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<p>O</p><p>PREFÁCIO</p><p>Marco Zingano[1]</p><p>pequeno tratado intitulado À paz perpétua nasceu grande. Publicado pela</p><p>primeira vez em 1795, na Alemanha, o livro teve várias reedições, tendo</p><p>logo sido traduzido para o francês. A razão é simples: a Europa vivia um</p><p>momento de forte mudança, ocasionado pela Revolução Francesa, que, a partir</p><p>de 1789, apresentava ao mundo uma perspectiva política inovadora e altamente</p><p>contagiante. O período do Terror, de 1793 a 1794, anunciava, porém, que esta</p><p>nova vida política não viria sem seus próprios demônios, de um horror até então</p><p>desconhecido. É assim que, quando Kant publica, em seus anos de velhice, após</p><p>a longa maturação de seu sistema crítico e tendo também já escrito sobre a</p><p>história de modo menos técnico, um ensaio sobre a paz em um diapasão</p><p>republicano e cosmopolita, o público culto vê aqui uma chance ímpar para</p><p>pensar seu próprio tempo. Em primeiro plano estão, obviamente, as</p><p>possibilidades da paz e a defesa do republicanismo. O pequeno livro de Kant,</p><p>contudo, vai mais longe, pois não só responde ao seu tempo, mas também</p><p>formula questões para o futuro. Entre elas, está o problema de como organizar as</p><p>nações em uma federação, sem que percam sua identidade ou autonomia, mas</p><p>em cujo seio suas divergências possam ser discutidas na forma da lei a fim de</p><p>evitar o pior fracasso da política, a guerra e seu cortejo de males. Está enfim</p><p>esboçado o que resultará na Organização das Nações Unidas, um século e meio</p><p>mais tarde, após a experiência de guerras ainda mais devastadoras e de um</p><p>horror nunca cogitado, quase inimaginável. O livro de Kant fala assim ao seu</p><p>tempo, mas também a nós, indagando seriamente sobre o que queremos ser.</p><p>Livro de filósofo, livro de reflexão: sobretudo, cada linha acentua a relação</p><p>necessária entre ética e política por intermédio do direito, agora tomado como</p><p>direito internacional. Discretamente amparado em seu sistema crítico, Kant nos</p><p>lega um estudo contundente sobre nossas perspectivas políticas. Escrito em</p><p>linguagem acessível, ele não é menos interrogador sobre nosso futuro.</p><p>[1] Marco Zingano é professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências</p><p>Humanas da Universidade de São Paulo, com doutorado na área de ética aristotélica. É autor de diversos</p><p>livros na área da filosofia, entre eles Estudos de ética antiga (Discurso, 2007)</p><p>D</p><p>UM PROJETO FILOSÓFICO</p><p>eixe-se de lado se esta inscrição satírica na tabuleta de uma estalagem</p><p>holandesa, em que estava pintado um cemitério, vale para os homens em</p><p>geral, ou em particular para os chefes de Estado, que nunca estão fartos de</p><p>guerra, ou quiçá somente para os filósofos que sonham com este doce sonho.</p><p>Isto, porém, o autor do presente ensaio reclama: que, já que o político prático</p><p>põe-se, com o teórico, a desdenhá-lo com grande presunção, como a um</p><p>acadêmico que, com suas idéias ocas, não traz perigo algum ao Estado, que tem</p><p>de ser regido por princípios da experiência, e a quem sempre se pode deixar</p><p>jogar nas onze posições sem que o estadista experimentado tenha de se importar</p><p>com isso, ele, em caso de conflito com o teórico, tem também de proceder de</p><p>modo conseqüente e não farejar perigo ao Estado por trás de suas opiniões</p><p>publicamente expressas e aventadas a esmo – mediante esta clausula salvatoria</p><p>o autor deste ensaio pretende expressamente proteger-se, do melhor modo,</p><p>contra toda interpretação malévola.</p><p>PRIMEIRA SEÇÃO, QUE CONTÉM OS ARTIGOS PRELIMINARES</p><p>PARA A PAZ PERPÉTUA ENTRE OS ESTADOS</p><p>1. “Nenhum tratado de paz deve ser tomado como tal se tiver sido feito com</p><p>reserva secreta de matéria para uma guerra futura.”</p><p>Pois seria então um simples armistício, suspensão das hostilidades, não paz,</p><p>que significa o fim de todas as hostilidades, e atrelar-lhe o adjetivo de perpétua é</p><p>já um pleonasmo suspeito. As causas existentes para a guerra futura, embora</p><p>talvez agora ainda não sejam conhecidas aos próprios contratantes, são</p><p>aniquiladas em seu todo pelo tratado de paz –, sejam elas retiradas de</p><p>documentos de arquivo pela mais arguta habilidade de especulação. – A reserva</p><p>(reservatio mentalis) de pretensões antigas que podem ser reclamadas no futuro,</p><p>das quais nenhuma parte faria menção por ora, porque ambas estão demasiado</p><p>extenuadas para continuar a guerra, pela perversa intenção de aproveitar a</p><p>primeira oportunidade favorável para este fim, pertence à casuística jesuítica e</p><p>está abaixo da dignidade dos regentes, assim como a deferência a semelhantes</p><p>deduções está abaixo da dignidade de um ministro, quando se julga a coisa como</p><p>ela é em si mesma.</p><p>Se, porém, a verdadeira honra do Estado está, segundo conceitos</p><p>esclarecidos da prudência de Estado, no aumento constante do poder, seja por</p><p>que meio for, então certamente salta aos olhos que esse juízo é pedante e</p><p>primário.</p><p>2. “Nenhum Estado independente (pequeno ou grande, isso tanto faz aqui) pode</p><p>ser adquirido por um outro Estado por herança, troca, compra ou doação.”</p><p>Um Estado não é um patrimônio (patrimonium) (como de certo modo o</p><p>solo sobre o qual se encontra). Ele é uma sociedade de homens de que ninguém,</p><p>a não ser o próprio Estado, pode dispor e ordenar. Anexá-lo, porém, como</p><p>enxerto a um outro Estado, ele que tinha como tronco sua própria raiz, chama-se</p><p>anular sua existência como uma pessoa moral e fazer da última uma coisa, e</p><p>contradiz, portanto, a idéia de contrato originário, sem o qual não se compreende</p><p>nenhum direito sobre um povo[1]. É de todos conhecido o perigo que trouxe à</p><p>Europa, até nosso mais recente tempo, o preconceito desse modo de aquisição,</p><p>pois as outras partes do mundo nunca tomaram conhecimento de que também os</p><p>Estados poderiam esposar uns aos outros, em parte como um novo modo</p><p>engenhoso de fazer-se, sem dispêndio de forças, todo-poderoso mediante</p><p>alianças familiares, em parte para alargar, desse modo a posse de terras. É de se</p><p>computar também a contratação de tropas de um Estado por um outro contra um</p><p>inimigo que não é comum, pois com isso usa-se e abusa-se dos súditos como</p><p>coisas manejáveis à vontade.</p><p>3. “Exércitos permanentes (miles perpetuus) devem desaparecer completamente</p><p>com o tempo.”</p><p>Pois eles constantemente ameaçam outros Estados com guerra, mediante a</p><p>prontidão para tanto em que sempre parecem estar; emulam-nos a sobrepujar uns</p><p>aos outros na quantidade de homens em armas, que não conhece limites, e como,</p><p>pelos custos empregados nisto, a paz torna-se mais onerosa do que uma guerra</p><p>curta, são assim eles próprios causa de guerras ofensivas para desfazerem-se</p><p>desse peso; acrescente-se que ser mantido em soldo para matar ou ser morto</p><p>parece consistir no uso de homens como simples máquinas e instrumentos na</p><p>mão de um outro (o Estado), uso que não se pode se harmonizar com o direito de</p><p>humanidade em nossa própria pessoa. Completamente diferente ocorre com o</p><p>exercício periódico voluntariamente proposto dos cidadãos em armas para</p><p>assegurar-se assim a si e à pátria de agressões externas. Com a acumulação de</p><p>um tesouro ocorreria justamente que ele, considerado por outros Estados como</p><p>ameaça de guerra, obrigaria a ataques preventivos (porque entre as três</p><p>potências, a das forças armadas, a da aliança e a do dinheiro, a última bem</p><p>poderia ser o instrumento de guerra mais seguro, se não se lhe opusesse a</p><p>dificuldade de averiguar a grandeza desta potência).</p><p>4. “Não deve ser feita nenhuma dívida pública em relação a interesses externos</p><p>do Estado.”</p><p>Procurar recursos dentro ou fora do Estado no interesse da economia do</p><p>país (aprimoramento dos caminhos, novas colonizações, provimento dos</p><p>armazéns para anos preocupantes de colheita insuficiente etc.) é, este expediente,</p><p>insuspeito. Porém, um sistema de crédito, como máquina que opõe as potências</p><p>umas contra as outras, de custos crescentes e, contudo, sempre pronto para</p><p>exigências momentâneas (pois elas não ocorrem com todos os credores de uma</p><p>só vez) – a engenhosa invenção de um povo mercantil neste século – é uma</p><p>perigosa potência de dinheiro, ou seja, um tesouro para a beligerância que</p><p>sobrepuja os tesouros de todos os outros Estados tomados</p><p>idéia da</p><p>razão, e isto também deve custar o sacrifício do egoísmo. Ora, como o</p><p>rompimento de um vínculo de Estado ou de coligação cosmopolita, antes de</p><p>estar à disposição, em seu lugar, uma constituição ainda melhor é contrário a</p><p>toda prudência de Estado, concorde isto com a moral, seria então certamente</p><p>absurdo exigir que aquele defeito tenha de ser modificado imediata e</p><p>impetuosamente; mas que pelo menos a máxima da necessidade de uma tal</p><p>modificação esteja o mais intimamente presente no detentor do poder para que</p><p>permaneça em constante aproximação ao fim (da melhor constituição segundo</p><p>leis do direito), isso pode, porém, ser exigido dele. Um Estado pode já também</p><p>governar-se republicanamente, embora, ao mesmo tempo, segundo a</p><p>constituição existente, possua um poder soberano despótico, até que o povo</p><p>gradualmente se torne apto à influência da simples idéia da autoridade da lei</p><p>(como se a lei possuísse uma força física) e em conseqüência encontre-se hábil à</p><p>legislação própria (que originariamente está fundada no direito). Se também for</p><p>obtida uma constituição conforme à lei de modo ilegítimo pelo arrufo de uma</p><p>revolução provocada por uma constituição ruim, então também não teria mais de</p><p>ser considerado permitido trazer o povo novamente à antiga, embora em sua</p><p>vigência cada um que tome parte com emprego de força ou com perfídia estaria</p><p>por direito sujeito às penas de insurreição. Mas, no que concerne à relação</p><p>exterior dos Estados, não pode ser exigido de um Estado que deva renunciar à</p><p>sua constituição, ainda que despótica (que é, ainda assim, a mais forte em</p><p>relação aos inimigos externos), enquanto correr perigo de ser devorado por</p><p>outros Estados; por conseguinte, tem de ser também permitida a protelação da</p><p>execução daquele propósito até uma melhor oportunidade de tempo[1].</p><p>Sempre pode ocorrer, portanto, que os moralistas despotizantes (que</p><p>malogram na execução) violem variadas vezes a prudência de Estado (por</p><p>medidas tomadas ou preconizadas precipitadamente). Assim a experiência deve</p><p>levá-los, nessa sua violação contra a natureza, cada vez mais a uma trilha</p><p>melhor; em vez disso, os políticos moralizantes, pelo disfarce de princípios de</p><p>Estado contrários ao direito, sob o pretexto de uma natureza humana incapaz do</p><p>bem, segundo a idéia que a razão lhe prescreve, tornam impossível, no que lhes</p><p>toca, o aperfeiçoamento e perpetuam a infração ao direito.</p><p>Em lugar da prática, de que se gabam estes estadistas astuciosos, lidam com</p><p>práticas, na medida em que são pensadas apenas pelo que bajulam o poder agora</p><p>dominante (para não perder sua vantagem privada) em descurar o povo e,</p><p>quando possível, o mundo inteiro, segundo o modo de puros juristas (de</p><p>profissão, não de legislação), quando sobem até a política. Pois como seu</p><p>negócio não é usar de sutilezas sobre a própria legislação, mas executar os</p><p>preceitos atuais do código, então tem de ser sempre para eles a melhor toda</p><p>constituição legal agora existente, e, quando esta for modificada por uma</p><p>instância superior, é então melhor a seguinte, pois tudo está assim em sua ordem</p><p>mecânica conveniente. Se, porém, esta habilidade de montar em toda sela instila-</p><p>lhes a ilusão de também poder julgar sobre princípios de uma constituição de</p><p>Estado em geral segundo os conceitos do direito (por conseguinte, a priori, não</p><p>empíricos); se eles se gabam de conhecer os homens (o que sem dúvida é de se</p><p>esperar, porque eles lidam com muitos), sem, contudo, conhecer o homem e o</p><p>que pode ser feito dele (para o que é exigido um ponto de vista superior da</p><p>consideração antropológica), e, munidos desses conceitos, vão ministrar o direito</p><p>de Estado e o internacional, como a razão os prescreve, não podem, então, fazer</p><p>esta passagem senão com o espírito de chicana, na medida em que seguem seu</p><p>procedimento costumeiro (de um mecanismo segundo leis de coerção</p><p>despoticamente dadas) também aí onde os conceitos da razão querem uma</p><p>coerção fundada conforme à lei somente segundo princípios da liberdade, pelo</p><p>que primeiramente é possível uma constituição de Estado válida de direito,</p><p>problema que o pretenso prático, negligenciando aquela idéia, crê poder resolver</p><p>empiricamente a partir da experiência como foram estabelecidas as constituições</p><p>de Estado mais estáveis até agora, embora a maior parte seja contrária ao direito.</p><p>– As máximas que utiliza para isso (sem que as faça públicas) resumem-se</p><p>aproximadamente nas seguintes máximas sofísticas:</p><p>1. Fac et excusa. Aproveita a ocasião favorável para a usurpação arbitrária (de</p><p>um direito do Estado sobre seu povo ou sobre um povo vizinho); a justificação</p><p>se deixará bem mais fácil e elegantemente apresentar, e a força, dissimular-se,</p><p>depois do fato (sobretudo no primeiro caso, em que a força suprema no interior é</p><p>imediatamente também a autoridade legisladora, a quem se tem de obedecer sem</p><p>usar de subterfúgios), do que se meditasse antes em razões convincentes e se</p><p>quisesse esperar primeiramente as objeções. Este atrevimento dá mesmo uma</p><p>certa aparência de convicção interior da legitimidade do fato, e o deus bonus</p><p>eventus é em seguida o melhor procurador.</p><p>2. Si fecisti nega. O que tu mesmo cometeste, por exemplo, para levar teu povo</p><p>ao desespero e assim à revolta, nega que seja culpa tua, mas afirma que a culpa é</p><p>da indocilidade dos súditos ou também, no caso de uma conquista tua de um</p><p>povo vizinho, a culpa é da natureza do homem, pois, se não precede o outro com</p><p>a força, pode seguramente contar com que este o preceda e se apodere de seu</p><p>reino.</p><p>3. Divide et impera. Isto é: havendo certos chefes privilegiados em teu povo que</p><p>te elegeram simplesmente como seu chefe superior (primus inter pares), desune-</p><p>os entre si e separa-os do povo: fica então ao lado do último, sob pretexto de</p><p>maior liberdade; tudo dependerá, então, da tua vontade incondicionada. Ou, se</p><p>há Estados exteriores, o incitamento à discordância entre eles, sob a aparência de</p><p>auxílio ao mais fraco, é um meio razoavelmente seguro de submetê-los a ti um</p><p>após o outro.</p><p>Na verdade, ninguém será enganado por estas máximas políticas, pois são</p><p>já todas universalmente conhecidas; não é o caso de se envergonhar delas como</p><p>se a injustiça luzisse muito evidente aos olhos. Pois, porque nunca se</p><p>envergonham as grandes potências do juízo da multidão comum, mas somente se</p><p>envergonham umas das outras no que concerne àqueles princípios, não é o tornar</p><p>público, mas somente o fracasso de tais princípios que pode fazê-las</p><p>envergonhar-se (pois, com respeito à moralidade das máximas, concordam todas</p><p>umas com as outras); assim sobra-lhes sempre a honra política, com a qual</p><p>certamente podem contar, ou seja, a honra do aumento de sua potência, seja qual</p><p>for o meio pelo qual possa ser adquirida[2].</p><p>Para extrair o estado de paz entre os homens do de guerra no estado natural,</p><p>pelo menos fica claro, de todas estas expressões sinuosas de uma doutrina imoral</p><p>da prudência, que os homens não podem subtrair-se o conceito de direito, tanto</p><p>em suas relações privadas quanto nas públicas, e não se atrevem a fundar a</p><p>política publicamente simplesmente em manobras da prudência; por</p><p>conseguinte, não se atrevem a recusar toda obediência ao conceito de um direito</p><p>público (que é acentuado sobretudo no direito internacional), mas rendem a ele</p><p>em si todas as honras devidas, mesmo quando devam imaginar centenas de</p><p>evasivas e subterfúgios para desviar-se dele na prática e para atribuir falsamente</p><p>à força astuciosa a autoridade de ser a origem e o vínculo de todo direito. – Para</p><p>pôr um fim a esta sofistaria (ainda que não à injustiça por ela dissimulada) e</p><p>levar os falsos representantes dos poderosos da Terra à confissão de que</p><p>pleiteiam não em favor do direito, mas do poder, do qual eles tomam o tom,</p><p>como se eles próprios tivessem algo que mandar, será bom revelar a ilusão pela</p><p>qual alguém se engana a si e aos outros, encontrar o princípio supremo de onde</p><p>deriva a intenção à paz perpétua e mostrar que todo o mal que está em seu</p><p>caminho procede de que o moralista político inicia lá onde o político moral</p><p>modicamente termina e,</p><p>na medida em que subordina assim os princípios ao fim</p><p>(isto é, põe o carro à frente dos bois), frustra sua própria intenção de colocar em</p><p>concordância a política com a moral.</p><p>Para conciliar a filosofia prática consigo mesma, é necessário antes de mais</p><p>nada resolver a questão sobre se, nos problemas da razão prática, deve-se partir</p><p>do princípio material, o fim (como objeto do arbítrio), ou do princípio formal,</p><p>isto é, aquele (posto simplesmente na liberdade da relação externa) que se</p><p>enuncia assim: age de tal forma que tu possas querer que tua máxima deva</p><p>tornar-se uma lei universal (seja qual for o fim que se quiser).</p><p>Sem dúvida, o último princípio deve ter a precedência, pois tem, como</p><p>princípio do direito, necessidade incondicionada, ao passo que o primeiro é</p><p>necessitante somente sob a pressuposição de condições empíricas do fim</p><p>proposto, a saber, da sua execução, e, se este fim fosse também um dever (por</p><p>exemplo, a paz perpétua), então deveria ser ele próprio derivado do princípio</p><p>formal da máxima da ação exterior. – Ora, o primeiro princípio, o do moralista</p><p>político (o problema do direito de Estado, internacional e cosmopolita), é um</p><p>simples problema técnico (problema technicum); o segundo, ao contrário, como</p><p>princípio do político moral, a quem é um problema ético (problema morale),</p><p>distingue-se imensamente do outro no procedimento de conduzir à paz perpétua,</p><p>que não se deseja simplesmente como um bem físico, mas também como um</p><p>estado proveniente do reconhecimento do dever.</p><p>Para a solução do primeiro problema, a saber, da prudência de Estado, é</p><p>requerido muito conhecimento da natureza para utilizar seu mecanismo para o</p><p>fim pensado, e são todos eles incertos com respeito ao seu resultado concernente</p><p>à paz perpétua, quer se tome uma ou outra das três divisões do direito público. É</p><p>incerto se o povo pode ser mais bem mantido em obediência e ao mesmo tempo</p><p>na prosperidade interna, por longo tempo, pela severidade ou pelo engodo da</p><p>futilidade, ou se pode ser mantido internamente, e por muito tempo, pelo poder</p><p>supremo de um único chefe ou pela reunião de vários chefes, talvez também</p><p>simplesmente por uma nobreza de função, ou pelo poder do povo. Tem-se, de</p><p>todos os modos de governo (exceto o único genuinamente republicano, que,</p><p>contudo, somente pode ser concebido por um político moral), exemplos do</p><p>contrário na história. – Ainda mais incerto é um direito internacional em vão</p><p>estabelecido por estatutos segundo planos ministeriais, o qual de fato é somente</p><p>uma palavra sem conteúdo e repousa sobre contratos que contêm, no ato mesmo</p><p>de sua conclusão, ao mesmo tempo a reserva de sua transgressão. – Ao contrário,</p><p>a solução do segundo, ou seja, do problema da sabedoria de Estado, impõe-se,</p><p>por assim dizer, por si mesma, é compreensível para todo mundo e torna toda</p><p>artificialidade em vergonha, conduzindo diretamente ao fim; contudo, com a</p><p>memória da prudência, sem levá-lo para aí precipitadamente com violência,</p><p>aproxima-se dele incessantemente, segundo a natureza das circunstâncias</p><p>favoráveis.</p><p>Isso significa, então: “visai primeiramente ao reino da razão pura prática e à</p><p>justiça, assim vos será dado por si mesmo vosso fim (o benefício da paz</p><p>perpétua)”. Pois isso a moral tem como peculiaridade em si, e precisamente com</p><p>respeito a seus princípios do direito público (por conseguinte, em relação a uma</p><p>política cognoscível a priori), que, quanto menos torna dependente o</p><p>comportamento do fim proposto, da vantagem a que se visa, seja física ou moral,</p><p>tanto mais ela concorda em geral com este, o que sucede porque é precisamente</p><p>a vontade geral dada a priori (em um povo ou em relação a diversos povos uns</p><p>com os outros), que unicamente determina o que é de direito entre os homens; a</p><p>união da vontade de todos, porém, se somente proceder com conseqüência na</p><p>execução, também segundo o mecanismo da natureza, pode ser ao mesmo tempo</p><p>a causa de engendrar o efeito visado e de pôr em prática o conceito de direito. –</p><p>É assim, por exemplo, um princípio da política moral que um povo deve unir-se</p><p>em um Estado segundo os únicos conceitos de direito da liberdade e da</p><p>igualdade, e este princípio não está fundado na prudência, mas no dever. Agora,</p><p>ao contrário, usem de sutilezas o quanto queiram os moralistas políticos sobre o</p><p>mecanismo da natureza para uma multidão de homens que entra em sociedade,</p><p>mecanismo que debilitava aqueles princípios e frustrava sua intenção, ou</p><p>procurem demonstrar, ao contrário, sua afirmação também por exemplos de</p><p>constituições mal-organizadas dos tempos antigos e modernos (por exemplo, de</p><p>democracias sem sistema de representação); não terão nenhuma repercussão,</p><p>sobretudo porque uma tal teoria funesta provavelmente produz ela mesma o mal</p><p>que prediz, segundo a qual o homem é jogado com as restantes máquinas vivas</p><p>em uma classe, aos quais somente poderia ainda coexistir a consciência de que</p><p>não são seres livres para tornarem-se, em seu próprio juízo, os seres do mundo</p><p>mais miseráveis entre todos.</p><p>A proposição, que soa um pouco retumbante, tomada proverbial pela</p><p>circulação, mas verdadeira: fiat iustitia, pereat mundus, que significa: “domine a</p><p>justiça, ainda que por isso pereçam em seu todo os celerados do mundo”, é um</p><p>princípio de direito bravo que atalha o caminho sinuoso indicado pela perfídia ou</p><p>pela força; somente que não seja mal compreendida como a permissão para usar</p><p>o seu próprio direito com o maior rigor (o que conflitaria com o dever moral),</p><p>mas que seja interpretada como a obrigação dos detentores do poder de não</p><p>recusar a ninguém seu direito ou de restringi-lo por desfavor ou compaixão por</p><p>outrem, para o que é requerida principalmente uma constituição interna do</p><p>Estado estabelecida segundo princípios puros do direito, mas também então a da</p><p>união do mesmo com outros Estados vizinhos ou também distantes (análogo a</p><p>um Estado universal) para um ajuste legal de suas desavenças. – Esta proposição</p><p>não quer dizer senão que as máximas políticas têm de provir não do bem-estar e</p><p>felicidade de cada Estado, esperados a partir do seu cumprimento, portanto não</p><p>do fim que cada um deles dá a si por objeto (do querer), como o princípio</p><p>superior (porém empírico) da sabedoria de Estado, mas do conceito puro do</p><p>dever legal (do dever cujo princípio a priori é dado pela razão pura), quaisquer</p><p>que sejam também as conseqüências físicas disso. O mundo não perecerá</p><p>absolutamente por haver menos homens maus. O mal moral tem a qualidade</p><p>inseparável de sua natureza que ele é, em suas intenções (sobretudo em relação a</p><p>outros intencionados de modo igual), contrário e destruidor de si mesmo, e assim</p><p>dá lugar ao princípio (moral) do bem, ainda que por um lento progresso.</p><p>Não há, portanto, objetivamente (na teoria) nenhum conflito entre a moral e</p><p>a política. Em contraposição, subjetivamente (na propensão egoísta dos homens</p><p>que, porém, por não estar fundada em máximas da razão, não deve ainda ser</p><p>denominada de prática) permanecerá e possa ele sempre permanecer, porque</p><p>serve de pedra de afiar da virtude, cuja verdadeira coragem (segundo o princípio:</p><p>tu ne cede malis, sed contra audentior ito), no caso atual, não consiste tanto em</p><p>contrapor-se com firme propósito aos males e nos sacrifícios que têm de ser</p><p>aceitos, mas de olhar bem nos olhos o princípio mau em nós mesmos, muito</p><p>mais perigoso, mentiroso e traiçoeiro, que usa de sutilezas, querendo passar,</p><p>como justificação de toda transgressão, as fraquezas da natureza humana, e</p><p>vencer sua malícia.</p><p>O moralista político pode de fato dizer: o regente e o povo ou povo e povo</p><p>não cometem injustiça um ao outro se fizerem guerra com violência ou perfídia,</p><p>ainda que sem dúvida cometam em geral injustiça pelo fato de negar todo</p><p>respeito ao conceito de direito, que unicamente poderia fundar perpetuamente a</p><p>paz. Pois, porque um transgride o dever contra o outro, o qual está da mesma</p><p>forma disposto contrariamente ao direito contra aquele, sucede bem justamente a</p><p>ambos os lados se eles se exterminem entre si, assim, contudo, que sobre dessa</p><p>raça, até as épocas mais distantes,</p><p>sempre ainda o suficiente para não deixar</p><p>terminar este jogo, para que, algum dia, uma descendência tardia tire deles um</p><p>exemplo de advertência. A providência no curso do mundo é justificada aqui,</p><p>pois o princípio moral no homem nunca se extingue; a razão que,</p><p>pragmaticamente, se ativa para a execução da idéia jurídica, segundo aquele</p><p>princípio, cresce sempre continuamente mediante uma cultura sempre em</p><p>progresso, contudo com ela cresce também a culpa daquelas transgressões.</p><p>Somente a Criação, a saber, que um tal tipo de seres corrompidos em geral deva</p><p>existir sobre a Terra, não parece poder ser justificada por nenhuma teodicéia (se</p><p>admitirmos que o gênero humano nunca estará nem possa estar em melhor</p><p>situação): mas este ponto de vista de julgamento é alto demais para nós, como se</p><p>pudéssemos aplicar nossos conceitos (de sabedoria) ao poder supremo</p><p>inescrutável por nós na intenção teórica. – Seremos inevitavelmente levados a</p><p>essas conclusões desesperadas se não admitirmos que os princípios puros do</p><p>direito têm realidade objetiva, isto é, deixam-se executar; e devem lidar com eles</p><p>também o povo no Estado e, ademais, os Estados uns em relação aos outros,</p><p>qualquer que seja a objeção em contrário que a política empírica possa levantar.</p><p>A verdadeira política não pode, pois, dar um passo sem antes prestar homenagem</p><p>à moral e, embora a política seja em si mesma uma arte difícil, não constitui,</p><p>porém, arte alguma a sua união com a moral, pois esta corta o nó que aquela não</p><p>consegue desatar quando surgem divergências entre ambas. – O direito deve ser</p><p>considerado sagrado ao homem, por maiores que sejam os sacrifícios que custem</p><p>ao poder dominante. Não se pode aqui cortar em dois e inventar o meio-termo</p><p>(entre direito e utilidade) de um direito pragmaticamente condicionado, mas toda</p><p>a política deve dobrar-se diante do direito, podendo, contudo, esperar alcançar,</p><p>ainda que lentamente, um estado em que brilhará com firmeza.</p><p>II. DA HARMONIA DA POLÍTICA COM A MORAL</p><p>SEGUNDO O CONCEITO TRANSCENDENTAL</p><p>DO DIREITO PÚBLICO</p><p>Se abstraio de toda matéria no direito público, como habitualmente fazem</p><p>os juristas (segundo as diferentes relações empiricamente dadas dos homens no</p><p>Estado ou também dos Estados entre si), ainda me resta a forma da publicidade,</p><p>cuja possibilidade está contida em toda pretensão jurídica, porque sem ela não</p><p>haveria nenhuma justiça (que só pode ser pensada como publicamente</p><p>divulgável), por conseguinte tampouco haveria direito algum, que só se outorga</p><p>por ela.</p><p>Toda pretensão jurídica deve possuir a capacidade à publicidade, e, visto</p><p>que é muito fácil julgar se ocorre em um dado caso, isto é, se ela se deixa ou não</p><p>unificar com os princípios do agente, ela pode fornecer um critério de fácil</p><p>aplicação, e que se encontra a priori na razão, para imediatamente reconhecer,</p><p>em último caso, a falsidade (a contrariedade ao direito) da suposta pretensão</p><p>(praetensio juris) como que por um experimento da razão pura.</p><p>Segundo uma tal abstração de todo o empírico que o conceito do direito de</p><p>Estado e internacional contém (de tal tipo é o maldoso da natureza humana que</p><p>torna necessária a coerção), pode-se denominar a seguinte proposição de fórmula</p><p>transcendental do direito público:</p><p>“Todas as ações relativas ao direito de outros homens cuja máxima não se</p><p>conciliar com a publicidade são injustas.”</p><p>Este princípio não deve ser considerado simplesmente como ético</p><p>(pertencente à doutrina da virtude), mas também como jurídico (concernente ao</p><p>direito dos homens). Pois uma máxima que não posso deixar tornar-se pública</p><p>sem ao mesmo tempo frustrar minha própria intenção – que deve permanecer</p><p>secreta se deve ter êxito e para a qual não posso me declarar publicamente sem</p><p>que por isso seja levantada indefectivelmente a resistência de todos contra o meu</p><p>propósito – não pode vir esta contraposição necessária e universal, por</p><p>conseguinte a priori inteligível, de todos contra mim de nenhum outro lugar a</p><p>não ser da injustiça com que ela ameaça a todos. – Ele é além disso</p><p>simplesmente negativo, isto é, serve somente para, através dele, reconhecer o</p><p>que não é justo contra outrem. – Ele é como um axioma indemonstravelmente</p><p>certo e além disso fácil de aplicar, como é de se perceber nos seguintes exemplos</p><p>do direito público:</p><p>1. No que concerne ao direito de Estado (ius civitatis), a saber, o direito interno:</p><p>levanta-se nele a questão que muitos consideram difícil de responder e que o</p><p>princípio transcendental da publicidade resolve bem facilmente: “é a rebelião um</p><p>meio legítimo para um povo derrubar o poder opressor de um dito tirano (non</p><p>titulo, sed exercitio talia)?” Os direitos do povo são violados, e a ele (ao tirano)</p><p>não acontece nenhuma injustiça pelo destronamento – não há dúvida sobre isso.</p><p>Contudo, não menos injusto é, no mais alto grau, procurar pelos súditos o direito</p><p>desse modo e menos ainda podem clamar por injustiça se forem reprimidos neste</p><p>conflito e por isso tiverem de em seguida sofrer as mais duras penas.</p><p>Ora, aqui se pode usar muito de sutilezas pró ou contra quando se quer</p><p>decidir por uma dedução dogmática dos fundamentos do direito; somente o</p><p>princípio transcendental da publicidade do direito público pode poupar essa</p><p>prolixidade. Segundo este princípio, questiona-se o próprio povo, antes do</p><p>estabelecimento do contrato civil, sobre se ele se atreveria a tornar publicamente</p><p>conhecida a máxima do propósito de uma eventual insurreição. Percebe-se</p><p>facilmente que, se se quer fazer como condição da instituição de uma</p><p>constituição de Estado exercer a força contra o chefe em certos casos</p><p>determinados, então o povo teria de arrogar-se uma potência legítima sobre</p><p>aquele. Então, porém, não seria aquele o chefe, ou, se ambos fossem postos</p><p>como condição do estabelecimento do Estado, não seria possível então nenhum,</p><p>o que, contudo, era a intenção do povo. O injusto da rebelião evidencia-se</p><p>portanto em que a máxima da revolta pela qual se se declarasse publicamente a</p><p>favor disso tornaria impossível sua própria intenção. Ter-se-ia portanto</p><p>necessariamente de ocultá-la. – O último não seria necessário, porém, do lado do</p><p>chefe de Estado. Ele pode livremente declarar que punirá toda rebelião com a</p><p>morte dos chefes insurretos, possam estes também sempre crer que ele, de seu</p><p>lado, transgrediu primeiro a lei fundamental, pois, se ele está consciente de</p><p>possuir o poder superior irresistível (o que também em toda constituição civil</p><p>deve ser assim admitido, porque aquele que não tem potência suficiente para</p><p>proteger cada cidadão do povo contra os outros também não tem o direito de</p><p>ordenar a ele), ele pode, assim, não temer de frustrar sua própria intenção pela</p><p>publicação de sua máxima, com o que também está em consonância que, se a</p><p>rebelião tiver êxito em o povo fazer voltar aquele chefe ao lugar de súdito, não</p><p>deveria ele começar uma rebelião de restituição, mas também não deveria temer</p><p>de ser levado a prestar contas por sua administração anterior.</p><p>2. No que concerne ao direito internacional. Somente sob a pressuposição de</p><p>algum estado jurídico (isto é, da condição externa sob a qual um direito pode</p><p>efetivamente ser atribuído ao homem) pode haver questão de um direito</p><p>internacional, porque ele, como um direito público, contém já em seu conceito a</p><p>publicação de uma vontade geral que determina a cada um o seu, e esse status</p><p>iuridicus tem de proceder de algum contrato que não pode justamente (como o</p><p>de onde tem origem um Estado) estar fundado em leis de coerção, mas que pode</p><p>em todo o caso ser uma associação permanente livre, como a federalidade de</p><p>diversos Estados mencionada anteriormente. Pois sem nenhum estado jurídico</p><p>que conecte ativamente as diversas pessoas (físicas ou morais), por conseguinte</p><p>no estado de natureza, não pode haver senão apenas um direito privado. – Aqui</p><p>ocorre também um conflito da política com a moral (considerada esta como</p><p>doutrina do direito), onde, então, aquele critério da publicidade das máximas</p><p>igualmente encontra fácil aplicação, na condição, contudo, de que o contrato</p><p>ligue os Estados somente</p><p>na intenção de manter-se em paz uns com os outros e</p><p>juntos contra outros Estados, de modo algum, porém, para fazer aquisições. Eis</p><p>agora os seguintes casos da antinomia entre política e moral, com os quais ao</p><p>mesmo tempo está dada a solução.</p><p>a) “Se um destes Estados prometeu algo ao outro: seja préstimo de auxílios,</p><p>cessão de certas terras, ou subsídios e similares, pergunta-se se ele pode</p><p>desfazer-se do empenho da palavra em um caso de que dependa a salvação do</p><p>Estado, enquanto quer que seja considerado em uma dupla pessoa,</p><p>primeiramente como soberano, já que ele não tem de responder a ninguém em</p><p>seu Estado; depois, porém, em contrapartida, simplesmente como o funcionário</p><p>de Estado supremo que tem de prestar contas ao Estado: de onde se tira a</p><p>conclusão que, daquilo a que ele se obrigou na primeira qualidade, estará</p><p>dispensado na segunda.” Ora, se, porém, um Estado (ou seu chefe) tornasse</p><p>pública esta sua máxima, então naturalmente ou cada um dos outros fugiria dele</p><p>ou se uniria com outros para resistir à sua arrogância, o que demonstra que a</p><p>política, com todo o seu ardil, frustraria neste campo (da publicidade) seu</p><p>próprio fim; por conseguinte deve ser injusta aquela máxima.</p><p>b) “Se uma potência que cresceu até um tamanho temível (potentia</p><p>tremenda) suscita apreensão: pode-se admitir que ela quererá também oprimir,</p><p>porque ela pode, e isso dá aos menos poderosos um direito de ataque (unido) a</p><p>ela, mesmo sem ofensa precedente?” Um Estado que quisesse aqui tornar</p><p>pública afirmativamente sua máxima somente atrairia o mal ainda mais rápido e</p><p>certo. Pois o poder maior se anteciparia ao menor, e, no que concerne à união</p><p>dos últimos, é somente uma fraca vara de junco contra quem sabe utilizar o</p><p>divide et impera. – Esta máxima da prudência de Estado, publicamente</p><p>declarada, frustra portanto necessariamente sua própria intenção e é</p><p>conseqüentemente injusta.</p><p>c) “Se um Estado menor, por sua situação, separa a continuidade de um</p><p>maior, que é, porém, necessária a este para a sua conservação, não está este</p><p>autorizado a subjugar aquele e uni-lo ao seu?” Vê-se facilmente que o maior não</p><p>deve tornar pública antes uma tal máxima, pois ou os Estados menores se</p><p>uniriam a tempo, ou outras potências lutariam por este despojo, e por</p><p>conseguinte ela se torna inexeqüível por sua própria franqueza, um sinal de que é</p><p>injusta e mesmo o pode ser em grau muito alto, pois um pequeno objeto da</p><p>injustiça não impede que a injustiça demonstrada nisso seja muito grande.</p><p>3. No que concerne ao direito cosmopolita, eu o passo aqui em silêncio, porque,</p><p>por conta da analogia de tal direito com o direito internacional, as suas máximas</p><p>são fáceis de indicar e apreciar.</p><p>Tem-se aqui, no princípio da incompatibilidade das máximas do direito</p><p>internacional com a publicidade, uma boa indicação da não-concordância da</p><p>política com a moral (como doutrina do direito). Ora, precisa-se, porém, ser</p><p>instruído também sobre: qual é a condição sob a qual suas máximas concordam</p><p>com o direito dos povos? Pois não se deixa inversamente concluir que máximas</p><p>que são compatíveis com a publicidade são por isso também justas, porque quem</p><p>tem a potência superior de decisão não precisa fazer segredo de suas máximas. –</p><p>A condição da possibilidade de um direito internacional em geral é: que exista</p><p>antes de mais nada um estado jurídico. Pois sem este não há nenhum direito</p><p>público, mas todo direito que se possa pensar fora daquele (do estado de</p><p>natureza) é simplesmente direito privado. Ora, vimos que um estado federativo</p><p>de Estados, que tem simplesmente por intenção a remoção da guerra, é o único</p><p>estado jurídico compatível com a liberdade dos mesmos. Portanto, a consonância</p><p>da política com a moral é possível somente numa associação federativa (que</p><p>portanto é dada a priori segundo princípios do direito e é necessária), e toda</p><p>prudência de Estado tem por base jurídica a instituição da primeira no seu maior</p><p>alcance possível; sem tal fim, toda a sua esperteza é não-sabedoria e injustiça</p><p>disfarçada. – Esta pseudopolítica tem sua casuística, a despeito da melhor escola</p><p>jesuíta – a reservatio mentalis: na redação de contratos públicos com expressões</p><p>tais que se possa oportunamente interpretar como se quiser para sua vantagem</p><p>(por exemplo, a distinção do status quo de fait e de droit); o probabilismo: forjar</p><p>más intenções nos outros ou também tornar as probabilidades de sua possível</p><p>preponderância fundamento de direito do solapamento de outros Estados</p><p>pacíficos; e enfim o peccatum philosophicum (peccatillum, bagatelle):</p><p>considerar como uma insignificância facilmente perdoável a absorção de um</p><p>Estado pequeno, quando mediante isso um muito maior ganha em proveito de</p><p>um supostamente maior benefício do mundo[3].</p><p>A duplicidade da política com respeito à moral dá aqui o empurrão para</p><p>utilizar em sua intenção um ou outro ramo seu. – Ambos, o amor aos homens e o</p><p>respeito pelo direito dos homens, são deveres; aquele, porém, somente</p><p>condicionado; este, ao contrário, dever incondicionado, absolutamente</p><p>imperativo, do qual aquele que quer abandonar-se ao doce sentimento da</p><p>benevolência deve estar primeiramente inteiramente seguro de não ter</p><p>transgredido. A política concorda facilmente com a moral no primeiro sentido</p><p>público (como ética) para delegar o direito dos homens a seus superiores; mas</p><p>com a moral no segundo significado (como doutrina do direito), frente à qual</p><p>deveria dobrar-se, acha aconselhável não engajar-se em um acordo, preferindo</p><p>contestar-lhe toda realidade e explicar todos os deveres como pura benevolência,</p><p>perfídia de uma política lucífuga que facilmente seria frustrada pela filosofia</p><p>mediante a publicidade das suas máximas, se a política somente ousasse</p><p>conceder ao filósofo a publicidade das suas.</p><p>Nesta intenção, proponho um outro princípio transcendental e afirmativo do</p><p>direito público, cuja fórmula seria esta:</p><p>“Todas as máximas que necessitam da publicidade (para não malograr em</p><p>seu fim) concordam com o direito e a política unidos.”</p><p>Pois, se elas podem alcançar seu fim somente pela publicidade de seu fim,</p><p>então devem ser conformes ao fim geral do público (a felicidade), concordar</p><p>com ele (torná-lo satisfeito com seu estado) é a tarefa própria da política. Se,</p><p>porém, este fim deve ser alcançado somente pela publicidade, isto é, pela</p><p>remoção de toda desconfiança contra as máximas da política, então estas devem</p><p>estar em concórdia também com o direito público, pois unicamente nele é</p><p>possível a união dos fins de todos. – Tenho de protelar para uma outra</p><p>oportunidade a exposição subseqüente e a explicação deste princípio; digo</p><p>somente que se vê que esse princípio é uma fórmula transcendental a partir da</p><p>eliminação de todas as condições empíricas (da doutrina da felicidade) como</p><p>matéria da lei e a partir da simples consideração da forma de conformidade à lei</p><p>em geral.</p><p>Se há um dever, se há ao mesmo tempo uma esperança fundada de tornar</p><p>efetivo o estado de um direito público, ainda que somente em uma aproximação</p><p>que progride ao infinito, então a paz perpétua, que sucede os até aqui falsamente</p><p>assim denominados tratados de paz (propriamente armistícios), não é uma idéia</p><p>vazia, mas uma tarefa que, solucionada pouco a pouco, aproxima-se</p><p>continuamente de seu fim (porque os tempos em que iguais progressos</p><p>acontecem tornar-se-ão, tomara, cada vez mais curtos).</p><p>[1] São leis permissivas da razão as de deixar permanecer a situação de um direito público acometido de</p><p>injustiça até que a completa reviravolta de tudo ou esteja amadurecida por si mesma ou seja trazida por</p><p>meios pacíficos próximo à maturidade, porque uma constituição jurídica, ainda que somente em pequeno</p><p>grau conforme ao direito, é melhor do que nenhuma, destino último que uma reforma precipitada</p><p>encontraria. – A sabedoria de Estado, portanto, na situação em que as coisas estão agora, tomará como</p><p>dever reformas adequadas ao ideal do direito público: utilizar-se de revoluções onde a natureza leva</p><p>espontaneamente a elas, não para disfarçar uma opressão ainda maior, mas como clamor da natureza para</p><p>estabelecer</p><p>uma constituição legal fundada em princípios de liberdade como a única estável, mediante</p><p>reformas profundas.</p><p>[2] Embora se possa duvidar de uma certa maldade enraizada na natureza humana de homens que vivem</p><p>conjuntamente em um Estado, e, no lugar dela, poderia ser aduzida, com alguma verossimilhança, a falta de</p><p>uma cultura ainda não suficientemente avançada (a selvageria) como causa das manifestações de seu modo</p><p>de pensar contrárias à lei, no entanto ela se mostra aos olhos inteiramente descoberta e incontroversa na</p><p>relação exterior dos Estados uns com os outros. No interior de cada Estado, ela é dissimulada pela coerção</p><p>das leis civis, porque à tendência dos cidadãos ao emprego recíproco de força opõe-se um poder maior, a</p><p>saber, o do governo, e assim não somente dá ao todo uma nuance moral (causae non causae), mas também,</p><p>mediante um ferrolho posto à eclosão de tendências contrárias à lei, o desenvolvimento da disposição</p><p>originária moral ao respeito imediato pelo direito fica efetivamente muito facilitado. – Pois cada um crê de</p><p>si que bem consideraria sagrado o conceito de direito e o seguiria fielmente se ele somente pudesse esperar</p><p>de cada outro um mesmo respeito, este último que o governo em parte lhe assegura, pelo que é feito um</p><p>grande passo para a moralidade (embora não ainda um passo moral) ao apegar-se a este conceito de direito</p><p>já por si mesmo, sem consideração de reciprocidade. – Já que cada um, porém, em sua boa opinião de si</p><p>mesmo, pressupõe, contudo, disposição má em todos os outros, expressam assim um do outro seu juízo: que</p><p>eles todos, no que concerne ao fato, pouco valem (fique sem explicação de onde vem, que não pode ser</p><p>posta a culpa, contudo, na natureza do homem como um ser livre). Já que, contudo, o respeito pelo conceito</p><p>de direito, de que o homem não pode absolutamente dispensar-se, também sanciona de modo solene a teoria</p><p>da faculdade de adequar-se a ele, então cada um vê que, de sua parte, tem de agir conforme àquele conceito,</p><p>e considerem-no os outros como quiserem.</p><p>[3] Pode-se encontrar os exemplos de tais máximas no tratado do sr. Conselheiro Garve “Sobre a ligação da</p><p>moral com a política”, 1788. Este digno erudito confessa já no início não poder dar uma resposta satisfatória</p><p>a esta questão. Mas aprová-la, embora com a confissão de não poder refutar completamente as objeções que</p><p>contra ela se levantam, parece ser uma condescendência maior do que seria aconselhável a admitir com</p><p>aqueles que estão muito inclinados a fazer mau uso delas.</p><p>IMMANUEL KANT</p><p>(1724-1804)</p><p>A filosofia de Immanuel Kant, considerado um dos pensadores mais</p><p>influentes da Europa moderna e do último período do Iluminismo, situa a razão</p><p>no centro do mundo. Ele nasceu em Königsberg, capital da Prússia Oriental</p><p>(atual Kaliningrado, na Rússia). Sendo o quarto de nove filhos, passou grande</p><p>parte da vida nas cercanias de sua cidade natal. Dos pais luteranos recebeu uma</p><p>educação religiosa e severa, baseada em princípios que pregavam uma vida</p><p>simples, respeito e obediência à moral. Na escola da cidade aprendeu latim e</p><p>línguas clássicas. Aos dezesseis anos ingressou na universidade de Königsberg,</p><p>na qual se aprofundou na filosofia de Gottfried Wilhelm Leibniz e de Christian</p><p>Wolff, sob a orientação de Martin Knutzen, um racionalista, que apresentou a</p><p>Kant a nova física matemática de Newton.</p><p>Em 1746, após a morte do pai, Kant foi obrigado a interromper os estudos</p><p>universitários e começou a dar aulas particulares para manter a família. Mesmo</p><p>assim, não se afastou dos estudos e em 1749 publicou sua primeira obra</p><p>filosófica, Pensamentos sobre o verdadeiro valor das forças vivas. Em 1754 conseguiu</p><p>retornar à universidade e concluir o doutorado, tornando-se professor</p><p>universitário. Lecionou lógica, metafísica, filosofia moral, matemática física e</p><p>geografia.</p><p>Na primeira parte de sua vida intelectual, Kant publicou diversas obras nas</p><p>áreas das ciências naturais e da física, como a História universal da natureza e</p><p>teoria do céu (1755), na qual esboçou a hipótese da nebulosa, que afirmava que</p><p>o Sistema Solar se formara a partir de uma grande nuvem de gás, dando novos</p><p>rumos à astronomia. No início dos anos 1760, Kant, influenciado pela filosofia</p><p>de Hume, começa a dar forma à tese central da sua filosofia, de que o</p><p>conhecimento humano pressupõe a participação ativa da mente humana, dando</p><p>origem a livros que são os pilares de sua obra. São eles: Crítica da razão pura</p><p>(1781), que criou as bases para a teoria do conhecimento como disciplina</p><p>filosófica e marcou o início da filosofia moderna, Fundamentação da metafísica</p><p>dos costumes (1785), Crítica da razão prática (1788) e Crítica da faculdade do</p><p>juízo (1790). Em comum, todos eles defendem um profundo estudo do</p><p>conhecimento humano, das formas e dos limites das faculdades cognitivas do</p><p>homem, partindo do princípio de que o conhecimento começa com a</p><p>experiência, mas não deriva dela.</p><p>Em 1792, Kant publicou A religião nos limites da simples razão, livro que levou o rei</p><p>Frederico Guilherme II a proibi-lo de ensinar ou escrever sobre temas religiosos.</p><p>Três anos depois publicou À paz perpétua, obra de sua maturidade, na qual</p><p>discute as possibilidades da paz e defende o regime republicano. Pacifista,</p><p>apoiou a independência americana.</p><p>Kant levou uma vida calma e regrada, não se casou e não teve filhos.</p><p>Morreu em Königsberg, dois meses antes de completar 80 anos.</p><p>Este livro foi publicado anteriormente pela L&PM Editores, em formato 14 x 21,</p><p>em 1989</p><p>Título original: Zum ewigen Frieden</p><p>Tradução: Marco Zingano</p><p>Capa: Projeto gráfico de Néktar Design</p><p>Ilustração da capa: © Rue des Archives</p><p>Revisão: Renato Deitos, Jó Saldanha, Bianca Pasqualini e Lia Cremonese</p><p>Cip-Brasil. Catalogação-na-Fonte</p><p>Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ</p><p>K25p</p><p>Kant, Immanuel, 1724-1804</p><p>À paz perpétua / Immanuel Kant ; tradução Marco Zingano. – Porto Alegre, RS :</p><p>L&PM, 2011.</p><p>(Coleção L&PM Pocket Plus; v.449)</p><p>Tradução de: Zum ewigen Frieden</p><p>ISBN 978.85.254.2324-5</p><p>1. Paz (Filosofia). 2. Utopias. 3. Filosofia alemã. I. Título. II. Série.</p><p>08-0338. CDD: 193</p><p>CDU: 1(43)</p><p>© da tradução, L&PM Editores, 2008</p><p>Todos os direitos desta edição reservados a L&PM Editores</p><p>Rua Comendador Coruja, 314, loja 9 – Floresta – 90.220-180</p><p>Porto Alegre – RS – Brasil / Fone: 51.3225.5777</p><p>conjuntamente e que</p><p>somente pode ser extenuado pela queda iminente dos impostos (que, contudo,</p><p>pode ser longamente protelada graças à estimulação do comércio por meio do</p><p>efeito retroativo na indústria e na renda). Essa facilidade para fazer a guerra,</p><p>unida à inclinação para tanto dos detentores do poder, que parece ser inerente à</p><p>natureza humana, é, portanto, um grande obstáculo à paz perpétua; para impedi-</p><p>lo, tanto mais teria de ser um artigo preliminar, porque a bancarrota do Estado,</p><p>ao fim, mas inevitável, vai enredar nos prejuízos muitos outros Estados sem</p><p>culpa, o que seria uma lesão pública dos últimos. Por conseguinte, os outros</p><p>Estados estão pelo menos autorizados a aliar-se contra um semelhante Estado e</p><p>sua arrogância.</p><p>5. “Nenhum Estado deve imiscuir-se com emprego de força na constituição e no</p><p>governo de um outro Estado.”</p><p>Pois o que pode autorizá-lo a isso? Talvez o escândalo que ele fornece aos</p><p>súditos de um outro Estado? Ele pode antes servir de advertência pelo exemplo</p><p>dos grandes males que um povo atraiu para si por não possuir leis; e, em geral, o</p><p>mau exemplo que uma pessoa livre dá a outra (como scandalum acceptum) não</p><p>lhe é nenhuma lesão. Isso não se poderia concluir se um Estado se</p><p>desmembrasse em duas partes por desunião interna, em que cada uma</p><p>representasse para si um Estado peculiar que reivindicasse o todo, onde prestar</p><p>assistência a um deles por um Estado externo não poderia ser considerado uma</p><p>intromissão na constituição do outro Estado (pois há então anarquia). Enquanto,</p><p>porém, este conflito interno ainda não estiver decidido, esta intromissão de</p><p>potências externas seria uma violação dos direitos de um povo dependente de</p><p>nenhum outro e que só luta contra seus próprios males; seria mesmo, portanto,</p><p>um escândalo declarado e tornaria insegura a autonomia de todos os Estados.</p><p>6. “Nenhum Estado em guerra com outro deve permitir hostilidades tais que</p><p>tornem impossível a confiança recíproca na paz futura; deste tipo são: emprego</p><p>de assassinos (percussores), envenenadores (venefici), quebra da capitulação e</p><p>instigação à traição (perduellio) no Estado com que se guerreia etc.”</p><p>São estratagemas desonrosos. Pois tem de subsistir alguma confiança no</p><p>modo de pensar do inimigo durante a guerra, porque senão também não poderia</p><p>ser concluída nenhuma paz e a hostilidade acabaria em uma guerra de extermínio</p><p>(bellum internecinum). Já que a guerra é, contudo, somente o triste meio</p><p>necessário para afirmar seu direito pela força no estado de natureza (onde não há</p><p>tribunais que julguem com base no direito), em que nenhuma das duas partes</p><p>pode ser declarada como inimigo injusto (porque isto já pressupõe um veredicto</p><p>judiciário), mas o desfecho da guerra (como em um assim chamado juízo divino)</p><p>decide de que lado o direito está; entre Estados não se pode, porém, pensar em</p><p>uma guerra punitiva (bellum punitivum) (porque entre eles não ocorre relação de</p><p>um superior a um subordinado). De onde se segue, pois: que uma guerra de</p><p>extermínio, em que pode ocorrer simultaneamente o extermínio de ambas as</p><p>partes e com ele também de todo o direito, encontraria a paz perpétua somente</p><p>no grande cemitério do gênero humano. Portanto, uma tal guerra, por</p><p>conseguinte também o uso dos meios que levam a ela, tem de ser absolutamente</p><p>não-permitida. – Que os meios mencionados levam a isso inevitavelmente,</p><p>esclarece-se por isto: que aquelas artes infernais, que já são em si mesmas</p><p>ignóbeis, quando postas em uso não se mantêm por muito tempo dentro dos</p><p>limites da guerra, mas passam também para o estado de paz, como, por exemplo,</p><p>o uso de espiões (uti exploratoribus), em que somente a desonestidade dos</p><p>outros é utilizada (que então não pode ser exterminada), o que aniquilaria por</p><p>inteiro o propósito de paz.</p><p>Embora as leis recém-indicadas sejam objetivamente, isto é, na intenção</p><p>dos detentores do poder, puras leis proibitivas (leges prohibitivae), algumas</p><p>delas são, porém, do tipo estrito, que vale sem consideração pela circunstâncias</p><p>(leges strictae), que urgem uma supressão imediata (como n. 1, 5, 6); outras,</p><p>porém (como n. 2, 3, 4), certo não como exceções à regra do direito, mas em</p><p>consideração à aplicação delas, autorizam uma latitude subjetiva em função das</p><p>circunstâncias (leges latae), e contêm permissões para adiar a execução, sem</p><p>contudo perder de vista o fim, o qual permite este adiamento, por exemplo, na</p><p>restituição, segundo o n. 2, da liberdade retirada a certos Estados, não para o dia</p><p>de São Nunca (como Augusto costumava prometer: ad calendas graecas), por</p><p>conseguinte a não-restituição, mas somente permite o retardamento para que ela</p><p>não se precipite e, desse modo, ocorra contrariamente à própria intenção. Pois a</p><p>proibição concerne aqui somente ao modo de aquisição, que não deve valer para</p><p>o futuro, mas não ao estado de posse, que, embora não tenha o título de direito</p><p>requerido, contudo em seu tempo (da aquisição putativa), segundo a opinião</p><p>pública daquela época, foi considerado por todos os Estados como legítimo[2].</p><p>[1] Um reino hereditário não é um Estado que possa ser herdado por um outro Estado, mas um Estado cujo</p><p>direito a governar pode ser herdado por uma pessoa física. O Estado adquire então um regente, não este</p><p>como tal (isto é, que possui já um outro reino) o Estado.</p><p>[2] Se a razão pura pode fornecer, além de mandamento (leges praeceptivae) e proibição (leges</p><p>prohibitivae), também leis permissivas (leges permissivae), foi posto em dúvida não sem fundamento até o</p><p>momento. Pois leis em geral contêm um fundamento de necessidade objetiva prática; a permissão, porém,</p><p>contém um fundamento de contingência prática de certas ações; por conseguinte, uma lei permissiva</p><p>conteria uma obrigação para uma ação à qual ninguém pode ser obrigado, o que seria uma contradição se o</p><p>objeto da lei tivesse o mesmo significado em ambas as relações. – Ora, aqui, porém, na lei permissiva, a</p><p>proibição pressuposta se reporta somente ao modo de aquisição futuro de um direito (por exemplo, por</p><p>herança). A liberação, contudo, dessa proibição, isto é, a permissão, reporta-se ao estado de posse atual; este</p><p>último pode ainda permanecer na passagem do estado de natureza para o civil, segundo uma lei permissiva</p><p>do direito natural, como uma posse, embora ilegítima, contudo honesta (possessio putativa), embora uma</p><p>posse putativa, no estado de natureza, assim que é reconhecida como tal, seja proibida, do mesmo modo que</p><p>um tipo de aquisição semelhante no estado civil subseqüente (após a passagem), o qual não encontraria</p><p>autorização da posse permanente se tal suposta aquisição tivesse ocorrido no estado civil, pois aí ela teria de</p><p>cessar, como lesão, logo após a descoberta de sua ilegitimidade. Eu quis aqui chamar somente de passagem</p><p>a atenção dos mestres do direito natural ao conceito de uma lex permissiva, que se oferece de si mesma a</p><p>uma razão sistemática e classificadora sobremaneira, já que freqüentemente é feito uso dela na lei civil</p><p>(estatutária), apenas com a diferença que a lei proibitiva está aí por si só; a permissão, porém, não é</p><p>introduzida naquela lei como condição limitativa (como deveria), mas é jogada entre as exceções. Isso</p><p>significa então: isto ou aquilo é proibido; seja, pois, acrescentar à lei as permissões n. 1, n. 2, n. 3 e assim</p><p>indefinidamente, de modo contingente, não segundo um princípio, mas por tateio entre casos que surjam,</p><p>pois senão as condições teriam sido introduzidas na fórmula da lei proibitiva, pelo que ela se tornaria</p><p>simultaneamente uma lei permissiva. – É pois lamentável que tenha sido logo abandonada a questão</p><p>engenhosa, que permaneceu, porém, insolúvel, posta em concurso pelo tanto sábio como perspicaz senhor</p><p>Conde von Windischgrätz, que justamente insistia na última. Pois a possibilidade de uma tal fórmula</p><p>(análoga à matemática) é a única pedra-de-toque genuína de uma legislação conseqüente, sem a qual o</p><p>assim chamado ius certum será sempre um pio desejo. De outro modo, ter-se-á apenas leis gerais (que</p><p>valem em geral), mas não universais (que valem universalmente), como parece exigir,</p><p>contudo, o conceito</p><p>de uma lei.</p><p>SEGUNDA SEÇÃO, QUE CONTÉM OS ARTIGOS DEFINITIVOS PARA</p><p>A PAZ PERPÉTUA ENTRE OS ESTADOS</p><p>O estado de paz entre os homens que vivem juntos não é um estado de</p><p>natureza (status naturalis), que é antes um estado de guerra, isto é, ainda que</p><p>nem sempre haja uma eclosão de hostilidades, é contudo uma permanente</p><p>ameaça disso. Ele tem de ser, portanto, instituído, pois a cessação das</p><p>hostilidades ainda não é garantia de paz e, a menos que ela seja obtida de um</p><p>vizinho a outro (o que, porém, pode ocorrer somente em um estado legal), pode</p><p>um tratar o outro, a quem exortara para tal, como um inimigo[1].</p><p>[1] Admite-se comumente que não se pode proceder hostilmente contra ninguém a não ser quando ele de</p><p>fato já me lesou, e isto também é inteiramente correto quando ambos estão no estado civil-1egal. Pois, pelo</p><p>fato de que entrou nesse estado, ele dá àquele (mediante a autoridade que possui poder acima de ambos) a</p><p>segurança requerida. Mas o homem (ou o povo) no puro estado de natureza tira de mim esta segurança e me</p><p>lesa já por esse mesmo estado, na medida em que está ao meu lado, ainda que não de fato (facto), pela</p><p>ausência de leis de seu Estado, pelo que eu sou continuamente ameaçado por ele, e posso forçá-lo ou a</p><p>entrar comigo em um Estado comum legal ou a retirar-se de minha vizinhança. – O postulado, portanto, que</p><p>serve de fundamento a todos os artigos seguintes é: todos os homens que podem influenciar-se</p><p>reciprocamente têm de pertencer a alguma constituição civil.</p><p>Toda constituição jurídica é, porém, no que concerne às pessoas que estão sob ela:</p><p>1) a constituição segundo o direito civil de Estado dos homens em um povo (ius civitatis);</p><p>2) segundo o direito internacional dos Estados em relação uns com os outros (ius gentium);</p><p>3) a constituição segundo o direito cosmopolita, enquanto homens e Estados que, estando em relação de</p><p>influência mútua exterior, têm de ser considerados como cidadãos de um Estado universal da humanidade</p><p>(ius cosmopoliticum).</p><p>Esta divisão não é arbitrária, mas necessária em relação à idéia de paz perpétua. Pois se somente um destes,</p><p>na relação da influência física sobre o outro, estivesse no estado de natureza, então estaria ligado a ele o</p><p>estado de guerra, e tornar-se liberto de tal estado é justamente a intenção aqui.</p><p>PRIMEIRO ARTIGO DEFINITIVO PARA A PAZ PERPÉTUA</p><p>A Constituição civil em cada Estado deve ser republicana.</p><p>A constituição instituída primeiramente segundo os princípios da liberdade</p><p>dos membros de uma sociedade (como homens), em segundo lugar segundo os</p><p>princípios da dependência de todos a uma única legislação comum (como</p><p>súditos) e, terceiro, segundo a lei da igualdade dos mesmos (como cidadãos) – a</p><p>única que resulta da idéia do contrato originário, sobre a qual tem de estar</p><p>fundada toda legislação jurídica de um povo – é a constituição republicana[1].</p><p>Esta é, portanto, no que concerne ao direito, aquela que é em si mesma</p><p>originariamente fundamento de todos os tipos de constituição civil; e agora a</p><p>questão é apenas: é ela também a única que pode levar à paz perpétua?</p><p>Ora, a constituição republicana, além da pureza de sua origem, por ter-se</p><p>originado da fonte pura do conceito de direito, tem ainda a perspectiva da</p><p>conseqüência desejada, a saber, a paz perpétua. A razão para isso é esta. –</p><p>Quando o consentimento dos cidadãos (como não pode ser de outro modo nesta</p><p>constituição) é requerido para decidir “se deve ou não ocorrer guerra”, nada é</p><p>mais natural do que, já que têm de decidir para si próprios sobre todas as aflições</p><p>da guerra (como estas: combater em pessoa, tirar de seu próprio patrimônio os</p><p>custos da guerra, reparar penosamente a devastação que ela deixa atrás de si;</p><p>enfim, ainda contrair para si, como cúmulo do mal, uma dívida que nunca será</p><p>paga, por causa da proximidade sempre de novas guerras, e que tornará a própria</p><p>paz amarga), eles refletirão muito para iniciar um jogo tão grave. Como, pelo</p><p>contrário, em uma constituição em que o súdito não é cidadão, que, portanto, não</p><p>é republicana, isso é a coisa sobre a qual menos se hesita no mundo, porque o</p><p>chefe, não sendo membro do Estado, mas proprietário do Estado, não tem o</p><p>mínimo prejuízo por causa da guerra à sua mesa, à sua caçada, a seus castelos de</p><p>campo, festas da corte etc., e pode, portanto, decidir sobre a guerra por causas</p><p>insignificantes como uma espécie de jogo de recreação e, por conta das boas</p><p>maneiras, deixar a justificação do conflito indiferentemente ao corpo</p><p>diplomático, que está todo o tempo pronto para isso.</p><p>Para que não se confunda (como ocorre comumente) a constituição</p><p>republicana com a democrática, deve-se assinalar o seguinte: as formas de um</p><p>Estado (civitas) podem ser divididas segundo a diferença das pessoas que detêm</p><p>o poder de Estado supremo ou segundo o modo de governo do povo por seu</p><p>chefe, seja quem for; a primeira denomina-se propriamente a forma de soberania</p><p>(forma imperii) e há somente três formas possíveis, a saber, em que somente um,</p><p>alguns ligados entre si ou todos juntos, que perfazem a sociedade civil, possuem</p><p>o poder soberano (autocracia, aristocracia e democracia, poder do príncipe,</p><p>poder da nobreza ou poder do povo). A segunda é a forma do governo (forma</p><p>regiminis) e concerne ao modo fundado na constituição (no ato da vontade geral</p><p>pelo qual a multidão torna-se um povo) como o Estado faz uso de sua plenitude</p><p>de poder e é a este respeito republicana ou despótica. O republicanismo é o</p><p>princípio de Estado da separação do poder executivo (o governo) do legislativo;</p><p>o despotismo é o da execução autocrática do Estado de leis que ele mesmo</p><p>propôs, por conseguinte da vontade pública enquanto ela é manipulada pelo</p><p>regente como sua vontade privada. – Entre as três formas de Estado, a</p><p>democracia, no sentido próprio da palavra, é necessariamente um despotismo,</p><p>porque ela funda um poder executivo onde todos decidem sobre e, no caso</p><p>extremo, também contra um (aquele que, portanto, não consente), por</p><p>conseguinte todos que não são contudo todos, o que é uma contradição da</p><p>vontade geral consigo mesma e com a liberdade.</p><p>Toda forma de governo que não é representativa é propriamente uma não-</p><p>forma, porque o legislador não pode ser em uma mesma pessoa ao mesmo tempo</p><p>executor de sua vontade (do mesmo modo como, num silogismo, o universal da</p><p>premissa maior pode ser ao mesmo tempo a subsunção do particular na premissa</p><p>menor), e, mesmo se as duas outras formas de constituição de Estado são sempre</p><p>imperfeitas, tanto que dão lugar a um tal modo de governo, pelo menos nelas é</p><p>possível, contudo, adotar um modo de governo conforme o espírito para o</p><p>sistema representativo, como Frederico II dizia: ele era meramente o mais alto</p><p>servidor do Estado[2]; ao contrário, a forma democrática torna isso impossível,</p><p>porque nela todos querem ser senhor. – Daqui pode-se dizer: quanto menor o</p><p>número de pessoal do Estado (o número dos dirigentes), maior, em contrapartida,</p><p>a sua representação, tanto mais concorda a constituição de Estado com a</p><p>possibilidade do republicanismo e pode esperar alçar-se finalmente a ele por</p><p>reformas graduais. Por essa razão é mais difícil na aristocracia do que na</p><p>monarquia, porém impossível na democracia, alcançar de outra forma que não</p><p>por revolução violenta a constituição jurídica perfeita. Mas sem qualquer</p><p>comparação interessa mais ao povo o modo de governo[3] do que a forma de</p><p>Estado (embora importe também muito a esta sua maior ou menor conformidade</p><p>para aquele fim). Porém, se deve ser conforme ao conceito de direito, a ele</p><p>pertence o sistema representativo, no qual é possível somente um modo de</p><p>governo republicano, sem o qual (seja qual for a constituição) é despótico e</p><p>violento. Nenhuma das assim ditas repúblicas antigas conheceu este sistema e</p><p>tinham de se dissolver inteiramente com o tempo no despotismo, que, sob o</p><p>poder supremo de um único, é ainda o mais suportável de todos.</p><p>[1] Liberdade jurídica (por conseguinte exterior) não pode, como se está acostumado a fazer, ser definida</p><p>pela autorização: “fazer tudo o que se quer, desde</p><p>que não se cometa injustiça com ninguém”. Pois o que</p><p>significa autorização? A possibilidade de uma ação enquanto não se comete por ela injustiça com ninguém,</p><p>Portanto soaria assim a definição: “liberdade é a possibilidade de ações pelas quais não se comete injustiça</p><p>com ninguém. Não se comete injustiça a ninguém (cometa-se o que se quiser) desde que somente não se</p><p>cometa injustiça com ninguém” – por conseguinte isso é tautologia vazia. Minha liberdade exterior</p><p>(jurídica) deve antes ser definida assim: ela é a autorização de não obedecer a nenhuma lei exterior a não ser</p><p>àquelas a que pude dar meu assentimento. – A igualdade exterior (jurídica) num Estado é justamente assim</p><p>aquela relação dos cidadãos segundo a qual ninguém pode obrigar juridicamente outrem a algo sem que ele</p><p>ao mesmo tempo se submeta à lei de também poder ser obrigado por ela reciprocamente do mesmo modo.</p><p>(Não precisa de elucidação o princípio da dependência jurídica, uma vez que este já está no conceito de uma</p><p>constituição de Estado em geral). – A validade desses direitos inatos, necessariamente pertencentes à</p><p>humanidade e imprescritíveis, fica confirmada e realçada pelo princípio das relações jurídicas do homem</p><p>mesmo para com seres superiores (quando ele se representa tais seres), na medida em que justamente</p><p>segundo os mesmos princípios ele se representa também como cidadão de um mundo supra-sensível. Pois,</p><p>no que concerne à minha liberdade, não tenho eu, mesmo com respeito às leis divinas, conhecidas por mim</p><p>pela simples razão, nenhuma obrigação a não ser enquanto eu mesmo tiver podido dar meu assentimento</p><p>(pois primeiramente eu faço para mim um conceito da vontade divina pela lei de liberdade de minha própria</p><p>razão). Com respeito ao mais elevado ser do mundo além de Deus, tal como eu poderia imaginá-lo (um</p><p>grande Aion), no que concerne ao princípio da igualdade, não há nenhuma razão para eu simplesmente</p><p>obedecer a ele, porém, o direito de mandar, se eu faço em meu posto o meu dever, como aquele Aion o faz</p><p>no seu. – Eis o fundamento por que este princípio da igualdade não convém (assim como o da liberdade) à</p><p>relação com Deus: porque este ser é o único para quem cessa o conceito de dever.</p><p>No que concerne, porém, ao conceito de igualdade de todos os cidadãos como súditos, importa unicamente</p><p>na resposta à pergunta acerca da admissibilidade da nobreza hereditária, “se a posição atribuída pelo Estado</p><p>(de um súdito à frente de outro) tem de preceder o mérito ou este aquela”. Ora, é evidente que, quando a</p><p>posição está vinculada ao nascimento, é inteiramente incerto se o mérito (habilidade e lealdade no exercício</p><p>das funções) também seguirá; por conseguinte é justamente tanto como se ela fosse atribuída sem nenhum</p><p>mérito ao protegido (ser um comandante), o que a vontade geral de um povo nunca teria aceito em um</p><p>contrato originário (que é, porém, o princípio de todo direito). Pois um homem nobre não é por isso</p><p>imediatamente um nobre homem. – No que concerne à nobreza de função (como se pode denominar a</p><p>posição de uma magistratura superior e que se tem de adquirir por mérito), a posição não se cola, como</p><p>propriedade, à pessoa, mas ao posto, e a igualdade não é ferida por isso, porque, quando alguém deixa sua</p><p>função, ele ao mesmo tempo perde sua posição e retorna ao povo.</p><p>[2] Censurou-se seguidamente as altas distinções que freqüentemente são conferidas a um soberano (a de</p><p>um ungido por Deus, de um administrador da vontade divina na Terra e seu representante) como adulações</p><p>insolentes que dão vertigens, mas, me parece sem fundamento. Longe de serem sentidas como se devessem</p><p>tornar altivo o soberano, o tornam antes humilde em sua alma, se ele tiver entendimento (o que, porém, é de</p><p>se pressupor) e se ponderar que assumiu uma função grande demais para um homem, a saber, administrar o</p><p>que Deus tem de mais sagrado na Terra, o direito dos homens, e que tem de estar sempre com temor de ter</p><p>ofendido em algum lugar a pupila de Deus.</p><p>[3] Malet du Pan gaba-se, em sua linguagem pomposa, porém oca e vazia, de ter finalmente chegado à</p><p>convicção, após muitos anos de experiência, da verdade do conhecido dito de Pope: “deixa os insensatos</p><p>brigarem sobre o melhor governo; o mais bem administrado é o melhor”. Se isso quer dizer que o governo</p><p>mais bem administrado é o mais bem administrado, então ele, segundo a expressão de Swift, quebrou uma</p><p>noz que lhe recompensou com um verme; devia, porém, significar que ele é também o melhor modo de</p><p>governo, isto é, constituição de Estado, então é absolutamente falso: pois exemplos de bons governos nada</p><p>provam quanto ao modo de governo. Quem governou melhor do que um Tito ou um Marco Aurélio e,</p><p>contudo, um deixou após si como sucessor um Domiciano, o outro um Cômodo, o que não teria podido</p><p>acontecer em uma boa constituição de Estado, já que a incapacidade deles para este posto foi reconhecida</p><p>suficientemente cedo e o poder do soberano era bastante para excluí-los.</p><p>SEGUNDO ARTIGO DEFINITIVO PARA A PAZ PERPÉTUA</p><p>O direito internacional deve fundar-se em um federalismo de Estados livres.</p><p>Povos, como Estados, podem ser considerados como homens individuais</p><p>que, em seu estado de natureza (isto é, na independência de leis exteriores), já se</p><p>lesam por estarem um ao lado do outro e no qual cada um, em vista de sua</p><p>segurança, pode e deve exigir do outro entrar com ele em uma constituição</p><p>similar à civil, em que cada um pode ficar seguro de seu direito. Isso seria uma</p><p>liga de povos, que, contudo, não seria nenhum Estado de povos. Haveria neste</p><p>uma contradição, porque cada Estado contém a relação de um superior</p><p>(legislador) a um inferior (que obedece, a saber, o povo); muitos povos, porém,</p><p>em um Estado formariam unicamente um povo, o que contradiz a pressuposição</p><p>(já que temos aqui de considerar o direito dos povos uns em relação aos outros,</p><p>enquanto eles formam muitos Estados separados e não devem fundir-se em um</p><p>Estado).</p><p>Assim como olhamos com profundo desprezo o apego dos selvagens à sua</p><p>liberdade sem lei de preferir brigar incessantemente a submeter-se a uma coerção</p><p>legal a ser constituída por eles mesmos, por conseguinte preferindo a liberdade</p><p>insensata à racional, e os consideramos estado bruto, grosseria e degradação</p><p>animalesca da humanidade, deveríamos pensar que povos civilizados (cada um</p><p>unido em um Estado) teriam de apressar-se a sair o quanto antes de um estado</p><p>tão abjeto. Em vez disso, porém, cada Estado coloca antes sua majestade (pois</p><p>majestade do povo é uma expressão absurda) precisamente em não estar</p><p>submetido a nenhuma coerção legal exterior, e o esplendor de seu chefe consiste</p><p>em que a ele, sem que possa incorrer ele mesmo em perigo, muitos milhares</p><p>estão às ordens para deixar sacrificar-se por uma coisa que não lhes diz</p><p>respeito[1]; e a diferença entre os selvagens europeus e os americanos consiste</p><p>principalmente em que, se muitas tribos dos últimos foram inteiramente</p><p>devoradas por seus inimigos, os primeiros sabem usar melhor seus derrotados do</p><p>que degluti-los e de preferência sabem aumentar mediante eles o número de seus</p><p>súditos, por conseguinte também a quantidade de instrumentos para guerras</p><p>ainda mais vastas.</p><p>Pela maldade da natureza humana, que se faz ver descoberta na relação</p><p>livre dos povos (ao passo que se dissimula muito no estado civil e legal pela</p><p>coerção do governo), é de se admirar que a palavra direito ainda não tenha sido</p><p>inteiramente relegada em política de guerra como pedante, e ainda nenhum</p><p>Estado tenha-se atrevido a declarar-se publicamente pela última opinião, pois</p><p>ainda são candidamente invocados, para justificar uma ofensiva de guerra, Hugo</p><p>Grotius, Puffendorf, Vattel entre outros mais (meros tristes consoladores),</p><p>embora seu código, concebido filosófica ou diplomaticamente, não tenha a</p><p>menor força legal e tampouco possa ter (porque Estados como tais não estão sob</p><p>uma coerção comum exterior) sem que haja um exemplo de que alguma vez um</p><p>Estado teria sido levado a desistir de seus propósitos por argumentos armados</p><p>com testemunhos de homens tão importantes. – Essa homenagem que</p><p>cada</p><p>Estado presta ao conceito de direito (pelo menos segundo as palavras)</p><p>demonstra, contudo, que se encontra no homem uma disposição originária moral</p><p>ainda maior, embora atualmente dormente, de se tornar senhor do princípio mau</p><p>nele (que ele não pode negar) e esperar isto também dos outros, pois senão não</p><p>ocorreria nunca aos Estados, que querem combater uns aos outros, pronunciar a</p><p>palavra direito a não ser para fazer troça com ela, como aquele príncipe gaulês</p><p>que definia: “o direito é a vantagem que a natureza deu ao mais forte sobre o</p><p>mais fraco de que este deve obedecer àquele”.</p><p>Já que o modo como os Estados procuram seu direito nunca pode ser, como</p><p>em um tribunal externo, o processo, mas somente a guerra – pela qual, porém, e</p><p>por seu sucesso mais favorável, a vitória, o direito não é julgado, e que foi posto</p><p>certamente um fim, pelo tratado de paz, à guerra em curso, mas não ao estado de</p><p>guerra (de sempre encontrar um novo pretexto) (estado que também não se pode</p><p>declarar imediatamente como injusto, porque nele cada um é juiz de sua própria</p><p>causa) –, não obstante, para os Estados, segundo o direito internacional, nem</p><p>mesmo pode valer o que vale segundo o direito natural para homens em estado</p><p>sem leis, “dever sair desse estado” (porque, como Estados, já têm internamente</p><p>uma constituição jurídica e, portanto, estão excluídos da coerção dos outros para</p><p>trazê-los sob uma constituição legal ampliada segundo seus conceitos de direito).</p><p>Entrementes, porém, a razão, de cima de seu trono do poder legislativo</p><p>moralmente supremo, condena absolutamente a guerra como procedimento de</p><p>direito e torna, ao contrário, o estado de paz um dever imediato, que, porém, não</p><p>pode ser instituído ou assegurado sem um contrato dos povos entre si: tem de</p><p>haver então uma liga de tipo especial, que se pode denominar liga de paz (foedus</p><p>pacificum), que deveria ser distinta do tratado de paz (pactum pacis) que</p><p>simplesmente procura pôr fim a uma guerra; aquela, porém, a todas as guerras</p><p>para sempre. Esta liga não visa a nenhuma aquisição de alguma potência de</p><p>Estado, mas meramente à conservação e à garantia da liberdade de um Estado</p><p>para si mesmo e ao mesmo tempo para os outros Estados aliados, sem que estes,</p><p>porém, por isso devam ser submetidos (como homens no estado de natureza) a</p><p>leis públicas e a uma coerção sob elas. Pode-se representar a exeqüibilidade</p><p>(realidade objetiva) dessa idéia da federalidade, que deve estender-se</p><p>gradualmente sobre todos os Estados, conduzindo assim à paz perpétua. Pois,</p><p>quando um povo poderoso e ilustrado consegue formar-se em uma república</p><p>(que tem de ser, segundo sua natureza, inclinada à paz perpétua), então esta dá</p><p>para os outros Estados um centro da união federativa para juntar-se a ela e assim</p><p>garantir o estado de liberdade dos Estados, conforme à idéia do direito</p><p>internacional, e expandir-se sempre cada vez mais por várias ligas desse tipo.</p><p>É compreensível que um povo diga: “não deve haver guerra entre nós, pois</p><p>queremos formar um Estado, isto é, estabelecer um poder supremo legislativo,</p><p>executivo e judiciário que concilie nossas desavenças pacificamente”. Quando,</p><p>porém, este Estado diz: “não deve haver guerra entre mim e outros Estados,</p><p>apesar de eu não reconhecer nenhum poder legislativo supremo que assegure a</p><p>mim o meu direito e ao qual asseguro o seu”, então não se compreende sobre o</p><p>que quero fundar a confiança no meu direito, a não ser no substituto da liga de</p><p>sociedade civil, a saber, o livre federalismo, que a razão tem de ligar</p><p>necessariamente ao conceito de direito internacional, se algo aí resta para se</p><p>pensar.</p><p>No conceito do direito internacional enquanto direito para a guerra nada se</p><p>pode pensar propriamente (porque seria um direito de determinar o que é direito</p><p>não segundo leis exteriores, que valem universalmente limitando a liberdade de</p><p>cada indivíduo, mas pela força segundo máximas unilaterais), pois se entenderia</p><p>por ele que é bem feito para os homens que estão assim dispostos se se</p><p>aniquilam entre si e encontram, portanto, a paz perpétua na grande cova que</p><p>recobre, juntamente com seus autores, todas as atrocidades do emprego de força.</p><p>– Para os Estados, em relação uns com os outros, não pode haver, segundo a</p><p>razão, outro meio de sair do estado sem leis, que encerra mera guerra, a não ser</p><p>que eles, exatamente como os homens individuais, desistam de sua liberdade</p><p>selvagem (sem lei), consintam a leis públicas de coerção e assim formem um</p><p>(certamente sempre crescente) Estado dos povos (civitas gentium), que por fim</p><p>viria a compreender todos os povos da Terra. Já que eles, porém, segundo sua</p><p>idéia do direito internacional, não querem isso de modo algum, por conseguinte</p><p>o que é correto in thesi repudiam in hypothesi; então, no lugar da idéia positiva</p><p>de uma república mundial, somente pode deter a corrente da inclinação hostil e</p><p>retraída ao direito o substituto negativo de uma liga consistente, sempre</p><p>expansiva e que repele a guerra, ainda que com o perigo constante de seu</p><p>rompimento (furor impius intus – fremit horridus ore cruento. Virgílio) “um</p><p>ímpio e horrível furor ferve dentro de sua boca sangrenta”[2].</p><p>[1] Um príncipe búlgaro assim respondeu ao imperador grego que queria candidamente terminar o conflito</p><p>com ele por um duelo: “um ferreiro que tem pinças não retira o ferro ardente do braseiro com suas mãos”.</p><p>[2] Depois de finda uma guerra, no tratado de paz, não seria impróprio para um povo que, após a festa de</p><p>agradecimento, fosse inscrito um dia de penitência para, em nome do Estado, apelar aos céus por</p><p>misericórdia pela grande ofensa, de que sempre ainda se faz culpado o gênero humano, de não querer</p><p>sujeitar-se a nenhuma constituição legal em relação a outros povos, mas utilizar, orgulhoso de sua</p><p>independência, de preferência o meio bárbaro da guerra (pelo que, contudo, aquilo que é procurado, a saber,</p><p>o direito de cada Estado, não é conseguido). – A festa de agradecimento, durante a guerra, por uma vitória</p><p>obtida, os hinos que são cantados (em bom israelita) ao senhor dos exércitos ficam em um contraste não</p><p>menos forte com a idéia moral do pai dos homens, porque eles, além da indiferença quanto ao modo como</p><p>povos procuram seu direito recíproco (que é bastante triste), ainda trazem alegria de ter aniquilado muitos</p><p>homens ou sua felicidade.</p><p>TERCEIRO ARTIGO DEFINITIVO PARA A PAZ PERPÉTUA</p><p>“O direito cosmopolita deve ser limitado às condições da hospitalidade</p><p>universal.”</p><p>Trata-se aqui, como nos artigos precedentes, não de filantropia, mas do</p><p>direito, e hospitalidade significa, aqui, o direito de um estrangeiro, por conta de</p><p>sua chegada à terra de um outro, de não ser tratado hostilmente por este. Este</p><p>pode rejeitá-lo, se isso puder ocorrer sem sua ruína; enquanto, porém,</p><p>comportar-se pacificamente, não pode tratá-lo hostilmente. Não há nenhum</p><p>direito de hospitalidade que possa reivindicar (para o que seria requerido um</p><p>contrato caritativo particular para fazê-lo hóspede durante certo tempo), mas um</p><p>direito de visita, que assiste a todos os homens, de oferecer-se à sociedade em</p><p>virtude do direito da posse comunitária da superfície da Terra, sobre a qual,</p><p>enquanto esférica, não podem dispersar-se ao infinito, mas têm finalmente de</p><p>tolerar-se uns aos outros, e ninguém tem mais direito do que outrem de estar em</p><p>um lugar da Terra. – Partes inabitáveis de sua superfície, o mar e os desertos de</p><p>areia separam esta comunidade, mas de tal forma que o navio ou o camelo (o</p><p>navio do deserto) tornam possível que os indivíduos se aproximem uns dos</p><p>outros nestas regiões sem dono e utilizem o direito da superfície, que compete ao</p><p>gênero humano comunitariamente, para um comércio possível. A inospitalidade</p><p>das costas marinhas (por exemplo, das berberescas) de pilhar os navios nos</p><p>mares próximos ou de escravizar os náufragos, ou a inospitalidade dos desertos</p><p>de areia (dos beduínos árabes), que consideram a proximidade às tribos nômades</p><p>um direito a saqueá-las, é portanto contrária ao direito natural; o direito de</p><p>hospitalidade, porém, isto é, a autorização dos recém-chegados</p><p>estrangeiros, não</p><p>se estende mais do que às condições da possibilidade de procurar um</p><p>intercâmbio com os antigos habitantes. – Desse modo podem as partes distantes</p><p>do mundo entrar pacificamente em relações umas com as outras, e por fim</p><p>tornam-se publicamente legais e assim podem trazer o gênero humano</p><p>finalmente sempre mais próximo de uma constituição cosmopolita.</p><p>Compare-se agora a conduta inospitaleira dos Estados civilizados da nossa</p><p>parte do mundo, principalmente os comerciantes, a injustiça que demonstram na</p><p>visita a terras e povos estrangeiros (o que para eles vale a mesma coisa do que</p><p>conquistá-los) vai além do horror. A América, os países negros, as Molucas, o</p><p>Cabo etc. eram, para eles, na época de seu descobrimento, terras que não</p><p>pertenciam a ninguém, pois contavam os habitantes por nada. Nas Índias</p><p>Orientais (Hindustão) introduziram, sob o pretexto de ter em vista simplesmente</p><p>entrepostos comerciais, tropas estrangeiras, e com elas a opressão dos nativos, a</p><p>sublevação de diversos Estados para guerras mais extensas, o flagelo da fome,</p><p>revolta, deslealdade e a ladainha de todos os males que oprimem o gênero</p><p>humano.</p><p>A China[1] e o Japão (Nipon), que tinham feito tratativas com tais</p><p>hóspedes, permitiram sabiamente aquela, o acesso, mas não a entrada; este o</p><p>acesso somente a um único povo europeu, os holandeses, que, contudo, eles</p><p>excluíram, enquanto prisioneiros, da comunidade dos nativos. O pior nisso (ou,</p><p>considerado do ponto de vista de um juízo moral, o melhor) é que nunca tiram</p><p>proveito desse emprego de força, pois todas essas sociedades comerciais estão a</p><p>ponto de ruína próxima, pois as ilhas açucareiras, exemplo da escravidão mais</p><p>cruel e premeditada, não dão nenhum rendimento verdadeiro, mas somente</p><p>imediato e, na verdade, para uma intenção não muito louvável, que é a formação</p><p>de marujos para esquadras de guerra, e, assim, novamente servem para a</p><p>condução das guerras na Europa, e com isso as potências, que dão muito valor à</p><p>devoção enquanto bebem o injusto como água, consideram-se privilegiadas na</p><p>ortodoxia religiosa.</p><p>Já que agora a comunidade (mais estreita, mais larga), difundida sem</p><p>exceção entre os povos da Terra, foi tão longe que a infração do direito em um</p><p>lugar da Terra é sentido em todos, não é, assim, a idéia de um direito</p><p>cosmopolita nenhum modo de representação fantasioso e extravagante do</p><p>direito, mas um complemento necessário do código não escrito, tanto do direito</p><p>de Estado como do direito internacional, para um direito público dos homens em</p><p>geral e, assim, para a paz perpétua, da qual pode-se aprazer encontrar-se na</p><p>aproximação contínua somente sob esta condição.</p><p>[1] Para escrever esse grande reino com o nome pelo qual ele mesmo se denomina (a saber, China, não Sina</p><p>ou um som semelhante a este), pode-se consultar Alphab. Tibet., de Georgius, p. 651-654, principalmente</p><p>nota b embaixo. Propriamente não há, segundo a observação do prof. Fischer de Petersburgo, nenhum nome</p><p>determinado pelo qual se denomina; o mais comum é ainda o termo Kin, a saber, ouro (que os tibetanos</p><p>expressam por ser), de onde o imperador é denominado rei do ouro (do mais esplêndido país do mundo),</p><p>termo que é bem possível soar no reino mesmo como chin, mas pode ter sido dito como kin pelos</p><p>missionários italianos (por causa da consoante gutural). Vê-se, então, que o país dos seres, assim chamado</p><p>pelos romanos, era a China, mas a seda era transportada para a Europa pelo Grande Tibete</p><p>(presumivelmente pelo Pequeno Tibete e Bucária sobre a Pérsia e assim por diante), o que conduz a muitas</p><p>considerações sobre a antiguidade desse surpreendente Estado, em comparação com o Hindustão, na</p><p>conexão com o Tibete e, por meio deste, com o Japão; no entanto, o nome Sina ou Tschina, que os vizinhos</p><p>devem dar a esse país, não leva a nada. Talvez também se explique a antiqüíssima relação, ainda que nunca</p><p>bem conhecida, da Europa com o Tibete pelo que Hesíquio nos conservou disto, a saber, o apelativo Konx</p><p>jOmpax (Konx Ompax) do hierofante nos mistérios de Elêusis (v. Viagem do Jovem Anarchasis, quinta</p><p>parte, p. 447 e s.). Pois, segundo Alph. Tibet. de Georgius, a palavra concioa significa Deus, palavra que</p><p>tem uma semelhança impressionante com Konx. Pah-ciò (ib. p. 520), que facilmente pôde ser pronunciada</p><p>pelos gregos como pax, significa promulgator legis, a divindade difundida por toda a natureza (também</p><p>denominada Cenresi, p.177). Om, porém, que La Croze (18) traduz por benedictus, bendito, pode, aplicado</p><p>à divindade, significar nada menos do que o bem-aventurado, n. 507. Como, então, o padre Franz Horatius</p><p>recebeu sempre a resposta dos lamas tibetanos, aos quais ele freqüentemente perguntava o que eles</p><p>entendiam por Deus (Concioa): “é a reunião de todos os santos” (isto é, das almas ditosas que, pelo</p><p>renascimento lamaico, depois de muitas peregrinações por todos os tipos de corpos, voltam finalmente à</p><p>divindade transmutadas em Burchane, isto é, seres dignos de veneração, p. 223), então deve significar</p><p>aquele termo misterioso, Konx Ompax, provavelmente o ser supremo sagrado (Konx), ditoso (Om) e sábio</p><p>(Pax) disseminado pelo mundo inteiro (a natureza personificada) e, usado nos mistérios gregos, deve ter</p><p>provavelmente indicado o monoteísmo para os epoptas em oposição ao politeísmo do povo, embora padre</p><p>Horatius (em outro lugar) farejasse aqui um ateísmo. – Como, porém, aquele termo misterioso chegou aos</p><p>gregos pelo Tibete, esclarece-se pelo modo exposto e inversamente com isso também faz-se verossímil o</p><p>comércio antigo da Europa com a China pelo Tibete (talvez antes ainda do que com o Hindustão).</p><p>PRIMEIRO SUPLEMENTO DA GARANTIA DA PAZ PERPÉTUA</p><p>O que proporciona esta garantia é nada menos do que a grande artista</p><p>natureza (natura daedala rerum), em cujo curso mecânico transparece</p><p>visivelmente a finalidade de fazer prosperar a concórdia pela discórdia dos</p><p>homens, mesmo contra sua vontade, e é por isso que, assim como é denominada</p><p>destino a necessidade de uma causa desconhecida por nós segundo suas leis de</p><p>efeito, é assim denominada providência[1] pela consideração de sua finalidade</p><p>no curso do mundo como sabedoria profunda de uma causa superior dirigida ao</p><p>fim último do gênero humano e predeterminando o curso do mundo, que nós</p><p>propriamente não podemos conhecer nessas obras de arte da natureza nem</p><p>sequer daí inferir, mas (como em toda relação da forma das coisas com os fins</p><p>em geral) somente podemos e temos de introduzir em pensamento para nos fazer</p><p>um conceito de sua possibilidade segundo a analogia das obras de arte humanas.</p><p>Representar-se, porém, sua relação e acordo com o fim que a razão nos prescreve</p><p>imediatamente (o fim moral) é uma idéia que, em verdade, é transcendente na</p><p>intenção teórica, na prática, porém (por exemplo, com respeito ao conceito de</p><p>dever de paz perpétua, de utilizar para isto aquele mecanismo da natureza), é</p><p>dogmática e bem-fundada segundo sua realidade. – O uso do termo natureza é</p><p>também – quando, como aqui, somente tem a ver com teoria (não com religião)</p><p>– mais conveniente para as limitações da razão humana (como a que se tem de</p><p>manter, com respeito à relação dos efeitos às suas causas, dentro dos limites da</p><p>experiência possível) e mais modesta do que a expressão de uma providência</p><p>cognoscível por nós, com a qual se colocariam temerariamente asas icárias para</p><p>aproximar-se do segredo de sua intenção insondável.</p><p>Antes de determinarmos mais precisamente esta dotação de garantia, é</p><p>necessário investigar o estado que a natureza dispôs para as pessoas que agem</p><p>em seu grande palco, que por fim torna necessária sua segurança de paz, e</p><p>primeiramente o modo como ela a fornece.</p><p>Sua disposição provisória consiste em que ela 1) cuidou que os homens</p><p>pudessem viver em todas as regiões da Terra; 2) os dispersou para todos os</p><p>lugares, através da guerra, para povoá-los, mesmo as regiões mais inóspitas; 3)</p><p>pelo exato mesmo meio, obrigou-os a entrar em relações mais ou menos legais. –</p><p>É digno de admiração que, nos desertos frios, junto ao mar glacial, ainda cresça</p><p>o musgo, que a rena desenterra</p><p>de debaixo da neve, para ser ela mesma</p><p>alimento, ou também veículo do ostíaco ou samoiedo, ou que os desertos</p><p>salgados de areia contudo ainda contenham o camelo, que parece como que feito</p><p>para sua travessia, de modo a não deixá-los inutilizados. Porém, o fim mostra-se</p><p>ainda mais claro quando se percebe como, além dos animais de pele junto às</p><p>margens do mar glacial, ainda focas, morsas e baleias fornecem aos habitantes</p><p>de lá alimento de sua carne e combustível com seu óleo. Mas suscita sobretudo</p><p>admiração a previdência da natureza através da madeira flutuante que ela traz</p><p>(sem que se saiba exatamente de onde vem) a essas regiões sem vegetação, e</p><p>sem esse material não poderiam nem fazer seus veículos e armas, nem erguer</p><p>suas cabanas; eles têm assim o bastante a fazer com a luta contra os animais para</p><p>poder viver pacificamente entre si. O que, porém, os levou para lá não foi</p><p>presumivelmente senão a guerra. O primeiro instrumento de guerra, porém, que</p><p>o homem, entre todos os animais, aprendeu a domar e domesticar, nos tempos de</p><p>povoação da Terra, foi o cavalo (pois o elefante pertence a tempos posteriores,</p><p>do luxo de Estados já estabelecidos). Assim como a arte de cultivar certas</p><p>gramíneas denominadas cereais, agora não mais conhecidas por nós em sua</p><p>constituição primitiva, da mesma forma a multiplicação e o aprimoramento dos</p><p>tipos frutíferos mediante transplante e enxerto (talvez na Europa simplesmente</p><p>de dois gêneros, a maçã e a pêra silvestres) só puderam aparecer em Estados já</p><p>estabelecidos, onde existia propriedade assegurada da terra – depois que os</p><p>homens, antes na liberdade sem lei, passaram, da vida de caça[2], pesca e</p><p>pastoreio, à vida agrícola –, e então foram descobertos o sal e o ferro, talvez os</p><p>primeiros artigos largamente procurados em um comércio de diferentes povos,</p><p>pelo que os povos foram levados pela primeira vez a uma relação pacífica uns</p><p>com os outros e, assim, à compreensão da comunidade e da relação pacífica uns</p><p>com os outros, mesmo com os mais distantes.</p><p>À medida que a natureza cuidou que os homens pudessem viver em todos</p><p>os lugares da Terra, ela também quis, então, ao mesmo tempo, despoticamente,</p><p>que eles devessem viver em todos os lugares, ainda que contra sua inclinação e</p><p>mesmo sem que este imperativo pressupusesse ao mesmo tempo um conceito de</p><p>dever que se associasse a ela mediante uma lei moral – mas ela escolheu a guerra</p><p>para conseguir esse seu fim. Vemos povos que tornam conhecida a unidade de</p><p>sua filiação pela unidade de sua língua, como, de um lado, os samoiedos junto ao</p><p>mar glacial e, de outro, um povo de língua semelhante, distante duzentas milhas,</p><p>junto aos montes Altai, no meio dos quais penetrou um outro povo, a saber, o</p><p>mongol, eqüestre, e por isso guerreiro, e assim espalhou uma parte daquela raça</p><p>longe desta nas regiões geladas inóspitas, para onde certamente não teriam ido</p><p>por conta própria[3]; da mesma forma, os finlandeses, na região mais ao norte da</p><p>Europa, denominados lapões, agora tão distanciados dos húngaros, porém</p><p>aparentados a eles segundo a língua, separados por povos góticos e sarmáticos</p><p>interpostos; e o que pode senão a guerra ter empurrado os esquimós (talvez</p><p>antiqüíssimos aventureiros europeus, uma raça inteiramente diferente de todos os</p><p>americanos) ao norte e os Pescherae ao sul da América, até a Terra do Fogo,</p><p>guerra de que se serve a natureza para povoar a Terra em todos os lugares? A</p><p>própria guerra, porém, não precisa de nenhum motivo particular, mas parece</p><p>estar enxertada na natureza humana e até como algo nobre, para o qual o homem</p><p>é animado pelo impulso de honra, sem móbiles de interesse próprio, de tal modo</p><p>que a coragem guerreira (tanto dos selvagens americanos como dos europeus</p><p>nos tempos cavalheirescos) é julgada ser de grande valor imediato não somente</p><p>quando há guerra (como seria normal), mas também se julga de grande valor que</p><p>haja guerra, e ela é freqüentemente iniciada simplesmente para mostrar a</p><p>coragem, por conseguinte é posto na guerra em si mesma uma dignidade interna,</p><p>e até filósofos fizeram-lhe também elogio como um certo enobrecimento da</p><p>humanidade, esquecidos do dito daquele grego: “a guerra é má porque faz mais</p><p>pessoas más do que elimina”. Eis o suficiente quanto ao que a natureza faz por</p><p>seu próprio fim no que respeita ao gênero humano como uma espécie animal.</p><p>Agora surge a questão que concerne ao essencial da intenção à paz</p><p>perpétua: “o que a natureza faz nessa intenção em relação ao fim, que ao homem</p><p>a própria razão impõe como um dever, para o favorecimento de sua intenção</p><p>moral e posto que a natureza dá garantia de que aquilo que o homem devia fazer</p><p>segundo leis da liberdade, mas não faz, é assegurado que ele o fará por uma</p><p>coerção da natureza sem prejuízo dessa liberdade, e isso segundo todas as três</p><p>relações do direito público, o direito de Estado, o direito internacional e o</p><p>direito cosmopolita”. Quando eu digo da natureza: ela quer que isso ou aquilo</p><p>aconteça, isto significa não tanto que ela nos coloca um dever de fazê-lo (pois</p><p>isso somente pode a razão prática livre de coerção), mas que ela mesma faz,</p><p>queiramos ou não (fata volentem ducunt, nolentem trahunt) “o destino conduz</p><p>quem aceita e arrasta quem não aceita”.</p><p>1. Se um povo não fosse forçado também pela divergência interna a submeter-se</p><p>à coerção de leis públicas, então a guerra externa o faria, na medida em que,</p><p>segundo a disposição da natureza antes mencionada, cada povo encontra à sua</p><p>frente um outro povo que o incomoda como vizinho, contra quem ele tem de</p><p>instituir-se internamente em um Estado para, como potência, estar preparado</p><p>contra este. Ora, a constituição republicana é a única que é plenamente conforme</p><p>ao direito dos homens, mas também a mais difícil para instituir e muito mais</p><p>ainda para conservar, de tal modo que muitos afirmam que tinha de ser um</p><p>Estado de anjos, porque os homens, com suas inclinações egoístas, não seriam</p><p>capazes de uma constituição tão sublime. Mas então a natureza vem ao auxílio</p><p>da vontade geral fundada na razão, venerada, mas impotente na prática, e</p><p>precisamente mediante aquelas inclinações egoístas, de modo que compete a</p><p>uma boa organização do Estado somente (o que contudo está na faculdade dos</p><p>homens) que um dirija suas forças contra o outro, de modo que umas detenham</p><p>as outras em seu efeito destruidor ou as suprimam, de sorte que o resultado para</p><p>a razão redunda como se não estivessem presentes, e assim o homem é coagido a</p><p>ser, embora não um homem moralmente bom, contudo um bom cidadão. O</p><p>problema do estabelecimento do Estado, tão duro como isso soe, pode ser</p><p>solucionado mesmo no caso de um povo de demônios (se somente eles tiverem</p><p>entendimento) e exprime-se assim: “ordenar uma multidão de seres racionais,</p><p>que no todo exigem leis universais para sua conservação, das quais, porém, cada</p><p>um está inclinado a eximir-se em segredo, e estabelecer sua constituição de</p><p>modo que, embora tentem uns contra os outros em suas disposições privadas, as</p><p>contenham uns aos outros de modo que o resultado em sua conduta pública seja</p><p>justamente o mesmo como se não tivessem nenhuma das tais más disposições”.</p><p>Um tal problema tem de ter solução. Pois não é o aperfeiçoamento moral dos</p><p>homens, mas somente o mecanismo da natureza, do qual é exigida a tarefa de</p><p>conhecer como se pode utilizá-lo nos homens para dirigir de modo tal o conflito</p><p>das disposições hostis num povo que eles mesmos forcem uns aos outros a</p><p>submeter-se a leis de coerção e assim tenham de conduzir ao estado de paz, no</p><p>qual as leis têm força. Pode-se ver isso também nos Estados existentes, ainda</p><p>muito incompletamente organizados, que já se aproximam muito, na conduta</p><p>exterior, àquilo que a idéia de direito prescreve, embora o âmago da moralidade</p><p>não seja seguramente a causa disso (como, pois, também não se deve esperar</p><p>dela a boa constituição de Estado, mas antes, inversamente, da última é de se</p><p>esperar primeiramente a boa formação moral de um povo). Por conseguinte, o</p><p>mecanismo da natureza pelas inclinações egoístas, que naturalmente atuam</p><p>também contrapostas exteriormente,</p><p>pode ser usado pela razão como um meio de</p><p>criar espaço ao seu próprio fim, a prescrição jurídica, e mediante isto também,</p><p>no quanto depende do próprio Estado, promover e assegurar a paz interna tanto</p><p>quanto a externa. – O que, portanto, significa: a natureza quer irresistivelmente</p><p>que o direito por fim tenha o poder supremo. O que se descuidou aqui de fazer,</p><p>isto se faz por si mesmo no fim, ainda que com muito inconveniente. – “Quem</p><p>dobra muito forte o junco o quebra; e quem muito quer nada quer”, Bouterwek.</p><p>2. A idéia do direito internacional pressupõe a separação de muitos Estados</p><p>vizinhos independentes uns dos outros, embora uma tal situação seja em si já um</p><p>estado de guerra (se uma união federativa entre eles não previne a eclosão das</p><p>hostilidades); é, contudo, mesmo este estado, segundo a idéia de razão, melhor</p><p>do que a fusão deles por uma potência que cresça uma sobre a outra e que se</p><p>converta em uma monarquia universal, porque as leis, com a abrangência</p><p>aumentada do governo, sofrem danos com sua pressão sempre maior e um</p><p>despotismo vazio de alma, depois que extirpou os germes do bem, degenera, ao</p><p>fim, em anarquia. No entanto, este é o anseio de cada Estado (ou de seu chefe</p><p>supremo): transpor-se ao estado de paz permanente, de modo que ele, sempre</p><p>que possível, domine o mundo inteiro. Mas a natureza quer de outra maneira. –</p><p>Ela serve-se de dois meios para deter os povos da fusão e separá-los: a</p><p>diversidade das línguas e das religiões[4], que precisamente carrega consigo a</p><p>propensão ao ódio recíproco e o pretexto para a guerra, mas conduz, pela cultura</p><p>crescente e aproximação gradual dos homens, à maior harmonia em princípios,</p><p>para a concordância em uma paz que não seja engendrada e assegurada, como no</p><p>despotismo (no cemitério da liberdade), pelo enfraquecimento de todas as forças,</p><p>mas por seu equilíbrio na sua mais vívida emulação.</p><p>3. Assim como a natureza separa sabiamente os povos, que a vontade de cada</p><p>Estado, e isto mesmo segundo fundamentos do direito internacional, bem</p><p>gostaria de reunir sob si por astúcia ou força, assim reúne ela também, de outro</p><p>lado, mediante o proveito pessoal recíproco, os povos, o que o conceito de</p><p>direito cosmopolita não teria assegurado contra emprego de força e guerra. É o</p><p>espírito comercial, que não pode subsistir juntamente com a guerra e que mais</p><p>cedo ou mais tarde se apodera de cada povo. Porque então entre todas as</p><p>potências (meios) subordinadas à potência do Estado, a potência do dinheiro</p><p>sendo bem possível a de maior confiança, os Estados vêem-se assim (certamente</p><p>não por móbiles da moralidade) forçados a promover a nobre paz e, seja onde for</p><p>que no mundo a guerra ameace de eclodir, a afastá-la por mediações, como se</p><p>estivessem em uma aliança estável, pois grandes uniões para a guerra podem,</p><p>segundo a natureza da coisa, somente muito raramente acontecer e ainda mais</p><p>raramente ter êxito. – Desse modo a natureza garante a paz perpétua pelo</p><p>mecanismo das próprias inclinações humanas; certamente com uma segurança</p><p>que não é bastante para pressagiar (teoricamente) o futuro, mas é suficiente na</p><p>intenção prática e cria o dever de trabalhar para este fim (não simplesmente</p><p>quimérico).</p><p>[1] No mecanismo da natureza, ao qual o homem pertence (como ser sensível), evidencia-se uma forma que</p><p>serve de fundamento à sua existência, que nós não podemos conceber de outra maneira do que lhe supondo</p><p>o fim de um autor do mundo que a determina anteriormente, cuja predeterminação denominamos em geral a</p><p>providência (divina) e, na medida em que ela é posta no início do mundo, a providência fundadora</p><p>(providentia conditrix; semel iussit, semper parent, Agostinho); no curso da natureza, porém, para mantê-lo</p><p>segundo leis universais da finalidade, denominamos a providência governadora (providentia gubernatrix);</p><p>especificamernte para fins particulares que não são previsíveis pelos homens, mas supostos a partir do</p><p>resultado, denominamos diretora (providentia directrix); finalmente, ainda com respeito a acontecimentos</p><p>singulares, como fins divinos, não mais denominamos providência, mas direção (directio extraordinaria),</p><p>que, porém (já que ela de fato aponta ao milagre, embora os acontecimentos não sejam assim</p><p>denominados), querer conhecer como tal é um tolo atrevimento do homem, porque concluir a um princípio</p><p>particular da causa eficiente a partir de um acontecimento singular (que esse acontecimento seja um fim e</p><p>não simplesmente uma conseqüência elucidável segundo a ordenação da natureza na cadeia das causas do</p><p>mundo. Em segundo lugar, um tal modo de pensar também frustra todos os princípios determinados de</p><p>julgamento de um efeito. Mas, na intenção moral-prática (que, portanto, está inteiramente dirigida ao supra-</p><p>sensível), por exemplo na crença de que Deus completará também por meios inconcebíveis para nós a</p><p>deficiência de nossa própria justiça, se somente nossa disposição prática for pura, portanto não devemos</p><p>relaxar nada em nossos esforços para o bem, é o conceito de concursus divinus inteiramente conveniente e</p><p>mesmo necessário, porém é claro por si mesmo que ninguém tem de tentar explicar uma boa ação (como</p><p>evento no mundo) a partir disso, o que é um pretenso conhecimento teórico do supra-sensível, por</p><p>conseguinte absurdo.</p><p>[2] Entre todos os modos de vida é a caça sem dúvida a mais contrária à constituição civilizada, porque as</p><p>famílias, que têm aí de se isolar, tornam-se logo estranhas umas às outras e, por conseqüência, dispersas em</p><p>extensas florestas, tornam-se logo também hostis, pois cada uma precisa de muito espaço para a aquisição</p><p>de sua alimentação e roupa. – A proibição de Noé de comer carne com sangue, Moisés M IX, 4-6 (que,</p><p>seguidamente repetida, foi feita condição pelos cristãos judeus aos cristãos recém-convertidos do</p><p>paganismo, ainda que em outra consideração, Hist. Apost. XV, 20. XXI, 25) parece não ser, bem no início,</p><p>senão a proibição da vida de caçador, porque nesta freqüentemente se precisa comer a carne crua, portanto é</p><p>proibido, o último, ao mesmo tempo a primeira.</p><p>[3] Poder-se-ia perguntar: se a natureza quis que essas costas geladas não devessem ficar desabitadas, o que</p><p>ocorreria com seus habitantes se ela algum dia (como é de esperar) não trouxer mais madeira flutuante?</p><p>Pois se pode crer que, em uma cultura que progride, os habitantes das zonas temperadas, utilizando melhor</p><p>a madeira que cresce nas margens de seus rios, não a deixarão mais cair nos rios e assim flutuar adiante no</p><p>mar. Eu respondo: os habitantes das margens do Obi, do Jenissei, do Lena etc. a fariam chegar pelo</p><p>comércio e trocariam por isso os produtos do reino animal de que o mar nas costas geladas é tão rico, se ela</p><p>(a natureza) tiver extorquido primeiramente a paz entre eles.</p><p>[4] Diversidade das religiões: uma expressão singular! Justo como se dissesse também diversas morais.</p><p>Bem pode haver diversos modos de crença dos meios históricos usados não na religião, mas na história de</p><p>sua propagação, admitidos no campo da erudição, e assim pode haver diversos livros religiosos</p><p>(Zendavesta, Vedas, Corão etc.), mas há somente uma única religião, válida para todos os homens e em</p><p>todos os tempos. Aqueles, portanto, não podem conter senão o veículo da religião, o que é contingente e</p><p>pode ser diverso segundo a diversidade dos tempos e dos lugares.</p><p>SEGUNDO SUPLEMENTO ARTIGO SECRETO PARA A PAZ</p><p>PERPÉTUA</p><p>Um artigo secreto nas negociações do direito público é objetivamente</p><p>considerado, segundo seu conteúdo, uma contradição; subjetivamente, porém,</p><p>julgado segundo a qualidade da pessoa que o dita, pode bem ter lugar aí um</p><p>segredo, que ela acharia comprometedor para sua dignidade anunciar-se</p><p>publicamente como seu autor.</p><p>O único artigo desse tipo está contido na proposição: “as máximas dos</p><p>filósofos sobre as condições de possibilidade da paz pública devem ser</p><p>consultadas pelos Estados equipados para a guerra”.</p><p>Parece, porém, diminuir a autoridade legislativa de um Estado, a quem se</p><p>tem de conferir naturalmente a maior sabedoria, procurar instrução junto a</p><p>súditos (os filósofos) sobre os princípios</p><p>de sua conduta em relação a outros</p><p>Estados, não obstante seja muito aconselhável fazê-lo. Portanto, o Estado os</p><p>convocará silenciosamente (portanto, fazendo segredo disso); o que não</p><p>significa que ele os deixará discursar livre e publicamente sobre as máximas</p><p>gerais da conduta de guerra e conclusão de paz (pois isso eles farão já por si se</p><p>somente não os proíbe), e o acordo dos Estados uns com os outros sobre este</p><p>ponto tampouco precisa de um encontro especial dos Estados entre si nessa</p><p>intenção, mas reside já na obrigação pela razão humana universal (moral</p><p>legislativa). – Mas por isso não se diz que o Estado tem de dar preferência aos</p><p>princípios do filósofo frente às sentenças do jurisconsulto (o substituto do poder</p><p>de Estado), mas somente que se escute. O último, que tomou para si como</p><p>símbolo a balança do direito acompanhada pela espada da justiça, serve-se</p><p>costumeiramente da última não somente para impedir toda influência estrangeira</p><p>na primeira, mas se um prato não quer baixar, para pôr na balança (vae victis), ao</p><p>que o jurisconsulto, que não é ao mesmo tempo filósofo (também segundo a</p><p>moralidade), tem a maior tentação, porque sua função é somente aplicar leis</p><p>existentes, não, porém, investigar se estas leis não carecem de um</p><p>melhoramento, e considera esta função, de fato em menor posto de sua</p><p>faculdade, entre os mais altos, porque ela está acompanhada de poder (como é</p><p>também o caso com as outras duas). – A faculdade filosófica fica em um nível</p><p>muito inferior sob este poder coligado. Assim se diz da filosofia, por exemplo,</p><p>que ela é a serva da teologia (e assim soa também das outras duas). – Mas não se</p><p>vê bem “se ela precede sua mui digna dama com o facho ou se lhe segue</p><p>carregando a cauda”.</p><p>Não é de se esperar que reis filosofem ou que filósofos se tornem reis, mas</p><p>tampouco é de se desejar, porque a posse do poder corrompe inevitavelmente o</p><p>livre julgamento da razão. Porém, é indispensável, para iluminar sua ocupação,</p><p>que reis ou povos reais (que governam a si mesmos segundo leis de igualdade)</p><p>não atrofiem ou emudeçam a classe dos filósofos, mas a deixem falar</p><p>publicamente, porque esta classe é incapaz, segundo sua natureza, de</p><p>agremiações e alianças, insuspeitos de propaganda por meio de boato.</p><p>APÊNDICE</p><p>I. SOBRE O DESACORDO ENTRE A MORAL</p><p>E A POLÍTICA A PROPÓSITO DA PAZ PERPÉTUA</p><p>A moral é já em si mesma uma prática no sentido objetivo, como conjunto</p><p>de leis que ordenam incondicionalmente, segundo as quais devemos agir, e é um</p><p>evidente absurdo, depois de se ter concedido a este conceito de dever sua</p><p>autoridade, ainda querer dizer que, porém, não se pode obedecer. Pois então este</p><p>conceito suprime-se por si da moral (ultra posse nemo obligatur); por</p><p>conseguinte, não pode haver nenhum conflito da política, como doutrina</p><p>aplicada do direito, com a moral, como doutrina do direito, mas teórica (por</p><p>conseguinte, nenhum conflito da prática com a teoria) –, pois, se ocorresse, teria</p><p>de se entender sob a última uma doutrina geral da prudência, isto é, uma teoria</p><p>das máximas de escolher os meios mais aptos para suas intenções, avaliadas</p><p>segundo a vantagem, isto é, negar absolutamente que haja uma moral.</p><p>A política diz: “Sede astutos como serpentes”; a moral acrescenta (como</p><p>condição limitante): “e sem falsidade como as pombas”. Se ambas não podem</p><p>subsistir juntas em um mandamento, então há efetivamente um conflito da</p><p>política com a moral; devam, porém, ambas estar inteiramente unidas, então o</p><p>conceito do contrário é absurdo, e a pergunta sobre como resolver aquele</p><p>conflito nem mais se põe como tarefa. Embora a proposição “a honestidade é a</p><p>melhor política” contenha uma teoria que infelizmente a prática muito</p><p>freqüentemente contradiz, a proposição igualmente teórica “a honestidade é</p><p>melhor do que toda política”, infinitamente acima de toda objeção, é a condição</p><p>indispensável da última. A divindade tutelar da moral não cede a Júpiter (a</p><p>divindade tutelar do poder), pois este se encontra ainda sob o destino, isto é, a</p><p>razão não está suficientemente iluminada para apreciar a série de causas</p><p>predeterminantes que anunciam antecipadamente com segurança o resultado</p><p>(embora espere que seja conforme ao desejo) bom ou ruim do agir e sofrer dos</p><p>homens, segundo o mecanismo da natureza. Mas o que se tem de fazer para</p><p>permanecer na trilha do dever (segundo as regras da sabedoria), para com isso e</p><p>por isso chegar ao fim último, a razão ilumina por toda a parte com suficiente</p><p>clareza para nós.</p><p>Ora, o prático (para quem a moral é simples teoria) funda, porém, sua</p><p>recusa desconsoladora de nossa benévola esperança (mesmo admitindo o dever e</p><p>o poder) propriamente em que ele pretende ver antecipadamente a partir da</p><p>natureza do homem que ele nunca irá querer aquilo que é exigido para alcançar</p><p>o fim que conduz à paz perpétua. – Sem dúvida o querer de todos os homens</p><p>individuais de viver numa constituição legal segundo princípios de liberdade (a</p><p>unidade distributiva da vontade de todos) não é suficiente para este fim, mas é</p><p>necessário que todos juntos queiram este estado (a unidade coletiva da vontade</p><p>unificada). Esta solução de uma difícil tarefa é ainda exigida para que devenha</p><p>um todo da sociedade civil e, já que, portanto, além da diversidade do querer</p><p>particular de todos, ainda tem de se acrescentar uma causa unificante do querer</p><p>para produzir uma vontade comum, que nenhum deles pode fazer; não se conta,</p><p>assim, para a execução daquela idéia (na prática) com nenhum outro início do</p><p>estado jurídico senão com o início pela força, sob cuja coerção pode ser fundado</p><p>posteriormente o direito público, o que sem dúvida faz já aguardar</p><p>antecipadamente grandes desvios daquela idéia (da teoria) na experiência efetiva</p><p>(já que, ainda mais, pouco se pode contar com a disposição moral do legislador,</p><p>de ele, depois de ocorrida a reunião da multidão desordenada em um povo,</p><p>deixar unicamente ao cuidado deste estabelecer uma constituição jurídica</p><p>mediante a vontade comum).</p><p>Isso significa então: quem uma vez tem o poder nas mãos não deixará</p><p>prescrever as leis pelo povo. Um Estado que está na situação de não estar sob</p><p>nenhuma lei exterior não se fará, com respeito ao modo como ele deve procurar</p><p>seu direito contra os outros Estados, dependente do foro deles, e mesmo uma</p><p>parte do mundo, quando se sente superior a uma outra, que, aliás, não está em</p><p>seu caminho, não deixará inutilizado o meio do fortalecimento de sua potência</p><p>mediante espoliação ou mesmo dominação; e assim se desfazem agora todos os</p><p>planos da teoria para o direito de Estado, internacional e cosmopolita em ideais</p><p>vazios e inexeqüíveis; ao contrário, uma prática que é fundada em princípios</p><p>empíricos da natureza humana, que não considera como muito inferior tirar</p><p>ensinamento para suas máximas do modo como as coisas se passam no mundo, é</p><p>a única que pode esperar encontrar um fundamento seguro para seu edifício da</p><p>prudência de Estado.</p><p>Sem dúvida, se não há nenhuma liberdade e lei moral fundada nela, mas</p><p>tudo que acontece ou pode acontecer é puro mecanismo da natureza, a política é,</p><p>então (como arte de utilizar tal mecanismo para o governo dos homens), toda a</p><p>sabedoria prática, e o conceito de direito é um pensamento vazio. Se se</p><p>considera, porém, inevitavelmente necessário ligar este conceito com a política,</p><p>elevando-o à condição limitante da última, então a conjugabilidade de ambos</p><p>deve ser admitida. Ora, eu posso bem me representar um político moral, isto é,</p><p>alguém que toma os princípios da prudência de Estado de modo que possam</p><p>subsistir juntamente com a moral, mas não posso me representar um moralista</p><p>político, que se forja uma moral como encontra conveniente à vantagem do</p><p>homem de Estado.</p><p>O político moral formulará para si como princípio: se forem encontrados</p><p>defeitos na constituição do Estado ou na relação entre Estados que não se pôde</p><p>prevenir, então é dever, sobretudo para os chefes de Estado, estar atento a partir</p><p>daí a como pode ser melhorada, tão logo quanto possível, e ser adequada ao</p><p>direito natural, tal como ele figura aos nossos olhos como modelo na</p>