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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Carnelutti, Francesco, 1879-1965. Como nasce o direito / Francesco Carnelutti ; [tradução Roger Vinícius da Silva Costa]. -- São Paulo : Editora Pillares, 2015. Título original: Come nasce il diritto. 1. Direito 2. Direito - Filosofia 3. Direito - Introdução 4. Direito - Teoria I. Título. 15-01499 CDU-34 Índices para catálogo sistemático: 1. Direito 34 e-ISBN 978-85-8183-067-4 © Copyright 2015 by Editora Pillares Ltda. Conselho Editorial: Antônio Fábio Medrado de Araújo Armando dos Santos Mesquita Martins Gaetano Dibenedetto Ivan de Oliveira Silva Ivo de Paula José Maria Trepat Cases Luiz Antonio Martins Roberto Victor Pereira Ribeiro Wilson do Prado Tradução e Notas: Roger Vinícius da Silva Costa Revisão: Geórgia Evelyn Franco Luiz Antonio Martins Editoração e capa: Lye Longo Nakagawa Editora Pillares Ltda. Rua Santo Amaro, 586 – Bela Vista Telefones: (11) 3101-5100 – 3105-6374 – CEP: 01315-000 E-mail: editorapillares@ig.com.br – Site: www.editorapillares.com.br TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e a sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal, cf. Lei no 10.695/2003) com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (Lei no 9.610, de 19-02-98). Apresentação A cidade de Udine, na Itália, tem duas grandes realizações em níveis mundiais. A primeira é por ter sido a cidade que abrigou o alto escalão militar da Itália durante a Primeira Guerra Mundial e a segunda por ter sido berço de Francesco Carnelutti, um dos maiores juristas do mundo em todos os tempos. O calendário apontava o dia 15 de maio, data que também marca o dia mundial da família, quando numa manhã nublada pedia para vir ao mundo o iluminado Francesco Carnelutti. O Ser Supremo no apogeu de sua magnitude fez a permissão. Carnelutti respira, então, o primeiro oxigênio extrauterino no dia 15 de maio de 1879, na então bucólica Udine. Naquele momento, não nascia apenas mais uma criança, nascia para o mundo um dos maiores cientistas jurídicos que se tem conhecimento na História. Advogado, Professor e autor de mais de 40 obras jurídicas e humanísticas. Suas obras até os dias hodiernos são leitura obrigatória nos assentos das academias dos cursos de Direito. Nesta redação, daremos, por conta de sua apresentação, uma especial atenção à sua obra Come nasce il diritto, traduzindo para o nosso vernáculo: Como Nasce o Direito. O livro foi publicado e estreou para o afã dos estudiosos da ciência jurídica no ano de 1961. Nesta obra, Carnelutti já inicia definindo a concepção de Direito aos seus olhos: “Um conjunto de leis que regulam a conduta dos homens”. Antes, entretanto, chama atenção que esse conceito é “uma definição empírica, mas provisoriamente aceitável”. É bom comentar que o primeiro capítulo ou introito da obra chama-se “Direito e Juristas”. Quanto aos juristas, Carnelutti chama-os de operadores do direito. Para ele, “os juristas são os que fabricam o direito. São operadores, sim, mas operadores qualificados; tanto é assim que, antes de fabricá-lo, estudam-no, precisamente na Universidade”. Neste sentido, peço vênia, e com rotundo respeito, para discordar um pouco de Carnelutti. Até entendo a sua concepção de jurista nos idos de 1960, até compreendo esse rótulo de operadores do direito, entretanto, sempre faço uma ressalva com meus alunos: seríamos realmente operadores do direito? Ou seríamos cientistas jurídicos? Há certo tempo cunhei essa expressão, porque acho que somos mais cientistas jurídicos do que operadores do direito. O verdadeiro jurista é aquele que preenche todos os requisitos basilares de uma ciência, quais sejam: pesquisa, estudos prolongados, análises, comparativos, inserção dos aspectos científicos na sociedade etc. O jurista, proveniente do termo giurista, verbete italiano para sinalizar aquele que labora com o Direito para facilitar a pacificação social, pode até ser operador do direito, mas é, antes disso, verdadeiro cientista jurídico. Em segundo momento Carnelutti assevera: “As leis, portanto, são feitas, quase que exclusivamente, por homens que não aprenderam a fazê-las”. Verdade. As leis, mormente, em nosso sistema tripartido de poderes, é incumbência precípua do Poder Legislativo e, neste Poder, às vezes, ingressam homens que não possuem o tato ou o trato com as ciências jurídicas. Não devemos olvidar nunca que uma lei deve ser feita com a sociedade e para a sociedade. Por isso, Rousseau lecionava: “Assim como o arquiteto, antes de erguer um grande edifício, observa e sonda o chão, e examina se pode sustentar o peso da construção, da mesma forma o sábio instituidor não começa a formar boas leis em si mesmas antes de ter observado se o povo a quem ele as destina é capaz de as suportar”.1 Nós, os advogados e cientistas jurídicos, somos os primeiros intérpretes das leis para a sociedade, por isso, nossa missão é deveras importante, chegando a assemelhar um sacerdócio fiel aos princípios altruísticos. Prosseguindo em Carnelutti, lemos: “Se bastassem as leis, não haveria necessidade dos juízes”. O mister de juiz é a própria sociedade posta em função primordial. Como ensinava Edgar de Moura Bittencourt: “O magistrado é um intelectual. […] é ele o juiz, [intimado] a preencher as lacunas da lei, a contornar, quando possível, suas imperfeições, e a orientar a tarefa subsequente do legislador”.2 É necessário que o juiz exale o hálito da lei e que a sociedade sinta, ao cheirar esse aroma, um bom cheiro e assim tenha a sensação de segurança. Afinal, como tão bem apregoava Bergeret: “A lei é morta; O magistrado é vivo. Nisto está a grande vantagem dele sobre ela”. Avançando sobre leis, o jurista italiano tece: “A verdade é que também os cidadãos as aplicam, quando, com base nelas, regulam sua própria conduta, o que quer dizer que também eles se expressam em prosa, fazem o direito sem saber que assim procedem”. Não é somente o poder estatal a fonte inesgotável de normas de direito, também há participação das associações de pessoas que permanecem dentro das fronteiras do Estado, que visam auxiliar a sociedade política a efetivar e disciplinar as normas jurídicas.3 Nunca esquecendo que o artigo primeiro de nossa Carta Maior, em seu parágrafo único, leciona: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”4 Neste sentido, reforça a ilustre doutrinadora Maria Helena Diniz: “Os etnólogos demonstram-nos que qualquer grupo social, por mais rudimentar que seja seu estágio de desenvolvimento, possui, para regulamentar sua vida grupal, um conjunto de normas que rege o comportamento de seus membros, estabelecendo as bases de coexistência entre indivíduos”.5 Mesmo assim, Carnelutti adverte para uma maior cooperação do Estado no ensinamento das questões jurídicas. O Estado, segundo ele, ensina os direitos aos cidadãos, até porque “Se não ministrasse esse conhecimento, o cidadão não estaria sequer em condições de saber quando deveria dirigir-se ao jurista, conforme a dificuldade do caso”. A nosso ver, em plagas brasileiras, muitos ainda não o sabem e, com isso, não buscam os seus direitos por serem néscios nos assuntos jurídicos. Sem contar, ainda, que, em alguns casos, “o tribunal está fechado para os pobres” como observava Ovídio: cura pauperibus clausa est. A sociedade, o cidadão precisa conhecer o aforismo ignorantia legis non excusat, ou seja, a ignorância da lei não desculpa.6 Carnelutti grita: “Esse conhecimento, pois,não deve faltar à cultura comum; caso contrário, seria necessário que cada um dos cidadãos, em todos os momentos da vida, tivesse ao seu lado um jurista a quem pedir conselho sobre o que poderia/deveria fazer”. Daí, porque o nosso papel de advogado, promotor de justiça, juiz e professor se faz tão necessário. Devemos irradiar os conhecimentos, fazendo-os ressoar sociedade adentro, e não fazermos capitanias hereditárias ou monopólios de conhecimentos. Carnelutti observa: “A posição é análoga no campo do direito e no da medicina: chamam-se os advogados, [promotores de justiça] e o juízes, bem como os médicos, quando as enfermidades se manifestam. Todavia, a fim de que estas não apareçam, é necessário difundir, ao povo, conhecimentos elementares de higiene. Afinal, uma certa educação jurídica, caso estendida aos não juristas, é um meio para combater as duas pragas sociais que são a delinquência e a litigiosidade.” Lembrando sempre Pitágoras: “Educando a criança não será preciso punir o adulto”. Francesco adverte que a sociedade fique atenta, pois “antes de acontecer entre os povos, a guerra ocorre entre indivíduos”. As cidades hoje são verdadeiras selvas de pedras; no trânsito, na concorrência para uma vaga de trabalho ou concurso, nas filas, enfim, nas mais simples relações humanas cotidianas. É uma guerra, é um caos! Deve ser hasteado que “o segredo do direito está precisamente nisto: que os homens não podem viver no caos. A ordem lhes é tão necessária como o ar que respiram”. Por isso, digo e ensino: o Direito é uma necessidade fisiológica da sociedade. Chega-se a conclusão que “os homens fazem a guerra, porém necessitam viver em paz. A guerra, pois, não termina com a paz, mas tende a esta. O que põe fim à guerra é o pacto, e a raiz do pacto é pax. […] o homem é essencialmente sociável. Em outras palavras, homem e sociedade são dois lados de uma mesma moeda. Robinson Crusoé é o fruto da fantasia de um novelista7, porém se colocou ao lado de Sexta-feira, sem o qual não poderia ter feito uma novela sequer.” Roma já ensinava: Ubi societas, ibi ius, onde está a sociedade, está o Direito. Deveríamos viver bem com os outros por conta do altruísmo, do carinho, do afeto, do respeito, do amor, mas “se o amor ainda não germina na terra” é preciso encontrar uma outra semente: o Direito! Se o Direito não nos ensina a amar, pelo menos nos cobra o respeito. E o preço pela violação do Direito é muito caro. “Se quem tem não dá espontaneamente a quem não tem, deve-se convencer o primeiro a fazê-lo”. Disso surge, fruto do Direito, a concepção de Estado. O Estado é o pai e a mãe da sociedade e como bom pai/mãe deve suprir a carência dos filhos (a sociedade). O Direito contribui com uma parcela importante quando se prontifica a criar um ramo para auxiliar o Estado na arrecadação e, por conseguinte, na repartição entre os indivíduos necessitados. Falamos do Direito Tributário, seara esta que ordena, disciplina e municia o serviço público, ou seja, aquele que serve quem tem nada tem. O Estado trabalha em cima da grande máxima: “Se quem tem não dá a quem não tem, antes que se inicie a guerra entre eles é preferível que alguém tire de quem tem para dar a quem não tem”. “O Estado é aquilo que deve eliminar a guerra”. Afinal, a união dos filhos (a sociedade) depende muito da consciência dos pais (o Estado). Repito: o Direito é uma necessidade fisiológica do Estado. Carnelutti também pensava assim: “a sociedade juridicamente ordenada se chama Estado”. Estado e Direito são como corpo e vida. Assim como o corpo sem vida é apenas um objeto inanimado, tal maneira é o Estado sem o Direito. Uma anarquia, um caos, uma hecatombe social. Para Carnelutti, o Direito “é, pois, uma combinação de força e de justiça, motivo pelo qual exibe aquele emblema em que a espada está ao lado da balança”. Sem a força da espada para ameaçar os desatinos sociais, talvez o homem “lobo do homem” não compreenderia o organismo vivo que é a sociedade. O Direito deve ser um fogo que clareia os passos dos homens, mas que também os queima se não bem utilizado, isto é, respeitado. Uma coisa é certa, não se deve insultar o fogo, o mar e as forças da natureza. No capítulo de sanções, Carnelutti defende penas sérias, sem requintes de crueldade ou peças teatrais para amedrontar o homem. Para o jurista italiano a pena não deve ser malum passionis propter malum actionis, ou seja, um mal que se sofre pelo mal que se fez. Brilhantemente ele censura a velha e famigerada Lei de Talião e ensina que a pena deve ser, antes de tudo, uma penitência, um arrependimento. Hodiernamente, o sistema penal é baseado na vendicta (vingança), isto é, o delinquente paga pelo que fez igualmente. Seria bem melhor que o homem não quisesse mais cometer delitos por questão de educação e não por medo da repreensão. Há muito a ser mudado, mas a censura e a punição devem existir. O que não se tolera mais e em alguns sistemas penais ainda ocorre é a vendeta, a vingança da vingança. As condições penitenciárias são tão ruins que o apenado ao sair quer se vingar do que passou e voltar a delinquir. O Estado pune (vinga), o apenado cumpre a pena e depois se vinga da vingança estatal que cumpriu. Devemos o mais rápido possível fazer uma reestruturação em nosso sistema carcerário que educa – para sermos sinceros – mas educam para o mal. Os apenados retornam de nossos cárceres pós-doutores em crimes e praticam a vendeta na sociedade. Daí porque Alexandre Lacassagne exortava: “a sociedade tem os criminosos que merece”. Avante! Vamos educar. Celebremos Paulo Freire: “Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas, as pessoas transformam o mundo”. Meus caros leitores, a obra Como Nasce o Direito de Francesco Carnelutti traz essas e muitas outras noções e lições. Trata-se, portanto, de estudo para leitura obrigatória em nossos assentos universitários. ROBERTO VICTOR PEREIRA RIBEIRO Advogado, Assessor Jurídico Especial da Procuradoria Geral de Justiça do Ceará, Jornalista, Escritor, Professor de Direito Penal, Direito Processual Civil, Direito do Consumidor, Introdução ao Estudo do Direito, Membro da Academia Cearense de Letras Jurídicas, do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, Ex-Juiz-Conselheiro do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, secção Ceará e autor das seguintes obras: O Julgamento de Jesus Cristo sob a luz do Direito; O Julgamento de Sócrates sob a luz do Direito; Questões Relevantes de Direito Penal e Processual Penal e Voando com os Deuses da História. 1 ROUSSEAU, J. J. Do Contrato Social. São Paulo: Pillares, 2013, p. 81. 2 BITTENCOURT, Edgard de Moura. O Juiz. Campinas: Millennium, 2002, p. 12. 3 RIBEIRO, Roberto Victor Pereira. Leis e Sociedade. Curitiba: Jornal do Estado, 2010, Coluna “Saber Direito”, seção “Questão de Direito”. 4 Constituição Federal de 1988. 5 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 18a ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. 6 Art. 3o da LINDB (Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro), antiga Lei de Introdução ao Código Civil. 7 Daniel Defoe. Introdução Direito e Juristas Desde já, tratemos de definir esses dois termos, de forma aproximada, como convém para ter um ponto de partida. Tenho certeza de que, na mente de meus leitores, a palavra direito suscita a ideia de lei; inclusive, desses conjuntos de leis que se chamam códigos. É uma definição empírica, mas provisoriamente podemos aceitá-la: um conjunto de leis que regulam a conduta dos homens. Já veremos como e por quê. Em outras palavras, é a definição predominante, até agora, também no campo da ciência. E os juristas? Diria-se que são operadores do direito. Isso também é aceitável. A comparação entre o direito e uma fábrica é cômoda e nada tem de casual: os juristas são os que fabricam o direito. São operadores, sim, mas operadores qualificados; tanto é assim que, antes de fabricá-lo, estudam-no, precisamente na universidade. Não obstante, basta uma experiência mínima para demonstrar que a fabricaçãodo direito é exercida também por operadores não qualificados. Com efeito, as leis são feitas nos parlamentos, que, ainda mais com o sufrágio universal, não se compõem unicamente de juristas. É verdade que os projetos sobre os quais discute e delibera o parlamento são, quase sempre, preparados por juristas; contudo, os não juristas, mesmo quando não formam sozinhos as leis, certamente concorrem para a formação destas. Mesmo nesse procedimento, ocorre o contrário do que vemos nas fábricas, nas quais os operários executam as ordens dos superiores. De fato, no parlamento, são os operários que predominam ou que, pelo menos, podem predominar. As leis, portanto, são feitas, quase que exclusivamente, por homens que não aprenderam a fazê-las. Pois bem, é necessário acrescentar que, quando sai do gabinete legislativo, o direito não é mais um produto acabado; pelo contrário, para poder ser consumido, deve ser submetido a uma elaboração ulterior. Na verdade, o que fazem, os juízes, a não ser algo que pode ser adequadamente equiparado ao tecido de lã fiada ou desenredada? Se bastassem as leis, não haveria necessidade dos juízes, não é verdade? Também os juízes, pois, são construtores do direito. Todos podem imaginar a diferença entre o legislador e o juiz: o primeiro forma as leis, o segundo as aplica. Mas não procede que essa aplicação seja obra exclusiva dos juízes. Aplicar uma lei quer dizer confrontá-la com uma situação fática a fim de saber o que se pode e o que não se pode fazer. Se, ao passar diante de uma frutaria, tenho vontade de comer uma maçã e me vem a tentação de esticar a mão e pegá-la, mas, em troca, pago o preço e a compro, realizo, sem me dar conta disto, o mesmo raciocínio que teria o juiz, caso, tendo cedido à tentação, me declarasse culpado do furto. Ah! se, para aplicar as leis, os juízes tivessem de intervir em todos os casos!... A verdade é que também os cidadãos as aplicam, quando, com base nelas, regulam sua própria conduta, o que quer dizer que também eles, como o Burgués gentilhombre1 se expressava em prosa, fazem o direito sem saber que assim procedem. Em outras palavras, o juiz só intervém, para finalizar o produto semielaborado, quando os cidadãos não conseguem fazê-lo sozinhos. Se os juristas, dessa forma, são os operadores qualificados do direito, nem tudo, em direito, é obra deles. Pois bem, pode-se admitir que não há necessidade de um treinamento específico para fazer a aplicação das leis exigidas pela vida cotidiana, assim como para promover, no parlamento, a formação delas, enquanto existem operadores qualificados, que são os juristas, aos quais se recorre em caso de necessidade. Porém, esse posicionamento supõe que, na cultura geral, que deve ser fornecida ao cidadão a fim de que possa regular-se na vida cotidiana, se inclua um conhecimento genérico do direito. Se não se ministrasse esse conhecimento, o cidadão não estaria sequer em condições de saber quando deveria dirigir-se ao jurista, conforme a dificuldade do caso. Com efeito, muitos inconvenientes nascem, por exemplo, em matéria contratual, precisamente porque quem celebra contratos ignora as consequências que deles podem derivar. Essa verdade se torna mais evidente no campo do direito penal. Logo veremos que o Código Penal foi feito para permitir que os cidadãos se abstenham de certos atos que se consideram gravemente nocivos ao bem comum e realcem outros atos que são necessários a esse mesmo bem comum. Entretanto, como se poderá alcançar esse resultado, se não se fazem conhecer as leis que compõem o referido código? Há, neste, um artigo em virtude do qual, como afirmamos, ignorantia legis non excusat (“a ignorância da lei não desculpa”). Ou seja, significa que um cidadão, uma vez que tenha contrariado um preceito penal, não pode desculpar-se dizendo que não o conhecia. Esse conhecimento, pois, não deve faltar à cultura comum; caso contrário, seria necessário que cada um de nós, em todos os momentos da vida, tivesse a seu lado um jurista a quem pedir conselho sobre o que poderíamos/deveríamos fazer. Em suma, se a instrução jurídica superior deve reservar-se aos juristas, não se pode deixar de repartir a todos os cidadãos uma instrução inferior. A posição é análoga no campo do direito e no da medicina: chamam-se os advogados e os juízes, bem como os médicos, quando as enfermidades se manifestam. Todavia, a fim de que estas não apareçam, é necessário difundir, ao povo, conhecimentos elementares de higiene. Afinal, uma certa educação jurídica, caso estendida aos não juristas, é um meio para combater as duas pragas sociais que são a delinquência e a litigiosidade. Sob esse aspecto, dizíamos, o ordenamento dos estudos vigente na Itália, especialmente no que toca ao ensino médio, é gravemente defeituoso. Seja para fins formativos, seja para fins informativos, é dizer, tanto para a formação do caráter como para o treinamento técnico para os vários encargos sociais, é necessário um mínimo de conhecimentos jurídicos. A respeito da segunda dessas finalidades, é inútil insistir, tão evidente é a questão. Particularmente sobre o direito penal, este provavelmente deveria ser ensinado no período fundamental, com forma e profundidade adequadas, é claro. Em outro viés, chamo a atenção sobre o valor formativo do direito, que não é menor do que o da matemática, por um lado, nem do que o da música, por outro. Esses são fatos que muitos dos juristas ainda não conhecem a fundo, mas é possível que, ao final de nossa reflexão, se esclareçam um pouco. Assim, este texto se propõe a suprir ou a começar a suprir, na medida do possível, a grave deficiência do ensino básico quanto a esse delicadíssimo tema. 1 [Nota do editorial – tradutor]: Em francês, Le Bourgeois gentilhomme, trata-se de uma comédia-balé de Molière (1622-1673). Sumário I Direito e Economia II Direito e Moral III O Delito IV A Propriedade V O Contrato VI A Lei VII O Juízo VIII O Estado IX A Comunidade Internacional X A Jurisprudência I Direito e Economia Ao começar a falar-lhes noutro dia, apresentei o exemplo de alguém que, ao passar diante de uma frutaria, rouba ou compra uma maçã. Estes atos, do roubo ou da compra, são jurídicos: porém, antes que ao campo do direito, pertencem ao da economia. São atos econômicos todos aqueles mediante os quais os homens tratam de satisfazer suas necessidades. A palavra economia, que vem do grego, até expressa literalmente essa ideia, porquanto oikos quer dizer ‘casa’. A casa é um direito fundamental do homem, e até da sociedade, já que provê o ambiente dentro do qual a família, que é a célula da sociedade, pode realizar o milagre da propagação da espécie mas, sobretudo, o da formação do indivíduo. As necessidades dos homens são ilimitadas, e os bens são limitados. Contraditoriamente, enquanto satisfazem certas necessidades, os bens estimulam outras. Para distinguir o homem dos demais animais, a fórmula mais satisfatória é dizer que o homem nunca está contente. Quanto mais tem, mais quer ter. Por isso é que os homens, como ocorre com as nações, fazem a guerra. Agora temos que saber o que é a guerra. A ideia que temos dela costuma ser crua e aproximativa. Mesmo a ciência não se preocupa em defini-la exatamente. Quem fala de guerra pensa em dois povos que se combatem com armas. Essa é, diríamos, a guerra vista com o telescópio. Para compreender o que é a guerra, é preciso empregar, contudo, também o microscópio. Vista de perto, adverte-se que o conceito de guerra depende do conceito de propriedade. Também a propriedade é um fenômeno econômico, em vez de jurídico. É singular que ele também, como a economia, estabeleça relação com a casa; em latim, o vocábulo correspondente a propriedade é dominium, e este vem de domus, que quer dizer ‘casa’. O fato econômico é aquele em virtude do qual alguém, quando tomou algum objeto que lhe serve para satisfazer uma necessidade, quer reter para si esse objeto: o esforço para tomá-lo se prolonga no esforço para conservá-lo. Estabelece-se uma relação física entre ohomem e o bem, o qual fica retido sob seu domínio, ou seja, na esfera submetida a sua força física. Observa-se, nele, uma vinculação entre a casa e o corpo do homem, que é o que lhe pertence mais do que qualquer outra coisa. Forma-se, em torno do indivíduo, uma espécie de círculo ou de recinto, que é precisamente a domus, a casa, entendida não só como abrigo, mas também como conjunto de coisas que lhe servem para a vida. A divisa da economia é, infelizmente, homo homini lupus [‘o homem, para o homem, um lobo’]. Economicamente, o homem se comporta frente a outro homem como um animal de presa. Em vez de permanecer, cada um, com o que conseguiu apreender, vê-se tentado a roubar do outro. A guerra não é, em sua raiz, mais que esse ato de roubar. É invasão do domínio, em outras palavras. Os limites entre o patrimônio de um homem e o de outro homem, em vez de serem respeitados, são violados. Não devemos crer, pois, que a guerra se combate unicamente entre povos e só com armas. À guerra macroscópica, corresponde a guerra microscópica. Também o furto tem a essência da guerra, e não só o roubo, que é o furto com violência, mas também o furto com destreza. Antes de acontecer entre povos, a guerra ocorre entre indivíduos. Se nos parecem estranhas a vinculação e até a identidade entre o furto e a guerra, é porque consideramos esse fato sob o aspecto jurídico, e não sob o econômico. Mas, se não começarmos pela economia e, portanto, não desenvolvendo o conceito da guerra em toda a sua amplitude, não compreenderemos o direito. Observemos, então, que a guerra produz desordem, ou melhor ainda, é desordem. Da ordem, ideia fundamental para compreender o mundo e a vida, basta falar de forma simples: há desordem quando as coisas não estão em seu devido lugar. Sabem que a guerra se resume na desordem? Recordam-se do que era a Itália há pouco menos de dez anos? Não se podia viver naquele caos. O segredo de direito está precisamente nisto: que os homens não podem viver no caos. A ordem lhes é tão necessária como o ar que respiram. Como a guerra corresponde à desordem, a ordem corresponde à paz. Os homens fazem a guerra, porém necessitam viver em paz. A guerra, pois, não termina com a paz, mas tende a esta. O que põe fim à guerra é o pactum, e a raiz de pacto é pax. Outra palavra expressiva é contrato, que, no fundo, quer dizer o mesmo: colocando fim à guerra, os homens, ao invés de estarem uns contra os outros, tratam de ficar juntos. Também o contrato, como a propriedade, é um fenômeno econômico, antes que jurídico. Ao combaterem, os homens alegam que têm necessidade uns dos outros. O homem é essencialmente sociável. Em outras palavras, homem e sociedade são dois lados de uma mesma moeda. Robinson Crusoé é o fruto da fantasia de um novelista, porém se colocou ao lado de Viernes, sem o qual não poderia ter feito uma novela sequer. Necessidade de paz e necessidade dos demais homens é a mesma coisa. Como o domínio, como a guerra, assim também o tratado de paz é, portanto, um produto da economia pura. Porém, enquanto se mantém no terreno puramente econômico, o contrato não oferece, à paz, nenhuma garantia. Economicamente, o contrato é a expressão de um equilíbrio alcançado pelas forças contrárias dos combatentes. Em uma luta, chega-se inevitavelmente ao ponto morto, quando algum dos dois tem a sensação de não poder obter um resultado melhor do que o já alcançado, de maneira que seguir combatendo redundaria somente em perda. Então, os combatentes fazem a paz. Mas esta é uma expressão eufórica, que não corresponde à realidade. Com efeito, mais do que de paz, trata- se de uma trégua. De fato, quando, depois do necessário repouso, um dos adversários acredita ter forças que lhe permitam melhorar a situação estabelecida pela trégua, reinicia-se a luta. No campo da economia, portanto, nunca há paz verdadeira. Toda a história da economia é uma sucessão de lutas e tréguas, pois a pausa entre duas guerras não é paz verdadeira. A conclusão que tiramos disso é que a economia não é suficiente para colocar ordem entre os homens e satisfazer, assim, o que constitui a necessidade suprema do indivíduo e da sociedade. II Direito e Moral Se quiséssemos resumir em uma breve fórmula as razões pelas quais os homens não conseguem viver em paz no terreno da economia, poderíamos dizer que a economia é o reino do eu, ou seja, do egoísmo. No terreno da economia, encontram-se os diversos egoísmos, tanto dos homens quanto dos povos. Por isso, é, por si mesmo, o reino da desordem. Para por ordem no caos econômico e, desse modo, fazer com que os homens vivam em paz, é necessário substituir o egoísmo pelo altruísmo, o eu pelo tu. Se a economia é o reino do eu, o reino do tu é a moral. Em relação a isso, falou Kant sobre o respeito; porém, a fórmula cristã, incomparavelmente mais clara e vigorosa, propõe o amor ao próximo como solução do problema. É evidente que, se quem tem dá espontaneamente a quem não tem, amando-o como a si mesmo, e, se quem recebe se contenta com o recebido, porque também este indivíduo responde com amor, desaparece a guerra. Da mesma maneira, é claro que, quando se compõem, no amor, os conflitos de interesses entre os homens, já não há lugar ao emprego da força para que estes sejam contidos. Por isso, a moral, como reino que é do amor, é também o reino da liberdade. Tudo isso é fácil de dizer; todavia, quando se trata de colocar em prática, hic sunt leones [‘aqui há leões’]. Cristo ensinou que o amor ao próximo e o amor a Deus se implicam reciprocamente, daí que o amor ao próximo seja a perfeição do homem. Mas quanto é necessário para ser perfeito? Amar o outro quer dizer identificar-se com ele, colocar o outro no mesmo nível que a si mesmo. E isso não pode ser menos do que a meta do percurso, longo e penoso, à qual, salvo exceções de certos caracteres privilegiados, os indivíduos, como os povos, não podem chegar senão mediante um lento processo de toda a vida. Mas e até lá? A necessidade que os homens têm de eliminar a guerra é imediata. É necessário, a qualquer custo, pôr ordem no caos. Se o amor ainda não germina na terra, é preciso encontrar um substituto. Se quem tem não dá espontaneamente a quem não tem, deve-se convencer o primeiro a fazê-lo. É preciso inventar algo que consiga, a respeito da economia, os mesmos efeitos que a moral. E, se não forem os mesmos, paciência, ao menos que se possam aproximar deles. Esse substituto da moral é o direito. Tem-se, então, uma ponte entre a moral e a economia; conclui-se uma espécie de compromisso entre elas. Porém, logo será explicado como isso pode ocorrer. Todos compreendem que acontece assim: se quem tem não dá a quem não tem, antes que se inicie a guerra entre eles é preferível que alguém tire de quem tem para dar a quem não tem. Mas quem será esse alguém? Não há resposta se não se parte do fato de que os homens são distintos entre si: mais ou menos fortes, mais ou menos jovens, mais ou menos inteligentes, mais ou menos belos, mais ou menos bons, e nunca é idêntica a medida do “mais” ou do “menos”. Inclusive nas sociedades primitivas, há indivíduos privilegiados, que exercem naturalmente sobre os outros a função de chefe ou de cabeça. Menemio Agripa, com o famoso apólogo, se aproximou da verdade mais do que creram ele mesmo e os demais. A sociedade tem uma cabeça pela mesma razão por que a tem o corpo humano. Não é que a sociedade se assemelhe a um organismo vivo: ela é um organismo vivo. A sociologia é um capítulo da biologia. A cabeça, entre outras coisas, vê e ouve, enxerga e escuta. É singular o parentesco filosófico entre captut y capio, de que vem nosso capire, ‘captar’ ou ‘compreender’. O chefe capta ou compreende mais que os demais, ou melhor ainda, capta ou compreende pelos demais. O que a cabeça ou o chefe compreende é, simplesmente, aquilo que deve eliminar a guerra. Sua compreensão é lenta e cansativa. Geralmente, sente a necessidade de eliminar a guerra para fazer a guerra: jogo de palavras que se esclarece precisando: eliminar a guerra entreos seus, para fazer a guerra contra os demais. A história, incluindo a pré-história, demonstra que a guerra vai, progressivamente, deslocando-se dos indivíduos aos povos. Os romanos, por exemplo, para guerrear contra os demais povos e conquistar pouco a pouco, não só na Itália, mas boa parte do mundo então conhecido, teria necessidade de ordem interna. “Concordia minimae res crescunt, discordia maximae dilabintur” [“Pela concórdia, as coisas mínimas crescem; pela discórdia, até as maiores sucumbem”], dizia sua sabedoria. Se não tivessem permanecido concordes e unidos, não teriam podido impor-se aos demais povos. No entanto, para que os romanos se impusessem aos outros povos, era necessário que alguém se impusesse aos romanos. Posto que estes não tinham em si uma dose de moralidade suficiente para abster-se espontaneamente da guerra entre si mesmos, era necessária uma cabeça para que fizessem por força o que não sabiam fazer por amor. A imposição, naturalmente, não pode ser mais que o efeito de um mandato. O chefe é aquele que manda (iubet). Precisamente em sua denominação (ius), o direito se vincula à ordem. E o que é uma ordem? Antes de tudo, um preceito: é uma indicação de uma conduta a ser seguida: “faça isto”, “não faça aquilo”. Trata-se de uma indicação que, por si só, pode persuadir quem a recebe; no caso, quem a faz, é um verdadeiro chefe e, como tal, está provido de autoridade. Porém, quando se trata de seus interesses, e sobre tudo dos referentes ao patrimônio, é difícil que um homem se preste ao sacrifício de não procurar sua própria satisfação ou de, pelo menos, limitá-la. Por isso, embora pareça suficiente, nem sempre o preceito basta; inclusive, em várias circunstâncias, não bastaria se não estivesse reforçado por uma ameaça à qual se dá o nome de sanção. Dessa maneira, passa a ser uma ordem: se você fizer o que eu lhe proíbo que faça, será castigado; se você não der o que lhe é ordenado que dê, perderá o que tem. A sanção introduz a força na noção de direito, porque, naturalmente, enquanto não se obedece ao preceito, necessita-se da força para ser posta em ação. Esse elemento da força constitui a verdadeira diferença entre o direito e a moral, daí a naturalidade do direito, em comparação com a sobrenaturalidade da moral. Por essa razão, o direito nasce sob o signo da contradição: serve-se da guerra para combater a guerra: para que o bandido não ataque o transeunte, o policial ataca o bandido. Contudo, se o policial distingue o direito da moral, o uniforme distingue o guarda do bandido, precisamente porque o bandido faz apenas economia, ao passo que o policial faz direito, porquanto este ostenta o signo da dignidade que tem. Isso quer dizer que, se o meio de que ambos se servem é sempre a força, o propósito ao qual se dirigem é diverso: o bandido combate para si, e o policial pelos demais. O direito é, pois, uma combinação de força e de justiça, motivo pelo qual exibe aquele emblema em que a espada está ao lado da balança. III O Delito O propósito do direito, dizíamos outro dia, é eliminar a guerra. Em ordem lógica, como em ordem histórica, o primeiro mandato do chefe é: “Não faça a guerra, pois, do contrário, será castigado”. Assim, onde impera o direito, desaparece a guerra, e em seu lugar entra o delito. Isso não quer dizer que desapareça de uma vez o fato a que se dá o nome de guerra, mas somente que se troca de nome. Sob essa troca está, naturalmente, uma mutação radical do valor social da guerra. Antes, era permitido fazer guerra; depois, passou a ser proibido. Antes, quem a fazia era respeitado; depois, depreciado. Antes, ao vitorioso era declarado o triunfo; depois, a prisão. Antes, o espólio era seu; depois, tomado. Essa é a razão pela qual hoje se fale de guerra só entre os povos, e não entre os indivíduos: a guerra entre os indivíduos passou a ser um delito. O único resíduo da guerra admitido entre os indivíduos é o que recebe o nome de legítima defesa: ainda hoje, quem é injustamente agredido pode reagir através da força. A guerra, temos dito, é a invasão do domínio alheio. Por isso, as formas primordiais do delito são o homicídio e o furto: trata-se da agressão ao domínio em suas formas elementares: o corpo humano e as coisas. Sob esse aspecto, os dois primeiros preceitos jurídicos são: não matar e não roubar. A esses preceitos está unida a sanção: se você matar ou roubar, sofrerá isto ou aquilo. Mas o que você sofrerá? Sofrerá duas coisas. Primeira: uma vez que tenha roubado, será posto em prisão. Segunda: a coisa roubada lhe será tomada para ser restituída ao dono. Essas duas sanções são denominadas sanção penal e sanção civil, de pena e restituição. Assim, surgiu o conceito rudimentar de delito: um ato, isto é, um fato voluntário do homem, prejudicial à ordem social e, por isso, reprimido com pena e com restituição. O homicídio e o furto, figuras originárias do delito, deixam transparecer, no delito, o rastro da guerra. Pouco a pouco, à medida que a sociedade se civiliza e, portanto, se organiza juridicamente, vão manifestando-se outras formas de delito. Acrescentados, à sociedade, o sentido e a necessidade de ordem, multiplicam-se os preceitos penais e, com eles, as figuras do delito. Quando se conceitua uma conduta tal que determine uma desordem nociva à vida em comum, é castigada com a pena. Isso explica o fato de que, nos códigos penais modernos, as figuras do delito sejam tão numerosas, que não é possível enumerá-las aqui, nem sequer em suas mais altas manifestações: o estudo dessas figuras constitui objeto de um dos principais ramos da ciência do direito, que se chama direito penal. A evolução do ordenamento jurídico está, precisamente, no sentido do emprego da pena a fim de reprimir uma variedade cada vez maior das chamadas condutas antissociais. Até certo ponto, esse enriquecimento da esfera penal corresponde à linha do desenvolvimento do direito. É certo que, segundo essa linha, se castiguem penalmente certos atos prejudiciais à sociedade, ainda que tenham sido cometidos sem a vontade de fazer o mal, por imprudência ou negligência (daí a distinção entre delitos dolosos e delitos culposos); outros tipos, que produzem um dano social, não por ter sido feito algo que não deveria ser feito (por exemplo, não socorrer um homem em perigo de morte, donde a distinção entre delitos comissivos e delitos omissivos); e, finalmente, no sentido de que se castiguem atos que não têm uma substância de verdadeira imoralidade, mas que, todavia, são ou podem ser nocivos à convivência social, os quais tomam o nome de contravenções. Em vez disso, é lícito duvidar de que a tendência a reprimir penalmente certos atos, só por sua oposição, responda ao desenvolvimento filosófico do direito, não à ordem social, mas a certas formas de ordenamento político: esse aspecto da evolução do direito penal, pela qual se apresenta o mencionado delito político ao lado do delito comum, apesar de sugerir ao estudo muitas reservas, vai tomando hoje consistência cada vez maior, e apresenta talvez um sintoma alarmante da degeneração do ordenamento jurídico. Ocorre, desse modo, que pouco a pouco o conceito de delito vai sendo deslocado. Em sua origem, o delito deveria ser um fato imoral que, pela gravidade do dano que dele se segue para a ordem social, é castigado com a pena. Em outros termos, o centro de gravidade do delito estaria na moral. Em virtude da evolução a que me referi, um fato se qualifica como delito, não tanto por razões morais, mas por razões jurídicas, ou seja, não tanto porque merece ser castigado, mas porque é castigado. O caráter positivo do delito consiste, pois, na punibilidade de um fato cometido pelo homem. O que é, então, a pena? A palavra mesma diz que é uma dor. A pena tem, portanto, uma função aflitiva: faz sofrer. E por que faz sofrer? Evidentemente, porque a ameaça do sofrimento, no qual consiste a sanção penal, serve para reprimir a prática do delito, constituindo um estímulo contra a tentação. Fala-se, a esse respeito, de uma função intimidativada pena, a qual serve, portanto, para a prevenção dos delitos. A prevenção, diz-se, é geral ou especial: geral quando se dirige aos demais, que, ao ver castigado o delinquente, presenciam um exemplo saudável; e especial quando a experiência do castigo ensina, ao próprio castigado, a não reincidir. A pena, contudo, só serve para prevenir outros delitos? Há quem responda que sim. É uma das mais antigas e mais graves questões saber se se castiga só ne peccetur (a fim de que não se peque) ou também quia peccatum est (porque se pecou), ou seja, se a pena, além da função preventiva, tem também função repressiva. Em geral, os que sustentam a função repressiva a explicam pela necessidade de retribuir o mal com o mal, daí que a função repressiva se resolva na função retributiva e que se defina a pena como malum passionis propter malum actionis (‘um mal que se sofre pelo mal que se fez sofrer’). Embora ainda predominante, essa concepção é contrária, em primeiro lugar, ao ensinamento de Cristo, o qual disse, claramente, que não é a alma, senão um bem, o que pode vencer o mal. O vício lógico dessa concepção está em confundir o mal com a dor. Que a pena seja uma dor é aceitável, mas que a dor seja um mal é um erro. Se a pena, pois não pode ser um mal, teremos de considerá-la um bem? Sem dúvida, posto que a dor é o meio da redenção. A via pela qual a pena vem a ser um bem é o arrependimento. A função repressiva da pena está contida, portanto, na penitência. Essa é uma verdade intuída por quem designa ao castigo a finalidade de recompensa. Porém, a intuição ainda não tem sido traduzida em ação. Nosso sistema penal continua sendo dominado pelo princípio da retribuição, que não é mais do que um resíduo da vendicta (‘vingança’). Em outras palavras, a pena é objeto de uma concepção física, e não de uma concepção espiritual. Sob esse prisma, que é o mais elevado, a ciência e, mais ainda, a prática do direito penal permanecem muito atrasadas. IV A Propriedade O castigo do furto implica o reconhecimento da propriedade. Nessa simples proposição, expressam-se o nexo e até a correlação entre o direito penal e o direito civil, os quais são a cara e a coroa de uma mesma moeda. Afirmamos, na segunda lição, que a propriedade nasce no terreno da economia, antes que no do direito. Mas, naquele terreno, a tutela da propriedade se ampara, exclusivamente, nas forças do proprietário: se ele não chega a defendê-la, perde a propriedade. Mas, quando quem se apodera das coisas alheias é castigado, ou seja, quando se proíbe o furto, não é só o proprietário quem defende seu domínio, isto é, em primeiro lugar sua casa, pois à porta estão os policiais. Então, a propriedade, de instituto puramente econômico, passa ser um instituto jurídico, e até se converte em um direito. Aqui se apresenta uma espécie de jogo de palavras, acerca do qual devo ser claro. Até agora, temos chamado de direito o ordenamento jurídico, ou seja, o conjunto de comandos que o formam, ou, para que me faça compreender melhor, o conjunto dos códigos e das leis. Mas como se pode chamar de direito também a propriedade? Essa espécie de confusão é desfeita se levarmos em conta as expressões utilizadas pelos romanos, que tiveram um admirável sentido do direito e dos quais, de todos os modos, provém nosso pensamento jurídico. Vimos que os romanos, para significar o direito, diziam ius. Faziam-no assim porque o direito integra um sistema de comandos (iussum, iubere). De que forma se fez, no direito romano, o reconhecimento da propriedade? O furto não tem consistido em levar a coisa de outro sic et simpliciter, mas em levá-la contra a vontade do proprietário. Isso quer dizer que se atribuiu, ao proprietário, o poder de permitir ou de proibir que o outro se apodere de suas coisas – portanto, de um poder ordinatório – poder esse que, precisamente porque se resume em um iubere (mandar), se chamou ius. Se, ao passar por uma frutaria, pego uma maçã sem pagá-la, sou culpado de furto com a condição de que o fruteiro não me tenha permitido pegá-la. Isso significa que a tutela de sua propriedade depende dele, de sua ordem, de sua vontade. A essência do direito é sempre essa, devido ao fato de que a ordem provém do chefe e de que este reconhece de imediato o poder de mandar conforme seus próprios interesses. A verdade é que, quando o dominus proíbe ou permite a alguém entrar em sua casa, faz direito do mesmo modo que o faz o chefe quando este proíbe o furto ou o homicídio. Hoje, a fim de evitar confusões, chama-se direito objetivo o conjunto dos comandos jurídicos e, em particular, o conjunto das leis; e direito subjetivo ao poder de mandar em tutela dos próprios interesses, reconhecendo o indivíduo e, em particular, o proprietário. Até aqui, espero ter esclarecido como a propriedade, de instituto puramente econômico, passou a ser instituto jurídico e, ainda mais concretamente, um direito. Em outros tempos, se alguém queria entrar na casa de outro, o dono da casa não podia contar mais do que com suas próprias forças. Hoje, quando este nega a permissão e o outro insiste, poderá chamar os policiais. A propriedade, portanto, garante ao indivíduo o gozo exclusivo das coisas que são objeto dela, as quais, por isso, se chamam coisas próprias ou suas: coisas imóveis ou móveis, coisas inanimadas ou animadas. Em outras épocas, o homem também podia ser objeto de propriedade, especialmente outro homem, o qual, precisamente porque servia de instrumento, como animal de tração ou de carga, se chamava servus: a abolição da escravidão, devido ao cristianismo, excluiu do âmbito da propriedade o outro homem, mas não o próprio homem, ou seja, o corpo mesmo do proprietário, que é o primeiro objeto de sua propriedade, embora se trate de uma propriedade regulada de forma diferente que a das coisas, justamente no sentido de que a vontade privada lhes é reconhecida, no que toca ao gozo de seu corpo, poderes menos amplos que os correspondentes às coisas. Posso, por exemplo, deixar que alguém mate meu cachorro. Assim, se o mata com meu consentimento, não será castigado. Mas, ainda que eu tenha dado o consentimento para que me matem, isso não impedirá que o responsável seja culpado de homicídio. Que o domínio passe a ser jurídico, é, conforme minha exposição, o término correlativo da proibição jurídica do furto. Propriedade e furto são dois contrários e, como tais, vinculados logicamente. Não se pode proibir o furto sem reconhecer a propriedade, e não se pode reconhecer a propriedade sem proibir o furto. Daí provém a correlação entre o direito penal e o direito civil, os quais representam os dois lados de uma mesma moeda. Em outras palavras, não poderia existir o direito civil sem o direito penal, e vice-versa. A distinção entre eles é, portanto, lógica, e não histórica. No se pode dizer que um tenha nascido antes que o outro, pois nasceram a uma só vez. Assim, à sanção penal, de que falamos nas lições precedentes, agrega-se a sanção civil, e são estes também os dois aspectos da sanção. Para considerar isso, basta pensar que, se o ladrão fosse castigado mas pudesse reter a coisa roubada, não estaria restabelecida a ordem. A fim de que esta seja restabelecida, deverá ser restituída. A segunda forma de sanção, ou seja, a sanção civil ao lado da pena, consiste, pois, na restituição. Os juristas dizem que, enquanto a pena tem caráter aflitivo, o caráter da restituição é satisfatório, já que esta satisfaz o interesse que a transgressão ao comando tinha lesionado, e, assim, o proprietário recupera a coisa da qual havia sido privado. Caso observemos mais atentamente, não obstante, também a restituição tem seu lado aflitivo: com efeito, o ladrão de quem se toma o que tinha roubado sofre ao menos por ter trabalhado inutilmente. Por outro lado, também a pena tem seu lado satisfativo, sobretudo se chega a redimir o condenado. A propriedade é, historicamente, o primeiro dos direitos subjetivos. Cada um destes nasce como propriedade. Porém, à medida que progride o ordenamento jurídico, surgem outrosdireitos subjetivos, tanto no âmbito da propriedade mesma quanto fora dela. O mais importante de tais progressos corresponde à constituição do direito de crédito, ao lado do direito de propriedade. O direito de propriedade é, segundo entendo, o direito sobre a coisa própria, enquanto o direito de crédito tem por objeto a coisa alheia. O nascimento de um direito sobre a coisa alheia, o que, à primeira vista, parece absurdo, vincula-se ao problema da sanção civil, a que nos referimos há pouco. Suponhamos que o ladrão, após consumir a coisa roubada, não esteja em condições de restituí-la. Essa seria uma boa razão para que não tivesse que dar, ao proprietário, alguma outra coisa, em compensação do que lhe tomou? Reside aqui a forma como, ao lado da restituição, se constitui outro tipo de sanção civil, que é o ressarcimento do dano. À vítima do roubo o ladrão deve restituir a coisa roubada, e, se a restituição não vale para reconstituir a situação tal como era antes do delito, o segundo dará à primeira, além de suas próprias coisas, até o limite do dano sofrido por ela. Daí surge um direito, não só sobre as coisas próprias, mas também sobre as coisas alheias, ao qual se dá o nome de direito de crédito. Aqui está o germe de um instituto jurídico que, com o progresso da sociedade e a complexidade cada vez maior das relações econômicas, assumiu, no direito moderno, um prodigioso desenvolvimento, a ponto de que a importância do direito de crédito acabou ultrapassando, hoje, a do direito de propriedade. V O Contrato Vimos que o primeiro instituto econômico é a guerra e que o segundo é a propriedade. O terceiro dos institutos econômicos que explicam o nascimento do direito é o contrato. O contrato, como o domínio, está vinculado logicamente com a guerra: o domínio é um prius dela, e o contrato é um posterius; o domínio a inicia, e o contrato a extingue. Os combatentes, quando chegam ao ponto morto, tratam de assegurar para o futuro as posições conseguidas: o vitorioso, para garantir as vantagens da vitória, e o vencido, para proteger-se contra perdas ulteriores. O contrato implica, pois, uma projeção ao futuro: tem a finalidade de fixar para o porvir certas posições atuais. Por isso é que implica uma promessa recíproca, e a promessa é uma declaração que se refere ao futuro. A promessa se funda na fides, ou seja, em última análise, na moralidade da outra parte. Precisamente para reforçar essa confiança estavam dirigidas certas formas solenes que, no direito antigo, acompanhavam o contrato. Dizíamos que, infelizmente, a economia é inimiga da moralidade. A relação entre as forças, com o decorrer do tempo, desloca-se. Quando um dos contraentes sente ou crê sentir que suas forças cresceram com relação à que eram no momento da conclusão do contrato, vê-se naturalmente determinado a violá-lo. Por isso, dissemos, o contrato, no terreno econômico, vale mais para interromper do que para eliminar a guerra. É, na verdade, mais um instrumento de trégua do que um instrumento de paz. O direito é, ou ao menos tenta ser, um instrumento pacificador. Do mesmo modo que a propriedade é convertida de instituto econômico em instituto jurídico, também o contrato assume eficácia jurídica. Em outros termos, assim como o mandato do chefe garante o domínio, também o contrato o faz. “Uti lingua nuncupassit, ita ius esto”, diziam os Quirites: segundo as palavras pronunciadas, assim é o direito. Isso significa que valia como direito o que com o contrato tinha sido estabelecido, ou, em diferentes e mais precisas palavras, que o contrato vinha a ser um mandamento, e aos contratantes havia sido concedido o poder de se mandar reciprocamente. Nesse sentido, vale atentar para o seguinte: o fato de o contrato ser convertido em jurídico não é mais que um desenvolvimento lógico de o domínio ser convertido em jurídico. Com efeito, qual é o significado de a propriedade ter passado a ser um direito? Nada além do fato de uma pessoa ter o poder de mandar acerca de suas coisas. Porque sou o dono de minha casa, tenho o poder de permitir ou de proibir que alguém entre nela. Porque sou dono de meu cavalo, tenho o poder de permitir ou de proibir que outro faça uso dele. Se o permito, existe aí um contrato, ao qual damos o nome de comodato, caso o indivíduo goze provisoriamente do cavalo, ou de doação, caso dele goze permanentemente. Trata-se de um contrato porque, ao concluí-lo, surgem duas declarações: a de quem dá e a de quem recebe, duas declarações “quae in idem placitum consentiunt”, diziam os romanos, ou seja, que concordam entre si. Por essa razão diz, a lei italiana, que o contrato é um acordo entre as partes para constituir um vínculo de direito, acordo pelo qual os indivíduos que o tenham concluído estão vinculados sob pena de serem obrigados a observá-lo. Os exemplos acima considerados têm relação com algo a que se chama contrato gratuito. Chama-se assim porque há só uma parte que dá, e a outra recebe. Mas se substituirmos a doação pela permuta ou pela venda, ou o comodato pela locação, veremos que o contrato se complica, pois cada uma das duas partes dá e recebe: na permuta, cada uma dá à outra uma coisa diversa; na venda ou na locação, uma dá uma coisa, e a outra dá o dinheiro. Em razão disso, fala-se, nesses casos, de contrato oneroso. Entre os institutos jurídicos, não existe outro caso que, como o contrato, ponha em evidência um processo que eu chamaria de fecundação moral da economia. A economia pode ser comparada à terra sobre a qual a ética espalhou sua semente. Sobre essa terra e a partir dessa semente, nasce, cresce e se agiganta o direito. E não há, no complexo ordenamento jurídico, uma vegetação mais vigorosa que a do contrato. Sem ele, a economia seria um pântano desolado. Com efeito, o contrato é o instrumento jurídico sem o qual não poderiam atuar as duas formas fundamentais de colaboração econômica, que são o intercâmbio e a associação. Os dois contratos típicos, sob esse aspecto, são a venda e a sociedade, mas, em torno deles, vem florescendo e constantemente germina de novo uma flora contratual de maravilhosa riqueza. Basta que cada um dos que me leem observe um pouco, à luz dessas noções elementares, sua vida cotidiana, para se convencer, por um lado, de que sem o intercâmbio ou a associação, não poderia satisfazer adequadamente suas necessidades; e de que, por outro, serve-se continuamente do contrato, da manhã à noite, para se alimentar, para ter uma casa, para cultivar o espírito, para se curar, para se divertir e, em geral, em todas as circunstâncias da vida. O contrato, por sua vez, é a forma historicamente originária de um fenômeno jurídico mais amplo, ao qual se dá o nome de negócio jurídico. Somente há cerca de um século é que a ciência pôde esclarecer essa figura, da qual o contrato é o exemplar mais antigo e, portanto, mais conhecido, porém não o único. O caráter elementar destas lições não me permite aprofundar no tema, que, todavia, não poderia deixar de ser mencionado. Mas talvez um exemplo possa ser suficiente para estimular e orientar a intuição de meus discípulos. Observem, pois, que o proprietário, não só pode doar ou vender a sua coisa enquanto vive, mas que pode também dispor dela para o período posterior a sua morte: esse poder, que em outros tempos era limitado, vem restringindo-se pouco a pouco, por motivos que não posso expor aqui. De toda forma, esse poder existe e provavelmente será conservado. O ato que exerce essa eficácia ultra vitam (‘além da vida’) é o testamento. Tratem, então, de estabelecer um contraste entre o contrato (de venda, por exemplo) e o testamento. A diferença está em que o contrato, mesmo quando apenas unilateral ou gratuito, supõe sempre o consentimento das duas partes; a mesma doação não produz vínculo algum se o donatário, ou seja, o que recebe, não diz “sim”. O testamento, por seu turno, exerce seu efeito ainda que o beneficiado não se manifeste a respeito dele, porquanto não é necessário que diga “sim”, mas que não diga “não”. Contudo, precisamentepor ele, o testamento (e outros negócios análogos, que não posso mencionar aqui) manifesta com mais clareza a natureza de mandato, ou seja, de exercício do direito: não há um ato que melhor expresse a propriedade do que aquele com o qual o proprietário pode dispor, a respeito de seus bens, para além dos limites da vida. VI A Lei Vimos que a transformação da guerra em delito e a conversão da propriedade e do contrato em institutos de direito dependem, logicamente, de um comando, e que o mandato supõe um chefe que o pronuncia. Mas esse é um esquema bastante vago para quem quer compreender, ainda que em forma rudimentar e sumária, como nasce o direito. Vimos também que o mandato se forma com o preceito e com a sanção, mas resta saber quando e como se forma. O comando deve operar no momento em que dois homens, em vez de entrar em acordo, de respeitar o domínio alheio, de observar o contrato, estão a ponto de entrar em guerra. Nessas circunstâncias, é necessário que percebam a prescrição de uma conduta e a ameaça de uma sanção. Mas é claro que, se a ordem deve operar nesse momento, deve estar formada antes desse momento. Do contrário, apareceria muito tarde. Teoricamente é possível, mas praticamente muito raro, que homens em tais condições se dirijam ao chefe para fazer que este lhes prescreva a conduta idônea, a fim de evitar a guerra. Por outro lado, se o comando deve estar formado antes que surja o perigo da guerra, não pode ser uma ordem específica e concreta, ou seja, dirigido àquelas pessoas às quais se manifesta o perigo. Não pode estar formulada, pelo contrário, senão em forma hipotética ou geral: geral porque se dirige a todos os cidadãos, não a este ou àquele; hipotética porque lhes prescreve uma conduta e lhes ameaça com uma sanção para o caso de que se manifeste entre eles o perigo de uma guerra. Em uma palavra: o chefe não diz a Tício: “Você não deve matar ou roubar, mas, se o fizer, sofrerá uma certa pena, terá que restituir a coisa roubada e ressarcir o dano”. De fato, diz: “Se um cidadão qualquer mata alguém ou rouba algo, serão aplicadas tais e tais sanções”; ou, mais brevemente: “Quem mata alguém ou rouba algo sofrerá estas ou aquelas consequências”. A estes comandos hipotéticos e gerais dá-se o nome de leis. Expliquemos rapidamente o motivo de aplicar esse nome e a natureza da relação entre as leis jurídicas e as leis físicas ou naturais. Ainda que esse seja um problema de reconhecido interesse, o caráter elementar da lição que estou ministrando não me permite expô-lo. Será suficiente indicar que o nome da lei tem sido adotado no campo do direito, e não no da natureza, razão pela qual os juristas forjaram intuitivamente um dos conceitos mais importantes da ciência lógica. A primeira impressão é a de que a lei deve ser expressa ou explícita, no sentido de que deve ser formulada pelo chefe com proposições verbais oportunas. Inclusive nós, italianos, estamos habituados, não só às leis expressas, com também às leis escritas, das quais temos abundantes exemplos em diversos códigos. É certo que a lei é uma declaração cuja vontade pertence ao chefe e que, como tal, deve consistir em um comportamento exterior apto para fazer entender essa vontade. Porém, não afirmamos, com isso, que a única atitude útil para esse fim seja a de falar ou de escrever. Por exemplo, ainda que não diga que o homicida e o ladrão serão castigados, se o chefe castiga uma, duas, dez, vinte, cem vezes o furto ou o homicídio, essa série de castigos dá a entender sua vontade, da mesma forma como o fariam as palavras. As leis podem, pois, ser também não expressas ou, como se costuma dizer, tácitas. À lei tácita dá-se o nome de costume. Com o progresso do ordenamento jurídico, as leis faladas e até as escritas prevalecem cada vez mais sobre os costumes, mas essa regra tem suas exceções. A mais ostensiva dessas exceções se refere ao ordenamento inglês, ou melhor, ao dos países anglo-saxões, todavia essa alusão, ainda que de sumo interesse, não pode ser devidamente explicada, por causa do caráter elementar de meu curso. Compreende-se que quanto mais progride uma sociedade, e com ela o direito, tanto mais se multiplica o número das leis. A comparação entre um código antigo e um código moderno, ou ainda com um sistema de códigos modernos, põe em evidência essa multiplicação. A legislação arcaica romana estava contida nas famosas Doze Tábuas: um monumento legislativo bastante anterior ao código babilônico que toma o nome do rei Hamurabi, que viveu há mais de dois mil anos antes de Cristo. O documento contém pouco mais de uma centena de artigos. Se tivéssemos de contar, por outro lado, os artigos de que se compõe a atual legislação italiana, chegaríamos, sem dúvida, a centenas de milhares. Em determinado momento, nos países de leis escritas, cada uma das proposições das leis, chamadas precisamente de artigos, agrupam-se em certos conjuntos, que são os modernos códigos. Na Itália, atualmente os códigos são cinco: Código Civil, Código Penal, Código da Navegação, Código de Processo Civil e Código de Processo Penal. No entanto, hoje, esses códigos não contêm sequer a maior parte das leis. Além deles, há uma enorme quantidade de outras leis que definiríamos como extravagantes: devido à grande quantidade e a fim de facilitar seu conhecimento e manejo, muitas delas estão coligidas, por iniciativa privada, em outros códigos: Código do Trabalho, Código Administrativo, Código Tributário, Código Sanitário etc. Até certo ponto, essa multiplicação das leis é um fenômeno fisiológico: as leis se multiplicam como os utensílios de que nos servimos em nossas casas ou no exercício das profissões. Não se pode negar, todavia, que, além desse ponto, as leis apresentam algo que se assemelha à obstrução das ruas de nossas cidades pelo excesso de veículos que nestas trafegam. Com cada vez mais insistência, fala-se hoje de uma crise da lei, como um dos aspectos mais visíveis da moderna crise do direito. Também esse é um tema acerca do qual devo limitar-me a uma insinuação, já que não poderia nem estendê- lo nem detalhá-lo, porque constitui um dos problemas mais graves dentre os apresentados à ciência do direito. O que não posso omitir é que os inconvenientes da inflação legislativa não são menores que os devidos à inflação monetária: são, como todos sabem, os inconvenientes da desvalorização. Infelizmente, assim como ocorre com nossa lira,1 hoje nossas leis valem menos que as de outros tempos. Por um lado, em analogia com a produção seriada de mercadorias, a produção das leis sofre de uma queda de cuidado em sua construção. Mas o mais grave está no fato de que, ao crescer em número, não conseguem cumprir sua função. Recorde-se que esta consiste em dar aos homes a certeza do direito, ou seja, em lhes possibilitar saber o que devem ou não fazer e a que consequências se expõem (não) o seguem, daí a necessidade de que as leis sejam, antes de tudo, conhecidas. Mas como pode hoje um cidadão conhecer todas as leis de seu país? Nem o homem que transita pela rua nem mesmo os juristas estão hoje em condições de conhecer mais do que uma pequena parte delas. O ordenamento jurídico, cujo maior mérito deveria ser a simplicidade, acabou tornando-se um complicadíssimo labirinto no qual, não raro, nem aqueles que deveriam ser os guias conseguem orientar-se. 1 [Nota do editorial – tradutor]: Moeda italiana. VII O Juízo O problema do direito, todavia, não se esgota com a formação dos mandatos e, em particular, das leis. Com efeito, um mandato pode não ser obedecido. Não é possível afirmar, por exemplo, que, quando a guerra passou a ser um delito, chegou a ser eliminada da sociedade. A experiência mais elementar desmente esse otimismo: há séculos e séculos, a lei proíbe o homicídio, mas, mesmo num país civilizado como o nosso, quantos homicídios ainda são cometidos? É claro, pois, que à formação das leis deve seguir alguma outra coisa. Por isso, dissemos, na lição introdutória, que as leis são um produto jurídico semielaborado. Essa outracoisa não pode ser mais do que a executada pelas sanções: se alguém mata ou rouba, deve ser encarcerado em prisão; se não restitui a coisa alheia, deve quitá-la; se não paga sua dívida, é preciso cobrar-lhe o que serve para satisfazer o credor. Em suma, trata-se de fazer que se executem as leis, depois de terem sido formadas. O conceito de execução sugere a imagem do carcereiro, como também a do carrasco ou do oficial de justiça, que desaloja de uma casa a pessoa que, sem ter direito, a ocupa; ou detém e vende os bens do devedor inadimplente. Porém, um pouco de reflexão adverte que a coisa não é tão simples e que a execução não exige só a obra daqueles três tipos de sujeitos. Quando se acusa alguém de ter matado um homem, é verdade? O dono de uma coisa argumenta que outro a ocupa sem título, mas o segundo, na maioria das vezes, alega que o tem. O credor afirma que não recebeu o valor, mas e se estiver mentindo? Conforme se pode ver, antes do carcereiro ou do oficial judiciário, entra em jogo outra figura: o juiz, que é verdadeiramente uma figura de primeiro plano. Assim, ao lado da lei, coloca-se o juízo como um dos institutos fundamentais do direito. Em vez de juízo, a ciência moderna prefere falar de processo. Sem me deter na comparação entre essas duas palavras e em seus respectivos conceitos, para a exposição elementar que estou fazendo é razoável atribuir a uma e outra o mesmo significado. O processo, pois, divide-se em duas fases, que se chamam de cognição e de execução. Ademais, segundo a distinção entre direito penal e civil, também o processo se bifurca em processo penal e processo civil. A seguir, tratarei sobre a diferença entre essas categorias. O processo penal, como todos sabem, serve para comprovar e castigar o delito, inclusive, levando-se em conta as contravenções, costuma ser preferível dizer delito2. E o processo civil? Neste, discutem o proprietário e quem ocupou indevidamente sua propriedade; ou o devedor e o credor; ou o esposo, que quer separar- se de sua esposa, e esta, que quer permanecer como tal; entre outros casos análogos. Costuma-se pensar que o processo civil serve, entre dois litigantes, para dar razão a quem a tenha. Isso quer dizer, em linguagem técnica, que concorre para decidir um litígio, isto é, um conflito de interesses, no qual um dos dois interessados demonstra uma pretensão e o outro a rejeita. De acordo com significado da palavra, o processo de cognição, por sua vez, serve para conhecer, em matéria penal, se um cometeu ou não cometeu um delito e, portanto, se deve ou não ser castigado; e, em matéria civil, quem dos dois litigantes tem razão e quem não a tem. Finalmente, com o processo de execução, põe-se em prática a lei, ou seja, modificam-se as coisas da maneira como quer a lei. Entretanto, diferentemente do processo de cognição, que é composto por um dizer (ius dicere, segundo a fórmula romana, donde o nome jurisdição), o processo executivo culmina em um fazer (ius facere). Poderíamos dizer que o processo de cognição se encerra com a sentença, a qual não é mais que um conjunto de palavras, ao passo que o processo de execução mantém preso, na cadeia, o condenado; remove, do local, o ocupante abusivo; toma os bens do devedor, converte-os em dinheiro, que é entregue ao credor. É evidente que o juízo sugere a figura do juiz, em quem a ciência do direito reconhece, cada vez mais, o órgão elementar do direito. Antigamente não se pensava assim. Durante muito tempo, o juízo foi desvalorizado, em comparação com a lei, e o juiz aparecia como um elemento de segundo plano, em comparação com o legislador. Não obstante, a verdade é que, sem o juízo, a lei nem poderia surgir nem poderia servir aos fins do direito. Em termos históricos, o juízo é anterior à lei: antes de criador de leis, o chefe se afirma como juiz; a formação primitiva das leis é o costume, e este supõe uma sequela de juízos. Por outro lado, sem o juízo, a lei seria um mandato não cumprido e frequentemente inativo. Quando a lei diz, por exemplo, “Quem contraiu uma dívida deve pagá-la”, qualquer um de nós, para saber se tem ou não essa obrigação, tem de verificar se contraiu ou não uma dívida. Às vezes, essa verificação é feita de imediato, contudo costuma apresentar dificuldades notáveis, já que nem sempre as leis são fáceis de serem interpretadas nem os fatos fáceis de serem comprovados. Uma lei, pois, nunca funciona sem ser integrada a um juízo das partes. Por sua vez, esse juízo não é suficiente, na medida em que as partes são impulsionadas por seus respectivos interesses e, assim, não têm a serenidade necessária para julgar. Então, no lugar da parte, atua o juiz, cuja sentença integra a lei, no sentido de que transforma o mandato abstrato e geral da lei em um mandato concreto e particular. A lei diz “Quem mata um homem deve ser castigado” ou “Quem contraiu uma dívida deve pagá-la”, a partir do quê o juiz, tendo verificado que Tício matou um homem ou contraiu uma dívida, diz “Você, Tício, será castigado se não pagar sua dívida”. Não só a lei, mas também a sentença, não são um produto jurídico acabado, isto é – sem metáforas –, não basta para alcançar os fins do direito. Para esse fim, o processo executivo é tão necessário quanto o processo de cognição. Se o direito se limitasse a dizer “Você não deve matar” ou “Você não deve roubar” ou “Você tem que pagar sua dívida”, e não houvesse um juiz para condenar o homem que matou ou que roubou ou que não pagou sua dívida, o direito seria inútil, e as pessoas de má índole poderiam rir dele. Mas isso também ocorreria se, depois que o juiz condenasse o homicida, o ladrão ou o devedor inadimplente, não existisse quem executasse fisicamente a sentença ou detivesse o ladrão ou o homicida e o retivesse em prisão ou mesmo tomasse a coisa devida das mãos do devedor. Portanto, não só o processo é necessário, em geral, a fim de que se forme o ordenamento jurídico, pois essa necessidade se deve tanto à chamada cognição quanto à execução forçada. Somente desse modo, a realidade do direito responde a seu conceito, o qual, como afirmamos, contém a balança e a espada. 2 [Nota do editorial – tradutor]: Traduzimos reato por delito, dando a esta palavra um sentido genérico. Como no presente número se faz a distinção entre delitos e contravenções, tem-se de ter presente que nele a palavra delito, no seu sentido específico, é a tradução da voz italiana delitto; traduzimos, neste número, reato por infração punível, tratando assim de evitar a confusão idiomática e jurídica. VIII O Estado Compreendemos, até aqui, que o direito serve para ordenar a sociedade. A ideia de ordem está contida na ideia de estabilidade. O caos é essencialmente instável. Entre a sociedade desordenada e a sociedade ordenada há a mesma diferença que existe entre um amontoado de materiais e um edifício. Um edifício tem um caráter de estabilidade. Estável é algo que está. Por isso, a sociedade juridicamente ordenada se chama Estado. A ideia de direito e a ideia de Estado estão, portanto, intimamente relacionadas, porquanto não há Estado sem direito nem direito sem Estado. A despeito do que alguns têm ensinado, devo destacar que Estado e direito não são a mesma coisa, o que seria um erro equivalente a confundir corpo e vida. Outro equívoco é o de crer que o direito nasce do Estado, como se do corpo nascesse a vida. Em vez de conduzir ao esclarecimento, a comparação nos leva a compreender que o direito não deriva do Estado, mas este daquele. O Estado, isto é, a estabilidade da sociedade, é um produto e mesmo o produto do direito. A fim de me fazer compreender, estabeleci um paralelo entre o Estado e um edifício. Porém, a comparação é exata somente em parte. Com efeito, um edifício é imóvel, a despeito da mobilidade do Estado. Uma sociedade que não se move está fora da realidade. De fato, a sociedade e, portanto, o Estado, estão em contínuo movimento. O parlamento legisla; os tribunais julgam, absolvem ou condenam; os ministérios, as prefeituras, os municípios, administram; os cidadãoscontratam – a tudo isso se dá o nome de vida do Estado. Muito mais do que a um edifício, o Estado se assemelha a uma máquina. Todavia, nem essa é uma analogia feliz. Com efeito, a máquina não se move por si só, mas o Estado, sim. A força que move a máquina é exterior; a que move o Estado, interior. Mais que um mecanismo, o Estado é, pois, um organismo. É preciso refletir acerca disso, com o propósito de que compreendamos melhor como nasce o direito. O Estado, tal qual o vemos hoje, é um organismo imenso. É provável que não existe máquina física tão extensa e complicada. Dentre outras questões, abordamos, até agora, o chefe como se fosse uma só pessoa, como, de fato, ocorria nos Estados pequenos, nos primórdios do direito. Hoje, nos grandes Estados modernos, o chefe vem a ser um órgão extremadamente complexo, do qual a pessoa do rei ou do presidente da república não é mais que uma pequeníssima parte. Juntamente com esse órgão, entram em cena (no sentido de que concorrem à formação dos mandatos jurídicos, inumeráveis) outras pessoas, desde os ministros, passando pelos juízes e os deputados, até os eleitores. Vem, à minha mente, uma dessas árvores centenárias, que atrevidamente alçam a copa até o céu. Também essa árvore foi, em algum momento, uma semente, na qual está o segredo da vida. Qual será, então, a semente do Estado? “Prima societas in coniugiu est” [‘A primeira sociedade está no matrimônio’], disse Cícero. Coniugium, de coniungo. O matrimônio, na linguagem romana, leva o signo da união entre homem e mulher. De um homem e de uma mulher nasce outro homem. Este não é um homem qualquer, mas aquele homem em que se fundiram os caracteres dos dois progenitores: “et erunt duo incarne una” [‘e serão dois numa só carne’]. As descobertas da genética eram necessárias para interpretar essa frase admirável do Mestre. A família é verdadeiramente a célula da sociedade. A célula, como ensinam os biólogos, é o elemento simples de todo organismo. Nela, está contido o mistério da vida. Derivam da célula, além dos organismos individuais, também os organismos sociais. Ela resulta sempre da unidade de dois elementos, o masculino e o feminino. Da célula se engendram outras células – a família é assim. Nem a geração poderia ocorrer sem um terceiro elemento, ao qual os biólogos (mais especificamente, os citologistas, que são os estudiosos das células) têm dado o nome de membrana celular. Quando o conceito é transportado ao terreno sociológico, a membrana celular corresponde à domus, à casa, uma espécie de tabernáculo dentro do qual se cumpre o prodígio da geração. Isso explica não só o valor por uma parte da casa no que toca à política (que é, ou deveria ser, a ciência do Estado), mas também o valor do território, como elemento do Estado, como elemento cuja existência e até cuja necessidade são reconhecidas pela ciência do direito, a qual, todavia, nem sempre chega a esclarecer a posição e a relação com o povo. A história do direito ensina que a família tem sido, em sua origem, uma miniatura do Estado, monárquico por excelência, dominado por um rei ou por uma rainha, segundo as duas diretrizes do patriarcado ou do matriarcado. Os historiadores do direito, especialmente do direito romano, comprovaram esse caráter político da família. Em seguida, o Estado foi crescendo pouco a pouco. A família (gens) e a cidade (polis) são as primeiras fases do desenvolvimento. Após isso, o Estado continua expandindo-se. Não é preciso retroceder muito a história para comprovar essa evolução evidenciada nos últimos séculos de desenvolvimento da história italiana. De qualquer modo, importa ter claro de que, se a evolução agrega progressivamente algo ao que antes existia, o que antes existia não deixa, com isso, de existir. Quero dizer que unidades menores não desaparecem porque se formam unidades maiores. A família está compreendida, mas não absorvida, na gens (‘gente’); da mesma maneira, a gente na tribo ou na cidade; a cidade na província, na região, no Estado. Este se chama necessariamente a unidade superior, no entanto as unidades inferiores, ainda quando trocam de nome, não perdem nem a estrutura nem a função. Há que se considerar essa verdade para compreender a estrutura, ou melhor, a natureza do Estado. Em toda a história do pensamento humano, a pretensão de negar a família para afirmar o Estado é uma das mais insanas aberrações que se possam adotar. Sem a família, o Estado não pode viver, assim como não se poderia construir um edifício se permanecessem desagregados os tijolos. Um Estado sem família é absurdo, tal qual um corpo humano sem células. Assim como a saúde do corpo humano depende da permeabilidade das células ao misterioso fluxo vital, assim também a saúde do Estado depende da coesão da família, ou seja, da circulação do amor entre os membros. O Estado é verdadeiramente uma universitas, o que significa a versio in unum, a redução à unidade dos homens que o integram. Essa redução se opera mediante uma série de estruturas progressivas, cujo estudo é, ou deveria ser, a principal incumbência da sociologia. É impossível compreender o Estado se não se percebe a sua complexidade ou até mesmo o seu fator complicador. Até agora, não se tem conseguido um pleno conhecimento dele, nem por meio do pensamento empírico nem sequer do científico. É comum que se faça, do Estado, um conceito mais parcial do que inexato, no sentido de que compreendemos só algumas das estruturas que realmente o compõem. Assim, quando se fala dele, pensa-se no presidente da república, no governo, no parlamento, nos tribunais, nos municípios, mas não, por exemplo, na família e, menos ainda, nas associações, nas sociedades, nos consórcios, nos sindicatos, em sua variedade sempre crescente. Entretanto, ainda que essas estruturas não estivessem compreendidas no Estado, os cidadãos também não fariam parte dele. Estes, se devem estar contidos nele, não podem estar compreendidos numa singularidade abstrata de si mesmos, mas na variedade e na complexidade real dos grupos de que fazem parte. IX A Comunidade Internacional Na última de nossas conversas, tratando de delinear o conceito de Estado, vimos que este vai desenvolvendo-se no tempo, como se pudesse ser comparado a uma planta cujo minúsculo germe foi a família, mas que cresceu até chegar a obter hoje as dimensões de uma árvore centenária. Cumpre agora estudar esse desenvolvimento, sobretudo com o fim de saber se a dimensão atual corresponde ao amadurecimento ou se, pelo contrário, é possível prever – e até que limite – a configuração futura. A atual fase do Estado se define com a fórmula do Estado nacional. Diferentemente da acepção de Estado, o conceito de nação não pertence ao direito mas à sociologia, ou melhor, à etnologia. Nação deriva de gente (gens, de gignere) e expressa, portanto, um grupo proveniente de um tronco comum. O índice mais explícito dessa comunidade é a língua. Pouco a pouco, por meio dos movimentos e das agitações da história, o Estado veio assentando-se sobre a nação, devido à coincidência dos limites de ambos. Uma das forças ideais que operaram no século passado e continuam agindo em nossos dias é o princípio da nacionalidade, entendido precisamente como a aspiração de cada nação possuir seu próprio Estado. A fórmula do Estado nacional não é, pois, uma fórmula absoluta do Estado moderno, no sentido de que hoje já existem Estados ultranacionais ou supranacionais. O exemplo mais interessante é a Confederação suíça. A palavra confederação não deve induzir a engano, fazendo crer que não se trate de um Estado unitário. Pelo contrário, indica tão somente um caráter da organização jurídica deste, que é a descentralização. A Suíça é um Estado unitário, porém descentralizado, como é o caso dos Estados Unidos da América, que, de modo algum, são um conglomerado de Estados, mas um só Estado, embora também descentralizado. A presença de Estados plurinacionais estimula, pelo menos, a dúvida sobre a possibilidade de a fase nacional do Estado poder ser considerada como a última
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