Logo Passei Direto
Buscar
Material
páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.

Prévia do material em texto

<p>UNIP UNIVERSIDADE PAULISTA Interativa Linguística Geral Autora: Profa. Maria Otilia Guimarães Ninin Colaboradores: Profa. Joana Ormundo Profa. Cielo Griselda Festino Prof. Adilson Silva Oliveira Profa. Marcia Selivon</p><p>Professora conteudista: Maria Otilia Guimarães Ninin Olá, caro aluno. Elaborei este livro-texto para você e como ao longo do curso não teremos contato presencial, apresento-me de maneira breve. Sou professora da UNIP há 8 anos. Iniciei em 2003, como professora de Linguística no curso de Letras, e de lá para cá venho desenvolvendo atividades nessa área. Também já coordenei curso de Letras (de 2003 a 2007) nos campi Alphaville SP, Cidade Universitária SP e Verqueiro SP. Atualmente, leciono e coordeno curso de pós-graduação lato sensu em Língua Portuguesa e Literatura, oferecido pela universidade no campus Vergueiro SP. Tenho mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e cursos lato sensu de menor duração (especialização em Pedagogia e Didática do Ensino Superior) pela Universidade São Judas SP e pela Universidade Metodista - SP. Minha primeira graduação é Matemática, pela UNESP de Rio Claro SP. Durante 0 período de desenvolvimento de minha pesquisa de doutorado, tive a oportunidade de estagiar durante um semestre na Universidade de Bath (Inglaterra) e ser orientada pelo professor Dr. Harry Daniels. Atualmente, desenvolvo pesquisa de pós-doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na área de Linguística Sistêmico-Funcional, com foco na elaboração de texto acadêmico, pois, como tenho muito gosto pelo trabalho de orientação aos TCCs, decidi dedicar-me à elaboração de metodologias de trabalho que ajudem alunos no desenvolvimento do gênero textual monografia. Espero que você, após mergulhar nos estudos da linguagem, volte seu interesse aos cursos de pós-graduação e aprimore cada vez mais seus conhecimentos nessa área tão rica, que oportuniza a todos nós envolvimento com outro por meio dos recursos linguístico-discursivos. Grande abraço e ótimo curso! Maria Otilia Guimarães Ninin Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S464 Ninin, Maria Otilia Guimarães Linguística Geral. / Maria Otilia Guimarães Ninin. São Paulo: Editora Sol, 2011. 116 p. il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. ISSN 1517-9230. 1.Linguística 2.Gerativismo CDU 801 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista.</p><p>Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa - EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático - EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista - EaD Profa. Betisa Malaman - Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Aileen Nakamura Amanda Casale</p><p>Sumário Linguística Geral APRESENTAÇÃO 7 INTRODUÇÃO 8 Unidade 1 ASPECTOS HISTÓRICOS DA CIÊNCIA E SEU DESENVOLVIMENTO 9 1.1. A gramática tradicional e suas articulações 13 1.2 A linguística: a visão científica dos estudos linguísticos - ciência social/humana, empírica, objetiva, descritiva e explicativa 20 1.2.1 Prioridades dos estudos linguísticos: língua/fala; língua escrita; análise descritiva/prescritiva; estudos sincrônicos/diacrônicos 20 2 DA MUDANÇA DE ABORDAGEM - DA GRAMÁTICA TRADICIONAL PARA A LINGUÍSTICA - PARA 0 ENSINO DE LÍNGUA MATERNA E LÍNGUA ESTRANGEIRA 31 2.1 Contraposição entre a visão tradicional e a visão linguística 33 2.2 Perspectiva normativa e denominado preconceito linguístico 37 2.3 0 foco na forma (gramática tradicional) e não no conteúdo - tomando por base a visão contida nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) 38 Unidade 3 0 ESTRUTURALISMO E 0 GERATIVISMO: CONCEITOS BÁSICOS 43 3.1 estruturalismo - conceitos básicos 43 3.2 Os conceitos dicotômicos em Saussure 45 3.2.1 0 signo linguístico 45 3.2.2 Significado e significante/arbitrariedade e linearidade do signo linguístico 46 3.2.3 Língua/fala e linguagem 50 3.2.4 Sincronia e diacronia 54 3.2.5 Relações sintagmáticas e paradigmáticas 55 3.3 0 estruturalismo e método descritivo de análise 57 3.3.1 Os limites da análise estruturalista: a frase (a exclusão da fala - sujeito e do contexto sócio-histórico) 58 4 0 ESTRUTURALISMO AMERICANO E A PSICOLOGIA BEHAVIORISTA NA EXPLICAÇÃO SOBRE A AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM 59 4.1 Implicações para ensino de língua materna e língua estrangeira 60 5 0 GERATIVISMO: VISÃO INATISTA DE AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM 62</p><p>5.1 Contra-argumentos do gerativismo (Chomsky) à visão behaviorista de aprendizagem da linguagem 63 5.1.1 Capacidade inata: meio ambiente fornece modelos linguísticos para um sujeito competente 64 5.1.2 Capacidade específica da espécie 64 5.1.3 Criatividade linguística 65 5.1.4 Complexidade X tempo de aquisição 65 5.1.5 Capacidade linguística inata, específica da espécie e universal 66 5.1.6 Os conceitos de aquisição X aprendizagem de linguagem 67 6 CONCEITOS BÁSICOS DO GERATIVISMO E ANÁLISE GERATIVISTA 68 6.1 Competência e desempenho 70 6.2 Gramaticalidade e aceitabilidade 71 A intuição linguística 73 6.4 Produtividade dos sistemas linguísticos X criatividade linguística dos sujeitos falantes 74 6.5 Princípios e parâmetros 74 6.6 0 modelo de análise gerativista: explicativo 75 6.7 Os limites de análise no gerativismo 76 Unidade III 7 ÁREAS DE ANÁLISE LINGUÍSTICA: FONÉTICA, FONOLOGIA, MORFOLOGIA, SINTAXE, SEMÂNTICA 82 7.1 A dupla articulação da linguagem: unidades significativas/unidades não significativas 83 7.1.1 A linguagem humana e a linguagem dos animais 87 8 FONÉTICA 89 8.1 Fonética acústica, perceptual e articulatória 90 8.2 0 aparelho fonador 91 8.3 Produção dos sons da fala: respiração, vozeamento/desvozeamento articulação 93 8.4 0 alfabeto fonético internacional 95 8.5 Classificação articulatória (visando ao reconhecimento dos fonemas do português brasileiro e do inglês) 95</p><p>APRESENTAÇÃO Neste livro-texto você encontrará os conteúdos de Linguística Geral organizados de forma a propiciar um contato com os principais conceitos estudados na área e sua relação com as práticas sociais de linguagem. conteúdos desenvolvidos têm por objetivo mostrar a você a relevância dessa ciência da linguagem, a linguística, para 0 profissional de ensino. Espero que você, ao estudar 0 que aqui está proposto, faça de forma crítica, questionando suas convicções sobre uso da língua e procurando argumentos teóricos que as sustentem. Para dar conta dessa tarefa, sugiro que, ao participar de fóruns de discussão ou ao realizar as atividades propostas no ambiente AVA, tenha sempre em mãos este livro-texto e procure não somente encontrar aqui seus argumentos como anotar todo e qualquer aspecto relevante para 0 desenvolvimento de sua competência linguística. Observe que há pequenas notas no decorrer do texto, complementando as informações teóricas apresentadas ou sugerindo atividades a você. Essas notas podem auxiliá-lo no aprofundamento dos conteúdos e também indicam possibilidades para novas pesquisas na internet e em seu contexto. Utilize os espaços destinados à sua escrita pessoal para exemplificar cada conceito, escolhendo situações concretas de uso da língua, quando possível. Ao participar de um fórum, não se esqueça de compartilhar suas descobertas. A disciplina Linguística Geral tem por objetivos gerais propiciar contextos para que: aluno compreenda a relevância do conhecimento linguístico na formação do profissional de ensino de língua materna ou de segundas línguas; por meio da observação de situação de uso da aluno adquira uma visão panorâmica da ciência Linguística, considerando-a como recurso essencial para 0 conhecimento e a significância de mundo. Como objetivos específicos, a disciplina visa a propiciar ao aluno: familiarização com as principais teorias linguísticas; compreensão do caráter inter e transdisciplinar da Linguística; desenvolvimento de uma postura crítico-reflexiva em relação ao uso da língua e ao seu papel social; desenvolvimento do raciocínio abstrato por meio das práticas discursivas; compreensão do papel da Linguística como um instrumento de prática docente; 7</p><p>estabelecimento de uma relação entre teoria e prática, tanto nos contextos de ensino de língua materna quanto de segunda língua. INTRODUÇÃO A partir desta leitura você entrará em contato com os conceitos mais relevantes da área da ciência da linguagem denominada linguística. Por tratar-se de uma ciência ainda desconhecida para muitos e mesmo para aqueles que se interessam e se voltam para os estudos do fenômeno da linguagem, como estudantes de um curso de Letras, será feita, inicialmente, uma breve exposição histórica que leva ao nascimento da linguística como ciência autônoma, com especial destaque à ruptura com a visão da gramática tradicional que, conforme a experiência tem demonstrado, tem sido a base de formação dos estudantes de Ensino Fundamental e Médio, em língua portuguesa. É exatamente a partir dessa ruptura que a área denominada linguística está definida. Assim, optamos por apresentar duas teorias estruturalismo e gerativismo muito importantes, de modo que você entenda as diferentes perspectivas científicas do estudo da linguagem. 0 conhecimento de pelo menos alguns dos conceitos básicos dessas duas teorias visa a fornecer uma base para aprofundamento das reflexões em disciplinas voltadas para outras abordagens teóricas e análise de aspectos específicos da linguagem e do ensino de línguas. Ainda com esse mesmo objetivo, serão apresentadas áreas de análises linguísticas para que você tenha uma visão mais global de vários aspectos sobre os quais a linguagem pode ser estudada, despertando para sua complexidade e dirigindo 0 olhar, neste momento, para os sons da fala, por meio da fonética. Sem perder objetivo da reflexão teórica sobre a linguagem, sempre que possível serão estabelecidas relações entre a perspectiva linguística e a prática do ensino de línguas. 8</p><p>LINGUÍSTICA GERAL Unidade I 1 LINGUÍSTICA: ASPECTOS HISTÓRICOS DA CIÊNCIA E SEU DESENVOLVIMENTO Rodolfo (1985, p.10), em seu livro "A Linguística e Ensino da Língua Portuguesa", enfatiza 0 papel da ciência Linguística em relação aos objetivos que se tem para ensino da língua materna. Afirma autor que ao se considerar como objetivos de um curso de Letras preparar aluno para que ele seja capaz de "examinar criticamente os recursos didáticos que a indústria editorial proporciona" ao futuro professor e, ainda, "avaliar as potencialidades e limitações que caracterizam a expressão e a comunicação dos alunos", essa graduação não poderia deixar de lado estudo que justamente focaliza diferentes aspectos da quer em termos teóricos relacionados aos conceitos, quer em relação à linguagem em uso. Lembrete A Linguística é, portanto, essa disciplina, por apresentar-se como uma área de estudos da linguagem que mostra entrecruzamento de diferentes pontos de vista sobre a 0 autor afirma ainda que um dos grandes propósitos de se ter a disciplina Linguística inserida nos cursos de Letras é proporcionar ao futuro profissional das letras a prática de investigações sobre a linguagem e a abrangência de possibilidades para análise das situações de linguagem presentes socialmente. Em relação ao ensino, afirma Faraco (2007, p. 24-25) que cabe ao ensino (...) garantir [ao falante] um trânsito amplo e autônomo pela heterogeneidade linguística em que vive e não concentrar-se apenas no estudo de um objeto autônomo e despregado das práticas socioverbais (o estrutural em si). Observação 0 que nos diz Faraco corresponde exatamente que vem sendo tão discutido hoje em dia, em diferentes documentos que orientam ensino da língua materna: um aprendiz não deve aprender a língua apenas para conhecer seu funcionamento, mas, acima de tudo, para entender como ela funciona social e culturalmente. 9</p><p>Unidade I A linguística, como toda ciência, tem seus próprios termos técnicos, que serão utilizados sempre que se fizerem necessários, acompanhados de explicações detalhadas de modo a torná- los claros a você. Tenha sempre em mente que 0 uso de termos técnicos pelas ciências tem por objetivo evitar ambiguidades e mal-entendidos. Sugerimos, portanto, que você leia atentamente todos os conceitos aqui apresentados para que possa compreender e se encantar com esta ciência que tem por objetivo a explicação de uma das capacidades mais do ser humano: a linguagem. Um ponto interessante presente na história das civilizações e descrita desde a antiguidade, é a forma como historiadores e estudiosos de modo geral referem-se à origem das diferentes línguas. 0 relato sobre a Torre de Babel mostra como é de longa data que a linguagem exerce grande fascínio sobre ser humano. A Torre de Babel é mencionada no livro bíblico do Gênesis como uma torre enorme construída pelos descendentes de Noé, com a finalidade de tocar os céus. Deus, irado com a ousadia humana, teria feito com que todos os trabalhadores da obra começassem a falar em idiomas diferentes, de modo a que não se pudessem entender e, assim, acabassem por abandonar a sua construção. Foi esse episódio que, segundo a Bíblia, explicou a origem dos idiomas na humanidade (consultar Gênesis 10:10; 11:1-9). A palavra Babel vem do aramaico Babilu, que significa "Portão de Deus", nome dado à Babilônia. Em hebraico, bilbel significa "confusão" (DUARTE, 2003, p.36). efinirlinguagem tem sido tarefa de muitos linguistase estudiosos ao longo dos Uma características relevantes em relação à linguagem é, por exemplo, fato de que não existe sociedade sem linguagem. Petter (2002, p.11) afirma que "o que se produz como linguagem ocorre em sociedade", e afirma ainda: como realidade material organização de sons, palavras, frases -, a linguagem é relativamente autônoma; como expressão de emoções, ideias, propósitos, no entanto, ela é orientada pela visão de mundo, pelas injunções da realidade social, histórica e cultural de seu falante. Vejamos uma breve história do estudo da linguagem no quadro a seguir, baseado em Petter (2002, p. 12-13). Quadro 1 - Breve história da linguagem HINDUS (SÉC. IV a.C.) Estudo da língua para garantir unicidade em relação às interpretações e pregações religiosas relativas aos textos do livro sagrado Veda. Panini gramático hindu, realizou uma descrição minuciosa da língua para produzir modelos de análise. GREGOS Busca da relação entre a palavra e seu significado: as palavras imitam as coisas? Ou os nomes são dados por convenção? 1 Adaptado de: Acesso em: 20 out. 2010. 10</p><p>LINGUÍSTICA GERAL Discussão de Platão (no diálogo sobre a relação entre a palavra e objeto ou coisa que essa palavra representa. Discussão de Aristóteles sobre a análise da estrutura linguística, teoria da frase, distinção das partes do discurso, categorias gramaticais. LATINOS Varrão adaptação da gramática grega para o latim; gramática vista como ciência e como arte. IDADE MÉDIA Gramática como algo universal, independentemente da língua utilizada. SÉCULOS XVII e XVIII Gramática de Port Royal (1660) linguagem se funda na razão, é imagem do pensamento; princípios de análise servem a qualquer língua. SÉCULO XIX Gramática comparativa comparava entre si elementos de línguas distintas, em busca de origens comuns e de reconstituir as línguas de onde se originaram. Linguística histórica explicava a formação e a evolução da língua. Mudanças observadas nos textos escritos explicadas por mudanças ocorridas na língua falada. LINGUÍSTICA MODERNA Tem como um de seus princípios fundamentais estudo da língua falada. PAPEL DO LINGUISTA Investigar os fatos, orientado por um quadro teórico específico que estabeleça relações entre língua e fala, inseridas em situações sociais e culturais. Nossa tarefa, a partir de agora, é desenvolver e aprofundar os conhecimentos da chamada ciência linguística. É fato que toda a curiosidade humana em torno do desenvolvimento da linguagem, de seu surgimento, dos porquês relacionados à diversidade de maneiras encontradas pelos seres humanos de diferentes regiões da Terra para expressarem que pensam sobre tudo aquilo que os cerca, pode ser considerado elemento da necessidade de se criar uma ciência que estudasse exatamente essas questões e se dedicasse a entender, descrever e explicar papel da linguagem no desenvolvimento humano, como bem pudemos ver no que já foi exposto. Pois bem. Essa ciência é a Linguística. Muitos estudiosos têm se dedicado a perguntar sobre a relevância social dos estudos linguísticos. Conforme afirma Oliveira (2007, p.79), ao discutir a "virada e a relevância social da linguística e dos linguistas", nunca houve tanto empenho em se discutir essa questão e também nunca os programas de pós-graduação se dedicaram tanto quanto atualmente a discutir ensino da linguística e sua importância social. Por muito tempo a linguagem estudada teve seu foco na literatura e, nesse período, que se considerava era que a língua deveria ser comportada, ou seja, não poderia fugir às convenções e regras ditadas pela área da literatura. 0 rompimento com essa ideia veio, na verdade, no século XX. Não desprestigiando uma ou outra área, fato é que os estudos da linguagem se separaram dos estudos da literatura e somente a partir de então os estudos linguísticos adquiriram um papel de relevância social. Neles também veremos momentos de separação e de rompimentos que fazem parte do avanço da ciência linguística. 2 Platão mostra em seu diálogo Crátilo, considerado texto básico da filosofia helênica sobre a linguagem, questões linguísticas e filosóficas. A grande indagação nesse diálogo é sobre a questão de que a palavra é apenas nome e, por isso, não representa verdadeiro ser. A principal discussão nesse diálogo é sobre a relação entre a palavra e aquilo que ela representa. Platão mostra como Crátilo o filósofo de Heráclito procura resolver 0 problema, porém, sem solução, pois não há uma conclusão sobre a diferença entre a linguagem e a realidade. Adaptado em 15. Set. 2010. 11</p><p>Unidade I Esse é foco de todo 0 nosso trabalho aqui: apresentar essa caminhada da ciência em direção a melhores e mais fundamentadas discussões sobre língua, linguagem e seu papel social. Linguística é estudo da língua/linguagem verbal humana. Essa é uma definição ampla que remonta a um passado bastante longínquo antes de Cristo -, já que compreender e conhecer a linguagem humana sempre esteve entre as reflexões daqueles que buscavam ou buscam entender os comportamentos humanos ou 0 próprio ser humano. Uma compreensão sobre a linguagem e as línguas está presente nos textos bíblicos, como é caso da explicação da origem dos vários idiomas conhecida como Torre de Babel, que ilustra que está sendo dito Segundo Weedwood (2002, p.9), 0 uso da palavra linguística remonta aos meados do século XIX. Nessa época, a palavra era utilizada para "enfatizar a diferença entre uma abordagem mais inovadora do estudo da língua, que estava se desenvolvendo na época, e a abordagem mais tradicional da filologia". Porém, a linguística como é conhecida hoje e como será apresentada neste texto, teve início no começo do século XX. Trata-se da linguística entendida como uma ciência, a ciência da linguagem, ou estudo científico da linguagem. Nesse sentido, pode-se falar da linguística como uma ciência recente (CABRAL, 1976; MARTINET, 1978; ORLANDI, 2002; PETTER, 2002). Observação Que tal uma rápida busca na internet ou no dicionário? Conhecer significado de filologia ajudará você a entender que afirma Weedwood. Lembre-se: nem todo site da internet é confiável. Por isso, procure, inicialmente, por sites de universidades ou comprovadamente científicos. Seja lá que você encontrar, vale sempre confrontar com que já foi estudado e confrontar com outros autores. Essa é a regra número 1 para as buscas na web. É interessante também discutirmos um pouco papel do linguista. Quem é ele, afinal? Martin (2003, p.8) afirma que "o linguista é aquele que possui um saber sobre as línguas e sobre a função da linguagem". Ao mesmo tempo em que afirma isso, Martin traz para a discussão um aspecto muito importante: linguista, em sua função, está eternamente desconfortável, pois, como diz (op cit., p.12), milhares de idiomas se oferecem ao seu estudo: línguas nacionais, línguas dialetos ou patoás (isto é, idiomas que variam ligeiramente de uma localidade para outra e que, por isso mesmo, se diferenciam insensivelmente, sem que se faça sentir a necessidade, como nas 'línguas', de um esforço de unificação, uma vez que a intercompreensão, sucessivamente, é sempre possível), pidgins (isto é, idiomas compósitos e simplificados, que permitem intercâmbio em situações específicas, comerciais, por exemplo) e crioulos (isto é, pidgins enriquecidos, que se 12</p><p>LINGUÍSTICA GERAL tornaram idioma de pleno exercício de uma comunidade). Inútil dizer que campo de competência de um linguista é inevitavelmente restrito. Além do mais, a linguística se situa na encruzilhada de disciplinas extremamente variadas. Essa encruzilhada, à qual se refere Martin, faz com que linguista ora atue trazendo para suas discussões a sociologia, ora trazendo a psicologia ou outras ciências. 0 fato mais importante, na verdade, é que a língua, como prática social, tem conquistado espaço nos estudos da ciência linguística. Agora que já apresentamos a você uma ideia inicial sobre a origem da linguística, bem como todo emaranhado que circunda essa ciência, que tal um estudo mais aprofundado sobre a história da linguística? Vamos lá! Os estudos linguísticos têm revelado que uma das primeiras preocupações do homem em relação à compreensão da linguagem foi a de descrever seu funcionamento. A essa descrição, pautada em regras, chamava-se gramática. Ela constitui, dessa forma, os primeiros construtos teóricos a partir dos quais a linguística passou a ser descrita e estudada. Nada mais justo do que iniciarmos a revisão histórica dessa ciência a partir da gramática, denominada hoje gramática tradicional. 1.1. A gramática tradicional e suas articulações Ao ser questionada sobre que caracteriza uma gramática, Jania pesquisadora de estudos linguísticos e autora de livros da área, comenta sobre a ambiquidade do termo gramática. Para ela, uma das acepções seria um certo tipo de conhecimento que todo falante de uma língua possui, conhecimento este que lhe permite produzir e interpretar sentenças. Outra acepção de gramática seria um conjunto de regras que teria como objetivo explicitar que é a língua culta. Segundo Trask (2004, p.130), considera-se gramática tradicional "todo corpo de doutrina gramatical elaborado na Europa e na América antes do aparecimento da linguística moderna no século XX". Os fundamentos da gramática tradicional eram, portanto, orientados para a análise da língua escrita e, por não reconhecer as diferenças entre língua escrita e língua falada, acabavam por difundir falsos conceitos sobre a natureza da linguagem. Ou seja, modelo considerado correto para se expressar linguisticamente era aquele da língua escrita. A gramática se preocupava em prescrever uso correto da língua. Essa gramática tradicional nada mais é do que a que sempre estudamos na escola, desde as séries iniciais. Ela está voltada ao reconhecimento dos elementos constituintes da língua, aos exercícios de análise sintática e de conjugação verbal, que focalizam, via de regra, a correção 3 Entrevista concedida por Jânia Ramos a Artarxerxes Modesto, na Revista Letra Magna. Disponível em: etramagna.com>. Acesso em: 20 out. 2010. 13</p><p>Unidade I dos "desvios" cometidos em relação ao uso da língua. "Desvios" porque, quando olhamos para essa gramática, percebemos como ela se preocupa com uma língua determinada por estruturas e padrões, que não poderiam ser violados jamais, e não demonstra preocupações em relação à forma como essa língua e seu uso tiveram origem, como se deu seu desenvolvimento, quais suas finalidades. Assim entendida, a gramática tradicional é um modelo teórico voltado à descrição da língua e de suas estruturas. A gramática tradicional também tem sido chamada de gramática normativa ou gramática prescritiva. Essa gramática é anterior ao advento da linguística e se caracteriza como uma tentativa de estabelecer um "ordenamento lógico em uma dada língua e definir normas que determinam 0 que é correto ou não no uso dessa língua. Esse ordenamento lógico ao qual nos referimos nasceu de uma necessidade imposta aos estudiosos já no tempo dos gregos, com Aristóteles. Discutia-se, naquela época, uma séria questão sobre a língua e sobre os nomes dados às coisas. A grande questão era decidir entre duas correntes de pensamento: uma delas afirmava que as palavras correspondiam às imagens do que está no mundo, e a outra, que as palavras, arbitrariamente criadas pelos seres humanos, não refletiam perfeitamente a realidade. Toda essa discussão se fundamentava na ideia de que havia uma relação lógica entre língua e lógica e que, dessa forma, a tendência da gramática passa a ser relacionar as questões da língua à lógica, procurando leis para explicar a forma como raciocínio do ser humano se organizava em relação à língua. Você já percebeu que essa gramática fortalece a postura de se considerar os eventos da língua como certos ou como errados, como de acordo ou não com as normas estabelecidas como adequadas e corretas. E mais: essa postura prevalece em muitas escolas até hoje, assim como em muitos materiais didáticos voltados ao ensino tanto de língua materna quanto de segundas línguas. É uma pena, não é mesmo? Mas uma coisa é certa: as teorias derivadas dos conhecimentos linguísticos têm desenvolvido grande quantidade de pesquisas e essa abordagem não tem sido criticada como já há muitos avanços em direção a metodologias que consideram a língua como dinâmica, culturalmente situada, sem preconceitos. Um exemplo disso é a existência dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa e de Línguas Estrangeiras, documentos que orientam 0 ensino nessas áreas de modo a superar essa visão rígida da língua. A seguir, destacamos ponto de vista da gramática tradicional e como essa gramática focalizava a análise prescritiva. Segundo Saussure (1973, p.15), 0 ponto de vista que cria 0 objeto". Nos livros de introdução à linguística, é muito comum encontrarmos um capítulo ou pelo menos algumas páginas dedicadas à história da linguística, que parecem ter sempre objetivo de mostrar como se chegou aos estudos científicos do fenômeno da linguagem, separados do senso comum por um lado, e dos estudos filosóficos por outro. 14</p><p>LINGUÍSTICA GERAL Referir-se aos estudos no plural aqui é intencional para, desde início, conscientizar você de que na linguística, tão bem quanto em outras ciências, não existe uma única explicação entendida como a verdadeira. São encontradas diversas e distintas explicações, no caso, para a linguagem humana, e diversas e distintas análises da língua. Esses estudos pertencem todos à mesma ciência, pois se dedicam ao mesmo fenômeno, à linguagem humana, e partilham algumas ideias comuns, as quais serão apresentadas a seguir. Distintas e diversas explicações são resultantes de perspectivas diferentes sobre as quais fenômeno é analisado. A gramática tradicional, como tantas outras das nossas tradições acadêmicas, remonta à Grécia do séc. V a.C. Para os gregos, a foi desde início uma parte da isto é, era uma parte da sua indagação geral sobre a natureza do mundo que os cercava e das suas instituições sociais (LYONS, 1979, p.4). Um exemplo desses chamados livros de iniciação à linguística é do linguista inglês John Lyons, autor conhecido e reconhecido na área. Em obra traduzida e publicada no Brasil em 1979, autor dedica 38 páginas do primeiro capítulo do livro para tratar desse assunto, apresentando perspectivas que antecedem que ele denomina de "a linguística moderna". À linguística, ou mais especificamente aos estudos da linguagem dos tempos antigos, o autor chama de "gramática tradicional", ou seja, a gramática voltada às especulações dos filósofos gregos do século na busca de compreensão sobre homem e mundo em que viviam. Muitos conceitos da linguística moderna, bem como muitos termos ligados ao estudo da linguagem ou das línguas como são analisadas hoje, e que serão vistos ou usados no decorrer deste texto, encontram suas bases nessas discussões filosóficas. Veja exemplos dessas indagações, iniciadas em épocas anteriores a Cristo, pelos povos gregos: Há alguma relação natural entre significado de uma palavra e a forma dessa mesma palavra? Qual é a origem da(s) língua(s)? Existe regularidade nas línguas? Todas as línguas têm palavras para os mesmos conceitos (mesmo que essas palavras não sejam as mesmas)? Os filósofos gregos acreditavam que "significado de uma palavra podia estender-se em virtude de alguma conexão natural entre sentido original e a aplicação secundária" (LYONS, op.cit., p.5), como em "boca embocadura", por exemplo. Ao se viajar pela história dos estudos da linguagem, chegamos a um período, três séculos antes de Cristo, quando começam a florescer as ideias que permanecem, ainda hoje, na base da 15</p><p>Unidade I formação de grande maioria dos estudantes do ensino fundamental e médio na disciplina de língua portuguesa. Essas ideias resultam no chamado preconceito linguístico e serão abordadas a seguir. É com essa visão de gramática tradicional do período alexandrino (século III a.C.) que a abordagem moderna de linguística se rompe, como foi dito na apresentação deste texto. A gramática de Dionísio, Trácio (fim do séc. a.C.), foi, que saibamos, a primeira descrição gramatical ampla e sistemática publicada no mundo ocidental. Além das quatro partes do discurso, reconhecidas pelos estoicos, Dionísio acrescentou também 0 advérbio, 0 particípio (assim chamado porque ele "participa", ao mesmo tempo, das características nominais e das verbais), 0 pronome e a preposição (LYONS, 1979, p.12). Segundo Lyons (1979, p.9), a língua escrita sempre foi 0 foco de interesse dos antigos estudiosos da linguagem. Eles eliminavam as diferenças entre a língua oral e a língua escrita, tendendo sempre a favor da segunda (da língua escrita). Essa abordagem foi ainda mais reforçada pelos alexandrinos, que, por conta do interesse pelas grandes obras literárias clássicas, cultivaram ideias, hoje consideradas erradas, de que a língua escrita é superior à língua falada, e de que a evolução ou as mudanças operadas em uma língua podem deteriorá-la. Assim, pessoas cultas manteriam a pureza das línguas, enquanto os ignorantes e iletrados tenderiam a corrompê-la. Lyons (1979, p.9) refere-se a essas ideias como "dois erros fatais de concepção". Essa abordagem do estudo da língua cultivada pelo classicismo alexandrino envolvia dois erros fatais de concepção. 0 primeiro diz respeito à relação entre língua oral e falada, e segundo, à maneira como a língua evolui. Podemos colocá-los, ambos, dentro do que chamarei "o erro clássico" no estudo da língua (LYONS, 1979, p. 9). Os gramáticos romanos fundamentaram seus estudos e escritos nos gramáticos gregos, mantendo a abordagem errada de descrição linguística que tomava como correta a língua escrita dos considerados melhores escritores clássicos, como Cícero e Virgílio, e, em consequência disso, dedicaram-se à tarefa de descrever gramáticas com 0 objetivo principal de ensinar a arte de falar corretamente. Essa foi a visão de gramática e de estudo da linguagem que permaneceu durante a Idade Média, seguiu durante século XVII e que ainda se vê em muitas gramáticas ditas atuais. Veja 0 que afirma Martelotta (2009, p.44) a respeito do termo "gramática": (...) é importante fazermos uma distinção entre dois sentidos do termo "gramática". Por um lado, esse vocábulo pode ser usado para designar funcionamento da própria língua, que é objeto a ser descrito pelo cientista. Nesse sentido, gramática diz respeito ao conjunto e à natureza dos elementos que compõem uma língua e às restrições que comandam sua união para formar unidades maiores nos contextos reais de uso. Por outro 16</p><p>LINGUÍSTICA GERAL lado termo é utilizado para designar os estudos que buscam descrever a natureza desses elementos e suas restrições de combinação. Nesse segundo sentido, "gramática" se refere aos modelos teóricos criados pelos cientistas a fim de explicar funcionamento da língua. Essa "ideia tradicional da primazia da língua escrita" (LYONS, op. cit., p.14) sobre a língua falada foi reforçada na Europa durante a Idade Média com surgimento de manuais de ensino do latim escrito, na época a língua da liturgia, das Escrituras, da diplomacia, da erudição e da cultura, continuando na Renascença e nos séculos seguintes. Observe uma interessante afirmação da linguista Margarida Petter: 0 estudo comparado das línguas vai evidenciar fato de que as línguas se transformam com tempo, independentemente da vontade dos homens, seguindo uma necessidade própria das línguas e manifestando-se de forma regular (PETTER, 2002, p.12). Saiba mais Para ampliar suas reflexões sobre a língua, leia artigo "Sobre a Evolução Linguística", de Gabriel de Othero, na revista online Letra Magna: Do que foi apresentado sobre a gramática tradicional, podemos destacar duas ideias muito importantes para as discussões que se seguem e para a formação de todos aqueles interessados em estudar a linguagem. São elas: a ideia de que a língua escrita é superior e mais correta do que a língua falada; a ideia de que as mudanças observadas sejam frutos de um processo de deterioração ou corrupção das línguas. Essas duas afirmações trazem como consequência uma visão prescritiva de gramática. Em outras palavras, apresentam uma abordagem de gramática como um conjunto de regras que deve ser obedecido pelos falantes para escreverem e, mais importante ainda, falarem corretamente. Trata-se de um conjunto de regras construído com base em análises da língua escrita. Os trabalhos da gramática tradicional são sustentados por análises da língua escrita e pelo não reconhecimento da diferença entre língua escrita e língua falada. Essa gramática prescreve normas em relação à língua e ao seu uso correto. Vale lembrar que ainda hoje, em determinados ambientes sociais, 17</p><p>Unidade que é valorizado é uso correto da língua, fato que fica restrito, muitas vezes, pertencentes às camadas sociais dominantes. No entanto, com os avanços dos estudos da linguística, começam a ser questionadas as ideias que destacam a superioridade da língua escrita em detrimento da falada. A linguística comparativa é a que primeiramente apresenta essas críticas. Apesar disso, é de tal monta a força dessa abordagem prescritiva que até hoje se faz sentir e está muito presente em várias abordagens de ensino de línguas, em especial da língua materna, resultando no chamado preconceito linguístico e em um parco conhecimento do funcionamento da língua pelas pessoas em geral, mesmo depois de muito tempo de vida escolar. A análise gramatical greco-romana também foi utilizada para a descrição de línguas não europeias, como armênio, árabe e hebraico, mesmo antes da Renascença (LYONS, 1979, p.18). Assim como a gramática tradicional greco-romana, a análise gramatical de tradição hindu, mais especificamente a desenvolvida por Panini, gramático hindu do século também exerceu influência no desenvolvimento da linguística como é conhecida atualmente. Apesar de essa gramática ter sido desenvolvida com objetivo principal de descrever de forma acurada e precisa os textos hindus sagrados, escritos em Sânscrito, em séculos anteriores, a gramática de Panini pode ser vista como uma gramática da língua de seu tempo, que foi muito superior à gramática greco-romana (LYONS, op. cit.), principalmente no que se refere aos estudos fonéticos, ou dos sons da língua, e no que se refere ao estudo da estrutura interna das palavras. Segundo Lyons (1979, p.20), a gramática do sânscrito, descrita minuciosamente por Panini, tem sido apresentada como muito superior a qualquer gramática que já tenha sido escrita sobre qualquer língua. Comparando sânscrito ao grego e ao latim, Sir William Jones (1786) declarou que essas línguas mostravam (...) tanto nas raízes dos verbos como nas formas gramaticais, uma afinidade tão grande que não seria possível considerá-la casual: tão forte, em verdade, que nenhum linguista poderia examiná-la sem crer que se tinham originado de uma fonte comum que talvez não mais exista (apud LYONS, op. cit., p.24). A descoberta da análise gramatical hindu com foco no sânscrito levou ao desenvolvimento da linguística comparativa, ou linguística histórica, no século XIX. A linguística comparativa deu início à investigação cuidadosa e objetiva dos fatos da língua, explicados por hipóteses indutivas e de acordo com a concepção do que se poderia chamar de ciência da época. As investigações sobre a estrutura das línguas europeias foram comparadas à estrutura descrita do sânscrito, resultando na identificação de semelhanças entre várias línguas. A descoberta dessas semelhanças levou à construção de uma hipótese sobre a origem das línguas, ou melhor, uma hipótese 18</p><p>LINGUÍSTICA GERAL de que línguas europeias e a língua indiana tivessem se originado da mesma língua-mãe, que foi a denominada língua indo-europeia. 0 indo-europeu é uma família linguística que engloba a maior parte das línguas europeias antigas e atuais. Dizemos "família", pois existe uma relação de parentesco entre as línguas que a constituem. A relação de parentesco é estabelecida em função das semelhanças observadas, que em geral são de dois tipos: semelhanças de vocabulário e semelhanças de estrutura gramatical. Costuma-se dizer que quando duas ou mais línguas são aparentadas, é porque evoluíram de uma língua precedente comum (LYONS, 1979). A língua portuguesa pertence ao grupo ou ramo itálico, com cerca de 550 milhões de falantes em todo mundo, junto de outras línguas como galego, espanhol, catalão, italiano, romeno e outras. Quadro 2 A presença da Língua Portuguesa no mundo Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Guiné Língua oficial Equatorial (juntamente com Espanhol e Francês), Timor-Leste (juntamente com 0 Tétum), Macau (juntamente com Chinês). Falado, mas não como Andorra, Espanha (Português Oliventino na Extremadura e Galego na Galiza), Luxemburgo e língua oficial Namíbia. Total de falantes 240 milhões (aproximadamente) como língua nativa ou segunda língua Posição como língua nativa Classificação genética Indo-europeia > itálica > românica > > românica ocidental > galo-ibérica > românica > ibero-ocidental > galego-portuguesa > português Ao descreverem a estrutura das línguas e com objetivo de chegarem a essa língua-mãe, da qual se teriam originado todas as outras dessa família linguística, os linguistas da época também estudaram as transformações que teriam levado essas línguas às diferenças identificadas naquele momento. Com isso, também desenvolveram uma "teoria geral das transformações linguísticas" (LYONS, op. cit., p.22), que resultou em outra abordagem de mudança linguística. Esse tema será desenvolvido mais detalhadamente em outro momento deste texto. Em resumo, segundo Lyons (1979, p.22), temos duas grandes contribuições da linguística histórica ou comparativa do século XIX para os estudos da linguagem: desenvolvimento de princípios e métodos para a identificação e a classificação das famílias linguísticas; a construção de uma teoria geral das transformações linguísticas e das relações entre as línguas. 4 Adaptado de: em: 20 out. 2010. 19</p><p>Unidade I Vale ressaltar ainda que, segundo Lyons (op. cit., p.34), um dos efeitos mais imediatos e mais importantes da preocupação do século XIX com a evolução das línguas foi a observação de que as modificações das formas das palavras e das locuções, nos textos antigos e nas inscrições antigas em geral, se podiam explicar com base em mudanças atestadas ou postuladas na correspondente língua falada (de acordo com as "leis fonéticas"). Agora que você já teve contato com as ideias básicas sobre a gramática tradicional, podemos avançar a discussão já iniciada, em busca de entender como a ciência linguística aborda questões relacionadas a língua e fala, oralidade e escrita, entre outros aspectos. 1.2 A linguística: a visão científica dos estudos linguísticos - ciência social/ humana, empírica, objetiva, descritiva e explicativa Robert Martin, em seu livro "Para Entender a Linguística" apresenta um interessante ponto de vista sobre 0 que acredita ser papel da ciência linguística e de um linguista. Afirma autor que essa ciência é complexa e que seus limites são fluidos, pois a ciência se situa na encruzilhada de disciplinas extremamente variadas. Do estudo das pronúncias ao estudo dos diferentes sons, do uso de determinados textos em um e outro contexto, é possível afirmar que a linguística se encontra com ciências das mais diversas: a neurologia, quando a questão se refere a distúrbios inscritos no cérebro; a sociologia, quando a língua é vista como um produto social; a psicologia, a partir do momento em que a produção linguística de um falante ativa faculdades psíquicas como memorização, organização do pensamento etc. Enfim, a linguística pode ser considerada uma ciência empírica e, ao mesmo tempo, teorizadora, pois tem como objeto de estudo as línguas e a linguagem, e como propósito, descrever e teorizar sobre língua e linguagem, considerando os diferentes contextos em que são utilizadas. Nessa direção, os estudos linguísticos se dedicam a entender como se constituem a língua e a a oralidade e a escrita, bem como se preocupam em organizar análises descritivas e entender as prescritivas, situando tais estudos no tempo e no espaço de uso. 1.2.1 Prioridades dos estudos linguísticos: língua/fala; língua oral/língua escrita; análise descritiva/prescritiva; estudos A linguística (1979), com estatuto de ciência, ou estudo científico da linguagem, nasceu como é conhecida hoje, linguística moderna denominada por Lyons no início do século XX, após a publicação de um livro contendo as ideias do já falecido linguista Ferdinand de Saussure (1857-1913). Intitulado Curso de Linguística Geral, esse livro trazia uma recriação das anotações de aulas de Saussure, feitas por seus alunos (conforme Charles Bally e Albert Sechehaye no prefácio da primeira edição de junho/1915). Quando dizemos que a linguística tem estatuto de ciência social ou ciência humana, estamos apontando para seu objeto de estudo, a linguagem verbal humana, entendida como uma capacidade do ser humano 20</p><p>LINGUÍSTICA GERAL e da vida em sociedade. Nesse sentido, é preciso ainda entender que linguagem verbal corresponde tanto à linguagem oral quanto à linguagem escrita. E mais: já é possível chamar a atenção para que será visto mais à frente, a respeito da primazia da linguagem oral sobre a linguagem escrita nos estudos dessa ciência. Para Petter (2002, p.21), a linguística é uma ciência "empírica porque trabalha com dados verificáveis por meio da observação". Trata-se de uma ciência objetiva e descritiva, pois examina, analisa e descreve os fatos linguísticos como eles são, como se apresentam, sem especulações sobre certo ou errado, sobre que deveriam ou não ser. Trata-se de uma ciência explicativa porque procura explicações para os fatos e fenômenos linguísticos observados. 0 dever primordial do linguista é descrever 0 modo como as pessoas falam (e escrevem) realmente sua língua e não preceituar como elas deveriam falar e escrever (LYONS, 1979, p.43). Observação Você sabe 0 que é uma ciência empírica? Uma ciência objetiva? Descritiva? Explicativa? Agora é um excelente momento para você vasculhar a internet e encontrar explicações para esses termos adotados pela ciência. Após sua peregrinação, compare que descobriu com que se afirma sobre a linguística como ciência. Voltemos um pouquinho às nossas discussões sobre gramática tradicional: a ela não se atribui estatuto de ciência, pois seus estudos se baseavam em especulações sobre certo e errado nas línguas e não em comprovações empíricas e objetivas daquilo que de fato acontece. Mais especificamente, certo e 0 errado são considerados nessa visão de gramática a partir de um padrão previamente estabelecido, que representa um determinado ponto de vista. Isso equivale dizer que a gramática tradicional está pautada em uma orientação prescritiva, normativa, da língua enquanto a linguística privilegia a descrição e explicação dos fenômenos linguísticos tais como eles se apresentam na língua falada pelas pessoas. Uma outra ruptura da orientação linguística com relação à orientação da gramática tradicional diz respeito ao modo como as mudanças observadas nas línguas são interpretadas. Como já foi dito, para a gramática tradicional, toda e qualquer mudança, por se afastar do padrão estabelecido como correto, implica, necessariamente, corrupção ou deterioração da língua. Para a linguística, no entanto, as línguas são vivas e, consequentemente, estão sujeitas a transformações. Observemos 0 que afirma Lyons (1979, p.43) sobre essa questão: Temos de admitir que todas as línguas vivas são por natureza sistemas de comunicação eficientes e viáveis que servem a diferentes e variadas necessidades sociais das comunidades que as usam. Como essas necessidades mudam, as línguas tenderão a mudar para satisfazer às novas condições. 21</p><p>Unidade I Nesse sentido, a pretensão de impedir que as línguas se transformem equivaleria à pretensão de impedir que as sociedades se modifiquem. Ou seja: impossível! Cabe ressaltar, ainda, que isso se aplica também ao padrão literário em que se baseiam os gramáticos tradicionais, pois próprio padrão literário está sujeito a transformações" (LYONS, 1979, p.43). A verdade é que todas as línguas estudadas até agora, não importa quão ou seja povo que as fale, provaram nas pesquisas serem um sistema de comunicação complexo e altamente desenvolvido (LYONS, 1979, p.44). Conceder à linguística estatuto de ciência autônoma é um outro sinal de rompimento entre a linguística e a gramática tradicional. Como a gramática tradicional esteve sempre ligada à filosofia e à crítica literária, acabou-se por dar maior valor à linguagem escrita em detrimento da linguagem oral; em consequência, eram atribuídos juízos de valor entre as manifestações de linguagem, que poderiam ser consideradas certas ou erradas quanto mais se aproximassem ou se distanciassem dos chamados textos escritos clássicos. A linguística moderna, por seu lado, toma a linguagem humana por objeto de análise, destituindo- a de todos os seus preconceitos sociais ou culturais. Como se pode ler no Curso de Linguística Geral (1973), as questões focalizadas pela linguística são constituídas "inicialmente por todas as manifestações da linguagem humana quer se trate de povos selvagens ou de nações civilizadas, de épocas arcaicas, clássicas ou de decadência..." (SAUSSURE, 1973, p.13). Ressalte-se, entretanto, que a linguística tem por objetivo descrever e explicar a linguagem que se manifesta por meio das línguas naturais. Não cabe à linguística estudo de outras formas de expressões ou outras linguagens, tais como a pintura, a dança, a música e a mímica. Podemos afirmar que a linguística é diferente da gramática tradicional ou normativa. Na gramática tradicional, foco está em prescrever um conjunto de regras destinadas ao falante para que corrija 0 uso da língua. Já na linguística, tudo 0 que se refere à língua cabe ao seu interesse. A linguística insiste na ideia de que tudo que se relaciona à língua possibilita reflexões com 0 propósito de entender seu funcionamento. Mas não é qualquer espécie de linguagem que é objeto de estudo da linguística: só a linguagem verbal, oral ou escrita (ORLANDI, 2002, p.10). A linguística moderna estabelece a primazia da linguagem oral sobre a linguagem escrita. Um dos princípios do estudo científico da linguagem, ou da linguística, é da prioridade da linguagem falada sobre a linguagem escrita. Isso se justifica por vários aspectos: há registros de comunidades que possuem ou possuíam um sistema de língua oral e não de língua escrita. 0 inverso não é verdadeiro; disso resulta que a língua oral é mais difundida que a língua escrita; 22</p><p>LINGUÍSTICA GERAL a língua oral precede a língua escrita na história da sociedade humana; todos os sistemas de escrita baseiam-se em unidades da língua oral: nos sons, os sistemas de escrita alfabéticos (como da escrita no Brasil); nas sílabas, os sistemas silábicos; e nas palavras, os sistemas ideográficos; ao mesmo tempo, não existe uma correlação direta entre sistema da língua oral e da língua escrita; da mesma forma, não há uma correlação direta entre as unidades da língua oral e as da língua escrita, como indicam as várias letras para um mesmo som, ou uma mesma letra para vários sons; a língua oral tende a transformar-se muito mais rapidamente do que a língua escrita, razão pela qual a diferença entre os dois sistemas vai se tornando cada vez maior; a criança, em condições naturais de desenvolvimento, primeiramente apresenta a linguagem oral para depois aprender a linguagem escrita; a língua natural é aprendida em condições naturais; a língua escrita necessita de condições especiais (a escola, por exemplo). Observação 0 turco falado não sofreu alteração em virtude da substituição do alfabeto árabe pelo latino em 1926 (LYONS, 1979, p.39). Observe a seguir a diferença entre língua oral e língua escrita, tomando apenas a escrita do português brasileiro no que se refere à diferença entre som e letra. Exemplos: Letra "x" para representar os sons das palavras: auxílio: como som da primeira consoante da palavra "sino"; exemplo: como som da primeira consoante da palavra "zero"; xícara: como 0 som das primeiras consoantes da palavra "chácara". 0 som [s] representado pelas letras: "s" = "sapo" 23</p><p>Unidade I "x" = "auxílio" "c" = "cebola" "ss" = "cassino" "c" = "exceção" "7" "paz" (não seguida de vogal) Confesse! Embora você tenha aprendido tudo isso quando criança, agora é que está pensando sobre, não é mesmo? De acordo com esses exemplos, podemos perceber que a linguística tem por objetivo a compreensão da linguagem humana, dando prioridade à análise descritiva e explicativa da língua oral como ela é verdadeiramente falada pelas pessoas, sem perder de vista fato de que essa língua está em constante transformação, que remete à diferença entre esta linguística, que teve início com Saussure, e a linguística histórica ou comparativa, que apresentamos a você inicialmente. Lembrete A linguística moderna estabelece a prioridade dos estudos sincrônicos sobre os estudos diacrônicos. Encontramos aqui outra prioridade nos estudos linguísticos: a prioridade dos estudos sincrônicos em relação aos estudos diacrônicos, distinção essa estabelecida por Saussure. Por estudo diacrônico entende-se a análise de uma língua em seu processo de transformações históricas, ou seja, estudo de uma língua por meio de sua evolução histórica. Assim foram os estudos da linguística histórica ou comparativa, do século XIX, como já dissemos. Para Saussure, a linguística deveria centrar suas atenções na descrição de um estado de língua, ignorando as transformações que a antecederam e as que se sucederão. 0 estudo sincrônico é estudo de uma língua em um determinado período, como se fosse estática, ignorando suas transformações em função do tempo e tudo que as causam. Um estudo diacrônico e um estudo sincrônico exemplificam que foi mencionado anteriormente sobre dois pontos de vista diferentes a respeito de um mesmo objeto. Nos dois casos estamos falando de análise linguística, ou análise de fenômenos linguísticos. Fiorin (2002) ilustra bem essa diferença entre estudo diacrônico e sincrônico apresentando seguinte exemplo: 24</p><p>LINGUÍSTICA GERAL Tome-se a palavra "comer" da língua portuguesa: Em uma análise sincrônica, verifica-se que "com" é um elemento linguístico que se define em relação a outros elementos linguísticos do português brasileiro. Assim, ao se constatar que esse elemento aparece em outros contextos como "comilança", "comida", "comeu", verifica-se que ele se define como uma radical. Entendendo-se por radical aquele elemento da estrutura das palavras cognatas que expressa um significado comum. Em uma análise diacrônica, verifica-se que verbo "comer" resulta da combinação do verbo comer em latim "edere", em que ed é radical e cum é 0 prefixo, que significa companhia. Assim: cum + edere > cumedere > comer, na língua portuguesa. Disso conclui-se que, do ponto de vista da análise diacrônica, 0 "com" de "comer" é um prefixo (FIORIN, 2002, p.79). Em resumo, no estudo sincrônico elemento linguístico ("com", no exemplo apresentado) está sendo definido na relação que ele estabelece com os outros elementos da língua naquele estado de língua, ou naquele estado em que a língua se apresenta, naquele dado ponto fixado no tempo. No estudo diacrônico, 0 elemento linguístico (o mesmo "com") está sendo definido em relação aos elementos linguísticos que antecederam ou sucederam em diferentes pontos na linha do tempo. Um estado absoluto define-se pela ausência de transformações, e como, apesar de tudo, a língua se transforma, por pouco que seja, estudar um estado de língua vem a ser, praticamente, desdenhar as transformações pouco importantes, do mesmo modo que os matemáticos desprezam as quantidades infinitesimais em certas operações, tal como no cálculo de logaritmos (SAUSSURE, 1973, p.118). Ainda, para deixar bem claros esses dois conceitos, podemos pensar em outro exemplo, como é a palavra "você". Ela pode ser analisada em relação aos outros elementos do estado de língua atua (sincronia) ou a partir de suas transformações (diacronia) vindo de "vossa mercê", passando por "vossemecê" e "vosmecê" até chegar em "você". Reflita sobre esse exemplo para perceber que na forma atual "você" é usado pelos falantes para se dirigir à pessoa com quem falam em situações de informalidade ou que exprimem informalidade entre falante e seu interlocutor. A análise sincrônica considera esse uso. 25</p><p>Unidade I Por outro lado, analisando "você" de um ponto de vista diacrônico, verificamos que as formas que antecederam eram usadas em situações mais formais, naquelas situações em que exprimem um distanciamento formal entre 0 falante e seu interlocutor. Isso explica fato de este pronome ser usado com verbos conjugados na terceira pessoa (como pedem os pronomes de tratamento), e não na segunda pessoa. Observação Verbo "comer": pessoa: tu comes Você come pessoa: ele come 0 estudo sincrônico caracteriza-se, assim, como a análise/descrição de um estado da língua em determinado momento no tempo, seja esse tempo presente ou 0 passado. Esse é estudo que deve ser priorizado na linguística. Mas é preciso pensar que ser prioritário não significa ser exclusivo, que explica fato de a linguística ter continuado com seus estudos históricos também. Aliás, convém ressaltar que os estudos da linguística histórica podem auxiliar nas análises dos usos que os falantes fazem da língua em um estado particular. Vejamos as considerações de Saussure em relação à sincronia e à diacronia. Ele afirma que sincronia está relacionada ao eixo das simultaneidades e que diacronia, ao eixo das sucessividades. Segundo Carvalho (2002, p.71): No eixo das simultaneidades, linguista deve estudar as relações entre os fenômenos existentes ao mesmo tempo num determinado momento do sistema linguístico, que pode ser tanto no presente como no passado. Por outro lado, situando-se no eixo das sucessividades, 0 linguista tem como objeto de estudo a relação entre um dado fenômeno e outros fenômenos anteriores ou posteriores, que precederam ou lhe sucederam. E mais: quando pensamos nos aspectos estáticos da língua, estamos nos referindo ao que é sincrônico. Quando pensamos nos aspectos dinâmicos da língua, relacionados à sua evolução, estamos nos referindo ao que é diacrônico. Uma coisa interessante para pensarmos é que a diacronia tem relação direta com a fala Afirma Saussure (apud Carvalho, op cit., p.73) sobre isso: "tudo quanto seja diacrônico na língua, não é senão pela fala". Ou seja, é pela fala, por tudo que acontece em uma comunidade quando os indivíduos se comunicam por meio da fala, que as modificações da língua vão se 26</p><p>LINGUÍSTICA GERAL estabelecendo e, portanto, vão entrando em uso pela coletividade, passando de um grupo social a outro. A sincronia opera a partir de uma única perspectiva: a dos falantes (SAUSSURE, apud CARVALHO, 1997/2002, p.74). A possibilidade e a orientação para a descrição de um estado de língua, sem recorrer às suas transformações históricas, está intimamente relacionada à concepção da linguística conforme a visão de Saussure de que toda língua, num certo tempo, constitui um sistema integrado de relações; ou, em outras palavras, toda língua é um "sistema de (LYONS, 1979). Podemos ilustrar a definição de sistema utilizando a metáfora de um relógio. Se um relógio for desmontado, encontram-se as várias peças que formam seu mecanismo. Essas peças soltas estão constituindo um "conjunto de peças de relógio". Para que esse conjunto de peças forme mecanismo de um relógio propriamente dito e funcione como tal, há necessidade de se organizar essas peças, umas em relação com as outras, de acordo com um esquema muito bem definido. Basta uma única peça fora do lugar e todo funcionamento do relógio se altera. Sistema, portanto, é um conjunto organizado de elementos que interagem. A interação é fruto da relação que se estabelece entre os vários elementos. 0 quadro III, a seguir, resume as características da dicotomia saussureana sincronia diacronia. Quadro 3 - Dicotomia saussureana sincronia/diacronia Sincronia Diacronia estática evolutiva descritiva prospectiva e retrospectiva gramática geral gramática histórica interessa-se pelo sistema interessa-se pelas evoluções e suas causas faz descrições sincrônicas apoia-se em descrições sincrônicas descreve estados de língua e suas relações descreve fenômenos evolutivos individuais abstrai o tempo leva em conta tempo trata de fenômenos simultâneos trata de fatos sucessivos estuda fatos que formam sistema entre si estuda fatos que não formam sistema entre si estuda 0 modo como a língua funciona estuda processo de evolução da língua 27</p><p>Unidade preocupa-se com funcionamento preocupa-se com evolução syn (simultaneidade) + khrónos (tempo) dia (movimento através de) + khrónos (tempo) descreve um determinado estado de uma mesma língua confronta estados diferentes de uma mesma língua estruturalismo atomismo parte todo relação fato descrição explicação funcionamento evolução Fonte: Carvalho (1997/2002, Saussure e a metáfora do jogo de xadrez Saussure utiliza-se da metáfora do jogo de xadrez para explicar seu conceito de língua como sistema de relações e também para explicar que a língua pode ser descrita no estado em que se apresenta a partir de uma análise sincrônica. Em um jogo de xadrez, a cada movimento de uma das peças é possível descrever seu novo estado, ou seja: suas peças, a posição que ocupam naquele momento e como se inter-relacionam. Cada peça se define a partir da relação que estabelece com as demais peças do tabuleiro e dos movimentos que pode realizar no jogo Segundo Costa (2009, p.114), valor de cada peça não é determinado por sua materialidade, ele não existe em si mesmo, mas é instituído no interior do jogo. Pouco importa de que são feitas as peças, mas a possibilidade de dar andamento ao jogo depende exclusivamente de nossa compreensão de como as peças se relacionam entre si, das regras que as governam, da função estabelecida para cada uma delas e em relação às demais. Transpondo-se essa imagem para a língua, toda língua é constituída de um conjunto organizado de elementos linguísticos seus sons, seus morfemas, suas palavras, dentre outros. Todos se relacionam entre si e com os outros elementos, de acordo com regras de combinação bem definidas, de modo a constituir seu sistema linguístico. A descrição do estado de língua, juntamente com os elementos que constituem e com as inter- relações que se estabelecem, constitui uma explicação de seu funcionamento. Essa afirmação está relacionada a outra primazia ou prioridade dos estudos da linguística moderna, que deve seu nascimento a Saussure: a primazia da língua sobre a fala. 28</p><p>LINGUÍSTICA GERAL Lembrete A linguística moderna estabelece a prioridade dos estudos da língua sobre a fala. Apesar de no início deste texto ter sido dito que objeto de estudo da linguística é a linguagem humana, veja que Saussure, ao definir a linguística como uma ciência, estabeleceu objeto de estudo da linguística como sendo a língua e não a fala, mesmo que para descrever a primeira (a língua) 0 linguista tenha necessidade de recorrer à segunda (a fala), pois é por meio desta última que tem acesso à anterior. As razões para essa distinção por Saussure serão apresentadas a seguir. Observação Saussure estabelece a língua como objeto de estudo da linguística, considerando que a língua é do âmbito do social. Ela, a língua, é que possibilita a comunicação entre as pessoas, pois pertence à coletividade. A língua é uma espécie de acordo entre todos os membros de uma comunidade linguística que a utilizam. Assim, nenhum integrante dessa coletividade, individualmente, consegue transformá-la. Toda e qualquer alteração linguística deve ser aceita pela coletividade para que possa ser incorporada pela língua e dela fazer parte. Afinal, a língua pertence à coletividade e não pertence a ninguém, individualmente. Basta lembrar-se que quando as pessoas nascem, a língua já está lá. Ela já existe. Ela pode ser descrita e analisada em si mesma, sem a necessidade de recorrer a qualquer outro fator que não seja da ordem do linguístico. Lembrete A fala é da ordem do individual. Alíngua é sistema a ser descrito. A fala é uso individual e momentâneo desse sistema. Por ser a fala individual, ela está sujeita a uma série de interferências de fatores não linguísticos, que podem transformá-la. Fatores não linguísticos são, por exemplo, os fatores emocionais, sociais, físicos ou outros. Sujeita a fatores não linguísticos, a fala foge da alçada da investigação linguística, ou se torna secundária nesta ciência. Mediante tudo 0 que foi exposto, podemos concluir que: 29</p><p>Unidade I 0 estudo da linguagem comporta, portanto, duas partes: uma, essencial, tem por objeto de estudo a língua, que é social em sua essência e independe do indivíduo; esse estudo é unicamente psíquico. Outra, secundária, tem por objeto a parte individual da linguagem, vale dizer, a fala, inclusive a fonação, e é psicofísica (SAUSSURE, 1973, p.27). Lyons (1979, apud Pietroforte, 2002, p.84) resume que foi dito em relação à prioridade da língua sobre a fala nos estudos linguísticos. Para ele, os fatos da língua podem ser estudados separadamente dos fatos da fala". E mais: Por enquanto, contentemo-nos com afirmar que todos os membros de uma comunidade linguística (todos aqueles que falam uma determinada língua, por exemplo, português) produzem, quando falam essa língua, enunciados que, a despeito de suas variações individuais, podem ser descritos por um sistema específico de regras e de relações: em certo sentido, esses enunciados têm a mesma característica estrutural. Os enunciados são exemplos de fala que linguista toma como evidência para a construção da estrutura comum subjacente: a língua. Portanto, que linguista descreve é a língua, sistema linguístico (LYONS, 1979, p.52). Os conceitos de língua, fala e linguagem, e como se inter-relacionam, serão retomados a seguir durante a apresentação dos conceitos básicos do estruturalismo, perspectiva de análise linguística que já começa a se fazer sentir muito presente nas citações acima. A conceituação da linguística moderna, como foi feita nos momentos iniciais da sua constituição como ciência, pode, a partir do exposto, ser resumida no quadro IV, a seguir: Quadro 4 Conceituação inicial da linguística moderna Ciência da linguagem verbal humana social / humana, empírica Método de análise descritivo linguagem oral Prioridades dos estudos linguísticos estudo sincrônico língua Objeto de estudo língua Levanta-se, a partir dessa conceituação de linguística, a pergunta sobre quanto e em quais aspectos essa mudança de abordagem nos estudos da linguagem humana, afastando-se da orientação de uma gramática tradicional, pode afetar ou interferir no processo de ensino de língua materna ou de língua estrangeira. Tudo que já vimos até aqui tem como propósito conduzir você ao próximo item de nossa 30</p><p>LINGUÍSTICA GERAL discussão e oferecer-lhe a possibilidade de refletir sobre a aplicação dos preceitos da linguística moderna no ensino de línguas, seja da língua materna ou da língua estrangeira. Não é objetivo deste texto, no entanto, apresentar respostas, como mais um manual de ensino. 2 DA MUDANÇA DE ABORDAGEM DA GRAMÁTICA TRADICIONAL PARA A LINGUÍSTICA PARA ENSINO DE LÍNGUA MATERNA E LÍNGUA ESTRANGEIRA Podemos iniciar nossa conversa nesta seção retomando, no quadro a seguir, as principais distinções entre a gramática normativa e a linguística moderna. Todas as línguas vivas são por natureza sistemas de comunicação eficientes e viáveis que servem a diferentes e variadas necessidades sociais das comunidades que as usam (LYONS, 1979, p.43). Quadro 5 - Gramática tradicional X linguística moderna Gramática tradicional Linguística moderna Especulativa Ciência Prescritiva Descritiva e explicativa Prioriza a língua escrita Prioriza a língua oral As línguas não mudam; as línguas evoluem independente As línguas sofrem deterioração ou corrupção provocadas da vontade de seus falantes. pelo mau uso de seus falantes, principalmente os ignorantes ou iletrados. Nenhum falante individualmente pode e consegue mudar a língua. A língua escrita literária é mais pura e mais correta que Não existe língua melhor ou pior, mais correta ou mais qualquer outra forma. errada, mais pura ou impura. É objetivo do gramático escrever as regras de bom uso, É objetivo do linguista descrever e explicar os fatos da de uso correto da língua para preservá-la de qualquer corrupção. língua como eles se apresentam. Do fato de a gramática tradicional ser considerada como especulativa e a linguística moderna ser uma ciência decorrem todas as outras diferenças. Embora a gramática tradicional não corresponda à "língua viva", a maioria das escolas, principalmente do Ensino Fundamental e Médio, se apoia na gramática tradicional nas aulas de língua portuguesa. Os alunos acabam tendo uma visão deturpada do que seja a língua portuguesa e do que seja estudá-la. Para eles estudar a língua portuguesa significa: aprender a falar "português", desconsiderando tudo que sabem e que demonstram fazer ao usarem sua língua; aprender algo que é totalmente distinto daquilo que conhecem e fazem uso em praticamente todas as situações de sua vida diária e que ouviram desde os primeiros momentos de sua vida; 31</p><p>Unidade aprender um conjunto de regras para que possam falar e escrever corretamente; ter menosprezada a sua variedade linguística e, em consequência disso, seu grupo social. Essa visão deturpada aparece em falas do tipo: "não sei "eu falo errado" ou "as pessoas falam errado", ditas por pessoas que têm como língua materna português brasileiro. Ou, ainda, se questionados sobre que conhecem de sua língua, apresentam uma lista das categorias gramaticais como verbo, pronome, adjetivo. Muitos demonstram surpresa ao serem perguntados sobre os sons de sua língua, apresentando como resposta todas as letras do alfabeto. Nessa perspectiva, professor, por sua vez, assume papel do gramático e transforma seu ensinar língua portuguesa em ensinar regras do bom uso da língua, ou do seu uso correto, conforme está nos vários livros de gramática, para salvá-la de uma possível deterioração ou corrupção causada pelo mau uso que os incultos ou ignorantes fazem Que tal um momento de reflexão? Vale uma reflexão sobre a seguinte questão: como se sente, em sala de aula, um aluno que conhece sua língua materna de modo deturpado, apenas como um conjunto de normas a ser seguido? Que motivação pode ter um aluno que vê sua língua materna apenas como um instrumento para revelar seus "erros" no momento da comunicação? Procure perguntar a crianças e adolescentes como pensam sua própria língua, seus "erros" etc. Podemos notar que a palavra "gramática", no contexto do ensino de línguas e da gramática normativa, pode ser entendida como se referindo a um tipo de livro onde se encontram regras do que se deve e do que não se deve dizer, ao lado de uma análise de certas estruturas sintáticas de uma língua e uma classificação de suas formas morfológicas e léxicas. Trata-se, portanto, do produto do trabalho de gramáticos, em sua dupla função de prescrever que se deve usar e de analisar as formas encontradas na língua padrão (PERINI, 1976, p.20). Nos estudos da linguística descritiva a palavra "gramática" assume dois outros significados: a estrutura da língua conhecida pelos falantes ou 0 conhecimento internalizado da língua que falante demonstra nas várias situações de uso; resultado da análise linguística ao descrever e explicar funcionamento de determinada língua, que, por sua vez, deve ser empiricamente comprovado pelo que está no primeiro item acima (PERINI, op. cit.). 0 ensino da língua materna deve sobretudo ensejar que as crianças compreendam a estrutura, 0 funcionamento, as funções da língua instrumento de comunicação -, com todas as suas variedades, sociais, regionais e situacionais (CARBONI, 2003). 32</p><p>LINGUÍSTICA GERAL Nesse sentido, ensinar a gramática de uma língua seria levar aluno, dentre outras questões e apenas para citar alguns objetivos, a: refletir sobre a língua; reconhecer (e não aprender) suas partes constituintes; reconhecer (e não aprender) suas regras naturais; reconhecer as variedades linguísticas e aceitá-las como diferenças; reconhecer a sua variedade linguística dentre todas as outras; reconhecer seus variados usos e seus contextos de produção; aprender a fazer uso de variedades linguísticas diferentes em conformidade com as diferentes situações, etc. Isso mais especificamente no que diz respeito à língua oral, pois a língua escrita exige ainda uma outra série de considerações, haja vista ser totalmente nova para 0 aluno em seus primeiros anos escolares, e ser primeiro contato da criança com a língua como objeto exterior a ela (GENOUVRIER e PEYTARD, 1974). Essa última consideração aponta para a necessidade de professor compreender esses dois sistemas, escrito e oral, em toda sua dialética, 0 que não cabe discutir aqui. Entretanto, chamamos a atenção para um outro aspecto que merece alguma consideração, ou seja, ao mesmo tempo em que aluno tem a sua primeira reflexão sobre a língua por meio do texto escrito, ou da aprendizagem da língua escrita, toda sua intuição a respeito dela se formou a partir de seu uso oral. Isso remete à indagação, deixada aqui para que você tire suas próprias conclusões sobre a real possibilidade do ensino da língua portuguesa. 0 que pode acontecer no ensino da língua materna quando professor não tem um conhecimento preciso do funcionamento da língua, como aquele que a linguística pode lhe proporcionar? 2.1 Contraposição entre a visão tradicional e a visão linguística Vamos observar as diferenças entre a visão tradicional e a linguística no processo de identificação e análise das diversas maneiras como falantes fazem uso de uma língua viva. Restringir ensino de línguas à gramática normativa equivale a ignorar todas essas variedades de uso da língua e afirmar que apenas uma variedade é a correta e válida, aquela que, em geral, não é dominada pela maioria dos alunos e por seu grupo social. Por variedades linguísticas entendemos os diferentes usos que os falantes fazem da língua viva, ou seja, as diferentes maneiras de se dizer uma mesma coisa. As variedades linguísticas ocorrem em função da situação de uso da língua, do espaço geográfico em que se encontra falante e da sociedade da qual ele faz parte e do tempo. 33</p><p>Unidade I Variedades linguísticas situacionais (também chamadas variedades diafásicas, de uso ou, ainda, estilísticas) correspondem ao uso que os Assim, empregamos uma variedade mais formal em situações mais formais, bem como uma variedade mais informal em situações mais informais. Nesse sentido, podemos dizer que as variedades linguísticas situacionais existem também em função dos indivíduos com quem nos comunicamos (interlocutores). Nesse tipo de variedade linguística, levamos em conta um mesmo falante e procuramos entender que leva a se comunicar de diferentes maneiras nos diferentes contextos pelos quais circula. Por exemplo: você fala com sua mãe exatamente da mesma forma como fala com seu chefe no escritório? Ou você conta um filme a alguém, em uma roda de conversa, da mesma forma como relataria filme em uma situação de sala de aula, sob avaliação de um professor? Você conversa com amigos, com pessoas recém-conhecidas, com seu dentista ou com seus familiares da mesma maneira? Cada situação de comunicação requer do falante um estilo diferente, sempre relacionado ao grau de formalidade ou informalidade que a situação exige. Segundo Alkmin (2005, p.38), A noção de situação (...) tem um alcance restrito, reduzindo-se, praticamente, à consideração da cena em que ocorrem as interações verbais. É útil e produtivo entender situação de uma perspectiva mais abrangente, a saber, como contexto social global de uma comunidade, com suas marcas históricas e culturais próprias. (...) nos contextos ritualísticos e religiosos que, tomados como pontos de partida, sugerem estudo de variedades e usos linguísticos especiais. Marcas Contexto social Situação de interação verbal Cultura Comunidade linguistica Figura 1 Estudar esses diferentes jeitos de falar das pessoas é algo relativamente novo nos estudos da ciência linguística. Isso não era preocupação dessa ciência, uma vez que foco sempre recaia nos estudos sincrônicos da língua, em busca de uma competência do falante caracterizada como ideal, perfeita. Quem introduziu estudos voltados para "como" e "onde" um falante usa as estruturas da língua e, portanto, em quais situações ele muda sua forma de usar a língua, foi Dell Hymes, linguista norte- americano que, nos anos 60, desafiou Chomsky e afirmou que diferentes falantes usam a língua a partir de diferentes comandos e que estes têm relação direta com contexto em que se encontram os falantes. Em função da necessidade, um falante faz adequações ao usar a língua, sempre relacionadas 34</p><p>LINGUÍSTICA GERAL às características da situação de comunicação, aos seus interlocutores, ao propósito comunicativo e, certamente, ao contexto no qual a comunicação acontece. Os estudos de Dell Hymes foram muito importantes para a ciência linguística, pois a partir deles é que conceitos como "comunidade linguística" começam a ser discutidos e passam a estabelecer novas metodologias de pesquisa sobre uso da língua em situações orais reais. Variedades linguísticas regionais (também chamadas geográficas ou diatópicas) são aquelas que permitem identificar um falante de uma região ou de outra do país: a diferença observada na pronúncia dos falantes gaúchos ou mineiros, ou a diferença observada na fala de paulistas e de cariocas, por exemplo. Essas diferenças aparecem não só em termos sonoros, mas também em termos do léxico utilizado. Um exemplo bastante conhecido refere-se que conhecemos por "mandioca", em São Paulo, mas que é conhecida como "aipim" ou "macaxeira" em outros estados do país. Também há exemplo do uso das palavras "jerimum" e "abóbora" se referindo à mesma coisa No caso da língua portuguesa, esse tipo de variedade linguística ainda nos permite fazer distinções entre 0 português utilizado no Brasil, em Portugal, na África ou na Vale ressaltar que as variedades linguísticas geográficas da língua portuguesa aqui em nosso país se devem ao fato de a população, no período da colonização e da expansão geográfica do Brasil, ter tido contato com diferentes colonizadores e falantes de outras línguas e, dessa forma, terem se fortalecido as diferentes maneiras de uso da língua. A variação linguística geográfica ocorre a partir de diferentes planos, como já dissemos em parágrafos anteriores: no plano lexical, no plano fonético/fonológico e no plano gramatical. Vejamos alguns exemplos dessas diferenças, no quadro VI, a seguir. Quadro 6 Variação linguística geográfica e seus diferentes planos Plano lexical Plano fonético/fonológico Plano gramatical As palavras jerimum (usada na Em regiões do nordeste, palavras Enquanto na região sudeste um falante diz região do Brasil) e abóbora como melado são pronunciadas 'não no nordeste um falante diz 'sei (usada na região sudeste do Brasil) com a vogal 'e' aberta, enquanto no representam 0 mesmo vegetal. sudeste a vogal é fechada. Em algumas regiões, como na região As palavras aipim, macaxeira e Temos a pronúncia do 'r' e do 's' sudeste, uso do artigo definido é muito mandioca também representam ao final das palavras: paulistas os constante: falantes dizem mesmo vegetal em diferentes regiões pronunciam de uma forma e cariocas com a já no nordeste, artigo do Brasil. de outra. definido desaparece: com 0 mesmo ocorre com guri, palavra 0 ao final de uma sílaba, por usada em Santa Catarina para exemplo, é pronunciado pelos gaúchos Gaúchos dizem 'tu queres vender representar menino, garoto, palavras como uma consoante, enquanto em enquanto paulistas dizem quer vender usadas em outros estados brasileiros. muitas outras regiões do Brasil pronunciado como um Variedades linguísticas socias (também chamadas diastráticas) são aquelas que permitem distinguir falantes de níveis socioeconômicos ou níveis de instrução e de conhecimento da língua diferentes. Essas variedades estão diretamente relacionadas ao ambiente sociocultural dos falantes. Como resultado delas, temos os chamados socioletos ou dialetos sociais. 35</p><p>Unidade 0 estudo dessas e outras variedades linguísticas e suas implicações teóricas é aprofundado em uma área específica dos estudos linguísticos, denominada sociolinguística. Esse ramo da ciência linguística se dedica ao estudo de diferentes fatores relacionados às variedades linguísticas sociais, como os ligados às classes sociais, ao grau de escolaridade do falante, à faixa etária, ao sexo, à origem étnica, dentre outros. Exemplificando, com base em Alkmin (2005, p.35-36): Quadro 7 Aspectos da variedade linguística social uso de dupla negação 'ninguém não viu'; nem num gosto'; Classe social uso do 'r' em lugar do brusa, crube, grobo, pobrema. uso de gírias: pelos jovens; para os mais velhos; dade diferentes modos de cumprimento: para os jovens; para os mais velhos. Sexo escolhas do léxico: 'toalete', para as mulheres; para os homens; 'latrina' para as classes menos favorecidas. escolhas lexicais que remetem ao discurso científico pelos falantes de mais alta Contexto social escolaridade; escolhas lexicais que remetem ao discurso cotidiano pelos de escolaridade mais baixa. Afirma ainda Alkmin (op. cit., p.37) que "as variedades linguísticas utilizadas pelos participantes das situações devem corresponder às expectativas sociais convencionais". Dessa forma, quando falante ignora as convenções sociais sobre a língua, pode até ser punido por seus interlocutores, como, por exemplo, uma punição gestual do tipo 'franzir de sobrancelhas' ou com 0 balanço de Uma vez estudadas as variedades linguísticas, cabe perguntar: como tais estudos estão relacionados à norma padrão da língua? Como os linguistas têm discutido uso da norma padrão e da não-padrão? Em que sentido essa discussão se relaciona ao que ocorre com as variedades linguísticas? Retomando 0 que afirma Perini (1976) sobre gramática e normatividade em contextos de ensino da língua, a gramática normativa tem seu foco de atenção e análise direcionado para a chamada língua padrão. Na mesma direção, encontramos que afirma Mendonça (2001), ao tratar do distanciamento que se observa entre a linguística e ensino de línguas: (...) a gramática (normativa) aí tem um caráter prescritivo e discriminatório: para a gramática é errado todo uso da linguagem que esteja fora dos padrões linguísticos estabelecidos como ideais (MENDONÇA, 2001, p. 235). (...) estudar gramática é estudar as regras que regulam a "norma é saber que pode ser dito e 0 que não pode que costuma ser visto quase como sinônimo do que pode ser escrito e do que não pode. Ensinar gramática, 36</p><p>LINGUÍSTICA GERAL nessa concepção, é ensinar língua, que, por sua vez, é ensinar norma culta, 0 que significa desprezar outras variedades não só por ignorá-las, mas por considerá-las inferiores (MENDONÇA, 2001, p.235). Exemplos de variedades linguísticas: "Dê-me um abraço." > "Me dá um abraço." "Eu não vou ao cinema" > "Eu não vou no cinema" > "Eu não vou no cinema, não." > "Bassoura" "Tu comes" > "Tu come" > "Você come" Dada a concepção de ensino de gramática de Mendonça (op. cit.), cabe indagar: 1. Qual é a variedade linguística ou dialeto ensinado na escola? 2. 0 que a gramática normativa, ou dita tradicional, tem a dizer sobre esse dialeto? Sobre a primeira questão, costuma-se dizer que a escola privilegia dialeto social de maior prestígio ou a norma culta. No entanto, qual é a norma culta da língua portuguesa? Qual é dialeto de maior prestígio no Brasil? Será aquele falado no Sudeste, no Norte, no Nordeste, no Centro-Oeste ou no Sul do país? Será das capitais ou das cidades do interior? Será aquele falado pelo maior número de pessoas? Podemos notar que dialeto social de maior prestígio varia de acordo com fatores regionais, sociais, econômicos, políticos ou históricos. Sobre a segunda questão, a gramática normativa usada pela escola está relacionada a qual dessas variedades? Podemos notar, a partir do que foi anteriormente exposto, que essa gramática é construída com base em textos escritos. Isso levanta outra questão: dada a distância entre a linguagem oral e a escrita, qual é a variedade de norma culta escrita abordada por essa gramática? A falta de uma resposta satisfatória para essa questão ajuda a entender a falta de interesse da maioria dos alunos por aulas de língua portuguesa. 2.2 Perspectiva normativa e o denominado preconceito linguístico Mais importante ainda é quanto de preconceito está embutido na abordagem de ensino de língua portuguesa que aqui está sendo criticada. Tal preconceito linguístico pode ser observado no conceito de "erro" envolvido no contexto da gramática normativa, já que desse ponto de vista é errado todo dizer de falantes da língua diferente daqueles prescritos por ela. Ao rotular sua fala de errada, estaríamos negando a língua falada por esse falante e, como consequência, negando sua identidade, assim como a língua de seus familiares e de seu grupo social. 37</p><p>Unidade I Bagno (2003), em obra sugestivamente intitulada Preconceito Linguístico: que é, como se faz, discorre sobre esse preconceito construído ao longo da história em cima de afirmações, chamadas por ele de mitos do preconceito linguístico, tais como "Brasileiro não sabe falar português / em Portugal se fala bem (mito n. 2); "Português é muito difícil" (mito n. 3); "As pessoas sem instrução falam tudo errado" (mito n. 4); para citar apenas três dos oito mitos apresentados, os quais na verdade escondem um grande preconceito sobre toda a variedade linguística que se distancia daquela encontrada nos livros de gramática. Ao negar ou rebaixar uma variedade linguística à condição de errada ou inferior, que está sendo negado, rebaixado ou discriminado é a própria pessoa que a usa. No contexto da linguística moderna, as variedades linguísticas situacionais, regionais ou socioculturais são apenas diferenças observadas nos vários usos que os falantes fazem da língua, e não deficiências linguísticas. Cada uma das variedades linguísticas tem seu valor enquanto uso da língua e deve ser objeto de análise do investigador. Observação Histórias sobre as várias guerras descrevem dominador procurando extinguir ou impedir 0 uso da língua do povo dominado uma forma de destruir sua identidade. Investigue essa questão. Para encerrar 0 assunto, podemos trazer à tona a denúncia de Lemle (1991) sobre ensino de línguas nas escolas, segundo a qual levar aluno a pensar que não sabe falar ou que fala de modo errado é um linguístico, já que não se está levando em consideração as variedades linguísticas; é um desrespeito humano, visto que rebaixa 0 aluno; e um erro político, pois rebaixar a autoestima linguística de uma pessoa ou de uma comunidade contribui para achatá-la, amedrontá-la e torná-la passiva na comunidade social em que se encontra. Lembrete 0 linguista não nega valor dos usos literários das línguas e não nega valor dos estudos dos usos literários nas escolas. 0 linguista nega uma orientação que tende a privilegiar e a atribuir maior valor, de correção ou de pureza, a um padrão linguístico em relação a outro. 2.3 foco na forma (gramática tradicional) e não no conteúdo tomando por base a visão contida nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) são documentos elaborados com 0 objetivo de orientar e nortear as discussões para desenvolvimento dos projetos pedagógicos das escolas e dos professores. Eles se constituem em referências nacionais e não em manuais de ensino. 38</p><p>LINGUÍSTICA GERAL Saiba mais Se você tem interesse nessas questões, é possível obter mais informações acessando site do Ministério da Educação e Cultura: Diante do que já expusemos a você, é possível concluir que ensino baseado nas gramáticas tradicionais ou, mais adequadamente, nas denominadas gramáticas "normativas", volta-se primordialmente para a forma da linguagem, seja ela escrita ou oral; a forma rotulada de certa, se corresponder ao imposto pela gramática, ou errada, se dela se distanciar. 0 professor, assim, tem sua atenção orientada para a correção das produções linguísticas dos alunos que devem enquadrar-se em esquemas ou estruturas prontas, obedecendo regras gramaticais que parecem (e na maioria das vezes são) muito distantes da língua utilizada por eles. As críticas a esse modelo de ensino de línguas são muitas e auxiliam na compreensão das reflexões sobre a linguagem em uma perspectiva linguística, devendo ser objeto de discussões pedagógicas de todos os que se interessam pelo ensino. Cabe aqui, portanto, apontar para novas perspectivas de ensino de línguas, língua materna ou estrangeira, resultantes dos vários trabalhos desenvolvidos pela linguística moderna. Esses trabalhos permitem repensar as noções de certo e errado, levando em consideração as hipóteses linguísticas dos alunos, resultantes de suas próprias reflexões sobre a linguagem, além de resultarem na aceitação e valorização de suas variedades linguísticas, bem como na aceitação e valorização de suas produções textuais como usos reais da língua. Essa perspectiva de ensino tem por objetivo desenvolver as habilidades linguísticas dos alunos em vez de enquadrá-las em um padrão artificialmente construído. Opor-se ao ensino normativo da língua equivale a afirmar que não se deve ensinar aos alunos outra variedade (outro dialeto) da língua a não ser aquela que eles já dominam. Não acreditamos que haja muitas pessoas linguistas ou não que compactuem com essa opinião. A questão que de fato existe é a de como, até que medida, e a que altura da vida escolar dos alunos se deve por em prática ensino normativo da língua (PERINI, 1976, p. 23). Resumo Objeto de estudo da Linguística: linguagem verbal oral e escrita Gramática tradicional, normativa: tem como objetivo prescrever normas ou ditar normas de correção para uso da língua. 39</p><p>Unidade Quadro 8 - - A linguística nos séculos XVII e XIX Século XVII Século XIX gramáticas gerais: têm por objetivo enunciar princípios gramáticas comparadas: têm por objetivo universais aos quais obedecem todas as línguas; estabelecer comparações entre as línguas, em busca de regularidades; estudos da linguagem: pautados no racionalismo, possuem linguagem como representação do foco dos estudos nesse período: as línguas se pensamento, obedecendo a princípios racionais e transformam com passar do tempo; lógicos; mudança das línguas não depende da vontade dos preocupação com clareza e precisão no uso da homens, mas é uma necessidade da própria língua; linguagem; grande número de estudos linguísticos de caráter busca pela língua-ideal: língua sem sem histórico, portanto, muitas descobertas de ambiguidades, para garantir a unidade na comunicação; semelhanças entre línguas; contribuição da gramática geral à linguística: método histórico-comparado: comparam-se as possibilidades de pensar a linguagem em sua línguas em busca de semelhanças gramaticais e generalidade. sonoras; busca pela língua-mãe: língua de origem; contribuição da gramática comparada à linguística: constatar a regularidade nas mudanças da língua. Para Saussure língua = sistema de signos língua: sistema fato social, virtual; fala: realização concreta da língua, pelo falante. Semiologia/Semiótica - estudo da simbologia na vida social Exercícios Questão 1. A Linguística e a Gramática apresentam posicionamentos diferentes no tocante ao estudo da língua. Aponte para a afirmativa que constitui a principal diferença entre essas áreas: A) A Linguística e a Gramática têm por objeto de estudo a língua escrita. B) Enquanto a Linguística assume um posicionamento mais teórico acerca dos fatos linguísticos de uma dada língua, a Gramática assume um caráter mais prático, no tocante à língua em uso. C) A Linguística tem por objeto de estudo a linguagem verbal e visual, e a Gramática, apenas a linguagem verbal oral e escrita. D) A Linguística observa a língua em uso, descrevendo e explicando os fatos sonoros, gramaticais e lexicais, ao passo que a Gramática fundamenta sua análise na língua escrita, normatizada de acordo com padrão culto linguístico. 40</p><p>LINGUÍSTICA GERAL E) A Linguística e a Gramática têm por objeto de estudo a língua falada. Resposta correta: Alternativa D. Análise das alternativas A) Alternativa incorreta Justificativa: a gramática tem por objeto de estudo a língua escrita, normatizada; a linguística observa a língua em uso. B) Alternativa incorreta Justificativa: a gramática não contempla a língua em uso; a linguística, embora tenha seu lado teórico, assume uma postura mais prática, ao observar a língua em uso. C) Alternativa incorreta Justificativa: a linguística só contempla a linguagem verbal humana, não se sobre outras linguagens; é objeto da gramática apenas a linguagem verbal escrita. D) Alternativa correta Justificativa: a linguística, com estatuto de ciência, é diferente da gramática tradicional ou normativa. Na gramática tradicional, 0 foco está em prescrever um conjunto de regras destinadas ao falante para que corrija uso da língua; já a linguística observa a língua em uso, possibilitando reflexões com 0 propósito de entender seu funcionamento. E) Alternativa incorreta Justificativa: a gramática não tem como foco estudo da língua falada. Questão 2. (ENEM 2009) 0 personagem Chico Bento pode ser considerado um típico habitante da zona rural, comumente chamado de "roceiro" ou "caipira". ZÉ LELE NUM FICA PARADO! FAIZ ARGUMA COISA! Figura 2 SOUZA, Maurício de. [Chico Bento]. 0 Globo, Rio de Janeiro, Segundo Caderno, 19 dez. 2008, p.7. 41</p><p>Unidade Considerando a sua fala essa tipicidade é confirmada primordialmente pela: A) transcrição da fala característica de áreas rurais. B) redução do nome "José" para "Zé", comum nas comunidades rurais. C) emprego de elementos que caracterizam sua linguagem como coloquial. D) escolha de palavras ligadas ao meio rural, incomuns nos meios urbanos. E) utilização da palavra "coisa", pouco frequente nas zonas mais urbanizadas. Resolução desta questão na plataforma. 42</p>

Mais conteúdos dessa disciplina