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COMO NASCE O DIREITO - Francesco Carnelutti

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Carnelutti, Francesco, 1879-1965.
Como nasce o direito / Francesco Carnelutti ;
[tradução Roger Vinícius da Silva Costa]. --
São Paulo : Editora Pillares, 2015.
Título original: Come nasce il diritto.
1. Direito 2. Direito - Filosofia 3. Direito -
Introdução 4. Direito - Teoria I. Título.
15-01499 CDU-34
Índices para catálogo sistemático:
1. Direito 34
e-ISBN 978-85-8183-067-4
© Copyright 2015 by Editora Pillares Ltda.
Conselho Editorial:
Antônio Fábio Medrado de Araújo
Armando dos Santos Mesquita Martins
Gaetano Dibenedetto
Ivan de Oliveira Silva
Ivo de Paula
José Maria Trepat Cases
Luiz Antonio Martins
Roberto Victor Pereira Ribeiro
Wilson do Prado
Tradução e Notas:
Roger Vinícius da Silva Costa
Revisão:
Geórgia Evelyn Franco
Luiz Antonio Martins
Editoração e capa:
Lye Longo Nakagawa
Editora Pillares Ltda.
Rua Santo Amaro, 586 – Bela Vista
Telefones: (11) 3101-5100 – 3105-6374 – CEP: 01315-000
E-mail: editorapillares@ig.com.br – Site: www.editorapillares.com.br
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo,
especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos.
Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra
em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características
gráficas da obra e a sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e
parágrafos, do Código Penal, cf. Lei no 10.695/2003) com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e
apreensão e indenizações diversas (Lei no 9.610, de 19-02-98).
Apresentação
A cidade de Udine, na Itália, tem duas grandes realizações em
níveis mundiais. A primeira é por ter sido a cidade que abrigou o alto
escalão militar da Itália durante a Primeira Guerra Mundial e a
segunda por ter sido berço de Francesco Carnelutti, um dos maiores
juristas do mundo em todos os tempos.
O calendário apontava o dia 15 de maio, data que também marca o
dia mundial da família, quando numa manhã nublada pedia para vir
ao mundo o iluminado Francesco Carnelutti. O Ser Supremo no
apogeu de sua magnitude fez a permissão. Carnelutti respira, então,
o primeiro oxigênio extrauterino no dia 15 de maio de 1879, na então
bucólica Udine. Naquele momento, não nascia apenas mais uma
criança, nascia para o mundo um dos maiores cientistas jurídicos
que se tem conhecimento na História. Advogado, Professor e autor
de mais de 40 obras jurídicas e humanísticas. Suas obras até os dias
hodiernos são leitura obrigatória nos assentos das academias dos
cursos de Direito.
Nesta redação, daremos, por conta de sua apresentação, uma
especial atenção à sua obra Come nasce il diritto, traduzindo para o
nosso vernáculo: Como Nasce o Direito. O livro foi publicado e
estreou para o afã dos estudiosos da ciência jurídica no ano de 1961.
Nesta obra, Carnelutti já inicia definindo a concepção de Direito
aos seus olhos: “Um conjunto de leis que regulam a conduta dos
homens”. Antes, entretanto, chama atenção que esse conceito é “uma
definição empírica, mas provisoriamente aceitável”.
É bom comentar que o primeiro capítulo ou introito da obra
chama-se “Direito e Juristas”.
Quanto aos juristas, Carnelutti chama-os de operadores do
direito. Para ele, “os juristas são os que fabricam o direito. São
operadores, sim, mas operadores qualificados; tanto é assim que,
antes de fabricá-lo, estudam-no, precisamente na Universidade”.
Neste sentido, peço vênia, e com rotundo respeito, para discordar
um pouco de Carnelutti. Até entendo a sua concepção de jurista nos
idos de 1960, até compreendo esse rótulo de operadores do direito,
entretanto, sempre faço uma ressalva com meus alunos: seríamos
realmente operadores do direito? Ou seríamos cientistas jurídicos?
Há certo tempo cunhei essa expressão, porque acho que somos mais
cientistas jurídicos do que operadores do direito. O verdadeiro
jurista é aquele que preenche todos os requisitos basilares de uma
ciência, quais sejam: pesquisa, estudos prolongados, análises,
comparativos, inserção dos aspectos científicos na sociedade etc. O
jurista, proveniente do termo giurista, verbete italiano para sinalizar
aquele que labora com o Direito para facilitar a pacificação social,
pode até ser operador do direito, mas é, antes disso, verdadeiro
cientista jurídico.
Em segundo momento Carnelutti assevera: “As leis, portanto, são
feitas, quase que exclusivamente, por homens que não aprenderam a
fazê-las”. Verdade. As leis, mormente, em nosso sistema tripartido de
poderes, é incumbência precípua do Poder Legislativo e, neste Poder,
às vezes, ingressam homens que não possuem o tato ou o trato com
as ciências jurídicas. Não devemos olvidar nunca que uma lei deve
ser feita com a sociedade e para a sociedade. Por isso, Rousseau
lecionava: “Assim como o arquiteto, antes de erguer um grande
edifício, observa e sonda o chão, e examina se pode sustentar o peso
da construção, da mesma forma o sábio instituidor não começa a
formar boas leis em si mesmas antes de ter observado se o povo a
quem ele as destina é capaz de as suportar”.1
Nós, os advogados e cientistas jurídicos, somos os primeiros
intérpretes das leis para a sociedade, por isso, nossa missão é
deveras importante, chegando a assemelhar um sacerdócio fiel aos
princípios altruísticos.
Prosseguindo em Carnelutti, lemos: “Se bastassem as leis, não
haveria necessidade dos juízes”. O mister de juiz é a própria
sociedade posta em função primordial. Como ensinava Edgar de
Moura Bittencourt: “O magistrado é um intelectual. […] é ele o juiz,
[intimado] a preencher as lacunas da lei, a contornar, quando
possível, suas imperfeições, e a orientar a tarefa subsequente do
legislador”.2
É necessário que o juiz exale o hálito da lei e que a sociedade sinta,
ao cheirar esse aroma, um bom cheiro e assim tenha a sensação de
segurança. Afinal, como tão bem apregoava Bergeret: “A lei é morta;
O magistrado é vivo. Nisto está a grande vantagem dele sobre ela”.
Avançando sobre leis, o jurista italiano tece: “A verdade é que
também os cidadãos as aplicam, quando, com base nelas, regulam
sua própria conduta, o que quer dizer que também eles se expressam
em prosa, fazem o direito sem saber que assim procedem”.
Não é somente o poder estatal a fonte inesgotável de normas de
direito, também há participação das associações de pessoas que
permanecem dentro das fronteiras do Estado, que visam auxiliar a
sociedade política a efetivar e disciplinar as normas jurídicas.3
Nunca esquecendo que o artigo primeiro de nossa Carta Maior, em
seu parágrafo único, leciona: “Todo o poder emana do povo, que o
exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
termos desta Constituição.”4
Neste sentido, reforça a ilustre doutrinadora Maria Helena Diniz:
“Os etnólogos demonstram-nos que qualquer grupo social, por mais
rudimentar que seja seu estágio de desenvolvimento, possui, para
regulamentar sua vida grupal, um conjunto de normas que rege o
comportamento de seus membros, estabelecendo as bases de
coexistência entre indivíduos”.5
Mesmo assim, Carnelutti adverte para uma maior cooperação do
Estado no ensinamento das questões jurídicas. O Estado, segundo
ele, ensina os direitos aos cidadãos, até porque “Se não ministrasse
esse conhecimento, o cidadão não estaria sequer em condições de
saber quando deveria dirigir-se ao jurista, conforme a dificuldade do
caso”. A nosso ver, em plagas brasileiras, muitos ainda não o sabem
e, com isso, não buscam os seus direitos por serem néscios nos
assuntos jurídicos. Sem contar, ainda, que, em alguns casos, “o
tribunal está fechado para os pobres” como observava Ovídio: cura
pauperibus clausa est.
A sociedade, o cidadão precisa conhecer o aforismo ignorantia
legis non excusat, ou seja, a ignorância da lei não desculpa.6
Carnelutti grita: “Esse conhecimento, pois,não deve faltar à cultura
comum; caso contrário, seria necessário que cada um dos cidadãos,
em todos os momentos da vida, tivesse ao seu lado um jurista a quem
pedir conselho sobre o que poderia/deveria fazer”. Daí, porque o
nosso papel de advogado, promotor de justiça, juiz e professor se faz
tão necessário. Devemos irradiar os conhecimentos, fazendo-os
ressoar sociedade adentro, e não fazermos capitanias hereditárias ou
monopólios de conhecimentos.
Carnelutti observa: “A posição é análoga no campo do direito e no
da medicina: chamam-se os advogados, [promotores de justiça] e o
juízes, bem como os médicos, quando as enfermidades se
manifestam. Todavia, a fim de que estas não apareçam, é necessário
difundir, ao povo, conhecimentos elementares de higiene. Afinal,
uma certa educação jurídica, caso estendida aos não juristas, é um
meio para combater as duas pragas sociais que são a delinquência e a
litigiosidade.” Lembrando sempre Pitágoras: “Educando a criança
não será preciso punir o adulto”.
Francesco adverte que a sociedade fique atenta, pois “antes de
acontecer entre os povos, a guerra ocorre entre indivíduos”. As
cidades hoje são verdadeiras selvas de pedras; no trânsito, na
concorrência para uma vaga de trabalho ou concurso, nas filas,
enfim, nas mais simples relações humanas cotidianas. É uma guerra,
é um caos!
Deve ser hasteado que “o segredo do direito está precisamente
nisto: que os homens não podem viver no caos. A ordem lhes é tão
necessária como o ar que respiram”. Por isso, digo e ensino: o Direito
é uma necessidade fisiológica da sociedade.
Chega-se a conclusão que “os homens fazem a guerra, porém
necessitam viver em paz. A guerra, pois, não termina com a paz, mas
tende a esta. O que põe fim à guerra é o pacto, e a raiz do pacto é pax.
[…] o homem é essencialmente sociável. Em outras palavras, homem
e sociedade são dois lados de uma mesma moeda. Robinson Crusoé é
o fruto da fantasia de um novelista7, porém se colocou ao lado de
Sexta-feira, sem o qual não poderia ter feito uma novela sequer.”
Roma já ensinava: Ubi societas, ibi ius, onde está a sociedade, está o
Direito.
Deveríamos viver bem com os outros por conta do altruísmo, do
carinho, do afeto, do respeito, do amor, mas “se o amor ainda não
germina na terra” é preciso encontrar uma outra semente: o Direito!
Se o Direito não nos ensina a amar, pelo menos nos cobra o respeito.
E o preço pela violação do Direito é muito caro.
“Se quem tem não dá espontaneamente a quem não tem, deve-se
convencer o primeiro a fazê-lo”. Disso surge, fruto do Direito, a
concepção de Estado. O Estado é o pai e a mãe da sociedade e como
bom pai/mãe deve suprir a carência dos filhos (a sociedade). O
Direito contribui com uma parcela importante quando se prontifica a
criar um ramo para auxiliar o Estado na arrecadação e, por
conseguinte, na repartição entre os indivíduos necessitados. Falamos
do Direito Tributário, seara esta que ordena, disciplina e municia o
serviço público, ou seja, aquele que serve quem tem nada tem.
O Estado trabalha em cima da grande máxima: “Se quem tem não
dá a quem não tem, antes que se inicie a guerra entre eles é preferível
que alguém tire de quem tem para dar a quem não tem”.
“O Estado é aquilo que deve eliminar a guerra”. Afinal, a união dos
filhos (a sociedade) depende muito da consciência dos pais (o
Estado).
Repito: o Direito é uma necessidade fisiológica do Estado.
Carnelutti também pensava assim: “a sociedade juridicamente
ordenada se chama Estado”.
Estado e Direito são como corpo e vida. Assim como o corpo sem
vida é apenas um objeto inanimado, tal maneira é o Estado sem o
Direito. Uma anarquia, um caos, uma hecatombe social.
Para Carnelutti, o Direito “é, pois, uma combinação de força e de
justiça, motivo pelo qual exibe aquele emblema em que a espada está
ao lado da balança”.
Sem a força da espada para ameaçar os desatinos sociais, talvez o
homem “lobo do homem” não compreenderia o organismo vivo que é
a sociedade. O Direito deve ser um fogo que clareia os passos dos
homens, mas que também os queima se não bem utilizado, isto é,
respeitado. Uma coisa é certa, não se deve insultar o fogo, o mar e as
forças da natureza.
No capítulo de sanções, Carnelutti defende penas sérias, sem
requintes de crueldade ou peças teatrais para amedrontar o homem.
Para o jurista italiano a pena não deve ser malum passionis propter
malum actionis, ou seja, um mal que se sofre pelo mal que se fez.
Brilhantemente ele censura a velha e famigerada Lei de Talião e
ensina que a pena deve ser, antes de tudo, uma penitência, um
arrependimento. Hodiernamente, o sistema penal é baseado na
vendicta (vingança), isto é, o delinquente paga pelo que fez
igualmente. Seria bem melhor que o homem não quisesse mais
cometer delitos por questão de educação e não por medo da
repreensão. Há muito a ser mudado, mas a censura e a punição
devem existir. O que não se tolera mais e em alguns sistemas penais
ainda ocorre é a vendeta, a vingança da vingança. As condições
penitenciárias são tão ruins que o apenado ao sair quer se vingar do
que passou e voltar a delinquir. O Estado pune (vinga), o apenado
cumpre a pena e depois se vinga da vingança estatal que cumpriu.
Devemos o mais rápido possível fazer uma reestruturação em nosso
sistema carcerário que educa – para sermos sinceros – mas educam
para o mal. Os apenados retornam de nossos cárceres pós-doutores
em crimes e praticam a vendeta na sociedade. Daí porque Alexandre
Lacassagne exortava: “a sociedade tem os criminosos que merece”.
Avante! Vamos educar. Celebremos Paulo Freire: “Educação não
transforma o mundo. Educação muda as pessoas, as pessoas
transformam o mundo”.
Meus caros leitores, a obra Como Nasce o Direito de Francesco
Carnelutti traz essas e muitas outras noções e lições. Trata-se,
portanto, de estudo para leitura obrigatória em nossos assentos
universitários.
ROBERTO VICTOR PEREIRA RIBEIRO
Advogado, Assessor Jurídico Especial 
da Procuradoria Geral de Justiça do Ceará, Jornalista, Escritor, Professor de
Direito Penal, Direito Processual Civil, Direito do Consumidor, Introdução ao
Estudo do Direito, Membro da Academia Cearense de Letras Jurídicas, do
Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, Ex-Juiz-Conselheiro do Tribunal de
Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, secção Ceará e autor das
seguintes obras: O Julgamento de Jesus Cristo sob a luz do Direito; O Julgamento
de Sócrates sob a luz do Direito; Questões Relevantes de Direito Penal e Processual
Penal e Voando com os Deuses da História.
1 ROUSSEAU, J. J. Do Contrato Social. São Paulo: Pillares, 2013, p. 81.
2 BITTENCOURT, Edgard de Moura. O Juiz. Campinas: Millennium, 2002, p. 12.
3 RIBEIRO, Roberto Victor Pereira. Leis e Sociedade. Curitiba: Jornal do Estado, 2010,
Coluna “Saber Direito”, seção “Questão de Direito”.
4 Constituição Federal de 1988.
5 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 18a ed. rev.
e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.
6 Art. 3o da LINDB (Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro), antiga Lei de
Introdução ao Código Civil.
7 Daniel Defoe.
Introdução
Direito e Juristas
Desde já, tratemos de definir esses dois termos, de forma
aproximada, como convém para ter um ponto de partida.
Tenho certeza de que, na mente de meus leitores, a palavra direito
suscita a ideia de lei; inclusive, desses conjuntos de leis que se
chamam códigos. É uma definição empírica, mas provisoriamente
podemos aceitá-la: um conjunto de leis que regulam a conduta dos
homens. Já veremos como e por quê. Em outras palavras, é a
definição predominante, até agora, também no campo da ciência.
E os juristas? Diria-se que são operadores do direito. Isso também
é aceitável. A comparação entre o direito e uma fábrica é cômoda e
nada tem de casual: os juristas são os que fabricam o direito. São
operadores, sim, mas operadores qualificados; tanto é assim que,
antes de fabricá-lo, estudam-no, precisamente na universidade.
Não obstante, basta uma experiência mínima para demonstrar
que a fabricaçãodo direito é exercida também por operadores não
qualificados. Com efeito, as leis são feitas nos parlamentos, que,
ainda mais com o sufrágio universal, não se compõem unicamente de
juristas. É verdade que os projetos sobre os quais discute e delibera o
parlamento são, quase sempre, preparados por juristas; contudo, os
não juristas, mesmo quando não formam sozinhos as leis,
certamente concorrem para a formação destas. Mesmo nesse
procedimento, ocorre o contrário do que vemos nas fábricas, nas
quais os operários executam as ordens dos superiores. De fato, no
parlamento, são os operários que predominam ou que, pelo menos,
podem predominar. As leis, portanto, são feitas, quase que
exclusivamente, por homens que não aprenderam a fazê-las.
Pois bem, é necessário acrescentar que, quando sai do gabinete
legislativo, o direito não é mais um produto acabado; pelo contrário,
para poder ser consumido, deve ser submetido a uma elaboração
ulterior. Na verdade, o que fazem, os juízes, a não ser algo que pode
ser adequadamente equiparado ao tecido de lã fiada ou
desenredada? Se bastassem as leis, não haveria necessidade dos
juízes, não é verdade? Também os juízes, pois, são construtores do
direito.
Todos podem imaginar a diferença entre o legislador e o juiz: o
primeiro forma as leis, o segundo as aplica. Mas não procede que
essa aplicação seja obra exclusiva dos juízes. Aplicar uma lei quer
dizer confrontá-la com uma situação fática a fim de saber o que se
pode e o que não se pode fazer. Se, ao passar diante de uma frutaria,
tenho vontade de comer uma maçã e me vem a tentação de esticar a
mão e pegá-la, mas, em troca, pago o preço e a compro, realizo, sem
me dar conta disto, o mesmo raciocínio que teria o juiz, caso, tendo
cedido à tentação, me declarasse culpado do furto. Ah! se, para
aplicar as leis, os juízes tivessem de intervir em todos os casos!... A
verdade é que também os cidadãos as aplicam, quando, com base
nelas, regulam sua própria conduta, o que quer dizer que também
eles, como o Burgués gentilhombre1 se expressava em prosa, fazem o
direito sem saber que assim procedem. Em outras palavras, o juiz só
intervém, para finalizar o produto semielaborado, quando os
cidadãos não conseguem fazê-lo sozinhos.
Se os juristas, dessa forma, são os operadores qualificados do
direito, nem tudo, em direito, é obra deles. Pois bem, pode-se
admitir que não há necessidade de um treinamento específico para
fazer a aplicação das leis exigidas pela vida cotidiana, assim como
para promover, no parlamento, a formação delas, enquanto existem
operadores qualificados, que são os juristas, aos quais se recorre em
caso de necessidade. Porém, esse posicionamento supõe que, na
cultura geral, que deve ser fornecida ao cidadão a fim de que possa
regular-se na vida cotidiana, se inclua um conhecimento genérico do
direito. Se não se ministrasse esse conhecimento, o cidadão não
estaria sequer em condições de saber quando deveria dirigir-se ao
jurista, conforme a dificuldade do caso. Com efeito, muitos
inconvenientes nascem, por exemplo, em matéria contratual,
precisamente porque quem celebra contratos ignora as
consequências que deles podem derivar.
Essa verdade se torna mais evidente no campo do direito penal.
Logo veremos que o Código Penal foi feito para permitir que os
cidadãos se abstenham de certos atos que se consideram gravemente
nocivos ao bem comum e realcem outros atos que são necessários a
esse mesmo bem comum. Entretanto, como se poderá alcançar esse
resultado, se não se fazem conhecer as leis que compõem o referido
código? Há, neste, um artigo em virtude do qual, como afirmamos,
ignorantia legis non excusat (“a ignorância da lei não desculpa”). Ou
seja, significa que um cidadão, uma vez que tenha contrariado um
preceito penal, não pode desculpar-se dizendo que não o conhecia.
Esse conhecimento, pois, não deve faltar à cultura comum; caso
contrário, seria necessário que cada um de nós, em todos os
momentos da vida, tivesse a seu lado um jurista a quem pedir
conselho sobre o que poderíamos/deveríamos fazer.
Em suma, se a instrução jurídica superior deve reservar-se aos
juristas, não se pode deixar de repartir a todos os cidadãos uma
instrução inferior. A posição é análoga no campo do direito e no da
medicina: chamam-se os advogados e os juízes, bem como os
médicos, quando as enfermidades se manifestam. Todavia, a fim de
que estas não apareçam, é necessário difundir, ao povo,
conhecimentos elementares de higiene. Afinal, uma certa educação
jurídica, caso estendida aos não juristas, é um meio para combater as
duas pragas sociais que são a delinquência e a litigiosidade.
Sob esse aspecto, dizíamos, o ordenamento dos estudos vigente na
Itália, especialmente no que toca ao ensino médio, é gravemente
defeituoso. Seja para fins formativos, seja para fins informativos, é
dizer, tanto para a formação do caráter como para o treinamento
técnico para os vários encargos sociais, é necessário um mínimo de
conhecimentos jurídicos. A respeito da segunda dessas finalidades, é
inútil insistir, tão evidente é a questão. Particularmente sobre o
direito penal, este provavelmente deveria ser ensinado no período
fundamental, com forma e profundidade adequadas, é claro. Em
outro viés, chamo a atenção sobre o valor formativo do direito, que
não é menor do que o da matemática, por um lado, nem do que o da
música, por outro. Esses são fatos que muitos dos juristas ainda não
conhecem a fundo, mas é possível que, ao final de nossa reflexão, se
esclareçam um pouco. Assim, este texto se propõe a suprir ou a
começar a suprir, na medida do possível, a grave deficiência do
ensino básico quanto a esse delicadíssimo tema.
1 [Nota do editorial – tradutor]: Em francês, Le Bourgeois gentilhomme, trata-se de uma
comédia-balé de Molière (1622-1673).
Sumário
I Direito e Economia
II Direito e Moral
III O Delito
IV A Propriedade
V O Contrato
VI A Lei
VII O Juízo
VIII O Estado
IX A Comunidade Internacional
X A Jurisprudência
I
Direito e Economia
Ao começar a falar-lhes noutro dia, apresentei o exemplo de
alguém que, ao passar diante de uma frutaria, rouba ou compra uma
maçã. Estes atos, do roubo ou da compra, são jurídicos: porém, antes
que ao campo do direito, pertencem ao da economia.
São atos econômicos todos aqueles mediante os quais os homens
tratam de satisfazer suas necessidades. A palavra economia, que
vem do grego, até expressa literalmente essa ideia, porquanto oikos
quer dizer ‘casa’. A casa é um direito fundamental do homem, e até
da sociedade, já que provê o ambiente dentro do qual a família, que é
a célula da sociedade, pode realizar o milagre da propagação da
espécie mas, sobretudo, o da formação do indivíduo.
As necessidades dos homens são ilimitadas, e os bens são
limitados. Contraditoriamente, enquanto satisfazem certas
necessidades, os bens estimulam outras. Para distinguir o homem
dos demais animais, a fórmula mais satisfatória é dizer que o homem
nunca está contente. Quanto mais tem, mais quer ter. Por isso é que
os homens, como ocorre com as nações, fazem a guerra.
Agora temos que saber o que é a guerra. A ideia que temos dela
costuma ser crua e aproximativa. Mesmo a ciência não se preocupa
em defini-la exatamente. Quem fala de guerra pensa em dois povos
que se combatem com armas.
Essa é, diríamos, a guerra vista com o telescópio. Para
compreender o que é a guerra, é preciso empregar, contudo, também
o microscópio. Vista de perto, adverte-se que o conceito de guerra
depende do conceito de propriedade.
Também a propriedade é um fenômeno econômico, em vez de
jurídico. É singular que ele também, como a economia, estabeleça
relação com a casa; em latim, o vocábulo correspondente a
propriedade é dominium, e este vem de domus, que quer dizer ‘casa’.
O fato econômico é aquele em virtude do qual alguém, quando
tomou algum objeto que lhe serve para satisfazer uma necessidade,
quer reter para si esse objeto: o esforço para tomá-lo se prolonga no
esforço para conservá-lo. Estabelece-se uma relação física entre ohomem e o bem, o qual fica retido sob seu domínio, ou seja, na esfera
submetida a sua força física. Observa-se, nele, uma vinculação entre
a casa e o corpo do homem, que é o que lhe pertence mais do que
qualquer outra coisa. Forma-se, em torno do indivíduo, uma espécie
de círculo ou de recinto, que é precisamente a domus, a casa,
entendida não só como abrigo, mas também como conjunto de coisas
que lhe servem para a vida.
A divisa da economia é, infelizmente, homo homini lupus [‘o
homem, para o homem, um lobo’]. Economicamente, o homem se
comporta frente a outro homem como um animal de presa. Em vez
de permanecer, cada um, com o que conseguiu apreender, vê-se
tentado a roubar do outro. A guerra não é, em sua raiz, mais que esse
ato de roubar. É invasão do domínio, em outras palavras. Os limites
entre o patrimônio de um homem e o de outro homem, em vez de
serem respeitados, são violados.
Não devemos crer, pois, que a guerra se combate unicamente
entre povos e só com armas. À guerra macroscópica, corresponde a
guerra microscópica. Também o furto tem a essência da guerra, e
não só o roubo, que é o furto com violência, mas também o furto com
destreza. Antes de acontecer entre povos, a guerra ocorre entre
indivíduos. Se nos parecem estranhas a vinculação e até a identidade
entre o furto e a guerra, é porque consideramos esse fato sob o
aspecto jurídico, e não sob o econômico. Mas, se não começarmos
pela economia e, portanto, não desenvolvendo o conceito da guerra
em toda a sua amplitude, não compreenderemos o direito.
Observemos, então, que a guerra produz desordem, ou melhor ainda,
é desordem. Da ordem, ideia fundamental para compreender o
mundo e a vida, basta falar de forma simples: há desordem quando
as coisas não estão em seu devido lugar. Sabem que a guerra se
resume na desordem? Recordam-se do que era a Itália há pouco
menos de dez anos? Não se podia viver naquele caos.
O segredo de direito está precisamente nisto: que os homens não
podem viver no caos. A ordem lhes é tão necessária como o ar que
respiram. Como a guerra corresponde à desordem, a ordem
corresponde à paz. Os homens fazem a guerra, porém necessitam
viver em paz. A guerra, pois, não termina com a paz, mas tende a
esta. O que põe fim à guerra é o pactum, e a raiz de pacto é pax.
Outra palavra expressiva é contrato, que, no fundo, quer dizer o
mesmo: colocando fim à guerra, os homens, ao invés de estarem uns
contra os outros, tratam de ficar juntos.
Também o contrato, como a propriedade, é um fenômeno
econômico, antes que jurídico. Ao combaterem, os homens alegam
que têm necessidade uns dos outros. O homem é essencialmente
sociável. Em outras palavras, homem e sociedade são dois lados de
uma mesma moeda. Robinson Crusoé é o fruto da fantasia de um
novelista, porém se colocou ao lado de Viernes, sem o qual não
poderia ter feito uma novela sequer. Necessidade de paz e
necessidade dos demais homens é a mesma coisa. Como o domínio,
como a guerra, assim também o tratado de paz é, portanto, um
produto da economia pura.
Porém, enquanto se mantém no terreno puramente econômico, o
contrato não oferece, à paz, nenhuma garantia. Economicamente, o
contrato é a expressão de um equilíbrio alcançado pelas forças
contrárias dos combatentes. Em uma luta, chega-se inevitavelmente
ao ponto morto, quando algum dos dois tem a sensação de não poder
obter um resultado melhor do que o já alcançado, de maneira que
seguir combatendo redundaria somente em perda. Então, os
combatentes fazem a paz. Mas esta é uma expressão eufórica, que
não corresponde à realidade. Com efeito, mais do que de paz, trata-
se de uma trégua. De fato, quando, depois do necessário repouso,
um dos adversários acredita ter forças que lhe permitam melhorar a
situação estabelecida pela trégua, reinicia-se a luta. No campo da
economia, portanto, nunca há paz verdadeira. Toda a história da
economia é uma sucessão de lutas e tréguas, pois a pausa entre duas
guerras não é paz verdadeira.
A conclusão que tiramos disso é que a economia não é suficiente
para colocar ordem entre os homens e satisfazer, assim, o que
constitui a necessidade suprema do indivíduo e da sociedade.
II
Direito e Moral
Se quiséssemos resumir em uma breve fórmula as razões pelas
quais os homens não conseguem viver em paz no terreno da
economia, poderíamos dizer que a economia é o reino do eu, ou seja,
do egoísmo. No terreno da economia, encontram-se os diversos
egoísmos, tanto dos homens quanto dos povos. Por isso, é, por si
mesmo, o reino da desordem.
Para por ordem no caos econômico e, desse modo, fazer com que
os homens vivam em paz, é necessário substituir o egoísmo pelo
altruísmo, o eu pelo tu. Se a economia é o reino do eu, o reino do tu é
a moral. Em relação a isso, falou Kant sobre o respeito; porém, a
fórmula cristã, incomparavelmente mais clara e vigorosa, propõe o
amor ao próximo como solução do problema. É evidente que, se
quem tem dá espontaneamente a quem não tem, amando-o como a si
mesmo, e, se quem recebe se contenta com o recebido, porque
também este indivíduo responde com amor, desaparece a guerra.
Da mesma maneira, é claro que, quando se compõem, no amor, os
conflitos de interesses entre os homens, já não há lugar ao emprego
da força para que estes sejam contidos. Por isso, a moral, como reino
que é do amor, é também o reino da liberdade.
Tudo isso é fácil de dizer; todavia, quando se trata de colocar em
prática, hic sunt leones [‘aqui há leões’]. Cristo ensinou que o amor
ao próximo e o amor a Deus se implicam reciprocamente, daí que o
amor ao próximo seja a perfeição do homem. Mas quanto é
necessário para ser perfeito? Amar o outro quer dizer identificar-se
com ele, colocar o outro no mesmo nível que a si mesmo. E isso não
pode ser menos do que a meta do percurso, longo e penoso, à qual,
salvo exceções de certos caracteres privilegiados, os indivíduos, como
os povos, não podem chegar senão mediante um lento processo de
toda a vida. Mas e até lá?
A necessidade que os homens têm de eliminar a guerra é imediata.
É necessário, a qualquer custo, pôr ordem no caos. Se o amor ainda
não germina na terra, é preciso encontrar um substituto. Se quem
tem não dá espontaneamente a quem não tem, deve-se convencer o
primeiro a fazê-lo. É preciso inventar algo que consiga, a respeito da
economia, os mesmos efeitos que a moral. E, se não forem os
mesmos, paciência, ao menos que se possam aproximar deles. Esse
substituto da moral é o direito. Tem-se, então, uma ponte entre a
moral e a economia; conclui-se uma espécie de compromisso entre
elas. Porém, logo será explicado como isso pode ocorrer.
Todos compreendem que acontece assim: se quem tem não dá a
quem não tem, antes que se inicie a guerra entre eles é preferível que
alguém tire de quem tem para dar a quem não tem. Mas quem será
esse alguém?
Não há resposta se não se parte do fato de que os homens são
distintos entre si: mais ou menos fortes, mais ou menos jovens, mais
ou menos inteligentes, mais ou menos belos, mais ou menos bons, e
nunca é idêntica a medida do “mais” ou do “menos”. Inclusive nas
sociedades primitivas, há indivíduos privilegiados, que exercem
naturalmente sobre os outros a função de chefe ou de cabeça.
Menemio Agripa, com o famoso apólogo, se aproximou da verdade
mais do que creram ele mesmo e os demais. A sociedade tem uma
cabeça pela mesma razão por que a tem o corpo humano. Não é que a
sociedade se assemelhe a um organismo vivo: ela é um organismo
vivo. A sociologia é um capítulo da biologia. A cabeça, entre outras
coisas, vê e ouve, enxerga e escuta. É singular o parentesco filosófico
entre captut y capio, de que vem nosso capire, ‘captar’ ou
‘compreender’. O chefe capta ou compreende mais que os demais, ou
melhor ainda, capta ou compreende pelos demais.
O que a cabeça ou o chefe compreende é, simplesmente, aquilo
que deve eliminar a guerra. Sua compreensão é lenta e cansativa.
Geralmente, sente a necessidade de eliminar a guerra para fazer a
guerra: jogo de palavras que se esclarece precisando: eliminar a
guerra entreos seus, para fazer a guerra contra os demais. A
história, incluindo a pré-história, demonstra que a guerra vai,
progressivamente, deslocando-se dos indivíduos aos povos. Os
romanos, por exemplo, para guerrear contra os demais povos e
conquistar pouco a pouco, não só na Itália, mas boa parte do mundo
então conhecido, teria necessidade de ordem interna. “Concordia
minimae res crescunt, discordia maximae dilabintur” [“Pela
concórdia, as coisas mínimas crescem; pela discórdia, até as maiores
sucumbem”], dizia sua sabedoria. Se não tivessem permanecido
concordes e unidos, não teriam podido impor-se aos demais povos.
No entanto, para que os romanos se impusessem aos outros
povos, era necessário que alguém se impusesse aos romanos. Posto
que estes não tinham em si uma dose de moralidade suficiente para
abster-se espontaneamente da guerra entre si mesmos, era
necessária uma cabeça para que fizessem por força o que não sabiam
fazer por amor. A imposição, naturalmente, não pode ser mais que o
efeito de um mandato. O chefe é aquele que manda (iubet).
Precisamente em sua denominação (ius), o direito se vincula à
ordem. E o que é uma ordem?
Antes de tudo, um preceito: é uma indicação de uma conduta a ser
seguida: “faça isto”, “não faça aquilo”. Trata-se de uma indicação
que, por si só, pode persuadir quem a recebe; no caso, quem a faz, é
um verdadeiro chefe e, como tal, está provido de autoridade. Porém,
quando se trata de seus interesses, e sobre tudo dos referentes ao
patrimônio, é difícil que um homem se preste ao sacrifício de não
procurar sua própria satisfação ou de, pelo menos, limitá-la.
Por isso, embora pareça suficiente, nem sempre o preceito basta;
inclusive, em várias circunstâncias, não bastaria se não estivesse
reforçado por uma ameaça à qual se dá o nome de sanção. Dessa
maneira, passa a ser uma ordem: se você fizer o que eu lhe proíbo
que faça, será castigado; se você não der o que lhe é ordenado que dê,
perderá o que tem. A sanção introduz a força na noção de direito,
porque, naturalmente, enquanto não se obedece ao preceito,
necessita-se da força para ser posta em ação. Esse elemento da força
constitui a verdadeira diferença entre o direito e a moral, daí a
naturalidade do direito, em comparação com a sobrenaturalidade
da moral. Por essa razão, o direito nasce sob o signo da contradição:
serve-se da guerra para combater a guerra: para que o bandido não
ataque o transeunte, o policial ataca o bandido.
Contudo, se o policial distingue o direito da moral, o uniforme
distingue o guarda do bandido, precisamente porque o bandido faz
apenas economia, ao passo que o policial faz direito, porquanto este
ostenta o signo da dignidade que tem. Isso quer dizer que, se o meio
de que ambos se servem é sempre a força, o propósito ao qual se
dirigem é diverso: o bandido combate para si, e o policial pelos
demais. O direito é, pois, uma combinação de força e de justiça,
motivo pelo qual exibe aquele emblema em que a espada está ao lado
da balança.
III
O Delito
O propósito do direito, dizíamos outro dia, é eliminar a guerra.
Em ordem lógica, como em ordem histórica, o primeiro mandato do
chefe é: “Não faça a guerra, pois, do contrário, será castigado”.
Assim, onde impera o direito, desaparece a guerra, e em seu lugar
entra o delito. Isso não quer dizer que desapareça de uma vez o fato a
que se dá o nome de guerra, mas somente que se troca de nome. Sob
essa troca está, naturalmente, uma mutação radical do valor social
da guerra. Antes, era permitido fazer guerra; depois, passou a ser
proibido. Antes, quem a fazia era respeitado; depois, depreciado.
Antes, ao vitorioso era declarado o triunfo; depois, a prisão. Antes, o
espólio era seu; depois, tomado. Essa é a razão pela qual hoje se fale
de guerra só entre os povos, e não entre os indivíduos: a guerra
entre os indivíduos passou a ser um delito. O único resíduo da
guerra admitido entre os indivíduos é o que recebe o nome de
legítima defesa: ainda hoje, quem é injustamente agredido pode
reagir através da força.
A guerra, temos dito, é a invasão do domínio alheio. Por isso, as
formas primordiais do delito são o homicídio e o furto: trata-se da
agressão ao domínio em suas formas elementares: o corpo humano e
as coisas. Sob esse aspecto, os dois primeiros preceitos jurídicos são:
não matar e não roubar. A esses preceitos está unida a sanção: se
você matar ou roubar, sofrerá isto ou aquilo.
Mas o que você sofrerá? Sofrerá duas coisas. Primeira: uma vez
que tenha roubado, será posto em prisão. Segunda: a coisa roubada
lhe será tomada para ser restituída ao dono. Essas duas sanções são
denominadas sanção penal e sanção civil, de pena e restituição.
Assim, surgiu o conceito rudimentar de delito: um ato, isto é, um
fato voluntário do homem, prejudicial à ordem social e, por isso,
reprimido com pena e com restituição.
O homicídio e o furto, figuras originárias do delito, deixam
transparecer, no delito, o rastro da guerra. Pouco a pouco, à medida
que a sociedade se civiliza e, portanto, se organiza juridicamente, vão
manifestando-se outras formas de delito. Acrescentados, à
sociedade, o sentido e a necessidade de ordem, multiplicam-se os
preceitos penais e, com eles, as figuras do delito. Quando se
conceitua uma conduta tal que determine uma desordem nociva à
vida em comum, é castigada com a pena. Isso explica o fato de que,
nos códigos penais modernos, as figuras do delito sejam tão
numerosas, que não é possível enumerá-las aqui, nem sequer em
suas mais altas manifestações: o estudo dessas figuras constitui
objeto de um dos principais ramos da ciência do direito, que se
chama direito penal.
A evolução do ordenamento jurídico está, precisamente, no
sentido do emprego da pena a fim de reprimir uma variedade cada
vez maior das chamadas condutas antissociais. Até certo ponto, esse
enriquecimento da esfera penal corresponde à linha do
desenvolvimento do direito. É certo que, segundo essa linha, se
castiguem penalmente certos atos prejudiciais à sociedade, ainda que
tenham sido cometidos sem a vontade de fazer o mal, por
imprudência ou negligência (daí a distinção entre delitos dolosos e
delitos culposos); outros tipos, que produzem um dano social, não
por ter sido feito algo que não deveria ser feito (por exemplo, não
socorrer um homem em perigo de morte, donde a distinção entre
delitos comissivos e delitos omissivos); e, finalmente, no sentido de
que se castiguem atos que não têm uma substância de verdadeira
imoralidade, mas que, todavia, são ou podem ser nocivos à
convivência social, os quais tomam o nome de contravenções. Em
vez disso, é lícito duvidar de que a tendência a reprimir penalmente
certos atos, só por sua oposição, responda ao desenvolvimento
filosófico do direito, não à ordem social, mas a certas formas de
ordenamento político: esse aspecto da evolução do direito penal, pela
qual se apresenta o mencionado delito político ao lado do delito
comum, apesar de sugerir ao estudo muitas reservas, vai tomando
hoje consistência cada vez maior, e apresenta talvez um sintoma
alarmante da degeneração do ordenamento jurídico.
Ocorre, desse modo, que pouco a pouco o conceito de delito vai
sendo deslocado. Em sua origem, o delito deveria ser um fato imoral
que, pela gravidade do dano que dele se segue para a ordem social, é
castigado com a pena. Em outros termos, o centro de gravidade do
delito estaria na moral. Em virtude da evolução a que me referi, um
fato se qualifica como delito, não tanto por razões morais, mas por
razões jurídicas, ou seja, não tanto porque merece ser castigado, mas
porque é castigado. O caráter positivo do delito consiste, pois, na
punibilidade de um fato cometido pelo homem.
O que é, então, a pena? A palavra mesma diz que é uma dor. A
pena tem, portanto, uma função aflitiva: faz sofrer. E por que faz
sofrer? Evidentemente, porque a ameaça do sofrimento, no qual
consiste a sanção penal, serve para reprimir a prática do delito,
constituindo um estímulo contra a tentação. Fala-se, a esse respeito,
de uma função intimidativada pena, a qual serve, portanto, para a
prevenção dos delitos. A prevenção, diz-se, é geral ou especial: geral
quando se dirige aos demais, que, ao ver castigado o delinquente,
presenciam um exemplo saudável; e especial quando a experiência
do castigo ensina, ao próprio castigado, a não reincidir.
A pena, contudo, só serve para prevenir outros delitos? Há quem
responda que sim. É uma das mais antigas e mais graves questões
saber se se castiga só ne peccetur (a fim de que não se peque) ou
também quia peccatum est (porque se pecou), ou seja, se a pena,
além da função preventiva, tem também função repressiva.
Em geral, os que sustentam a função repressiva a explicam pela
necessidade de retribuir o mal com o mal, daí que a função
repressiva se resolva na função retributiva e que se defina a pena
como malum passionis propter malum actionis (‘um mal que se
sofre pelo mal que se fez sofrer’). Embora ainda predominante, essa
concepção é contrária, em primeiro lugar, ao ensinamento de Cristo,
o qual disse, claramente, que não é a alma, senão um bem, o que
pode vencer o mal. O vício lógico dessa concepção está em confundir
o mal com a dor. Que a pena seja uma dor é aceitável, mas que a dor
seja um mal é um erro.
Se a pena, pois não pode ser um mal, teremos de considerá-la um
bem? Sem dúvida, posto que a dor é o meio da redenção. A via pela
qual a pena vem a ser um bem é o arrependimento. A função
repressiva da pena está contida, portanto, na penitência. Essa é uma
verdade intuída por quem designa ao castigo a finalidade de
recompensa. Porém, a intuição ainda não tem sido traduzida em
ação. Nosso sistema penal continua sendo dominado pelo princípio
da retribuição, que não é mais do que um resíduo da vendicta
(‘vingança’). Em outras palavras, a pena é objeto de uma concepção
física, e não de uma concepção espiritual. Sob esse prisma, que é o
mais elevado, a ciência e, mais ainda, a prática do direito penal
permanecem muito atrasadas.
IV
A Propriedade
O castigo do furto implica o reconhecimento da propriedade.
Nessa simples proposição, expressam-se o nexo e até a correlação
entre o direito penal e o direito civil, os quais são a cara e a coroa de
uma mesma moeda.
Afirmamos, na segunda lição, que a propriedade nasce no terreno
da economia, antes que no do direito. Mas, naquele terreno, a tutela
da propriedade se ampara, exclusivamente, nas forças do
proprietário: se ele não chega a defendê-la, perde a propriedade.
Mas, quando quem se apodera das coisas alheias é castigado, ou seja,
quando se proíbe o furto, não é só o proprietário quem defende seu
domínio, isto é, em primeiro lugar sua casa, pois à porta estão os
policiais. Então, a propriedade, de instituto puramente econômico,
passa ser um instituto jurídico, e até se converte em um direito.
Aqui se apresenta uma espécie de jogo de palavras, acerca do qual
devo ser claro. Até agora, temos chamado de direito o ordenamento
jurídico, ou seja, o conjunto de comandos que o formam, ou, para
que me faça compreender melhor, o conjunto dos códigos e das leis.
Mas como se pode chamar de direito também a propriedade? Essa
espécie de confusão é desfeita se levarmos em conta as expressões
utilizadas pelos romanos, que tiveram um admirável sentido do
direito e dos quais, de todos os modos, provém nosso pensamento
jurídico.
Vimos que os romanos, para significar o direito, diziam ius.
Faziam-no assim porque o direito integra um sistema de comandos
(iussum, iubere). De que forma se fez, no direito romano, o
reconhecimento da propriedade? O furto não tem consistido em
levar a coisa de outro sic et simpliciter, mas em levá-la contra a
vontade do proprietário. Isso quer dizer que se atribuiu, ao
proprietário, o poder de permitir ou de proibir que o outro se
apodere de suas coisas – portanto, de um poder ordinatório – poder
esse que, precisamente porque se resume em um iubere (mandar), se
chamou ius. Se, ao passar por uma frutaria, pego uma maçã sem
pagá-la, sou culpado de furto com a condição de que o fruteiro não
me tenha permitido pegá-la. Isso significa que a tutela de sua
propriedade depende dele, de sua ordem, de sua vontade. A essência
do direito é sempre essa, devido ao fato de que a ordem provém do
chefe e de que este reconhece de imediato o poder de mandar
conforme seus próprios interesses. A verdade é que, quando o
dominus proíbe ou permite a alguém entrar em sua casa, faz direito
do mesmo modo que o faz o chefe quando este proíbe o furto ou o
homicídio. Hoje, a fim de evitar confusões, chama-se direito objetivo
o conjunto dos comandos jurídicos e, em particular, o conjunto das
leis; e direito subjetivo ao poder de mandar em tutela dos próprios
interesses, reconhecendo o indivíduo e, em particular, o proprietário.
Até aqui, espero ter esclarecido como a propriedade, de instituto
puramente econômico, passou a ser instituto jurídico e, ainda mais
concretamente, um direito. Em outros tempos, se alguém queria
entrar na casa de outro, o dono da casa não podia contar mais do que
com suas próprias forças. Hoje, quando este nega a permissão e o
outro insiste, poderá chamar os policiais. A propriedade, portanto,
garante ao indivíduo o gozo exclusivo das coisas que são objeto dela,
as quais, por isso, se chamam coisas próprias ou suas: coisas imóveis
ou móveis, coisas inanimadas ou animadas. Em outras épocas, o
homem também podia ser objeto de propriedade, especialmente
outro homem, o qual, precisamente porque servia de instrumento,
como animal de tração ou de carga, se chamava servus: a abolição da
escravidão, devido ao cristianismo, excluiu do âmbito da propriedade
o outro homem, mas não o próprio homem, ou seja, o corpo mesmo
do proprietário, que é o primeiro objeto de sua propriedade, embora
se trate de uma propriedade regulada de forma diferente que a das
coisas, justamente no sentido de que a vontade privada lhes é
reconhecida, no que toca ao gozo de seu corpo, poderes menos
amplos que os correspondentes às coisas. Posso, por exemplo, deixar
que alguém mate meu cachorro. Assim, se o mata com meu
consentimento, não será castigado. Mas, ainda que eu tenha dado o
consentimento para que me matem, isso não impedirá que o
responsável seja culpado de homicídio.
Que o domínio passe a ser jurídico, é, conforme minha exposição,
o término correlativo da proibição jurídica do furto. Propriedade e
furto são dois contrários e, como tais, vinculados logicamente. Não
se pode proibir o furto sem reconhecer a propriedade, e não se pode
reconhecer a propriedade sem proibir o furto. Daí provém a
correlação entre o direito penal e o direito civil, os quais representam
os dois lados de uma mesma moeda. Em outras palavras, não
poderia existir o direito civil sem o direito penal, e vice-versa. A
distinção entre eles é, portanto, lógica, e não histórica. No se pode
dizer que um tenha nascido antes que o outro, pois nasceram a uma
só vez.
Assim, à sanção penal, de que falamos nas lições precedentes,
agrega-se a sanção civil, e são estes também os dois aspectos da
sanção. Para considerar isso, basta pensar que, se o ladrão fosse
castigado mas pudesse reter a coisa roubada, não estaria
restabelecida a ordem. A fim de que esta seja restabelecida, deverá
ser restituída. A segunda forma de sanção, ou seja, a sanção civil ao
lado da pena, consiste, pois, na restituição. Os juristas dizem que,
enquanto a pena tem caráter aflitivo, o caráter da restituição é
satisfatório, já que esta satisfaz o interesse que a transgressão ao
comando tinha lesionado, e, assim, o proprietário recupera a coisa da
qual havia sido privado. Caso observemos mais atentamente, não
obstante, também a restituição tem seu lado aflitivo: com efeito, o
ladrão de quem se toma o que tinha roubado sofre ao menos por ter
trabalhado inutilmente. Por outro lado, também a pena tem seu lado
satisfativo, sobretudo se chega a redimir o condenado.
A propriedade é, historicamente, o primeiro dos direitos
subjetivos. Cada um destes nasce como propriedade. Porém, à
medida que progride o ordenamento jurídico, surgem outrosdireitos
subjetivos, tanto no âmbito da propriedade mesma quanto fora dela.
O mais importante de tais progressos corresponde à constituição do
direito de crédito, ao lado do direito de propriedade.
O direito de propriedade é, segundo entendo, o direito sobre a
coisa própria, enquanto o direito de crédito tem por objeto a coisa
alheia. O nascimento de um direito sobre a coisa alheia, o que, à
primeira vista, parece absurdo, vincula-se ao problema da sanção
civil, a que nos referimos há pouco. Suponhamos que o ladrão, após
consumir a coisa roubada, não esteja em condições de restituí-la.
Essa seria uma boa razão para que não tivesse que dar, ao
proprietário, alguma outra coisa, em compensação do que lhe
tomou? Reside aqui a forma como, ao lado da restituição, se constitui
outro tipo de sanção civil, que é o ressarcimento do dano.
À vítima do roubo o ladrão deve restituir a coisa roubada, e, se a
restituição não vale para reconstituir a situação tal como era antes do
delito, o segundo dará à primeira, além de suas próprias coisas, até o
limite do dano sofrido por ela. Daí surge um direito, não só sobre as
coisas próprias, mas também sobre as coisas alheias, ao qual se dá o
nome de direito de crédito. Aqui está o germe de um instituto
jurídico que, com o progresso da sociedade e a complexidade cada
vez maior das relações econômicas, assumiu, no direito moderno, um
prodigioso desenvolvimento, a ponto de que a importância do direito
de crédito acabou ultrapassando, hoje, a do direito de propriedade.
V
O Contrato
Vimos que o primeiro instituto econômico é a guerra e que o
segundo é a propriedade. O terceiro dos institutos econômicos que
explicam o nascimento do direito é o contrato.
O contrato, como o domínio, está vinculado logicamente com a
guerra: o domínio é um prius dela, e o contrato é um posterius; o
domínio a inicia, e o contrato a extingue. Os combatentes, quando
chegam ao ponto morto, tratam de assegurar para o futuro as
posições conseguidas: o vitorioso, para garantir as vantagens da
vitória, e o vencido, para proteger-se contra perdas ulteriores. O
contrato implica, pois, uma projeção ao futuro: tem a finalidade de
fixar para o porvir certas posições atuais. Por isso é que implica uma
promessa recíproca, e a promessa é uma declaração que se refere ao
futuro. A promessa se funda na fides, ou seja, em última análise, na
moralidade da outra parte. Precisamente para reforçar essa
confiança estavam dirigidas certas formas solenes que, no direito
antigo, acompanhavam o contrato.
Dizíamos que, infelizmente, a economia é inimiga da moralidade.
A relação entre as forças, com o decorrer do tempo, desloca-se.
Quando um dos contraentes sente ou crê sentir que suas forças
cresceram com relação à que eram no momento da conclusão do
contrato, vê-se naturalmente determinado a violá-lo. Por isso,
dissemos, o contrato, no terreno econômico, vale mais para
interromper do que para eliminar a guerra. É, na verdade, mais um
instrumento de trégua do que um instrumento de paz.
O direito é, ou ao menos tenta ser, um instrumento pacificador.
Do mesmo modo que a propriedade é convertida de instituto
econômico em instituto jurídico, também o contrato assume eficácia
jurídica. Em outros termos, assim como o mandato do chefe garante
o domínio, também o contrato o faz. “Uti lingua nuncupassit, ita ius
esto”, diziam os Quirites: segundo as palavras pronunciadas, assim é
o direito. Isso significa que valia como direito o que com o contrato
tinha sido estabelecido, ou, em diferentes e mais precisas palavras,
que o contrato vinha a ser um mandamento, e aos contratantes havia
sido concedido o poder de se mandar reciprocamente. Nesse sentido,
vale atentar para o seguinte: o fato de o contrato ser convertido em
jurídico não é mais que um desenvolvimento lógico de o domínio ser
convertido em jurídico.
Com efeito, qual é o significado de a propriedade ter passado a ser
um direito? Nada além do fato de uma pessoa ter o poder de mandar
acerca de suas coisas. Porque sou o dono de minha casa, tenho o
poder de permitir ou de proibir que alguém entre nela. Porque sou
dono de meu cavalo, tenho o poder de permitir ou de proibir que
outro faça uso dele.
Se o permito, existe aí um contrato, ao qual damos o nome de
comodato, caso o indivíduo goze provisoriamente do cavalo, ou de
doação, caso dele goze permanentemente. Trata-se de um contrato
porque, ao concluí-lo, surgem duas declarações: a de quem dá e a de
quem recebe, duas declarações “quae in idem placitum consentiunt”,
diziam os romanos, ou seja, que concordam entre si. Por essa razão
diz, a lei italiana, que o contrato é um acordo entre as partes para
constituir um vínculo de direito, acordo pelo qual os indivíduos que
o tenham concluído estão vinculados sob pena de serem obrigados a
observá-lo.
Os exemplos acima considerados têm relação com algo a que se
chama contrato gratuito. Chama-se assim porque há só uma parte
que dá, e a outra recebe. Mas se substituirmos a doação pela permuta
ou pela venda, ou o comodato pela locação, veremos que o contrato
se complica, pois cada uma das duas partes dá e recebe: na permuta,
cada uma dá à outra uma coisa diversa; na venda ou na locação, uma
dá uma coisa, e a outra dá o dinheiro. Em razão disso, fala-se, nesses
casos, de contrato oneroso.
Entre os institutos jurídicos, não existe outro caso que, como o
contrato, ponha em evidência um processo que eu chamaria de
fecundação moral da economia. A economia pode ser comparada à
terra sobre a qual a ética espalhou sua semente. Sobre essa terra e a
partir dessa semente, nasce, cresce e se agiganta o direito. E não há,
no complexo ordenamento jurídico, uma vegetação mais vigorosa
que a do contrato. Sem ele, a economia seria um pântano desolado.
Com efeito, o contrato é o instrumento jurídico sem o qual não
poderiam atuar as duas formas fundamentais de colaboração
econômica, que são o intercâmbio e a associação. Os dois contratos
típicos, sob esse aspecto, são a venda e a sociedade, mas, em torno
deles, vem florescendo e constantemente germina de novo uma flora
contratual de maravilhosa riqueza. Basta que cada um dos que me
leem observe um pouco, à luz dessas noções elementares, sua vida
cotidiana, para se convencer, por um lado, de que sem o intercâmbio
ou a associação, não poderia satisfazer adequadamente suas
necessidades; e de que, por outro, serve-se continuamente do
contrato, da manhã à noite, para se alimentar, para ter uma casa,
para cultivar o espírito, para se curar, para se divertir e, em geral, em
todas as circunstâncias da vida.
O contrato, por sua vez, é a forma historicamente originária de um
fenômeno jurídico mais amplo, ao qual se dá o nome de negócio
jurídico. Somente há cerca de um século é que a ciência pôde
esclarecer essa figura, da qual o contrato é o exemplar mais antigo e,
portanto, mais conhecido, porém não o único. O caráter elementar
destas lições não me permite aprofundar no tema, que, todavia, não
poderia deixar de ser mencionado. Mas talvez um exemplo possa ser
suficiente para estimular e orientar a intuição de meus discípulos.
Observem, pois, que o proprietário, não só pode doar ou vender a sua
coisa enquanto vive, mas que pode também dispor dela para o
período posterior a sua morte: esse poder, que em outros tempos era
limitado, vem restringindo-se pouco a pouco, por motivos que não
posso expor aqui. De toda forma, esse poder existe e provavelmente
será conservado. O ato que exerce essa eficácia ultra vitam (‘além da
vida’) é o testamento. Tratem, então, de estabelecer um contraste
entre o contrato (de venda, por exemplo) e o testamento. A diferença
está em que o contrato, mesmo quando apenas unilateral ou gratuito,
supõe sempre o consentimento das duas partes; a mesma doação não
produz vínculo algum se o donatário, ou seja, o que recebe, não diz
“sim”. O testamento, por seu turno, exerce seu efeito ainda que o
beneficiado não se manifeste a respeito dele, porquanto não é
necessário que diga “sim”, mas que não diga “não”. Contudo,
precisamentepor ele, o testamento (e outros negócios análogos, que
não posso mencionar aqui) manifesta com mais clareza a natureza de
mandato, ou seja, de exercício do direito: não há um ato que melhor
expresse a propriedade do que aquele com o qual o proprietário pode
dispor, a respeito de seus bens, para além dos limites da vida.
VI
A Lei
Vimos que a transformação da guerra em delito e a conversão da
propriedade e do contrato em institutos de direito dependem,
logicamente, de um comando, e que o mandato supõe um chefe que o
pronuncia. Mas esse é um esquema bastante vago para quem quer
compreender, ainda que em forma rudimentar e sumária, como
nasce o direito. Vimos também que o mandato se forma com o
preceito e com a sanção, mas resta saber quando e como se forma.
O comando deve operar no momento em que dois homens, em vez
de entrar em acordo, de respeitar o domínio alheio, de observar o
contrato, estão a ponto de entrar em guerra. Nessas circunstâncias, é
necessário que percebam a prescrição de uma conduta e a ameaça de
uma sanção. Mas é claro que, se a ordem deve operar nesse
momento, deve estar formada antes desse momento. Do contrário,
apareceria muito tarde. Teoricamente é possível, mas praticamente
muito raro, que homens em tais condições se dirijam ao chefe para
fazer que este lhes prescreva a conduta idônea, a fim de evitar a
guerra.
Por outro lado, se o comando deve estar formado antes que surja o
perigo da guerra, não pode ser uma ordem específica e concreta, ou
seja, dirigido àquelas pessoas às quais se manifesta o perigo. Não
pode estar formulada, pelo contrário, senão em forma hipotética ou
geral: geral porque se dirige a todos os cidadãos, não a este ou
àquele; hipotética porque lhes prescreve uma conduta e lhes ameaça
com uma sanção para o caso de que se manifeste entre eles o perigo
de uma guerra. Em uma palavra: o chefe não diz a Tício: “Você não
deve matar ou roubar, mas, se o fizer, sofrerá uma certa pena, terá
que restituir a coisa roubada e ressarcir o dano”. De fato, diz: “Se um
cidadão qualquer mata alguém ou rouba algo, serão aplicadas tais e
tais sanções”; ou, mais brevemente: “Quem mata alguém ou rouba
algo sofrerá estas ou aquelas consequências”. A estes comandos
hipotéticos e gerais dá-se o nome de leis.
Expliquemos rapidamente o motivo de aplicar esse nome e a
natureza da relação entre as leis jurídicas e as leis físicas ou
naturais. Ainda que esse seja um problema de reconhecido interesse,
o caráter elementar da lição que estou ministrando não me permite
expô-lo. Será suficiente indicar que o nome da lei tem sido adotado
no campo do direito, e não no da natureza, razão pela qual os juristas
forjaram intuitivamente um dos conceitos mais importantes da
ciência lógica.
A primeira impressão é a de que a lei deve ser expressa ou
explícita, no sentido de que deve ser formulada pelo chefe com
proposições verbais oportunas. Inclusive nós, italianos, estamos
habituados, não só às leis expressas, com também às leis escritas,
das quais temos abundantes exemplos em diversos códigos. É certo
que a lei é uma declaração cuja vontade pertence ao chefe e que,
como tal, deve consistir em um comportamento exterior apto para
fazer entender essa vontade. Porém, não afirmamos, com isso, que a
única atitude útil para esse fim seja a de falar ou de escrever. Por
exemplo, ainda que não diga que o homicida e o ladrão serão
castigados, se o chefe castiga uma, duas, dez, vinte, cem vezes o furto
ou o homicídio, essa série de castigos dá a entender sua vontade, da
mesma forma como o fariam as palavras. As leis podem, pois, ser
também não expressas ou, como se costuma dizer, tácitas. À lei
tácita dá-se o nome de costume. Com o progresso do ordenamento
jurídico, as leis faladas e até as escritas prevalecem cada vez mais
sobre os costumes, mas essa regra tem suas exceções. A mais
ostensiva dessas exceções se refere ao ordenamento inglês, ou
melhor, ao dos países anglo-saxões, todavia essa alusão, ainda que de
sumo interesse, não pode ser devidamente explicada, por causa do
caráter elementar de meu curso.
Compreende-se que quanto mais progride uma sociedade, e com
ela o direito, tanto mais se multiplica o número das leis. A
comparação entre um código antigo e um código moderno, ou ainda
com um sistema de códigos modernos, põe em evidência essa
multiplicação. A legislação arcaica romana estava contida nas
famosas Doze Tábuas: um monumento legislativo bastante anterior
ao código babilônico que toma o nome do rei Hamurabi, que viveu
há mais de dois mil anos antes de Cristo. O documento contém
pouco mais de uma centena de artigos. Se tivéssemos de contar, por
outro lado, os artigos de que se compõe a atual legislação italiana,
chegaríamos, sem dúvida, a centenas de milhares. Em determinado
momento, nos países de leis escritas, cada uma das proposições das
leis, chamadas precisamente de artigos, agrupam-se em certos
conjuntos, que são os modernos códigos. Na Itália, atualmente os
códigos são cinco: Código Civil, Código Penal, Código da Navegação,
Código de Processo Civil e Código de Processo Penal. No entanto,
hoje, esses códigos não contêm sequer a maior parte das leis. Além
deles, há uma enorme quantidade de outras leis que definiríamos
como extravagantes: devido à grande quantidade e a fim de facilitar
seu conhecimento e manejo, muitas delas estão coligidas, por
iniciativa privada, em outros códigos: Código do Trabalho, Código
Administrativo, Código Tributário, Código Sanitário etc.
Até certo ponto, essa multiplicação das leis é um fenômeno
fisiológico: as leis se multiplicam como os utensílios de que nos
servimos em nossas casas ou no exercício das profissões. Não se pode
negar, todavia, que, além desse ponto, as leis apresentam algo que se
assemelha à obstrução das ruas de nossas cidades pelo excesso de
veículos que nestas trafegam. Com cada vez mais insistência, fala-se
hoje de uma crise da lei, como um dos aspectos mais visíveis da
moderna crise do direito. Também esse é um tema acerca do qual
devo limitar-me a uma insinuação, já que não poderia nem estendê-
lo nem detalhá-lo, porque constitui um dos problemas mais graves
dentre os apresentados à ciência do direito.
O que não posso omitir é que os inconvenientes da inflação
legislativa não são menores que os devidos à inflação monetária:
são, como todos sabem, os inconvenientes da desvalorização.
Infelizmente, assim como ocorre com nossa lira,1 hoje nossas leis
valem menos que as de outros tempos. Por um lado, em analogia
com a produção seriada de mercadorias, a produção das leis sofre de
uma queda de cuidado em sua construção. Mas o mais grave está no
fato de que, ao crescer em número, não conseguem cumprir sua
função. Recorde-se que esta consiste em dar aos homes a certeza do
direito, ou seja, em lhes possibilitar saber o que devem ou não fazer e
a que consequências se expõem (não) o seguem, daí a necessidade de
que as leis sejam, antes de tudo, conhecidas. Mas como pode hoje um
cidadão conhecer todas as leis de seu país? Nem o homem que
transita pela rua nem mesmo os juristas estão hoje em condições de
conhecer mais do que uma pequena parte delas. O ordenamento
jurídico, cujo maior mérito deveria ser a simplicidade, acabou
tornando-se um complicadíssimo labirinto no qual, não raro, nem
aqueles que deveriam ser os guias conseguem orientar-se.
1 [Nota do editorial – tradutor]: Moeda italiana.
VII
O Juízo
O problema do direito, todavia, não se esgota com a formação dos
mandatos e, em particular, das leis.
Com efeito, um mandato pode não ser obedecido. Não é possível
afirmar, por exemplo, que, quando a guerra passou a ser um delito,
chegou a ser eliminada da sociedade. A experiência mais elementar
desmente esse otimismo: há séculos e séculos, a lei proíbe o
homicídio, mas, mesmo num país civilizado como o nosso, quantos
homicídios ainda são cometidos? É claro, pois, que à formação das
leis deve seguir alguma outra coisa. Por isso, dissemos, na lição
introdutória, que as leis são um produto jurídico semielaborado.
Essa outracoisa não pode ser mais do que a executada pelas
sanções: se alguém mata ou rouba, deve ser encarcerado em prisão;
se não restitui a coisa alheia, deve quitá-la; se não paga sua dívida, é
preciso cobrar-lhe o que serve para satisfazer o credor. Em suma,
trata-se de fazer que se executem as leis, depois de terem sido
formadas.
O conceito de execução sugere a imagem do carcereiro, como
também a do carrasco ou do oficial de justiça, que desaloja de uma
casa a pessoa que, sem ter direito, a ocupa; ou detém e vende os bens
do devedor inadimplente. Porém, um pouco de reflexão adverte que
a coisa não é tão simples e que a execução não exige só a obra
daqueles três tipos de sujeitos. Quando se acusa alguém de ter
matado um homem, é verdade? O dono de uma coisa argumenta que
outro a ocupa sem título, mas o segundo, na maioria das vezes, alega
que o tem. O credor afirma que não recebeu o valor, mas e se estiver
mentindo? Conforme se pode ver, antes do carcereiro ou do oficial
judiciário, entra em jogo outra figura: o juiz, que é verdadeiramente
uma figura de primeiro plano. Assim, ao lado da lei, coloca-se o juízo
como um dos institutos fundamentais do direito. Em vez de juízo, a
ciência moderna prefere falar de processo. Sem me deter na
comparação entre essas duas palavras e em seus respectivos
conceitos, para a exposição elementar que estou fazendo é razoável
atribuir a uma e outra o mesmo significado.
O processo, pois, divide-se em duas fases, que se chamam de
cognição e de execução. Ademais, segundo a distinção entre direito
penal e civil, também o processo se bifurca em processo penal e
processo civil. A seguir, tratarei sobre a diferença entre essas
categorias.
O processo penal, como todos sabem, serve para comprovar e
castigar o delito, inclusive, levando-se em conta as contravenções,
costuma ser preferível dizer delito2. E o processo civil? Neste,
discutem o proprietário e quem ocupou indevidamente sua
propriedade; ou o devedor e o credor; ou o esposo, que quer separar-
se de sua esposa, e esta, que quer permanecer como tal; entre outros
casos análogos. Costuma-se pensar que o processo civil serve, entre
dois litigantes, para dar razão a quem a tenha. Isso quer dizer, em
linguagem técnica, que concorre para decidir um litígio, isto é, um
conflito de interesses, no qual um dos dois interessados demonstra
uma pretensão e o outro a rejeita.
De acordo com significado da palavra, o processo de cognição, por
sua vez, serve para conhecer, em matéria penal, se um cometeu ou
não cometeu um delito e, portanto, se deve ou não ser castigado; e,
em matéria civil, quem dos dois litigantes tem razão e quem não a
tem.
Finalmente, com o processo de execução, põe-se em prática a lei,
ou seja, modificam-se as coisas da maneira como quer a lei.
Entretanto, diferentemente do processo de cognição, que é composto
por um dizer (ius dicere, segundo a fórmula romana, donde o nome
jurisdição), o processo executivo culmina em um fazer (ius facere).
Poderíamos dizer que o processo de cognição se encerra com a
sentença, a qual não é mais que um conjunto de palavras, ao passo
que o processo de execução mantém preso, na cadeia, o condenado;
remove, do local, o ocupante abusivo; toma os bens do devedor,
converte-os em dinheiro, que é entregue ao credor.
É evidente que o juízo sugere a figura do juiz, em quem a ciência
do direito reconhece, cada vez mais, o órgão elementar do direito.
Antigamente não se pensava assim. Durante muito tempo, o juízo foi
desvalorizado, em comparação com a lei, e o juiz aparecia como um
elemento de segundo plano, em comparação com o legislador. Não
obstante, a verdade é que, sem o juízo, a lei nem poderia surgir nem
poderia servir aos fins do direito. Em termos históricos, o juízo é
anterior à lei: antes de criador de leis, o chefe se afirma como juiz; a
formação primitiva das leis é o costume, e este supõe uma sequela de
juízos. Por outro lado, sem o juízo, a lei seria um mandato não
cumprido e frequentemente inativo. Quando a lei diz, por exemplo,
“Quem contraiu uma dívida deve pagá-la”, qualquer um de nós, para
saber se tem ou não essa obrigação, tem de verificar se contraiu ou
não uma dívida. Às vezes, essa verificação é feita de imediato,
contudo costuma apresentar dificuldades notáveis, já que nem
sempre as leis são fáceis de serem interpretadas nem os fatos fáceis
de serem comprovados. Uma lei, pois, nunca funciona sem ser
integrada a um juízo das partes. Por sua vez, esse juízo não é
suficiente, na medida em que as partes são impulsionadas por seus
respectivos interesses e, assim, não têm a serenidade necessária para
julgar. Então, no lugar da parte, atua o juiz, cuja sentença integra a
lei, no sentido de que transforma o mandato abstrato e geral da lei
em um mandato concreto e particular. A lei diz “Quem mata um
homem deve ser castigado” ou “Quem contraiu uma dívida deve
pagá-la”, a partir do quê o juiz, tendo verificado que Tício matou um
homem ou contraiu uma dívida, diz “Você, Tício, será castigado se
não pagar sua dívida”.
Não só a lei, mas também a sentença, não são um produto jurídico
acabado, isto é – sem metáforas –, não basta para alcançar os fins do
direito. Para esse fim, o processo executivo é tão necessário quanto o
processo de cognição. Se o direito se limitasse a dizer “Você não deve
matar” ou “Você não deve roubar” ou “Você tem que pagar sua
dívida”, e não houvesse um juiz para condenar o homem que matou
ou que roubou ou que não pagou sua dívida, o direito seria inútil, e
as pessoas de má índole poderiam rir dele. Mas isso também
ocorreria se, depois que o juiz condenasse o homicida, o ladrão ou o
devedor inadimplente, não existisse quem executasse fisicamente a
sentença ou detivesse o ladrão ou o homicida e o retivesse em prisão
ou mesmo tomasse a coisa devida das mãos do devedor.
Portanto, não só o processo é necessário, em geral, a fim de que se
forme o ordenamento jurídico, pois essa necessidade se deve tanto à
chamada cognição quanto à execução forçada. Somente desse modo,
a realidade do direito responde a seu conceito, o qual, como
afirmamos, contém a balança e a espada.
2 [Nota do editorial – tradutor]: Traduzimos reato por delito, dando a esta palavra um
sentido genérico. Como no presente número se faz a distinção entre delitos e
contravenções, tem-se de ter presente que nele a palavra delito, no seu sentido específico,
é a tradução da voz italiana delitto; traduzimos, neste número, reato por infração punível,
tratando assim de evitar a confusão idiomática e jurídica.
VIII
O Estado
Compreendemos, até aqui, que o direito serve para ordenar a
sociedade. A ideia de ordem está contida na ideia de estabilidade. O
caos é essencialmente instável. Entre a sociedade desordenada e a
sociedade ordenada há a mesma diferença que existe entre um
amontoado de materiais e um edifício. Um edifício tem um caráter
de estabilidade. Estável é algo que está. Por isso, a sociedade
juridicamente ordenada se chama Estado.
A ideia de direito e a ideia de Estado estão, portanto, intimamente
relacionadas, porquanto não há Estado sem direito nem direito sem
Estado. A despeito do que alguns têm ensinado, devo destacar que
Estado e direito não são a mesma coisa, o que seria um erro
equivalente a confundir corpo e vida. Outro equívoco é o de crer que
o direito nasce do Estado, como se do corpo nascesse a vida. Em vez
de conduzir ao esclarecimento, a comparação nos leva a
compreender que o direito não deriva do Estado, mas este daquele. O
Estado, isto é, a estabilidade da sociedade, é um produto e mesmo o
produto do direito.
A fim de me fazer compreender, estabeleci um paralelo entre o
Estado e um edifício. Porém, a comparação é exata somente em
parte. Com efeito, um edifício é imóvel, a despeito da mobilidade do
Estado. Uma sociedade que não se move está fora da realidade. De
fato, a sociedade e, portanto, o Estado, estão em contínuo
movimento. O parlamento legisla; os tribunais julgam, absolvem ou
condenam; os ministérios, as prefeituras, os municípios,
administram; os cidadãoscontratam – a tudo isso se dá o nome de
vida do Estado. Muito mais do que a um edifício, o Estado se
assemelha a uma máquina. Todavia, nem essa é uma analogia feliz.
Com efeito, a máquina não se move por si só, mas o Estado, sim. A
força que move a máquina é exterior; a que move o Estado, interior.
Mais que um mecanismo, o Estado é, pois, um organismo. É preciso
refletir acerca disso, com o propósito de que compreendamos melhor
como nasce o direito.
O Estado, tal qual o vemos hoje, é um organismo imenso. É
provável que não existe máquina física tão extensa e complicada.
Dentre outras questões, abordamos, até agora, o chefe como se fosse
uma só pessoa, como, de fato, ocorria nos Estados pequenos, nos
primórdios do direito. Hoje, nos grandes Estados modernos, o chefe
vem a ser um órgão extremadamente complexo, do qual a pessoa do
rei ou do presidente da república não é mais que uma pequeníssima
parte. Juntamente com esse órgão, entram em cena (no sentido de
que concorrem à formação dos mandatos jurídicos, inumeráveis)
outras pessoas, desde os ministros, passando pelos juízes e os
deputados, até os eleitores. Vem, à minha mente, uma dessas árvores
centenárias, que atrevidamente alçam a copa até o céu. Também essa
árvore foi, em algum momento, uma semente, na qual está o segredo
da vida. Qual será, então, a semente do Estado?
“Prima societas in coniugiu est” [‘A primeira sociedade está no
matrimônio’], disse Cícero. Coniugium, de coniungo. O matrimônio,
na linguagem romana, leva o signo da união entre homem e mulher.
De um homem e de uma mulher nasce outro homem. Este não é um
homem qualquer, mas aquele homem em que se fundiram os
caracteres dos dois progenitores: “et erunt duo incarne una” [‘e
serão dois numa só carne’]. As descobertas da genética eram
necessárias para interpretar essa frase admirável do Mestre. A
família é verdadeiramente a célula da sociedade. A célula, como
ensinam os biólogos, é o elemento simples de todo organismo. Nela,
está contido o mistério da vida. Derivam da célula, além dos
organismos individuais, também os organismos sociais. Ela resulta
sempre da unidade de dois elementos, o masculino e o feminino. Da
célula se engendram outras células – a família é assim.
Nem a geração poderia ocorrer sem um terceiro elemento, ao qual
os biólogos (mais especificamente, os citologistas, que são os
estudiosos das células) têm dado o nome de membrana celular.
Quando o conceito é transportado ao terreno sociológico, a
membrana celular corresponde à domus, à casa, uma espécie de
tabernáculo dentro do qual se cumpre o prodígio da geração. Isso
explica não só o valor por uma parte da casa no que toca à política
(que é, ou deveria ser, a ciência do Estado), mas também o valor do
território, como elemento do Estado, como elemento cuja existência
e até cuja necessidade são reconhecidas pela ciência do direito, a
qual, todavia, nem sempre chega a esclarecer a posição e a relação
com o povo.
A história do direito ensina que a família tem sido, em sua origem,
uma miniatura do Estado, monárquico por excelência, dominado por
um rei ou por uma rainha, segundo as duas diretrizes do patriarcado
ou do matriarcado. Os historiadores do direito, especialmente do
direito romano, comprovaram esse caráter político da família. Em
seguida, o Estado foi crescendo pouco a pouco. A família (gens) e a
cidade (polis) são as primeiras fases do desenvolvimento. Após isso,
o Estado continua expandindo-se. Não é preciso retroceder muito a
história para comprovar essa evolução evidenciada nos últimos
séculos de desenvolvimento da história italiana.
De qualquer modo, importa ter claro de que, se a evolução agrega
progressivamente algo ao que antes existia, o que antes existia não
deixa, com isso, de existir. Quero dizer que unidades menores não
desaparecem porque se formam unidades maiores. A família está
compreendida, mas não absorvida, na gens (‘gente’); da mesma
maneira, a gente na tribo ou na cidade; a cidade na província, na
região, no Estado. Este se chama necessariamente a unidade
superior, no entanto as unidades inferiores, ainda quando trocam de
nome, não perdem nem a estrutura nem a função. Há que se
considerar essa verdade para compreender a estrutura, ou melhor, a
natureza do Estado. Em toda a história do pensamento humano, a
pretensão de negar a família para afirmar o Estado é uma das mais
insanas aberrações que se possam adotar. Sem a família, o Estado
não pode viver, assim como não se poderia construir um edifício se
permanecessem desagregados os tijolos. Um Estado sem família é
absurdo, tal qual um corpo humano sem células. Assim como a saúde
do corpo humano depende da permeabilidade das células ao
misterioso fluxo vital, assim também a saúde do Estado depende da
coesão da família, ou seja, da circulação do amor entre os membros.
O Estado é verdadeiramente uma universitas, o que significa a
versio in unum, a redução à unidade dos homens que o integram.
Essa redução se opera mediante uma série de estruturas
progressivas, cujo estudo é, ou deveria ser, a principal incumbência
da sociologia. É impossível compreender o Estado se não se percebe
a sua complexidade ou até mesmo o seu fator complicador. Até
agora, não se tem conseguido um pleno conhecimento dele, nem por
meio do pensamento empírico nem sequer do científico. É comum
que se faça, do Estado, um conceito mais parcial do que inexato, no
sentido de que compreendemos só algumas das estruturas que
realmente o compõem. Assim, quando se fala dele, pensa-se no
presidente da república, no governo, no parlamento, nos tribunais,
nos municípios, mas não, por exemplo, na família e, menos ainda,
nas associações, nas sociedades, nos consórcios, nos sindicatos, em
sua variedade sempre crescente. Entretanto, ainda que essas
estruturas não estivessem compreendidas no Estado, os cidadãos
também não fariam parte dele. Estes, se devem estar contidos nele,
não podem estar compreendidos numa singularidade abstrata de si
mesmos, mas na variedade e na complexidade real dos grupos de que
fazem parte.
IX
A Comunidade Internacional
Na última de nossas conversas, tratando de delinear o conceito de
Estado, vimos que este vai desenvolvendo-se no tempo, como se
pudesse ser comparado a uma planta cujo minúsculo germe foi a
família, mas que cresceu até chegar a obter hoje as dimensões de
uma árvore centenária. Cumpre agora estudar esse desenvolvimento,
sobretudo com o fim de saber se a dimensão atual corresponde ao
amadurecimento ou se, pelo contrário, é possível prever – e até que
limite – a configuração futura.
A atual fase do Estado se define com a fórmula do Estado
nacional. Diferentemente da acepção de Estado, o conceito de nação
não pertence ao direito mas à sociologia, ou melhor, à etnologia.
Nação deriva de gente (gens, de gignere) e expressa, portanto, um
grupo proveniente de um tronco comum. O índice mais explícito
dessa comunidade é a língua. Pouco a pouco, por meio dos
movimentos e das agitações da história, o Estado veio assentando-se
sobre a nação, devido à coincidência dos limites de ambos. Uma das
forças ideais que operaram no século passado e continuam agindo
em nossos dias é o princípio da nacionalidade, entendido
precisamente como a aspiração de cada nação possuir seu próprio
Estado.
A fórmula do Estado nacional não é, pois, uma fórmula absoluta
do Estado moderno, no sentido de que hoje já existem Estados
ultranacionais ou supranacionais. O exemplo mais interessante é a
Confederação suíça. A palavra confederação não deve induzir a
engano, fazendo crer que não se trate de um Estado unitário. Pelo
contrário, indica tão somente um caráter da organização jurídica
deste, que é a descentralização. A Suíça é um Estado unitário, porém
descentralizado, como é o caso dos Estados Unidos da América, que,
de modo algum, são um conglomerado de Estados, mas um só
Estado, embora também descentralizado. A presença de Estados
plurinacionais estimula, pelo menos, a dúvida sobre a possibilidade
de a fase nacional do Estado poder ser considerada como a última

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