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Luiz Roberto Delvaux de Matos http://www.reflexescritos.com.br Trabalho realizado por: Luiz Roberto Delvaux de Matos O TABU DO INCESTO E O RECALQUE PRIMÁRIO FEVEREIRO DE 2010 2 Luiz Roberto Delvaux de Matos http://www.reflexescritos.com.br ÍNDICE I Uma Questão Sociológica............................................... 3. II Uma Questão Psicanalítica............................................. 6. III Concluindo com uma questão lingüística..................... 10. IV Bibliografia...................................................................... 11. 3 Luiz Roberto Delvaux de Matos http://www.reflexescritos.com.br I – Uma Questão Sociológica. Claude Lévi-Strauss no seu livro “As Estruturas Elementares do Parentesco” 1 discute a distinção entre estado de natureza e estado de cultura. Quando é que nós passamos de um estado para outro. Cita o Homem de Neanderthal que com seu provável conhecimento de linguagem, suas indústrias líticas (de pedra) e ritos funerários já não poderia ser considerado como vivendo num estado de natureza. Podemos dizer que o homem é um ser biológico, ao mesmo tempo que um sujeito social. Em um certo sentido, a cultura substitui a vida natural e em outro, a transforma para a realização de uma síntese para uma nova ordem. Verificamos que em toda parte onde se manifesta uma regra podemos constatar estar numa etapa da cultura. Por outro lado, quando encontramos o universal, reconhecemos o critério da natureza. Entretanto, existe algo que constitui uma regra, única em todas as regras sociais e que também possui o caráter de universalidade – a proibição do incesto. Poucas prescrições sociais, com igual extensão, preservaram em nossas sociedades a auréola de terror respeitoso que se liga às coisas sagradas. Esta regra é ao mesmo tempo social, por ser uma regra, mas também pré-social – primeiro por ser universal e segundo, pelo tipo de relações a que impõe sua norma. A vida sexual é duplamente exterior ao grupo: exprime por um lado, no mais alto grau, a natureza do homem, atestando a sobrevivência mais característica dos instintos e por outro lado, seus fins visam a satisfazer os desejos individuais. A regulamentação das relações entre os sexos constitui uma invasão da cultura no interior da natureza. Por outro lado, a atividade sexual é no íntimo da natureza, um prenúncio da vida social porque o instinto sexual, para se definir, tem a necessidade do estímulo do outro. 1 Todo o material apresentado aqui deriva do trabalho de Lévi-Strauss. Minha contribuição pessoal é apenas quanto à seleção do material, na emissão de opiniões e na construção da linha de raciocínio. 4 Luiz Roberto Delvaux de Matos http://www.reflexescritos.com.br Considerada do ponto de vista geral, a proibição do incesto exprime a passagem do fato natural da consaguinidade ao fato cultural da aliança. No domínio da natureza constatamos que só se dá o que se recebe. Exemplificamos isso através do fenômeno de hereditariedade. No domínio da cultura, o sujeito recebe sempre mais do que dá e, ao mesmo tempo, dá mais do que recebe. Este duplo desequilíbrio que pode ser observado, exprime-se nos processos que são a educação e a invenção. Vendo sob este ângulo, podemos dizer que o problema da passagem da natureza à cultura reduz-se ao problema da introdução de processos de acumulação no interior de processos de repetição. No que tange a aliança, a natureza atribui a cada sujeito determinantes que são vinculadas por seus pais efetivos, mas não decide quais serão estes pais. Ela nos diz que é preciso ter pais e que haverá semelhança a eles. A natureza afirma a lei, mas é indiferente ao conteúdo dela. Podemos dizer que na natureza há um princípio de indeterminação e a cultura tem de inclinar-se diante da fatalidade da herança biológica. Por outro lado, é através da aliança que a cultura pode se afirmar, definindo- lhe as modalidades . O papel primordial da cultura é garantir a existência do grupo como grupo, substituindo a organização ao acaso. A proibição do incesto constitui, antes de tudo, na principal forma de intervenção neste processo. O problema da intervenção se coloca todas as vezes que o grupo se defronta com a insuficiência ou a distribuição aleatória de um valor cujo uso apresenta uma importância fundamental. Lévi-Strauss nos lembra “o regime do produto escasso” que, longe de ser uma novidade das décadas mais recentes, era um estado de coisas que as sociedades primitivas consideravam normal e sem o qual a coesão do grupo estaria comprometida. Assim, o pensamento primitivo era unânime em proclamar que “o alimento é coisa para distribuir”. Em algumas populações primitivas as trocas econômicas e as trocas matrimoniais eram parte integrante de um sistema fundamental de reciprocidade. O casamento, na maioria das sociedades primitivas, apresentava uma importância completamente diferente, não erótica, mas econômica. 5 Luiz Roberto Delvaux de Matos http://www.reflexescritos.com.br Nestas sociedades, o homem e a mulher não tem a mesma especialização técnica e dependem um do outro para a fabricação dos objetos necessários às tarefas cotidianas. Uma alimentação completa e regular depende de uma “cooperativa de produção” que constitui uma família. Em níveis mais primitivos, com o rigor do meio geográfico e o estado rudimentar das técnicas, a existência seria quase impossível para um indivíduo abandonado a si próprio. O que aconteceria se o princípio da intervenção coletiva – afirmado pela regra que proíbe o incesto – não existisse? Seria razoável pensar na formação de privilégios no interior do grupo familiar. Na ausência da regra social, teríamos a inviabilização da sociedade simplesmente. Ao se estabelecer uma regra de obediência geral, o grupo afirma o seu direito de controle sobre o que considera legitimamente um valor essencial. Recusa-se a sancionar a desigualdade natural da distribuição do sexo nas famílias, estabelecendo a liberdade de acesso às mulheres do grupo, reconhecida a todos os sujeitos. A proibição do incesto é a afirmação, pelo grupo, que em matéria de relações entre os sexos não se pode fazer o que se quer. A interdição dá início a um começo de organização. Tomando a idéia de “produto escasso”, a proibição do incesto tem por finalidade “imobilizar” as mulheres no seio da família, a fim de que a divisão delas ou a competição em torno delas seja feita no grupo e sob o controle do mesmo. A proibição do incesto afirma a preeminência do social sobre o natural, do coletivo sobre o individual, da organização sobre o arbitrário, constituindo-se como uma regra de reprocidade. A partir do momento em que proíbo a mim mesmo o uso de uma mulher, que com isso passa a ser disponível para um outro homem, há em algum lugar, um homem que renuncia a uma mulher que pode se tornar disponível para mim. A proibição do incesto é instaurada para garantir e fundar uma troca. Lévi-Strauss, citando Mauss no seu “Essai sur le don” nos diz que a troca se apresenta nas sociedades primitivas menos em forma de transações do que de dons recíprocos. Esta forma primitiva de trocas é um “fato 6 Luiz Roberto Delvaux de Matos http://www.reflexescritos.com.br social total”, isto é, dotado de significação simultaneamente social e religiosa, mágica e econômica, utilitária e sentimental, jurídica e moral. Este jogo “sábio” das trocas consiste em um conjunto complexo de manobras conscientes ou inconscientes, para adquirir garantias e prevenir-se contra riscos no duplo terreno das alianças e das rivalidades. Por outro lado, não é a simples posse das riquezas que confere oprestígio, mas antes, a distribuição delas. As trocas impelem ao trabalho e estimulam a necessidade de cooperação. O papel da troca na sociedade primitiva é essencial, englobando ao mesmo tempo certos objetos materiais, valores sociais e as mulheres. No que se refere a elas, as sociedades conservaram sua função fundamental, de um lado porque as mulheres constituem o bem por excelência, mas também porque além de um possível valor social é também um estimulante natural (as feministas que me desculpem!). O sistema de trocas realiza a passagem da hostilidade à aliança, da angústia à confiança, do medo à amizade. Finalizando, podemos propor que uma análise sociológica e antropológica de nosso período pós-moderno possa ser desenvolvida em outro trabalho. II – Uma Questão Psicanalítica. Garcia-Roza2 nos diz que o recalcamento (verdrängung) é um dos conceitos mais importantes da metapsicologia freudiana, ao lembrar a citação de Freud no texto “A história do movimento psicanalítico”, onde este declara: “o recalcamento é o pilar fundamental sobre o que descansa o edifício da psicanálise”. No texto “Interpretação do Sonho”, Freud apresenta o aparato (ou aparelho) psíquico dividido em sistemas e faz a distinção entre o sistema inconsciente e o sistema pré-consciente. Neste trabalho, o Inconsciente é concebido como sistema e tem um funcionamento distinto do outro sistema. E o operador desta distinção e o que responde pelo modo de ser do inconsciente é o recalque. 2 Todo o material apresentado aqui deriva do trabalho de Garcia-Roza. Minha contribuição pessoal é apenas quanto à seleção do material, na emissão de opiniões e na construção da linha de raciocínio. 7 Luiz Roberto Delvaux de Matos http://www.reflexescritos.com.br Enquanto o sistema Inconsciente (Ics) tem sua atividade voltada para o livre escoamento das quantidades de excitação, o sistema Pré- consciente/Consciente (Pcs/Cs) tem por função inibir essa livre descarga a fim de tornar possível a ação adequada. Esse processo só é possível se o aparato psíquico tolerar um certo acúmulo de excitação de modo a dispor de uma reserva de energia (e de uma reserva de informação) para proceder à discriminação. É isto que vai constituir a “memória em Ψ” de que fala Freud em seu “Projeto para uma psicologia científica” escrito em 1895. Ao modo de funcionamento do primeiro sistema, Freud o denomina processo primário. Ao do segundo, processo secundário. A instância crítica (Pcs/Cs) interdita o acesso à consciência daquelas representações da instância criticada (Ics) que possam se constituir como ameaça. O recalcamento aparece dominantemente como processo defensivo contra uma representação-lembrança ameaçadora (que possa resultar em desprazer). No entanto, o material recalcado persiste na procura de uma expressão consciente e o faz exercendo uma atração constante sobre os conteúdos do Pcs/Cs com os quais ele possa estabelecer uma ligação a fim de escoar sua energia. No aparato psíquico há uma economia do prazer/desprazer. Ele deve ser entendido como um aparato de captura e de transformação das intensidades provenientes tanto de fontes exógenas quanto de fonte endógena (pulsional). Assim, podemos entender que o recalque está a serviço da satisfação pulsional e não contra ela (equilíbrio entra as exigências pulsionais e as exigências decorrentes da cultura). O recalque faz uma cisão no universo simbólico do sujeito, impedindo a passagem da imagem à palavra. Isso não elimina a representação e nem destrói sua potência significante. Na verdade constitui o Inconsciente que continua insistindo no sentido de possibilitar uma satisfação da pulsão. Freud nos diz que o recalque não está presente desde o início do aparato psíquico. Para que haja o recalque é preciso haver distinção entre o inconsciente e o consciente. Porém essa clivagem da subjetividade é operada precisamente pelo recalque. Esse aparente paradoxo é resolvido por Freud através da distinção entre recalque original ou primário e o recalque secundário ou recalque propriamente dito. 8 Luiz Roberto Delvaux de Matos http://www.reflexescritos.com.br Freud distingue três fases do recalque: 1 – A fixação; 2 – O recalque propriamente dito; 3 – O retorno do recalcado. A 1ª fase – Fixação – corresponde à do recalque primário. É precursora e condição necessária de todo recalcamento e consiste em negar ao representante da pulsão o acesso à consciência, estabelecendo-se a partir de então uma fixação, uma ligação da pulsão ao representante da representação. Freud emprega ainda o termo inscrição para designar essa fixação da pulsão no representante da representação e a manutenção deste último num registro psíquico inteiramente inacessível à consciência. A fixação ou inscrição (ou ainda recalque primário) são, portanto, anteriores à constituição do Inconsciente concebido como um sistema psíquico (cujos conteúdos, Lacan nos dirá mais tarde, são estruturados como uma linguagem). Esses representantes se organizam segundo a associação por simultaneidade, não formando uma rede significante. No entanto estabelecem uma demarcação interna ao psiquismo que servirá de referência ao recalque propriamente dito. Em sua carta a seu amigo Fliess em dezembro de 1896 (carta 52), Freud define fixação tendo um sentido genético e inscrição apontando para uma concepção tópica. Neste documento, Freud se preocupa em fornecer um esquema do aparato psíquico como um aparato de memória. A referência central aqui é a noção de traço. Os estímulos provenientes das fontes exógenas e endógenas atingem o aparato psíquico sob a forma de impressão. O traço é a marca mnêmica da impressão. Este traço de uma impressão é o que vai se constituir como a matéria-prima da memória do aparato psíquico sob a forma de uma inscrição. 9 Luiz Roberto Delvaux de Matos http://www.reflexescritos.com.br Essas inscrições se ordenam de diferentes maneiras. Num primeiro sistema se associam por simultaneidade. Num segundo, por causalidade, até que no Inconsciente formem um sistema de traços que se articulam segundo princípios de condensação e deslocamento que são em tudo semelhantes aos da linguagem. Cabe ressaltar ainda que, para Freud, o traço não é a reprodução da impressão ou reprodução do estímulo externo. É uma imagem (mas não a do objeto externo que o teria produzido). O que vai constituir a memória não é o traço considerado como elemento estático, mas as diferenças entre os caminhos tomados pelo fluxo de excitação. A memória é a memória das diferenças. Os traços inscritos no sistema sofrem, de tempos em tempos, reordenamentos. A teoria freudiana da memória indica algo da ordem da escrita, da letra. A inscrição do traço ou da representação num determinado sistema mnêmico corresponde à fixação da excitação nessa representação. Quando é negada à representação seu acesso à consciência, ao mesmo tempo, estabelece-se a fixação da pulsão nessa representação. É a partir daí que a representação em questão passa a se comportar “como se pertencesse ao sistema inconsciente”, ou seja, como se fosse uma representação recalcada. É nesse ponto que entra em jogo o que Freud chama de recalque originário que vai fazer com que determinadas representações passem a se comportar como se fizessem parte do sistema inconsciente, isto é passem a se comportar como se fossem recalcadas e a exercer a atração necessária para o recalcamento propriamente dito. Vale lembrar que a fixação da pulsão na representação e sua inscrição são feitas num Sistema Inconsciente, mas não no Inconsciente (enquanto parte do aparato psíquico). Para Lacan, a inscrição se dá no registro imaginário, não sendo integrado ao sistema verbalizado do sujeito porque é anterior à aquisição da fala. Para Freud, a natureza e a origemdesse conhecimento responsável pela inscrição de uma “cena primária” são desconhecidas. Compara este “algo” ao instinto dos animais, uma espécie de conhecimento adquirido filogeneticamente que, apesar de não estar restrito ao comportamento sexual, estaria intimamente ligado a ele: “O sexual seria dotado, portanto, 10 Luiz Roberto Delvaux de Matos http://www.reflexescritos.com.br de uma marca própria, de uma intensidade peculiar que funcionaria para o sujeito como sinal para essa defesa originária. Esse fator seria o núcleo do que mais tarde viria a ser o inconsciente recalcado” 3. III – Concluindo com uma questão lingüística. Ferdinand de Saussure em seu “Curso de Lingüística Geral” define que a linguagem teria um lado social e um individual dialeticamente articulados, implicando concomitantemente um sistema estabelecido e uma evolução: “... a cada instante, ela é uma instituição atual e um produto do passado... na realidade, a relação que une ambas as coisas é tão íntima que se faz difícil separá-las.” 4 Ananda Eloina Scherer, no seu artigo “Subjetividade, inscrição, ritmo e escrita em voz” 5 nos diz que “é durante a escuta do outro que o Eu dominante se revela a mim e ao outro”. Neste mesmo artigo apresenta uma citação de Imre Kertész: “Toda língua, todo povo, toda civilização tem um Eu dominante que registra o mundo, domina-o e também o representa. Esse Eu em atividade permanente é um sujeito com quem uma grande coletividade – uma nação, um povo, uma cultura – pode, com mais ou menos sucesso, identificar-se.” Pensamos na idéia de um Sistema Inconsciente implicado pela linguagem e que é o responsável pela constituição do recalque primário através do Tabu do Incesto. A partir daí origina-se o aparato psíquico de cada sujeito. Podemos deduzir que o Tabu do Incesto, assim como o sistema de reprocidade, de trocas, a idéia de dons, são assuntos intimamente ligados ao recalque primário. O Sistema Inconsciente existente na linguagem não se confunde com o Inconsciente do aparato psíquico. É algo próprio da linguagem e a sua existência condiciona em cada um de nós a constituição do recalque primário e a formação do aparato psíquico. 3 Garcia-Roza, “Introdução à Metapsicologia Freudiana” Vol. 3, p. 186. 4 Todo o material apresentado aqui deriva do trabalho de Valdir Flores. Minha contribuição pessoal é apenas quanto à seleção do material, na emissão de opiniões e na construção da linha de raciocínio. 5 Amanda Eloina Scherer in “A Escrita e os Escritos: reflexões em análise do discurso e psicanálise”, pgs. 13-20. 11 Luiz Roberto Delvaux de Matos http://www.reflexescritos.com.br IV – BIBLIOGRAFIA. • Flores, Valdir, Lingüística e Psicanálise: princípios de uma semântica da enunciação, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. • Garcia-Roza, Luiz Alfredo, Introdução à Metapsicologia Freudiana – Artigos de Metapsicologia, 1914-1917, Vol. 3, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. • Lévi-Strauss, Claude, As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis: Vozes, 1982. • Mariani, Bethânia (org.), A Escrita e os Escritos: reflexões em Análise do Discurso e Psicanálise, São Carlos: Claraluz, 2006.
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