem usa</p><p>drogas ilícitas no Brasil? Como o contexto da proibição afeta as</p><p>86</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>dinâmicas de quem fuma maconha ou usa cocaínas cheiradas e</p><p>fumadas, por exemplo?</p><p>De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), saúde se</p><p>caracteriza como “(...) estado de completo bem-estar físico, mental e</p><p>social” (1986, p. 01). Ou seja, a noção de saúde passa a ser</p><p>biopsicossocial, em contraponto aos modelos biomédicos, que</p><p>compreendem saúde apenas como a ausência de doença</p><p>(AMARANTE, 2007). A RD é uma prática biopsicossocial, ou seja, “bio”</p><p>por levar em conta os aspectos biológicos do corpo humano,</p><p>compreendendo a farmacologia das substâncias psicoativas e suas</p><p>relações com o organismo biológico; “psi” por entender as</p><p>trajetórias de vida, histórico familiar, social e psicológico e estados</p><p>de saúde mental dos indivíduos; e social, por compreender os</p><p>processos históricos e relações sociopolíticas que atravessam a</p><p>vida em sociedade. Todas as questões biopsicossociais se</p><p>relacionam entre si, são indissociáveis umas das outras.</p><p>As drogas, isoladamente, são substâncias, que podem ser</p><p>encontradas na natureza ou podem ser sintetizadas em</p><p>laboratórios. Mas a partir do momento em que o ser humano entra</p><p>em contato com elas, a substância se desloca de ser apenas um</p><p>agente químico para estar em relação com o corpo físico, social,</p><p>afetivo, psicológico e também espiritual, a depender dos rituais e</p><p>contextos. Portanto, o ato de usar drogas é um fenômeno social, e</p><p>para praticar Redução de Danos, seja no uso pessoal, ou em</p><p>contexto de trabalho e cuidado, é importante que se proponham</p><p>formações teóricas e práticas sobre como as drogas são</p><p>contextualizadas dentro da sociedade e como ocorrem as</p><p>formações sociais de maneira histórica e política para que se</p><p>compreenda a complexidade na construção das políticas sobre</p><p>drogas e na formulação de propostas emancipatórias para as</p><p>comunidades e indivíduos.</p><p>É importante praticarmos a RD como ferramenta de educação</p><p>libertária. Paulo Freire (2008) escreve sobre a pedagogia da</p><p>autonomia, ou seja, para se construir uma educação libertadora é</p><p>87</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>importante criar processos formativos que situem os educandos</p><p>nos lócus sociais a quais se encontram, para que se construam</p><p>perspectivas críticas sobre a modificação das realidades históricas</p><p>e sociais das coletividades. Portanto, uma Redução de Danos</p><p>implicada com a transformação social precisa estar comprometida</p><p>com a transformação dos contextos em questão. O Grupo DiV3rso</p><p>aposta na construção da horizontalidade e na educação entre pares</p><p>para a construção de redes de autonomia e também na formação</p><p>política dos redutores de danos, por isso, a aula sobre questões de</p><p>gênero, raça, classe e sexualidade foi fundamental para estabelecer</p><p>compreensões das organizações sociais de nossa época.</p><p>Quando pensamos no cuidado a pessoas que fazem usos de</p><p>drogas e que estão em situação de rua e em vulnerabilidade social, é</p><p>importante traçarmos quais os contextos essas pessoas estão</p><p>inseridas e quem são essas pessoas, para além das drogas que</p><p>podemos encontrar nas cenas de uso. É importante sim traçar as</p><p>estratégias para diferentes tipos de drogas, visto que os efeitos e</p><p>riscos variam entre as substâncias. Mas é importante concatenar o</p><p>maior número de variáveis possíveis que podemos encontrar em</p><p>campo. Na aula sobre Interseccionalidade, falamos sobre como as</p><p>questões de gênero, raça e classe são vetores indispensáveis para a</p><p>construção de ações e políticas de cuidado.</p><p>Sabemos que os contextos de se fazer RD em contextos de festa</p><p>de música eletrônica é bastante diferente de fazer ações para e com</p><p>pessoas em situação de rua, por exemplo. Os públicos são</p><p>diferentes, as drogas em cada um desses contextos também pode</p><p>variar, os riscos e danos também ocorrem de formas diferentes.</p><p>Quando pensamos em contextualizar cada uma dessas cenas sob as</p><p>estruturas de gênero, raça e classe, podemos levantar diferenças</p><p>bastante significativas das situações em questão. As abordagens</p><p>com mulheres cis serão diferentes das ferramentas usadas com</p><p>mulheres trans, por exemplo, pois por mais que ambos grupos</p><p>estejam dentro do espectro do que é mulheridade, a sociedade lida</p><p>com esses corpos de maneiras diferentes. Cada corpo dentro de</p><p>88</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>cada contexto possui particularidades que precisam ser</p><p>esmiuçadas e observadas com atenção.</p><p>O curso proposto pelo DiV3rso, tem o nome de “Redução de Danos</p><p>como política decolonial”. Na aula, podemos conversar sobre o que</p><p>se caracteriza como decolonialidade, termo bastante utilizado nos</p><p>estudos de gênero e raça. “A colonialidade é constitutiva da</p><p>modernidade” (MIGNOLO, 2005, p. 75), ou seja, por mais que muitos</p><p>dos países que foram colonizados pela Europa não são mais</p><p>dependentes economicamente de suas colônias, a colonialidade do</p><p>poder continuar operando. Na aula fizemos a diferenciação entre os</p><p>processos de colonialismo e colonialidade:</p><p>Colonialismo pode ser compreendido como a</p><p>formação histórica dos territórios coloniais; o</p><p>colonialismo moderno pode ser entendido como</p><p>os modos específicos pelos quais os impérios</p><p>ocidentais colonizaram a maior parte do mundo</p><p>desde a ‘descoberta’; e colonialidade pode ser</p><p>compreendida como uma lógica global de</p><p>desumanização que é capaz de existir até mesmo</p><p>na ausência de colônias formais. A ‘descoberta’</p><p>do Novo Mundo e as formas de escravização que</p><p>imediatamente resultaram daquele</p><p>acontecimento são alguns dos eventos-chave</p><p>que serviram como fundação da colonialidade</p><p>(MALDONADO-TORRES, p. 35 e 36, 2023).</p><p>Portanto, pensar uma Redução de Danos decolonial passa por</p><p>criar estratégias próprias de cada território colonizado pela lógica</p><p>da “guerra às drogas”, como formas de insurreição ao</p><p>proibicionismo importado dos EUA. Para tanto, é importante que as</p><p>pessoas afetadas por essa máquina estejam no centro do debate e</p><p>da formulação de políticas que dizem respeito sobre suas vidas. Para</p><p>tanto, temos a Interseccionalidade como ferramenta analítica da</p><p>realidade e como meio de colocar mulheres negras, que são</p><p>intensamente afetadas pela “guerra às drogas” no centro da</p><p>questão.</p><p>89</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>A interseccionalidade é um termo oriundo do movimento de</p><p>mulheres negras, que consiste em compreender como gênero,</p><p>raça, classe, sexualidade, território, etnia, idade, etc se entrelaçam</p><p>para produzir opressões sociais (COLLINS,BILGE; 2021). A</p><p>publicações em formato livre têm sido uma escolha desse</p><p>coletivo para difundir as experiências em curso e valorizar a</p><p>produção de conhecimento que vem sendo gerada no encontro de</p><p>estudantes, docentes e comunidade.</p><p>O DiV3rso é um grupo universitário de base extensionista que</p><p>tem se dedicado ao desenvolvimento de conhecimento socialmente</p><p>referenciado, por meio do estudo de metodologias emancipatórias</p><p>de cuidado em saúde mental, usos de drogas e vulnerabilidades</p><p>associadas, com expressiva participação das pessoas que vivenciam</p><p>tais questões. Nasce da consciência de responsabilidade social da</p><p>Universidade Pública e da ética de construção coletiva de soluções</p><p>para a vida no contemporâneo, ao lado dos mais espoliados, aqueles</p><p>que têm também o seu sofrimento estigmatizado e criminalizado.</p><p>Composto por docentes, estudantes e membros da comunidade da</p><p>Região Metropolitana da Baixada Santista, o grupo vem</p><p>desenvolvendo projetos visando a qualificação de lideranças</p><p>comunitárias, trabalhadores e usuários de serviços públicos, em</p><p>conjunto com a formação de alunos de graduação e pós-graduação,</p><p>na área de saúde mental, política sobre drogas e direitos humanos.</p><p>DiV3rso como lugar de</p><p>Redução de Danos</p><p>Luciana Togni de Lima e Silva Surjus</p><p>07</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>O foco do grupo consiste, primariamente, no fomento à</p><p>transformação da vida sob a perspectiva dos direitos humanos, ao</p><p>mesmo tempo em que se propicia a experiência acadêmica dos</p><p>estudantes envolvidos, abrindo a Universidade ao acesso de grupos</p><p>em situação de vulnerabilidade e, em contrapartida tendo o</p><p>território mais aberto à recepção da universidade para trocas.</p><p>Temos realizado há 7 anos formações teórico-práticas em Redução</p><p>de Danos e em Gestão Autônoma da Medicação na Região da Baixada</p><p>Santista, com composição plural da equipe e dos cursistas, de forma</p><p>dinâmica, na Universidade e em diferentes territórios, envolvendo</p><p>população em situação de rua, profissionais do sexo, pessoas trans,</p><p>pessoas com deficiência, comunidades indígenas. Tendo os pares</p><p>dessas populações como interlocutores principais e protagonistas</p><p>do processo, engajando alunas e alunos de graduação, pós-</p><p>graduação e comunidade em estratégias de preservação da vida,</p><p>educação entre pares e construção de projetos comuns.</p><p>A redução de danos mostra-se uma estratégia</p><p>decolonial ao incorporar críticas e alternativas à</p><p>colonialidade dos saberes e práticas subjacentes</p><p>às políticas proibicionistas e de caráter</p><p>necropolítico, fundadas no racismo e no</p><p>machismo estruturais, na heteronormatividade e</p><p>na dominação de classe que sustentam as</p><p>desigualdades estruturais desde que estas</p><p>terras e gentes passaram a ser colonizadas pela</p><p>branquitude eurocêntrica. (SURJUS, PASSADOR,</p><p>2021, p. 41)</p><p>A crescente participação de pessoas com experiências de uso</p><p>radical de drogas, vulnerabilidades e inúmeras violências e violações</p><p>associadas, tem transformado a universidade e a projeção de</p><p>futuridades nas comunidades envolvidas, incluindo pessoas negras,</p><p>pessoas trans, indígenas, sustentando movimentos de comunicação</p><p>entre pares, e de construção de territórios e linguagem em comum.</p><p>08</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>A desproporcionalidade da aplicação da lei punitiva e proibitiva de</p><p>drogas no Brasil tem sido o mote para as trocas, com vistas a</p><p>desenvolver novas soluções para o cuidado de si e de outros,</p><p>culminando com o maior acesso às políticas públicas, o desejo e</p><p>retomada dos estudos, o reconhecimento da produção intelectual a</p><p>partir da experiência e a oportunidade de atuação de pessoas</p><p>usuárias de drogas lícitas, ilícitas e/ou prescritas como redutores de</p><p>danos.</p><p>No último semestre de 2023, contando com o apoio de emenda</p><p>parlamentar da Deputada Federal Sâmia Bomfim, foi novamente</p><p>possível desenvolver uma série de ações, a partir da organização de</p><p>5 (cinco) miniequipes de incidência territorial, cuidadosamente</p><p>compartilhadas ao longo da parte 2 desse livro: 1) uma equipe voltada</p><p>às questões da Gestão Autônoma da Medicação, que se dedicou a</p><p>espaço formativo presencial de trabalhadores e usuários no</p><p>Município de Santos-SP, e da criação do Laboratório Kwerá:</p><p>Cultivando a Medicina da Floresta; 2) uma equipe voltada para</p><p>mulheres moradoras nos morros de Santos-SP, afetadas pela</p><p>Guerras às drogas; 3) duas equipes voltadas para a população em</p><p>situação de rua em uso de drogas, nos Municípios de Santos e São</p><p>Vicente-SP; 4) uma equipe indígena, voltada à construção de uma</p><p>casa de cura na Aldeia Tabaçu no Município de Peruíbe-SP–</p><p>Nhimonguetá Renda – protagonizada por mulheres.</p><p>Concomitantemente, foi desenvolvida uma formação presencial em</p><p>Redução de Danos, com 60 vagas, da qual alguns dos temas estão</p><p>apresentados na parte 1 desse livro; um espaço de convivência e</p><p>redução de danos semanal em Santos-SP; reuniões de equipe e</p><p>mutirões mensais na Aldeia em Peruíbe-SP, atividades estas que</p><p>articulavam o agenciamento de trocas entre as equipes.</p><p>Sobre a formação em Gestão Autônoma da Medicação, apesar de</p><p>pactuação prévia construída ao longo de um ano com gestores da</p><p>saúde mental e atenção básica de Santos, as equipes das unidades</p><p>não conseguiram viabilizar a participação de ao menos um usuário</p><p>por serviço, o que constituía critério de permanência no espaço for-</p><p>09</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>mativo. Entendendo que os esforços formativos precisam ir para</p><p>além de oportunizar atualizações teóricas que muitas vezes são</p><p>concluídas sem que haja condições de transformações práticas nos</p><p>contextos de inserção, temos sustentando que a presença dos</p><p>usuários, lado a lado de trabalhadores, é condição para que se</p><p>estabeleçam oportunidades de construção de soluções em</p><p>parceria, viabilizando o tão almejado protagonismo das pessoas em</p><p>seus projetos de cuidado.</p><p>Coerente com nosso diagnóstico prévio, considerou-se que para</p><p>cada serviço inserido, ao menos um usuários deveria ser incluído e</p><p>que sua participação e permanência fosse agenciada pelas equipes.</p><p>Porém, com exceção de 1 Centro de Atenção Psicossocial</p><p>infantojuvenil e 2 Unidades Básicas de Saúde, nenhuma outra equipe</p><p>conseguiu ou sustentou tais condições, esvaziando o processo</p><p>formativo, que seguiu proporcionando as trocas propostas pela</p><p>presença de membros da comunidade na equipe do próprio grupo</p><p>DiV3rso.</p><p>Após esse processo, que guardou suas</p><p>frustrações, identificamos a</p><p>necessidade de ofertar na própria</p><p>universidade um grupo GAM de</p><p>homens e um grupo GAM de mulheres,</p><p>para que as questões mobilizadas no</p><p>decorrer do projeto pudessem ser</p><p>cuidadas ao menos, entre nós.</p><p>RDRD</p><p>10</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Como o projeto nesse semestre se destinava a um olhar para a</p><p>questão das mulheres, o tema e a vivência de solidão e violência,</p><p>estiveram muito presentes, para os quais foi necessário construir</p><p>novas estratégias. As histórias de violência sofrida pelas mulheres</p><p>da equipe, cursistas e participantes das ações territoriais,</p><p>constrangiam principalmente os homens, alguns deles,</p><p>vitimizadores. Aprofundou-se para nós a realidade tão descrita por</p><p>nossas parceiras ao longo desses anos, de que sua presença era</p><p>possível sob “autorização” e/ou presença de seus companheiros,</p><p>sobre os quais já pesavam algumas decisões de processos judiciais,</p><p>incapazes, entretanto de transformar suas realidades.</p><p>Importa ressaltar uma fala que ainda ecoa em nós: “eu sou vou</p><p>abandonar o meu agressor quando tiver certeza absoluta de nunca</p><p>mais ele poderá me encontrar”. De fato, as soluções até aquele</p><p>momento, não possibilitaram para aquela mulher a proteção</p><p>suficiente para que ela pudesse se retirar de relações violentas,</p><p>vividas por ela desde a infância quando testemunha a mãe, matando</p><p>seu pai agressor, solução desesperada de quem está só e precisa se</p><p>defender para sobreviver e proteger seus filhos.</p><p>Entendemos nesse e em tantos outros</p><p>encontros, que seria necessário ampliar</p><p>oportunidades de inserção social para</p><p>essas mulheres, acompanhadas ou não de</p><p>seus companheiros, longe do moralismo,</p><p>julgamento</p><p>interseccionalidade se caracteriza como uma ferramenta de análise</p><p>práxis e crítica sobre as relações sociais, ou seja, as análises</p><p>interseccionais pretendem relacionar teoria e prática para propor</p><p>intervenções que transformem relações de poder. Ou seja, para</p><p>além da formulação de novas epistemologias feministas, a</p><p>interseccionalidade pode servir como uma forte aliança entre</p><p>academia, sociedade, política e movimentos sociais para incidir</p><p>sobre as realidades sociais.</p><p>O termo foi cunhado academicamente pela autora Kimberle</p><p>Crenshaw, nos EUA, na década de 1990. Porém, muitas mulheres</p><p>negras que já estavam nos movimentos sociais já denunciavam o</p><p>quanto suas demandas não eram compreendidas pelo feminismo</p><p>branco, ou por mulheres heterossexuais, ou pelos homens</p><p>membros do movimento negro (COLLINS,BILGE; 2021). Uma dessas</p><p>mulheres é Lélia González, uma das principais referências do</p><p>movimento negro brasileiro, que foi uma intelectual e feminista que</p><p>articulou como o racismo, machismo e desigualdades sociais se</p><p>cruzam para criar opressões específicas para os corpos de</p><p>mulheres negras (GONZÁLEZ, 2020). Racismo, sexismo e classismo</p><p>são estruturas sociais advindas do colonialismo para produzir</p><p>estratificações sociais que concentram o poder nas mãos de poucos</p><p>para manter as engrenagens do capital funcionando em detrimento</p><p>de inúmeras violações de direitos humanos.</p><p>Ou seja, para que se construam práticas realmente</p><p>emancipatórias com as pessoas, é fundamental que se lute pela</p><p>garantia de direitos básicos, como saúde, segurança, moradia,</p><p>alimentação, saneamento básico e justiça. Mulheres negras</p><p>denunciam há bastante tempo sobre como o racismo, sexismo e</p><p>classismo são as estruturas fundantes para que o povo negro não</p><p>90</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>acessem diretos básicos, como os descritos acima. Nas ações do</p><p>DiV3rso, podemos perceber que a maioria das pessoas que estão em</p><p>situação de rua e que frequentam nossas ações, são pessoas</p><p>negras. Por isso, é importante construir uma RD que seja consciente</p><p>sobre as diferentes realidades sociais em que as diversas pessoas</p><p>com quem trabalhamos estão inseridas, para realizarmos</p><p>propostas que permitam ampliações necessárias de vida, para além</p><p>dos usos de drogas.</p><p>Referências Bibliográficas</p><p>ALVES, Y. D. D.; MACRAE, E. Uma abordagem teórica sobre o contexto</p><p>social do uso de drogas. Tomo, n. 34. Sergipe, 2019. p. 81-114.</p><p>AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro:</p><p>Editora Fiocruz, 2007. 120p.</p><p>COLLINS, P. H.; BILGE, S. Interseccionalidade. 1. ed. São Paulo: Boitempo,</p><p>2021, 287 p.</p><p>FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática</p><p>educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.</p><p>GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: RIOS, F.;</p><p>LIMA, M. (orgs) Por um feminismo afro latino americano. 1. ed. Rio de</p><p>Janeiro: Zahar, 2020. 375 p.</p><p>MACRAE, E. A questão das drogas: pesquisa, história, políticas</p><p>públicas, redução de danos e enteógenos. Salvador: EduUFBA/CETAD,</p><p>2021. 283p.</p><p>MALDONADO-TORRES, N. Analítica da colonialidade e da</p><p>decolonialidade: algumas dimensões básicas. In: BERNARDINO-COSTA,</p><p>J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (orgs). Decolonialidade e</p><p>pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2023.</p><p>Organização Pan-Americana de Saúde. Carta de Ottawa. 1986. In:</p><p>Brasil. Ministério da Saúde. Promoção da saúde: Cartas de Ottawa,</p><p>Adelaide, Sundsvall e Santa Fé de Bogotá. Brasília.</p><p>91</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>SURJUS, L. T. L. S.; PASSADOR, L. H. (orgs). Por uma redução de danos</p><p>decolonial. Santos: Universidade Federal de São Paulo, 2021.</p><p>ZINBERG, N. Drug, set and setting: the basis for controlled intoxicant</p><p>use. New Haven: Yale University Press, 1986. 277 p.</p><p>92</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>93</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Meu nome é Lorrayne Moraes, sou uma mulher trans negra,</p><p>tenho 36 anos e atualmente sou redutora de danos no DiV3rso.</p><p>Falando um pouco sobre a interseccionalidade, nunca foi fácil</p><p>desde o começo. Porque quando a gente começa a perceber que a</p><p>nossa sexualidade e gênero são diferentes, no meu caso comecei a</p><p>pensar em modelar como uma mulher e parecer como uma mulher,</p><p>pois minha vontade era ser uma mulher, eu me enxergava e me</p><p>sentia dessa maneira. Por conta disso, tudo se tornou mais difícil,</p><p>como a relação com a minha família, a acessibilidade às redes</p><p>públicas que na época e, até hoje, faltam com o respeito e esquecem</p><p>de nos tratar com dignidade.</p><p>Então, no começo foi bem difícil e depois ficou pior ainda. Por</p><p>quê? Porque quando a gente consegue passar por essa transição,</p><p>começamos a se ver igual uma mulher, aí são outros problemas</p><p>para enfrentar como a discriminação, a transfobia, as violências</p><p>físicas e verbais, tudo isso vai nos atingindo muito, machuca tanto a</p><p>autoestima da gente, afeta a imagem, o psicológico, tudo que nos</p><p>compõe.</p><p>Já passei por várias violências seja violência psicológica, por</p><p>agressões morais, físicas e para mim, isso, atualmente levo como</p><p>aprendizado.</p><p>Hoje em dia é um aprendizado de nunca desistir, porque foi não</p><p>desistindo de tudo isso que eu consegui chegar até onde eu cheguei.</p><p>O ato de sobreviver é o bastante para mim, já é o máximo, porque</p><p>são poucas pessoas trans que conseguem sobreviver a esse mundo</p><p>que vivemos hoje, que nos mata. A interseccionalidade está nisso, em</p><p>como somos percebidos, em como somos afetados, como esse</p><p>mundo nos recebe e como sobrevivemos a ele.</p><p>Relatos de uma</p><p>Sobrevivente</p><p>Lorrayne Moraes</p><p>RDRD</p><p>Viver também é</p><p>resistir !</p><p>Me chamo Bianca Romão, sou uma mulher trans profissional do</p><p>sexo, tenho 43 anos resido no Morro São Bento , sou redutora de</p><p>danos e estou no meu terceiro edital, usuária de drogas , faço o uso</p><p>contínuo de maconha 3 vezes por dia ou até mais e esporadicamente</p><p>de cocaína.</p><p>Fiz parte de um projeto chamado Transcidadania em São Paulo e</p><p>através dele trabalhei no CRAS , atuei como agente de prevenção</p><p>onde fui por 2 anos. Cheguei há um ano e meio em Santos, faz um ano</p><p>que eu conheci o DiV3rso um grupo de extensão o qual gosto</p><p>bastante por possuir uma diversidade muito grande e serem</p><p>pessoas acolhedoras é um grupo que amo e que mudou a minha vida</p><p>tanto que hoje em dia eu estou estudando e também me casei com</p><p>uma pessoa ex-usuária de crack e que saiu da situação graças a</p><p>Deus nossa vida mudou muito e graças ao DiV3rso que nos ajuda a</p><p>sermos fortes.</p><p>Abordando um pouco sobre mulheres e o patriarcado. Sobre ser</p><p>uma mulher trans é fácil e difícil ao mesmo tempo, pois ainda existe</p><p>muito preconceito em todo o país, em todo lugar até nas coisas</p><p>mínimas do dia a dia. Nós exigimos respeito às mulheres trans e</p><p>travestis e lutamos por essa consagração , a gente vai seguindo em</p><p>frente como também uma forma de resistência e luta.</p><p>Bianca da Silva Romão</p><p>94</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>São muitas as histórias e as palavras de mulheres que clamam</p><p>por escuta e reconhecimento. Experiências de dominação e de</p><p>exploração, justificadas por uma suposta “essência feminina” ou pela</p><p>não conformação a esse ideal de feminilidade. Para citar alguns</p><p>poucos exemplos, podemos observar o trabalho extenuante da</p><p>reprodução social delegado predominantemente às mulheres</p><p>periféricas e negras (Vergès, 2020); a dificuldade dessas mulheres</p><p>em sobreviver e maternar os seus filhos e as suas filhas devido às</p><p>constantes ameaças da violência do Estado (Jorge, 2023); a cis-</p><p>heteronormatividade que marginaliza as experiências de mulheres</p><p>transgêneros, travestis, lésbicas e bissexuais (Butler, 2020); as</p><p>vulnerabilizações às quais mulheres em situação de rua são</p><p>expostas (Richwin; Zanello, 2023).</p><p>Ainda que tais experiências recorrentemente sejam</p><p>representadas como naturais, é na sociedade que elas encontram</p><p>as suas raízes. As articulações entre classe-raça-gênero podem vir</p><p>a produzir sofrimentos que, embora manifestados na singularidade,</p><p>Bons encontros,</p><p>emancipação e cuidado</p><p>entre mulheres</p><p>Raquel</p><p>Baptista Spaziani</p><p>E nos lugares em que as palavras das mulheres</p><p>clamam para ser ouvidas, cada uma de nós</p><p>devemos reconhecer a nossa responsabilidade</p><p>de buscar essas palavras, de lê-las, de</p><p>compartilhá-las e de analisar a pertinência delas</p><p>na nossa vida. Que não nos escondamos por</p><p>detrás das farsas de separação que nos foram</p><p>impostas e que frequentemente aceitamos como</p><p>se fossem invenções nossa. (Audre Lorde, 2021, p.</p><p>55)</p><p>95</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>têm as suas causalidades nos processos de exclusão social (Sawaia,</p><p>2003, 2014). Assim, em comum às múltiplas vivências das</p><p>mulheridades há, não raramente, as dores ocasionadas pelas</p><p>violências de gênero.</p><p>Segundo pesquisas do Comitê Latino-Americano e do Caribe para</p><p>a Defesa dos Direitos da Mulher (Comitê Latino-Americano e do</p><p>Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), 2020)e do</p><p>Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum Brasileiro de</p><p>Segurança Pública, 2022), as violências de gênero se iniciam já na</p><p>infância por meio da violência sexual. Dentre 66 mil denúncias de</p><p>estupro feitas no ano de 2021, a maior parte foi perpetrada contra</p><p>meninas entre 10 e 13 anos, seguidas de meninas com idade entre 5 e</p><p>9 anos. Esses dados apontam para um continuum de violência, na</p><p>medida em que não se findam na infância. Já adultas, quando o</p><p>Estado falha em protegê-las das violências perpetradas por seus</p><p>parceiros íntimos, pode ocorrer o feminicídio. Esse processo foi</p><p>denominado pelo Cladem (2020) como “violência sexual feminicida”,</p><p>de modo a ressaltar a trajetória de violência que as mulheres podem</p><p>vir a experenciar.</p><p>Nesse sentido, estamos diante de um “terrorismo sexista”, na</p><p>medida em que tanto a vivência da violência, como a sua constante</p><p>ameaça, fazem parte do cotidiano de mulheres desde pequenas</p><p>(Butler, 2020). Se é na sociedade que as violências de gênero são</p><p>forjadas, será na coletividade que poderemos construir espaços de</p><p>resistência e enfrentamentos a esse terrorismo. Espaços que</p><p>promovam bons encontros, permitindo às mulheres não apenas a</p><p>sobrevivência, mas também a criação, o riso, o cuidado entre si, o</p><p>esperançar.</p><p>Bons encontros entre mulheres</p><p>A pesquisadora Bader Sawaia (2014), a partir das reflexões</p><p>empreendidas pelo filósofo Baruch Espinosa, compreende que os</p><p>bons encontros são aqueles capazes de potencializar os sujeitos</p><p>para a expansão, a liberdade e a emancipação – de si e do outro.</p><p>96</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>De acordo com a autora (2003), a fim de superar o sofrimento ético-</p><p>político, ou seja, a dor de ser tratada/o e representada/o como</p><p>subalterna/o e sem valor, faz-se necessário a construção de</p><p>espaços que considerem as dimensões dos afetos; a potência dos</p><p>sujeitos em, coletivamente, transformar a sociedade; e a alegria de</p><p>se estar junto.</p><p>No que diz respeito à possibilidade de construção de bons</p><p>encontros entre mulheres, Ivone Gebara (2022) relatou o seu</p><p>contato com um grupo de colombianas que se uniam para contar as</p><p>histórias de suas violências. Nesses encontros, choravam juntas as</p><p>marcas das injustiças sociais, mas também debochavam de seus</p><p>estupradores e exprimiam o seu ódio a eles. Gebara notou que:</p><p>A memória das dores narradas tornava-se</p><p>possibilidade de cura, embora continuassem</p><p>inscritas na memória do corpo e da alma, como</p><p>cicatrizes que muitas gostariam de não ter.</p><p>Porém, a narrativa e o riso introduziam outras</p><p>emoções e interpretações às tristes memórias,</p><p>resgatavam vidas permitindo a sua continuidade</p><p>(p. 122-123).</p><p>Tais espaços de cuidado e de escuta entre mulheres centralizam</p><p>os afetos como dimensões ético-políticas importantes para a</p><p>potencialização dos sujeitos, não reproduzindo a lógica da</p><p>brutalidade e da violência. Do mesmo modo, permitem que as dores</p><p>narradas não sejam tratadas como algo referente ao campo</p><p>privado, culpabilizando, criminalizando e medicalizando as mulheres.</p><p>Pelo contrário, mostram-se estratégias de intervenções que</p><p>incidem nas dimensões subjetivas, institucionais e sociais (Ramos et</p><p>al., 2021).</p><p>Outro aspecto importante dos encontros entre mulheres é a</p><p>partilha de experiências narradas em primeira pessoa. Segundo</p><p>Lélia Gonzalez (2020), nós mulheres fomos “faladas” pelos homens e,</p><p>consequentemente, definidas por um sistema ideológico que nos</p><p>infantiliza. Ao nos inferiorizar, “suprime nossa humanidade</p><p>justamente porque nos nega o direito de sermos sujeitos não só do</p><p>nosso próprio discurso, como da nossa própria história” (p. 42).</p><p>97</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>O ato de assumir a autoria da própria trajetória, por meio da</p><p>escrita e de palavras escolhidas por si para nomear as experiências</p><p>vividas, foi denominado pela pesquisadora e escritora Conceição</p><p>Evaristo (2020) como escrevivência. A escrevivência seria, então, um</p><p>processo de autodeterminação e denúncia social: ao contar a</p><p>própria história de subalternização se reescreve a história</p><p>brasileira, que vela as expressões da colonialidade na vida de sua</p><p>população. Evaristo diz que “a nossa escrevivência não pode ser lida</p><p>como história de ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los</p><p>em seus sonos injustos” (p. 30).</p><p>Promover lugares de escuta nos quais as pessoas falem em</p><p>primeira pessoa, e não mais pelo Outro, é uma tentativa de</p><p>reposicionar socialmente os sujeitos. É a vez da subalternidade falar:</p><p>as mulheres que vivem nas ruas e nas periferias produzem</p><p>conhecimento. Nesse sentido, quem historicamente foi tratada</p><p>como objeto de pesquisa passa a ser protagonista do saber (Curiel,</p><p>2020). Levando essas questões em consideração, cabe-nos o desafio</p><p>de construir espaços emancipatórios e de cuidado entre mulheres</p><p>em uma sociedade individualizante e excludente. Ademais, é preciso</p><p>considerar que somos socializadas para desconfiarmos e</p><p>competirmos umas com as outras, não reconhecendo os nossos</p><p>interesses em comum a fim de nos movimentarmos para conquistá-</p><p>los – tática incentivada para invisibilizar as opressões que nos</p><p>atravessam (Lorde, 2021).</p><p>As relações desiguais de poder posicionam os sujeitos mais ou</p><p>menos à margem, a depender da articulação entre classe-raça-</p><p>gênero. Reconhecer as diferenças, sem hierarquizar as opressões</p><p>ou transformá-las em desigualdades, pode ser uma maneira de</p><p>promover encontros nos quais elas sejam compreendidas como</p><p>forças mais enriquecedoras do que ameaçadoras, como aponta</p><p>Audre Lorde (2021). Construir uma comunidade, um espaço</p><p>horizontal no qual haja a livre circulação da palavra e se escutem as</p><p>mais diferentes vozes, é um modo de afirmar a importância da</p><p>diferença (Hooks, 2017; Lorde, 2021).</p><p>98</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>A comunidade pode fortalecer os sentimentos de pertencimento,</p><p>valorização e conexão entre as mulheres. Ao nos juntarmos em meio</p><p>às nossas diferenças, podemos nos concentrar nas lutas contra</p><p>uma estrutura social que nos destrói – física e subjetivamente –,</p><p>assim como elaborarmos as dores causadas por essas tentativas de</p><p>aniquilamento, dando novos significados a elas (Hooks, 2017; Lorde,</p><p>2021). Sustentar as diferenças em comunidade também nos permite</p><p>lidar com os conflitos de uma maneira mais criativa, não mais os</p><p>evitando, mas sim compreendendo que apontamentos e críticas</p><p>podem ser importantes formas de aprendermos umas com as</p><p>outras.</p><p>Para Bell Hooks (2020), isso pode ser uma manifestação do amor</p><p>como ação. “Começar por sempre pensar no amor como uma ação,</p><p>em vez de um sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer</p><p>um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma a</p><p>responsabilidade e comprometimento” (p. 55). O amor como ação</p><p>transmite a decisão e o desejo de nutrirmos o crescimento nosso e</p><p>das pessoas à nossa volta. Essa ética de vida anuncia a potência de</p><p>rompermos ciclos de dores e violências, dando-nos subsídios para a</p><p>construção de bons encontros visando a emancipação e o cuidado</p><p>entre mulheres.</p><p>Como mulheres, fomos ensinadas a ignorar</p><p>nossas diferenças, ou vê-las como causas de</p><p>desunião e desconfiança, em vez de encará-las</p><p>como potenciais</p><p>de mudança. Sem comunidade</p><p>não há libertação, apenas o mais vulnerável e</p><p>temporário armistício entre uma mulher e sua</p><p>opressão. No entanto, comunidade não deve</p><p>implicar um descarte de nossas diferenças, nem</p><p>o faz de conta patético de que essas diferenças</p><p>não existem (Lorde, 2021, p. 137)</p><p>99</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Enfrentar as violências de gênero exige um constante, e talvez</p><p>infindável, processo de se tornar uma “escutadeira feminista” (DINIZ,</p><p>2022). Escutar o que as mulheres nos contam e os seus silêncios; as</p><p>suas dores, mas também a vida fértil e criativa que há em cada uma</p><p>de nós. Talvez tenha sido essa busca pelas potências o que me</p><p>aproximou do DiV3rso. Cheguei ao grupo a convite da professora</p><p>Luciana Surjus para compor o edital “Ações de Redução de Danos</p><p>voltadas a mulheres cis e transgênero em situação de</p><p>vulnerabilidade associadas ao uso de drogas”, devido ao meu</p><p>trabalho relacionado ao combate das violências contra meninas e</p><p>mulheres.</p><p>Diante do convite, refleti sobre qual poderia ser a minha</p><p>contribuição para o projeto, já que a Redução de Danos parecia ser</p><p>uma temática distante das minhas linhas de pesquisa. No entanto,</p><p>circulando pela universidade reparava na alegria das pessoas que</p><p>participavam do DiV3rso e aquilo me parecia bonito demais. Aceitei,</p><p>pelas bonitezas que poderia encontrar e acreditando que aquela</p><p>alegria expressava mais do que um sentimento individual, parecia</p><p>ser um compromisso do coletivo com a transformação da</p><p>sociedade.</p><p>Escutamos as verdades das mulheres fora dos</p><p>dogmas do patriarcado; escutamos a</p><p>criatividade, a paciência, a coragem e a</p><p>sobrevivência de mulheres submetidas a um</p><p>regime de poder cruel que as discrimina, oprime</p><p>e mata. Precisamos de outras mulheres que nos</p><p>ensinem a escutar, por isso quanto mais diverso</p><p>for o feminismo, mais inclusiva será nossa escuta</p><p>e capacidade de transformação. (Débora Diniz,</p><p>2022, p. 23)</p><p>Costuras de calcinhas, intimidades e</p><p>subjetividades</p><p>100</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Lembro-me de minhas primeiras reuniões com o grupo: havia ali</p><p>professoras do ensino superior, pessoas em situação de rua,</p><p>profissionais da saúde e do serviço social, estudantes de diferentes</p><p>cursos da graduação, pessoas que viviam em territórios periféricos,</p><p>dentre outras. Diversas idades, identificações raciais, identidades de</p><p>gênero, orientações sexuais, corpos. Ali as diferentes vozes</p><p>circulavam livremente e todas eram escutadas. A sensação era de</p><p>presenciar um movimento transformador no qual a universidade</p><p>pública ocupava os territórios da Baixada Santista, mas também era</p><p>ocupada pela comunidade, mostrando em ato que as pessoas “de</p><p>fora da universidade” têm muito a ensinar.</p><p>Supervisionei uma equipe composta por seis mulheres com</p><p>diferentes trajetórias de vida e pertencimentos sociais, com o</p><p>objetivo comum de buscarmos construir espaços de cuidado com e</p><p>para mulheres atravessadas por vulnerabilizações associadas ao</p><p>uso e/ou aos contextos de tráfico de drogas. A ideia era</p><p>promovermos bons encontros, de modo que essas mulheres se</p><p>sentissem potencializadas, amparadas e acolhidas. Ou, ao menos,</p><p>que houvesse momentos de descanso em meio à realidade de</p><p>dureza que a desigualdade social impõe.</p><p>Essa equipe atuou em duas frentes: com mulheres que viviam no</p><p>território do Morro Santa Maria e com as mulheres em situação de</p><p>rua na região central da cidade junto ao espaço de convivência</p><p>organizado pelo DiV3rso, ambos localizados na cidade de Santos. Em</p><p>reuniões da equipe, tomadas pelo desafio de povoar os encontros e</p><p>promover ações que fizessem sentido para as mulheres em</p><p>questão, surgiu a ideia de levarmos moldes de calcinhas para</p><p>costurarmos juntas. A costura supriria uma demanda de muitas</p><p>mulheres em situação de rua que não têm roupas íntimas limpas</p><p>para trocar e, principalmente, seria um pretexto para nos</p><p>aproximarmos.</p><p>Reparei que no espaço de convivência de pessoas em situação de</p><p>rua as mulheres pareciam estar sozinhas ou com os companheiros,</p><p>mas raramente agrupadas entre si. Talvez pelo estranhamento de</p><p>101</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>perceber uma tenda só com as mulheres da equipe ou pela</p><p>curiosidade com os materiais de costura e os moldes de calcinhas</p><p>disponibilizados, aos poucos, as mulheres que frequentavam o</p><p>espaço foram se aproximando. Percebemos que a costura de um</p><p>objeto íntimo favoreceu a narrativa das mais diferentes histórias,</p><p>em alguns momentos, dolorosas e injustas, e em tantos outros</p><p>alegres e engraçados. Elas passaram a pedir cores de tecido e a</p><p>bordarem enfeites em suas calcinhas, era a subjetividade de cada</p><p>uma aparecendo. Diversas vezes, presenteavam-nos com as</p><p>calcinhas costuradas por elas – estarmos juntas costurando</p><p>pareceu fazer mais sentido do que a roupa íntima em si. Algumas</p><p>mulheres apenas se sentavam ao nosso redor, sem o desejo de</p><p>costurar, e, assim, o espaço de convivência organizado pelo DiV3rso</p><p>passou a ter um agrupamento de mulheres.</p><p>Levávamos moldes de calcinhas e esmaltes também nas ações de</p><p>redução de danos no Morro Santa Maria. Em um território tão</p><p>marcado pela violência do Estado, o momento de costura e de</p><p>segurar a mão da outra pareceu ser uma forma de promover um</p><p>certo respiro e cuidado. Lá os bebês e as crianças também se</p><p>presentificavam, então escutávamos as suas vozes: levávamos</p><p>brinquedos, livros infantis e materiais de pinturas. Eram encontros</p><p>com alegria, música e comensalidade, as mulheres eram explícitas</p><p>em nos dizer que fazia sentido estarmos ali, sobre o quão raro eram</p><p>os espaços de convivência entre elas. É preciso apontar que foram</p><p>muitos os desafios enfrentados para conseguirmos construir os</p><p>bons encontros com as mulheres que viviam no Morro. No início, as</p><p>ações eram esvaziadas e mais silenciosas. Foi a escuta das mulheres</p><p>da equipe que viviam no Morro que permitiu a realização de</p><p>encontros mais potentes.</p><p>Finalizado o edital, sinto que levo muito mais do que deixei. As</p><p>memórias aqui narradas não pretendem normatizar como devem</p><p>ser os encontros entre mulheres, mas sim elaborar o vivido e</p><p>buscar refletir que a Redução de Danos e os enfrentamentos às</p><p>102</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>violências de gênero – sejam as perpetradas por familiares e</p><p>parceiros íntimos, como aquelas praticadas pelo Estado –passam</p><p>pela criação de redes de solidariedade e de convivência entre</p><p>mulheres, assim como pela luta para a dignidade e a emancipação de</p><p>todas nós. Vivenciar essas experiências junto ao DiV3rso me</p><p>possibilitou esperançar uma sociedade do bem viver. Confirmo</p><p>aquilo que desconfiava no início dos encontros: testemunhava algo</p><p>muito bonito acontecer.</p><p>Referências</p><p>BUTLER, Judith. De quem são as vidas consideradas choráveis em</p><p>nosso mundo público. El País, 10 jul. 2020.</p><p>COMITÊ LATINO-AMERICANO E DO CARIBE PARA A DEFESA DOS</p><p>DIREITOS DA MULHER (CLADEM). Niñas y adolescentes frente a la</p><p>violencia sexual y femi(ni)cida.</p><p>CURIEL, Ochy. Construindo metodologias feministas a partir do</p><p>feminismo decolonial. Em: HOLLANDA, H. B. (Ed.). Pensamento</p><p>feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do</p><p>Tempo, 2020. p. 120–139.</p><p>DINIZ, Débora. Ouvir. Em: DINIZ, D.; GEBARA, I. (Eds.). Esperança</p><p>Feminista. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022. p. 15–24.</p><p>EVARISTO, Conceição. A escrevivência e seus subtextos. Em: DUARTE,</p><p>C. L.; NUNES, I. R. (Eds.). Escrevivência: a escrita de nós: reflexões</p><p>sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina</p><p>Comunicação e Arte, 2020. p. 26–47.</p><p>FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2022. Anuário Brasileiro</p><p>de Segurança Pública. [s.l: s.n.]. . Acesso em: 6 set. 2022.</p><p>GEBARA, Ivone. Lembrar. Em: DINIZ, D.; GEBARA, I. (Eds.). Esperança</p><p>Feminista. Rio de Janeiro: Bazar dos Tempos, 2022. p. 116-127.</p><p>GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Em:</p><p>HOLLANDA, H. B. (Ed.). Pensamento feminista hoje: perspectivas</p><p>decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. p. 38–51.</p><p>hooks, bell. Ensinando a transgredir. 2. ed. São Paulo: Editora WMF</p><p>Martins</p><p>Fontes, 2017.</p><p>103</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>JORGE, Andreza. Feminismos favelados: uma experiência no</p><p>Complexo da Maré. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2023.</p><p>LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte:</p><p>Autêntica, 2021.</p><p>RAMOS; Gabriela Corrêa et al. Roda de poesia: a construção do</p><p>cuidado entre mulheres. Em: ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI et al. (Eds.).</p><p>Questões sobre gênero: novos paradigmas e horizontes. Bauru, São</p><p>Paulo: Gradus Editora, 2021. p. 185–196.</p><p>RICHWIN, Iara Flor; ZANELLO, Valeska. “Desde casa, desde berço,</p><p>desde sempre”: violência e mulheres em situação de rua. Revista</p><p>Estudos Feministas, v. 31, n. 1, p. 1–15, 2023.</p><p>SAWAIA, Bader. Fome de felicidade e liberdade. Em: CENTRO DE</p><p>ESTUDOS E PESQUISAS EM EDUCAÇÃO, C. E A. C.-C. (Ed.). Muitos</p><p>lugares para aprender. São Paulo: CENPEC / Fundação Itaú Social ,</p><p>2003. p. 53–64.</p><p>SAWAIA, Bader. O sofrimento ético-político como categoria de análise</p><p>da dialética exclusão/inclusão. Em: SAWAIA, B. (Ed.). As artimanhas da</p><p>exclusão. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 99–119.</p><p>VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora,</p><p>2020.</p><p>104</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>A transformação social pelo</p><p>paradigma da Redução de</p><p>Danos: População em situação</p><p>de rua, redução de danos e</p><p>Centros de Convivência</p><p>Prof° Dr. José Arturo Costa Escobar;</p><p>Profª Ms. Nêmara de Araújo Vianna</p><p>Resumo:</p><p>O presente capítulo tem como objetivo apresentar a articulação</p><p>entre o paradigma da Redução de Danos (RD), a criação dos Centros</p><p>de Convivência, assim como, a potência da produção do comum nos</p><p>encontros entre as pessoas que usam drogas e pessoas em</p><p>situação de vulnerabilidade. A RD enquanto paradigma ético-político</p><p>tem subsidiado a producão de tecnologias sociais que assistem as</p><p>pessoas que usam drogas na intersecção do fenômeno da</p><p>desigualdade social brasileira e dos efeitos do genocídio da</p><p>população negra dadas pela guerra às drogas. É perceptível a</p><p>transformação do conceito de RD e de suas práticas para a</p><p>ampliação das possibilidades de vida das pessoas que usam drogas,</p><p>desde sua origem. Os programas brasileiros voltados para atenção</p><p>da população em situação de rua devem encontrar na RD o</p><p>embasamento para o enfrentamento de diversas condições</p><p>impostas pelo proibicionismo, contribuindo para o desenvolvimento</p><p>de estratégias e serviços efetivos. Foi apresentado o construto de</p><p>Centros de Convivência para pessoas que usam drogas, concluindo</p><p>com uma historicidade breve, contextualização e reflexão acerca do</p><p>surgimento da Escola Livre de Redução de Danos no atual momento</p><p>político vivenciado pela saúde mental brasileira e de álcool e outras</p><p>drogas.</p><p>105</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Palavras-chave: redução de danos; pessoas em situação de rua;</p><p>centro de convivência; drogas; políticas públicas.</p><p>1. Introdução</p><p>Há mais de 60 anos o mundo contemporâneo vive um regime</p><p>proibicionista global para as drogas. Durante esse tempo, as</p><p>escolhas políticas para um modelo de negação de acesso a</p><p>determinadas substâncias psicoativas prevaleceram. Este modelo</p><p>de controle das pessoas que optam pelo uso de substâncias tem</p><p>promovido o aprisionamento, a evasão de divisas oriundas dos</p><p>mercados de drogas, a diversificação de atividades das</p><p>organizações criminosas e, de modo mais grave, tem funcionado</p><p>como uma estrutura de manutenção de opressão sobre as pessoas</p><p>periféricas, migrantes e imigrantes, negras e pertencentes a</p><p>substratos socioeconômico mais vulnerados. A proibição das drogas</p><p>se consolidou ao longo do tempo como a ferramenta social mais</p><p>potente para a manutenção de estruturas racistas nas diferentes</p><p>sociedades do globo. No Brasil, é ferramenta primordial para o</p><p>Estado Policial exercer o racismo estrutural que atravessa a</p><p>formação social do país desde a colonização.</p><p>São múltiplos os fatores históricos que contribuem para a</p><p>compreensão do estigma social dirigido às drogas. Seja a hegemonia</p><p>do pensamento e governança cristãos e a negação da diversidade e</p><p>de consideração de outras culturas, seus costumes e suas</p><p>cosmogonias, no passado colonizador e escravagista. Ou mesmo</p><p>durante o processo de construção do Estado brasileiro, cujas</p><p>crenças sociais racistas, discriminatórias e genocidas contra as</p><p>pessoas negras encontram na proibição das drogas a sua</p><p>perpetuação, tornando-se centrais para o mito da democracia</p><p>racial no Brasil.</p><p>O presente texto pretende contribuir para o fortalecimento da</p><p>Redução de Danos (RD) enquanto o paradigma que visa denunciar o</p><p>erro histórico e social, a desinformação e as estratégias das</p><p>camadas de poder na subjugação da maior parte da população bra-</p><p>106</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>sileira. Buscamos apresentar uma conceituação mais ampla da</p><p>Redução de Danos, descolonizando-a enquanto tecnologia social da</p><p>área da saúde, cujos deslocamentos se dão na direção da</p><p>construção de estratégias eficazes de promoção de bem-estar e</p><p>educação social para elucidação da população sobre o tema e da</p><p>necessidade de reformas urgentes acerca dos entendimentos</p><p>legais sobre substâncias psicoativas proscritas, a exemplo da</p><p>maconha, e das políticas públicas sobre álcool e outras drogas.</p><p>1. A Redução de Danos enquanto paradigma filosófico,</p><p>pragmatismo e o fundamento para a construção de políticas</p><p>públicas</p><p>A RD tem sido considerada ao longo do tempo como um conjunto</p><p>de estratégias de intervenções socioculturais pragmáticas e</p><p>compassivas que visam a redução dos riscos e danos imediatos das</p><p>relações de consumo de álcool e outras drogas nas pessoas</p><p>usuárias e sobre a sociedade na qual elas vivem. Considera-se que a</p><p>RD emerge a partir dos movimentos sociais de base da organização</p><p>política das pessoas que usam drogas para a reivindicação de</p><p>direitos sociais à saúde, assim, desenvolveu-se amparada em</p><p>princípios da saúde pública e Direitos Humanos, além de se</p><p>contrapor ao modelo moral, conhecido por “Guerra às Drogas”</p><p>(Marlatt, 1996).</p><p>O entendimento hegemônico proibicionista que norteia a</p><p>legislação mundial e brasileira sobre a questão das drogas ao</p><p>considerá-las necessariamente nocivas e cuja melhor estratégia de</p><p>controle e regulação seria a criminalização da produção,</p><p>distribuição e das condutas de consumo, conforme discutiu Fiore</p><p>(2012), promoveu nas últimas décadas o aprofundamento dos</p><p>problemas de saúde, sociais, econômicos e culturais relacionados ao</p><p>tema.</p><p>107</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>A inconsistência de tais modos de produção de cuidado individual</p><p>e societário para responder aos problemas das pessoas que usam</p><p>drogas possibilitou uma revolução no campo da saúde pública,</p><p>principalmente motivadas pelas epidemias de Hepatites e HIV/AIDS. A</p><p>alta prevalência de tais agravos de saúde na população usuária de</p><p>drogas, com maior incidência entre os usuários de drogas injetáveis</p><p>(UDI) suscitou o desenvolvimento de ações pragmáticas para o</p><p>controle destas doenças, entre outros riscos e danos advindos dos</p><p>consumos de drogas e suas nuances culturais (Mesquita, 2020;</p><p>Passos e Souza, 2011). Um fator diferencial para a reestruturação do</p><p>modelo assistencial nas políticas sobre drogas a partir dos anos</p><p>1980 foi o reconhecimento da RD enquanto políticas ou programas</p><p>com intuito de mitigação das consequências adversas para a saúde,</p><p>sociais e econômicas relativas ao uso de drogas, conquanto, sem a</p><p>exigência da abstinência do uso de drogas (Rameh-de-Albuquerque</p><p>et al., 2017; Roe, 2005; Riley et al., 1999). Durante os anos 1990 o</p><p>paradigma se fortaleceu enquanto uma política pública cujo modelo</p><p>de cuidado alternativo ao modelo jurídico moral e ao modelo</p><p>médico/biomédico, integrando a abstinência como uma possibilidade</p><p>na oferta de estratégias e programas, e não mais como uma</p><p>premissa indiscutível. Ademais, tais ações se mostraram mais</p><p>eficazes pois partiam de abordagens de “baixo para cima”, dessa</p><p>forma, a construção das políticas desenvolveu estratégias de</p><p>organização e identificação das demandas pelos próprios usuários</p><p>de drogas em suas percepções</p><p>de necessidades assistenciais. Com</p><p>isso, o acesso à saúde, entre outras necessidades de cidadanização,</p><p>tornaram-se possíveis aos grupos mais vulnerabilizados e</p><p>invisibilizados (Mesquita, 2020; Alves, 2009; Marlatt, 1996).</p><p>No Brasil, desde os anos 1990, assim como em outros países,</p><p>diversas estratégias amparadas nesta nova ética dirigida para a</p><p>atenção das pessoas que usavam ou usariam álcool e outras drogas</p><p>estendeu-se ao campo pedagógico e político, fazendo com que a RD</p><p>irradiasse para o desenvolvimento de estratégia de prevenção por</p><p>108</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>meio da educação popular. O redirecionamento provocado pela RD</p><p>para uma outra compreensão social do fenômeno de uso de drogas,</p><p>somou-se ao modelo biopsicossocial, convergiu o foco para os</p><p>contextos culturais e políticos e ajudando a elucidar o real impacto</p><p>da política proibicionista, a perseguição das pessoas, o higienismo</p><p>social (Petuco, 2016; Bucher, 1992), e, mais recentemente, a</p><p>compreensão de seu caráter racista e ferramenta de opressão do</p><p>Estado (Rocha e Ferrugem, 2021; Duarte e Freitas, 2019).</p><p>Santos e Miranda (2016) realizaram uma revisão de literatura</p><p>sobre os projetos e Programas de Redução de Danos (PRD) no Brasil</p><p>e afirmaram que enquanto estratégia de saúde pública, a RD tem</p><p>como objetivo a diminuição de riscos e danos “de natureza biológica,</p><p>psicossocial, econômica, provocados ou secundários ao uso/abuso</p><p>de drogas lícitas e ilícitas, sem necessariamente requerer do</p><p>usuário uma redução ou abstinência” (idem, p. 106). Foi no começo</p><p>dos anos 2000 que a RD se tornou “um novo paradigma ético, clínico</p><p>e político” (Passos; Souza, 2011, p. 154), institucionalizado enquanto</p><p>diretriz da Política Nacional de Atenção Integral a Usuários de Álcool</p><p>e Outras Drogas (Brasil, 2004). Tem autores que vão além e afirmar</p><p>que a RD é uma “via para desestabilizar os mundos fechados em</p><p>suas verdades” (Souza; Carvalho, 2014, p. 952), alertando para o</p><p>adoecimento através do fechamento em si mesmo e das</p><p>dificuldades de se modificar, ao mesmo tempo que convida para</p><p>aberturas e relações mais generosas e menos preconceituosas</p><p>com o fenômeno do uso de drogas.</p><p>A RD se tornou então uma ferramenta para a contrução de de</p><p>uma sociedade menos desigual e mais justa, denunciando o</p><p>genocídio promovido pela proibição das drogas. A transformação de</p><p>seu conceito e o desenvolvimento de estratégias e abordagens para</p><p>as pessoas que usam drogas contribuiu fortemente para o</p><p>reconhecimento dos saberes e vivências de pessoas</p><p>sistematicamente excluídas do acesso a direitos. De modo mais</p><p>profundo, frente à desigualdade social brasileira, a RD têm orientado</p><p>109</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>outras políticas de cuidado para além daquelas voltadas à saúde</p><p>pública, reconfigurando pouco a pouco outras políticas como as de</p><p>segurança pública, direitos humanos e desenvolvimento social</p><p>(Petuco, 2020; West, 2016; Evans, 2017).</p><p>Portanto, a RD tem se mostrado eficiente na promoção de</p><p>mudanças em comportamentos de risco, seja contribuindo com</p><p>estratégias sobre o cuidado individual e comunitário, seja com</p><p>reflexões sobre o padrão de uso, a via de administração da droga ou</p><p>ofertando acesso a insumos para prevenção de infecções (Delbon,</p><p>2006).</p><p>A urgência por tecnologias sociais que assistam as pessoas que</p><p>usam drogas propicia uma outra abordagem da RD sobre o</p><p>fenômeno da desigualdade social brasileira e dos efeitos do</p><p>genocídio da população negra dadas pela guerra às drogas. De</p><p>forma alguma o que se propõe seja uma mudança radical da RD</p><p>enquanto paradigma, mas da aplicação das aprendizagens frente às</p><p>políticas públicas existentes, ampliando a efetividade na</p><p>transformação das vidas e ampliação de acesso a direitos sociais.</p><p>Nas seções a seguir iremos descrever algumas das tecnologias e</p><p>estratégias que têm promovido o bem-estar social e pessoal, assim</p><p>como acesso a ferramentas imprescindíveis para todas as pessoas</p><p>que atuam para a transformação da realidade das populações</p><p>afetadas direta ou indiretamente pela guerra às drogas e seus</p><p>desdobramentos. .</p><p>2.Populações em situação de vulnerabilidade nas ruas e a</p><p>importância da Redução de Danos</p><p>Infelizmente não é de hoje que pessoas que não se encaixam</p><p>dentro da lógica capitalista são enquadradas em legislações</p><p>sangrentas. Karl Marx já apontava isso em seu livro “O capital”, onde</p><p>descreveu as leis que criminalizam a “vadiagem” desde 1400, quando</p><p>camponeses foram expulsos do campo, sendo obrigados a trabalhar</p><p>nas cidades emergentes na Inglaterra. Entre as punições possíveis</p><p>110</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>para quem não estava trabalhando era chicoteamento, corte de</p><p>orelha, marcação a ferro, escravização, arraste por carroças até a</p><p>morte, por exemplo. São estratégias centrais do capital a</p><p>dominação, a exploração e o descarte, assim não seria diferente</p><p>para coisas ou pessoas que sequer eram entendidas como humanas</p><p>e portadoras de direitos. Precisamos encarar isso se queremos um</p><p>mundo menos injusto.</p><p>Com o avançar do tempo, vemos a modificação das formas de</p><p>tortura, encarceramento e genocídio das populações negras,</p><p>indígenas e periféricas, porém os crimes de ódio permanecem. Um</p><p>exemplo disso foi a Chacina da Candelária, no Rio de Janeiro, em</p><p>1993, onde 6 crianças e 2 adultos foram mortos a tiros por policiais</p><p>que supostamente tiveram o carro apedrejado por eles no dia</p><p>anterior. Outro exemplo mais recente, foi o Massacre da Sé, no</p><p>centro de São Paulo, que durou entre 19 a 22 de agosto de 2004 teve</p><p>7 pessoas mortes e 6 feridas por espancamento com pedaços de</p><p>madeira e barras de ferro por supostos policiais, porém a</p><p>investigação não foi conclusiva e ninguém foi preso.</p><p>Essa tragédia gerou grande indignação e fortaleceu a organização</p><p>política do Movimento Nacional da População de Rua, que tinha sido</p><p>fundado em 2001, quando aconteceu em São Paulo a primeira</p><p>marcha nacional em defesa dos direitos do povo de rua. Com isso, o</p><p>movimento em articulação com diferentes atores sociais conseguiu</p><p>instituir o dia 19 de agosto como o Dia Nacional da População em</p><p>Situação de Rua, como gesto para jamais esquecer as pessoas</p><p>assassinadas naquele episódio e manter a memória desse dia</p><p>sangrento, para que ele nunca mais volte a acontecer.</p><p>Com muita luta e denúncia das recorrentes violações de seus</p><p>direitos, garantidos em constituição como acesso à saúde, moradia,</p><p>lazer e cultura, foi instituída em 2009 a Política Nacional para</p><p>População em Situação de Rua, através da Lei nº 7.053 de 2009. Ela</p><p>inicia considerando que essa população não tem um único perfil ou</p><p>uma característica uniforme, ao contrário, ela é diversa e tem em</p><p>comum condições como a “pobreza extrema, os vínculos familiares</p><p>111</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>interrompidos ou fragilizados” e a não existência de uma moradia</p><p>digna e fixa, mas sim o uso de espaços públicos e áreas pouco uso ou</p><p>deterioradas, e utilização de equipamentos públicos de abrigamento</p><p>(Artigo 1º, parágrafo único).</p><p>Algumas das suas diretrizes são: promoção dos direitos civis,</p><p>políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais;</p><p>responsabilidade e articulação de diferentes esferas do poder</p><p>público para elaboração, financiamento e integração das políticas</p><p>previstas; garantir a participação da sociedade civil, em especial da</p><p>população em situação de rua; implantação de ações educativas</p><p>para superar preconceitos e capacitação de servidores para</p><p>melhorias e democratização dos espaços e serviços públicos (artigo</p><p>6º). Para isso, foi instituído o Comitê Intersetorial de</p><p>Acompanhamento e Monitoramento (CIAMP-Rua) da política nacional,</p><p>onde tem definido suas funções, sua composição, os órgãos</p><p>responsáveis, seu caráter de serviço público relevante, porém, com</p><p>equipe não remunerada (decreto nº 9.894/2019).</p><p>Todas essas legislações reforçaram a importância das pessoas</p><p>em situação de rua fazerem parte do processo de construção das</p><p>políticas e exemplo disso foram as contribuições essenciais de Maria</p><p>Lucia</p><p>Pereira, conhecida como a “advogada dos malokeiros” e a “mãe</p><p>da rua”, segundo cartilha do Coletivo pernambucano Maria Lucia.</p><p>Mulher negra, baiana, viveu nas ruas de Salvador por 16 anos, se</p><p>tornou liderança do Movimento de População em Situação de Rua da</p><p>Bahia e posteriormente do movimento nacional. Ela participou do</p><p>comitê citado no parágrafo acima, mas também do Comitê de</p><p>Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Ganhou</p><p>prêmio de Direitos Humanos em 2013 e a Medalha Zumbi dos</p><p>Palmares, em 2016. Infelizmente ela faleceu em 2018 e alguns anos</p><p>antes estava se voltando mais intensamente para a defesa da vida</p><p>das mulheres em situação de rua, junto com a antropóloga baiana e</p><p>feminista antiproibicionista Luana Malheiro. Maria Lucia Pereira,</p><p>presente!</p><p>112</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Algumas das pautas de luta do Coletivo Maria Lúcia para a</p><p>população em situação de rua são: segurança alimentar, banheiros e</p><p>lavanderias públicas, vale gás, ampliação dos serviços de</p><p>abrigamento, da atenção básica e especializada, políticas de</p><p>empregabilidade, habitação e acessibilidade e acesso à educação.</p><p>Recentemente, o governo brasileiro anunciou o Plano Ruas Visíveis,</p><p>que terá 1 bilhão de reais para a criação, implementação, ampliação,</p><p>monitoramento e avaliação das políticas públicas para população em</p><p>situação de rua. O plano envolve a atuação de 11 ministérios, junto</p><p>com a sociedade civil e prevê medidas para 7 eixos de atuação,</p><p>sendo eles Assistência Social e Segurança Alimentar; Saúde;</p><p>Violência Institucional; Cidadania, Educação e Cultura; Habitação;</p><p>Trabalho e Renda; e Produção e Gestão de Dados.</p><p>Com isso, há previsão de aprimorar a Política Nacional citada</p><p>anteriormente, através por exemplo, da ampliação o Plano Brasil</p><p>Sem Fome, implementação de Cozinhas Solidárias, desenvolvimento</p><p>da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População em</p><p>Situação de Rua, fortalecimento dos Consultórios na Rua, ampliação</p><p>das Unidades de Acolhimento vinculados aos CAPS AD, criação dos</p><p>Centros de Acesso a Direitos e Inclusão Social (CAIS), formação e</p><p>sensibilização agentes da segurança pública e profissionais que</p><p>atuam junto à Política Nacional sobre Drogas, criação canal de</p><p>denúncia - Disque 100 -, criação de Programas de Pontos de Apoio na</p><p>Rua (PAR) e de Casas de Acolhimento para pessoas LGBTQIAP+,</p><p>ampliação de acesso ao Programa Minha Casa, Minha Vida, fomento</p><p>do cooperativismo, realização do Censo Nacional dessa população,</p><p>entre outras propostas (Brasil, 2023).</p><p>Esse plano nos permite esperançar um período de maior suporte</p><p>estatal para essa população, porém os caminhos e formatos de</p><p>como essas propostas irão se concretizar ainda estão em aberto, o</p><p>que reforça a importância de continuarmos incidindo política nos</p><p>espaços de participação social, como os comitês de</p><p>acompanhamento citados anteriormente. Nesse sentido, a Redução</p><p>de Danos como paradigma ético-clínico-político permanece impres-</p><p>113</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>cindível para o efetivo acolhimento, vinculação e cuidado com a</p><p>população em situação de rua, em vulnerabilidade e/ou usuária de</p><p>drogas, seja nas abordagens sociais de campo, nos serviços públicos</p><p>de saúde, nos espaços de convivência, de educação, geração de</p><p>renda, ou qualquer outro que pretenda respeitar os desejos de cada</p><p>pessoa, oferecer o suporte necessário e fortalecer seu</p><p>protagonismo nos caminhos da vida.</p><p>3.População em situação de rua e seus números</p><p>“dizem que Elza não tem juízo</p><p>os sem juízo</p><p>são imunes perante Deus e a polícia</p><p>e nem sequer sabe da existência de papel higiênico”</p><p>(Miró da Muribeca)</p><p>A recente publicação do Relatório final do Censo da população em</p><p>situação de rua da cidade do Recife (Miranda et al., 2023) aponta para</p><p>a gravidade da situação de exclusão social vivenciada pela capital</p><p>pernambucana, realizando reflexões importantes sobre o processo</p><p>de construção da Política Nacional para as Pessoas em Situação de</p><p>Rua (PNPSR), instituída pelo Decreto nº 7.053/2009. O panorama de</p><p>construção da PNPSR perpassa pela execução de serviços diversos</p><p>que busquem a assistir as pessoas nessa condição social de maior</p><p>exclusão, cujos planejamentos podem e devem ser melhor</p><p>construídos e baseados na produção de dados, ambas até então</p><p>incipientes.</p><p>Precisa-se reconhecer que a organização política entre as</p><p>pessoas, grupos, ativistas, organizações, isto é, a produção de uma</p><p>sociedade que seja capaz de organizar-se para o enfrentamento de</p><p>seus problemas no contexto de luta social que demanda a</p><p>democracia brasileira, é uma das mais potentes ferramentas de</p><p>influência social e mobilização de opinião na direção para a</p><p>visibilidade. Segundo Moscovici (2011), podemos compreender as</p><p>estratégias de conflito como efetivas, pois, apesar da resistência à</p><p>mudança, a maioria sofre influência e é induzida a ser mais tolerante</p><p>114</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>com aquilo antes considerado excluído, proibido ou invisibilizado,</p><p>principalmente no caso de saturação a partir da normatização</p><p>excessiva da vida social. Em nossa leitura, são exemplos de</p><p>normatização e normalização social os casos de violência, a condição</p><p>das pessoas em situação de rua, a desigualdade social secular, assim</p><p>como, o ineficaz modelo de proibição das drogas, que exerce</p><p>influência sobre todas essas condições na contemporaneidade.</p><p>A partir do que já foi até então apresentado e discutido, vimos</p><p>relembrar alguns dados cruciais para o subsídio do conhecimento</p><p>de pessoas que se organizam para a luta por direitos e denunciam a</p><p>miséria social do Brasil.</p><p>É bem sabido que a população em situação de rua (pop rua)</p><p>consiste de um grupo heterogêneo que apresenta em comum as</p><p>condições de pobreza, fragilização ou rompimento dos vínculos</p><p>familiares, a falta de moradia convencional regular e seu aumento</p><p>significativo ano a ano. Com número incerto, em 2022, de acordo</p><p>com os inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais, há 236</p><p>mil pessoas em situação de rua (PSR), distribuídas em 64% dos</p><p>municípios brasileiros (3.354 municípios relataram ao menos uma</p><p>PSR), com maior concentração no Sudeste, principalmente no</p><p>estado de São Paulo. O perfil já bem conhecido por aquilo que nos</p><p>aponta como efeitos do racismo estrutural (Almeida, 2019) foi de</p><p>pessoas negras (68%), sexo masculino (83%), deficientes (15%),</p><p>envolvendo os adultos de 30 a 49 anos (55%) e até cerca de 1/5 de</p><p>menores (19%) e acordo com as realidade regionais (Brasil, 2023).</p><p>Embora o relatório diagnóstico nacional da pop rua aponta que</p><p>90% afirmam saber ler e escrever, é fácil supor que essa população</p><p>está submetida a condições precárias de escolaridade, e o fato de</p><p>68% já ter trabalhado segundo o regime da CLT, tais dados são</p><p>reveladores da insegurança do trabalho existente no país e que</p><p>aflige fortemente esse estrato social (Brasil 2023).</p><p>Miranda et al. (2023) refletem que muitos dos fatos vivenciados</p><p>pela pop rua apresentam relação direta com a história social do</p><p>Brasil, como a tardia eliminação do sistema escravocrata como me-</p><p>115</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>diador das relações socioeconômicas nacionais, demarcando</p><p>também no cotidiano os diversos fatores sociais da pop rua tais</p><p>quais a identidade, classe e status socioeconômico, raça e gênero. O</p><p>Censo da pop rua na cidade de Recife contou 1.806 PSR, das quais</p><p>apenas 20% estavam em acolhimento e a vasta maioria na rua,</p><p>corroborando alguns dados nacionais como maioria das pessoas do</p><p>sexo masculino (76%), negras (80%) e adultos (83%). As crianças e</p><p>adolescentes em situação de rua representaram 5,1%, enquanto os</p><p>idosos foram 12%. Mais de 1/3 da pop rua de Recife se encontra em</p><p>situação de rua há mais de 5 anos, uma cronicidade da condição</p><p>para cerca de 640 pessoas. Cerca de 1/4 está na situação de rua há</p><p>menos de um ano, revelando uma elevada taxa de renovação desse</p><p>estrato social e relativa permanência ao entrar em tal condição, se</p><p>observados os valores de quem se encontra entre 1 a 3 anos (20%) e</p><p>em quem</p><p>está entre 3 a 5 anos (14%) na mesma condição.</p><p>As PSR não conseguem sair facilmente da condição quando</p><p>vivenciaram, uma vez que 43% afirmaram já ter saído da situação de</p><p>rua e terem retornado. Os principais motivos apontados pelas</p><p>pessoas para a situação de rua foram, respectivamente, os conflitos</p><p>familiares (50%), o uso prejudicial de drogas ilícitas (>25%), a perda de</p><p>moradia (cerca de 19%), a perda de trabalho (cerca de 17%) e o uso</p><p>prejudicial de álcool (cerca de 15%) (Miranda et al., 2023). Ressalvas</p><p>devem ser feitas a esses motivos, que não podem ser vistos de modo</p><p>separado, e que não revelam, no caso do uso de álcool e outras</p><p>drogas, os impactos do estigma social e violação de direitos na</p><p>atenção e tratamento de tais agravos de saúde oferecidos por</p><p>serviços públicos e privados.</p><p>O esforço para reconstruir as vidas das PSR conta com uma série</p><p>de estratégias atualmente implementadas ou a implementar, mas</p><p>que carecem numericamente de expansão frente à atual demanda.</p><p>É evidente estabelecer e fortalecer, de forma contínua, políticas</p><p>públicas efetivas tais quais as políticas de moradia, como espaços de</p><p>acolhimento institucional, aluguel social e moradia primeiro, políticas</p><p>de empregabilidade e qualificação, o fortalecimento e expansão da</p><p>116</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Rede de Atenção Psicossocial (Caps, unidades de acolhimento, etc.) e</p><p>as estratégias de mediação de conflitos familiares, desenvolvimento</p><p>de habilidades parentais e desenvolvimento humano das pessoas</p><p>mais afetadas pela pobreza. Outras estratégias importantes devem</p><p>buscar a oferta de espaços de reconstrução da cidadania e de</p><p>alternativa às vivências de rua, como os Centros Pop e a expansão</p><p>de Centros de Convivência, este último a ser abordado no escopo</p><p>deste artigo.</p><p>4.Os centro de convivência na política pública brasileira</p><p>Os Centros de Convivência são equipamentos públicos que foram</p><p>instituídos dentro da RAPS pela portaria n° 3.088/2011, e fazem parte</p><p>da Atenção Básica em Saúde para população em geral, tendo como</p><p>objetivo a “sociabilidade, produção e intervenção na cultura” (art. 6,</p><p>inciso III). Porém, diferente dos outros equipamentos que fazem</p><p>parte da Rede, os Centros de Convivência foram propostos sem ter</p><p>suas necessidades definidas e nenhum parâmetro delineado.</p><p>Segundo uma publicação do Conselho Regional de Psicologia do Rio</p><p>de Janeiro, os Centros de Convivência tem atuado em sua maioria</p><p>nos eixos de educação, cultura, arte, geração de trabalho e renda</p><p>(Melício; Alvarez, 2021).</p><p>Dessa forma, o Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro</p><p>tem apresentado reflexões acerca das experiências dos Centros de</p><p>Convivência e Cultura, onde afirmam a importância das “as conexões</p><p>[que] nos permitem experimentar um modo de funcionamento</p><p>articulado à potência do comum” (idem, 2021, p. 11). Apresentam assim,</p><p>o comum como conceito político, enraizado na experiência e</p><p>produzido pela transversalização realizada por práticas de</p><p>participação (...) É comum o que é vivido como pertencimento no</p><p>coletivo” (idem, p. 13). A partir disso, compreendemos a importância</p><p>da ampliação dos equipamentos e serviços públicos em articulação</p><p>com o terceiro setor para facilitar “a delicada arte dos encontros” e</p><p>do respeito às diferenças, em especial para populações que</p><p>enfrentam inúmeras barreiras de acesso a direitos, como é o caso</p><p>117</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>de pessoas que usam drogas, estão em situação de vulnerabilidade</p><p>social (ibidem).</p><p>Para tanto, a RD tem corroborado com a construção desse</p><p>sentido de luta comum, na medida em que fortalece o desejo de</p><p>produzir um “novo campo de possibilidades clínicas, políticas e</p><p>existenciais” (Passos, Souza, 2011, p. 158) sem reduzir suas ações aos</p><p>limites setoriais da saúde, assistência ou justiça, onde todas as</p><p>pessoas são entendidas como agentes políticos corresponsáveis</p><p>pela atenção e pela gestão das múltiplas interações. Por isso, a</p><p>relevância de reafirmá-la enquanto paradigma e diretriz de</p><p>diferentes políticas públicas, ao mesmo tempo em que é urgente</p><p>aprender com as organizações que têm espaços de convivência</p><p>para pessoas que usam drogas com base na redução de danos e</p><p>multiplicar as políticas públicas que as mantém de pé, mesmo diante</p><p>de tantos desafios (Vianna, 2022).</p><p>O livro apresenta inúmeros artigos que apresentam as</p><p>experiências dos Centros de Convivência da rede pública e de</p><p>organizações da sociedade civil, ressaltando a importância de suas</p><p>articulações junto à luta antimanicomial, ao direito à cidade, ao</p><p>trabalho, à educação, à cultura, à arte, à organização política, à</p><p>geração de renda, ao cooperativismo, entre outros. Em muitos deles</p><p>foram destacados a necessidade do vínculo, da confiança no</p><p>encontro para que nas relações interpessoais possam surgir</p><p>formas de fortalecimento pessoal e social, assim como educação</p><p>sobre direitos, profissionalizante e emancipadora. Dessa forma,</p><p>para que tais encontros sejam possíveis, o básico precisa ser</p><p>garantido como acesso a alimentação, banheiro, chuveiro, materiais</p><p>de higiene pessoal, roupas, lavagem de roupa e descanso.</p><p>5.Os Centros de Convivência para pessoas que usam drogas</p><p>As organizações da sociedade civil têm sido grandes provocadoras</p><p>das políticas públicas para pessoas que usam drogas e em situação</p><p>de vulnerabilidade, pois a partir de sua escuta ativa tem identificado</p><p>118</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>suas necessidades e apresentado alternativas possíveis de serem</p><p>executadas pelo poder público. Os Centros de Convivência voltados</p><p>para esse público são instituições majoritariamente tocadas por</p><p>organizações da sociedade civil que não se caracterizam como</p><p>espaço exclusivamente voltado para saúde, mas facilitam o acesso a</p><p>direitos constitucionais, através da articulação em rede com</p><p>serviços públicos, além de fomentar a construção e manutenção de</p><p>acordos coletivos.</p><p>O primeiro a propor esse formato no Brasil foi o Centro de</p><p>Convivência É de Lei, organização da sociedade civil sem fins</p><p>lucrativos, fundada em 1998, para atuar na “promoção da redução</p><p>de riscos e danos sociais e à saúde, associações à política de drogas”,</p><p>segundo nota técnica da organização disponível no site. É um espaço</p><p>que promove uma ética de cuidado dentro do campo da política de</p><p>drogas, estimulando uma “cultura garantidora de direitos e</p><p>diferenças”. Ele se organiza através de núcleos de gestão, ensino e</p><p>pesquisa, comunicação e advocacy, e práticas de RD. Muitas</p><p>atividades acontecem no Centro de Convivência, onde são</p><p>oferecidos os serviços de acolhimento, acesso a computador, água,</p><p>lanche, e no campo, é realizada a abordagem social com escuta,</p><p>acolhimento, acesso a insumos, orientações e encaminhamento</p><p>para rede parceira.</p><p>Outras instituições que atuam em espaços de convivência com</p><p>pessoas que usam drogas e estão em situação de vulnerabilidade no</p><p>Brasil são: Espaço Normal da Redes da Maré, organização da</p><p>sociedade civil que atua no Rio de Janeiro na favela da Maré;</p><p>Programa Corra Pro Abraço, uma iniciativa do governo do estado da</p><p>Bahia; Casa Rua, um equipamento da prefeitura de Belém no Pará; e</p><p>a Escola Livre de Redução de Danos, a qual fazemos parte da equipe</p><p>e será melhor apresentada na próxima seção.</p><p>O Programa Corra pro Abraço merece ser destacado também</p><p>por sua atuação com base na RD, na arte-educação e na</p><p>educomunicação, a fim de “aproximar seus beneficiários de políticas</p><p>119</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>públicas”, segundo o site da organização. A realização de cursos</p><p>profissionalizantes, através do Núcleo de Inclusão Social, das ações</p><p>do Corra Juventude, além da atuação da Vara de Audiência de</p><p>Custódia e do Centro de Referência Maria Lúcia Pereira, têm sido</p><p>referências para o campo. Elas têm demonstrado a existência de</p><p>portas de saída da vulnerabilidade, devendo ser ampliadas pelo</p><p>Poder Público a fim de fomentar alternativas de vida, melhores e</p><p>mais dignas.</p><p>Os Centros de Convivência são assim, melhor definidos como</p><p>serviços de redução de danos,</p><p>de baixa exigência, com intervenções</p><p>entre pares e voltado a atender as necessidades da comunidade</p><p>mais vulnerabilizada e marginalizada, amparados no respeito à</p><p>autonomia e direitos humanos, oferecendo um ambiente seguro,</p><p>acolhedor e que auxilie nas mudanças de vida das pessoas (Rigoni;</p><p>Breeksema; Woods, 2019).</p><p>Os Centros de Convivência, em geral, trabalham com a demanda</p><p>espontânea, ou seja, acolhe quem chega sem necessidade de</p><p>cadastro prévio ou encaminhamento, possuem equipe</p><p>multiprofissional, se localizam em regiões acessíveis e com grande</p><p>concentração de população em situação de rua. As ações educativas</p><p>e comunicativas têm sido uma tônica desses serviços também, uma</p><p>vez que o acesso à informação tem sido imprescindível para ampliar</p><p>as condições da modificação de comportamento para diminuição de</p><p>riscos e danos associados ao uso de drogas e a sua proibição.</p><p>A percepção de que, em especial, mulheres cis, trans e travestis,</p><p>negras, mães, nordetinas, de baixa escolaridade e periféricas, têm</p><p>sistematicamente apresentado dificuldades de acessar e</p><p>permanecer nos serviços até a conclusão de seu plano de cuidado,</p><p>portanto, outras estratégias se fazem necessárias. Assim, a Escola</p><p>Livre de RD definiu um dos seus dias de convivência apenas para</p><p>mulheres, cis, trans, travestis, mães e suas crianças, a fim de</p><p>promover atividades específicas e diminuir a exposição a violência</p><p>por gênero, a qual estão submetidas cotidianamente em espaços</p><p>mistos. Algumas das atividades realizadas são: oficinas de autocuida-</p><p>120</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>do com máscara de argila, escalda pés, esmaltação de unhas,</p><p>hidratação, tranças etc. São promovidas também atividades</p><p>temáticas conforme datas comemorativas, rodas de conversa</p><p>sobre saúde íntima, sexual e reprodutiva, sobre ISTs e HIV, entre</p><p>outros. A alimentação, o acesso a banheiros e a lavagem de roupas, a</p><p>exemplo dos serviços mais procurados por elas quando conseguem</p><p>chegar até o Centro de Convivência, na sede da instituição.</p><p>Para elas e para as pessoas que usam drogas e estão em situação</p><p>de rua, em geral, as abordagens no campo foram e são</p><p>imprescindíveis para a construção e manutenção dos vínculos,</p><p>mesmo com previsíveis resistências, dificuldades e afastamentos.</p><p>Sentar no chão, olhar nos olhos, escutar com atenção, tocar quando</p><p>permitido, se despir de julgamentos morais, oferecer ajuda,</p><p>permanecer disponível dentro das limitações e convidar para</p><p>participar de nossas atividades têm sido tecnologias imprescindíveis</p><p>para superar os obstáculos coloniais do racismo, machismo,</p><p>capitalismo, capacitismo, etarismo, entre outras opressões que se</p><p>entrecruzam nas histórias de vida de todos nós.</p><p>Porém esse desafio não é fácil, requer dos profissionais a</p><p>realização de reuniões periódicas com discussões de casos,</p><p>supervisões clínicas e institucionais, planejamentos, consultorias</p><p>externas, criação de instrumentos de coleta e armazenamento de</p><p>dados, articulações em rede, parcerias institucionais, análises</p><p>conjunturais e fortalecimento dos espaços de cuidado e educação</p><p>popular entre pares</p><p>.</p><p>6.Me organizando posso desorganizar - uma Escola Livre</p><p>possível</p><p>A Escola Livre de Redução de Danos (Escola Livre de RD) surgiu a</p><p>partir da organização de pessoas que usam drogas de diferentes</p><p>campos do saber, do encontro no ativismo social e advocacy para a</p><p>reforma das políticas de drogas e partir do vazio da formação</p><p>profissional dos trabalhadores de políticas de drogas depois do</p><p>golpe de estado jurídico de 2016 (Nepomuceno et al., 2016) e da tenta-</p><p>121</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>va de revogação de leis das políticas de saúde mental (Cruz;</p><p>Gonçalves; Delgado, 2019). A Escola Livre de RD teve seu nome</p><p>inspirado nas Escolas de Redutores de Danos, implementadas em</p><p>todo o Brasil a partir de editais do Ministério da Saúde e nasceu em</p><p>julho de 2019 (JC, 2019), consolidando-se enquanto Organização da</p><p>Sociedade Civil em 2021, com a formalização jurídica.</p><p>A força do movimento contrarreformista que motivou o</p><p>surgimento da Escola pode ser entendida, segundo Farias (2019),</p><p>como a reorientação da política de atenção no campo da saúde</p><p>mental, álcool e outras drogas, adotando a pauta manicomial, assim</p><p>como, avançando com o sucateamento dos serviços e o desmonte</p><p>da perspectiva de direito universal e de direito humano básico.</p><p>Desse modo, a Reforma Psiquiátrica, caracterizada pela Lei no</p><p>10.216/2001, que reorientou a saúde mental brasileira para uma</p><p>perspectiva de cidadania e sob a ótica de direitos tem, assim, sofrido</p><p>nos últimos anos uma série de medidas tomadas legalmente,</p><p>amparando o chamado movimento da contrarreforma</p><p>(Contrarreforma Psiquiátrica).</p><p>As Escolas de Redutores de Danos foram implementadas no</p><p>Brasil a partir dos anos de 2009 e 2010, entretanto, rapidamente</p><p>descontinuadas (Coelho; Soares, 2023). Outro projeto institucional</p><p>formativo foram os Centros Regionais de Referência sobre Drogas</p><p>(CRR), mais robustos que as Escolas de Redutores de Danos (Escobar</p><p>et al., 2015), mas que também foram descontinuadas após o golpe</p><p>jurídico de 2016. A pujança da implementação das ações de RD e da</p><p>evolução conceitual nas políticas públicas sobre drogas brasileira</p><p>durante a primeira década do século XX foram duramente</p><p>desfinanciadas e mal avaliadas a partir de vieses moralistas e</p><p>articulação política de membros da Contrarreforma Psiquiátrica</p><p>(Coelho; Soares, 2023).</p><p>A Escola Livre de RD apresenta-se enquanto uma proposta</p><p>político-institucional e ideológica, amparando-se no paradigma da</p><p>Redução de Danos, assim, como resposta ao avanço da Contrarefor-</p><p>122</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>ma Psiquiátrica e a remanicomialização do modelo de saúde mental</p><p>em curso (Passos et al., 2021; Cruz et al., 2020; Farias, 2019). Busca</p><p>somar-se com as entidades, grupos, organizações de RD e pessoas</p><p>que usam drogas, realizando o ativismo político e o campo de</p><p>práticas com vistas ao advocacy e alternativa à RD institucionalizada</p><p>e endurecida pelas letras das leis e suas normativas, no aparato</p><p>público.</p><p>Pensar a Escola Livre de RD partiu do entendimento e análise</p><p>conjuntural de que as políticas públicas de saúde mental sofreriam</p><p>ainda mais com subsequentes ataques e descréditos a partir do</p><p>Governo Federal na perspectiva do bolsonarismo, vencedor nas</p><p>eleições para presidente em 2018. A mesma perspectiva se</p><p>apresentava localmente, no Estado de Pernambuco e sua capital</p><p>Recife, cujas pastas de Políticas sobre Drogas foram ocupadas por</p><p>alas políticas bolsonaristas do Partido Progressistas, que apesar do</p><p>nome, defenderam as pautas da Contrarreforma Psiquiátrica, assim</p><p>como, a expansão das chamadas Comunidades Terapêuticas (CTs),</p><p>em um governo estadual liderado pelo Partido Socialista Brasileiro,</p><p>aquele momento. O conflito de interesse óbvio entre esses políticos</p><p>com pautas manicomiais, comumente donos, diretores, fundadores</p><p>ou idealizadores de CTs.</p><p>Os paradoxos da política brasileira, seus acordos, demandam</p><p>atenção da Sociedade Civil aos processos legislativos e Controle</p><p>Social instituídos pela democracia brasileira, prejudicados durante a</p><p>gestão de Jair Bolsonaro. O processo de criminalização das boas</p><p>práticas de RD e dos trabalhadores alcançou localmente situações</p><p>inimagináveis após 20 anos da Reforma Psiquiátrica, como a</p><p>proibição do uso dos termos Redução e Redutores de Danos pelos</p><p>trabalhadores da saúde mental na gestão municipal da cidade de</p><p>Olinda, por exemplo, cujo prefeito eleito desde 2017 é evangélico e</p><p>fundador de CTs.</p><p>Enquanto Sociedade Civil e sua liberdade de proposição baseada</p><p>em evidências, a tal situação vivida pelos redutores de danos, a</p><p>123</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>exemplo daqueles trabalhadores com ação fortemente guiada pela</p><p>RD como o Consultório de Rua, começou a se transformar após a</p><p>oferta pela Escola Livre de RD da Ação Fique Suave durante o</p><p>Carnaval, voltada para o cuidado, descanso, hidratação em um</p><p>espaço livre de substâncias, além da disposição de agentes</p><p>redutores de danos</p><p>com ações de campo e educação popular,</p><p>envolvendo a distribuição de insumos e água nas ruas. A situação</p><p>constrangeu a Prefeitura de Olinda que passou desde então a dispor</p><p>de ações de RD, ainda incipientes frente ao consumo de álcool e</p><p>outras drogas no Carnaval de Olinda.</p><p>A Escola Livre se coloca formalmente enquanto uma organização</p><p>da sociedade civil que tem como objetivo estudar, ensinar, criar e</p><p>difundir as histórias, conceitos e práticas cotidianas no cuidado com</p><p>pessoas que usam drogas, no aprendizado entre pares, dialogando</p><p>com referências locais e internacionais de Redução de Danos. Visa</p><p>constituir-se como um Centro que pensa a construção do sujeito</p><p>político, em dialógica com suas práticas de cuidado quanto às</p><p>escolhas de vida. As ações de RD executadas pela Escola Livre se</p><p>amparam atualmente no desenvolvimento de 5 áreas estratégicas:</p><p>institucional, voltada ao desenvolvimento organizacional segundo</p><p>um modelo sociocrático, assim como, a captação de recursos e os</p><p>recursos humanos; formação e pesquisa, para o desenvolvimento</p><p>de formação profissional, estágios, eventos e pesquisas que</p><p>subsidiem a efetividade das práticas de RD; comunicação, para o</p><p>desenvolvimento e registro das ações da Escola Livre e da</p><p>interlocução da RD e temas pertinentes sobre álcool e outras</p><p>drogas com o público; convivência, para o desenvolvimento e oferta</p><p>de estratégias e práticas de RD para o público externo, tais como</p><p>Centro de Convivência, apoio psicológico e ações extramurais;</p><p>incidência e articulação, visando incidir politicamente nos espaços</p><p>de tomada de decisão, como comitês e conselhos de controle social</p><p>importantes para o fortalecimento das políticas de RD e atenção às</p><p>pessoas que usam drogas.</p><p>124</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>As pessoas organizadas têm potencial para a construção de</p><p>sonhos e possibilidades. A Escola Livre de RD pode ser também</p><p>compreendida como o encontro de pessoas e suas trajetórias na</p><p>gestão pública, na academia e na sociedade civil organizada e,</p><p>principalmente, no movimento social e das provocações para a</p><p>reforma política sobre drogas, a exemplo da Marcha da Maconha a</p><p>partir da segunda metade dos anos 2000 (Brandão, 2017) e do I</p><p>Encontro Nacional de Coletivos e Ativistas Antiproibiocionistas,</p><p>realizado em Recife em 2016. Foi neste encontro de trajetórias, do</p><p>ativismo, da luta social, que a Escola Livre de RD realiza seu primeiro</p><p>alicerce, a tradução e lançamento do livro Limites da Correria</p><p>(Rigoni; Breeksema; Woods, 2019) no Seminário 30 anos de Redução</p><p>de Danos no Brasil, em dezembro de 2019. O livro, entre outras</p><p>experiências e práticas, evidenciou o Programa Atitude (West, 2016),</p><p>PRD do Governo de Pernambuco, cuja Secretaria Estadual de</p><p>Drogas negligenciou a importância de sua tradução, acirrando o</p><p>boicote dos líderes nas instâncias de poder político do executivo</p><p>estadual, como já mencionado, articuladores do movimento da</p><p>Contrarreforma Psiquiátrica.</p><p>A Escola Livre de RD tem acreditado na construção do ativismo</p><p>social e na criação de possibilidades pelo encontro e o</p><p>compartilhamento das vidas. O desafio para uma construção</p><p>organizacional é enorme e se constitui no fazer cotidiano e plural. A</p><p>escolha pela institucionalização e formalização jurídica suscita</p><p>diversos debates e aprendizagens, faz-nos refletir sobre tudo o que</p><p>é possível, uma Escola Livre, com a atenção para construir alicerces</p><p>sólidos neste novo momento e conjuntura para as políticas sobre</p><p>drogas brasileiras. A reflexão acerca da institucionalização das</p><p>práticas de RD deve ser uma constante para evitar o mesmo</p><p>fenômeno ocorrido com os PRD públicos, cujo engessamento</p><p>provocado pelo excesso de normativas e parâmetros de</p><p>funcionamento, isto é, sua tecnificação excessiva, tem sido capaz de</p><p>distanciar a política pública do paradigma próprio da Redução de</p><p>Danos.</p><p>125</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>7.Considerações finais</p><p>As políticas públicas de saúde mental, álcool e outras drogas do</p><p>Brasil tem se desenvolvido de forma descontinuada ao longo da</p><p>história, por meio de estratégias e regulação normativa e</p><p>organização política de pessoas a favor da Reforma Psiquiátrica,</p><p>mas também de fortes movimentos contrarreformistas com pautas</p><p>manicomiais que clama o retorno do modelo médico/biomédico,</p><p>comprovadamente fracassado para a dimensão da questão das</p><p>drogas. Buscou-se neste artigo trazer à reflexão os fatos históricos,</p><p>que ajudam na compreensão dos interesses políticos subjacentes ao</p><p>tema, assim como, da necessidade de tornar o tema objeto para a</p><p>luta social com vistas a educar a população sobre o paradoxo</p><p>envolvido no Proibicionismo.</p><p>A construção de um novo entendimento da sociedade acerca das</p><p>políticas sobre drogas é urgente, em direção à consolidação de um</p><p>novo momento para a continuidade da Reforma, um nova onda, na</p><p>qual é preciso esclarecimento sobre a Redução de Danos e sua</p><p>importância para a manutenção e produção de saberes e fazeres</p><p>orientados pelos direitos humanos e o desenvolvimento social. Desta</p><p>forma, é preciso produzir evidências e a denúncia das políticas de</p><p>drogas centradas na exclusão e na doença, no punitivismo, na</p><p>involuntariedade e na negligência ao acesso a direitos quanto à</p><p>promoção do genocídio e manutenção do racismo da política de</p><p>guerra às drogas. A aposta no encontro, na organização das</p><p>pessoas e suas potências se mostra favorável para a</p><p>transformação social que o país tanto almeja.</p><p>126</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Referências bibliográficas</p><p>ALMEIDA S. Racismo estrutural. Pólen Produção Editorial LTDA; 2019</p><p>Jul 10.</p><p>ALVES, Vânia Sampaio. Modelos de atenção à saúde de usuários de</p><p>álcool e outras drogas: discursos políticos, saberes e práticas.</p><p>Cadernos de saúde pública 25 2009: 2309-2319.</p><p>https://doi.org/10.1590/S0102-311X2009001100002</p><p>BRANDÃO, Marcílio Dantas. 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Corpos negros sob a</p><p>perseguição do estado: política de drogas, racismo e direitos</p><p>humanos no Brasil. Direito Público, v. 16, n. 89, 2019.</p><p>http://orcid.org/0000-0002-0077-0297</p><p>ESCOBAR JAC, PERRELLI JG, FRAZÃO ID, UCHÔA R. Saberes e práticas</p><p>profissionais: a experiência do Centro Regional de Referência sobre</p><p>Drogas de Pernambuco. Recife: Editora UFPE. 2015.</p><p>EVANS, S. Crack: Reduzir Danos Lições Brasileiras de Saúde,</p><p>Segurança, e Cidadania. Rio de Janeiro: Open Society Foundations,</p><p>2017.</p><p>FARIAS LL. Estado, contrarreforma e as políticas de saúde e saúde</p><p>mental no Brasil. Argumentum. 2019;11(3):47-66.</p><p>http://10.18315/argumentum.v11i3.22727</p><p>FIORE M. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma</p><p>proibicionista e as alternativas. 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Relatório final - censo da população em situação de</p><p>rua da cidade do Recife. 1. ed. – Recife: EDUFRPE, 2023.</p><p>128</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>http://orcid.org/0000-0002-0077-0297</p><p>https://doi.org/10.1590/S0101-33002012000100002</p><p>https://jc.ne10.uol.com.br/canal/cidades/geral/noticia/2019/07/18/cidadania-e-direitos-recife-tera-escola-pioneira-de-reducao-de-danos-383578.php</p><p>https://jc.ne10.uol.com.br/canal/cidades/geral/noticia/2019/07/18/cidadania-e-direitos-recife-tera-escola-pioneira-de-reducao-de-danos-383578.php</p><p>https://jc.ne10.uol.com.br/canal/cidades/geral/noticia/2019/07/18/cidadania-e-direitos-recife-tera-escola-pioneira-de-reducao-de-danos-383578.php</p><p>http://www.crprj.org.br/site/wp-content/uploads/2021/12/centros_convivencia.pdf</p><p>http://www.crprj.org.br/site/wp-content/uploads/2021/12/centros_convivencia.pdf</p><p>https://doi.org/10.52753/bis.2020.v21.34613</p><p>RDRD</p><p>MOSCOVICI, S. 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Dissertação de Mestrado – Curso de</p><p>Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas</p><p>da Santa Casa de São Paulo, São Paulo, 2010.</p><p>WEST, Rafael S. Política de drogas e redução de danos: um estudo</p><p>sobre o Programa Atitude em Pernambuco. Dissertação de</p><p>Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Sociologia,Universidade</p><p>Federal de Pernambuco. 2016</p><p>130</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>PARTE 2PARTE 2</p><p>Relatos dasRelatos das</p><p>EquipesEquipes</p><p>No ponto mais alto do Morro Santa Maria, em Santos, emergiram</p><p>quatro mulheres de uma força interior inabalável. Cada uma trazia</p><p>consigo suas próprias narrativas, laços familiares, batalhas</p><p>travadas e sonhos acalentados. Contudo, uma semente de interesse</p><p>comum germinou em seus corações: saber mais a respeito da</p><p>palavra "REDUÇÃO DE DANOS". A partir dessa centelha de</p><p>curiosidade, teceu-se a trama da nossa equipe.</p><p>Nosso grupo passou por diversas transformações ao longo dos</p><p>meses que prescreveram nossas ações, algumas pessoas queridas</p><p>bateram asas para alçar sonhos maiores, e novas pessoas queridas</p><p>incorporaram esse espaço, somando e trazendo ainda mais a</p><p>sinergia de força que nos sustentou durante todo o processo.</p><p>Nesses 4 meses de projeto, tivemos essa equipe construída pelas</p><p>mãos da Raquel, Yasmin, Patrícia, Bianca, Luciene, Daniela, Laura,</p><p>Fabiane, Rosangela, Manuela, Juliana, Ana e Laura.</p><p>RDRD</p><p>EQUIPE MORROS - MULHERES</p><p>133</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Yasmim Fonseca</p><p>Foi por meio das trocas cotidianas de afeto, das falas acolhidas e</p><p>respeitadas, dos conhecimentos partilhados, dos pensamentos</p><p>externalizados e dos sonhos sonhados em conjunto, que tivemos um</p><p>pedacinho de cada mulher citada, marcada em nossas ações, e hoje</p><p>representadas aqui nas linhas desse texto.</p><p>Uma equipe inédita, em um lugar inédito, recheada de novos</p><p>desafios. Uma loucura doida que quem compõe o DiV3rso já está</p><p>acostumado, e quem se aproxima pela primeira vez, logo se</p><p>acostuma. Uma equipe composta inteiramente por mulheres, cis e</p><p>trans, de diversas cores e idades, pensando e elaborando o trabalho</p><p>de mulheres para mulheres.</p><p>O Morro Santa Maria ficou destinado como nosso foco de atuação.</p><p>Uma região em que a Redução de Danos, por meio do DiV3rso,</p><p>e denuncismo, que ignoram</p><p>tamanha desproteção e culminam no</p><p>abandono das propostas, como se as</p><p>pessoas fossem desprovidas de recursos</p><p>pessoais de sustentação. Pelo contrário,</p><p>fomos cada vez mais evidenciando a força</p><p>de sobrevivência dessas mulheres que,</p><p>apesar da insuficiência das respostas e</p><p>RDRD</p><p>11</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>suportes encontrados, menos</p><p>solitariamente puderam estabelecer</p><p>caminhos possíveis protagonizados</p><p>por elas, rumo a produção de novas</p><p>histórias, ou ao menos de novos</p><p>sonhos.</p><p>Foi também com as mulheres e para</p><p>elas, pensadas algumas das ações pela</p><p>primeira vez desenvolvidas: a costura</p><p>de calcinhas e a circulação por alguns</p><p>morros de Santos. Para as mulheres</p><p>chegadas pela primeira vez para</p><p>compor o grupo, as questões sobre</p><p>drogas não eram centralmente</p><p>debatidas ou percebidas em suas</p><p>vidas. Foram chegando aos poucos, a</p><p>partir de articulação com serviços</p><p>socioassistenciais e inserção docente</p><p>no território, e a aproximação com as</p><p>mulheres e homens já parte do grupo</p><p>há mais tempo, e o contato territorial a</p><p>partir da lente da Redução de Danos,</p><p>pode gerar muitas transformações</p><p>que presenciamos.</p><p>RDRD</p><p>Sim, a política de drogas as atravessava, com profunda presença</p><p>e repercussão em suas vidas. A guerra às drogas se apresentava no</p><p>uso delas próprias como “laranjas”; na perda da guarda de seus</p><p>filhos; no risco a que ficam expostas as suas famílias, no</p><p>encarceramento e no extermínio dos meninos “que viram crescer”;</p><p>na ausência de espaços para diálogos familiares sobre usos menos</p><p>danosos, sobre o sofrimento relacionado à violências sexuais e</p><p>domésticas vividas; a ausência de direitos sexuais e reprodutivos; a</p><p>falta de privacidade, de liberdade e de oportunidades de saída de</p><p>contextos opressores.</p><p>12</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>A construção com o povo Tupi-Guarani da Aldeia Tabaçu seguiu</p><p>avançando nas problematizações acerca do que de fato intoxica as</p><p>comunidades indígenas, e que tem nos ensinado cotidianamente a</p><p>reconhecer a reprodução do estabelecimento de relações coloniais</p><p>de posse em nossas ações, enfrentar o extrativismo e a espoliação,</p><p>em profunda conexão com nossa mãe Terra (Nhandetsy) e nosso céu</p><p>(Nhanderu), reconhecendo na Redução de Danos um contraponto à</p><p>Redução Jesuítica que incidiu sobre sua ancestralidade (MIRIMDJU,</p><p>2019; MIRIMJU et al., 2020; SURJUS, PASSADOR, 2021)</p><p>Mirimdju (2019) nos indica três grandes impactos do processo de</p><p>colonização, no que se refere 1) ao genocídio dos povos que</p><p>habitavam o território chamado de Pindoreta pelos Tupi-Guarani,</p><p>invadido pelos portugueses; 2) à tentativa de morte sociocultural,</p><p>pela expropriação de seus conhecimentos de cura e ritualidade, com</p><p>a catequização; e 3) à expulsão dos territórios, com a “compra</p><p>humana”, sequestrada e escravizada em terras distantes e</p><p>desconhecidas, nas quais não poderiam se proteger. Dessa forma, a</p><p>redução de danos, nesse contexto, tem sido vista como tecnologia</p><p>que resgata os saberes e práticas ancestrais, fazendo</p><p>enfrentamento à redução jesuítica feita no início da colonização que</p><p>permanece viva, reproduzindo atravessando a realidade no</p><p>contemporâneo.</p><p>Inspiradas por bell hooks (2019, 2020) que resgata os caminhos</p><p>ancestrais de autorrecuperação e libertação coletiva, tomados no</p><p>campo da indissociabilidade entre sujeito individual e coletivo,</p><p>descartando cosmovisões de contraposição entre “eu” e o “outro,</p><p>temos orientado nossos esforços na convocação de uma busca</p><p>para a consciência das forças de opressão, criando resistência</p><p>efetiva e recuperação de uma integridade coletiva assolada pelo</p><p>silenciamento, pelo racismo sistemático e pela desumanização. A</p><p>violência colonial e heteropatriarcal historicamente se fez presente,</p><p>tendo os corpos das mulheres como territórios de conquista,</p><p>extração e violência, evidenciando uma dupla relação de subordina-</p><p>13</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>ção entre a combinação do trabalho produtivo e reprodutivo, ao que</p><p>Veronica Gago (2020) conceitua de corpo-território. A autora,</p><p>também reconhece a impossibilidade de isolamento do corpo</p><p>individual do corpo coletivo, propondo esse conceito-imagem para</p><p>revelar as batalhas que estão ocorrendo aqui e agora, numa</p><p>composição de afetos, recursos e possibilidades que são singulares,</p><p>mas não individuais apenas. (GAGO, 2020). Dessa forma, a existência</p><p>contra-hegemônica (SURJUS et al., 2021) das mulheres indígenas</p><p>Tupi-Guarani foi tomada neste projeto, como fonte de cura ancestral</p><p>e coletiva, por meio da partilha de sabedorias preservadas apesar e</p><p>a partir dessas violências, num processo de fortalecimento da</p><p>identidade individual e coletiva, num movimento de cuidado e</p><p>resistência, propondo então, a criação de uma casa de acolhimento</p><p>organizada a partir de ação desenvolvida entre pares, baseada na</p><p>sabedoria e medicinas Tupi-Guarani, buscando</p><p>a conexão com a nossa ancestralidade e com o</p><p>nosso território-corpo (...); o resgate da nossa</p><p>história é também uma forma de reduzir os</p><p>danos do processo de colonização de nossos</p><p>corpos, territórios e histórias de vida. Nesta</p><p>relação entrelaçada entre redução de danos e os</p><p>saberes na floresta (...) compreender as</p><p>revitalizações que já acontecem na produção de</p><p>saúde às populações indígenas e não-indígenas e,</p><p>em contrapartida, entender onde a saúde está</p><p>sendo bloqueada, como e por quê. (MIRIMDJU et</p><p>al., p. 137-139).</p><p>Tal propositura, exigiu ampliação das metodologias participativas,</p><p>buscando o engajamento de toda a comunidade na construção do</p><p>espaço de cuidado, e novas parcerias que apoiaram o acesso aos</p><p>conhecimentos de bioconstrução, o planejamento e a execução do</p><p>planejado, o que pode se iniciar e segue em movimentos de</p><p>finalização, com Raquel Barros, Melissa Branco do Instituto</p><p>Empodera, que nos presentearam ainda com Vitor Melo.</p><p>Aprofundando as ofertas de trocas culturais e a ampliação da</p><p>difusão dos conhecimentos sobre bioconstrução e da sabedoria</p><p>Tupi-Guarani para o cuidado das mulheres, todas as outras</p><p>miniequipes foram incluídas em mutirões mensais de construção.</p><p>14</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>15</p><p>RDRD REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>No semelhante caminho, as equipes voltadas à população em</p><p>situação de rua e uso de drogas, aprimoraram nessa oportunidade</p><p>as estratégias de acolhimento em Santos e São Vicente-SP, por meio</p><p>da criação dos espaços de convivência de baixa exigência, provendo</p><p>celebrações de datas especiais como natal e carnaval, proteção,</p><p>descanso, escuta, música, lanche e banho, destacando aqui a</p><p>generosa parceria com a Diocese de Santos que nos tem cedido</p><p>uma carreta para o provimento de banho quente! Reafirmando as</p><p>bases de atuação sob a perspectiva laica e dos direitos humanos, a</p><p>Diocese nada nos exigiu em troca, reconhecendo nossa defesa</p><p>comum pela vida de todas as pessoas, o que tem permitido que uma</p><p>importante ação de valorização da dignidade tem sido possibilitada.</p><p>16</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>A união das equipes em torno do espaço de convivência, a cessão</p><p>de espaço físico pela Direção do Campus Baixada Santista da Unifesp</p><p>e o apoio da Direção do Instituto de Saúde e Sociedade, permitiu que</p><p>as pessoas em situação de rua e em uso radical de drogas</p><p>pudessem construir relações de confiança, virem com seus animais</p><p>de estimação, companheiros, saberes e corpos, o que gerou trocas</p><p>muito bonitas e transformadoras.</p><p>17</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Infelizmente, durante a escrita de nosso ebook, vivemos na Região</p><p>a maior chacina promovida pelo estado, depois do Massacre do</p><p>Carandiru em São Paulo, denunciada pela ONG Conectas e Comissão</p><p>Arns ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações</p><p>Unidas. Mais de 50 pessoas assassinadas por policiais e inúmeras</p><p>famílias sofrendo abordagens violentas e ilegais, mobilizando</p><p>Ministério Público, Defensoria Pública, Ouvidoria das Polícias no</p><p>Estado. Porém, para o Governador Tarcísio de Freitas “pessoal pode</p><p>ir na ONU, pode ir na Liga</p><p>estava</p><p>chegando lá pela primeira vez. Ter fortes personalidades e pessoas</p><p>influentes da região compondo nossa equipe, fez com que fossemos</p><p>recepcionadas e acolhidas de uma maneira muito agradável pelas</p><p>pessoas do território.</p><p>Apesar de Santos ser uma das cidades do Brasil com o maior</p><p>índice de desenvolvimento humano (IDH), a região dos morros</p><p>(exceto o Morro Santa Terezinha, que por ser localizado próximo á</p><p>praia, é residido por mansões milionárias de alto luxo) é uma área</p><p>majoritariamente periferizada, marginalizada e abandonada pelo</p><p>Estado, salvo quando esse Estado se expressa através da polícia, que</p><p>executa com afinco seu trabalho de necropolítica nas favelas</p><p>santistas.</p><p>Tendo como horizonte as questões latentes do território, como os</p><p>atravessamentos socioeconômicos, a cotidianidade das violências e</p><p>violações, os efeitos e sintomas das “guerra às drogas”, e outras</p><p>ausências que fomos notando, começamos a elaborar e pôr em</p><p>prática nossos planejamentos.</p><p>A partir desses panoramas, nós começamos a pensar em como</p><p>todo esse contexto impacta no cotidiano e na subjetividade das</p><p>mulheres do Morro Santa Maria, e quais estratégias utilizaríamos</p><p>RDRD</p><p>134</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>para minimizar, mesmo que por algumas horas, o impacto que essas</p><p>vivências causam. Foi muito fácil ter ideias acerca da nossa atuação,</p><p>pois a nossa equipe era composta por essas mulheres, que estavam</p><p>inseridas e vivenciavam esse cenário.</p><p>Desta forma, foi elaborado inicialmente em parceria com a Vila</p><p>Criativa da região, um espaço de convivência de mulheres. Nosso</p><p>espaço de convivência visava a criação de vínculos e a propagação</p><p>de atos de autocuidado.</p><p>Preparavámos um ambiente com músicas,</p><p>lanches e ferramentas que achamos que</p><p>seriam adequadas naquele momento, como</p><p>esmaltes, lixas, acetona, palitos de unha,</p><p>algodão e alguns cremes. Com o pretexto</p><p>singelo de fazer as unhas, nós</p><p>espontaneamente começamos a nos vincular</p><p>com as mulheres da região, e a iniciar o</p><p>processo de reflexão sobre o nosso tema</p><p>principal, quais os atos de autocuidado que elas</p><p>tinham consigo mesmas. Pensando que a</p><p>Redução de Danos é principalmente sobre</p><p>cuidar de si.</p><p>RDRD</p><p>Nessas rodas de conversa, percebemos que a grande maioria</p><p>dessas mulheres estavam extremamente sobrecarregadas com</p><p>uma enorme carga de responsabilidade pelos diversos cuidados que</p><p>elas foram encarregadas de administrar. O cuidado com os filhos,</p><p>com a casa, com seus companheiros, com as necessidades</p><p>financeiras, o trabalho, e em alguns casos, o cuidado com entes</p><p>queridos que estavam em uso abusivo de substâncias.</p><p>E foi nesse último caso o alvo das nossas reflexões: como se cuida</p><p>de quem cuida de alguém em uso abusivo de substâncias? Nas</p><p>nossas experiências anteriores, o cuidado se voltava ao sujeito que</p><p>faz o uso, e nessa ação, nós acolhemos as cuidadoras que lidam</p><p>135</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>diretamente com o impacto que um uso disfuncional de substâncias</p><p>causa. Elas relatavam estar exauridas, cansadas e</p><p>desesperançosas. Nesses momentos de desabafos, nós as</p><p>acolhemos, tentávamos apresentar outros pontos de vista,</p><p>apresentávamos o conceito da redução de danos, e reforçávamos</p><p>que elas não estavam sozinhas.</p><p>Essa experiência fez com que surgisse a reflexão da importância</p><p>do cuidado também da rede de apoio na redução de danos.</p><p>Proporcionando uma noção de cuidado para si, a fim de facilitar</p><p>também o cuidado com o outro.</p><p>Além da Vila Criativa, nós também ocupamos a rua na intenção de</p><p>alcançar ainda mais pessoas. O espaço da rua é imprevisível, então</p><p>íamos preparadas para todos os públicos: homens, mulheres e</p><p>crianças. Com a nossa tenda armada, distribuímos diversos insumos</p><p>a respeito da redução de danos, elaboramos atividades para acolher</p><p>e incluir as crianças do território na discussão e oficinas de</p><p>confecção de calcinhas.</p><p>RDRD</p><p>A oficina de confecção de calcinhas surgiu a</p><p>partir da nossa inclusão no espaço de</p><p>convivência maior que o DiV3rso faz há alguns</p><p>anos na Vila Criativa da Vila Nova, mas as ações</p><p>deste ano de 2023 foram realizadas também em</p><p>um terreno sob posse da Unifesp.</p><p>Esse espaço é pensado para a convivência das</p><p>pessoas em situação de rua, vulnerabilidade</p><p>e/ou uso de drogas que estão na região.</p><p>Nossa inclusão foi pensada para proporcionar um espaço</p><p>acolhedor para as mulheres dessa região, visto que nosso espaço</p><p>estava majoritariamente masculino, e levando em consideração as</p><p>violências e violações que uma mulher em situação de rua vivencia. A</p><p>partir desses pontos, nós realizávamos a busca ativa no território, e</p><p>dentro do centro de convivência, tínhamos a nossa tenda.</p><p>136</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Nossa tenda era composta por cosméticos, esmaltes e também</p><p>tecidos para as confecções das calcinhas. A ideia era costurarmos</p><p>juntas, enquanto conversamos sobre os mais diversos assuntos. A</p><p>ideia foi bem recebida pelas mulheres do território, a calcinha era</p><p>um objeto necessário e funcional, e a sensação de produzir com as</p><p>próprias mãos também foi um ponto relevante. Algumas mulheres</p><p>entraram em contato com memórias afetivas em relação à costura,</p><p>e tivemos momentos que alguns homens espontaneamente</p><p>quiseram participar do momento de costura, o que nos gerou a</p><p>demanda de recortar também alguns moldes de cueca.</p><p>RDRD</p><p>Neste edital, nosso principal</p><p>objetivo foi pensar o cuidado e</p><p>o autocuidado. Desvencilhando</p><p>da noção de autocuidado</p><p>difundida atualmente pelo</p><p>mercado capitalista de</p><p>dermocosméticos que atrelou</p><p>essa palavra a produtos faciais</p><p>caros e inacessíveis a uma</p><p>parte significativa das</p><p>mulheres brasileiras.</p><p>Nossa noção de autocuidado foi pautada na concepção da</p><p>Redução de Danos, em gerar espaço de ampliação das reflexões</p><p>sobre si, sobre o outro, a vida e a sociedade. A incentivar as ações</p><p>para si, não por questões estéticas cujo as mulheres são</p><p>cotidianamente afetadas pela sociedade machista e patriarcal na</p><p>qual somos inseridas. Mas pensando em aprimorar o amor próprio,</p><p>fortalecer a autoconfiança, e abastecer a autoestima das mulheres,</p><p>acreditando que ampliar e consolidar essas forças, é uma</p><p>ferramenta possível de proporcionar mudanças na vida das</p><p>mulheres.</p><p>137</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>EQUIPE POP RUA - SANTOS</p><p>O Fluxo do Mercado: Desafios da</p><p>equipe Pop Rua</p><p>A região do Mercado Municipal (Vila Nova), no município de Santos,</p><p>é a região onde ocorrem diversas atividades do DiV3rso pelo fato de</p><p>estar perto da universidade, além de ser um dos lugares com o</p><p>maior fluxo de usuários, pessoas em situação de rua e moradores de</p><p>cortiços. É nessa região que atua uma das equipes de campo do</p><p>DiV3rso, a equipe Pop Rua.</p><p>“É um local de alta vulnerabilidade, com muito</p><p>consumo de drogas e com muitos ‘moradores de</p><p>calçada’. Falta acesso a muitas coisas, então</p><p>tentamos levar os recursos que sejam acessíveis</p><p>porque na maioria das vezes as pessoas estão</p><p>necessitando disso. As ações de redução de</p><p>danos que fazemos é necessária, por ter um alto</p><p>consumo de substâncias. Levamos para eles</p><p>formas seguras caso haja o uso, ou seja, fazemos</p><p>coisas que muitos serviços não fazem.</p><p>O consumo do crack é enorme. As pessoas usam</p><p>na frente dos comércios e até mesmo embaixo</p><p>de uma árvore seringueira característica de lá.</p><p>Os usuários de pó normalmente não andam com</p><p>os usuários de crack, então estes ficam isolados.</p><p>As pessoas lá tem uma faixa etária de 25 aos 40</p><p>anos, predominantemente. Há grande</p><p>quantidade de homens cis, mulheres cis,</p><p>mulheres trans e travestis. Quando eu era</p><p>moradora da região era muito respeitada por</p><p>todos e sou até hoje. Além disso, à noite várias</p><p>mulheres se espalham para os locais de</p><p>prostituição por não conseguirem acesso aos</p><p>albergues, pois, eles têm regras quanto ao</p><p>horário de entrada e saída, fazendo com que elas</p><p>fiquem nas ruas e durmam por ali. Acredito ser</p><p>um absurdo, pois esse é o trabalho da pessoa e</p><p>ela deve ser respeitada por isso.” Lorrayne</p><p>Moraes, redutora de danos.</p><p>138</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>No segundo</p><p>semestre de 2023, o DiV3rso encontrou um grande</p><p>desafio. A Vila Criativa, local onde era o espaço de convivência para</p><p>pessoas em vulnerabilidade social, sofreu com problemas de infra</p><p>estrutura devido às fortes chuvas em determinado período,</p><p>impedindo a continuidade das atividades no local. Por conta disso, a</p><p>equipe Pop Rua foi essencial para ser o elo de comunicação da</p><p>universidade com as pessoas que acessavam o local.</p><p>“Tivemos que, de uma semana pra outra, mudar</p><p>completamente a logística e o local para realizar</p><p>o acolhimento na área de convivência das</p><p>pessoas daquela região. Conseguimos um</p><p>terreno da própria universidade, alugamos</p><p>sanitário químico, conseguimos chuveiros</p><p>móveis. Tudo isso pra montar uma estrutura</p><p>mínima e, assim, continuar atendendo aquelas</p><p>pessoas que já tinham algum vínculo conosco na</p><p>região do mercado. Algumas pessoas nos</p><p>encontrávamos duas vezes por semana, uma vez</p><p>no espaço de convivência e outra na ação de</p><p>campo. Não tinha como as atividades pararem. A</p><p>equipe poprua foi essencial para essa dinâmica,</p><p>pois fomos nós que informamos a mudança do</p><p>local, o endereço, bem como fazíamos a busca</p><p>ativa no dia das atividades ” Adriany Eizo, tutora</p><p>da equipe Pop Rua.</p><p>Imprevistos e desafios são rotina para a equipe, uma vez que as</p><p>equipes de Redução de Danos partem da premissa de que lidamos</p><p>com o dia-a-dia e imprevisibilidades do território. Especificamente no</p><p>segundo semestre de 2023, listamos alguns dos desafios para que</p><p>sejam debatidos e aperfeiçoados:</p><p>Organização com os Insumos: A gestão e organização dos</p><p>insumos utilizados nas atividades de redução de danos,</p><p>preservativos e material educativo, requerem um cuidadoso</p><p>controle de estoque e distribuição e o fato do projeto ser em</p><p>período reduzido e muito dinâmico impediu tal organização;</p><p>139</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Abordagem com Pessoas Usuárias de K2 e K9: Presenciamos</p><p>jovens fazendo uso de K2 e K9, droga que anteriormente não era</p><p>tão comum, necessitando de um estudo específico sobre as</p><p>particularidades dessas substâncias e dos contextos em que são</p><p>utilizadas.</p><p>Dificuldade de Realizar Abordagem com Mulheres Vítimas de</p><p>Violência Doméstica: Mulheres em situação de violência</p><p>doméstica e em contexto de situação de rua acarreta na hiper</p><p>vulnerabilização da mulher, dificultando com que a equipe realize</p><p>o acolhimento e denúncia dos casos.</p><p>Falta de Assistência Médica no Território: Diminuição das visitas</p><p>do consultório na rua, medo e desconhecimento dos usuários</p><p>para chamarem os serviços públicos, além do fato do local ser</p><p>conhecido como fluxo de pessoas usuárias e marginalizadas,</p><p>dificulta a obtenção de assistência médica rápida e eficiente, até</p><p>mesmo em casos de emergência;</p><p>Equipe Reduzida: adversidades com a equipe, somado ao local de</p><p>fluxo contínuo, limitou a capacidade de atendimento e</p><p>acolhimento, tornando difícil alcançar um número maior de</p><p>pessoas e garantir um acompanhamento adequado.</p><p>Falta de Bebedouros e Banheiros Públicos: A falta de</p><p>infraestrutura básica, como bebedouros e banheiros públicos,</p><p>impactam diretamente a qualidade de vida das pessoas que</p><p>circulam na região.</p><p>Esses desafios são comuns em equipes de redução de danos e a</p><p>necessidade de listá-los é essencial para que possamos nos</p><p>aperfeiçoar. Em contrapartida, as atividades culturais que</p><p>realizamos no local desde o começo do ano continuam sendo uma</p><p>das melhores estratégias de redução de danos no território, pois</p><p>cria um ambiente mais acolhedor e de pertencimento, além de</p><p>fortalecer o vínculo entre as pessoas que estão em situação de rua e</p><p>os membros da equipe de redução de danos.</p><p>140</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Capacitação e atualização constante é essencial para que os</p><p>redutores de danos possam lidar com as demandas do dia-a-dia. É</p><p>fundamental que a equipe esteja preparada para lidar com essas</p><p>dificuldades, buscando soluções criativas e adaptativas para</p><p>garantir a eficácia de suas ações e o alcance de seus objetivos. O</p><p>fluxo é dinâmico e a cada ação no território surge um desafio que</p><p>temos que superar. Entretanto, sabemos que não é o suficiente e,</p><p>por conta disso, atuamos ativamente nos espaços públicos para</p><p>melhoria dos equipamentos públicos.</p><p>Reconhecimento e valorização do profissional redutor de danos,</p><p>consultório na rua, banheiros e bebedouros públicos são algumas</p><p>das demandas que não dependem apenas de nosso empenho.</p><p>Provocação ao poder público, mobilização política, articulação com</p><p>Defensoria Pública, Ministério Público e Poder Judiciário são alguns</p><p>dos exemplos de atuação que o DiV3rso tem feito para que</p><p>possamos superar os desafios listados.</p><p>A equipe, mesmo diante de tantas adversidades, atua sempre</p><p>oferecendo o melhor de si disponível no momento e se desdobra</p><p>para estar tanto nas ruas, quanto nos espaços públicos, com o fim</p><p>de levar aos espaços públicos as demandas daqueles que não são</p><p>ouvidos,, bem como promover a política do cuidado.</p><p>RDRD</p><p>“Há vários desafios, não há acesso a água ou</p><p>preservativos. Até mesmo no posto de saúde</p><p>local não deixam você entrar ou usar o banheiro.</p><p>O próprio Bom Prato sempre avisa que o</p><p>banheiro está quebrado para ninguém utilizar.</p><p>Contudo, há muitas potencialidades e coisas que</p><p>fazemos no Mercado que as pessoas gostam</p><p>muito e se sentem envolvidas. Por exemplo, o</p><p>carnaval, a festa junina e outras datas. Todos</p><p>super topam, e contribuem bastante nos</p><p>eventos, levando decorações e várias coisas.</p><p>Também têm os músicos da região que sempre</p><p>estão presentes, a galera ama música e muitos</p><p>vão lá por conta disso.” Lorrayne Moraes,</p><p>redutora de danos.</p><p>141</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Mantemos a intenção de se fazer presente nesta região há anos</p><p>vulnerabilizada e alvo da gentrificação. Existe o projeto de</p><p>revitalização da região para expansão portuária e para a passagem</p><p>do VLT, o que obviamente vai afetar a todos moradores e pessoas</p><p>que ali circulam e dormem em calçadas. Acompanhamos a retirada</p><p>das pessoas da conhecida “rua do meio”, que concentrava usuários</p><p>em intenso consumo de crack e que assim como as ações na região</p><p>da Luz em São Paulo nada contribuíram para a resolução das</p><p>questões, mas apenas espalharam a concentração de pessoas,</p><p>algumas vezes aumentando sua vulnerabilidade.</p><p>A importância de redutores de danos e da Universidade nesta</p><p>região é inquestionável. População alvo da violência de Estado,</p><p>vulnerabilizada e escassa de informação em relação aos seus</p><p>direitos, mas ao mesmo tempo interessada e ativa na busca por</p><p>acessá-los. Espaço com diversos equipamentos públicos que hora</p><p>atendem, hora dificultam este acesso. Levar cuidado, informação e</p><p>diversão é o que nos move, é o que acreditamos ser a maior</p><p>ferramenta para a superação de estigmas e preconceitos, até</p><p>mesmo algumas vezes das próprias pessoas ali envolvidas naquela</p><p>trama social. Seguimos construindo o saber coletivo da Redução de</p><p>Danos, nos abalando com tanto sofrimento, mas também nos</p><p>fortalecendo diante das belas linhas de resistência ali facilmente</p><p>percebidas com recursos tão simples.</p><p>RDRD</p><p>142</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>EQUIPE POP RUA - SÃO</p><p>VICENTE</p><p>DiV3rso ultrapassando fronteiras</p><p>físicas e afetivas: Atuação no município</p><p>de São Vicente</p><p>Em 2023 pela primeira vez o DiV3rso atuou na cidade de São</p><p>Vicente, cidade tão próxima de Santos, mas com diversas</p><p>peculiaridades. Uma cidade marcada pela história de ser uma das</p><p>primeiras da chegada da invasão portuguesa, por ter uma linda orla</p><p>da praia, lugares famosos e um abismo de desigualdades sociais.</p><p>Uma época marcada por violência urbana, violência policial e</p><p>desorganização dos espaços públicos de várias ordens nos limitou</p><p>um pouco na escolha do lugar de atuação e o local escolhido para as</p><p>ações foi a Praça 22 de Janeiro/Praça da Biquinha. Em frente à</p><p>bonita praia do Gonzaguinha, é uma região com grande circulação e</p><p>permanência de pessoas em situação de rua. Um “bom lugar para</p><p>manguear”, que são lugares com muitas câmeras e circulação de</p><p>pessoas, o que de alguma forma traz maior segurança para</p><p>a</p><p>população de rua em relação à violência que sofrem tanto de</p><p>população geral como de agentes públicos de segurança, assim</p><p>como a orla da praia de Santos. Entretanto, só é dessa forma pelo</p><p>“tipo de pessoas” que ali circula ou permanece, são usuários de</p><p>álcool.</p><p>Annie Louise Saboya Prado (Gigi)</p><p>Anthony Mina</p><p>Vinícius Farias Medeiros</p><p>143</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>A equipe conta que foi muito bem recebida pela população da</p><p>praça, foi muito fácil desenvolver o trabalho, como apoio de todas</p><p>pessoas envolvidas, inclusive carregando e montando a estrutura</p><p>junto com a equipe. Além de ser reconhecidamente uma população</p><p>tranquila, os próprios membros da equipe, suas vivências</p><p>anteriores, linguagem e abordagem facilitaram muito também.</p><p>“Essa praça é uma praça bem ampla e</p><p>fica na frente da praia e é próximo de</p><p>uma bica de água, então tem vários</p><p>atrativos para a população de rua. Ali se</p><p>concentra em geral as pessoas que</p><p>bebem. Geralmente as pessoas que</p><p>fazem uso de substância, não sei se é</p><p>certo dizer mais pesada, geralmente</p><p>elas ficam em lugares mais escondidos,</p><p>vão mais para a região central para</p><p>conseguir dinheiro e depois voltam,</p><p>mas a ali concentra o pessoal que bebe</p><p>e gosta muito do álcool.” conta o</p><p>redutor de danos Anthony Mina.</p><p>[“Eu sou redutor de danos aqui em</p><p>Santos, faço parte do coletivo, o</p><p>coletivo tem aqui em Santos, só que eu</p><p>já tinha minha caminhada, que eu já</p><p>tinha conseguido administrar o uso de</p><p>substância, e eu sempre passava ali</p><p>para o Centro Pop, as pessoas que</p><p>estão na rua, muitos me conhecem,</p><p>conheci todos, então eles sempre me</p><p>viram com a camisa amarelinha, e eu</p><p>entrava no Centro Pop, e vários</p><p>chegavam em mim e já viram a RD e</p><p>perguntavam o que era isso, e outras</p><p>pessoas também, chegavam com o</p><p>meu nome, perguntavam onde tinha,</p><p>então as pessoas já estavam sabendo</p><p>144</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>O público alcançado nessas ações de RD no território foi de</p><p>maioria homens cis, entre 25 e 50 anos. Após terem sido bem</p><p>acolhidas e respeitadas, algumas mulheres trans também se</p><p>aproximaram e começaram a participar das ações. São muitos</p><p>espaços burocráticos no cuidado com a população em</p><p>vulnerabilidade, filas, solicitação de diversos documentos, restrições</p><p>de horário, exigência de cadastros em aplicativos e plataformas</p><p>digitais, diversas barreiras de acesso que desestimulam essa</p><p>população a procurarem seus direitos.</p><p>Dificuldade de acesso à direitos básicos são comuns para a</p><p>população de rua, como a falta de acesso à água potável e banheiros.</p><p>Este também é um diferencial nesta praça e foi uma facilidade para a</p><p>equipe ter bastante água e poder incentivar esse hábito. As</p><p>atividades desenvolvidas na tenda montada na praça pela equipe</p><p>foram: distribuição de insumos (água, itens alimentícios,</p><p>preservativos, panfletos orientativos sobre ISTs e uso de drogas,</p><p>entre outros), atividades artísticas (pintura, confecção de cartazes,</p><p>outros) e música, onde a equipe levou instrumentos musicais e foi</p><p>uma atividade muito bem apreciada por todos e que revelou artistas.</p><p>um pouco, alguma coisa do DiV3rso que</p><p>existia alguma coisa de redução de</p><p>danos, não em São Vicente, mas na</p><p>Baixada Santista, em algum lugar, só</p><p>faltava chegar lá. Então, para chegar</p><p>neles isso foi muito fácil, a gente</p><p>chegou, montou uma barraca, colocou</p><p>ali os instrumentos musicais, as</p><p>canetinhas, a caixinha de música,</p><p>frutas, alguns insumos, camisinha,</p><p>alguns folhetos com informações.”</p><p>conta Anthony Mina.</p><p>145</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>São muitos sentimentos, até contraditórios, que se afloram nas</p><p>ações de RD nos territórios. É muito gratificante perceber como</p><p>breves e simples ações de acolhimento, orientação e lazer tocam tão</p><p>positivamente as pessoas. Ao mesmo tempo, é lastimável que estas .</p><p>“... acho que foram três ali que tocavam</p><p>violão, tinham outros instrumentistas,</p><p>pessoas que desenhavam, faziam</p><p>outros tipos de arte, e foi muito bom, e</p><p>rolou muita emoção, choro, um que</p><p>tocou violão, ficando tudo com a gente,</p><p>ele chorando, falava para mim que ele</p><p>precisava voltar a tocar, que ele não</p><p>aguentava mais a vida que ele vivia. Isso</p><p>daí ele falou pra gente, acho que foi no</p><p>primeiro ou no segundo dia de ação, o</p><p>cara já tava chorando e o detalhe, né,</p><p>quando eu tava na rua, eu já estive na</p><p>rua, eu não conversava muito com ele,</p><p>aliás eu não conversava nada, nem ia</p><p>muito com a cara dele e a vida propõe</p><p>essas coisas pra gente, a gente</p><p>aprender a acolher também, porque</p><p>até a gente que sofreu com a falta de</p><p>acolhimento, às vezes a gente não</p><p>consegue acolher. A gente saiu dessa</p><p>situação e não consegue acolher</p><p>aquele que ainda está naquela situação,</p><p>porque a gente sempre escutava que o</p><p>cara tá ali porque é vagabundo, não sei</p><p>o quê, então às vezes a gente até acaba</p><p>meio que pondo isso na nossa cabeça.</p><p>Então eu saí e tive que trabalhar isso</p><p>em mim, de entender que não é assim e</p><p>que eu não precisava ter essa dureza e</p><p>comecei a trabalhar isso”, Anthony</p><p>Mina relata.</p><p>RDRD</p><p>146</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>ações não sejam incorporadas de forma contínua pelos</p><p>equipamentos públicos de assistência à população vulnerável. Um de</p><p>nossos redutores de danos, natural do município e que atuou na</p><p>equipe de São Vicente, um jovem negro periférico que tem vivências</p><p>diversas na rua e do uso de drogas nos conta:</p><p>“O DiV3rso me mostrou muitas partes</p><p>da realidade mostrada de outro ângulo.</p><p>Conheci pessoas que me explicaram</p><p>coisas que abriram minha mente para</p><p>outro mundo e agora posso ir adiante.</p><p>As pessoas que ao longo das minhas</p><p>situações de vulnerabilidade eu</p><p>conheci, agora posso transmitir outras</p><p>formas de alegria, falar de Redução de</p><p>Danos. Pessoas desse mundo tão</p><p>diverso aqui em São Vicente que</p><p>conheceram o projeto se sentem tão</p><p>bem na presença do grupo e agora em</p><p>2024 não veem a hora de voltarmos. (...)</p><p>Talentos revelados, sorrisos felizes</p><p>arrancados, horas ou até minutos que</p><p>fizeram uma grande diferença, aquelas</p><p>horas ali já eram uma redução de</p><p>danos e do consumo. Pessoas que</p><p>anseiam pela volta da RD no território</p><p>mostram que não só na minha vida,</p><p>mas uma diferença pra geral, o nome</p><p>forte da Redução de Danos!” conta</p><p>Vinícius Farias Medeiros, redutor de</p><p>danos.</p><p>Crescemos territorialmente enquanto projeto de forma física e</p><p>subjetiva. Novos desafios, novas pessoas conhecendo a RD e se</p><p>interessando por sua expansão, nos mostrando mais uma vez como</p><p>a Redução de Danos é um caminho que faz tanto sentido para o povo</p><p>da rua, para as pessoas vulneráveis que sentem na pele a violência</p><p>147</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>de Estado, sua ausência, o preconceito e a falta de entendimento da</p><p>população geral sobre as causas e consequências de uma pessoa</p><p>que vive ou fica em situação de rua. Seguimos na motivação e</p><p>intenção de manter e expandir nossas ações nesse município cheio</p><p>de história e necessidades.</p><p>148</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Desenvolvemos neste semestre outra ação que foi a elaboração do</p><p>cuidado do nosso Laboratório Kwerá, que são práticas do cuidado</p><p>com a terra e de reconexão com as nossas ancestralidades,</p><p>buscando os cuidados por meio da medicina que a terra nos fornece.</p><p>Começamos o laboratório com mudas de aroeira, boldo, poejo,</p><p>melissa, erva-cidreira e arnica, e fizemos uma escala de cuidado.</p><p>Entendendo que o coletivo é co-responsável por essa manutenção e</p><p>de como a gente faz esse cuidado.</p><p>RDRD</p><p>EQUIPE GAM</p><p>Laboratório Kwerá</p><p>149</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Em um laboratório suplementar,</p><p>buscamos aprender práticas de</p><p>plantio, germinação e colheita, e</p><p>durante esse processo, com</p><p>algumas ervas que estavam à</p><p>nossa disposição, fomos</p><p>entendendo quais eram as</p><p>necessidades do grupo, quais</p><p>eram as principais dores e</p><p>angústias que queríamos de</p><p>alguma forma buscar uma</p><p>melhora por meio das plantas.</p><p>Esse foi um projeto desenvolvido em parceria com a comunidade</p><p>indígena de Piaçaguera, assim entendemos quais eram as nossas</p><p>limitações. Então partimos de um desejo inicial, entendendo que</p><p>precisávamos</p><p>de um espaço, mas que o mesmo não era ideal pro</p><p>nosso cultivo, foi um grande desafio inicial, e de como</p><p>sustentaríamos esse cuidado e manutenção. Haviam insetos ali e</p><p>questionávamos como seria a relação com esses outros seres que</p><p>fazem parte da natura, daquela biodiversidade. Entendemos que</p><p>Otaviano: “Os desafios estão sendo a falta de espaço, né? Porque a</p><p>gente tá tendo mudas, sementes variadas para poder tá plantando.</p><p>Quando se fala em plantar uma farmácia viva é porque são</p><p>remédios, então isso é uma planta que vai trazer vários</p><p>aprendizados para o pessoal da universidade, eles vão saber para</p><p>que vai servir aquela planta, para que serve um chá de boldo, para</p><p>que serve um chá de cidreira, porque se tiver o espaço para a gente</p><p>plantar essa será essencial. Inclusive aberto aos públicos, seria bom</p><p>que o pessoal pudesse entrar, fazer uma visita, ver aquele viveiro</p><p>bonito, se quiser alguma plantinha, um ‘cházinho’ tem para a gente,</p><p>eu acho que é muito promissor. As plantas são medicinais, como se</p><p>diz, os conhecimentos primordiais vem dos primitivos que são da</p><p>terra. A terra, ela fornece tudo pra gente, os melhores remédios. Às</p><p>vezes a gente busca numa farmácia uma coisa que você tem em</p><p>casa. Então é bom, eu acho que a farmácia viva é essencial pra gente!</p><p>A gente teve um bom conhecimento, foi promissor, dava pra ter feito</p><p>mais, porém achei que foi ótimo, porque tamo aprendendo a</p><p>conhecer mais dos valores da plantas. Então, isso é uma coisa que</p><p>tem que estar na universidade. O pouco que deu para a gente fazer</p><p>no semestre fizemos com dedicação, né? Para mim foi ótimo, a</p><p>gente pode melhorar ainda mais!”</p><p>RDRD</p><p>150</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>esses insetos não eram pragas, mas um diagnóstico.</p><p>O desafio inicial foi entender qual era a terra, quais eram as plantas</p><p>que precisavam de mais água e quais de mais Sol. Iniciamos em</p><p>busca de um conhecimento que o grupo não tinha, então sentimos a</p><p>necessidade de buscá-los através dos parceiros: a comunidade</p><p>indígena de Piaçaguera e o instituto Empodera.</p><p>Entendendo que a cidade de Santos é pavimentada e cheia de</p><p>concreto, essa busca por essa relação com a terra, com o cultivo, foi</p><p>algo que precisamos compartilhar entre nós, de quem tinha mais</p><p>conhecimento e poderia agregar por meio de outros saberes. Então,</p><p>Otaviano e Helena trouxeram vários conhecimentos vivenciais do</p><p>cuidados com as plantas e seus modos de uso.</p><p>RDRD</p><p>151</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Ângelo: “Um dos maiores desafios da formação foi trazer os</p><p>usuários dos serviços para conhecer a GAM. Muitos se interessam</p><p>em conhecer, mas o pessoal às vezes não consegue conciliar os</p><p>horários. Outro desafio que existe socialmente é que, geralmente,</p><p>em um atendimento médico, a população acaba acreditando que a</p><p>medicação é o único jeito de eles se curarem, como se não existisse</p><p>uma outra metodologia que vai lentamente criando um cuidado.”</p><p>RDRD</p><p>Formação com os profissionais da</p><p>RAPS de Santos</p><p>152</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Qual foi o maior desafio nessa formação dos profissionais?</p><p>Helena: “Acho que faltou diálogo entre os profissionais e os usuários</p><p>para que eles comparecessem juntos na formação. Eu acho que</p><p>depende mais do profissional do que do usuário. O usuário está indo</p><p>porque ele está precisando da saúde mental. E o profissional qual é o</p><p>interesse dele? Por conta disso que muitos não deram continuidade</p><p>na formação.”</p><p>RDRD</p><p>Helena: “Eu acho que na nossa formação da GAM, foi isso que</p><p>aconteceu, porque era para ter outras pessoas, né? Que nem nós do</p><p>DiV3rso que somos e fomos usuários de CAPS, entendeu? Muitos</p><p>profissionais não ligam para isso e não estão a fim disso. Mas com</p><p>certeza, se eles quisessem, os usuários iriam de bom gosto. Nós</p><p>começamos na GAM assim, nós vinha para GAM, fazia o uso da saúde</p><p>mental e aí que a gente viu que tinha efeito.</p><p>Mas eles, infelizmente, não querem saber disso, né? O bagulho é</p><p>muito louco.”</p><p>153</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Otaviano: “Acho que a formação dos profissionais, ainda mais na</p><p>saúde mental, teria que ter mais assistência e maior comunicação.</p><p>Você tem o direito de ter o medicamento, mas antes tem que haver a</p><p>assistência com a pessoa. Se você não falar com o usuário não tem</p><p>como tá falando de medicamento com ele. Se você só fornecer uma</p><p>receita pra ele, pode ser que ele nem use e apenas vá comercializar</p><p>para outras pessoas, isso acontece! Por isso a pessoa que tá na</p><p>formação tem que aprender a falar mais com os usuários. E</p><p>entender mais aquela possibilidade de vida. Tem que falar com o</p><p>usuário que não é bom usar o remédio e depois virar uma dose por</p><p>cima. Quem está na formação sobre o medicamentos, tem que estar</p><p>falando de tudo e pensar também em trocas possíveis, como alguma</p><p>camomila ou chá de hortelã, sem remédio. Entende? Por isso teria</p><p>que ter um local onde teria que ter uma medicação assistida. Onde o</p><p>usuário pudesse ficar ali, ver uma televisão, às vezes tomar seu</p><p>medicamento e tá ali.</p><p>A saúde é primordial no ser humano, não importa se de uma criança</p><p>a um velhinho, a saúde mental, ela se estende de um campo mundial,</p><p>ela tem um campo enorme.</p><p>Na minha fase de ‘louco’ eu já falei dos dias que cheguei a fumar K2,</p><p>uma droga sintética. Mas minha mente viu que aquela droga não é</p><p>compatível com a minha mente. Uma droga que me deixa fora de</p><p>órbita com um único trago. Então eu não falei disso com meu médico,</p><p>nem nada. Um cara que está na saúde mental ele já tem que chegar e</p><p>falar pro psiquiatra: ‘Ó, eu usei tal droga, entendeu?’. Porque assim é</p><p>melhor, a troca é a melhor coisa, mas às vezes eles não escutam. As</p><p>vezes é melhor tu puxar a ideia e deixar o cara falar, tu vai só</p><p>colhendo. Eu acho que isso vale muito.”</p><p>154</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Teria alguma observação ou crítica sobre a formação?</p><p>A falta de usuários na formação foi devido, em alguns casos, pela</p><p>falta de diálogo entre as duas pontas. Muitos usuários vão ao serviço</p><p>apenas para pegar receitas ou medicamentos e não há conversa ou</p><p>formação de vínculo. Os profissionais que já passam pelo</p><p>sucateamento em seus respectivos trabalhos, não conseguem fazer</p><p>esse contato com os atendidos e, consequentemente, este público</p><p>não acessa essa formação ou outros tipos de capacitações que</p><p>seriam benéficas para si mesmos.</p><p>A relação entre o usuário e a medicação depende da forma como é</p><p>feita a assistência. Apenas entregar a receita não garante</p><p>tratamento, uma vez que o usuário sem entender o processo pelo</p><p>qual passa acaba não tomando medicação, fazendo o uso de outras</p><p>substâncias em conjunto. Faz parte da formação profissional esse</p><p>processo de orientação, bem como espaços de maior acolhimento,</p><p>não apenas de instrução, mas de espaço dentro das unidades dos</p><p>serviços, onde a relação com a medicação tenha orientação e</p><p>cuidado.</p><p>Formar psiquiatra é fácil, o que falta é uma formação de qualidade,</p><p>que valorize o cuidado com os usuários, numa perspectiva</p><p>humanizada de cuidado com a saúde.</p><p>RDRD</p><p>REFLEXÕES SOBRE AÇÕES E</p><p>DIÁLOGOS DO GRUPO</p><p>155</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>EQUIPE INDÍGENA</p><p>Nhemonguetá renda</p><p>a morada das meditações</p><p>O projeto “Nhemonguetá renda, a morada das meditações” instituído</p><p>pelas mulheres, lideranças tupi-guarani, da Aldeia Tabaçu Rekó Ypy</p><p>no Território Indígena de Piaçaguera, em Peruibe, litoral sul de São</p><p>Paulo, Brasil, é um processo intenso de cura e fortalecimento do</p><p>feminino na comunidade.</p><p>O principal objetivo desta ação é fortalecer o Nhanderekó. Através</p><p>do trabalho comunitário, durante cinco mutirões foi iniciada a</p><p>bioconstrução da Nhemonguetá Renda, a morada das meditações.</p><p>Uma troca de conhecimentos tradicionais, técnicas de</p><p>permacultura e pesquisa científica resultaram no início da</p><p>edificação sustentável do espaço.</p><p>A jornada começou com a escolha do local, intuído pelos encantados</p><p>através da liderança espiritual Dora Dina. Depois da análise da</p><p>paisagem definiu-se que se faria uma base elevada, para diminuir o</p><p>contato com a umidade do solo, por ser uma área litorânea,</p><p>margeada por uma lagoa</p><p>e com predominância do bioma Mata</p><p>Atlântica, com ecótonos de restinga e manguezal.</p><p>Concomitante a instalação da base, iniciou-se o manejo sustentável</p><p>do bambu. Após a aquisição dos EPI’s para a segurança da equipe o</p><p>segundo mutirão, realizado de 06 a 08 de outubro, foi feita a colheita</p><p>de bambu da espécie conhecida como cana da índia (Phyllostachys</p><p>aurea), na lua minguante de novembro, nas touceiras dos territórios</p><p>indígenas próximo a praia. A matéria coletada ficou em secagem, no</p><p>futuro será feita a modelagem, com cintas, para as formas</p><p>circulares projetadas para a casa de cura.</p><p>156</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Novembro começou com o terceiro mutirão com a construção do</p><p>alicerce da Nhimonguetá, marcação, nível e fixação dos 9 pilares de</p><p>sustentação da casa. Em reunião de avaliação, Luciana traz o</p><p>histórico do projeto e a relação da Universidade com a Aldeia Tabaçu</p><p>Renda. Todos dão o depoimento de como o projeto está</p><p>reverberando em suas vidas. Ana Paula trás um relato dos desafios</p><p>do papel da liderança e os compromissos assumidos e as nossas</p><p>ações para o fortalecimento do coletivo.</p><p>Melissa e Vitor com o apoio do Projeto Arte Reverso, de política</p><p>reversa de resíduos sólidos, da Flex Foundation e o Instituto</p><p>Empodera realizaram uma oficina com 15 mulheres do programa</p><p>Conexão Musas para desmontar, medir, cortar, lixar e aparelhar</p><p>400 peças de paletes de 10cmX80cm para deck de madeira da</p><p>Nhimonguetá Renda, nas dependências da LUAR Votorantim, interior</p><p>de São Paulo. E a aplicação do deck feito, com reutilização de paletes,</p><p>foi iniciada no quarto mutirão, realizado no dia 18 de novembro.</p><p>Encerramos a primeira etapa dessa jornada no quinto mutirão,</p><p>realizado no dia 02 de dezembro, com a continuidade da</p><p>implementação do piso de madeira. Também foi iniciado a colheita de</p><p>bambu Mossô, na lua minguante, em Piedade-SP para a próxima</p><p>etapa do projeto. Raquel Barros, do Instituto Empodera, captou</p><p>recursos para viabilizar o transporte dos materiais de Piedade até</p><p>Peruíbe. Vale ressaltar que essa ação é permacultural, por utilizar</p><p>técnicas de bioconstrução.</p><p>A partir destes conhecimentos e das tecnologias sociais, a</p><p>sustentabilidade do bambu e os saberes ancestrais foi desenvolvida</p><p>a metodologia aplicada no projeto para toda a comunidade e todas</p><p>as gerações.</p><p>Destaca-se o fato de lideranças mulheres, Morubixaba, Xeramoi e</p><p>Xondarias na gestão do projeto e da comunidade. Awete Katú</p><p>Nhanderu, os encantados e os seres das estrelas pelo povo tupi-</p><p>guarani e as cosmovisões e bem viver dos povos originários de Aby</p><p>Ayala.</p><p>157</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Os parceiros</p><p>Esse projeto foi viabilizado com recursos de emenda parlamentar da</p><p>Deputada Federal Sâmia Bomfim por meio do DiV3rso, da UNIFESP e</p><p>parceria com o Instituto Empodera.</p><p>O Instituto Empodera, fundado em 2008, é uma organização da</p><p>sociedade civil, a qual tem por finalidade a promoção da integração</p><p>social, a formação e capacitação de pessoas em modelos inovadores</p><p>de atenção e redução de danos, o fortalecimento da articulação</p><p>entre as organizações da sociedade civil, a promoção de seminários,</p><p>eventos e encontros de estimulação das comunidades; o</p><p>fortalecimento das redes formadas por organizações da sociedade</p><p>civil e desenvolver estratégias de formação inovadoras em</p><p>desenvolvimento de negócios inclusos para a população vulnerável.</p><p>Tem como missão oferecer metodologias e ferramentas inovadoras</p><p>que possibilitem a formação e o desenvolvimento de habilidades e</p><p>competências para que grupos ou indivíduos possam produzir, criar</p><p>e gerir sua vida e sua comunidade e serem multiplicadores da</p><p>proposta do Tratamento Comunitário. E a visão de ser referência em</p><p>Tratamento Comunitário, através da formação de pessoas e grupos</p><p>para atuarem na redução do sofrimento social no Brasil e América</p><p>Latina (Rede RAISSS), sobretudo aos usuários de drogas.</p><p>https://www.institutoempodera.org.br/</p><p>158</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>https://www.institutoempodera.org.br/</p><p>RDRD</p><p>159</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>160</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>“Estava sentindo uma energia muito positiva e amei o lugar também</p><p>Senti também que vai ser uma troca de experiência muito boa. Não</p><p>vejo a hora de está pronto para mim ir lá quando eu quiser meditar.</p><p>Sinto que estou precisando de um lugar como casa de cura. Aweté</p><p>Katu” - Arã Poty.</p><p>RDRD</p><p>Caminhada de fortalecimento com</p><p>depoimentos da equipe da aldeia</p><p>161</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>“Fiquei impactado com o conceito de permacultura, achei que era só</p><p>a bioconstrução mas na verdade tem todo um ciclo natural</p><p>envolvido que não fazia ideia, muito enriquecedor desses</p><p>conhecimentos, desde já agradeço por poder participar e</p><p>aguardando os próximos encontros. Awete katu”, Kelvin (Voluntário).</p><p>“A permacultura é um modo de viver em harmonia com a natureza e</p><p>tudo que há nela, utilizando os recursos que ela nos proporciona</p><p>para manter um ambiente de paz, tudo isso preservando sem</p><p>danificar nosso planeta”, Jakison (Voluntário)</p><p>“No dia 2 de agosto de 2023 foi o primeiro encontro presencial com a</p><p>equipe da Tekoa Tabaçu e a equipe de Santos e com a Melissa do</p><p>Instituto Empodera, tudo acontecendo tão rápido na construção</p><p>desse lugar tão sagrado nhimongueta renda. Momento marcante</p><p>esse dia, ao saber que um projeto que nos apoia no fortalecimento</p><p>do nosso modo de vida, aqui na Tekoa Tabaçu que vem fortalecendo</p><p>o cuidado com seres vivos, pessoas, animais, natureza. Saber que</p><p>tem tantas pessoas com o mesmo cuidado nesse tempo tão difícil e</p><p>corrido de desamor e de julgar. Saber que todos que estão nessa</p><p>caminhada desse projeto tem o mesmo olhar de cuidar e amar,</p><p>sinto-me acolhida e sei que não estou sozinha nesse aprendizado,</p><p>muitos portais nesse dia abriram para receber essa nossa fala,</p><p>sentimentos e cantos. Tenho certeza que o universo e os ancestrais</p><p>nos dará força sabedoria para que sejamos um caminho de cura.</p><p>Nhandereko tabaçupygua Awete katu”, Kunha Gwyrapendju (Paula)</p><p>RDRD</p><p>162</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>“Tivemos nosso último encontro de trabalho do mutirão, eu ajudei na</p><p>cozinha com a preparação do alimento para todos, em alguns</p><p>momento indo até o local da construção muito feliz pela ação do dia .</p><p>Awete”. Morontin Ty</p><p>RDRD</p><p>163</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>“Os dias que nos encontramos para fazer as ações têm sido de</p><p>muitos aprendizados, tanto na parte física e no emocional. O</p><p>aprendizado sobre cada detalhe do processo da bioconstrução tem</p><p>sido para mim um poderoso conhecimento que eu ainda não sabia,</p><p>mas porém esse conhecimento já era dos meus ancestrais, e fico</p><p>muito feliz em pode fortalecer esse conhecimento no carregamento</p><p>das madeiras, bambus as aplicações de alguns produtos e assim pra</p><p>ter mais resistência.</p><p>RDRD</p><p>164</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Em mutirão fazemos</p><p>trabalho de formiguinha.</p><p>Assim todos nós fazemos</p><p>nosso melhor. Cada um no</p><p>seu tempo. Na sua força, e</p><p>assim conseguimos nesse</p><p>dia finalizar. Nosso dia com</p><p>gratidão. Nhimongueta</p><p>renda é um encontro</p><p>comigo mesma”. Silvana</p><p>Fernandes Arapoty</p><p>Saiba mais sobre Nhimongueta renda através de</p><p>nosso canal do YouTube, clicando no link abaixo:</p><p>https://youtu.be/PgdiRFQ-k4E</p><p>https://youtu.be/PgdiRFQ-k4E</p><p>AUTORESAUTORES</p><p>RDRD</p><p>Ana Lúcia Zaher Cabral Cordeiro</p><p>Assistente Social, há 32 anos, pós graduada em Saúde e Docência. Há 26</p><p>anos trabalha com prevenção às IST/HIV/HV. Atualmente servidora</p><p>pública dos municípios de Santos e Guarujá, com experiência em:</p><p>projetos de prevenção às populações prioritárias; coordenação local do</p><p>Estudo Multicêntrico do Condom feminino (São Vicente/1999); supervisão</p><p>de Agentes de Prevenção em campos de populações chave; atuação no</p><p>Projeto Viva Melhor Sabendo – MS/ONGs; capacitação para dispensação</p><p>de auto teste anti HIV (MS); facilitadora de Capacitação em</p><p>Aconselhamento para rede de saúde; Aconselhadora do CTA (Centro de</p><p>Testagem e Aconselhamento).</p><p>Ângelo Galdino da Silva</p><p>Redutor de danos; extensionista do Grupo</p><p>de Estudos, Pesquisa e</p><p>Extensão DiV3rso; estudante do curso de Serviço Social na Universidade</p><p>Federal de São Paulo (UNIFESP, Baixada Santista); integrante do</p><p>Observatório Internacional de Práticas de Gestão Autônoma da</p><p>Medicação (GAM). Ex-morador de rua e atualmente se encontra na casa</p><p>de acolhimento. É usuário de álcool e outras drogas e faz</p><p>acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas</p><p>(CAPS-AD).</p><p>Annie Louise Saboya Prado (Gigi)</p><p>Psicóloga, Redutora de Danos e Professora de Yoga e Meditação. Tem</p><p>experiência em políticas públicas do SUAS e SUS e atua com Psicologia</p><p>Clínica e em projetos comunitários. Conselheira do CRP SP - Conselho</p><p>Regional de Psicologia. Membra, do Grupo de Estudos, Pesquisa e</p><p>Extensão DiV3rso: Redução de Danos, Saúde Mental e Direitos Humanos,</p><p>da Unifesp, campus Baixada Santista. Militante antimanicomial e</p><p>antiproibicionista.</p><p>ANTHONY MINA</p><p>Homem trans, redutor de danos do Grupo de Estudos, Pesquisa e</p><p>Extensão DiV3rso da Unifesp, Conselheiro do Conselho Municipal sobre</p><p>Drogas e do Conselho Municipal de Assistência Social de São Vicente - SP.</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>BIANCA ROMÃO</p><p>Mulher Trans, profissional do sexo, redutora de danos do Grupo de</p><p>Estudos, Pesquisa e Extensão DiV3rso da Unifesp e ex-participante do</p><p>projeto Transcidadania em S��o Paulo.</p><p>RDRD</p><p>Dênis Petuco</p><p>Redutor de danos e sociólogo, é pesquisador em saúde pública no</p><p>Laboratório de Educação Profissional em Atenção à Saúde da Escola</p><p>Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz</p><p>(LABORAT/EPSJV/Fiocruz). Trabalha com Redução de Danos e cuidado de</p><p>pessoas que usam álcool e outras drogas desde o início dos anos 2000. É</p><p>autor do livro “O Pomo da Discórdia? Drogas, Saúde, Poder”.</p><p>Douglas Martins</p><p>Homem preto, filho e neto de nordestinos, terapeuta ocupacional,</p><p>estudante de cotidiano. Pesquisador do uso adulto de maconha e seus</p><p>impactos. Redutor de danos e membro do grupo pesquisa e extensão</p><p>Div3rso: Saúde Mental, Redução de Danos e Direitos Humanos. Tutor do</p><p>grupo Gestão Autônoma de Medicamentos (GAM) na cidade de Santos-</p><p>SP. Membro do Observatório Internacional de Práticas GAM.</p><p>Eroy Aparecida da Silva</p><p>Psicoterapeuta Familiar e Comunitária, Doutora e Ciências Depto de</p><p>Psicobiologia-Psicóloga AFIP. Pós-Doutoranda ENSP/Laps/FIOCRUZ.</p><p>Ativista Social área Direitos Humanos. Autora de vários livros na área de</p><p>drogas psicoativas.</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>ezequias Rocha</p><p>Homem preto, redutor de danos do Grupo de Estudos, Pesquisa e</p><p>Extensão DiV3rso da Unifesp, integrante do Observatório Internacional</p><p>de Práticas de Gestão Autônoma da Medicação (GAM).</p><p>Fábio Mesquita</p><p>Médico, Doutor em Saúde Pública (Epidemiologista) e trabalha com HIV</p><p>desde 1987. Fundador e primeiro vice-presidente da Associação</p><p>Internacional de Redução de Danos, implantou a primeira iniciativa de RD</p><p>da América Latina em Santos em 1989. Foi Diretor do então</p><p>Departamento de IST/AIDS e Hepatites Virais do Ministério da Saúde no</p><p>Governo de Dilma Rousseff e trabalhou na Organização Mundial da</p><p>Saúde (OMS) fora do Brasil por 12 anos. Atualmente é Professor Afiliado</p><p>da UNIFESP no Campus Baixada Santista.</p><p>RDRD</p><p>Juliana Vicente de Freitas</p><p>Psicóloga, redutora de danos, especialista em dependência química e</p><p>mestranda no Programa de Mestrado Profissional Ensino em Ciências</p><p>da Saúde (Unifesp). Foi militante da Rede Nacional de Feministas</p><p>Antiproibicionistas (RENFA). Membra do Grupo de Estudos, Pesquisa e</p><p>Extensão DiV3rso, da Unifesp, campus Baixada Santista. Pesquisadora</p><p>em gênero, raça, classe e redução de danos pela perspectiva da</p><p>interseccionalidade. Supervisora clínica de casos relacionados ao uso de</p><p>drogas.</p><p>Katharina Basílio do Rosário</p><p>Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal de São Paulo</p><p>(UNIFESP). Atua como extensionista no Grupo de Estudos, Pesquisa e</p><p>Extensão DiV3rso como comunicadora e redutora de danos. Estagiária</p><p>na equipe centro do Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) na</p><p>Secretaria de Saúde de Santos.</p><p>Larissa Neves</p><p>Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA),</p><p>mestranda em Estudos Étnicos e Africanos no Programa Multidisciplinar</p><p>em Estudos Étnicos e Africanos - Pós-Afro/UFBA. Atua como</p><p>pesquisadora na Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas e</p><p>na Rede de Observatórios de Segurança.</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Docente e Pesquisadora do Departamento de Políticas Públicas e Saúde</p><p>Coletiva e do Programa de Pós-Graduação Ensino em Ciências da Saúde,</p><p>da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Campus Baixada</p><p>Santista; Líder do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão DiV3rso: Saúde</p><p>Mental, Redução de Danos e Direitos Humanos; Coordenadora do Centro</p><p>Regional de Formação em Políticas sobre Drogas e Direitos Humanos</p><p>(CRF); Vice-coordenadora do PharMacon: Observatório do uso de</p><p>medicamentos, maconha e outras drogas; Vice-coordenadora do</p><p>Observatório Internacional das Práticas de Gestão Autônoma da</p><p>Medicação (GAM). Compôs a equipe da Coordenação Nacional de Saúde</p><p>Mental, Álcool e outras drogas do Ministério da Saúde. Foi Diretora de</p><p>Saúde do Município de Jundiaí-SP, Coordenadora de Saúde Mental no</p><p>Processo de Desintitucionalização de Sorocaba-SP. Foi consultora da</p><p>Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça.</p><p>Luciana Togni de Lima e Silva Surjus</p><p>RDRD</p><p>Lorrayne Moraes</p><p>Mulher trans negra de 36 anos. Atualmente redutora de danos no Grupo</p><p>de Estudos, Pesquisa e Extensão DiV3rso.</p><p>Nêmara de Araújo Vianna</p><p>Artesã das fibras e das palavras, antropóloga, redutora de danos,</p><p>feminista antirracista, educadora popular e assistente de formação da</p><p>Escola Livre de Redução de Danos.</p><p>Raquel Baptista Spaziani</p><p>Psicóloga, doutora em Educação Escolar (Unesp). Professora adjunta da</p><p>Universidade Federal de São Paulo, Instituto de Saúde e Sociedade, e</p><p>docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação</p><p>Sexual da Unesp Araraquara. Líder do Núcleo de Estudos de Gênero e</p><p>Feminismos (GEFEMS).</p><p>Renato Filev</p><p>PhD, neurocientista. Pós-doutorando pelo Programa de Pós-graduação</p><p>em Psiquiatria da UNIFESP/EPM. Coordenador Científico da Plataforma</p><p>Brasileira de Política de Drogas. Diretor Científico da Associação</p><p>CANAPSE - Canabiologia, Pesquisa e Serviços.</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Morador do município de São Vicente, redutor de danos integrante do</p><p>grupo de pesquisa e extensão DiV3rso na Unifesp</p><p>Vinícius Farias Medeiros</p><p>Redução de DanosRedução de Danos</p><p>como Políticacomo Política</p><p>Decolonial:Decolonial:</p><p>Enfretamento coletivo eEnfretamento coletivo e</p><p>amoroso aos efeitos daamoroso aos efeitos da</p><p>guerra às drogas sobreguerra às drogas sobre</p><p>populações em situaçãopopulações em situação</p><p>de vulnerabilidadede vulnerabilidade</p><p>da Justiça, no raio que o parta, que eu não</p><p>tô nem aí” . Movimentos sociais seguem em luta pelo cessar fogo,</p><p>pelas investigações e pela reparação por tamanha dor.</p><p>No entanto, a esperança se faz verbo por aqui, e seguimos então</p><p>mobilizados, ocupando os espaços de controle social, escolas,</p><p>universidade, audiências, conferências e tantos outros espaços que</p><p>tanto estranham quanto acolhem tais movimentos. Esperamos que</p><p>a partilha feita por meio desse ebook, inspire e reafirme as</p><p>pequenas revoluções cotidianas que, por efeito de contágio, possam</p><p>propagar mudanças macropolíticas nas políticas sobre drogas, em</p><p>direção a garantia dos direitos humanos e à equidade de</p><p>oportunidades, fazendo de nossas cidades, estado e país, lugares de</p><p>vida, amor e liberdade.</p><p>18</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>REFERÊNCIAS:</p><p>GAGO V. A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. São</p><p>Paulo: Editora Elefante: 2020.</p><p>hooks b. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra.</p><p>São Paulo> Elefante, 2019.</p><p>hooks b. Ensinando a Transgredir. A educação como prática da</p><p>liberdade. 2a Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2020.</p><p>MIRIMDJU AA. A colonização e o encontro com a Redução de Danos.</p><p>In: SURJUS LTLS, SILVA PC. Redução de danos: Ampliação da vida e</p><p>materialização de direitos. Santos: Unifesp, 2019.</p><p>MIRIMDJU A, ALVES BYP; COLPANI JR; NASCIMENTO KM; PYKÁ MIRIM A;</p><p>KUNUMINDJU A, GWYRAPENDJU K. O caminho. In: SURJUS LTLS,</p><p>PASSADOR LH. Por uma Redução de Danos Decolonial. Santos:</p><p>Unifesp, 2021.</p><p>SURJUS LTLS, PASSADOR LH. Por uma Redução de Danos Decolonial.</p><p>Santos: Unifesp, 2021.</p><p>SURJUS LTLS, et al. Adolescências e Drogas: uma visada a partir da</p><p>Redução de Danos. In Fernandes, A., Tano, B. L., Cid, M. F. B. &</p><p>Matsukura, T. S. Saúde Mental de Crianças e Adolescentes e Atenção</p><p>Psicossocial. São Paulo: Editora Manole, 2021.</p><p>19</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>PARTE 1PARTE 1</p><p>Formação eFormação e</p><p>SaberesSaberes</p><p>RDRD</p><p>Cuidado em</p><p>Liberdade</p><p>Eu penso que é um conjunto de fatores que pode ocasionar as</p><p>pessoas a usarem drogas. Tudo vai depender do contexto em que</p><p>possa estar vivenciando, pode ser por diversão, para sair um pouco</p><p>da rotina, ou devido às condições de vida, pois existem as pessoas</p><p>que vivem em situação de vulnerabilidade social e em situação de</p><p>rua. Ressalto isso pois são as que mais passam por discriminação</p><p>quando se fala em drogas, tem muita relação com a questão social,</p><p>por isso a importância de políticas públicas que assegurem o direito</p><p>de todos, já que é crescente o número de pessoas nessas condições.</p><p>Olhando dessa forma, eu como usuário de álcool e outras drogas e</p><p>que também faz acompanhamento no CAPS-AD, comecei a tomar</p><p>medicamentos psicotrópicos e, atualmente, me encontro na casa de</p><p>acolhimento em Santos - Seabrigo - coordenado pela psicóloga</p><p>Rosana.</p><p>Vivemos em uma sociedade que não compreende que os</p><p>julgamentos e o desprovimento de emprego e moradia, podem</p><p>ocasionar a falta de perspectiva na vida, gerando o uso e/ou abuso</p><p>de álcool e outras drogas, pois muitas das vezes não conseguem</p><p>apoio perante o poder público para melhorar a qualidade de vida.</p><p>Estava fazendo uso abusivo de álcool e outras drogas, vivendo em</p><p>situação de rua e não tinha perspectiva de melhoras. Até que</p><p>conheci a redução de danos através do meu amigo Edilson,</p><p>conhecido como "Seu Jardim", onde consegui apoio do Grupo de</p><p>Estudos, Pesquisa e Extensão DiV3rso da UNIFESP Baixada Santista,</p><p>Ângelo Galdino da Silva</p><p>21</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>coordenado pela minha amiga e professora Luciana Surjus. Assim,</p><p>melhorei minha qualidade de vida, pois foi me possibilitado outras</p><p>oportunidades sem precisar parar de usar drogas, fui reduzindo e</p><p>melhorando a minha qualidade de vida nos estudos, como uma</p><p>estratégia de cuidado. Hoje, uma das minhas metas é me formar</p><p>assistente social.</p><p>Quero falar também da Gestão Autônoma da Medicação (GAM).</p><p>Quando falamos em drogas sempre pensamos nas ilícitas, mas</p><p>temos que pensar nos psicotrópicos, pois são as que estão</p><p>prescritas e que também podem causar dependência. Na maioria</p><p>das vezes, estas são sempre indicadas para usuários de drogas</p><p>ilícitas como um meio de tratamento através de um diagnóstico e,</p><p>muitas vezes, em comunidades terapêuticas - que, particularmente,</p><p>acho que não trata ninguém. Então, penso que nesses casos seria</p><p>trocar uma droga pela outra e a GAM vai nos mostrar outras</p><p>possibilidades de cuidado que vai além da medicalização, sendo uma</p><p>alternativa de cuidado para quem faz uso e abuso de drogas.</p><p>Finalizando, enfatizo uma frase que está no Guia GAM, para quem</p><p>possa achar que usuários de drogas têm algum diagnóstico: "Eu sou</p><p>uma pessoa e não uma doença".</p><p>Referências Bibliográficas</p><p>1. OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DE PRÁTICAS DE GESTÃO</p><p>AUTÔNOMA DA MEDICAÇÃO. Site: .</p><p>2. GUIA DA GESTÃO AUTÔNOMA DA MEDICAÇÃO - GAM. Rosana Teresa</p><p>Onocko Campos; Eduardo Passos; Erotildes Leal; Analice Palombini;</p><p>Octavio Serpa et al. DSC/FCM/UNICAMP; AFLORE; IPUB/UFRJ; DP/UFF;</p><p>DPP/UFRGS, 2012. Disponível em: .</p><p>22</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>https://observatoriogam.unifesp.br/</p><p>https://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/files/paganex/guia_gam_para_dowload_com_correcoes.pdf</p><p>RDRD</p><p>Por que as pessoas</p><p>usam drogas ?</p><p>Dênis Petuco</p><p>O que move uma pessoa em direção à droga está,</p><p>na origem, muito perto do que levou o homem a</p><p>se debruçar sobre o microscópio, ou a olhar</p><p>através de um telescópio - o mesmo que</p><p>impulsionou tantos em direção ao sextante, aos</p><p>mares bravios, às aventuras espaciais. Esse</p><p>movimento de expansão, que nos empurra às</p><p>grandes descobertas, afrontando o desafio do</p><p>desconhecido, é parte do arsenal que nos fez</p><p>humanos - reflexo do desejo de conhecer sempre</p><p>mais, da ousadia de romper limites. Brota da</p><p>sensação de desconforto de viver uma só vida,</p><p>dentro de uma única pele. (Lídia Rosenberg</p><p>Aratangy)</p><p>Sempre lembro deste texto de Lídia Aratangy quando me</p><p>perguntam sobre o que leva às pessoas a se jogarem em corajosas</p><p>experiências com uso de drogas. E neste ponto, talvez fosse</p><p>interessante registrar que demorei-me a escolher entre “corajosas”</p><p>e “destemidas”. E não, não se trata de ausência de medo, ainda mais</p><p>em tempos de discurso preventivo pródigo em sua produção; trata-</p><p>se, isto sim, de coragem para correr riscos e enfrentar temores,</p><p>que de naturais não têm nada.</p><p>Mas onde eu estava mesmo? Ah, sim! A epígrafe de Lídia Aratangy!</p><p>Gosto de pensar que, em suas primeiras experiências, as pessoas</p><p>que usam drogas assemelham-se a desbravadores diante de céus e</p><p>mares nunca dantes navegados. Afinal, tanto uns quanto os outros</p><p>vivem/viveram suas experiências em um ambiente formatado por</p><p>discursos indutores de medo, que de muitas formas são/eram</p><p>inseparáveis da própria aventura. Dito de modo poético,</p><p>parafraseando sagradas escrituras: no princípio era a curiosidade, e</p><p>a curiosidade se fez carne, vida e história.</p><p>23</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Este ponto de partida me interpela de diferentes maneiras. Penso</p><p>inicialmente sobre o quanto nós, adultos, temos uma triste</p><p>tendência à desconexão com nossas adolescências. E assim vão os</p><p>mais velhos, por exemplo, a caçoar das primeiras dores de amor que</p><p>põe meninas e meninos a chorar. Felizmente o amor ainda me</p><p>comove, mas certo de que nunca com a mesma intensidade com que</p><p>fui tomado aos 13 ou 14 anos. No caso dos usos de drogas, tomados</p><p>como objeto de estudo, percebo um certo movimento de</p><p>sobreposição de camadas de significado que terminam por deixar a</p><p>curiosidade láááááá no fundo, quase esquecida. E penso também no</p><p>que isto pode dizer às pessoas e organizações envolvidas com ações</p><p>de prevenção. Afinal, se o impulso à experiência com drogas está</p><p>perto daquilo que nos levou às maiores descobertas, convém</p><p>interrogar: que discursividades poderiam proteger jovens diante</p><p>dos riscos associados aos usos, sem lhes diminuir em nada sua</p><p>maravilhosa e necessária curiosidade? Certamente não será por</p><p>meio de abordagens</p><p>que posicionam pessoas que usam drogas</p><p>como zumbis em cenários, figurinos e maquiagens de filmes de</p><p>terror. Aceitar tais provocações, parece-me, nos afasta do modelo</p><p>preventivo tradicional, e nos aproxima de vertentes</p><p>problematizadoras da educação sobre drogas.</p><p>Então, como primeiro ponto, temos a curiosidade. Lembrar dela,</p><p>não desprezá-la, e libertá-la das muitas camadas de significado com</p><p>que diferentes construtos teóricos tentaram (ainda tentam) sepultá-</p><p>la. Valorizá-la em seu solo mais privilegiado, a saber: a própria</p><p>juventude. Reconstituir as pontes de memória e de afeto que</p><p>permitem nos reconectar aos jovens de hoje, e aos jovens que um</p><p>dia fomos, com acolhimento, respeito e amorosidade. Piegas? Sim,</p><p>pode ser. Que seja.</p><p>Mas a curiosidade não é auto generativa. Como sentir-se</p><p>impulsionado a experiências das quais jamais se ouviu falar? Antes</p><p>de navegar por mares bravios, o cais e a praia; antes das viagens</p><p>espaciais, o telescópio e verrugas nos dedos que apontam estrelas.</p><p>24</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>E antes do uso de drogas, há o saber que drogas há. Mas, como</p><p>ficamos sabendo disso? Sobretudo em nosso meio social, onde nos</p><p>deparamos com os usos de drogas de nossos amigos e familiares.</p><p>Mas não só; há também os produtos da mídia, e há os discursos</p><p>preventivos. Em cada um destes territórios, diferentes formas de</p><p>evocar usos de drogas.</p><p>Neste ponto, quero partilhar duas lembranças inescapáveis.</p><p>Primeiro: cenas de alguma novela em que um homem adulto branco</p><p>chega em casa depois do trabalho, e é recebido por sua esposa com</p><p>um copo de whisky com gelo. O sujeito senta-se em uma confortável</p><p>poltrona, bebe um gole e solta um longo suspiro, eventualmente</p><p>acompanhado por um discreto gemidinho de prazer. Segundo: um</p><p>livro sobre drogas recheado do típico discurso preventivista da</p><p>Ditadura Civil-Militar brasileira, com capítulos dedicados a diferentes</p><p>drogas e exuberantes descrições de efeitos (SCHMIDT, 1979). O</p><p>resultado? Uma íntima certeza: assim que pudesse, eu iria me</p><p>submeter àquele tipo de experiência. “Hollywood nos viciou em</p><p>cigarros, e hoje não se pode fumar em nenhum lugar de Los</p><p>Angeles”, reclama Jim Jarmusch ao dono de tabacaria vivido por</p><p>Harvey Keitel no genial “Blue in the Face” (WANG & AUSTER, 1995).</p><p>Foucault, ao falar sobre sexo, diria algo semelhante, com mais</p><p>precisão e menos poesia:</p><p>Século XVII: seria o início de uma época de</p><p>repressão própria das sociedades chamadas</p><p>burguesas, e da qual talvez ainda não</p><p>estivéssemos completamente liberados.</p><p>Denominar o sexo seria, a partir desse momento,</p><p>mais difícil e custoso [...]. Sem mesmo ter que dizê-</p><p>lo, o poder moderno obteria que não se falasse</p><p>dele, exclusivamente por intermédio de</p><p>proibições que se completam mutuamente:</p><p>mutismos que, de tanto calar-se, impõem o</p><p>silêncio. Censura. Ora, considerando-se esses</p><p>três últimos séculos, em suas contínuas</p><p>transformações, as coisas aparecem bem</p><p>diferentes: em torno e a propósito do sexo há</p><p>uma verdadeira explosão discursiva. (FOUCAULT,</p><p>1988, p. 21)</p><p>25</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Não se pode falar sobre drogas. Isto ficou patente há não muitos</p><p>anos, quando vivemos dezenas de tentativas de proibir a realização</p><p>de Marchas da Maconha em todo Brasil. Era como se o Estado</p><p>dissesse que o direito de participação política, reconquistado com o</p><p>fim da Ditadura Civil-Militar, não se aplicava quando o tema era</p><p>política de drogas. E não é de hoje que o campo político-reflexivo das</p><p>drogas é abrigo para os dejetos que insistem em escapar da lata de</p><p>lixo da história: em 1958, 13 anos depois da derrocada do nazismo e</p><p>consequente ruína do discurso eugênico, o diretor do</p><p>Departamento de Educação Sanitária do Ministério da Saúde,</p><p>Irabussú Rocha, ainda se sentia à vontade para dizer que a maconha</p><p>seguia “desafiando àqueles que se dedicam à eugenia da raça”</p><p>(ROCHA, 1958).</p><p>Mas, será mesmo que não se pode falar sobre drogas? Uma</p><p>rápida olhadela no mundo real permite afirmar o oposto. Afinal,</p><p>nunca se falou tanto sobre drogas. Nos meios de comunicação, nas</p><p>ruas, nos bares, nos programas de entrevista, na fila da padaria, no</p><p>Congresso Nacional, nas campanhas eleitorais... Fala-se de drogas o</p><p>tempo todo! Temos um paradoxo então? Mais uma vez, é Foucault</p><p>quem explica:</p><p>Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer</p><p>tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer</p><p>circunstância, que qualquer um, enfim, não pode</p><p>falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da</p><p>circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do</p><p>sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de</p><p>interdições que se cruzam, se reforçam ou se</p><p>compensam, formando uma grade complexa que</p><p>não cessa de se modificar. (FOUCAULT, 1996, p. 9)</p><p>Sim, fala-se de drogas o tempo todo, mas não de qualquer jeito e</p><p>por qualquer pessoa. Um exemplo de discursividade interdita diz</p><p>respeito às experiências bem-sucedidas, prazerosas e sem</p><p>consequências adversas; que o diga qualquer pessoa que já ousou</p><p>ferir este acordo tácito. Claro que existem territórios em que o</p><p>campo do dizível é mais largo, como música, teatro, cinema, sala de</p><p>aula... E mesmo aí as coisas podem ficar complicadas, como percebe-</p><p>26</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>ram os músicos do Planet Hemp em 1997. E seria ingênuo acreditar</p><p>que este regime discursivo não constitui ou pelo menos influencia</p><p>experiências. Em resumo: a curiosidade que impulsiona jovens em</p><p>direção ao uso de drogas não surge no vácuo, mas em determinados</p><p>ambientes discursivos (contextos) que determinam, em maior ou</p><p>menor grau, as próprias experiências. Impossível não ser</p><p>atravessado por cotidianos enunciados a falar de morte, crime, dor,</p><p>polícia, perda de autonomia, isolamento social, derrota, ruína, prisão,</p><p>loucura... E mesmo assim, contra todas as expectativas, curiosas e</p><p>corajosas, as primeiras experimentações seguem acontecendo, ano</p><p>após ano, geração após geração.</p><p>É necessário, pois, afirmar um meio do caminho entre a paixão e o</p><p>horror. Fugir tanto do “não dá nada” quanto do “vicia na primeira</p><p>dose”. E em que pesem todas as descabidas acusações, é este o</p><p>lugar que vem sendo meritoriamente ocupado pelas propostas</p><p>afinadas com a lógica da Redução de Danos (RD). Sim, é verdade que</p><p>as experiências com drogas podem ser perigosas, tanto quanto é</p><p>verdade que elas podem ser vividas de modo cuidadoso. Há mais de</p><p>60 anos, Howard Becker (2008) já chamava atenção para o</p><p>aprendizado social levado a cabo em grupos de pessoas que usam</p><p>drogas, especialmente em contextos nos quais a livre circulação de</p><p>informações sobre modos de uso é vedada. Seria o caso de afirmar</p><p>outras formas de prevenção, livres do pânico moral que alicerça e</p><p>se alicerça no proibicionismo, que permitam aos neófitos</p><p>experiências mais seguras.</p><p>Por fim, caberia ainda salientar que os efeitos do proibicionismo</p><p>sobre as primeiras experimentações não são iguais para todas as</p><p>pessoas. Se jovens homens brancos de classe média terão de se</p><p>haver com a culpa e a paranoia, os riscos para jovens pretos,</p><p>mulheres, gays e trans podem ser muito mais graves. Lembro de</p><p>uma aula de Dudu Ribeiro para meus alunos na EPSJV/Fiocruz, em</p><p>que ele me perguntou o que minha mãe me dizia quando eu,</p><p>adolescente, saía pra balada. “Leve um casaco”, respondi. “Pois minha</p><p>27</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>mãe dizia para eu não esquecer os documentos”, lembrou Dudu,</p><p>militante antirracista e um dos fundadores da Iniciativa Negra por</p><p>uma Nova Política de Drogas (INNPD).</p><p>Seria possível dizer muito mais acerca das primeiras experiências.</p><p>E ainda assim, isto seria insuficiente para responder a pergunta-</p><p>título deste artigo. Importante, pois, ensaiar algumas reflexões</p><p>sobre porque algumas pessoas continuam a usar algumas drogas</p><p>por longos períodos, ou mesmo pela vida inteira. Em “Quarta B”,</p><p>assistimos a uma reunião com pais de alunos da quarta série,</p><p>convocados depois que um tijolo de maconha é encontrado na sala</p><p>de aula (GALVÃO, 2005). Ao final do filme, enquanto os créditos</p><p>ocupam a tela, vemos pessoas</p><p>aleatórias falando livremente sobre</p><p>drogas. Destes, destaco uma senhora que diz “o perigo é quando eles</p><p>gostam” – eloquente alegoria de uma discursividade preventiva que</p><p>não se limita a fazer recomendações, mas concorre ativamente</p><p>para a realização das profecias que julga antecipar.</p><p>Por outro lado, “O perigo é quando eles gostam” não apenas</p><p>explicita a distopia preventivista, como traz em seu íntimo uma</p><p>abertura para o cuidado em sua dimensão mais generosa. Afinal,</p><p>sempre haverá pessoas que vivem suas experiências com drogas de</p><p>modo extremamente prazeroso, e que se sentem estimuladas a</p><p>repeti-las. Isto pode durar meses, anos, até mesmo a vida inteira, o</p><p>que não significa necessariamente uma relação de dependência;</p><p>basta observar o uso de álcool ao nosso redor, para percebermos</p><p>que a imensa maioria das pessoas que bebem ao longo de toda a vida</p><p>não são alcoolistas. Neste ponto, a RD demonstra sua abrangência,</p><p>oferecendo estratégias de autocuidado que atendem a todas às</p><p>pessoas, e não apenas àquelas com uso abusivo, dependente, ou</p><p>qualquer outra definição que você prefira.</p><p>Sim, sempre haverá pessoas que gostam de algumas drogas, e que</p><p>as elegem como substâncias a serem utilizadas por longos períodos.</p><p>Haverá quem se encante com drogas depressoras, outras com</p><p>drogas estimulantes ou psicodélicas, e haverá quem goste de todas</p><p>estas, em diferentes ocasiões: estimulantes para dançar, depresso-</p><p>28</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>ras para o fim do dia, psicodélicas para um acampamento entre</p><p>amigos... Haverá também quem faça uso exagerado em alguns</p><p>momentos específicos de sua vida: fumar maconha todo o dia nas</p><p>férias ou beber demais para afogar mágoas em um fim de</p><p>relacionamento, por si só, não deveriam ser considerados como</p><p>sinal patognomônico de “toxicomania” “dependência química”.</p><p>Os diagnósticos podem ser tão ou mais prejudiciais quanto as</p><p>drogas; recomendamos precaução para o uso de ambos. Afirmar</p><p>isto, entretanto, não significa a não existência de usos compulsivos e</p><p>autodestrutivos. Há sim, pessoas que experimentam drogas, que</p><p>gostam destas experiências, que seguem usando por longo tempo, e</p><p>que terminam por desenvolver, mais cedo ou mais tarde, aquilo que</p><p>o DSM-5 define como “transtorno por uso de substâncias”. Caberia,</p><p>então, a pergunta mais difícil: por que algumas pessoas desenvolvem</p><p>padrões persistentes de uso autodestrutivo? Por que algumas</p><p>pessoas não conseguem parar de usar?</p><p>Sinto informar, mas não existem respostas simples para esta</p><p>pergunta. Ou existem, mas de modo algum me satisfazem. De minha</p><p>parte, considero incrivelmente inspiradoras algumas perspectivas</p><p>advindas, não da ciência, mas das artes, especialmente da literatura.</p><p>E não por acaso, escolho fragmentos de dois grandes autores que</p><p>escreveram profundamente sobre seus próprios usos. Do primeiro,</p><p>William Burroughs, escolho um fragmento de “Almoço Nu”:</p><p>Basta entrar num bar para ser atingido em cheio</p><p>pelo tédio. Mas de onde ele vem? Não vem do</p><p>garçom, nem dos clientes, nem do plástico bege</p><p>que forra os banquinhos, nem do brilho mortiço</p><p>do néon. Nem mesmo da TV. E assim o tédio acaba</p><p>aumentando nosso vício, da mesma forma que a</p><p>cocaína oferece algum alívio para quem está</p><p>tentando evitar a depressão causada por essa</p><p>mesma droga. (BURROUGHS, 2016, p. 23)</p><p>Em outra importante inescapável para quem tem interesse pelo que</p><p>chamo de “escritos drogados”, o primeiro porre de Charles</p><p>Bukowski aparece como um oásis, depois de páginas e mais páginas</p><p>com minuciosas descrições das violentas surras que tomava de seu</p><p>pai:</p><p>29</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>Por que usamos drogas? Por que alguns de nós continuam a usá-</p><p>las? Por que outros seguem usando, mesmo quando manifestam</p><p>conscientemente o desejo de parar? Encerro, pois, com a força da</p><p>resposta dos poetas, ao mesmo tempo simples e complexa. Sim, eu</p><p>sei que isto está muito longe de fechar a questão. Pelo contrário,</p><p>abre todo um percurso a ser trilhado, sem qualquer garantia de</p><p>solução no final do caminho. Se não era isto que você esperava, eu</p><p>sinceramente sinto muito. Mas de fato, não consigo pensar em outra</p><p>coisa. Usamos drogas porque somos humanos, e porque estamos</p><p>vivos.</p><p>RDRD</p><p>Nunca me sentira tão bem. Era melhor do que</p><p>masturbação. Fui de barril em barril. Era mágico.</p><p>Por que ninguém havia me falado disso? Com a</p><p>bebida, a vida era maravilhosa, um homem era</p><p>perfeito, nada mais poderia feri-lo. (BUKOWSKI,</p><p>2010, p. 105)</p><p>Vivo</p><p>Precário, provisório, perecível</p><p>Falível, transitório, transitivo</p><p>Efêmero, fugaz e passageiro</p><p>Eis aqui um vivo, eis aqui um vivo</p><p>Impuro, imperfeito, impermanente</p><p>Incerto, incompleto, inconstante</p><p>Instável, variável, defectivo</p><p>Eis aqui um vivo, eis aqui</p><p>E apesar do tráfico, do tráfego equívoco</p><p>Do tóxico, do trânsito nocivo</p><p>Da droga, do indigesto digestivo</p><p>Do câncer vir do cerne do ser vivo</p><p>Da mente o mal do Ente coletivo</p><p>Do sangue o mal do soro positivo</p><p>E apesar dessas e outras</p><p>O vivo afirma firme afirmativo</p><p>O que mais vale à pena é estar vivo</p><p>É estar vivo</p><p>Não feito, não perfeito, não completo</p><p>Não satisfeito nunca, não contente</p><p>Não acabado, não definitivo</p><p>Eis aqui um vivo, eis-me aqui (LENINE, 2004)</p><p>30</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Referências Bibliográficas</p><p>ARATANGY, Lídia Rosenberg. Doces Venenos: conversas e</p><p>desconversas sobre drogas. São Paulo: Olho D’Água, 1991.</p><p>BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de</p><p>Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.</p><p>BUKOWSKI, Charles. Misto Quente. Porto Alegre: L&PM, 2010.</p><p>BURROUGHS, William. Almoço Nu. São Paulo: Companhia das Letras,</p><p>2016.</p><p>FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège</p><p>de France, pronunciada em 2 de dezembro do 1970. São Paulo:</p><p>Edições Loyola, 1996.</p><p>_______________. História da sexualidade 1: a vontade de saber.</p><p>São Paulo: Edições Graal, 1988.</p><p>GALVÃO, Marcelo. Quarta B [FILME]. Brasil: Gatacine, 2005.</p><p>LENINE. Vivo. In.: LENINE. In Cité [MÚSICA]. Rio de Janeiro: Casa 9,</p><p>2004.</p><p>PETUCO, Dênis. Educação popular em saúde e o cuidado de pessoas</p><p>que usam álcool e outras drogas. In: MORAES, Maristela; CASTRO,</p><p>Ricardo; PETUCO, Denis Roberto da Silva (Orgs.). Gênero e drogas:</p><p>contribuições para uma atenção integral à saúde. Recife: Instituto</p><p>Papai, 2010. p. 21-27.</p><p>ROCHA, Irabussu. Introdução. In.: BRASIL. Maconha: coletânea de</p><p>trabalhos brasileiros. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, 1958. p. 5.</p><p>SCHMIDT, Ivan. A ilusão das drogas: um estudo sobre maconha,</p><p>LSD e anfetaminas. São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 1979.</p><p>WANG, Wayne & AUSTER, Paul. Blue in the Face [FILME]. Estados</p><p>Unidos: Miramax Films, 1995.</p><p>31</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Por uma nova</p><p>política de drogas</p><p>A política de guerra às drogas é baseada no processo histórico de</p><p>genocídio da população negra e tem seu modelo de regulamentação</p><p>baseado na proibição, que prevê controle e punições de corpos e</p><p>territórios negros, a alta letalidade, o encarceramento e a</p><p>internação em massa e o altissimo investimento do orçamento</p><p>público, que inscide diretamente na construção de políticas públicas</p><p>de qualidade para lidar com os principais sintomas das</p><p>desigualdades sociais, econômicas, raciais e saúde da população</p><p>brasileira.</p><p>Esse modelo, que prevê sanções criminais para quem produz,</p><p>distribui e consome determinadas substâncias, apresenta exceções</p><p>para fins medicinais, religiosos e científicos, mas na prática, devido a</p><p>orientação através do moralismo e pelo tabu, mesmo esses usos</p><p>que são legitimados, são constantemente considerados como</p><p>anormais ou desviantes e essa é a principal razão para a</p><p>manutenção da lógica de proibição de determinadas drogas, como a</p><p>maconha, em detrimento de outras, como o álcool.</p><p>O proibicionismo às drogas geralmente é associado a um processo</p><p>ocorrido nos Estados Unidos das Américas e exportado para outros</p><p>países, atrelado a um processo de internacionalização do controle</p><p>do comércio e uso de substâncias psicoativas, através de</p><p>convenções e de acordos internacionais.</p><p>O dispositivo na legislação</p><p>brasileira que criminaliza o consumo de</p><p>drogas é o artigo da Lei 11.343 de 2006, a chamada Lei de Drogas, que</p><p>Larissa Neves</p><p>32</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>define que é crime adquirir, guardar, ter em depósito, transportar</p><p>ou trazer consigo substâncias ilícitas para o consumo próprio. E o</p><p>bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas é a saúde pública. Logo, o</p><p>objetivo principal desta Lei é zelar pela saúde de todos. No entanto,</p><p>hoje está em evidência que a proibição de drogas tem impacto</p><p>negativo à saúde pública. E é em nome da proteção à saúde dessas</p><p>pessoas que o Estado brasileiro se utiliza da repressão para o</p><p>combate ao consumo de drogas.</p><p>O Brasil se deleita num projeto de política de morte e isso tem</p><p>impacto direto na condição de vida da população negra e</p><p>comunidades mais pobres, que são atingidas de maneira</p><p>desproporcional pela repressão. Embora os entorpecentes circulem</p><p>em todos os bairros das cidades, em todas as classes sociais, são os</p><p>moradores e as moradoras das áreas periféricas que sofrem os</p><p>efeitos dessa guerra, dando evidência de como a proibição acaba</p><p>institucionalizando o racismo. Dessa forma, compreendemos que</p><p>esse modelo adotado no Brasil, assim como em outros países, tem</p><p>relação direta com o período colonial, no qual deixou marcas</p><p>principalmente na forma desigual que são tratados todas aquelas</p><p>pessoas que não estão inseridos no contexto ideal da branquitude.</p><p>No Brasil, um dos efeitos da política de combate às drogas é o</p><p>aumento da letalidade policial. No último ano, a cada 100 pessoas</p><p>mortas pela polícia, em sete estados brasileiros, 86 eram negras. Os</p><p>números levantados mostram que, todos os dias, ao menos cinco</p><p>pessoas negras são mortas por policiais nessas localidades. Em</p><p>todas elas, a porcentagem de negros mortos é maior que o</p><p>percentual de negros na população, evidênciando quem é o principal</p><p>alvo das operações policiais. Em boa parte das justificativas das</p><p>ações policiais é a repressão ao tráfico de drogas, e é a juventude</p><p>negra do país que sofre as consequências dessas ações. A</p><p>abordagem policial é bastante seletiva, enquandrando como</p><p>usuários de drogas como traficantes pelo simples fato de serem</p><p>negros, pobres e moradores de periferia.</p><p>33</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>O aumento dos indicadores de violência associada ao tráfico de</p><p>drogas é um dos desafios essenciais em praticamente todos os</p><p>centros urbanos no Brasil: todos os dias acompanhamos notícias de</p><p>mortes que envolvem ações e ataques de grupos que disputam</p><p>pontos de vendas e a polícia, evidenciando que a guerra às drogas se</p><p>tornou o principal álibi para as operações policiais seja na Bahia ou</p><p>Rio de Janeiro.</p><p>Quando observamos a história brasileira, a ideia de crime, de</p><p>punição, de castigo, estão atreladas a uma herança colonial, dessa</p><p>forma, as ações do judiciário irão se comportar a partir desta lógica,</p><p>dando legitimidade ao discurso e às consequências da guerra às</p><p>drogas. Se o tráfico de drogas se tornou uma das maiores causas de</p><p>aprisionamento no país, é porque o sistema de justiça criminal</p><p>aponta esse crime com frequência, mas ao julgar, os casos são mais</p><p>condenados do que absolvidos e na maioria das vezes, nos</p><p>processos por tráfico, as testemunhas do processo são os próprios</p><p>policiais que realizaram a prisão ou se houve mortes, as próprias</p><p>corregedorias. Com isso, muitas são as denúncias de violação de</p><p>direitos humanos cometidas pela Polícia Militar e muitas denúncias</p><p>sobre a frequente concordância entre a Polícia e o Ministério</p><p>Público, que tem como dever constitucional fiscalizar a atividade</p><p>policial.</p><p>Enquanto o Brasil continua a matar e prender em nome da</p><p>guerras às drogas, diversos países ao redor do mundo começaram</p><p>a flexibilizar suas leis de drogas, permitindo, por exemplo, o porte</p><p>para o uso pessoal, adotando critérios para diferenciar o uso de</p><p>tráfico, como por exemplo, a quantidade de drogas apreendida. Se o</p><p>país que inventou a guerra às drogas está no caminho para o marco</p><p>regulatório, tendo Estados que já descriminalizaram o uso de</p><p>diversas drogas ou até mesmo a Organização das Nações Unidas</p><p>(ONU) que já reconheceram as propriedades terapêuticas da</p><p>maconha, há cada vez mais países avançando em direção às novas</p><p>abordagens.</p><p>34</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Por isso, a descriminalização do uso é um passo que retira o</p><p>tratamento criminal de quem consome drogas, podendo diminuir o</p><p>julgamento moral e impactando diretamente no acesso aos serviços</p><p>de saúde. Mas não basta apenas descriminalizar, é importante</p><p>regulamentar, pois nesse cenário, diversas regras poderiam ser</p><p>sancionadas num mercado antes ilegal, deixando de financiar</p><p>atividades criminosas por exemplo e passando a gerar impostos e</p><p>empregos formais. Mas, nesse caminho é importante garantir que a</p><p>regulação das drogas não se torne um negócio para aumentar a</p><p>riqueza de quem sempre deteve a riqueza e manter a pobreza das</p><p>pessoas que são impactadas diretamente pela guerra às drogas. E</p><p>mais, precisamos também falar sobre reparação.</p><p>De acordo com a pesquisa Iniciativa por Direitos, Reparação e</p><p>Justiça, é necessário que o estado brasileiro seja responsabilizado e</p><p>que atue na construção de medidas de reparação que de fato</p><p>reconheçam a necessidade histórica de afirmar os direitos da</p><p>população negra. Dessa forma, enquanto os corpos de pessoas</p><p>negras continuarem superlotando as prisões, os manicômios e os</p><p>cemitérios, não existirá o reconhecimento da dívida com a maioria</p><p>da população que reside nos territórios que são alvos das violências</p><p>raciais e que conduza a moção de aprimoramento de leis e políticas</p><p>públicas antiproibicionistas e reparatórios.</p><p>35</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Existem tantas possibilidades de abordar a temática da Maconha</p><p>que não à toa existem cursos inteiros que versam sobre os diversos</p><p>temas transversais: botânica, farmacologia, história, legislação,</p><p>usos, redução de danos, proibicionismo e toda a complexidade de</p><p>temas interseccionados, entre outros.</p><p>Dentro de todas essas abordagens possíveis, devemos considerar</p><p>sempre a importância do movimento social e antiproibicionista</p><p>nessa caminhada complexa e rica dos temas relacionados à</p><p>Maconha. Assim, trazemos aqui um pequeno recorte da história da</p><p>Marcha da Maconha no Brasil e na Baixada Santista, importante</p><p>movimento antiproibicionista.</p><p>“As Marchas da Maconha são manifestações políticas pela</p><p>mudança da lei de drogas, eventos múltiplos e diversos,</p><p>congregando-se como um movimento social que se organiza de</p><p>forma descentralizada nos territórios, em organizações locais</p><p>autônomas.” CARTA DE PRINCÍPIOS - Articulação Nacional de Marchas</p><p>da Maconha.</p><p>A primeira Marcha da Maconha do Brasil aconteceu em 2002 na</p><p>cidade do Rio de Janeiro, intrigante confluência quando recordamos</p><p>que o Brasil foi o primeiro país do mundo a editar uma lei contra a</p><p>maconha em 4 de outubro de 1830 na Câmara Municipal do Rio de</p><p>Janeiro.</p><p>Marcha da Maconha:</p><p>Resistência, Alegria e</p><p>Cultura</p><p>Annie Louise Saboya Prado (Gigi)</p><p>36</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>A partir daí os movimentos foram crescendo e se fortalecendo e</p><p>houve a tentativa em 2008 de se realizar a Marcha da Maconha em</p><p>doze capitais brasileiras, o que não aconteceu devido à repressão de</p><p>decisões judiciais que proibiam a Marcha na maioria delas. Os juízes</p><p>alegaram desde apologia ao uso de drogas até formação de</p><p>quadrilha. Algumas dessas marchas mesmo assim foram para as</p><p>ruas, mas com repressão, violência policial e prisões.</p><p>Em 2011 então, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por</p><p>unanimidade, pela legitimidade da manifestação por meio da</p><p>Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 187,</p><p>entendendo que sua proibição é uma ameaça à liberdade de</p><p>expressão, garantida pela Constituição.</p><p>Na Baixada Santista, o movimento começou a se organizar</p><p>também em 2008, se denominando como Marcha da Maconha, mais</p><p>oficialmente, inclusive por outros coletivos, em 2009. A partir daí o</p><p>movimento</p><p>foi se fortalecendo, com todas as dificuldades dessa</p><p>articulação numa cidade como Santos que apesar do enorme</p><p>número de usuários de maconha é majoritariamente conservadora.</p><p>Analisando o próprio coletivo, o território e as possibilidades</p><p>existentes, não houve a marcha nas ruas por alguns anos, mas sim</p><p>atividades de formação interna e externa pensando em fortalecer e</p><p>ampliar a visibilidade do tema, do coletivo e de suas pautas.</p><p>Assim, foram realizadas em 2012, 2013, 2014 as I, II e III Semanas</p><p>Canábicas organizadas pela Marcha da Maconha da Baixada</p><p>Santista. Nestas semanas foram realizadas diversas atividades</p><p>contando com rodas de conversa, cine-debate, aulas públicas,</p><p>atividades culturais, festas, exposições fotográficas e artísticas.</p><p>Essas atividades ocuparam vários espaços da cidade, universidades,</p><p>praças públicas, espaços privados, sindicatos, bibliotecas. Foram</p><p>convidados para esta atividade militantes, pesquisadores,</p><p>professores, artistas, pensadores livres e usuários. Esses</p><p>convidados eram tanto de movimentos autônomos quanto de</p><p>movimentos sociais organizados, partidos políticos, grupos de</p><p>estudo, de pesquisa e outros. Em 2014, houve a participação do</p><p>37</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>professor e ilustre pesquisador Elisaldo Carlini da Unifesp, no</p><p>mesmo ano e no mesmo campus em que realizamos uma exposição</p><p>de arte temática sobre maconha, psicodélicos e experiência com</p><p>drogas.</p><p>Em 2015, após análise, mobilização e divulgação, finalmente</p><p>ocorreu a 1ª Marcha da Maconha da Baixada Santista na cidade de</p><p>Santos reunindo cerca de 400 pessoas, um número importante pra</p><p>região, principalmente se levando em conta que os ativistas que</p><p>participam da marcha não são os mesmos que participam em atos</p><p>no geral, de militância partidária ou outras pautas também</p><p>progressistas. E então fluiu e rolaram a 2ª, 3ª, 4ª e 5ª Marchas, todas</p><p>em Santos respectivamente em 2016, 2017, 2018 e 2019. Essas</p><p>marchas tiveram participação oscilante dos ativistas, possivelmente</p><p>nunca tendo atingido um número maior do que a primeira.</p><p>Sempre houve baixíssimo ou nenhum apoio, até aparente boicote,</p><p>de agentes de trânsito, mesmo que oficialmente comunicados e</p><p>solicitados. Sempre houve certo cerceamento da Polícia Militar,</p><p>algumas vezes apenas intimidatória, como diversas viaturas</p><p>rondando e parando por perto, outras vezes parando questionando,</p><p>pedindo identificação dos organizadores. Estas abordagens sempre</p><p>afastaram curiosos e indecisos na participação.</p><p>O coletivo sempre esteve preparado para este tipo de abordagem</p><p>e sempre teve apoio jurídico. Também, assim como em outras</p><p>Marchas pelo Brasil, houve a organização por comissões, entre elas</p><p>a “comissão de segurança” que prepara e preza pela segurança das</p><p>pessoas da marcha. Na edição de 2017 houve repressão mais</p><p>contundente quando na contramão na avenida da praia vários</p><p>camburões da Polícia Militar se posicionaram na frente da marcha,</p><p>onde desceram vários policiais sem identificação com cassetetes,</p><p>bombas de gás lacrimogêneo em mãos na direção dos</p><p>manifestantes, muitos saíram correndo e a organização buscou</p><p>manter as posições e enfrentamento, o advogado que dava apoio à</p><p>época foi colocado dentro da viatura e quase foi levado. Depois de</p><p>certo enfrentamento e conversas conseguimos seguir em menor</p><p>38</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>número e ocupando menos faixas na avenida, mas até o final do</p><p>percurso programado.</p><p>Em 2020 e 2021 não houve marcha nas ruas devido à pandemia</p><p>decretada. As marchas continuaram a realizar atividades online. Na</p><p>Baixada foram realizadas algumas atividades remotas com</p><p>participações em ações de outros coletivos parceiros, um curso</p><p>online de Cannabis, uma marcha virtual com colagem de lambes pela</p><p>cidade, uma live de artista da região e produção de um vídeo desta</p><p>ação, também disponível nas redes sociais da Marcha.</p><p>Em 2022 aconteceu a 6ª Marcha da Maconha também na cidade</p><p>de Santos como todas anteriores, onde apesar da forte chuva e de</p><p>ser a primeira marcha pós pandemia conseguimos completar o</p><p>trajeto com muita festa e resistência. Em 2023 a Marcha acontece</p><p>pela primeira vez na cidade de São Vicente. A ideia de expandir a</p><p>marcha para outras cidades da Baixada Santista sempre existiu e</p><p>por isso o nome Marcha da Maconha de Santos se renomeou para</p><p>Baixada Santista logo no início de sua história. Muitos</p><p>atravessamentos e dificuldades se colocaram para efetivamente</p><p>acontecer essa expansão, o que acabou se concretizando em 2023,</p><p>em São Vicente, onde reuniu centenas de pessoas que marcharam</p><p>alegremente e sem contratempos pelas ruas de São Vicente, do</p><p>centro até a praia do Gonzaguinha.</p><p>Durante todos esses anos o coletivo também realizou outras</p><p>atividades pontuais e também diversas participações em atividades</p><p>de outros coletivos e diversas outras Marchas pelo Brasil como São</p><p>Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Sorocaba, entre outras.</p><p>Ainda sobre o coletivo da Marcha da Maconha da Baixada Santista</p><p>é importante salientar que sempre mulheres estiveram à frente e</p><p>ativamente atuantes no coletivo, o que não era, e ainda não o é, tão</p><p>comum em outras marchas. Desta forma as pautas feministas, hoje</p><p>mais visibilizadas, sempre estiveram muito presentes nas atividades</p><p>e produções.</p><p>39</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Fomentada na época da pandemia, e atualmente ativa, a</p><p>Articulação Nacional de Marchas da Maconha é um coletivo</p><p>consultivo e não vinculante que não interfere na autonomia que cada</p><p>marcha tem em sua organização local. Há cerca de 4 anos vem se</p><p>reunindo semanalmente de forma virtual produzindo um vasto</p><p>acervo de formação e informação, em lives, entrevistas, reuniões,</p><p>produções de vídeos-manifestos, além de ser uma rede de</p><p>acolhimento e fortalecimento da marcha enquanto movimento</p><p>social.</p><p>As marchas no Brasil também se reúnem na campanha</p><p>#descriminalizaSTF, todo dia 20 de cada mês, sempre com atividades</p><p>online e participação de ativistas, militantes e figuras importantes na</p><p>causa canábica como meio de pressionar o STF a votar o recurso</p><p>extraordinário 635.659, que pode descriminalizar o uso de maconha</p><p>e de drogas no Brasil.</p><p>Nunca foi somente sobre o uso, sempre foi sobre justiça social,</p><p>sobre acesso, sobre o fim da violência policial que mata jovens</p><p>negros periféricos todos os dias na conta da suposta “guerra as</p><p>drogas”. Usuários sempre fumaram e sempre fumarão</p><p>independente da legalização. O que a Marcha da Maconha busca</p><p>como coletivo é a verdadeira liberdade da planta, do plantio ao</p><p>consumo, o acesso ao tratamento, às ervas de boa qualidade e ao</p><p>fim da violência dessa guerra contra as pessoas. Guerra que nós</p><p>sabemos que tem todo o racismo estrutural como pano de fundo e</p><p>também a poderosa indústria farmacêutica no encalço contra o</p><p>livre cultivo autônomo e por meio do associativismo.</p><p>40</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Cultura Canábica e relato</p><p>pessoal de uma usuária</p><p>Essa coletividade presente nas Marchas da Maconha e toda sua</p><p>forma de expressão ilustra um pouco da riqueza da Cultura</p><p>Canábica, outro tema que se poderia transcorrer páginas a fio.</p><p>Muitas amizades, grupos artísticos e musicais, piadas, memes,</p><p>vestimentas, artes visuais e produtos foram criados e existem e tem</p><p>como centralidade a maconha e seu uso. Muita coisa mudou nos</p><p>últimos anos, é uma história viva, uma história que uma usuária e</p><p>militante de 40 e poucos anos como eu, e tantas outras, pôde</p><p>acompanhar. O preconceito e estigma ainda existem, mas é</p><p>perceptível o avanço, mesmo que com recorrentes passos atrás</p><p>que nos acompanham.</p><p>Os anos 90 foram marcantes nessa trajetória, numa época em</p><p>que não se encontrava nenhum produto canábico brasileiro como</p><p>sedas próprias para o consumo, dichavadores, piteiras, onde</p><p>pouquíssimas pessoas se atreviam a usar indumentárias e roupas</p><p>com a folha ou dizeres sobre maconha, o Planet Hemp era preso por</p><p>fazer “apologia ao uso” em suas músicas. Ainda não se ousava pensar</p><p>numa Marcha gigantesca como a que ocorre em São Paulo nos dias</p><p>de hoje,</p><p>reunindo milhares de pessoas em plena Avenida Paulista.</p><p>Antes, reduzida a praticamente alguns guerreiros do funk</p><p>proibidão, alguns músicos de reggae e rap do underground e ao</p><p>ousado Planet Hemp, agora o ativismo canábico invade vários estilos</p><p>de música politizando ou brincando com a temática da maconha.</p><p>Além de que hoje há toda uma indústria legal, de pequenos ou</p><p>grandes empresários, de produtos para plantio e consumo de</p><p>maconha.</p><p>Annie Louise Saboya Prado (Gigi)</p><p>41</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Muita água (e fogo) rolou e muita há de rolar ainda. Foram alguns</p><p>avanços, mas ainda boa parte deles restritos à parte dos brasileiros</p><p>mais financeiramente privilegiados, principalmente quando falamos</p><p>de tratamento com os derivados da maconha. Mesmo uma pessoa</p><p>como eu, profissional de nível universitário, classe média e branca</p><p>não tenho acesso a saber o que estou consumindo. Já tive</p><p>diagnóstico de fibromialgia e fui super medicalizada sem nenhuma</p><p>melhora, hoje tenho bastante dificuldade de confiar na medicina</p><p>convencional moderna. Não faço uso de medicação há alguns anos e</p><p>trato com Yoga, Meditação, mudanças de hábito de vida (boa</p><p>alimentação, sono e atividades físicas), e maconha. Entretanto, como</p><p>o acesso que tenho à maconha é ilegal nunca sei que produto estou</p><p>consumindo, algumas vezes percebendo que me ajuda nas dores, na</p><p>insônia, nos sintomas que ainda tenho de vez em quando, mas outras</p><p>vezes percebo não me ajuda tanto. Foram inúmeras vezes que já</p><p>quis ter acesso à flores com concentração maior em CBD e menos</p><p>efeitos psicoativos para poder me concentrar em alguma atividade</p><p>que avalio não combinar com THC e não consegui.</p><p>O autoconhecimento em relação ao próprio uso de drogas é uma</p><p>das ferramentas mais importantes da Redução de Danos, ponto que</p><p>avancei bastante nesses 20 e poucos anos de uso. Consegui</p><p>entender meu uso de maconha, controlar, avaliar em que momentos</p><p>é interessante ou não consumir, mas não tenho acesso a saber o</p><p>que consumo (qual tipo, qual potência) e quanto e como poderia</p><p>consumir para ter benefícios além dos que eu já consigo acessar.</p><p>SÉCULOS DE USO E DÉCADAS DE PROIBIÇÃO atravancado a Ciência e</p><p>a qualidade de vida das pessoas.</p><p>Quando teremos a planta livre de verdade?</p><p>Resistiremos e lutaremos.</p><p>42</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>REFERÊNCIAS:</p><p>A história das Marchas foi colhida por relatos verbais de membros</p><p>do coletivo e nos documentos:</p><p>Carta de princípios da MARCHA DA MACONHA BAIXADA SANTISTA</p><p>https://drive.google.com/file/d/16Uu6Zfl6ftP0IGNB4o6PPx8sBqqpaN</p><p>WV/view</p><p>Marcha da Maconha, conheça a história do movimento</p><p>https://soucannabis.ong.br/marcha-da-maconha-conheca-a-</p><p>historia-do-movimento/</p><p>Carta de princípios Articulação Nacional de Marchas da Maconha</p><p>https://tarcioteixeira.com.br/articulacao-nacional-de-marchas-da-</p><p>maconha/</p><p>43</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>https://drive.google.com/file/d/16Uu6Zfl6ftP0IGNB4o6PPx8sBqqpaNWV/view</p><p>https://drive.google.com/file/d/16Uu6Zfl6ftP0IGNB4o6PPx8sBqqpaNWV/view</p><p>https://soucannabis.ong.br/marcha-da-maconha-conheca-a-historia-do-movimento/</p><p>https://soucannabis.ong.br/marcha-da-maconha-conheca-a-historia-do-movimento/</p><p>https://tarcioteixeira.com.br/articulacao-nacional-de-marchas-da-maconha/</p><p>https://tarcioteixeira.com.br/articulacao-nacional-de-marchas-da-maconha/</p><p>RDRD</p><p>Sistema Endocanabinoide:</p><p>implicações terapêuticas</p><p>e políticas</p><p>Renato Filev</p><p>Registros arqueológicos apontam que o manejo da Cannabis spp.</p><p>acontece há pelo menos 12 mil anos. Seus usos terapêuticos</p><p>antecedem a escrita, e a China desponta em seu primeiro registro,</p><p>há cerca de 5 mil anos (Bonini et al., 2018). Diversos usos tradicionais</p><p>entre ritos, sacramentos e sociabilidades compõem o rol de práticas</p><p>culturais de povos ancestrais e contemporâneos que habitam todas</p><p>as regiões do globo. Segundo o relatório mundial de drogas de 2023,</p><p>cerca de 219 milhões de pessoas consumiram a planta ao menos</p><p>uma vez na vida. (UNODC, 2023)</p><p>Na década de 1960, Raphael Mechoulam, químico búlgaro que</p><p>trabalhou ao longo de toda sua vida em Jerusalém e seus colegas</p><p>isolaram as moléculas naturais provenientes das resinas planta</p><p>mais estudadas, o canabidiol (CBD) e o ∆9-tetrahidrocanabinol (THC),</p><p>enquanto os endocanabinoides produzidos em nosso corpo foram</p><p>descobertos nos anos 1990, o que impulsionou o interesse na</p><p>compreensão sobre a importância, os mecanismos de ação e</p><p>funcionalidade desse sistema em nosso organismo. Moléculas</p><p>sintéticas foram desenvolvidas inicialmente para compreender sua</p><p>composição e funcionamento, estimulando ou bloqueando</p><p>receptores e enzimas de síntese e degradação dos</p><p>endocanabinóides. Ainda nos anos 90 os trabalhos inéditos</p><p>realizados nos Estados Unidos pela Prof. Allyn Howlett descreveram</p><p>os receptores canabinóides do tipo 1 e posteriormente do tipo 2.</p><p>(Howlett et al., 2002)</p><p>43</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Elisaldo Carlini, renomado pesquisador brasileiro,</p><p>psicofarmacologista, reconhecido por contribuir significativamente</p><p>no estudo dos componentes da maconha e o potencial terapêutico</p><p>dos canabinoides, em particular do canabidiol (CBD). Na década de</p><p>1970, Carlini foi pioneiro ao investigar os efeitos dos canabinóides,</p><p>mostrou a diferença de efeitos quando THC e CBD, aplicados isolados</p><p>e associados, em diversos estudos com modelos animais. Suas</p><p>pesquisas revelaram propriedades anticonvulsivantes do CBD,</p><p>demonstrando sua capacidade de reduzir significativamente</p><p>convulsões em animais e também em humanos. Em 1980 juntamente</p><p>com Mechoulam assinou a autoria do primeiro ensaio clínico que</p><p>demonstrou a eficácia do CBD para atenuar as crises convulsivas</p><p>(Cunha et al., 1980). Avanços importantes na compreensão do</p><p>potencial terapêutico do CBD no tratamento da epilepsia são</p><p>desdobramentos do trabalho do Prof. Carlini. Em 2017, estudos</p><p>clínicos de fase III, subsidiaram o registro do CBD como primeiro</p><p>medicamento canabidiol aprovado pela agência regulatória</p><p>estadunidense (Devinsky et al., 2017). Até hoje os trabalhos do Prof.</p><p>Carlini reverberam e abrem caminhos para investigações mais</p><p>profundadas sobre o uso terapêutico dos canabinoides e sem dúvida</p><p>alimentam o interesse global por essas substâncias no contexto</p><p>médico e científico.</p><p>A comunicação celular e a interação do organismo com o meio</p><p>externo dependem da ativação de receptores presentes na</p><p>membrana das células por mensageiros específicos. Em sua função</p><p>fisiológica os receptores canabinóides atuam como "fechaduras" da</p><p>membrana celular, que podem ser "abertas" pelas "chaves"</p><p>correspondentes, neste caso os mensageiros ou</p><p>neurotransmissores canabinóides, conhecidos também como</p><p>endocanabinóides. Existem ao menos dois neurotransmissores</p><p>canabinóides descritos, a anandamida e o 2-araquidonoilglicerol (2-</p><p>AG) estes compostos são sintetizados sob demanda por enzimas que</p><p>utilizam o ácido aracdônico disponível na membrana celular como</p><p>matéria prima para essa produção (Mechoulam e Parker, 2013).</p><p>44</p><p>REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DECOLONIAL</p><p>RDRD</p><p>Os endocanabinóides liberados na fenda sináptica ligam-se aos</p><p>receptores canabinóides (CB1 e CB2) alterando a conformação dos</p><p>mesmos e proporcionando sua ativação, essa ativação recruta</p><p>outros mensageiros para o interior da célula desencadeando uma</p><p>série de efeitos celulares, após o êxito da conexão, os</p><p>endocanabinoides são absorvidos e transportados para o interior</p><p>das células para que enzimas que realizam a degradação dos</p><p>mesmos desempenhem seu papel. Enquanto os receptores CB1 são</p><p>expressos em maior concentração no sistema nervoso central, os</p><p>receptores CB2 são produzidos em maior quantidade nas células de</p><p>defesa, associadas ao sistema imune. Compostos exógenos como os</p><p>fitocanabinoides, derivados da cannabis e presentes em outras</p><p>espécies (Mechoulam e Parker, 2013) bem como moléculas sintéticas</p><p>atuam nestes mesmos receptores mimetizando os efeitos dos</p><p>compostos endógenos, de maneira equivalente, mais ou menos</p><p>intensa que os compostos produzidos em nosso organismo.</p><p>Os endocanabinóides</p>