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<p>LEGISLAÇÃO CIVIL</p><p>APLICADA II</p><p>Luís Eduardo</p><p>M. Azambuja</p><p>Revisão técnica:</p><p>Gustavo da Silva Santanna</p><p>Bacharel em Direito</p><p>Especialista em Direito Ambiental Nacional e Internacional</p><p>e em Direito Público</p><p>Mestre em Direito</p><p>Professor em cursos de graduação e pós-graduação em Direito</p><p>Miguel do Nascimento Costa</p><p>Bacharel em Ciências Sociais</p><p>Especialista em Processo Civil</p><p>Mestre em Direito Público</p><p>Catalogação na publicação: Karin Lorien Menoncin - CRB -10/2147</p><p>L514 Legislação civil aplicada II / Fabiana Hundertmarck Leal... [et</p><p>al.] ; [revisão técnica: Gustavo da Silva Santanna,</p><p>Miguel do Nascimento Costa]. – Porto Alegre: SAGAH,</p><p>2018.</p><p>380 p. : il. ; 22,5 cm</p><p>ISBN 978-85-9502-428-1</p><p>1. Direito civil. I. Leal, Fabiana Hundertmarck.</p><p>CDU 347</p><p>Legislacao_Civil_Aplicada_II_Book.indb 2 22/05/2018 13:31:12</p><p>Da propriedade em geral</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:</p><p> Diferenciar propriedade de posse.</p><p> Identificar as características, os atributos e as limitações ao exercício</p><p>do direito de propriedade.</p><p> Definir o princípio da função social e socioambiental da propriedade.</p><p>Introdução</p><p>Este capítulo pretende aproximá-lo dos conceitos jurídicos relacionados</p><p>ao direito de propriedade no Brasil. Para isso, analisaremos definições,</p><p>características, atributos, limitações e importantes princípios relativos a</p><p>esse instituto jurídico à luz da melhor doutrina e da legislação nacional</p><p>vigente. Ademais, teceremos uma breve comparação do direito de pro-</p><p>priedade com o instituto da posse, visto que ambos estão intimamente</p><p>relacionados.</p><p>Propriedade e posse</p><p>A propriedade é o direito real que uma pessoa tem de possuir, usar, fruir,</p><p>reivindicar e alienar determinado bem, que pode ser corpóreo ou incorpóreo.</p><p>Para Monteiro e Maluf (2015, p. 83), o direito de propriedade é o mais impor-</p><p>tante e sólido de todos os direitos subjetivos, uma vez que é o direito real por</p><p>excelência, o eixo em torno do qual gravita o direito das coisas.</p><p>Juridicamente, a regulamentação da propriedade varia no espaço e no</p><p>tempo, pois esse direito é regulado de diversas formas ao longo da história e</p><p>conta com distintas disciplinas legais nos países. Além dessas variações, dentro</p><p>de um mesmo ordenamento jurídico conceituar propriedade também é uma</p><p>tarefa complexa, visto que além de ser um assunto de ordem civilista sofre</p><p>forte interferência do Direito Constitucional, que limita o direito à propriedade.</p><p>Legislacao_Civil_Aplicada_II_Book.indb 293 22/05/2018 13:31:54</p><p>De acordo com a célebre jurista Maria Helena Diniz (2018, p. 105):</p><p>[...] a própria origem do vocábulo é obscura, entendendo alguns que vem do</p><p>latim prooprietas, derivando de proprius, designando o que pertence a uma</p><p>pessoa. Assim, a propriedade indicaria toda a relação jurídica de apropriação</p><p>de um certo bem corpóreo ou incorpóreo.</p><p>A legislação brasileira, no entanto, não apresenta uma acepção para o</p><p>vocábulo, mas relaciona os poderes do proprietário. No seu art. 1.228, caput,</p><p>o Código Civil brasileiro define: “O proprietário tem a faculdade de usar,</p><p>gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que</p><p>injustamente a possua ou detenha” (BRASIL, 2002, documento on-line).</p><p>Carlos Roberto Gonçalves (2018, p. 46) afirma que o direito de propriedade</p><p>é aquele que uma pessoa singular ou coletiva efetivamente exerce em uma coisa</p><p>determinada em regra de maneira perpétua, normalmente absoluta, sempre</p><p>exclusiva e que todas as demais pessoas são obrigadas a respeitar. Ele acres-</p><p>centa que, ao considerarmos apenas os seus elementos essenciais, enunciados</p><p>no já mencionado art. 1.228, podemos definir o direito de propriedade como</p><p>um poder jurídico atribuído a uma pessoa para usar, gozar e dispor de um</p><p>bem em sua plenitude e dentro dos limites estabelecidos em lei, assim como</p><p>reivindicá-lo de quem injustamente o detiver.</p><p>Ao abordarmos os elementos conceituais da propriedade, faz-se necessário</p><p>relacioná-los aos ditames da posse. Dentro inúmeras teorias, duas se destacam</p><p>ao tentar explicar o que é a posse: a teoria subjetiva de Savigny e a teoria</p><p>objetiva de Ihering.</p><p>Segundo Gonçalves (2018, p. 49), para Friedrich von Savigny a posse se</p><p>caracteriza pela conjugação de dois elementos: o corpus, elemento objetivo</p><p>que consiste na detenção física da coisa, e o animus, elemento subjetivo que se</p><p>encontra na intenção de exercer um poder sobre a coisa em prol de interesse</p><p>próprio e de defendê-la contra a intervenção de outrem. Não se trata propriamente</p><p>da convicção de ser dono, senão da vontade de possuir a coisa como sua, de</p><p>exercer o direito de propriedade como se fosse o seu titular. Já para Rudolf von</p><p>Ihering, basta o corpus para a caracterização da posse. Tal expressão, porém, não</p><p>exige contato físico com a coisa, mas apenas a conduta de dono (GONÇALVES,</p><p>2018). Ela se revela na maneira como o proprietário age em face da coisa, tendo</p><p>em vista a sua função econômica. Nesse sentido, tem posse quem se comporta</p><p>como dono, ao que já está incluído nesse comportamento o animus.</p><p>Com base nessas interpretações, a posse é a exteriorização da proprie-</p><p>dade, a visibilidade do domínio, o uso econômico da coisa. Para melhor</p><p>Da propriedade em geral294</p><p>Legislacao_Civil_Aplicada_II_Book.indb 294 22/05/2018 13:31:54</p><p>ilustrarmos isso, tomemos a situação de um lavrador que deixa a sua</p><p>colheita no campo e, portanto, não a possui fisicamente. Entretanto, ele a</p><p>conserva em sua posse, pois age em relação ao produto colhido como um</p><p>proprietário ordinariamente o faz. Contudo, se o lavrador deixar no mesmo</p><p>local uma joia, ele evidentemente não conserva a posse sobre ela, pois</p><p>não é assim que o proprietário age a respeito de um bem dessa natureza</p><p>(GONÇALVES, 2018, p. 53).</p><p>Dessa forma, podemos concluir que a posse é a conduta de dono, um</p><p>exercício de poderes de propriedade. Assim, quem é proprietário é também</p><p>possuidor, ao passo que nem todo o possuidor é proprietário.</p><p>Para Brenio Dourado da Silva (2010), a posse não se confunde com a</p><p>propriedade, visto que possuidor é quem de fato dispõe do exercício de algum</p><p>dos poderes inerentes à propriedade, conforme o art. 1.196 do Código Civil.</p><p>A propriedade é o direito que a pessoa física ou jurídica tem de usar, gozar,</p><p>dispor de um bem ou reavê-lo de quem injustamente o possua ou detenha,</p><p>como disposto no mencionado art. 1.228 do mesmo diploma legal. Para o autor,</p><p>é impossível abordarmos um desses conceitos sem pelo menos mencionar o</p><p>outro, já que posse e propriedade andam juntas. Em suma, a posse se evidencia</p><p>como uma exteriorização da propriedade, que é o principal direito real.</p><p>Independente da doutrina à qual nos filiemos ou da corrente diversa que</p><p>procuremos, é unânime a compreensão de que a posse é um fato natural,</p><p>enquanto a propriedade é um direito criado pela sociedade. Por esse viés, a</p><p>propriedade traduz o que há de mais importante no campo dos direitos reais</p><p>e certifica que, se tivermos todos os seus elementos constitutivos reunidos em</p><p>uma só pessoa, ela será a proprietária plena do objeto em questão.</p><p>Ao longo dos nossos estudos sobre as figuras de possuidor e proprietário, devemos</p><p>sempre lembrar dos seguintes artigos do Código Civil brasileiro (BRASIL, 2002, docu-</p><p>mento on-line):</p><p>Art. 1.196 Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exer-</p><p>cício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.</p><p>Art. 1.228 O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da</p><p>coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente</p><p>a possua ou detenha.</p><p>295Da propriedade em geral</p><p>Legislacao_Civil_Aplicada_II_Book.indb 295 22/05/2018 13:31:54</p><p>Direito de propriedade</p><p>A propriedade tem como consequência os seus atributos, que são direitos sobre</p><p>determinados aspectos A seguir, analisaremos cada um deles.</p><p>O primeiro atributo é o de usar, também chamado de jus utendi, e representa</p><p>a faculdade de utilizar a coisa e de se servir dela como julgar mais conveniente,</p><p>desde</p><p>que observados os limites legais da função social da propriedade, como</p><p>morar, emprestar a coisa. É possível, ainda, não fazer uso da propriedade,</p><p>mantendo-a inerte e servindo-se dela quando bem entender.</p><p>O segundo direito é o de gozar, também denominado jus fruendi, e sintetiza</p><p>o poder de usufruir dos frutos da coisa. Ele compreende o aproveitamento</p><p>econômico dos frutos e produtos, como alugar a coisa, colher as frutas de uma</p><p>árvore que esteja plantada nela, seja um sítio, fazenda ou chácara.</p><p>O terceiro atributo é o de dispor, também conhecido como jus abutendi, e</p><p>compreende a possibilidade de transferir, alienar a coisa ou gravá-la de ônus</p><p>a outrem a qualquer título. Como todos outros, esse atributo não é ilimitado,</p><p>logo, não se pode abusar do bem a ponto de simplesmente destruí-lo, sob</p><p>pena de ferir a Constituição, que assevera que o uso da propriedade deve ser</p><p>condicionado ao bem-estar social. Portanto, a sua destruição só pode ocorrer</p><p>quando não configurar um ato antissocial. Desse modo, dispor talvez seja o</p><p>mais importante dos três atributos/direitos comentados até o momento. Isso</p><p>porque, como defende Gonçalves (2018, p. 226), mais se revela dono quem</p><p>dispõe da coisa do aquele que usa e frui. São exemplos a venda da coisa, a</p><p>doação dela ou a sua permuta ou troca.</p><p>O quarto e último direito oriundo da propriedade é o de reaver a coisa,</p><p>ou rei vindicatio. Reporta à prerrogativa de reivindicar a coisa de quem a</p><p>possui ou detém injustamente e se fundamenta no jus persequendi, o direito</p><p>de sequela, que é uma característica dos direitos reais. O seu instrumento de</p><p>defesa é a ação reivindicatória.</p><p>Quando a pessoa conta com esses quatro atributos, ela possui a proprie-</p><p>dade plena da coisa. Tal situação se contrapõe à propriedade limitada, que</p><p>ocorre quando há o desmembramento e se passa um ou mais atributos a outro</p><p>indivíduo. Um exemplo disso é o caso de transferência da propriedade de</p><p>um imóvel para filhos quando o seu pai reserva para si o direito de usufruto</p><p>sobre esse mesmo bem. Nesse contexto, os direitos de usar e gozar estão</p><p>reservados ao usufrutuário (o pai), à medida que os direitos de dispor e</p><p>reaver estão reservados aos seus filhos.</p><p>Movendo-nos do âmbito dos tributos e para adentrar as características</p><p>da propriedade, deparamo-nos com o art. 1.231 do Código Civil, que assim</p><p>Da propriedade em geral296</p><p>Legislacao_Civil_Aplicada_II_Book.indb 296 22/05/2018 13:31:55</p><p>versa: “A propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário”</p><p>(BRASIL, 2002, documento on-line). Portanto, a primeira característica</p><p>a verificarmos é a propriedade plena. Ela é plena no sentido de absoluta,</p><p>pois o direito de propriedade é oponível erga omnes (que tem efeito ou</p><p>vale para todos).</p><p>Gonçalves (2018) explica que a propriedade é um direito primário ou</p><p>fundamental, ao passo que os demais direitos reais encontram a sua es-</p><p>sência nela. Situadas todas as faculdades inerentes ao domínio nas mãos</p><p>do proprietário, o seu direito se diz pleno e permite que ele exija todas as</p><p>utilidades que esteja apto a utilizar, sujeitando-se apenas a determinadas</p><p>limitações impostas pelo interesse público. Atualmente, no entanto, não</p><p>devemos entender pleno como ilimitado, o que o direto de propriedade</p><p>realmente nunca foi. No passado, por exemplo, o proprietário por vezes</p><p>se viu obrigado a pagar foro ao fidalgo e, ainda que as limitações tenham</p><p>variado ao longo da história, elas nunca deixaram de oferecer restrições aos</p><p>direitos dos proprietários. Dentre outras, as consubstanciadas no princípio</p><p>da função social e socioambiental da propriedade, temas que estudaremos</p><p>mais adiante nesse capítulo.</p><p>A segunda característica é o fato de a propriedade ser exclusiva. Nesse</p><p>sentido, o proprietário tem o poder sobre a coisa, podendo excluir terceiros</p><p>que pretendam se opor ao seu direito. Assim, o mesmo bem não pertence a</p><p>mais de um proprietário, pois o direito de um indivíduo sobre determinada</p><p>coisa exclui o direito de outro sobre ela, à exceção dos condôminos que são</p><p>titulares conjuntamente.</p><p>A terceira característica diz respeito à propriedade ser perpétua. Via de</p><p>regra, o direito de propriedade não se extingue pela falta de uso ou pela não</p><p>fruição do bem, já que a inércia não extingue o direto. Para isso, deve haver</p><p>uma relação jurídica contrária caso o proprietário a aliene ou sucedam situ-</p><p>ações legais que se combinem com tal perda, como venda, desapropriação,</p><p>usucapião, dentre outras. Vale ressaltarmos que essa perpetuidade carrega</p><p>grande fator atrativo a esse instituto jurídico, pois por intermédio dela que</p><p>existe a possibilidade de transmissão post mortem.</p><p>Finalmente, a quarta característica e talvez a menos citada pelos doutrina-</p><p>dores em geral apesar de bastante importante, é a elasticidade da propriedade,</p><p>que permite o desmembramento, comumente temporário, do direito de proprie-</p><p>dade. Ela possibilita que se destaquem um ou mais poderes dominiais, como</p><p>o direito de o proprietário locar a coisa, permanecendo com o seu domínio,</p><p>embora deixe de usar a coisa por certo período de tempo. Ele coloca, assim,</p><p>a posse direta à disposição do locatário.</p><p>297Da propriedade em geral</p><p>Legislacao_Civil_Aplicada_II_Book.indb 297 22/05/2018 13:31:55</p><p>Em síntese, verificamos que a relação jurídica de direito real estabelece</p><p>um vínculo jurídico direto entre o titular de um objeto e o próprio objeto.</p><p>O exercício desse direito não depende necessariamente da colaboração</p><p>de outra pessoa diferente do proprietário, por ser absoluto, exclusivo,</p><p>perpétuo e elástico.</p><p>A transferência de propriedade de bens móveis no Direito brasileiro se dá na tradição</p><p>(entrega), ao passo que a transferência de bens imóveis acontece junto ao cartório</p><p>de registro de imóveis, sem o qual a mudança de proprietário não pode ser oponível</p><p>contra a ação de terceiros.</p><p>Função social e socioambiental da propriedade</p><p>Podemos identifi car quatro momentos históricos na evolução do direito</p><p>de propriedade. Em Roma, esse direito tinha caráter exclusivamente indi-</p><p>vidualista. Na Idade Média, havia dois sujeitos, o dono e o indivíduo que</p><p>explorava economicamente a coisa, pagando ao primeiro um percentual sobre</p><p>os ganhos obtidos com o uso dessa propriedade. Já a Revolução Francesa,</p><p>vencida pela burguesia, marca a volta do individualismo. A partir do século</p><p>XX, ventos sociais sopraram sobre esse instituto, infl uenciando a concepção</p><p>de propriedade e o direito das coisas de forma geral, primeiramente na</p><p>Europa, mas também no Brasil.</p><p>No País, a propriedade é direito fundamental presente no art. 5º, XXII, da</p><p>Constituição de 1988, que não pode ser abolido por emenda constitucional,</p><p>visto que se trata de cláusula pétrea capitulada no art. 60, § 4º, IV, do mesmo</p><p>texto legal. Vejamos o que determina parte do seu texto:</p><p>Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,</p><p>garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabi-</p><p>lidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,</p><p>nos termos seguintes:</p><p>XXII — é garantido o direito de propriedade (BRASIL, 1988, documento</p><p>on-line).</p><p>Da propriedade em geral298</p><p>Legislacao_Civil_Aplicada_II_Book.indb 298 22/05/2018 13:31:55</p><p>A propriedade é a essência do sistema capitalista, ao qual o Brasil está intima-</p><p>mente vinculado, razão pela qual deve ser respeitada. No entanto, a Constituição</p><p>apresenta hipóteses de restrição ao direito de propriedade. Em razão disso, o</p><p>art. 5º, XXII, deve ser interpretado em concordância com o seu inciso XXIII,</p><p>segundo o qual “a propriedade atenderá a sua função social”. Ademais, o art.</p><p>5º se harmoniza com o art. 170 do mesmo diploma, que assim versa:</p><p>Art. 170 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e</p><p>na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme</p><p>os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:</p><p>II — propriedade privada;</p><p>III — função social da propriedade (BRASIL, 1988, documento</p><p>on-line).</p><p>Respaldados pelas ideias de León Duguit, presente na já mencionada obra</p><p>de Gonçalves (2018, p. 239), verificamos que os direitos só se justificam</p><p>pela missão social com que devem contribuir. Assim, o proprietário de algo</p><p>deve se comportar e ser considerado em relação aos seus bens como um</p><p>funcionário. Duguit acrescenta que a propriedade deixou de ser um direito</p><p>subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da</p><p>riqueza mobiliária. A propriedade implica na obrigação de empregá-la para</p><p>o crescimento da riqueza social e apenas o proprietário pode executar de-</p><p>terminada tarefa social. Para ele, a propriedade não é um direito inatingível</p><p>e sagrado, senão um direito em contínua mudança e que se deve modelar</p><p>conforme as necessidades sociais às quais responde o proprietário.</p><p>Segundo Eduardo Rodrigues Evangelista (2013), a noção de função social,</p><p>antes concebida por Augusto Comte, foi incorporada ao conceito de direito de</p><p>propriedade. A partir de então, a noção do instituto passou a abranger a sua</p><p>flexibilização nos casos em que o bem não fosse utilizado de forma a atender</p><p>concomitantemente os interesses do proprietário e os interesses coletivos.</p><p>Passou-se a inadmitir, dessa maneira, a ociosidade e o subaproveitamento</p><p>da propriedade, pois ela não cumpriria a sua função social e ainda perderia</p><p>o caráter de intangível. Portanto, o ordenamento jurídico não aceita como</p><p>legítima a propriedade que não cumpre a sua função social e, assim, o Estado</p><p>se vê munido dos fundamentos necessários para a imposição do uso adequado</p><p>ou de outra destinação, ainda que isso implique na sua perda.</p><p>Como analisamos no começo desse capítulo, é forte a influência cons-</p><p>titucional sobre o instituto da propriedade, originalmente pertencente à</p><p>299Da propriedade em geral</p><p>Legislacao_Civil_Aplicada_II_Book.indb 299 22/05/2018 13:31:55</p><p>esfera do Direito Civil. Para esse ramo do Direito, restou a atribuição de</p><p>regular as relações entre particulares quanto ao uso, gozo e disposição da</p><p>propriedade.</p><p>Os arts. 182 e 183 da Constituição Federal versam sobre a política urbana</p><p>e os arts. 184 até 191 tratam da política agrícola e fundiária e da reforma</p><p>agrária. Nesses dispositivos, é possível verificar diversas normas que limitam</p><p>e regulam a propriedade no Brasil, sendo verdadeiros baluartes na prática do</p><p>princípio da função social da propriedade. Neles se encontram, por exemplo,</p><p>os fundamentos da desapropriação, da usucapião (constitucional urbano e</p><p>rural), da reforma agrária, dentre outros.</p><p>Além da função social, também está limitado o direito de propriedade de</p><p>acordo com a sua função socioambiental. O direito de propriedade assegura</p><p>a utilização dos recursos naturais existentes no imóvel próprio. No entanto, a</p><p>exemplo da propriedade em geral, esse direito encontra limitações se manifes-</p><p>tam em prol da preservação do meio ambiente. Então, a função socioambiental</p><p>busca solucionar o conflito de interesses entre o direito à propriedade privada</p><p>e o direito ao meio ambiente ecologicamente preservado, ambos amparados</p><p>pela Constituição Federal brasileira.</p><p>De acordo com Luisa Braga Cançado Ferreira e Edna Cardozo Dias (2007),</p><p>a função socioambiental da propriedade compreende um conjunto de direitos</p><p>e deveres que cerceiam o uso, o gozo, a disposição e a fruição do domínio ou</p><p>posse de um determinado espaço público ou privado, seja ele rural ou urbano.</p><p>Esse modo de operar, notadamente em favor não só de interesses particulares,</p><p>mas também de interesses sociais, justifica-se pela necessidade de realizar</p><p>dentro de um regime democrático de direito o objetivo primordial de suprir</p><p>as carências básicas de todos os indivíduos da sociedade indistintamente. Tal</p><p>suprimento, que se insere no contexto das garantias fundamentais do homem,</p><p>torna-se exequível por meio de normas constitucionais e infraconstitucionais</p><p>que regulamentam as relações de apropriação e uso da terra. Dentre os direitos</p><p>fundamentais do homem, merecem destaque para o presente caso: meio am-</p><p>biente ecologicamente equilibrado, liberdade, saúde, alimentação, segurança,</p><p>habitação, transporte, infraestrutura (em especial, energia e saneamento básico),</p><p>serviços sociais, trabalho e lazer.</p><p>Além dos artigos constitucionais anteriormente citados, para dar susten-</p><p>tação legal ao princípio da função social da propriedade ao tratar da função</p><p>socioambiental, é válido enfatizarmos parte do capítulo da Carta Magna</p><p>dedicado ao meio ambiente:</p><p>Da propriedade em geral300</p><p>Legislacao_Civil_Aplicada_II_Book.indb 300 22/05/2018 13:31:55</p><p>Art. 225 Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem</p><p>de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao</p><p>Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as</p><p>presentes e futuras gerações.</p><p>§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:</p><p>I — preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo</p><p>ecológico das espécies e ecossistemas;</p><p>III — definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus</p><p>componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão</p><p>permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa</p><p>a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;</p><p>IV — exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencial-</p><p>mente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio</p><p>de impacto ambiental, a que se dará publicidade;</p><p>VII — proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que</p><p>coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies</p><p>ou submetam os animais a crueldade.</p><p>§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão</p><p>os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,</p><p>independentemente da obrigação de reparar os danos causados (BRASIL,</p><p>1988, documento on-line).</p><p>Assim, todos dispõem do direito a um meio ambiente ecologicamente</p><p>equilibrado e dos instrumentos para assegurar a efetividade desse direito, tais</p><p>como a definição de espaços especialmente protegidos, a vedação da utiliza-</p><p>ção desses espaços de maneira que comprometa a integridade dos atributos</p><p>ambientais protegidos, a previsão de sanções penais e administrativas aos</p><p>infratores da ordem legal, etc.</p><p>Ao retomarmos as proposições de Ferreira e Dias (2007), verificamos que a</p><p>função socioambiental da propriedade está no cerne dos direitos fundamentais</p><p>do homem inserido no Estado Democrático de Direito, uma vez que para que</p><p>seja reconhecido o direito de propriedade e a ela se conceda a proteção legal</p><p>devida, a propriedade deve atender, concomitante com os interesses particulares,</p><p>os interesses coletivos. Portanto, a propriedade deve produzir bens que satisfaçam</p><p>as necessidades sociais, atendendo à ordem econômica, e seus recursos devem</p><p>ser utilizados de maneira racional, garantindo assim a preservação do meio</p><p>ambiente e a qualidade de vida para as gerações atuais e futuras.</p><p>Assim, embora a propriedade resguarde um direito individual do proprie-</p><p>tário, ela deve ser exercida com observância a interesses sociais. Não pode</p><p>ser exercida sem o cuidado ao espaço que ocupa e sem a preocupação com o</p><p>entorno, ou seja, com as relações pessoais e ambientais envolvidas.</p><p>301Da propriedade em geral</p><p>Legislacao_Civil_Aplicada_II_Book.indb 301 22/05/2018 13:31:55</p><p>Como parte integrante do rol de direitos constitucionalmente prote-</p><p>gidos, o direito à propriedade não pode se distanciar do sistema no qual</p><p>está inserido e, portanto, necessita se harmonizar com os demais direitos</p><p>garantidos pela Constituição, em especial com o da proteção da dignidade</p><p>da pessoa humana. Observando a sua função socioambiental, a propriedade</p><p>deve respeitar o direito à moradia, ao uso racional dos recursos naturais e à</p><p>inclusão social, priorizados em relação a qualquer interesse particular para</p><p>atingir o objetivo do bem-estar social.</p><p>Acesse</p><p>os links abaixo para ler matérias sobre a função social e socioambiental da</p><p>propriedade e sobre as diferenças entre posse e propriedade.</p><p>https://goo.gl/hXkmWr</p><p>https://goo.gl/NAt9g</p><p>https://goo.gl/MwZ7UU</p><p>Posse é um fato que natural, como o observado na seguinte narrativa: “seu João</p><p>chegou nestas terras abandonadas faz 20 anos e sempre as utilizou e cuidou como se</p><p>fosse o seu dono”. Já a propriedade é um direito criado pela sociedade, como quando</p><p>alguém fala: “sou proprietário daquela casa, tenho escritura em meu nome, registrada</p><p>junto à matrícula do imóvel no cartório de registro de imóveis”.</p><p>Propriedade limitada: há o desmembramento e um ou mais atributos são transferidos</p><p>a outra pessoa. Essa situação ocorre, por exemplo, quando mesmo transferindo a</p><p>propriedade de um imóvel para os seus filhos, um pai reserva para si o direito de</p><p>usufruto sobre esse mesmo bem. Nesse caso, os direitos de usar e gozar se reservam ao</p><p>usufrutuário (o pai), ao passo que os direitos de dispor e reaver se reservam aos filhos.</p><p>Da propriedade em geral302</p><p>Legislacao_Civil_Aplicada_II_Book.indb 302 22/05/2018 13:31:55</p><p>https://goo.gl/hXkmWr</p><p>https://goo.gl/NAt9g</p><p>https://goo.gl/MwZ7UU</p><p>1. Quais são os quatro atributos</p><p>da propriedade?</p><p>a) Usar, gozar, dispor e reaver.</p><p>b) Usar, locar, vender e reaver.</p><p>c) Locar, vender, reaver</p><p>e reapropriar.</p><p>d) Reaver, dispor, doar e alugar.</p><p>e) Gozar, dispor, reaver e alugar.</p><p>2. A propriedade é, sobretudo:</p><p>a) plena, exclusiva,</p><p>perpétua e elétrica.</p><p>b) plena, absoluta,</p><p>perpétua e elástica.</p><p>c) plena, exclusiva,</p><p>perpétua e elástica.</p><p>d) plena, exclusiva,</p><p>temporária e elástica.</p><p>e) plena, inclusiva,</p><p>temporária e elástica.</p><p>3. A função socioambiental</p><p>busca solucionar o conflito</p><p>de interesses entre:</p><p>a) o Código Civil e a</p><p>Constituição Federal.</p><p>b) a propriedade privada e o</p><p>direito ao meio ambiente</p><p>ecologicamente preservado.</p><p>c) a propriedade e a posse.</p><p>d) o usucapião e a reforma agrária.</p><p>e) a propriedade privada e a</p><p>função social da propriedade.</p><p>4. Quais são as duas principais</p><p>teorias que se destacam ao</p><p>tentar explicar a posse?</p><p>a) A teoria subjetiva de Ihering e</p><p>a teoria objetiva de Savigny.</p><p>b) Os atributos e direitos.</p><p>c) O princípio da função social e</p><p>socioambiental da propriedade.</p><p>d) A posse mansa e a posse pacífica.</p><p>e) A teoria subjetiva de Savigny e</p><p>a teoria objetiva de Ihering.</p><p>5. Como parte integrante do rol</p><p>de direitos que contam com</p><p>proteção constitucional, o direito à</p><p>propriedade não pode se distanciar</p><p>do sistema no qual está inserido.</p><p>Portanto, ele necessita se harmonizar</p><p>aos demais direitos garantidos</p><p>pela Constituição, em especial</p><p>com o da proteção da dignidade</p><p>da pessoa. Observando a função</p><p>socioambiental da propriedade,</p><p>assinale a alternativa que apresenta</p><p>os direitos que ela deve observar.</p><p>a) Direito à moradia, ao uso</p><p>racional dos recursos naturais</p><p>e à inclusão social.</p><p>b) Direito à moradia, à vida e</p><p>princípio da legalidade.</p><p>c) Uso racional dos recursos</p><p>naturais, inclusão social e</p><p>liberdade de contratar.</p><p>d) Direito à vida, princípio</p><p>da legalidade e princípio</p><p>do consentimento.</p><p>e) Posse indireta, propriedade</p><p>plena e elasticidade.</p><p>303Da propriedade em geral</p><p>Legislacao_Civil_Aplicada_II_Book.indb 303 22/05/2018 13:31:56</p><p>BRASIL. Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial [da]</p><p>República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: . Acesso em: 9 maio 2018.</p><p>DINIZ, M. H. Curso de Direito Civil brasileiro. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. v. 4.</p><p>EVANGELISTA, E. R. A função social da propriedade e o conceito de princípio jurídico.</p><p>Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3594, 4 maio 2013. Disponível em: . Acesso em: 9 maio 2018.</p><p>FERREIRA, L. B. C.; DIAS, E. C. A função sócio-ambiental da propriedade. Âmbito Ju-</p><p>rídico, Rio Grande, XI, n. 51, mar 2008. Disponível em: . Acesso</p><p>em: 9 maio 2018.</p><p>GONÇALVES, C. R. Direito Civil brasileiro: Direito das Coisas. 13. ed. São Paulo: Saraiva,</p><p>2018. v. 5.</p><p>MONTEIRO, W. B.; MALUF, C. A. D. Curso de Direito Civil. 44. ed. São Paulo: Saraiva,</p><p>2015. v. 3.</p><p>SILVA, B. D. Distinção entre Posse e Propriedade. In: Artigos.com, 15 mar. 2010. Disponível</p><p>em: . Acesso em: 9 maio 2018.</p><p>Da propriedade em geral304</p><p>Legislacao_Civil_Aplicada_II_Book.indb 304 22/05/2018 13:31:56</p><p>http://planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm</p><p>http://jus.com.br/artigos/24354</p><p>http://www.ambito/</p><p>http://com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2489</p><p>http://www.artigos.com/artigos-academicos/6005-distincao-entre-posse-e-</p><p>Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para</p><p>esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual</p><p>da Instituição, você encontra a obra na íntegra.</p><p>Conteúdo:</p>