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<p>FICHA TÉCNICA</p><p>T�����: Aristides de Sousa Mendes — Memórias de um Neto</p><p>A������: António Moncada S. Mendes</p><p>E�����: Luís Corte Real</p><p>Esta edição © 2020 António Moncada S. Mendes e Edições Saída de Emergência</p><p>Por opção do autor toda esta obra se encontra adaptada ao novo Acordo Ortográfico</p><p>R������: Patrícia Espinha</p><p>D����� �� ����: Ana Passos Nascimento e Luís Morcela</p><p>D��� �� E����� E-B���: Abril, 2020</p><p>����: 978-989-8892-74-4</p><p>D����������� � ��� �������� �� G���� S���� �� E���������</p><p>Taguspark - Rua Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva,</p><p>Edifício Qualidade - Bloco B3, Piso 0, Porta B</p><p>2740-296 Porto Salvo, Portugal</p><p>T�� � F��: 214 583 770</p><p>A�������� �� ������ ��������� ��</p><p>���.���.��</p><p>��������</p><p>���������</p><p>� �������</p><p>http://www.saidadeemergencia.com/</p><p>http://www.saidadeemergencia.com/</p><p>https://www.facebook.com/edicoesdesassossego/</p><p>https://www.instagram.com/editora.saida.de.emergencia/</p><p>https://twitter.com/EdDesassossego</p><p>DEDICATÓRIA</p><p>Para a Marguerite, Lea, Jan e Hélène, Stefan e Maria, Angela, Joaquim,</p><p>Martin e os outros.</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Um visto para a vida</p><p>Ser neto do Cônsul de Bordéus é uma marca para a vida. Pelo menos, para a</p><p>minha tem sido. Até porque o meu primeiro “visto” tem a assinatura de</p><p>Aristides de Sousa Mendes. Foi o meu avô que, em conjunto com o seu</p><p>filho mais novo, o meu tio João Paulo, foi testemunha do meu nascimento</p><p>no documento do Registo Civil que deu início à minha existência legal.</p><p>Conforta-me saber que o homem que salvou tantas vidas, com a sua</p><p>assinatura em vistos para quem tentava desesperadamente escapar à morte</p><p>decretada pelo horror nazi, pôs o seu nome no meu “visto para a vida”.</p><p>O meu primeiro encontro com o Cônsul de Bordéus aconteceu ao início</p><p>da tarde de um dia histórico: 1 de outubro de 1949, dia em que nasceu</p><p>oficialmente a República Popular da China. Estava esta grande potência a</p><p>nascer no Extremo Oriente, e eu a nascer na Maternidade Alfredo da Costa,</p><p>em Lisboa. Obviamente, não guardo qualquer recordação deste nosso</p><p>primeiro encontro, mas sei que não foi a burocracia, mas o coração, que o</p><p>fez vir de Cabanas de Viriato (concelho de Carregal do Sal), onde vivia na</p><p>Casa do Passal, a casa de família, a Lisboa, conhecer o rebento do seu sexto</p><p>filho, Geraldo.</p><p>Eu sou um dos 39 netos de Aristides de Sousa Mendes e de Angelina de</p><p>Sousa Mendes do Amaral e Abranches, um casal beirão, da região de Viseu,</p><p>profícuo em filhos e em gestos de amor pelo próximo. Infelizmente, nunca</p><p>cheguei a conhecer a minha avó, que morrera no ano anterior, a 30 de</p><p>agosto de 1948, no dia em que completava 60 anos. Mas não posso deixar</p><p>de pensar no simbolismo de ser o meu avô Aristides a assinar a minha</p><p>certidão de nascimento, um ato burocrático como tantos que executou ao</p><p>longo da vida, mas que foi também um ato de aproximação a um neto, uma</p><p>forma de criar um elo, e de deixar alguma memória escrita.</p><p>Neto de dois gémeos</p><p>Nas minhas recordações também não há qualquer vestígio do primeiro</p><p>encontro com o meu avô materno, César de Sousa Mendes, irmão gémeo do</p><p>meu avô paterno, Aristides. César era meia hora mais velho do que o irmão.</p><p>Também diplomata, César não pôde marcar presença na Maternidade</p><p>Alfredo da Costa, porque na altura exercia funções de ministro</p><p>plenipotenciário (embaixador) em Berna, Suíça. Mas chegou pontualmente</p><p>à Igreja de Fátima, em Lisboa, envergando um dos seus melhores fatos, no</p><p>dia 18 de junho de 1950, para ser meu padrinho de batismo. Foi uma</p><p>cerimónia muito simples, onde estava também o irmão mais novo dos</p><p>gémeos, José Paulo de Sousa Mendes, capitão-de-mar-e-guerra, uma pessoa</p><p>de enorme generosidade e inteligência, a quem chamavam «o pai dos</p><p>marinheiros» na marinha de guerra portuguesa. Estava também a minha</p><p>madrinha, a filha mais velha de César e irmã da minha mãe, Maria Amélia.</p><p>Os gémeos César e Aristides de Sousa Mendes.</p><p>Os gémeos, além da grande parecença física, fizeram também percursos</p><p>de vida muito semelhantes: ambos foram muito dedicados aos pais, ótimos</p><p>estudantes, dotados de uma grande cultura geral e de uma forte formação</p><p>cívica e ética. Casaram-se cedo, seguiram a carreira diplomática, e os dois</p><p>enviuvaram, vindo cada um a ter um segundo casamento. Foram pais de</p><p>família numerosa. E, sobretudo, eram gémeos de alma e de coração.</p><p>Durante toda a minha vida só ouvi dizer bem deles, tanto da parte de</p><p>profissionais, de familiares, de amigos ou de conhecidos, como da parte das</p><p>pessoas que trabalhavam para a família com toda a devoção.</p><p>Sendo neto de dois gémeos tão iguais e que enfrentaram tantas</p><p>provações, senti desde muito cedo que tinha o dever de defender a sua</p><p>memória.</p><p>No caso de Aristides de Sousa Mendes ainda mais, pois a injustiça que</p><p>recaiu sobre ele por ter praticado um enorme gesto de altruísmo durante o</p><p>holocausto da Segunda Guerra Mundial é gritante. Nos anos que se</p><p>seguiram ao processo disciplinar que lhe foi imposto, e no qual não foi</p><p>devidamente ouvido nem defendido, o meu avô foi vítima de troça por parte</p><p>de figuras gradas do regime salazarista, que além de o castigarem de forma</p><p>arbitrária, se apoderaram da autoria do seu gesto humanitário.</p><p>Quarenta e três anos após a queda do Estado Novo, ainda aparecem</p><p>saudosistas do regime que dizem e escrevem coisas execráveis a seu</p><p>respeito, tentando perpetuar a sentença desumana que lentamente o</p><p>consumiu. Mais de 60 anos depois da sua morte, há quem o venha julgar</p><p>uma vez mais, sem nunca ter sabido da sua existência, da sua generosidade</p><p>e dos seus atos em prol dos direitos humanos. E há quem diga que a</p><p>“história” está mal contada.</p><p>Há ainda gente de “elevada formação académica” que se atreve a sugerir</p><p>que Aristides de Sousa Mendes era intelectualmente fraquinho. Só podem</p><p>ser “reencarnações” daqueles que o condenaram em 1940. Como a de um</p><p>antigo embaixador de Salazar (ainda vivo), que em 2013 publica um</p><p>volume, com ajuda financeira de “amigos” — O cônsul Aristides de Sousa</p><p>Mendes — a Verdade e a Mentira —, onde escreve, na página 90: «Nenhum</p><p>judeu estava em perigo de vida em 1940, ou até de prisão, em França,</p><p>depois do armistício [do marechal Pétain].» E na página 33, escreve esse</p><p>senhor: «O que Aristides fez em junho de 1940, em Bordéus e Bayonne, era</p><p>passível de três crimes, a saber: desobediência, abuso de poder e</p><p>concussão.» Para mim, que cresci a saber da forma como o meu avô</p><p>arriscou a vida e a carreira para ajudar outros, isto não passa de uma</p><p>alteração e adulteração de valores, numa abordagem revisionista.</p><p>Mas há factos que falam por si: em 1967, em Nova Iorque, Israel</p><p>entregou aos filhos de Aristides de Sousa Mendes o Diploma e a Medalha</p><p>dos Justos (foi dos primeiros diplomatas a receber tal distinção a nível</p><p>mundial, juntamente com o sueco Raoul Gustaf Wallenberg).</p><p>Em 1986, o arquiduque Otto von Habsburg, herdeiro e representante do</p><p>império austro-húngaro, filho do último imperador da Áustria, Carlos I, e de</p><p>Zita, duquesa de Parma, descendente de D. Miguel I de Portugal, enviou-me</p><p>uma carta onde escreve: «Votre grand-père était un véritable héros de</p><p>l’occident. Vous pouvez être fier de votre grand-père!»</p><p>Por isso, sinto o peso desta responsabilidade de preservar a memória dos</p><p>meus avós, do avô Aristides em particular, e de não deixar que seja</p><p>conspurcada por juízos de valor baseados em falsidades.</p><p>Memórias do avô Aristides</p><p>O meu pai todos os dias falava do meu avô. Estava profundamente marcado</p><p>pelo sofrimento que o regime causara a Aristides e, por extensão, a toda a</p><p>família, mesmo depois da sua morte.</p><p>As minhas memórias diretas do avô Aristides não são muito nítidas.</p><p>Morreu quando eu tinha cinco anos, mas lembro-me de uma figura com o</p><p>cabelo todo branco, despenteado, algo pesado, que me deixava sempre uma</p><p>impressão de simpatia.</p><p>Na altura do meu nascimento, Aristides estava a viver na Casa do Passal,</p><p>em Cabanas de Viriato. Tinha decidido voltar a casar-se em segundas</p><p>núpcias com Andrée Cibial Rey, uma senhora de origem francesa, o que</p><p>levou a algum afastamento dos poucos filhos que ainda viviam em Portugal</p><p>— apesar de tudo, apesar das distâncias, os laços com os filhos</p><p>mantiveram-se até à sua morte.</p> <p>dos sete anos que esteve em Zanzibar, o meu avô deslocou-se</p><p>várias vezes aos países vizinhos — Quénia, Tanganica, etc. —, tanto para</p><p>analisar a sua situação comercial como para defender os interesses</p><p>portugueses na região. Depois de publicados em Portugal, os seus estudos</p><p>também foram objeto de interesse por parte de outros países europeus, pois</p><p>eram trabalhos pioneiros nessas áreas. Gostaria de referir um estudo</p><p>publicado em 1923, inteiramente pago à sua custa, O Comércio de Portugal</p><p>na África Oriental Britânica. Este trabalho foi publicado quando Aristides</p><p>estava a viver em Berkeley, e assumiu o consulado de Portugal em São</p><p>Francisco, nos Estados Unidos, já depois de ter passado pelo Brasil e de ter</p><p>estado em Berlim, a dar apoio ao irmão gémeo, numa altura muito difícil da</p><p>sua vida pessoal. Mas o meu avô não esquecia os locais — e muito menos</p><p>as pessoas — onde tinha vivido anteriormente.</p><p>Durante os anos e postos de “calor tórrido”, Aristides e Gigi viveram</p><p>momentos muito difíceis, e passaram longos períodos sem férias e sem</p><p>verem nem falarem com os familiares mais próximos. Até que a uma certa</p><p>altura, em 1915, “ir de férias à Beira Alta” impunha-se, para matar saudades</p><p>e para uma “cura” a nível de saúde física e mental — havia necessidade de</p><p>passar algum tempo longe, a recuperar das consequências dos mosquitos</p><p>que os perseguiam… Quando apanharam o vapor para Portugal levavam</p><p>mais três filhos: José António, Clotilde Augusta e Isabel Maria, todos</p><p>nascidos em Zanzibar. Geraldo (Feliciano Artur Geraldo), sexto filho do</p><p>casal e quarto a nascer em Zanzibar, só veio ao mundo em fins de março de</p><p>1917, e viria a ser o elemento que fez a ligação simbólica entre a família e o</p><p>sultão de Zanzibar.</p><p>Oito dos filhos do cônsul. Pedro Nuno, ao centro, em pé.</p><p>A minha avó, com o meu pai, Geraldo, seu sexto filho, ao colo, nascido em Zanzibar, e</p><p>protagonista de um batizado “misto”.</p><p>A vida em Zanzibar no início do século XX era, naturalmente,</p><p>“ligeiramente monótona”, apesar das distrações do Mercado de Peixes —</p><p>onde se podiam admirar exemplares da fauna marítima do Índico — da vida</p><p>quotidiana, e do movimento portuário, onde por vezes a família ia observar</p><p>a entrada e a saída de vapores, que a fazia sonhar com outras paragens. Os</p><p>longos passeios a pé nas praias do norte da ilha também representavam uma</p><p>distração importante para a família, por serem muito instrutivos em relação</p><p>à fauna marinha e às aves. As espécies da flora local também despertavam a</p><p>curiosidade dos meus avós. Necessariamente, a família de Aristides e Gigi</p><p>dava nas vistas a toda gente, e o jovem sultão não era exceção.</p><p>Gradualmente, deu-se uma aproximação entre este líder espiritual islâmico</p><p>e a família de Sousa Mendes, sobretudo devido ao facto de Aristides se ter</p><p>tornado também o representante dos interesses italianos e do serviço</p><p>consular deste país europeu a partir de 1915. Um pouco no espírito de uma</p><p>certa União Europeia avant la lettre.</p><p>Esta nova responsabilidade de Aristides era uma prova de que as</p><p>qualidades do jovem cônsul de Portugal não passavam despercebidas a</p><p>colegas de outros países, e eram bem vistas, como o provam algumas notas</p><p>provenientes do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Itália, arquivadas</p><p>no nosso Palácio das Necessidades: «O Ministério dos Negócios</p><p>Estrangeiros transmite ao Governo da República o mais vivo</p><p>reconhecimento e as mais calorosas saudações por parte do Ministério da</p><p>Marinha pelo modo absolutamente louvável e eficaz como Aristides de</p><p>Sousa Mendes, cônsul-geral de Portugal e “regente” da nossa agência</p><p>consular em Zanzibar desempenhou as suas funções como representante dos</p><p>interesses italianos em tudo o que respeitou à visita recente ao porto de</p><p>Zanzibar do nosso navio Giuliana.»</p><p>Atualmente, quando um cidadão europeu oriundo de um país-membro da</p><p>União Europeia se encontra num local onde não existe representação</p><p>diplomática do seu país e precisa de ajuda, pode dirigir-se a uma</p><p>representação de outro país-membro e aí resolver o seu problema.</p><p>O cônsul de Portugal fotografado com as vestes usadas na corte do sultão de Zanzibar,</p><p>com quem fomentou relações diplomáticas e de amizade.</p><p>Aristides e Gigi interessavam-se muito pela vida local, pelas pessoas e</p><p>costumes, pela maneira como os habitantes se vestiam, pela alimentação e</p><p>respetivos condimentos, sobretudo cravinho e pimenta. Na população local</p><p>havia a recordação e a “saudade” de um passado numa vida de sociedade</p><p>refinada, onde os ocidentais eram muitas vezes fonte de inspiração e</p><p>observação. Não me lembro de alguma vez o meu pai me ter contado como</p><p>se deu o encontro entre Aristides e o sultão. Talvez tenha sido por causa das</p><p>celebrações de Natal, ou do aniversário de algum dos “meninos”, talvez</p><p>nalguma ocasião oficial, algum casamento ou cerimónia religiosa. O certo é</p><p>que, por sugestão do sultão, a família era convidada bastantes vezes para</p><p>acontecimentos e festas, o que lhes dava a oportunidade de conhecer</p><p>pessoas de várias nacionalidades. O sultão sentia-se lisonjeado com essa</p><p>presença e manifestava-o a outros amigos, alargando o círculo de relações</p><p>da família Sousa Mendes. A certa altura, a família começou a usar os</p><p>serviços do fotógrafo oficial do sultão, e um dia o meu avô fez um grande</p><p>elogio às vestes do sultão, que lhe propôs que fosse ao ateliê do seu</p><p>fotógrafo vestir os seus trajes, “perpetuando” assim a memória da estada</p><p>nas ilhas. Ficaram pelo menos duas curiosíssimas fotografias dessa época,</p><p>pelas quais sempre me senti atraído, pensando que se tratasse de uma</p><p>fantasia para o Carnaval. Gigi, a minha avó, também teve direito à sua dose</p><p>de fotografias, mas em roupagens ocidentais, como se pode ver numa,</p><p>segurando o bebé, meu futuro pai, nos braços.</p><p>Com esta aproximação, o sultão e o meu avô começaram a falar de coisas</p><p>mais espirituais, e chegaram até à religião, aos profetas e ao cristianismo.</p><p>Em Zanzibar, o catolicismo era chefiado por um bispo francês que se</p><p>chamava Arthur, e o anglicanismo por um inglês chamado Gerald. Ambos</p><p>começaram a participar nessas conversas, em particular nas que tratavam do</p><p>batismo do jovem Geraldo, que tinha nascido em março de 1917. O último</p><p>filho de Gigi e de Aristides nascido em Zanzibar foi batizado numa</p><p>celebração religiosa que juntou as duas religiões com maior representação</p><p>na ilha: a cristã e a muçulmana, sendo o sultão de Zanzibar o padrinho</p><p>principal. Isto também é diplomacia. Ou isto é que é diplomacia, ou uma</p><p>prova de que diplomacia não é apenas burocracia.</p><p>O sultão de Zanzibar, que manifestava grande admiração e simpatia pelo cônsul de</p><p>Portugal e pela sua família.</p><p>Emergência hospitalar, burocracias e intrigas</p><p>A vida continuava calma e tranquila sob o calor intenso, a praga dos</p><p>mosquitos e a ameaça da malária, até que o jovem Aristides César, que já</p><p>tinha contraído a doença em Demerara, em 1911, começou a apresentar um</p><p>repentino agravamento de sintomas, juntamente com sinais de asma.</p><p>Aristides César tinha apenas oito anos, os pais ficaram aflitos, os médicos</p><p>locais não podiam fazer mais do que já tinham feito. A situação agravava-se</p><p>de dia para dia, e a única esperança residia nos hospitais da África do Sul.</p><p>Só que em 1917 viajar de urgência para a África do Sul era tarefa difícil.</p><p>Não havia linhas aéreas, e a travessia só era possível de barco. Aristides não</p><p>hesitou. Sabia que havia um vapor no porto, pronto a zarpar para Durban.</p><p>Não perdeu tempo, nem pensou em mais nada. Era preciso salvar o seu</p><p>primogénito (a morte foi uma ameaça recorrente na vida de Aristides). Pai e</p><p>filho embarcaram logo que puderam. Gigi e a criada Borges ficaram a</p><p>tomar conta da casa e dos outros cinco filhos. O serviço do consulado foi</p><p>entregue ao chanceler, que era da inteira confiança de Aristides, e o cônsul</p><p>partiu, ansioso por chegar a um hospital digno desse nome.</p><p>O tratamento correu bem. Ao fim de alguns dias, Aristides César queria</p><p>regressar para junto da mãe e dos irmãos. A família reencontrou-se, mas</p><p>agora era preciso explicar ao Ministério português dos Negócios</p><p>Estrangeiros (MNE) a situação que</p> <p>o levara a ausentar-se do seu posto sem</p><p>pedir autorização prévia à Secretaria de Estado, em Lisboa. É preciso não</p><p>esquecer que em 1917 as comunicações eram péssimas, fossem entre</p><p>continentes, entre países ou até mesmo no interior de um mesmo país.</p><p>Os superiores hierárquicos de Aristides de Sousa Mendes</p><p>compreenderam que na vida há situações que não se compadecem com as</p><p>regras da burocracia. O caso foi arquivado. Até que, em 1940, o relator do</p><p>processo disciplinar que Salazar moveu contra Aristides, por causa da</p><p>desobediência ao passar vistos a “toda aquela gente” na França ocupada, o</p><p>foi desenterrar.</p><p>Aristides e Gigi com os seis filhos mais velhos em vestes adequadas a climas quentes.</p><p>José António, Clotilde, Isabel e Geraldo nasceram em Zanzibar.</p><p>O relator que tinha sido nomeado “por acaso” era Tovar de Lemos,</p><p>também conhecido no MNE como conde de Tovar, «um diplomata pró-</p><p>eixo» — de acordo com o historiador e investigador americano, professor</p><p>Douglas Wheeler, no seu livro And who is my neighbour — que tinha sido</p><p>anteriormente colega de César, o gémeo de Aristides. Em 1932, quando</p><p>César era ministro dos Negócios Estrangeiros, tinha-lhe escrito uma carta</p><p>pedindo-lhe o grande favor de ser reintegrado na carreira diplomática, em</p><p>nome da «amizade que os unia», pois encontrava-se na disponibilidade</p><p>desde há uns tempos (nove anos). César respondeu que a amizade não</p><p>poderia ser invocada nesta situação, não se opondo, contudo, a assiná-la. Só</p><p>que a carta nunca foi posta na sua secretária de ministro para ser assinada</p><p>(havia nesse ministério gente de “boa vontade” pronta a alimentar a intriga).</p><p>A potencial reintegração do conde de Tovar deveria passar, dizia César,</p><p>pelas vias previstas nos estatutos da carreira. E mal sabiam César e</p><p>Aristides que, apesar de todos os mistérios e intrigas, Tovar de Lemos viria</p><p>a conseguir a sua reintegração, em tempo recorde, por outras vias. No</p><p>entanto, numa última carta a César, Tovar lamenta a sua posição, e escreve,</p><p>como se tivesse algum pressentimento: «Talvez um dia o meu amigo venha</p><p>a precisar de mim…»</p><p>De facto, em 1940, no âmbito do processo disciplinar movido por Salazar</p><p>contra Aristides, surgiriam uma série de “ajustes de contas” que,</p><p>aparentemente, ainda não terminaram. Já neste século, aparece um outro</p><p>diplomata do antigo regime, que o jornal O Diabo foi desenterrar: Carlos</p><p>Fernandes, que entrou ao serviço do MNE em abril de 1948. A 3 de abril de</p><p>2007 (dia de aniversário da morte de Aristides), o semanário O Diabo</p><p>publica um artigo intitulado Embaixador desmistifica lenda de Sousa</p><p>Mendes. Neste artigo, esse diplomata do regime salazarista escreve, entre</p><p>outras coisas: «Aristides de Sousa Mendes acumulava processos</p><p>disciplinares; já desde os idos de 1917…», obviamente não especificando as</p><p>circunstâncias ou as atenuantes, nem a razão do sucedido em 1917, com a</p><p>doença do jovem Aristides César. Esse senhor também não esclarece que,</p><p>na realidade, não houve qualquer processo disciplinar por causa desse</p><p>episódio, já que foi arquivado. Vemos aqui um exemplo muito claro do</p><p>espírito que presidiu ao processo de julho de 1940, ordenado por Salazar:</p><p>levantar suspeitas sem fundamento, e não as desmentir mais tarde.</p><p>Em 13 de fevereiro de 1918, o meu avô é nomeado para um novo posto.</p><p>Grande parte da comunidade portuguesa residente em Zanzibar não</p><p>apreciou a ideia de perder Aristides — tinham-se habituado à amabilidade e</p><p>à competência de Aristides e achavam que a sua substituição não deveria</p><p>constar da lista de prioridades. Organizaram uma grande assembleia para</p><p>fazer com que a sua voz, mesmo de tão longe, tivesse algum eco em Lisboa,</p><p>e escreveram uma carta ao ministro português dos Negócios Estrangeiros,</p><p>testemunhando a sua admiração pelo cônsul Sousa Mendes, e pedindo a sua</p><p>permanência em Zanzibar. Mas a carreira consular e diplomática não se</p><p>gere por simpatias, e isso é algo que joga nos dois sentidos.</p><p>O reencontro dos gémeos</p><p>Desta vez, o MNE nomeia-o para outro continente, mas a família vai</p><p>manter-se no mesmo tipo de clima tórrido: Curitiba, no Paraná, Brasil. «A</p><p>formosa cidade de Curitiba», como o meu avô a trata num dos seus</p><p>trabalhos, era na altura uma cidade com uma comunidade portuguesa em</p><p>franco desenvolvimento. Aí, a família vive novas experiências, umas</p><p>melhores, outras piores. Elisa Joana, a sétima criança de Aristides e Gigi,</p><p>vem ao mundo nesta cidade. É esta Joana, filha tenaz, que vai ser</p><p>determinante, a partir dos anos 50, através da sua ação nos Estados Unidos,</p><p>para o reconhecimento mundial do gesto do pai.</p><p>E é no Brasil que, ao fim de oito anos (uma eternidade!), os gémeos</p><p>voltam a encontrar-se — César fora nomeado para um posto na embaixada</p><p>de Portugal no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1919.</p><p>Depois de tanto tempo sem se verem, Aristides e Gigi têm mais cinco</p><p>filhos (quatro nascidos em Zanzibar e uma no Brasil), e César e Maria</p><p>Luísa mais três (uma nascida em Madrid, e dois em Tóquio), além dos dois</p><p>que tinham nascido em Portugal anteriormente.</p><p>O reencontro entre os dois irmãos deu-se no Rio de Janeiro e foi uma</p><p>autêntica festa! Sobretudo para as 12 crianças, que se tornaram</p><p>imediatamente amigas inseparáveis, pelo menos tanto quanto o MNE lhes</p><p>permitia, já que nomeava os respetivos pais para países diferentes sem lhes</p><p>pedir autorização… Este primeiro encontro dos gémeos após tantos anos</p><p>deu direito a uma “fotografia oficial”, que chegou até aos nossos dias como</p><p>uma magnífica recordação desse feliz acontecimento: as duas mamãs</p><p>sentadas ao centro, ambas grávidas, e os papás sentados nos extremos,</p><p>cercados de crianças.</p><p>Fotografia “histórica” que documenta o momento em que os gémeos e as respetivas</p><p>famílias se reencontram, no Brasil, após anos sem se verem. A mulher de César, Maria</p><p>Luísa, que, tal como Gigi, estava grávida, morreria alguns meses mais tarde.</p><p>A comunidade portuguesa, tal como acontecera anteriormente nos outros</p><p>postos, tornou-se “fã” do cônsul Aristides de Sousa Mendes, devido à sua</p><p>atenção e disponibilidade para se encontrar com todos os que necessitassem</p><p>de falar com ele, e devido ao seu zelo.</p><p>A natureza humana (sendo obra de Deus) é muito completa e ao mesmo</p><p>tempo muito bizarra, pois o Criador fez os homens tão perfeitos que lhes</p><p>deu o “livre-arbítrio”, e uma riqueza de sentimentos e emoções vastíssima.</p><p>Assim, em todos os sítios e ambientes encontramos seres humanos</p><p>extraordinários, ou pelo menos de boa qualidade, e outros… nem tanto. Nos</p><p>concursos para admissão à carreira diplomática, uma coisa que não se exige</p><p>é que os candidatos sejam santos. Então, entre os que são admitidos, há de</p><p>tudo. Tentar encontrar explicações para o facto de os gémeos terem tido</p><p>problemas com colegas é uma missão impossível. Terá sido por causa do</p><p>“zelo a mais”, como sugere a senhora doutoranda de Coimbra? De um</p><p>ponto de vista mais prosaico, eu diria que houve colegas que simplesmente</p><p>terão sentido inveja deles. Porquê? Porque os Sousa Mendes “invadiram” o</p><p>MNE em dose dupla. Quantos pares de gémeos é que terão sido diplomatas</p><p>simultaneamente?</p><p>No Brasil, alguém inventou que estes dois gémeos eram monárquicos</p><p>(militantes). Não esqueçamos que em 1918/19 Portugal era uma República</p><p>incipiente. Os gémeos vinham de famílias ligadas à antiga nobreza do reino</p><p>de Portugal… logo, eram monárquicos! E assim começa a intriga. Ainda</p><p>por cima, vejam lá, em 1920 estes dois jovens diplomatas até acrescentaram</p><p>aos nomes que já tinham Amaral e Abranches! Simplesmente,</p><p>acrescentaram os apelidos maternos, como é tradição e hábito das famílias</p><p>portuguesas, ainda hoje. Houve vários colegas que não viram nisto</p><p>nenhuma contrarrevolução monárquica. Se fossemos sanear o MNE por</p><p>causa dos apelidos e linhagens pomposas de certos funcionários, tenho a</p><p>impressão de que este ministério fechava as portas…</p><p>Houve grupos, ou influências, que, neste Brasil de 1919, levaram a uma</p><p>inexplicável suspensão de Aristides de Sousa Mendes das funções</p><p>consulares em Curitiba.</p><p>Miguel Anacoreta Correia, deputado à Assembleia da República bem</p><p>conhecido do nosso regime democrático, descreve</p> <p>assim esta situação,</p><p>numa publicação de 2004 da Câmara de Viseu, destinada a assinalar o 50.º</p><p>aniversário da morte de Aristides de Sousa Mendes: «Terá o regime de</p><p>Salazar punido um “perigoso dissidente”? Não! A biografia de Aristides de</p><p>Sousa Mendes mostra até que, durante a primeira República, ele foi</p><p>injustamente “castigado”, com suspensão de funções consulares em</p><p>Curitiba e colocação na situação de disponibilidade por despacho</p><p>ministerial, simplesmente por ter sido promovido na sua carreira</p><p>diplomática durante o consulado sidonista.» E continua Miguel Anacoreta</p><p>Correia: «Quem de novo atrai, de forma claríssima e definitiva, a punição</p><p>do governo português? Apenas um homem livre com independência</p><p>moral.»</p><p>E o que faz César, o irmão gémeo de Aristides, que em 1919, se</p><p>encontrava como encarregado de negócios na embaixada de Portugal no</p><p>Rio de Janeiro? Apoiando sempre o irmão, enviou uma petição para o MNE</p><p>em Lisboa, assinada por vários portugueses residentes em Curitiba,</p><p>atestando em favor de Aristides pela sua competência, integridade e</p><p>independência como cônsul de Portugal, e denunciando a existência de uma</p><p>campanha organizada contra ele por “pessoas imorais”, tentando esclarecer</p><p>a situação: «Aristides era um homem que se aproximava muito dos</p><p>habitantes da sua jurisdição e para certas pessoas era melhor afastá-lo.</p><p>Aristides tinha sido apanhado entre fogos cruzados, lutas entre grupos</p><p>rivais.»</p><p>De volta à Casa do Passal</p><p>O meu avô deixou o Brasil — não sem antes ter recebido uma grande</p><p>homenagem da comunidade portuguesa de Curitiba — levando consigo</p><p>toda a sua família, aumentada pela pequena Joana, a “brasileira”, para o</p><p>doce clima da Beira Alta, e muitas histórias para escrever e contar. Foi para</p><p>a sua Casa do Passal, dirigir os melhoramentos e ampliá-la ao estilo francês.</p><p>Com a mansarda, a casa passou a ter mais seis grandes quartos e outros</p><p>mais pequenos. Parecia que pressentia que um dia esses quartos seriam</p><p>precisos para acolher pessoas a título excecional. No hall da mansarda,</p><p>guardou-se um espaço onde se erigiu uma capela com acabamentos em boa</p><p>madeira e um belo altar. Estes trabalhos serviram também para cimentar as</p><p>suas relações com os artesãos e trabalhadores de Cabanas. Vários artistas da</p><p>região participaram no embelezamento do interior da casa, pintando</p><p>motivos florais ao longo da junção das paredes com os tetos e nos próprios</p><p>tetos. Também foram pintados motivos ligados à história da família.</p><p>Aristides e Angelina estimularam os filhos a relacionarem-se com</p><p>famílias cabanenses através da participação nas festas populares e</p><p>religiosas. A quase totalidade dos seus filhos foi convidada a ser padrinho</p><p>ou madrinha de crianças das famílias da terra. Muito mais tarde, quando eu</p><p>ia de visita a Cabanas de Viriato, apareciam-me diversas pessoas a dizer:</p><p>«Sou afilhado do Geraldinho», ou «sou afilhada da Clotildinha», ou «da</p><p>Isabelinha», «conheci muito bem o seu paizinho», etc. E assim se criava um</p><p>sentimento de comunidade e de pertença. Os padrinhos ou madrinhas iam</p><p>escrevendo e mantendo relações de amizade com os afilhados, e enviavam-</p><p>lhes lembranças várias vezes ao ano, especialmente no Natal. Outra</p><p>iniciativa importante foi a instauração de refeições para os mais</p><p>necessitados na cozinha da sua própria casa. Não sei ao certo quando surgiu</p><p>essa iniciativa, mas funcionava mesmo quando os meus avós estavam no</p><p>estrangeiro, pois a Casa do Passal mantinha-se sempre aberta e pronta a</p><p>acolher qualquer um.</p><p>O cônsul Sousa Mendes e a mulher, Maria Angelina.</p><p>Aristides, enquanto esperava pela chamada para uma nova “missão”,</p><p>verificava todos os dias o correio e a chegada de eventuais telegramas, ia</p><p>convivendo com muitos cabanenses (o que lhe dava um prazer especial).</p><p>Convivia com os seus primos e, sobretudo, com os pais, cuja companhia</p><p>tinha sido escassa nos últimos anos e que ele tanto apreciava. Quando</p><p>chegou a Portugal, vindo de Curitiba, o pai encontrava-se como juiz em</p><p>Coimbra, felizmente não muito longe de Cabanas de Viriato. As</p><p>comunicações tinham melhorado muito desde 1882, com o aparecimento da</p><p>linha da Beira Alta. Como estudantes universitários em Coimbra, esta linha</p><p>assumira um papel quase central. Nesses anos da universidade, entre 1902 e</p><p>1907, os gémeos, de regresso a casa, entravam na estação de Coimbra B e</p><p>viajavam em 3.ª classe, em bancos de madeira, e saíam na estação de</p><p>Oliveirinha-Cabanas, logo a seguir a Carregal do Sal. Depois iam a pé até</p><p>Cabanas de Viriato — apenas quatro quilómetros.</p><p>“Missão” de apoio a César em Berlim</p><p>A missão que se seguiu não foi diplomática. Infelizmente, foi de natureza</p><p>muito mais sombria.</p><p>Em 1920, no final de abril, Gigi deu à luz, em Coimbra. Em Portugal,</p><p>desta vez. Foi um rapaz, Pedro Nuno — o mesmo Pedro Nuno que 20 anos</p><p>mais tarde estará ao lado do pai, em Bordéus, a ajudá-lo a passar vistos, em</p><p>junho de 1940. Na “fotografia oficial” tirada no Rio de Janeiro, Gigi,</p><p>sentada ao lado da cunhada, estava grávida deste menino. A cunhada, Maria</p><p>Luísa, também grávida nessa fotografia, deu à luz uma menina a 1 de junho,</p><p>na sua casa de Mangualde. Se com Gigi tudo correu bem, já com Maria</p><p>Luísa, mulher de César não foi assim. Cometiam-se muitos erros médicos</p><p>nessa altura, e as complicações pós-parto de Maria Luísa não foram</p><p>devidamente tratadas. Em outubro, César é nomeado encarregado de</p><p>negócios interino na Legação em Berlim, Alemanha, e tem de deslocar-se a</p><p>Lisboa várias vezes por causa das preparações para esse novo posto. A</p><p>última vez foi em inícios de dezembro de 1920. César teve de sair de</p><p>Mangualde e viajar para Lisboa para ir ao MNE levantar os documentos</p><p>necessários para a sua acreditação em Berlim, e esteve alguns dias longe de</p><p>Maria Luísa e dos seus seis pequeninos. A preocupação pelo estado</p><p>debilitado da mulher não o abandonava. Era mais do que uma preocupação:</p><p>como iria ela reagir à viagem e ao clima mais adverso de Berlim? César, tal</p><p>como Aristides, por vezes, tinha certos pressentimentos… É bem conhecida</p><p>na minha família a “visão” que o meu avô teve, no dia 6 de dezembro, no</p><p>quarto do hotel onde estava instalado em Lisboa. Ao olhar para o espelho</p><p>para fazer a barba, “viu” diante de si Maria Luísa, sorrindo, bela como</p><p>sempre, mas… amortalhada. Poucos minutos depois, batem à porta do seu</p><p>quarto. César hesita, mas sabe que não pode escapar à terrível realidade.</p><p>Abre a porta e do outro lado está Adolfo, seu primo direito. César, vendo a</p><p>sua expressão acabrunhada, diz imediatamente: «Não digas nada, a Maria</p><p>Luísa morreu!»</p><p>César quis abandonar tudo e retirar-se do mundo para o convento. Não</p><p>queria suportar a vida sem Maria Luísa. Foi ao ministério anunciar o fim da</p><p>sua carreira e da sua vida, aos 35 anos. Todos os familiares e amigos mais</p><p>próximos se mobilizaram para lhe dar força e resiliência. Afinal, César era</p><p>ainda tão novo e com um futuro tão promissor… e com seis filhos que</p><p>ainda precisavam muito dele. E eis que surge aqui a sua própria mãe, que</p><p>até então tinha sido uma presença discreta na sua vida: «Proíbo-te</p><p>terminantemente de ires para o convento, tens de educar os teus seis filhos.</p><p>Faz isso pela mãe deles, a Maria Luísa!»</p><p>É Aristides, o irmão, que desde a primeira hora e sempre estará a seu</p><p>lado, que o vai acompanhar ao seu novo posto em Berlim, para lhe dar</p><p>alento e força. Como escreverá mais tarde César nas suas crónicas, em tom</p><p>bem-humorado: «Fazia-me acompanhar de um retrato meu em tamanho</p><p>natural. Era tão fiel esse retrato que se eu sorria, também ele sorria, e se</p><p>nuvem de pesar me vincava o rosto, lá se desenhava também no seu</p><p>semblante a minha angústia. Com ele me entretinha em longas conversas, e</p><p>muitas vezes nelas encontrava o ânimo necessário para defrontar os transes</p><p>da existência.»</p><p>Fotografia de César de Sousa Mendes em traje de gala, dedicada a seus tios pelo</p><p>próprio.</p><p>Gigi, a corajosa, encheu-se de forças, e com a ajuda da Borges, das outras</p><p>criadas mais novas e da mãe, lá se prontificou a passar aqueles primeiros</p><p>meses de 1921 sem a autoridade do chefe de família, compreendendo a</p><p>razão atroz que implicava aquela</p> <p>separação. A vocação redentora deste</p><p>irmão gémeo ia-se acentuando: o irmão diplomata que se fez secretário de</p><p>outro irmão diplomata… tal como escreveu outra doutoranda, a Dra. Raquel</p><p>Andrade, a propósito dos refugiados de 1940, na sua tese de doutoramento,</p><p>já no século XXI: «O diplomata que se fez refugiado.» O tempo foi</p><p>passando e fazendo o seu trabalho, consolando César, o marido desgostoso</p><p>e seu irmão, e abrindo-lhe novas perspetivas para poder sobreviver e</p><p>avançar na sua carreira.</p><p>Quanto a Aristides, após alguns meses de constante apoio ao «seu</p><p>retrato» em Berlim, voltou para Lisboa e para Cabanas de Viriato, agora que</p><p>César, acompanhado dos filhos e da sua mãe (a «mamãvó», como lhe</p><p>chamavam as crianças), e tendo contratado uma fräulein em Berlim —</p><p>Antonia Gregor — para ajudar os filhos nas coisas práticas da vida e dar</p><p>apoio linguístico em casa, estava mais lançado nas suas obrigações</p><p>profissionais.</p><p>Sempre juntos</p><p>O meu avô soube da abertura de um posto para cônsul de carreira em</p><p>comissão de serviço em São Francisco, Califórnia, e decidiu aceitar o</p><p>desafio, mesmo num regime financeiro que não lhe era favorável</p><p>(tecnicamente estava em situação de disponibilidade, com vencimento</p><p>reduzido). O importante, para Aristides e Gigi, era que estivessem todos</p><p>juntos e pudessem crescer como família.</p><p>Para eles, enquanto pais, não havia dúvidas quanto às responsabilidades</p><p>que lhes cabiam no que dizia respeito aos filhos. A religião era encorajada</p><p>através do exemplo dado pela convivência, e dos rituais da Igreja Católica:</p><p>batizados, primeira comunhão, comunhão solene, crisma, catequese,</p><p>participação em festas religiosas, e também da arte. Os filhos do casal liam</p><p>a vida de santos e apreciavam símbolos cristãos, estatuetas e estampas, que</p><p>foram acumulando. O apoio dado em casa nos estudos era primordial, pois</p><p>permitia formar uma espécie de equipa. Para o Inglês e o Francês contavam</p><p>sobretudo com Aristides, enquanto Gigi, ao longo da vida no estrangeiro, se</p><p>tornara uma excelente professora da Língua e Cultura portuguesas. Trazia</p><p>consigo vários livros dos mais recentes e famosos escritores da pátria, e</p><p>mantinha com os filhos longas conversas sobre os personagens desses</p><p>romances e os personagens da História de Portugal.</p><p>A família, em frente à sua casa na Califórnia. Do lado esquerdo, a Borges, a fiel</p><p>empregada, que acompanhou a família desde o início nas suas viagens pelo mundo.</p><p>Aristides também se envolveu na cultura, e fez amizade com um</p><p>professor de Filologia Românica da Universidade da Califórnia, o professor</p><p>Hills, a quem convenceu a abrir uma cadeira de ensino de Português, como</p><p>corolário de uma relação que nasceu do interesse pela Linguística e pela</p><p>Cultura portuguesa. O professor Hills era convidado regular da casa de</p><p>Aristides e Gigi, e juntos liam e discutiam as obras mais emblemáticas da</p><p>Literatura portuguesa. Era o diplomata ao serviço da cultura. Este curso</p><p>promovido pelo professor Hills e apadrinhado pelos meus avós foi o</p><p>primeiro curso de Língua Portuguesa a ser dado na Califórnia, na California</p><p>State University, em Berkeley.</p><p>Esta característica muito positiva dos meus avós foi dando frutos, e muito</p><p>mais tarde, no início dos anos 80, durante uma estada de trabalho na região</p><p>de São Francisco, tive ocasião de encontrar jovens americanos descendentes</p><p>de alguns portugueses emigrados de Portugal 60 anos antes, que mantinham</p><p>a memória “daquele cônsul” que apoiou os seus pais e avós com dedicação</p><p>na resolução de vários problemas. Como escreveu Rui Afonso, o biógrafo</p><p>do meu avô: «Indo muito mais além das suas obrigações.»</p><p>«Na América, sê americano»</p><p>A sociedade de consumo também seduziu os meus avós, naturalmente.</p><p>Adquiriram-se máquinas de fotografar e de cinema, e outras, para a casa</p><p>que tiveram de comprar, pois saía mais barato do que alugar. Era uma casa</p><p>bem americana, como as fotografias mostram. Espaçosa, com grandes</p><p>quartos de dormir, várias salas de estar, sala de jogos, cozinha e sala de</p><p>jantar, fazendo-os sentir “quase em casa”. Era uma espécie de Casa do</p><p>Passal, com um grande espaço relvado a toda a volta, o que obrigava os</p><p>meus tios mais velhos — Aristides, Manuel e José — a cortar a relva e a</p><p>regar as plantas, a exemplo do que faziam os jovens americanos da idade</p><p>deles. Devem ter sido dos primeiros jovens portugueses a realizar essas</p><p>tarefas: «Na América, sê americano.»</p><p>Os jovens também se deixaram seduzir pela tecnologia, e se naquela</p><p>época houvesse o que há hoje, a casa do cônsul Sousa Mendes estaria</p><p>certamente equipada e transformada num centro de alta tecnologia, com</p><p>tudo o que há de informática avançada. O que havia naquela altura na</p><p>América era brinquedos com mecânica verdadeira, mas adaptada a uma</p><p>certa escala. Miniaturas. Faziam-se comboios que funcionavam exatamente</p><p>como os verdadeiros, automóveis, barcos de guerra, cruzadores com várias</p><p>chaminés e com motores a petróleo ou gasolina — impressionante.</p><p>Obviamente, os três rapazes mais velhos deliravam com tais brinquedos,</p><p>e o meu avô também. Finalmente, após uma certa hesitação, lá compraram</p><p>um cruzador com cerca de um metro e vinte, duas chaminés altas e motor,</p><p>que exalava um fumo escuro e espesso pelas chaminés e produzia um</p><p>barulho “assustador”. Para o pôr a navegar tinham de ir para lagos com</p><p>grande espaço e longe das multidões. Isso implicava um meio de transporte</p><p>— claro, para transportar o cruzador e a família, era preciso um automóvel.</p><p>E assim, Aristides comprou o seu primeiro automóvel, grande e com espaço</p><p>interior para poder encaixar os dez filhos e mais duas criadas, pelo menos,</p><p>além do casal e do cruzador!</p><p>Não nos esqueçamos de que esta é uma família sempre em crescimento e,</p><p>portanto, da Califórnia tinham de vir pelo menos mais dois elementos:</p><p>Carlos Francisco Fernando, nascido em 1922, e um ano depois, Sebastião</p><p>Miguel Duarte. Os irmãos mais velhos deram-lhes imediatamente a alcunha</p><p>de “os americanos”, e desde muito cedo passaram a fazer parte do “grupo</p><p>dos passeios”, pelo menos uma vez por semana. Uma das zonas que mais</p><p>impressionou a família foi a da floresta de Muir Woods, a floresta das red</p><p>trees ou sequoias. Algumas dessas árvores atingiam 70 ou 80 metros, indo</p><p>outras até aos cem e mais metros. Quando tiveram de mudar de posto, para</p><p>mais uma missão no Brasil, em 1924, Aristides perguntou aos filhos o que</p><p>queriam levar da América para casa, em Cabanas de Viriato, e no</p><p>seguimento de um processo de voto democrático, bem à maneira americana,</p><p>responderam que queriam levar as árvores. Houve, de facto, uma</p><p>transplantação, e ainda hoje se podem ver por lá, em certos locais perto da</p><p>igreja paroquial de Cabanas de Viriato, os restos desse transplante gigante.</p><p>Há uma pequena fotografia desse tempo evocando os passeios na</p><p>Califórnia, infelizmente de má qualidade, onde se encontram os dez e a mãe</p><p>com um comentário em inglês escrito por Aristides: «These are my jewels.»</p><p>Enquanto Aristides estava na América, César continuava a sua carreira em Berlim,</p><p>partindo depois para a Finlândia.</p><p>Vinte anos mais tarde, “os americanos” irão desempenhar um papel</p><p>muito relevante na vida da família de Aristides e Gigi, a partir de 1943, em</p><p>plena Guerra Mundial.</p><p>A língua inglesa era objeto de grande interesse por parte de toda a</p><p>família, até mesmo das criadas, sobretudo da Borges, que além dos assuntos</p><p>da casa funcionava um pouco como uma autoridade moral, devido ao facto</p><p>de ser a mais velha do grupo. Lembrava aos rapazinhos o homework para a</p><p>escola, e certas leituras que os ajudariam a assimilar a língua de forma mais</p><p>rápida. Foi curioso o facto de que os ensinamentos obtidos nessa “escola de</p><p>línguas” lhes ficaram para sempre, tanto para os filhos como para os pais, e</p><p>até para a Borges, que quando ia às compras, por vezes, já não sabia os</p><p>nomes em português, só em inglês, mesmo na feira de Cabanas de Viriato.</p><p>Nesses anos, na América e no mundo, aparecia Charles Chaplin, e</p><p>Aristides e Angelina, que tinham um apurado sentido de humor não</p><p>resistiram: começaram assim as saídas coletivas (em família) ao cinema,</p><p>tornando-se fãs</p> <p>incondicionais de Charlot, Douglas Fairbanks, entre outros.</p><p>As gargalhadas da família eram tão efusivas que ainda me chegaram aos</p><p>ouvidos 40 anos depois, sobretudo quando entrava na Casa do Passal, em</p><p>Cabanas de Viriato, e via do lado direito, ao lado da porta da biblioteca,</p><p>uma pianola americana. Esta pianola era outra recordação da Califórnia, e</p><p>encantava muita gente, pela sua magia e temas musicais, evocando o</p><p>Faroeste americano e as melodias que acompanhavam os filmes mudos.</p><p>Quando se deu a “derrocada” da casa de família, devido ao castigo</p><p>imposto por ter desobedecido a ordens discriminatórias decididas pelo chefe</p><p>do governo, não faço ideia qual terá sido o caminho que a pianola seguiu,</p><p>como muitos outros objetos que foram vendidos ao desbarato nos últimos</p><p>anos de vida do meu avô, ou pilhados, como aconteceu com a magnífica</p><p>máquina de filmar do início dos anos 20 e tantas outras coisas: livros,</p><p>fotografias, quadros, gravuras…</p><p>O Réprobo</p><p>A 2 de abril de 1924, Aristides de Sousa Mendes é nomeado para o</p><p>consulado de Portugal no Maranhão, Brasil, e seis meses depois para o de</p><p>Porto Alegre. Mais viagens e bagagens, desta vez para curtas estadas. A</p><p>saída do meu avô dos Estados Unidos vai ser uma saída heroica,</p><p>espetacular, mesmo, no verdadeiro sentido da palavra.</p><p>O que se passou foi um confronto entre o meu avô e cidadãos americanos</p><p>de origem portuguesa, recentemente naturalizados, que tinham tendência</p><p>para abusar desse novo estatuto à custa dos novos imigrantes que chegavam</p><p>de Portugal, e que tímida e gradualmente se iam integrando na sociedade</p><p>americana. O conflito estoirou quando o meu avô pediu a uma sociedade</p><p>luso-americana para contribuir para uma recolha de fundos, a fim de ajudar</p><p>uma Associação de Solidariedade para com os Órfãos de Guerra (1914/18)</p><p>do Brasil, que ele tinha ajudado a criar. Como disse anteriormente, Aristides</p><p>não esquecia nunca os seus “protegidos”, os da Madeira, os de Cabanas de</p><p>Viriato ou os órfãos da Grande Guerra.</p><p>A atitude negativa de certos notários (já naturalizados americanos) que se</p><p>negaram a contribuir, indo depois dar fundos para outro peditório mais</p><p>yankee, desagradou profundamente ao meu avô, que os invetivou nos</p><p>jornais de língua portuguesa, acusando-os de terem ofendido a dignidade da</p><p>nação portuguesa, e lhes retirou a licença para exercerem a atividade</p><p>notarial nas instalações do consulado. Foi o início de uma infeliz troca de</p><p>artigos em jornais da comunidade luso-americana. Aristides deixou-se</p><p>inspirar pelo seu forte sentido patriótico e escreveu algumas linhas de alto</p><p>valor literário, nomeadamente um artigo intitulado O Réprobo, em que dá</p><p>lições de patriotismo lusitano aos que ele considerava neoamericanos:</p><p>«O Réprobo nasceu no sagrado solo da Pátria portuguesa de um</p><p>ventre português e deve a paternidade ao lusitano sangue.</p><p>A luz que viu primeiro foi a luz bendita e acariciadora do sol de</p><p>Portugal e a língua em que balbuciou, infante, as primeiras preces, a</p><p>mesma suave e doce, em que sua mãe, a boa e dedicada portuguesa,</p><p>pediu à Santa Padroeira que desse ao seu filho uma boa sorte…</p><p>[…]</p><p>Para trás réprobo! Para trás! Cuspiste na face de tua mãe, boa</p><p>velhinha portuguesa, sujaste a campa do teu pai, português</p><p>lealíssimo até ao último instante. Desonraste o nome dos teus filhos</p><p>inocentes e tornaste-te indigno de que teus irmãos de raça te</p><p>estendam a mão! Para trás réprobo!</p><p>[…]</p><p>Não haverá uma figueira aí onde te dependures»</p><p>Da Legação de Portugal em Washington, Aristides recebe uma carta onde</p><p>Mendes Leal, ministro de Portugal, lhe diz a respeito d’ O Réprobo: «Não</p><p>posso deixar de lhe dizer que o artigo, aliás ditado por vivo sentimento</p><p>patriótico, é imprudente, pois não creio que os americanos (governo, etc.)</p><p>estejam de acordo em que a naturalização não acarrete em qualquer</p><p>circunstância a obrigação de defender a pátria adotiva.</p><p>Sinto ter de acrescentar que, embora esteja fazendo todos os esforços</p><p>para o defender, a má vontade contra si é grande, apesar das manifestações</p><p>que lhe fizeram.</p><p>O que precede não equivale a dizer que eu desculpe os ditos indivíduos e</p><p>que eu ache que um funcionário não deve defender o seu país e o seu</p><p>governo.»</p><p>Washington D.C., baseando-se na doutrina americana de que um cidadão</p><p>americano só deve, e antes de tudo, lealdade à sua pátria americana e não a</p><p>outra, não apreciou, e sob fortes pressões de lóbis políticos, pediu a Lisboa</p><p>que transferisse o cônsul Aristides de Sousa Mendes para outro posto (a</p><p>“má vontade” mencionada por Mendes Leal), daí a decisão do MNE de o</p><p>enviar para o consulado do Maranhão, Brasil. O reconhecimento oficial de</p><p>um cônsul num certo país é o chamado exequator, e Washington não deu o</p><p>seu exequator ao fim de três anos, devido a esta jogada de certos políticos.</p><p>Só isto.</p><p>As organizações locais organizaram um jantar especial de homenagem e despedida ao</p><p>cônsul Aristides de Sousa Mendes, quando deixou o consulado em São Francisco,</p><p>Califórnia, EUA.</p><p>Quando se começou a pressentir qual seria o fim desta espiral de artigos,</p><p>a comunidade portuguesa uniu-se e organizou uma campanha de apoio a</p><p>Aristides de Sousa Mendes, e escreveu para o MNE pedindo que o</p><p>mantivessem no seu posto. A própria comunidade local, constituída por</p><p>americanos de todas as origens, organizou uma manifestação de apoio num</p><p>grande auditório, onde estiveram centenas de pessoas (a Manifestação de</p><p>Oakland). Nunca tal tinha sido visto a favor de um diplomata!</p><p>As organizações locais também tinham uma grande simpatia por</p><p>Aristides de Sousa Mendes, e a título de despedida organizaram um jantar</p><p>especial no melhor hotel da cidade, o Palace Hotel, onde também</p><p>compareceram, além de altas personalidades da sociedade local, o próprio</p><p>cônsul que o ia substituir no consulado de São Francisco. Um outro enviado</p><p>do MNE escreveu que lhe «era grato referir que os altos funcionários do</p><p>Ministério dos Negócios Estrangeiros tinham uma grande consideração por</p><p>Aristides de Sousa Mendes, e admiravam a invulgar inteireza do seu nobre</p><p>e inflexível carácter». Tal evento mostra o nível de simpatia e popularidade</p><p>de que o meu avô gozava.</p><p>Nos anos 90 aparece “alguém” que, em surdina, vai minando (ou</p><p>tentando minar) o processo de reconhecimento e de reintegração no seio da</p><p>sociedade portuguesa deste meu avô. Um senhor do MNE, crítico de</p><p>Aristides de Sousa Mendes, apareceu a escrever e a clamar que o meu avô</p><p>tinha sido expulso dos Estados Unidos sem dar qualquer explicação. É</p><p>assim que se constroem as difamações. Este senhor é um antigo diplomata,</p><p>que entrou para o MNE em 1947/48, em pleno tempo da “glória” de</p><p>Salazar. Sobre este senhor poderão ler mais adiante, nos parágrafos</p><p>dedicados ao Diabo. O diabo que sempre espreitou uma ocasião para fazer</p><p>mal, naturalmente. O diabo que perseguiu e atormentou Aristides de Sousa</p><p>Mendes durante os dias da Segunda Guerra Mundial até à sua morte, em</p><p>1954. O diabo que, mais de 60 anos depois da sua morte, volta à carga para</p><p>tentar destruir a memória de um homem justo. Mas em 2017, 77 anos</p><p>depois dos acontecimentos de Bordéus, num Portugal democrático, é bom</p><p>que os cidadãos portugueses possam ver estas “amostras” do regime que</p><p>oprimiu Portugal. É bom que possam ver como foi a perseguição atroz</p><p>movida ao meu avô, por ter ousado desobedecer ao chefe supremo dos</p><p>espíritos e das mentes em Portugal. O chefe que do Além ainda consegue</p><p>dominar certas cabeças…</p><p>Recorte de jornal português de Boston que anuncia a chegada de Aristides de Sousa</p><p>Mendes e família a esta cidade, vindos de São Francisco.</p><p>Depois da estada no país do Tio Sam, mais uma viagem num navio, desta</p><p>vez em direção ao Brasil, onde durante um ano e meio não aconteceu nada</p><p>digno de registo, à parte a rotina do trabalho consular e o contacto muito</p><p>próximo com as comunidades portuguesas, os estudos e as análises</p><p>económicas. Ah, só faltava aqui mais um bebé! Sim, eis que desta vez,</p><p>Santa Teresinha é a homenageada na casa de família. Em 1925, nasce em</p><p>Porto Alegre a nossa tia Teresinha do Menino Jesus, de quem se falará mais</p><p>durante a estada da família em Vigo.</p><p>CAPÍTULO</p> <p>IV</p><p>Na Península Ibérica</p><p>Lisboa, Vigo e os milagres da irmã Lúcia</p><p>Os tempos passados na Península Ibérica, entre Lisboa e a Galiza, foram</p><p>agradáveis para o meu avô Aristides. Além da oportunidade de se</p><p>reaproximar do irmão gémeo enquanto esteve em Lisboa, foi recompensado</p><p>com um posto de confiança em Vigo — onde a família recebeu a graça de</p><p>conhecer a irmã Lúcia e, quem sabe, de beneficiar de alguns milagres por</p><p>sua intercessão. São acontecimentos contados e documentados que fazem</p><p>parte das “lendas” familiares e da história de um clã que viveu experiências</p><p>fora do comum.</p><p>O ano de 1926 foi simpático para os meus avôs. Depois de tantos anos</p><p>separados, cada um em seu lado do mundo, estavam agora os dois</p><p>colocados em Lisboa: Aristides estava na Direção-Geral dos Negócios</p><p>Comerciais e Consulares, e César chefiava a Direção-Geral dos Negócios</p><p>Políticos e Diplomáticos. Os gémeos voltaram a aproximar-se, como já não</p><p>acontecia desde que tinham entrado para a carreira diplomática, em 1910.</p><p>Com exceção de dois breves encontros, um no Brasil, em 1919, e outro em</p><p>Berlim, em 1921, devido à morte da mulher de César, os dois irmãos só</p><p>tinham mantido contacto através das cartas que nunca deixaram de escrever</p><p>um ao outro.</p><p>Agora, além de trabalharem para o mesmo “patrão”, tinham horários</p><p>muito parecidos e davam-se com os mesmos colegas e amigos.</p><p>Frequentavam os mesmos cafés e pastelarias de Lisboa. Mandavam fazer os</p><p>fatos no mesmo alfaiate, que lhes conhecia bem as medidas, e que um dia</p><p>começou a notar que os gémeos começavam a diferenciar-se à volta da</p><p>cintura… Em tudo o resto, continuavam tão iguais como sempre, só que era</p><p>possível distingui-los olhando discretamente para a barriga antes de</p><p>pronunciar o nome de Aristides ou de César. Depois do horário de trabalho,</p><p>iam também a espetáculos e visitavam pessoas de família. Eram vistos com</p><p>alguma frequência num restaurante na zona do Chiado, que ainda existe,</p><p>embora já não esteja exatamente como eles o conheceram — o Tavares</p><p>Rico.</p><p>Aristides ficou em Lisboa entre janeiro de 1926 e março de 1927, pouco</p><p>mais de um ano em que repartiu o seu tempo entre o trabalho na capital e</p><p>curtas estadas na sua Casa do Passal, em Cabanas de Viriato, para</p><p>acompanhar os melhoramentos que lá estava a fazer, e também para estar</p><p>mais em contacto com os parentes e a vida local.</p><p>A caminho de Vigo</p><p>Em março de 1927, o meu avô foi nomeado para o consulado geral de</p><p>Portugal em Vigo, uma cidade portuária muito importante para toda a</p><p>Espanha, e também para a Europa. Nos anos 20, Vigo estava em rápido</p><p>crescimento devido à sua posição geográfica e às suas indústrias, em</p><p>especial a pesqueira, com grande potencial para atrair trabalhadores</p><p>portugueses — e também opositores políticos ao regime saído do golpe</p><p>militar do 28 de maio de 1926, o regime da Ditadura Militar. À família,</p><p>pareceu-lhes uma boa mudança, já que era bem perto da fronteira, mesmo</p><p>junto ao rio Minho.</p><p>O consulado de Vigo era apontado como um posto de confiança do</p><p>governo, sendo atribuído a cônsules considerados competentes e zelosos.</p><p>Para Aristides, era um sinal de que a sua carreira poderia avançar, já que era</p><p>visto como um homem de confiança. Para os “críticos” que mencionei em</p><p>capítulos anteriores — a senhora doutoranda e o senhor embaixador da</p><p>época e confiança máxima de Salazar (a partir de 1947) —, a estada do meu</p><p>avô em Vigo serviu de pretexto para, mais uma vez, tentarem diminuir o seu</p><p>carácter, 83 anos mais tarde. Um dia, em 2010 ou 2011, nem me recordo</p><p>bem, esta senhora, de passagem pela Fundação com o nome do meu avô,</p><p>em Lisboa, interpela-me, num tom misto de censura e de aviso: «Sabe que o</p><p>seu avô foi espião?!» Fiquei perplexo, pois nunca tinha ouvido tal absurdo,</p><p>e perguntei-lhe: «Porque diz isso?» A sábia resposta foi que o posto de Vigo</p><p>servia para informar o governo de Lisboa sobre a possibilidade de existirem</p><p>«reviralhistas», ou restos disso, na zona de Vigo. De repente, todas as outras</p><p>funções de um consulado em Vigo, tal como dar assistência à comunidade</p><p>portuguesa ou representar os interesses comerciais do Estado e das</p><p>empresas portuguesas, tinham deixado de existir. Como se a única função</p><p>nesse posto fosse “informar”, e denunciar. Fiquei incomodado, claro, e</p><p>perguntei-lhe se sabia de casos de denúncias feitas pelo meu avô. Aí, a</p><p>honestidade da senhora impôs-se, e a resposta foi «Não.», indo ao encontro</p><p>daquilo que li numa carta escrita por Aristides a César (talvez de finais dos</p><p>anos 30), em que o meu avô paterno escreve: «Posso assegurar-te que nunca</p><p>denunciei ninguém, em quaisquer circunstâncias da minha vida.»</p><p>Aristides precisava de um automóvel de tamanho considerável para deslocar a sua</p><p>numerosa família. Este foi um dos que transportou os Sousa Mendes pela Península</p><p>Ibérica. E também o que levou a irmã Lúcia para a Galiza.</p><p>De qualquer forma, e dependendo das circunstâncias e do momento</p><p>histórico em que se vive, por vezes, as funções de um diplomata podem</p><p>incluir o dever de fornecer informações sensíveis. A Guerra Fria foi rica em</p><p>momentos desses, como nos lembramos, com expulsões e acusações de</p><p>espionagem contra diplomatas, tanto do lado americano como do lado</p><p>soviético.</p><p>Com vista para Portugal</p><p>Aristides e Gigi estavam entusiasmados por ficarem tão perto de Portugal, e</p><p>decidiram ficar a viver não em Vigo, mas em Tui, uma simpática</p><p>cidadezinha situada mesmo em frente do rio Minho, e de onde se podia</p><p>avistar Valença, na margem portuguesa. Como o regulamento do MNE</p><p>exige que os seus funcionários tenham residência na cidade em que</p><p>oficialmente exercem as suas funções, o meu avô alugava um quarto no</p><p>centro de Vigo, por razões oficiais.</p><p>O meu pai, e vários dos meus tios, falaram-me muitas vezes da casa onde</p><p>viveram em Tui, que lhes deixou recordações muito divertidas, sobretudo</p><p>porque para verem o país dos seus sonhos — Portugal — bastava-lhes subir</p><p>as escadas e abrir a janela do quarto: «Quando queríamos ir a Portugal, era</p><p>só inventar um pretexto para irmos buscar um livro ao quarto,</p><p>escancararmos a janela, e respirarmos profundamente», contava o meu pai,</p><p>sempre com um sorriso e um brilho especial nos olhos.</p><p>A qualidade das escolas e a tranquilidade da cidade também foram</p><p>decisivas para a decisão de ficar em Tui. As minhas tias Clotilde, Isabel e</p><p>Joana foram inscritas numa escola ligada às Irmãs Doroteias, recebendo</p><p>assim um ensino considerado de alta qualidade e com uma vertente</p><p>religiosa, permitindo-lhes o contacto de perto e com alguma frequência com</p><p>freiras que ensinavam e viviam no convento. É neste convento que surge a</p><p>recordação que mais marcou a estada da minha família em Vigo e Tui.</p><p>Os milagres da irmã Lúcia</p><p>Os meus tios e o meu pai contaram-me várias vezes este episódio, ocorrido</p><p>com eles e os meus avós, em 1928. Tinham já entrado numa certa rotina; os</p><p>dias de escola e de trabalho do consulado alternavam com dias de passeio e</p><p>de visitas a monumentos — todos tinham ficado maravilhados perante a</p><p>catedral de Santiago de Compostela. Um dia, o meu avô foi contactado pelo</p><p>MNE para ir a Lisboa com alguma urgência tratar de um assunto “discreto e</p><p>delicado”. Criou-se um certo alvoroço à volta dessa notícia, e as crianças</p><p>começaram logo a imaginar coisas. Como a família era muito unida, e já</p><p>tinha percorrido meio mundo sempre junta e pronta para enfrentar novas</p><p>aventuras e o carro era espaçoso e resistente, no dia previsto lá se enfiaram</p><p>todos dentro do automóvel, os pais, os 11 meninos e a fiel Borges, sempre</p><p>atenta e carinhosa. Entre eles e elas, “os meninos” pensaram e imaginaram</p><p>uma quantidade de cenários possíveis. Arrancaram para Lisboa. Ao</p><p>passarem por Coimbra, o automóvel desviou-se para a esquerda, na direção</p><p>da Guarda, mas com destino final bastante mais próximo: Cabanas de</p><p>Viriato, para irem pernoitar na casa de família, onde fizeram uma curta</p><p>estada e, claro, para verem os amigos da terra e as plantas que cada um ia</p><p>plantando no seu espaço próprio, e assim poderem comparar os resultados</p><p>de uns e de outros. Apesar do prazer de pernoitarem na sua Casa do Passal,</p><p>nenhum se esqueceu</p> <p>da “missão secreta”, e as especulações continuaram</p><p>durante toda a viagem.</p><p>No momento marcado para o regresso à Galiza, foi com emoção e</p><p>curiosidade que se dirigiram ao endereço indicado para receberem a</p><p>“encomenda” que só os pais sabiam o que era, por razões de segurança e</p><p>porque, por vezes, as crianças falam demais. Depois de o meu avô ter</p><p>tratado dos assuntos burocráticos em Lisboa, ligados à sua tarefa — a</p><p>famosa “missão secreta” — no MNE, o rumo tomado foi de novo o de</p><p>Coimbra, mas desta vez em sentido sul-norte. Nesta cidade, aproveitaram</p><p>para admirar a estátua da Rainha Santa, de quem a minha avó lhes falava</p><p>tanto, assim como o túmulo de Afonso Henriques. A minha avó agia</p><p>verdadeiramente como um agente transmissor da cultura nacional junto dos</p><p>filhos.</p><p>Finalmente, foram à procura do Convento das Carmelitas de Coimbra,</p><p>pois era aí mesmo que se encontrava uma pessoa muito importante que</p><p>deveria ser levada para Tui. Isto implicava que a pessoa encarregue de</p><p>executar esta missão, além de ser de um nível social elevado, como um</p><p>diplomata, por exemplo, teria também de ser da máxima confiança. E a tão</p><p>aguardada «missão secreta» era, afinal, nada mais nada menos, do que levar</p><p>a irmã Lúcia, a mais velha dos três pastorinhos de Fátima, para o Convento</p><p>das Doroteias em Tui, onde iria aprofundar os seus conhecimentos em</p><p>diversas matérias. Pretendia-se que esta mudança ficasse no segredo dos</p><p>deuses, claro. É fácil imaginar a emoção e a ansiedade das crianças,</p><p>sobretudo dos mais velhos, que tinham um bom conhecimento da história</p><p>de Fátima e da irmã Lúcia, mesmo sem nunca a terem visto: «Como seria</p><p>ela? Como iria ser o contacto? Iria acontecer algum milagre?»</p><p>Depois das primeiras apresentações e das perguntas curiosas das crianças,</p><p>fizeram-se à estrada para não chegarem muito tarde a Tui. O meu avô</p><p>calculou, com as paragens para refeições e idas à casa de banho e sem</p><p>grandes velocidades devido ao estado duvidoso de certas estradas, que umas</p><p>sete ou oito horas de viagem seriam suficientes. E assim foi. A viagem</p><p>correu bem até quase à fronteira luso-galega. As crianças cantaram, riram,</p><p>dormiram e ousaram mesmo falar com a irmã Lúcia. Foi depois, mais</p><p>próximos da fronteira e já a ficar escuro, que a “boa estrada” começou a</p><p>faltar e as coisas se complicaram. Não havia sinalização adequada e</p><p>acabaram em estradas de terra. O meu avô começou a ficar cansado e</p><p>perdeu-se. Os nervos também iam acusando a fadiga e começaram a</p><p>manifestar-se, levando a viatura para direções indesejáveis, de tal forma que</p><p>acabaram por entrar num autêntico caminho de cabras, e onde há cabras, há</p><p>ovelhas e rebanhos, e ao virar numa curva estreita, inesperadamente,</p><p>apareceu-lhes pela frente um enorme rebanho, obrigando o carro a</p><p>imobilizar-se de forma um pouco violenta. Algumas ovelhas, com a colisão,</p><p>voaram pelos ares, balindo alto. Os cães ladraram, e o pastor protestou,</p><p>indignado! Dentro do automóvel ouviam-se gritos de desespero, e de «Ai,</p><p>meu Deus! Meu Deus»! O meu avô restabeleceu-se do susto e recuperou o</p><p>sangue-frio rapidamente, conseguindo abrir a porta para ver os estragos e</p><p>quantos animais teriam sido atropelados e mortos. Já pensava nos danos</p><p>materiais que causara ao pastor, coitado do homem. Quem iria pagar a</p><p>indemnização? Teria de dar conhecimento do incidente à Secretaria de</p><p>Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros? Iria receber alguma</p><p>advertência por condução perigosa?</p><p>O cônsul Aristides de Sousa Mendes em traje de gala.</p><p>Fez-se um silêncio quase de morte dentro do carro. As crianças olharam</p><p>para a irmã Lúcia, como que suplicando que nada de mal tivesse</p><p>acontecido. Silêncio. E eis que de repente, inesperadamente, há uma coisa</p><p>qualquer que começa a mexer no meio daqueles cadáveres todos espalhados</p><p>pelo caminho. Sim, há uma ovelha que está viva (pelo menos uma), levanta-</p><p>se e corre para o pastor, depois mais uma, e mais outra, e outra…</p><p>Finalmente, acabaram por se levantar todas. Estavam todas vivas e de boa</p><p>saúde. «Milagre, milagre!» As crianças tinham acabado de assistir ao</p><p>milagre que tanto esperavam, já que traziam dentro do carro uma “santa”,</p><p>como eles próprios diziam. Tinham acabado de assistir a um acontecimento</p><p>com algo de mágico, de inexplicável, e do qual se iriam lembrar para o</p><p>resto da vida e transmitir à descendência! Teria aquilo sido mesmo um</p><p>milagre?!</p><p>A viagem continuou e a noite ia caindo. A fronteira aproximava-se, e era</p><p>preciso acender os faróis. Ao longe, ouvia-se um comboio, e o meu avô, em</p><p>vez de abrandar, decidiu acelerar para tentar passar na passagem de nível</p><p>antes do comboio, para não perder mais tempo. E aí iam eles em direção à</p><p>linha férrea quando, ao acederem à rampa de acesso, a cancela da passagem</p><p>de nível desaba com força e estrondo mesmo em frente do motor do</p><p>automóvel, imobilizando-o. Os ruídos de ferros e metais sugeriam estragos</p><p>na parte da frente do automóvel. Como estaria o para-choques? E</p><p>sobretudo, ao anoitecer, como estariam os farolins do carro? O que diria a</p><p>polícia espanhola na fronteira, alguns metros mais à frente, ao ver chegar</p><p>um carro do corpo consular a abarrotar de pessoas e sem luzes? Quem seria</p><p>o irresponsável condutor? Mais uma vez, faz-se um silêncio glacial dentro</p><p>do carro. Será que a boa influência da irmã Lúcia iria de novo fazer-se</p><p>sentir? Tão pouco tempo depois da “aventura das ovelhas atropeladas”,</p><p>poderá haver mais algum milagre? As crianças olham para a irmã Lúcia,</p><p>que permanecia em silêncio, sem saber o que dizer.</p><p>O meu avô ganhou coragem, saiu do carro e dirigiu-se para a frente do</p><p>automóvel. Aí, cuidadosamente, verificou o para-choques, os farolins, o</p><p>motor. Inexplicavelmente, tudo parecia estar no lugar. Mandou acender os</p><p>faróis que… deram luz! Foi como se nada tivesse acontecido. Afinal, iriam</p><p>poder prosseguir viagem até Tui. Não iria haver qualquer embaraço na</p><p>fronteira. Não iria haver mais nenhum problema, apenas seria necessário</p><p>conduzir com prudência até ao Convento das Doroteias. E depois: casa!</p><p>Para o meu pai e alguns dos meus tios, esta viagem ficou-lhes na memória</p><p>para sempre. Será que terá havido realmente alguma espécie de milagre</p><p>nisto tudo? Será que o facto de não ter havido avarias no automóvel</p><p>motivadas pela pancada seca da cancela terá sido um milagre, ou o milagre</p><p>terá sido o facto de a cancela, ao desabar em cima do carro, os ter impedido</p><p>de passar a linha férrea no momento em que o comboio ia a passar,</p><p>salvando-lhes a vida? Ou será que o rebanho de “ovelhas atropeladas” não</p><p>terá sido um aviso?</p><p>Se aqui a dúvida se instalou para sempre, houve outro caso envolvendo a</p><p>nossa família e a irmã Lúcia que o meu avô quis ser ele próprio a descrever.</p><p>Por isso, deixo aqui alguns excertos do seu escrito, o acontecimento narrado</p><p>pelas suas próprias palavras e por ele assinado, e tendo o texto intregal sido</p><p>publicado numa revista da especialidade chamada Rosas de Santa</p><p>Teresinha.</p><p>«Cura da menina Teresinha do Menino Jesus de Sousa Mendes do</p><p>Amaral e Abranches</p><p>A Teresinha começou a estar doente em Tui, no dia 9 de janeiro do</p><p>ano de 1928, sofrendo dum furúnculo que lhe nasceu no lábio</p><p>superior, sendo seu médico assistente o Doutor Alejo Diz […] ao</p><p>quinto ou sexto dia da doença, apareceram-lhe nas costas dois</p><p>abcessos, um sobre o rim esquerdo, outro mais abaixo sobre as</p><p>cruzes. Como o Doutor Alejo não estivesse, fui deveras aflito,</p><p>chamar o Doutor Izquerdo que não ocultou a sua má impressão […]</p><p>entretanto, a pequena que tinha tido sempre uma febre intensa com</p><p>delírio, sofria agora dores horríveis, não descansando nem de dia</p><p>nem de noite. Assim se passaram cinco semanas, até que o tumor</p><p>colocado mais acima, começou a tornar-se avermelhado, sinal de que</p><p>iria estar pronto a ser picado dentro de pouco tempo […] enfim,</p><p>chegou o dia em que o tumor já dum tamanho formidável, parecia</p><p>estar em condições de ser operado e eu corri a chamar o Doutor, que</p><p>veio imediatamente, mas entendeu que por ser já tarde, devia</p><p>lancetá-lo no dia seguinte […] porém, teve o Doutor de sair da terra</p><p>em serviço urgente pelo que a operação foi adiada.</p><p>Este adiamento</p> <p>deu lugar a que o tumor baixasse alastrando a</p><p>inchação para baixo, de forma a avolumar o tumor inferior que até</p><p>ali nunca tinha tido um grande desenvolvimento […] Novas</p><p>preocupações assaltaram o nosso espírito, pois nos pareceu que o</p><p>momento próprio de operar tinha passado […] anunciando novas</p><p>complicações […] novos sofrimentos e maiores ainda estava ela para</p><p>suportar, não só o abcesso inferior persistia produzindo intensa febre,</p><p>mas os tratamentos diários do abcesso aberto eram dolorosíssimos,</p><p>achando-se ela num estado de grande enfraquecimento, pois nem se</p><p>alimentava nem descansava […] pode pois avaliar-se a nossa aflição</p><p>em face duma complicação tão grave […] que não poderia resolver-</p><p>se antes de duas ou três semanas […] E os dias e as semanas</p><p>passavam na mais dolorosa das expectativas […]</p><p>Ora é nesta altura que se dá um fenómeno para nós inexplicável:</p><p>durante a noite e contrariamente ao que esperava o Doutor, tudo</p><p>desapareceu, a febre, o tumor, a inchação da perna!</p><p>Quando, de manhã vimos a nossa filha, horas antes tão deformada e</p><p>cheia de febre, sem vestígios de qualquer dos incómodos que durante</p><p>três meses tanto a tinham apoquentado, ficámos deveras atónitos! A</p><p>Teresinha então já se ria e dizia que queria ir para o chão, que estava</p><p>melhor!</p><p>Entretanto, chega o Doutor a quem é revelado o facto e se nega a</p><p>acreditar e que depois de o verificar, ficou na maior das</p><p>estupefações, sem poder explicar aquilo de que estava sendo</p><p>testemunha presencial […] É que houve outra medicina a ocupar-se</p><p>dela: a proteção de Nossa Senhora e de Santa Teresinha do Menino</p><p>Jesus, a quem tanta gente boa pediu com o maior fervor as melhoras</p><p>da Teresinha, proteção que claramente se revelou na graça de que</p><p>ela, inocente, foi julgada merecedora.</p><p>Aqui cabem os nossos agradecimentos às boas Irmãs Doroteias.</p><p>Creio que foram elas que tudo conseguiram com as suas orações.»</p><p>Passados todos estes anos, sei mais do que o meu avô sabia na altura —</p><p>ou pelo menos, do que ele poderia escrever nessa época por razões</p><p>profissionais — e posso acrescentar alguns esclarecimentos. A partir do</p><p>momento em que retomaram a escola, já com a irmã Lúcia no Colégio das</p><p>Doroteias, as minhas tias aproximaram-se dela e de outras irmãs de forma</p><p>mais intensa, participando nas várias atividades do colégio e ajudando as</p><p>irmãs de várias formas. Quando a irmã mais nova, a Teresinha do Menino</p><p>Jesus, adoeceu, elas iam pedindo, sempre que viam a irmã Lúcia na capela,</p><p>no refeitório, ou no corredor, para que não esquecesse a sua irmã mais nova</p><p>nas suas orações.</p><p>Na véspera do “milagre”, a filha mais velha de Aristides, Clotilde,</p><p>extremamente receosa do que poderia vir a acontecer à sua irmãzinha,</p><p>entregou um bilhetinho à irmã Lúcia, com os olhos cheios de lágrimas. No</p><p>fim das aulas, a irmã Lúcia disse-lhes: «Vão para casa e tenham fé. Amanhã</p><p>a vossa irmãzinha estará curada.»</p><p>Clotilde e a irmã Lúcia corresponderam-se ainda durante vários anos.</p><p>Lembro-me de ouvir a minha mãe falar com a minha tia Clotilde sobre essa</p><p>correspondência. No artigo que o meu avô escreveu, foi-lhe pedido que não</p><p>escrevesse o nome da irmã Lúcia para não revelar ao público onde se</p><p>encontrava a jovem pastorinha de Fátima, pois a revista Rosas de Santa</p><p>Teresinha tinha, na altura, em Portugal, uma distribuição bastante razoável.</p><p>E a verdade é que há coincidências extraordinárias, que parecem mesmo</p><p>fenómenos ultrassensíveis que ocorrem inesperadamente. Quando estava a</p><p>escrever este episódio para este livro, sentado à mesa da minha sala de estar,</p><p>fui inexplicavelmente contactado por um senhor belga, de seu nome Alain</p><p>Aelberts, através do meu e-mail, que me informava estar a efetuar uma</p><p>pesquisa sobre a nossa família e que acabara por me «encontrar por acaso</p><p>no ciberespaço» e tinha algumas perguntas sobre algumas das nossas</p><p>origens genealógicas, tendo assim esbarrado comigo. Trata-se de um antigo</p><p>amigo da família, de quem, naturalmente, nunca ouvira falar antes, como</p><p>aconteceu com tantos e tantos amigos ou conhecidos da família por esse</p><p>mundo fora. Interessava-se, nomeadamente, pela mesma história que</p><p>acabaram de ler. E inesperadamente, este nosso amigo, em finais de junho</p><p>de 2016, enviou-me umas cópias de uma publicação cujo título, Toute la</p><p>vérité sur Fatima, me pareceu intrigante. Seria um texto a favor ou contra?</p><p>Esta publicação transcreve o mesmo testemunho do meu avô em versão</p><p>francesa, e ainda acrescenta um texto complementar. O meu avô termina o</p><p>artigo escrevendo: «Aqui cabem os nossos agradecimentos às boas Irmãs</p><p>Doroteias. Creio que foram elas que tudo conseguiram com as suas</p><p>orações.» O meu avô não destaca o nome da irmã Lúcia por razões de</p><p>sigilo, escrevendo apenas: «Creio que foram elas que tudo conseguiram</p><p>com as suas orações». Na família, e de forma discreta, mencionava-se</p><p>sempre a este respeito o nome de Lúcia, mas vejamos o que acrescenta a</p><p>minha tia Isabel num outro artigo.</p><p>«Eu, abaixo assinada Isabel Maria de Sousa Mendes, nascida em</p><p>Zanzibar a 17 de outubro de 1915, filha de Aristides de Sousa Mendes e de</p><p>Angelina de Sousa Mendes, atesto em alma e consciência e sobre a minha</p><p>fé cristã que os factos abaixo descritos são verídicos e refletem de forma</p><p>exata os acontecimentos ocorridos em Tui, Espanha.</p><p>Tendo o meu pai sido nomeado cônsul de Portugal em Vigo, decidiu</p><p>instalar a sua numerosa família em Tui. Nesta cidade havia um convento de</p><p>Irmãs Doroteias portuguesas […] a Madre Superior era a Reverenda Madre</p><p>Saraiva. Sendo os meus pais muito religiosos, estavam ao corrente das</p><p>aparições de Fátima (e os mais velhos de entre nós também) e nós</p><p>conhecíamos perfeitamente a fisionomia de Lúcia e reconhecemo-la com o</p><p>hábito de religiosa. A Madre Superiora pediu-nos para guardarmos segredo</p><p>absoluto sobre a presença de Lúcia no convento, pois ninguém do exterior</p><p>sabia da sua presença. Éramos levadas para a escola pela nossa criada</p><p>Adelaide Fernandes dos Anjos (que mais tarde se tornou, também ela,</p><p>freira, e foi viver no convento em Coimbra), que tinha o costume de levar</p><p>ao colo a nossa irmãzinha Teresinha do Menino Jesus (assim chamada por</p><p>ter nascido no ano da canonização desta santa — 1925).</p><p>Todos os dias víamos a irmã Lúcia nos corredores da escola, que</p><p>brincava com a nossa irmãzinha e falava um pouco com a Adelaide. Por</p><p>causa da grave doença súbita que a afetou, a nossa irmã passou a ficar em</p><p>casa. Estranhando a sua ausência, a irmã Lúcia perguntou à Adelaide o que</p><p>se passava, e tendo sido informada por esta da grave doença, pediu-lhe para</p><p>se dizer aos nossos pais “Para não se inquietarem, pois a Teresinha iria ser</p><p>curada em breve”.» Era como uma confirmação que me chegava muitos</p><p>anos depois, para que eu também não duvidasse dessa “intervenção” da</p><p>irmã Lúcia, no momento em que escrevia sobre o assunto. Depois nunca</p><p>mais tive notícias do senhor Aelberts.</p><p>A família de Aristides de Sousa Mendes na Casa do Passal, no regresso da sua jornada</p><p>pelos postos consulares em climas quentes.</p><p>O tempo foi passando, e o meu avô, como qualquer diplomata, ia já</p><p>pensando noutro posto consular ou diplomático, até que surgiu uma outra</p><p>nomeação, desta vez para Génova, Itália. Certamente que, para as</p><p>autoridades diplomáticas italianas, a simpática recordação do antigo</p><p>representante dos interesses de Itália em Zanzibar tinha tido o seu peso.</p><p>Mas não sei dizer exatamente por que razão, o meu avô preferiu não tomar</p><p>posse. Será que estava à espera de um posto mais atraente do ponto de vista</p><p>financeiro? Pode ter sido essa a razão, pois quando se tem muitas despesas</p><p>por causa de uma família tão numerosa (Aristides deve ter sido o diplomata</p><p>português com o maior número de filhos e despesas com pessoal doméstico</p><p>em duas casas — onde quer que tivesse residência profissional e na sua casa</p><p>de família, em Cabanas de Viriato), é preciso pensar numa boa fonte de</p><p>rendimentos.</p><p>O meu avô, como todos os funcionários do Corpo Diplomático/Consular,</p><p>acompanhava a situação dos vários postos; quem estava onde e até quando;</p><p>remunerações e perspetivas de evolução. Em setembro de 1929, surgiu uma</p><p>nomeação para o</p> <p>consulado-geral de Portugal em Antuérpia — o posto mais</p><p>bem pago da carreira, devido ao movimento marítimo. O seu porto de mar,</p><p>um dos mais frequentados da Europa e do mundo, parecia-lhe uma boa</p><p>oportunidade para equilibrar um pouco o orçamento familiar.</p><p>Obviamente, Aristides não podia deixar a Galiza sem levar mais um</p><p>rebento. Luís Filipe, o décimo segundo filho de Aristides e Gigi, de alcunha</p><p>“o galego”, nasceu em Tui, em 1928. Desde muito cedo deu provas de</p><p>grande sensibilidade e devoção aos pais, o que confirmou de forma muito</p><p>prática nos anos 40, quando os meus avós caíram em desgraça e foram</p><p>viver para Cabanas de Viriato. Luís Filipe, nessas circunstâncias, como se</p><p>verá mais à frente, agiu como secretário de seu pai e enfermeiro de ambos</p><p>os progenitores.</p><p>Foi um cônsul-geral ainda jovem, 46 anos, mulher e 12 filhos, mas já</p><p>com bastante experiência da vida e do MNE, que se apresentou às</p><p>autoridades belgas para começar um mandato que, pela forma como foi</p><p>desempenhado, terá sido dos melhores. Leopoldo III, rei dos belgas,</p><p>também o reconheceu, e demonstrou-o publicamente, condecorando-o em</p><p>duas ocasiões, o que aumentou o prestígio de Aristides de Sousa Mendes.</p><p>CAPÍTULO V</p><p>Antuérpia</p><p>A antecâmara de Bordéus, os últimos tempos de paz, o início da derrocada</p><p>No início dos anos 70 também eu fui viver para a Bélgica. Recusei-me a</p><p>combater na guerra colonial e não tive outra hipótese senão sair de Portugal.</p><p>Escolhi a Bélgica por causa do meu avô Aristides. Podia ter ido para</p><p>França, um país que sempre me atraiu, ou para a Holanda, ou para a Suécia,</p><p>que tinham melhores políticas de acolhimento a refugiados políticos. Preferi</p><p>a Bélgica, por razões afetivas, e tive a sorte de ainda encontrar pessoas que</p><p>tinham conhecido Aristides de Sousa Mendes. Estive lá entre os 18 e os 23</p><p>anos, e visitei os lugares onde o meu avô viveu: Antuérpia, Lovaina.</p><p>Também tinha lá família, uma irmã do meu pai, a tia Maria Isabel, a</p><p>primeira a casar-se.</p><p>Nessa altura percebi — ou confirmei — que a memória tem mecanismos</p><p>complexos, que nos fazem (re)viver e sentir coisas estranhas, algumas</p><p>mesmo inexplicáveis. Nunca, como nessa altura, entendi melhor o</p><p>significado das expressões francesas déjà vu, déjà entendu, déjà vécu.</p><p>Aprendi a interpretar sinais e pressentimentos, esses pressentimentos que</p><p>tantas pessoas da minha família experimentaram ao longo dos tempos, e</p><p>que lhes davam uma espécie de “indicações” sobre acontecimentos</p><p>passados ou futuros — nada que a ciência ou a razão possam explicar, mas</p><p>que entre nós é aceite como mais uma característica familiar. Verifiquei que</p><p>quando me concentrava com muita convicção no que as pessoas contavam</p><p>sobre os tempos do meu avô nesse país, começava a “adivinhar” o que</p><p>iriam contar-me, e hoje tenho problemas em destrinçar o que são as minhas</p><p>memórias autênticas, de coisas vividas por mim, e memórias de algumas</p><p>coisas que aconteceram, mas que eu não vivi e que se passaram vários anos</p><p>antes do meu nascimento. Reconheço pessoas, lembro-me de coisas que</p><p>foram ditas, ou feitas, antes de eu nascer. A forma intensa como os meus</p><p>familiares viveram certos episódios da vida deles, e os testemunhos vívidos</p><p>que passaram aos filhos e netos desses tempos inesquecíveis, misturam-se</p><p>na minha memória com as minhas próprias construções de experiências,</p><p>recordações, e até investigações.</p><p>Seja como for, quando arranquei com o meu tio Pedro Nuno no seu</p><p>Mercedes em direção à Bélgica, em 1970, sabia que ia para um país que já</p><p>conhecia. Por lá ter estado anteriormente, claro, e por dele tanto ter ouvido</p><p>falar, pelo meu pai e pelos meus tios e amigos, que era quase como uma</p><p>segunda pátria. Mas também sabia que ia entrar numa nova fase da minha</p><p>vida.</p><p>Entrámos na Bélgica, tal como Aristides e Angelina fizeram várias vezes,</p><p>passando por Valenciennes como última cidade francesa (tão danificada</p><p>durante as duas guerras mundiais), em direção a Tervueren, próximo de</p><p>Bruxelas, para aí dormirmos, exatamente como a família Sousa Mendes</p><p>tinha feito pela primeira vez no início de setembro de 1929.</p><p>Um período extraordinário</p><p>Ia começar o período mais extraordinário da vida deste casal oriundo de</p><p>duas aldeias do interior da Beira Alta, terras praticamente inexistentes para</p><p>o resto do mundo. O cônsul Aristides de Sousa Mendes, Angelina e os 12</p><p>filhos tinham chegado a um novo destino — que marcaria o início de uma</p><p>época que mudaria a vida de muita gente. A estada na Bélgica é, na</p><p>realidade, a antecâmara de Bordéus — da tragédia de Bordéus, desse início</p><p>de apocalipse.</p><p>A entrada de Aristides na Bélgica ficou fortemente gravada na minha</p><p>memória, apesar de eu só ter nascido 20 anos mais tarde. Em 1929, o meu</p><p>avô tinha 44 anos, a minha avó 41, e o meu pai só tinha 12. Para cada um</p><p>deles, as perspetivas e os pontos de vista eram diferentes.</p><p>Para Aristides, ir para Antuérpia era a continuidade da sua carreira uma</p><p>promoção, já que o posto de cônsul-geral nessa cidade representava um</p><p>aumento de vencimento substancial e um avanço a nível curricular, embora</p><p>já tivesse a categoria de cônsul-geral desde Zanzibar. O posto de Antuérpia</p><p>era cobiçado pelas libras suplementares que acarretava, devido ao</p><p>movimento portuário que desde há muito se verificava nessa cidade. Assim,</p><p>o diplomata nomeado para esse posto tornava-se alvo de olhares e de</p><p>comentários vindos de certos colegas, por vezes ferozes.</p><p>Na Bélgica, a presença de uma rainha como Elisabeth, duquesa da</p><p>Baviera por nascimento, uma grande personalidade da cultura em geral e</p><p>uma magnífica pianista, também fazia sonhar Aristides, Angelina e as</p><p>crianças, que sabiam que esta rainha era neta de um rei português, D.</p><p>Miguel I. É preciso não esquecer que os antepassados de Aristides e de</p><p>César estavam ligados ao liberalismo, e o seu trisavô foi mesmo um dos</p><p>“pais” da primeira Constituição Portuguesa de 1820 — um apoiante de D.</p><p>Pedro IV e não de D. Miguel (o absolutista). Mas no fundo, essa ligação da</p><p>rainha dos belgas a D. Miguel I fazia com que a família no estrangeiro se</p><p>sentisse mais em casa e, ao mesmo tempo, mais próxima da Bélgica.</p><p>O rei dos belgas, nessa altura Alberto I, era também uma figura</p><p>simpática, que se tinha imposto junto dos seus cidadãos pelas suas</p><p>qualidades de liderança e de proximidade com os seus súbditos durante o</p><p>primeiro conflito mundial (1914-18). Teve uma morte trágica no início de</p><p>1934, durante um inofensivo passeio para praticar exercícios de</p><p>montanhismo, apesar de ser um exímio alpinista.</p><p>A família Sousa Mendes instalou-se na cidade universitária de Lovaina,</p><p>numa casa espaçosa na Brusselsestraat, 178, ao lado da Sint-Jacobskerk</p><p>(Igreja de São Jacob), que lhes fazia recordar a Casa do Passal, em Cabanas</p><p>de Viriato. Uma das primeiras iniciativas dos pais foi contratar um professor</p><p>de piano e outro de violino e violoncelo. Seguidamente, vieram outros,</p><p>como o professor de acordeão, e de voz. Toda a família abraçou as novas</p><p>disciplinas com amor e empenho. A música tornou-se contagiosa naquela</p><p>casa de tradições ecléticas, e mesmo as criadas, que acompanhavam a</p><p>família desde Cabanas de Viriato, cantarolavam algumas das melodias que</p><p>mais se ouviam na casa. Tentativas de árias como a Rainha da Noite, da</p><p>celebérrima Flauta Mágica, de Mozart, faziam-se ouvir nos vários quartos</p><p>da casa, habitados tanto pelas filhas do casal como pelas empregadas.</p><p>Os mais velhos escolheram o piano, por já terem tido alguma experiência</p><p>nos Estados Unidos, e terem desenvolvido uma paixão por Chopin, mas a</p><p>partir de Geraldo, meu pai (o sexto filho), foi o violino que se afirmou</p><p>como instrumento mais popular. O meu pai tocou violino toda a sua vida, e</p><p>conheceu violinistas famosos, como Philip Newman, belga de origem</p><p>inglesa, David Oistrakh, russo, que ele (e muitos milhões de ouvintes)</p><p>considerava como o “maior” e, claro, o jovem Yehudi Menuhin, apenas um</p><p>ano mais velho do que o meu pai e que ele tanto emulava. Em Portugal,</p><p>alguns anos mais tarde, meu pai veio a tornar-se amigo e colega (dos</p><p>concertos privados) do futuro “grande violinista português”, Vasco Barbosa,</p><p>filho do professor</p> <p>Luís Barbosa, que tinha uma casa de campo em Póvoa da</p><p>Pegada, bem perto de Cabanas de Viriato. Como a música é entusiasmante e</p><p>contagiosa, também um filho de César se deixou seduzir pelo violino, e</p><p>formou-se no Conservatório Nacional de Lisboa, em violino, com 19</p><p>valores, no início dos anos 40. Até o cônsul Aristides foi “apanhado”, e</p><p>como era sobretudo um homem livre, ousou cantar algumas Lieder de</p><p>Schubert, Brahms e outros famosos, e algumas árias de ópera, tirando umas</p><p>arcadas do seu violoncelo.</p><p>A primeira Espace</p><p>As artes visuais no país de Rubens e Bruegel e tantos outros iriam também</p><p>exigir a presença de mestres que viessem a casa. As meninas inclinaram-se</p><p>mais para quadros a óleo com paisagens e flores, enquanto os rapazes foram</p><p>seduzidos pelos trabalhos a lápis e pela banda desenhada que florescia na</p><p>Bélgica nessa altura. O mais velho, Aristides César, desenvolveu uma</p><p>precisão fora do comum para desenhar vistas de cidades e navios de carga</p><p>ou de passageiros. O meu pai “especializou-se” como desenhador de navios</p><p>de guerra, inspirado pelas imagens ligadas às batalhas navais da Grande</p><p>Guerra de 1914-18. Foi assim, através do talento do meu pai, que desde</p><p>muito cedo aprendi a reconhecer as silhuetas dos grandes couraçados e</p><p>cruzadores ingleses, alemães e franceses dessa época. O meu tio Pedro</p><p>Nuno tinha uma paixão pelos automóveis do seu tempo, naturalmente, de</p><p>tal forma que, em meados dos anos 30, o meu avô lhe pediu que desenhasse</p><p>um carro com características que não existiam no mercado da época, para</p><p>poder ser o seu próximo carro, respondendo às necessidades muito próprias</p><p>de uma família com tantos elementos. E assim, o “quase extravagante”</p><p>cônsul-geral de Portugal em Antuérpia dirigiu-se à Ford/Bélgica, que estava</p><p>em franco crescimento, para lhes fazer uma encomenda de um carro que se</p><p>tornou único no mercado e que recebeu no seu “batismo” o nome de</p><p>Expresso dos Montes Hermínios. O carro, bastante espaçoso — o</p><p>equivalente aos modelos Espace dos nossos dias — levava à vontade 17</p><p>passageiros, e passou a ser o meio de transporte da família tanto para as</p><p>deslocações mais curtas, como para as viagens grandes, tais como as que</p><p>faziam a Portugal. Como bom mecenas que era, Aristides não podia deixar</p><p>de encorajar artistas locais, e assim encomendou ao professor de pintura da</p><p>casa (cujo nome, infelizmente, caiu no esquecimento), o seu próprio retrato</p><p>a óleo. Nesse retrato, o meu avô está sentado a olhar de frente, fixando</p><p>quem o quiser observar, a mão direita no joelho, mostrando um ar</p><p>pensativo, como se não estivesse ali, vestido de escuro e com ar sóbrio.</p><p>O Expresso dos Montes Hermínios, como foi batizado pela família, concebido pela</p><p>Ford para o cônsul português poder viajar com a família. Levava 17 passageiros e foi</p><p>único no seu tempo.</p><p>Os deveres religiosos da Igreja Católica eram rigorosamente cumpridos</p><p>por todos, incluindo as criadas, que também rezavam o terço quase todos os</p><p>dias, em conjunto com a família. Quando se deslocavam em grupo à missa</p><p>de domingo, na igreja ao lado da casa, ocupavam várias filas e davam que</p><p>falar, mas eram apreciados pelos padres e vizinhos da paróquia, a quem</p><p>cumprimentavam e com quem falavam. Aristides adquiriu, nos vários</p><p>antiquários perto de sua casa, algumas imagens e estatuetas de santos, que</p><p>eram gradualmente enviadas para a Casa do Passal, em Cabanas de Viriato,</p><p>onde existia uma bela capela no segundo andar da sua casa, e onde se</p><p>disseram algumas missas. Durante as suas ausências no estrangeiro, o seu</p><p>tio, o padre Francisco Ribeiro de Abranches, continuava a lá ir com</p><p>frequência, e mantinha um quarto próprio. O tio Chico, como era tratado</p><p>pela família, foi pregador régio e, a partir de 1911, prior de Alcobaça. Um</p><p>orador notável, capaz de levar uma igreja inteira às lágrimas.</p><p>As estátuas de exterior ainda hoje podem ser admiradas: uma é a estátua</p><p>de São Cristóvão com o Menino aos ombros, que se encontra na fachada da</p><p>igreja matriz de Cabanas de Viriato, mesmo atrás de sua casa. A mais</p><p>conhecida é a estátua de Cristo-Rei, que, no início dos anos 30, foi colocada</p><p>no alto da sua quinta e à qual se acedia por uma bela escadaria (hoje</p><p>desaparecida). Deve ter sido um dos primeiros Cristo-Rei a serem</p><p>colocados no nosso país, e o trabalho artístico é de uma notável beleza,</p><p>podendo ser visto a grande distância, sobretudo à noite, quando está</p><p>iluminado. Veio desde Lovaina, num comboio de mercadorias, em três</p><p>peças separadas, que depois seriam montadas por trabalhadores locais, que</p><p>também fizeram o pedestal. Quando chegou à estação de Oliveirinha-</p><p>Cabanas, logo a seguir a Carregal do Sal, foi preciso contratar um carro de</p><p>bois e muitos homens fortes, cheios de fé, para o levarem até ao seu destino</p><p>final.</p><p>A cidade de Antuérpia, com as suas magníficas casas históricas dos</p><p>séculos XV e XVI, a grandiosa Grand Place, a catedral e a câmara</p><p>municipal, assim como tantas casas de estilo flamengo carregadas de</p><p>história, tornou-se, num passado não muito distante, um centro económico</p><p>de nível mundial devido ao Escalda, o seu rio de grande caudal e de marés</p><p>que lhe proporcionavam (e proporcionam) condições portuárias excelentes,</p><p>fazendo do seu porto o mais procurado da Europa do Norte. O próprio</p><p>Napoleão, compreendendo o seu valor militar, mandou fazer obras que lhe</p><p>deram a forma atual, sendo o bassin Bonaparte o mais importante.</p><p>Isabel Maria foi a primeira filha a casar, na Bélgica, com Jules d’Août.</p><p>Aristides era um homem de grande cultura e preparava-se muito bem</p><p>antes de ir para um novo posto. Leu muito sobre as ligações históricas entre</p><p>Portugal e a Flandres, e sobre como se desenvolveram as relações</p><p>comerciais entre as duas regiões. No século XVI começaram a desenvolver-</p><p>se as feitorias portuguesas pelo mundo, e naturalmente, apareceu uma que</p><p>desempenhou um papel central para o comércio português no norte da</p><p>Europa — a feitoria da Flandres em Antuérpia, a Casa de Portugal.</p><p>Aristides descobriu essa famosa casa — ou o que restava dela — e surgiu-</p><p>lhe um instinto de “restaurador” e um sonho: conseguir restaurá-la para aí</p><p>instalar um centro de informação sobre Portugal e de contactos comerciais</p><p>com empresas portuguesas, como se fosse um prolongamento do seu</p><p>consulado, e como se ela nunca tivesse deixado de existir. Angelina e os</p><p>filhos aderiram ao sonho, ajudando-o a torná-lo realidade, dando-lhe ânimo</p><p>e entusiasmo.</p><p>A Casa de Portugal era uma belíssima peça de arquitetura flamenga, e o</p><p>seu restauro fez bem a Portugal, à Bélgica e à cidade de Antuérpia. Os</p><p>eventos culturais que aí tiveram lugar ficaram na memória de muita gente</p><p>— momentos muito bem passados, conforme me contaram descendentes de</p><p>pessoas que aí se apaixonaram por Portugal e por portugueses/as. Foi aí,</p><p>num evento cultural, que o jovem João Manita se enamorou de Lionne</p><p>Rega, uma charmosa menina de Lovaina. João foi estudar para Lovaina,</p><p>inspirado pela presença amiga dos meus avós e a conselho de seu pai, o Dr.</p><p>João Evangelista Manita, médico de família dos pais dos gémeos. Aristides</p><p>e Angelina apadrinharam e realizaram o casamento de João e Lionne, em</p><p>1933, e em 1935 foram os padrinhos de batizado da menina que recebeu o</p><p>nome da minha avó e que a mãe, Lionne, quis que nascesse em Portugal.</p><p>Nessa estada para dar à luz a sua bebé, Lionne emociona-se com o grau de</p><p>amabilidade das pessoas do país do seu marido, que nessa altura ainda se</p><p>encontrava com bastante atraso económico em relação ao norte da Europa.</p><p>Anos mais tarde, com a Bélgica ocupada, Lionne e João Manita irão de</p><p>novo ao encontro da família de Aristides e de Angelina, desta vez em</p><p>Bordéus.</p><p>O presidente da câmara de Antuérpia, à época, Frans Van Cauwelaert</p><p>(futuro primeiro-ministro da Bélgica depois da guerra), tornou-se um</p><p>grande amigo e admirador do meu avô, e abriu-lhe as portas da cidade,</p><p>transmitindo esse seu estatuto tão especial ao seu sucessor na câmara,</p><p>Camille Huysmans (que mais tarde também foi primeiro-ministro).</p><p>Amizades e relações que viriam a ser muito úteis em maio de 1940,</p><p>quando a Bélgica foi invadida em força pelo exército</p> <p>Quando precisava de tratar de algum</p><p>assunto em Lisboa, ficava em nossa casa, uma cave num prédio da Avenida</p><p>de Berna.</p><p>A Casa do Passal, e todas as recordações lá preservadas, alimentaram o</p><p>espírito e o coração de Aristides nos últimos tempos da sua vida. Fora lá</p><p>que começara a sua família com Maria Angelina, sua primeira mulher, e</p><p>onde nasceram os dois primeiros filhos, Aristides e Manuel. Foi na Casa do</p><p>Passal que se realizaram muitas reuniões de família e de amigos. E foi na</p><p>Casa do Passal que Aristides e Angelina receberam dezenas de refugiados</p><p>no verão de 1940. Conheci ainda muitos conterrâneos que se recordavam</p><p>desses tempos e lembravam a presença das famílias de Vleeschauwer, de</p><p>van Zeeland, de Gutt, e de muitos funcionários do governo belga que</p><p>fugiam da ocupação nazi na Bélgica, na Holanda e no Grão-Ducado do</p><p>Luxemburgo, ocorrida em maio desse ano.</p><p>Casa do Passal, em Cabanas de Viriato, lar da família Sousa Mendes em Portugal.</p><p>Recordavam-se também de haver muitos religiosos católicos a tentarem</p><p>escapar ao nazismo, que ocupavam a cave do Passal, à qual se acedia por</p><p>uma porta que ainda hoje existe, na grande sala de entrada, por trás da</p><p>escadaria central da casa — aquela escadaria “monumental”, para mim pelo</p><p>menos, é assim que surge nas minhas memórias de criança, uma escadaria</p><p>impressionante. Também a casa ao lado da cozinha, com a garagem em</p><p>baixo e alguns quartos no andar de cima, servia para receber refugiados. E</p><p>havia ainda os “refugiados” da própria região de Cabanas, que viviam em</p><p>péssimas condições: nem sempre tinham comida, e sabiam que às quintas-</p><p>feiras a cozinha do Sr. Dr. Aristides e da D. Angelina estava aberta para os</p><p>mais necessitados, não só nesse primeiro ano de guerra em que havia</p><p>grandes faltas de alimentos, mas já há várias décadas, mesmo na ausência</p><p>do Sr. Cônsul, quando, por razões profissionais, se encontrava noutras</p><p>partes do mundo. Mesmo longe, Aristides e Angelina não esqueciam o povo</p><p>de Cabanas.</p><p>Da janela do seu quarto, no andar de cima, na mansarda, Aristides, se</p><p>olhasse ligeiramente para a direita, podia ver a histórica chaminé, estilo</p><p>renascença, da Casa do Aido, onde nasceu a 19 de julho de 1885. Do lado</p><p>de trás da casa via a belíssima torre da Igreja de São Cristóvão, enquadrada</p><p>pelas altas red trees que ele próprio tinha trazido da Califórnia: as famosas</p><p>árvores gigantes da floresta de Muir Woods, perto de São Francisco. Era em</p><p>Cabanas de Viriato que conseguia encontrar a tranquilidade e a paz de</p><p>espírito que o processo movido pelo regime lhe retirara. Era como um</p><p>refugiado no seu próprio país, mas ali, na Casa do Passal, sentia-se tão bem</p><p>acolhido como ele próprio sempre acolhera os que lá tinham procurado</p><p>refúgio.</p><p>Todos os dias percorria as várias salas e salões da casa, e revia cenas que</p><p>tinham marcado a sua vida: os gritos de alegria dos filhos e filhas sempre</p><p>que vinham de férias das várias missões diplomáticas ou consulares que</p><p>desempenhou — Guiana Britânica, Zanzibar, Brasil, Estados Unidos,</p><p>Bélgica, Galiza; revia toda a epopeia dos vistos, o processo iníquo de que</p><p>foi alvo por parte de Salazar; sentia a felicidade de todos pelo regresso à</p><p>casa de família; recordava aquele dia de 1943 em que dois dos seus filhos</p><p>partiram para Londres para se alistarem no exército americano chefiado por</p><p>Dwight Eisenhower, e o mês de agosto de 1945, quando dois jovens</p><p>soldados de uniforme americano bateram à porta da frente da Casa do</p><p>Passal para reverem os pais e a família e dizerem que afinal tinham</p><p>sobrevivido à guerra e ao terrível desembarque da Normandia, onde tantos</p><p>milhares de jovens tinham sido abatidos.</p><p>Via-se de novo no salão de entrada com família e amigos à sua volta,</p><p>quando chegaram os dois caixões metálicos que em 1934 trouxeram os</p><p>corpos dos dois filhos que tinham morrido nesse ano, em Lovaina, na</p><p>Bélgica: Manuel Silvério, o seu segundo filho, e Raquel Hermínia, a mais</p><p>pequenina. Certamente que ouvia as palavras de carinho e emoção que</p><p>todos lhe dirigiam, recordava os momentos que precederam a saída da casa</p><p>para o jazigo de família, no cemitério de Cabanas, atrás da quinta, ao lado</p><p>da igreja. Momentos que marcaram de modo muito vincado as recordações</p><p>dos próprios cabanenses. Geraldo já na rua, acompanhado ao piano por sua</p><p>irmã Clotilde, que permanecia dentro de casa com as janelas abertas,</p><p>liderava o cortejo fúnebre tocando no seu violino a famosa Marcha Fúnebre</p><p>de Chopin, avançando em passo muito lento em direção ao cemitério:</p><p>«Todo o povo, emocionado, chorava», como me contou José Barros</p><p>Martins, um amigo da família, que naquela época exercia as funções de</p><p>jovem sacristão, com apenas sete anos. Geraldo, o meu pai, reviveu comigo</p><p>algumas vezes este episódio, com lágrimas nos olhos. Também os meus</p><p>tios, quando os encontrei, ao longo da minha vida, nos vários locais onde</p><p>moravam, exprimiam sempre uma grande dor e saudade ao recordarem este</p><p>momento.</p><p>O charme da carreira diplomática</p><p>Quando Aristides chegou ao mundo, nos primeiros minutos do dia 19 de</p><p>julho de 1885, já tinha sido ultrapassado pelo irmão gémeo, César, que</p><p>nasceu ainda a 18 de julho, alguns minutos antes da meia-noite. Um irmão</p><p>que aprendeu a conviver com ele ainda no ventre da mãe e que toda a vida</p><p>ficaria a seu lado, pelo menos em pensamento e no coração. O verdadeiro</p><p>gémeo que sabe o que o outro pensa e que sente da mesma maneira. O que</p><p>um faz é percecionado pelo outro, mesmo que seja a um mundo de</p><p>distância. Nada os separa, há entendimento completo em tudo. Adivinham o</p><p>que o outro diz ou faz, mesmo quando têm oceanos a separá-los. Um</p><p>mistério que a ciência ainda não conseguiu explicar.</p><p>Obviamente, foram sempre juntos para a escola, tiveram os mesmos</p><p>amigos e professores, e davam-se da mesma maneira com todos. Estes é</p><p>que, «evidentemente» (como os gémeos gostavam tanto de dizer), por vezes</p><p>se deixavam apanhar no jogo e nem sempre tinham a certeza de com quem</p><p>estavam a falar. Receberam a mesma educação religiosa, os mesmos</p><p>exemplos, iam juntos para a missa e para a catequese. Admiravam os</p><p>mesmos santos (São Francisco, Santo António e Santo Agostinho) e</p><p>discutiam assuntos teológicos e transcendentes. Gostavam dos mesmos</p><p>bolinhos e doces.</p><p>Como o pai era juiz, tiveram muitas mudanças de cidade e de escola.</p><p>Viveram em Vila Nova de Foz Côa, Mafra, Aveiro, Évora, Povoação (na</p><p>ilha de São Miguel, Açores), Mangualde, Lisboa, Viseu e Coimbra, entre</p><p>outras, onde os registos das várias escolas que frequentaram referem dois</p><p>excelentes alunos, metódicos, aplicados, amáveis, pautando-se por</p><p>princípios de grande ética, tal como aconteceu também em relação ao</p><p>período em que foram estudantes na Universidade de Coimbra.</p><p>O curso de Direito permitiu-lhes continuarem juntos até aos 22 anos,</p><p>quando terminaram a licenciatura. Em maio de 1910, ambos decidiram</p><p>apresentar-se a concurso para adidos de embaixada, vulgo Carreira</p><p>Consular e Diplomática. Prepararam-se juntos, leram os mesmos manuais,</p><p>reviram as mesmas provas feitas em anos anteriores. Encontraram os</p><p>mesmos funcionários, com quem trocaram ideias e opiniões, aprenderam a</p><p>expor as ideias da mesma forma. Como resultado, ambos obtiveram</p><p>classificações notáveis nas provas de admissão, tal como sublinhado no</p><p>jornal Notícias do Carregal ou no Debates, onde muitas outras notícias</p><p>sobre eles foram publicadas ao longo de várias décadas. E como eram</p><p>gémeos, foram admitidos ao mesmo tempo, em maio de 1910, ainda em</p><p>tempos de monarquia, começando as suas carreiras ao serviço do último rei</p><p>de Portugal, D. Manuel II.</p><p>Aristides de Sousa Mendes, jovem cônsul.</p><p>E foi a carreira comum e tão desejada pelos dois que acabou por separá-</p><p>los fisicamente, aos 25 anos. César começou com missões em Inglaterra e</p><p>Espanha, e Aristides foi para Demerara, na insalubre Guiana Britânica, lá</p><p>para os lados da Ilha do Diabo (Guiana Francesa), onde os franceses</p><p>mantinham o bagne de triste memória (colónia penitenciária de trabalhos</p><p>forçados). Em 1910, e nos anos seguintes, não havia telefones a funcionar</p><p>devidamente; os serviços postais primavam pela lentidão, e para</p> <p>alemão nazi. Estes</p><p>senhores encontravam-se entre os numerosíssimos refugiados belgas que</p><p>passaram por Bordéus, e que com genuíno prazer reconheceram o “caloroso</p><p>sorriso de Aristides e de Angelina” na casa que lhes abria as portas e lhes</p><p>dava um certo conforto, no meio da incerteza da guerra.</p><p>Antuérpia também foi um dos centros europeus que atraiu a atenção dos</p><p>portugueses que, no início do século XVI, procuravam outro lar devido à</p><p>expulsão de 1496 imposta por D. Manuel I, rei de Portugal, que em tempos</p><p>de incompreensão e intolerância aceitou as condições inquisitoriais vindas</p><p>de Madrid, por ordem dos Reis Católicos.</p><p>Quando saía de casa para as suas ocupações, Aristides revia nas ruas de</p><p>Antuérpia e nas lojas dos diamanteiros, muitas caras que tinham sido</p><p>portuguesas quatro séculos antes. Mal sabia ele que dentro de alguns anos</p><p>voltariam a encontrar-se mais uma vez, num caminho de fuga ao nazismo…</p><p>ou num caminho de regresso a uma pátria distante.</p><p>Um diplomata “rodado”</p><p>Em 1929, o cônsul Aristides de Sousa Mendes já tinha acumulado uma boa</p><p>experiência profissional e do que poderia esperar de certas pessoas, em</p><p>determinadas ocasiões. Desde 1910, quando fora admitido por concurso na</p><p>Carreira Diplomática, já se tinham passado quase 20 anos. Aristides tinha</p><p>passado pela Guiana Britânica, na América do Sul, onde conheceu uma</p><p>comunidade portuguesa desorganizada e longe das suas raízes; tinha</p><p>encontrado outros portugueses no oceano Índico, com outras preocupações.</p><p>Depois, foi para a bela Curitiba, onde enfrentou acusações absurdas de “ter</p><p>participado ativamente” em tentativas de mudanças de regime político em</p><p>Portugal — o que era difícil, estando ele continuamente ao serviço do país</p><p>nas suas comunidades no estrangeiro, numa altura da história da</p><p>Humanidade onde a distância fazia realmente sentir o seu peso. Estava-se</p><p>muito longe de suspeitar que a tecnologia evoluiria até ao ponto de as</p><p>decisões poderem ser tomadas na ponta dos dedos à distância de um</p><p>clique… Em seguida, foi para a Califórnia em comissão de serviço. Em</p><p>todos estes postos recebeu sempre o testemunho eloquente do apreço dos</p><p>seus concidadãos pela qualidade dos serviços prestados e pela fidelidade</p><p>incondicional aos seus compatriotas. Também enfrentou problemas</p><p>inesperados vindos de alguns colegas portugueses, que Rui Afonso, o</p><p>biógrafo do meu avô, descreve nos seus livros Injustiça e Um Homem Bom.</p><p>Quando chega à Bélgica, Aristides é um diplomata “rodado”, ama a sua</p><p>profissão, exprime-se bem em várias línguas, e é um homem que transmite</p><p>segurança e carisma.</p><p>Vou contar um episódio que me parece emblemático da sua personalidade</p><p>e do que ele representava na cidade de Antuérpia. Poderíamos dizer que,</p><p>durante alguns anos, se tinha tornado uma personagem quase</p><p>“incontornável” da sociedade local. Este episódio foi-me contado por mais</p><p>de uma vez pela mesma pessoa, o Dr. Álvaro Bordalo, um famoso bibliófilo</p><p>português, grande intelectual e professor de Filosofia e de História em</p><p>estabelecimentos do ensino secundário de Lisboa. Foi justamente num</p><p>desses colégios de Lisboa onde ele ensinava, o Colégio Valsassina, que tive</p><p>o privilégio de o conhecer, já há muito anos.</p><p>Num início de ano letivo, nos anos 60, numa aula de História, o Dr.</p><p>Álvaro Bordalo entra na sala de aula e começa a fazer a chamada dos</p><p>alunos para os conhecer. Quando chega a minha vez, ele debruça-se um</p><p>pouco mais e deixa algumas recordações virem ao de cima (simpáticas, pela</p><p>expressão que se ia desenhando na cara). Nós, íamo-nos interrogando sobre</p><p>o motivo de tal reação, olhando uns para os outros, até que o Dr. Bordalo</p><p>me pergunta, com voz forte: «O senhor é alguma coisa a um certo Aristides</p><p>de Sousa Mendes que foi cônsul de Portugal na Bélgica durante os anos</p><p>30?» Respondi-lhe que sim, com alguma curiosidade da minha parte, assim</p><p>como dos meus colegas. «Então vou contar-lhe a seguinte historieta»,</p><p>prosseguiu o Dr. Bordalo, «que me aconteceu durante os anos 30 numa</p><p>viagem que fiz à Bélgica, à procura de livros antigos, como faço já há</p><p>vários anos em diferentes países.»</p><p>«Tinha passado bastantes dias em Antuérpia, e tinha encontrado alguns</p><p>livros que me interessavam muito, por diversas razões. Quando me</p><p>preparava para obter as licenças especiais para exportá-los da Bélgica para</p><p>Portugal, tive de dirigir-me às autoridades belgas (alfândegas e outras). À</p><p>medida que os funcionários iam verificando os livros, começavam a surgir</p><p>cada vez mais complicações. Olhavam para mim como se eu fosse algum</p><p>traficante, ou qualquer bandido, e começavam a tornar-se agressivos e</p><p>malcriados. Lá me fui explicando, e avançando com as minhas razões, a fim</p><p>de poder trazer comigo aqueles preciosos livros, mas... nada a fazer. Já</p><p>completamente em desespero, e não sabendo como poderia resolver o</p><p>assunto, mencionei que em última instância teria de ir falar com o cônsul-</p><p>geral de Portugal, pessoa de quem nunca tinha ouvido falar e de quem nem</p><p>conhecia o nome, mas para mim, naquele momento era “o tudo ou nada”»,</p><p>contava o professor.</p><p>Aristides de Sousa Mendes durante uma receção no âmbito das suas funções</p><p>consulares.</p><p>«Pois bem, quando disse: “A última coisa que me resta fazer é dirigir-me</p><p>ao senhor cônsul-geral de Portugal…” foi como se tivesse dito uma palavra</p><p>mágica! A partir desse momento, tudo mudou. Passaram a tratar-me com</p><p>toda a deferência e respeito, e resolveram tudo a meu favor como se eu</p><p>fosse, de facto, uma respeitável pessoa (que era, claro). Pediram imensa</p><p>desculpa pelos incómodos causados e até me indicaram onde era o</p><p>consulado de Portugal. Evidentemente, eu já nem precisava de falar com o</p><p>cônsul, mas ao ver que bastava indicar a sua pessoa para que tudo se</p><p>resolvesse, pensei que era minha obrigação ir agradecer-lhe. Ao mesmo</p><p>tempo, estava com uma enorme curiosidade em conhecer tal senhor, que</p><p>conseguia apenas com o seu prestígio ser útil aos seus compatriotas e</p><p>resolver situações. Fui vê-lo e posso certificar-vos que realmente se tratava</p><p>de um cavalheiro de grande categoria», concluía o Dr. Bordalo.</p><p>Para mim, é uma história que transmite bem a ideia que sempre fiz do</p><p>meu avô, desde muito jovem, por ter ouvido sobre ele episódios parecidos</p><p>com este, e por observar nos meus tios e tias, assim como no meu pai, um</p><p>certo tipo de atitudes que poderia classificar “deste género”.</p><p>Senti uma certa vaidade diante dos meus colegas, mas foi em ocasiões</p><p>como esta que compreendi que o sentimento adequado a ter nestas</p><p>situações, é o de responsabilidade e modéstia para nunca «envergonhar a</p><p>família», como escreveu a minha bisavó aos seus dois filhos em várias</p><p>cartas: «Nunca se esqueçam de que são meus filhos e nunca pratiquem atos</p><p>de que eu me possa envergonhar.»</p><p>A partir de 1935, com as famigeradas leis de Nuremberga, a atmosfera da</p><p>ameaça nazi ia-se tornando cada vez mais pesada, e os contornos de um</p><p>futuro próximo bastante negro também se definiam. Muitos alemães</p><p>começavam a abandonar o seu próprio país, sentindo-se perseguidos e</p><p>“estrangeiros”. Já não eram apenas pressentimentos negativos, eram ruídos</p><p>estrondosos que passaram a ressoar na mente de Aristides e de Angelina, tal</p><p>como na de muitos cidadãos europeus.</p><p>A Bélgica iria deixar de ser conhecida apenas pelas famosas pralines de</p><p>Bruxelas, ou as agradáveis gaufres, ou as inesquecíveis Stella Artois, ou</p><p>simplesmente as Stella (cerveja), que os meus tios mais velhos começaram</p><p>a descobrir (ou a beber claramente diante de todos, pois a idade já lhes</p><p>permitia essas liberdades). Se o meu pai era um rapazinho de 12 ou 13 anos,</p><p>interessado por banda desenhada e pelas aventuras de um jovem repórter</p><p>«no país dos sovietes», e admirador das pinturas de um grande pintor belga</p><p>que se ia impondo, René Magritte, os mais velhos, além dos enormes</p><p>passeios de bicicleta, interessavam-se já por um eventual futuro ligado à</p><p>profissão do pai. Aristides César, o filho mais velho, tinha 20 anos, Manuel</p><p>Silvério 18, José António 17 (este, sobretudo, começou muito cedo a agir</p><p>como o “secretário do papá”), Clotilde Augusta 16, Isabel Maria tinha 15, e</p><p>por aí abaixo.</p> <p>Na Bélgica vieram ao mundo os dois últimos: João Paulo, em</p><p>1931, e Raquel Hermínia, em 1933.</p><p>O tempo dos debates</p><p>A pouco e pouco, a numerosa família ia-se adaptando à bela cidade de</p><p>Antuérpia, mesmo se de facto viviam e estudavam em Lovaina, a escassos</p><p>20 minutos de comboio. O que atraía Aristides era o ambiente académico</p><p>que conheceu em Coimbra nos seus tempos de estudante, e que aí tentava</p><p>reencontrar. Inscreveu os quatro filhos mais velhos em Direito e Ciências</p><p>Políticas, e a certa altura teve seis dos seus filhos aí matriculados. Pedro</p><p>Nuno, apenas com 16 anos, recebe um Certificado de Admissão no Curso</p><p>de Ciências Sociais e Políticas, depois se ter submetido a uma série de</p><p>exames.</p><p>Como era uma universidade católica, os meus tios e tias encontraram</p><p>muitos estudantes de diversas origens nos cursos ligados à formação</p><p>eclesiástica. Alguns vinham de Goa ou de outras colónias portuguesas,</p><p>outros de Portugal, e tornaram-se amigos bastante próximos de um</p><p>quebequense que mais tarde se tornou autor de uma importante reforma</p><p>educativa no Quebeque — monsenhor Parent — e que, nos anos difíceis a</p><p>seguir à guerra, apadrinhou a imigração do meu tio Luís Filipe para o</p><p>Canadá, em 1948, apanhando-me a mim por “ricochete” nos anos 70.</p><p>A casa dos meus avós em pouco tempo passou a ser um ponto de</p><p>encontro para muitos estudantes da Universidade Católica, porque muitos</p><p>moravam em quartos e não tinham espaço para receber amigos e assim</p><p>manterem debates e discussões alargadas sobre temas na ordem do dia, tais</p><p>como os avanços da extrema-direita em muitos países europeus, ou as</p><p>ameaças para a paz mundial.</p><p>Três dos filhos mais novos do cônsul, Pedro Nuno, o escuteiro, Francisco Fernando e</p><p>Sebastião que, em 44, iram desembarcar na Normandia, como soldados americanos.</p><p>Levantavam-se muitos cenários possíveis do que poderia vir a acontecer.</p><p>Para Aristides, estes debates eram enriquecedores e contribuíam para definir</p><p>melhor as suas posições e atitudes como homem e, sobretudo, como cristão,</p><p>nomeadamente a partir de 1933, quando, na Alemanha, Adolf Hitler venceu</p><p>as eleições e Hindenburg o nomeia Chanceler do III Reich. O cenário de</p><p>uma Segunda Grande Guerra era falado com muita frequência nos tempos</p><p>que se seguiram, e na comunidade judaica de Antuérpia sentia-se muita</p><p>apreensão, e havia muita especulação. Aristides previa que, no caso de uma</p><p>guerra, a Europa seria o lugar a evitar, e começava a pensar numa eventual</p><p>transferência para a China ou para o Japão, chegando mesmo a fazer esse</p><p>pedido ao seu superior hierárquico, António de Oliveira Salazar, ministro</p><p>dos Negócios Estrangeiros na altura. Como para qualquer ser humano,</p><p>perante o perigo, a prudência impunha-se, não se tratando “apenas” de uma</p><p>possível tentativa de fuga às suas eventuais responsabilidades para com os</p><p>seus “irmãos”, em caso de guerra.</p><p>Cada vez que apareciam refugiados nos meios académicos, havia</p><p>conferências, entrevistas, encontros com debates sobre o que poderia vir a</p><p>caminho. Em 1933 apareceu Albert Einstein, que foi acolhido nos meios</p><p>académicos com alvoroço. Aristides organizou encontros para os seus</p><p>círculos de debate, e convidou-o para que conhecesse a sua família — foi o</p><p>célebre encontro com o irmão mais novo de César e Aristides, José Paulo, o</p><p>jovem oficial da marinha de guerra portuguesa que na altura se tinha</p><p>deslocado à Universidade de Lovaina para fazer “mais algum estágio” e que</p><p>adorava participar em debates e encontros. Quem frequentava muito esses</p><p>encontros com a família e tinha sempre pontos de vista e comentários de</p><p>grande valor, era um outro famoso Prémio Nobel — Maurice Maeterlinck</p><p>—, o grande dramaturgo que em 1911 recebeu o Prémio Nobel da</p><p>Literatura. Maeterlinck, o mais famoso poeta e dramaturgo belga conhecido</p><p>no estrangeiro, podia partilhar com Aristides “o fatalismo e o misticismo”.</p><p>Uma das suas peças mais conhecidas, La Sagesse et la destinée, tinha muito</p><p>a ver com Aristides pela evocação de um certo destino concebido</p><p>superiormente, e de uma importante missão a cumprir, por isso as conversas</p><p>entre os dois podiam prolongar-se até tarde, arrastando admiradores de</p><p>Maeterlinck.</p><p>Maurice Maeterlinck apreciava as grandes famílias. Perdera</p><p>precocemente a sua única filha e tinha uma vida conjugal complicada, por</p><p>isso, provavelmente, encontrava algum consolo junto de Aristides e</p><p>Angelina. Outra coisa que admirava, tal como Aristides, eram as casas</p><p>grandes com salas largas e compridas. Ele próprio participou e incentivou o</p><p>restauro de casas e monumentos antigos, como uma abadia no norte de</p><p>França, onde viveu durante um certo período da sua vida.</p><p>Durante muito tempo, estive na dúvida se Maeterlinck alguma vez veio a</p><p>Portugal, e se sim, se teria ido a Cabanas de Viriato visitar os seus amigos</p><p>de Antuérpia. Há uns anos, 2010 ou 2011, não estou bem certo, numa</p><p>conferência no Estoril sobre o meu avô, mencionei esta minha dúvida, e,</p><p>dias depois, encontrei por acaso uma das funcionárias da Câmara Municipal</p><p>de Cascais que tinha assistido ao colóquio, e que tinha encontrado uma</p><p>cópia do registo de Maeterlinck no Palace Hotel do Estoril com data de</p><p>finais dos anos 40, que me mostrou. Terá ele ido nessa ocasião a Cabanas de</p><p>Viriato visitar os amigos Aristides e Angelina? Ou terá tentado visitá-los,</p><p>por ocasião do seu regresso dos Estados Unidos, em 1945, onde passou o</p><p>tempo da “morte e da destruição” que foi a Segunda Guerra Mundial?</p><p>Haverá em casa de algum cabanense fotografias antigas em que ao lado de</p><p>Aristides apareça algum ilustre desconhecido cuja cabeça seja a do célebre</p><p>Maeterlinck? Se calhar, um dia ainda se descobrirá…</p><p>No que se refere a obrigações oficiais, Aristides assumiu um papel de</p><p>destaque ao acolher, em julho de 1932, na Gare Centrale de Bruxelas, na</p><p>companhia de Alberto de Oliveira, chefe da legação de Portugal em</p><p>Bruxelas, e de muitos diplomatas belgas e estrangeiros, o novo ministro dos</p><p>Negócios Estrangeiros de Portugal, que chegava de Estocolmo, onde tinha</p><p>estado em serviço como ministro plenipotenciário. O objetivo desta viagem</p><p>a caminho de Lisboa, visitando várias capitais europeias, era afirmar junto</p><p>dos chefes de Estado desses países o empenho de Portugal nas boas</p><p>relações comerciais e culturais. A Gare Centrale de Bruxelas assumiu um ar</p><p>bastante festivo e europeu (para a altura), cheia de bandeiras de várias</p><p>cores; as bandeiras tricolores belgas voavam ao lado de bandeiras verdes e</p><p>vermelhas, que faziam lembrar as próprias bandeiras da cidade de Bruxelas,</p><p>pela mesma combinação de cores: e eis que lá ao fundo, na curva, surge o</p><p>Expresso Internacional, provocando reações de alguma agitação e</p><p>curiosidade, junto do numeroso público. Quando o comboio finalmente se</p><p>imobilizou, vários funcionários belgas acorreram para abrir a porta da</p><p>carruagem da qual sairia o ilustre ministro. Quando o passageiro pisou a</p><p>plataforma da estação, alguns desses diplomatas começaram a olhar uns</p><p>para os outros, sem perceber o que se passava. Mais um déjà vu? É que</p><p>olhavam para o distinto passageiro, e depois olhavam à sua volta com a</p><p>impressão de já o terem visto em qualquer lado. Uma situação algo</p><p>embaraçosa… O que é que se estava a passar? O cônsul de Portugal no cais</p><p>de embarque parecia-se como uma gota de água com o novo ministro</p><p>português: «Será que os portugueses são todos assim tão parecidos?»</p><p>Os funcionários designados para receber o eminente diplomata que vinha</p><p>em visita de dois dias a Bruxelas não tinham sido avisados de que o novo</p><p>ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal se chamava César de Sousa</p><p>Mendes e era o irmão gémeo do cônsul de Portugal em Antuérpia. Durante</p><p>os dois dias que se seguiram, foi um festival de enganos e gafes de todo o</p><p>género, causando embaraço por vezes, ou situações de riso contido, até nos</p><p>banquetes e nas situações de protocolo mais rígido.</p><p>As cerimónias mais importantes incluíram visitas a vários ministérios</p><p>belgas, deposição de uma coroa de flores junto ao túmulo do soldado</p><p>desconhecido da Grande Guerra, encontros com diversas personalidades e,</p><p>sobretudo, um banquete no Palácio Real de Laeken,</p> <p>onde os dois irmãos</p><p>tiveram a honra de serem recebidos pelo rei Alberto I e pela rainha</p><p>Elizabeth, neta de D. Miguel I de Portugal. Os jornais belgas deram</p><p>bastante destaque a essa visita, e houve sempre muito público nas várias</p><p>cerimónias.</p><p>Último retrato de família, com César e alguns dos seus filhos, antes da tragédia que se</p><p>abateu sobre Aristides e Gigi.</p><p>Entre as camadas laicas dos estudantes da Universidade Católica de</p><p>Lovaina encontravam-se os filhos de algumas das mais antigas e</p><p>“melhores” famílias europeias. A aristocracia polaca e báltica achava</p><p>elegante enviar os seus descendentes para a Universidade de Lovaina, assim</p><p>como os descendentes do antigo império russo. Os Habsburgos da</p><p>Áustria/Hungria também estavam bem representados nesta Universidade,</p><p>assim como os grandes de Espanha e de Itália. Foi aí que os meus tios</p><p>avistaram pela primeira vez Otto von Habsburgo, que alguns anos mais</p><p>tarde (em 1940) reconheceram no meio do caos que foi a chegada a</p><p>Bordéus de milhares e milhares de refugiados, vindos de todos os países</p><p>ocupados pelas tropas nazis, quando passou pelo consulado de Portugal em</p><p>Bordéus em busca de um visto para ele, sua mãe, Zita, a última imperatriz,</p><p>viúva de Carlos I, e o seu numeroso séquito.</p><p>A missão de Aristides de Sousa Mendes e as suas responsabilidades na</p><p>Flandres incluíam igualmente deveres num país vizinho, o Grão-Ducado do</p><p>Luxemburgo, onde nos anos 30 havia muito poucos portugueses. A</p><p>representação portuguesa no Grão-Ducado era mais para fins comerciais, e</p><p>não tanto para servir uma comunidade portuguesa emigrada, como viria a</p><p>acontecer nas últimas décadas do século XX. O gesto do cônsul em relação</p><p>ao Grão-Ducado do Luxemburgo seria mais relevante e digno de nota a</p><p>partir de maio de 1940, quando este país foi invadido pelas tropas de Hitler.</p><p>O início da derrocada</p><p>No início de 1934, os belgas foram sacudidos por um trágico acidente que</p><p>perturbou muitas pessoas: Alberto I, 59 anos, rei dos belgas, sofre um</p><p>acidente enquanto praticava alpinismo, escorregando durante uma</p><p>inofensiva passeata, só para descontrair. Inexplicável, é o absurdo no seu</p><p>grau mais elevado. Tal como tantas outras, a família de Aristides e Angelina</p><p>estremece.</p><p>Poucos meses depois, Manuel Silvério, 23 anos, filho de Aristides de</p><p>Sousa Mendes e de Angelina, nascido em Beijós, Portugal, recém-</p><p>licenciado em Ciências Políticas e Diplomáticas pela Universidade Católica</p><p>de Lovaina, para festejar a sua licenciatura pega numa das suas irmãs nos</p><p>braços e dá um terrível mau jeito. Fica de cama dois dias, os meus avós</p><p>mandam chamar o médico, que receita uma injeção, cujo único resultado</p><p>visível é a sua morte, sem que nunca se saiba porquê.</p><p>Léon Van der Essen, secretário-geral da Universidade de Lovaina e seu</p><p>professor, escreve a Aristides de Sousa Mendes: «Manuel protegê-lo-á e à</p><p>sua família, lá do alto, para que outras provações lhe sejam poupadas.»</p><p>Foi uma tragédia. Aristides e Angelina afundam-se. Angelina cai numa</p><p>depressão atroz que preocupa toda a família, até em Portugal. Já perto do</p><p>final desse ano, a mais nova, Raquel Hermínia, a bebé, nascida em Lovaina</p><p>um ano e meio antes, sucumbe a uma meningite. Uma família tão</p><p>numerosa, tão feliz e cheia de êxitos, de repente fica brutalmente reduzida a</p><p>12 filhos dolorosamente traumatizados. No verão seguinte, seguem as duas</p><p>urnas metálicas com os corpos embalsamados para Portugal, onde serão</p><p>instaladas na grande sala de entrada da casa de família. É aí que todos os</p><p>amigos e familiares virão prestar uma última homenagem à família</p><p>destroçada. Essa imagem ficará para sempre na mente de todos, e em</p><p>especial na de Aristides, até ao fim da sua vida. É nessa ocasião que se</p><p>organiza o cortejo fúnebre em que Clotilde ao piano e Geraldo com o seu</p><p>violino tocam a Marcha Fúnebre de Chopin que ressoa por toda a vila de</p><p>Cabanas, um cortejo que a passo lento se dirige para o jazigo da família.</p><p>Corre o ano de 1935, que tantos dissabores trouxe a Aristides. A</p><p>felicidade da família foi atingida e é a derrocada que começa.</p><p>A Bélgica também continua a sofrer. Em 1935, Leopoldo III, rei dos</p><p>belgas desde a morte de Alberto I, seu pai, “desce aos infernos” ao volante</p><p>do seu carro, quando a sua mulher, a rainha Astrid, lhe pergunta algo no</p><p>mapa da região suíça, em que se encontravam a passar alguns dias. Esses</p><p>poucos segundos de desatenção bastaram para que o carro saísse da estrada.</p><p>Leopoldo trava bruscamente, Astrid é projetada violentamente contra uma</p><p>árvore, e resiste ainda uns 15 minutos durante os quais o jovem rei a</p><p>acompanha, despedaçado.</p><p>Na Alemanha, Hitler dá passos decisivos em direção ao extermínio da</p><p>Humanidade. O que muitos previam que pudesse acontecer, vai mesmo</p><p>acontecer. Cada vez mais, chegam relatos que anunciam a hecatombe.</p><p>Manuel Silvério, segundo filho, e Raquel Hermínia, décima quarta, morreram ambos</p><p>na Bélgica com alguns meses de intervalo, com 23 anos e 18 meses, respetivamente.</p><p>Quanto ao cônsul Aristides, tem a carreira profissional “armadilhada”. É</p><p>difícil não entrar no caos quando se tem uma família tão vasta, com tantas</p><p>despesas, e apenas um salário de diplomata tão exíguo. Acrescidas das</p><p>despesas dos funerais de dois filhos e do sogro, o pai de Angelina, que</p><p>morre inesperadamente em Portugal, em 1937. Aristides e Angelina têm de</p><p>estar presentes na última homenagem, e por isso vêm a Portugal sem a</p><p>devida autorização do MNE. Mais um processo disciplinar contra o cônsul</p><p>Aristides… felizmente arquivado. Bem, arquivado pelo MNE, porque</p><p>certos “colegas” vão desenterrá-lo no processo que lhe foi movido por</p><p>desobediência em 1940.</p><p>São precisas muita força moral e muita resistência para manter o barco à</p><p>tona no meio de tanta tempestade. Novos escolhos surgem para dificultar a</p><p>vida de Aristides e Angelina. Alguns “bons colegas” de Aristides já há uns</p><p>tempos que vinham fazendo as contas à vida do meu avô: «Como pode ele</p><p>sobreviver, com 14 filhos, pessoal doméstico, casa de família a precisar</p><p>sempre de obras, e monumentos, educação artística, etc.? Em 1935, os</p><p>pagamentos ao Ministério estavam atrasados, claro! Tem de haver uma</p><p>inspeção às contas! Uma sindicância, para que ele aprenda a não se atrasar</p><p>nos pagamentos! Vamos surpreendê-lo com um processo disciplinar. De</p><p>certeza que não aguenta.» E assim foi.</p><p>Mas surge algo em que o “inimigo” não pensou — a força da</p><p>solidariedade e da fraternidade. No dia em que o cofre do consulado iria</p><p>finalmente ser aberto para se verificar o que se pensava ser a falta de</p><p>milhares de francos, afinal estava lá tudo e não houve castigo para ninguém.</p><p>Não houve processo disciplinar.</p><p>César, o irmão gémeo, que se encontrava como ministro plenipotenciário</p><p>em Varsóvia, o cunhado Silvério (engenheiro construtor naval), o primo</p><p>José de Mello Cabral, e outros, conseguiram reunir os 100.000 francos</p><p>belgas em questão, afastando a ameaça para longe.</p><p>A Bélgica, que lhes foi tão simpática e tão trágica, finalmente surge para</p><p>os Sousa Mendes sobreviventes como um lar agradável, muito agradável</p><p>mesmo. Ainda havia estudos a completar na Universidade Católica de</p><p>Lovaina. Pedro Nuno tinha sido aceite na Faculdade de Direito, o meu pai,</p><p>Geraldo, também se interessa por estudos em Ciências Políticas. Os filhos</p><p>de Aristides e Angelina decidem escrever uma carta ao presidente Carmona,</p><p>a pedir-lhe que autorizasse o pai a ficar mais uns anos nesse país. Uma carta</p><p>que fez rir no Palácio das Necessidades.</p><p>Em 1936, Aristides torna-se o decano do Corpo Diplomático em</p><p>Antuérpia. Teria muitas coisas interessantes para realizar, mas não haveria</p><p>mais ajudas de custo. Tudo teria de ser financiado pelo seu bolso, mesmo</p><p>despesas que não fossem para seu proveito próprio. Verdadeiramente, o que</p><p>o motivou sempre foi o “amor pelo contacto com as pessoas, e servir o</p><p>próximo da melhor maneira”. Tal disponibilidade não se calcula em</p><p>dinheiro.</p><p>Apesar de os filhos terem manifestado interesse em ficar em Lovaina, em</p><p>fevereiro desse ano, Aristides, conhecedor do seu valor, decide escrever a</p><p>Salazar, então ministro dos Negócios Estrangeiros e, portanto, seu</p> <p>superior</p><p>hierárquico, expondo os seus motivos e ambições profissionais. Por um</p><p>lado, precisava de um posto que lhe permitisse aumentar os seus</p><p>rendimentos. Por outro, pressentia que se aproximava um conflito de</p><p>dimensão apocalíptica na Europa e no mundo: a repressão causada pelas</p><p>leis de Nuremberga em 1935 e a criação do primeiro campo de</p><p>concentração — Dachau — em 1933, dois meses após a chegada ao poder</p><p>de Hitler, levavam-no a querer ir para bem longe da Europa, de Portugal, da</p><p>sua vila natal.</p><p>Destaco alguns dos pontos referentes à evolução da sua carreira que,</p><p>muito justamente, Aristides coloca a Salazar numa carta: «[… ] tenho a</p><p>honra de rogar a V. Exa. que se digne promover-me ao posto de chefe de</p><p>missão de 2.ª classe e colocar-me numa dessas Legações (China e Japão).</p><p>1. Sou cônsul de 1.ª classe desde junho de 1918, tendo prestado</p><p>serviços nessa qualidade em vários postos extra europeus e na</p><p>Secretaria de Estado.</p><p>2. Tenho prestado serviços especiais à situação (na Galiza, tendo</p><p>recebido por várias vezes palavras de louvor) e aqui na Bélgica</p><p>tendo uma atividade que V. Exa. conhece e poderá devidamente</p><p>apreciar.</p><p>3. Há perto de dois anos que eu desempenho, sem remuneração</p><p>especial, nesta cidade (Antuérpia), o cargo de Decano do Corpo</p><p>Consular, onde há mais de 50 postos, dos quais 26 são de carreira.</p><p>4. O desempenho deste cargo, pondo-me em relações mais íntimas e</p><p>frequentes com as autoridades locais e com os colegas, constitui para</p><p>mim uma prática e um tirocínio cujo valor não é para desprezar.</p><p>5. Enquanto cônsul nesta cidade continuei, como nos postos</p><p>anteriormente ocupados por mim, a gozar da simpatia e consideração</p><p>gerais que tantas vezes e por forma cativante me têm sido</p><p>publicamente demonstradas.</p><p>6. Colaborei na organização da “Casa de Portugal” tendo</p><p>desempenhado o cargo de presidente da respetiva comissão, onde</p><p>procurei sempre desenvolver com os meus colaboradores uma</p><p>intensa ação de propaganda a favor do país e do Estado Novo, e,</p><p>finalmente,</p><p>7. Fiz durante a minha gerência aqui, como nos outros postos, várias</p><p>conferências de carácter comercial, literário e turístico que na</p><p>ocasião própria foram comunicadas a essa Secretaria de Estado.»</p><p>Nesta fase da sua estada na Bélgica, Aristides tinha sido condecorado</p><p>duas vezes pelo rei dos belgas, uma delas com a mais elevada comenda da</p><p>Bélgica — Comendador da Ordem da Coroa. Gozava de grande prestígio</p><p>neste país, tendo em certa ocasião sido reconhecido em público pelo próprio</p><p>rei como: «Ah, voici mon ami, Monsieur le Consul Général du Portugal!»</p><p>Por que razão terá Salazar decidido enviar o meu avô para Bordéus —</p><p>um posto como o precedente, senão inferior — em vez de aceder ao seu</p><p>pedido? Se o tivesse feito, a História teria sido muito diferente.</p><p>Provavelmente, nem teria havido “história” para Aristides e Angelina de</p><p>Sousa Mendes, durante os anos da guerra. Mas a História vive-se pelas</p><p>pessoas, com as suas emoções e atos de coragem. Há certas forças e</p><p>presenças que determinam o rumo dos acontecimentos, que nós, homens e</p><p>mulheres, simplesmente não conseguimos imaginar.</p><p>Nos tempos que precederam a partida da Bélgica, pais, filhos e criadas</p><p>enfiaram-se várias vezes no Expresso dos Montes Hermínios e foram</p><p>revisitar os vários sítios onde foram felizes, as várias casas — a principal</p><p>em Lovaina — onde Manuel Silvério terminou a sua licenciatura e a sua</p><p>curta vida. A de Bruxelas, na comuna de Auderghem, que parecia um</p><p>château. Visitaram as escolas, o corpo de escuteiros que Pedro Nuno</p><p>frequentou durante tantos anos e onde fez amigos para a vida, os</p><p>professores e mestres de arte, os companheiros, alguns dos padres das</p><p>igrejas a que iam. Foram visitar em especial, e passar mais tempo com,</p><p>Isabel Maria, a quinta filha do casal, nascida em Zanzibar, que iria</p><p>continuar a sua vida na Bélgica.</p><p>Isabel frequentara a Universidade Católica de Lovaina, e devido à sua</p><p>beleza e simpatia tinha vários admiradores. Entre eles, houve um que</p><p>conquistou o seu coração e a sua família, ao apresentar-se em casa dos meus</p><p>avós e fazer um pedido em casamento em língua portuguesa, com toda a</p><p>pompa e circunstância. O casamento com Jules d’Août, descendente de um</p><p>marechal da Grande Armée de Napoleão Bonaparte, e natural de Malines,</p><p>deu-se em Lovaina, em 1938. Em Bordéus, em junho de 1940, a vaga de</p><p>desespero dos milhares de refugiados da invasão nazi, vai levar este jovem</p><p>casal, já com um filho de poucos meses, para os braços seguros de Aristides</p><p>e de Angelina.</p><p>No decorrer dessas muitas despedidas, algo aconteceu que poderia ser</p><p>considerado como premonitório: uma tarde, entraram no carro e foram</p><p>despedir-se de um dos vários lagos onde tinham passado momentos tão</p><p>agradáveis. E aconteceu algo de tão inesquecível, que ainda me foi contado</p><p>várias vezes de tão marcante que foi. Colocaram na água o grande cruzador</p><p>que os acompanhava já dos tempos da América, aquele imponente navio de</p><p>guerra que formava uma impressionante massa cinzenta e causava medo a</p><p>todos. Puseram as máquinas a trabalhar e deram-lhe um rumo em direção ao</p><p>outro lado, onde já se encontravam dois irmãos, esperando o encontro. Lá</p><p>foi ele, vomitando fumo negro pelas longas chaminés, e fazendo um</p><p>barulho aterrorizador, até que a meio da travessia, sem que se perceba</p><p>como, o enorme cruzador começa a perder velocidade, o fumo aumenta e</p><p>até há quem tivesse visto chamas… De repente, uma enorme explosão abala</p><p>as margens do lago, que provavelmente nunca tinha assistido a tal coisa.</p><p>Houve peças a voar por todo o lado, gritos e choro!</p><p>Foi, de facto, um sinal muito agoirento para os meus familiares que,</p><p>considerando a corrida aos armamentos que se vivia na época, viram neste</p><p>episódio o “prelúdio do fim”.</p><p>Aristides de Sousa Mendes tomou posse do último posto da sua carreira</p><p>consular diplomática 11 meses antes do início da Segunda Guerra Mundial.</p><p>Pressentia que iria viver um difícil período de violência, mas estava longe</p><p>de imaginar que tinha sido colocado em Bordéus para cumprir uma missão</p><p>superior, uma missão que não tinha escolhido, mas que teve de abraçar.</p><p>CAPÍTULO VI</p><p>Bordéus I</p><p>O primeiro “visto”, a Circular 14, a desobediência a Salazar e a voz de Deus</p><p>É uma família muito reduzida que parte para a cidade que irá pôr o cônsul</p><p>Aristides de Sousa Mendes na História. Mas é também a cidade que ditará o</p><p>fim da sua carreira e os anos de tormento em que passará o resto da vida. O</p><p>meu avô não terá dúvidas em obedecer à voz de Deus e desobedecer à de</p><p>Salazar. Toda a família sofrerá, por longos anos, as consequências da sua</p><p>decisão. Mas ninguém, em momento algum, se arrependeu da atitude</p><p>tomada em Bordéus. A gratidão dos que foram salvos pelo meu avô ainda</p><p>hoje ecoa pelos seus descendentes — muitos deles tentam contactar-nos, a</p><p>nós, netos de Aristides, para nos contar como os seus parentes (e, por vezes,</p><p>eles próprios ainda muito jovens) conseguiram escapar ao horror nazi</p><p>graças à generosidade daquele homem. Para nós, que soubemos a tristeza</p><p>em que viveu os últimos anos, é muito gratificante saber que os seus vistos</p><p>permitiram não só salvar vidas, como também dar grandes contributos para</p><p>as artes, para a ciência, para a investigação… Muitas das pessoas salvas</p><p>pelo meu avô tornaram-se personalidades de relevo em várias áreas assim</p><p>que conseguiram refazer as suas vidas do outro lado do Atlântico.</p><p>O último verão de paz</p><p>O verão de 1938 seria o último que a família passaria junta na paz e na</p><p>tranquilidade da Casa do Passal, em Cabanas de Viriato. Esse verão ficou</p><p>gravado nas memórias de todos como um sonho impossível de recuperar.</p><p>Os meus avós aproveitaram o mês de agosto para organizarem a vida</p><p>familiar e social em Cabanas de Viriato. Arranjar a casa, as roupas, as</p><p>recordações, rever amigos e familiares, visitar o jazigo de família.</p><p>O meu pai tinha decidido passar mais tempo em Portugal para recuperar</p><p>o atraso que tinha a nível dos estudos portugueses. Queria fazer cá a</p><p>universidade, com o objetivo, pouco original, de seguir a carreira</p><p>diplomática. A licenciatura proposta pelo Instituto Superior de Ciências</p><p>Económicas</p> <p>e Financeiras parecia-lhe a melhor opção. Geraldo, meu pai,</p><p>vivera a maior parte da vida no estrangeiro, e adquirira uma vasta cultura</p><p>geral e conhecimentos linguísticos bem acima da média, assim como uma</p><p>excelente noção da carreira consular e diplomática, e decidira apostar numa</p><p>formação superior em Lisboa. Aos 21 anos, sentia-se adulto e pronto a</p><p>enfrentar a vida sozinho.</p><p>O brilhante exemplo de um primo direito servia-lhe de inspiração:</p><p>Francisco José de Moncada e Abranches de Sousa Mendes, filho mais velho</p><p>do seu tio César (gémeo de Aristides), que desde muito jovem vivia de</p><p>forma algo independente em relação aos pais, não tendo acompanhado o pai</p><p>diplomata nas suas primeiras viagens, nomeadamente ao Japão.</p><p>Francisco José fora um aluno brilhante em todas as matérias escolares e</p><p>destacara-se em todas as atividades em que se envolvera, nomeadamente</p><p>desportivas. Falava alemão como um berlinense, francês e inglês, e quando</p><p>o pai foi ministro plenipotenciário na Suécia, antes da nomeação para</p><p>ministro dos Negócios Estrangeiros, aproveitou para aí passar temporadas e</p><p>aprender esqui nórdico e patinagem, além de ter estudado sueco, que</p><p>aprendeu em muito pouco tempo, como me confirmaram várias fontes.</p><p>Fez o exame para o MNE, no qual obteve resultados excelentes, e foi</p><p>admitido na carreira diplomática por concurso, ao terminar o curso de</p><p>Ciências Económicas e Financeiras. Como coincidiu com a nomeação do</p><p>pai (César) para essa pasta (1932), este nomeou-o seu secretário pessoal.</p><p>Francisco José exerceu essas funções até à sua trágica morte, na primavera</p><p>de 1933, um ano antes da de seu primo Manuel Silvério, em Lovaina.</p><p>Os irmãos mais velhos do meu pai, Aristides César e José António, nunca</p><p>conseguiram recuperar da morte de Manuel Silvério em Lovaina. De certa</p><p>maneira, a morte do irmão levou-os a rejeitar a continuação dos estudos,</p><p>contentando-se em ajudar o pai nos assuntos do consulado. José sentia a</p><p>tragédia de Lovaina como um pesadelo do qual acordaria a qualquer</p><p>momento. Os dois irmãos mais velhos iam buscar conforto ao piano, à</p><p>música e aos assuntos culturais em geral.</p><p>Aristides César ainda se licenciou em Estudos Franceses, o que lhe</p><p>permitiu ganhar autonomia. Deu aulas em Viseu e Coimbra, e por essa</p><p>razão não acompanhou sempre o pai nos anos de decadência, nem esteve</p><p>presente no momento da sua morte, em 1954. Há alguns meses, um vizinho</p><p>meu apresentou-me a um seu amigo, que tinha sido aluno de francês do</p><p>meu tio Aristides no Seminário de Viseu, nos anos 50, e que fez uma bela</p><p>evocação da sua memória: «Um homem de grande modéstia e</p><p>simplicidade.» Confessou que só muito recentemente o associara ao cônsul</p><p>de Bordéus, de quem até há pouco tempo nunca tinha ouvido falar, pois</p><p>como sabemos, no antigo regime ninguém falava “dessas coisas”, e os</p><p>meios de comunicação social estavam limitadíssimos.</p><p>Quanto às filhas, Isabel Maria casou-se com Jules d’Août poucos meses</p><p>antes da partida da família da Bélgica, e Clotilde iria casar-se em Cabanas</p><p>de Viriato no ano seguinte, em dezembro de 1939. Para o novo posto, o</p><p>cônsul levaria uma família mais reduzida e, em consequência, também</p><p>menos criadas. Bordéus não era longe, bastaria atravessar Espanha, ainda</p><p>banhada em “sangue quente” do conflito de 1936-39.</p><p>Família reduzida a caminho de Bordéus</p><p>Foi um grupo muito mais pequeno do que era costume que se enfiou no</p><p>Expresso dos Montes Hermínios. Chegaram a Bordéus mesmo no fim de</p><p>setembro, na altura exata em que se desenrolavam os tristemente célebres</p><p>Acordos de Munique (29 e 30 de setembro de 1938), no âmbito dos quais os</p><p>representantes de França e de Inglaterra acabariam por ceder perigosamente</p><p>às pressões da Itália de Mussolini e, sobretudo, da Alemanha de Hitler,</p><p>deixando que este último anexasse o território dos sudetas, na</p><p>Checoslováquia. Não só não apaziguaram Hitler e o Reich, como, pelo</p><p>contrário, lhe deram mais força e convicção para os seus avanços. A guerra</p><p>total vinha a caminho, já se sentiam os primeiros ecos. Todos sabiam que</p><p>era inevitável, só não se sabia como iria começar, nem quando. E todos</p><p>estavam muito longe de imaginar as consequências. O Anschluss, que</p><p>anexou a Áustria à Alemanha, tinha sido consumado em março desse ano, e</p><p>a Noite de Cristal iria acontecer daí a dois meses. Essa noite marcaria o</p><p>início da ofensiva aberta contra os judeus, aos quais já tinham sido retirados</p><p>os direitos cívicos, e que já estavam afastados da vida económica na</p><p>Alemanha e nos territórios anexados.</p><p>Em casa do meu avô, todos estes acontecimentos eram debatidos e</p><p>comentados. Havia um sentimento de compaixão crescente em relação às</p><p>vítimas, que ninguém duvidava de que seriam em grande quantidade. Os</p><p>corações batiam com mais força, movidos pela compaixão inspirada pelo</p><p>amor ao próximo e pelos valores do cristianismo que sempre pautaram o</p><p>estilo de vida em casa de Aristides e Angelina, e que nós, netos, em</p><p>Portugal e do outro lado do Atlântico, ainda hoje podemos sentir e</p><p>compreender.</p><p>Em Portugal, o governo e as autoridades que, claro, iam acompanhando</p><p>os acontecimentos apesar da distância, iam definindo uma espécie de</p><p>orientação no sentido de “afastar” possíveis problemas que certas</p><p>“categorias de pessoas” pudessem vir a causar, em função dos interesses de</p><p>Salazar e do regime. Assim, em outubro de 1938 (11 meses antes da</p><p>declaração de guerra), Salazar introduz novas restrições aos vistos para</p><p>judeus que quisessem entrar no nosso país, exigindo-lhes que adquirissem</p><p>vistos de turismo por períodos de 30 dias, se precisassem de entrar no nosso</p><p>território. Uma forma de limitar o acesso a Portugal e de travar assim</p><p>eventuais planos de “certas pessoas”. Surgiu, então, a célebre Circular 10,</p><p>de outubro de 1938, que seria progressivamente endurecida por outras, até</p><p>11 de novembro de 1939, já em plena Segunda Guerra Mundial, com a</p><p>Circular 14, e sob forte controlo da polícia política portuguesa, a então</p><p>PVDE (a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado).</p><p>Na família, tanto do lado de Aristides como de César, sempre houve o</p><p>hábito de se falar dos assuntos mais prementes. Na Bélgica, com todos os</p><p>estudantes que frequentavam a casa, a política internacional, as crises e as</p><p>ameaças estavam sempre na ordem do dia. Mais tarde, através do meu pai e</p><p>dos meus tios, nos anos 50 e 60, pude ter uma boa ideia desses debates e do</p><p>nível das análises políticas que decorriam em casa dos meus avós em</p><p>Lovaina, nos anos que precederam a guerra e durante os anos 40/45. A sorte</p><p>reservada aos judeus era algo que certamente as pessoas de um certo meio</p><p>social em Portugal pressentiam. Na família ainda mais, devido ao</p><p>conhecimento adquirido nessa “antecâmara” que foi a Bélgica.</p><p>É de espantar como é possível que um antigo diplomata da época de</p><p>Salazar tenha publicado, não há muito tempo, num “volume de más</p><p>memórias”, afirmações como: «O certo é que em junho de 1940 ninguém</p><p>em França perseguia os judeus pelo facto de o serem»; «a ocupação alemã</p><p>de toda a França só não aconteceu devido ao prestígio e habilidade</p><p>diplomática negocial do marechal Pétain e colaboradores.»; «o problema</p><p>para estes fidagais antissalazaristas retrospetivos é que em 1940 nenhum</p><p>judeu estava em perigo de vida ou até de prisão em França, depois do</p><p>armistício». Para terminar, o diplomata escreve: «Assim se faz a história,</p><p>mas a verdade vem sempre ao de cima, é uma questão de tempo, já o</p><p>lembrámos várias vezes.»</p><p>O número 14</p><p>A primeira tarefa de Aristides ao chegar a Bordéus, tal como nos outros</p><p>postos, foi encontrar uma habitação espaçosa e digna, num bairro decente,</p><p>para servir de consulado-geral de Portugal, e de alojamento. A morada</p><p>encontrada foi 14, Quai Louis XVIII, Bordéus.</p><p>Catorze, o número de filhos; 14, o número da maldita circular que</p><p>Salazar iria assinar dentro de um ano, proibindo aos cônsules de carreira a</p><p>concessão de vistos de entrada em Portugal a certas categorias de</p><p>refugiados (aos judeus, de forma alguma); 14, o número de anos que iria</p><p>durar o resto da sua vida atormentada até morrer, em 1954.</p><p>Catorze foram também os anos que o Portugal democrático</p> <p>levou entre o</p><p>25 Abril de 1974 e a aclamação da reintegração póstuma de Aristides na</p><p>carreira diplomática, como ministro plenipotenciário de 2.ª classe</p><p>(embaixador), na Assembleia da República, em abril de 1988.</p><p>14, Quai Louis XVIII, Bordéus, o consulado de Portugal onde Aristides começou a</p><p>emitir os famosos vistos.</p><p>Em Bordéus, como em todos os outros postos, tratar da família impunha-</p><p>se, e foi preciso encontrar escolas para os filhos que o acompanhavam, e</p><p>para Pedro Nuno que queria continuar os estudos universitários, depois de</p><p>uma experiência de curta duração na Universidade de Lovaina. Devido ao</p><p>atraso com que chegaram a Bordéus em relação ao calendário académico, a</p><p>matrícula na Faculdade de Direito só se efetuou no ano seguinte.</p><p>Aristides e Angelina depressa começaram a apreciar o quartier onde</p><p>iriam viver nos próximos tempos. Tinha lojas e cafés, e ficava a cerca de</p><p>cem metros de uma das maiores e mais imponentes praças europeias, a</p><p>Esplanade des Quinconces, que em junho de 1940 iria acolher muitos</p><p>milhares de refugiados em tendas, ou ao ar livre. Não muito longe,</p><p>encontrava-se uma rua com um nome muito sugestivo para a experiência</p><p>que eles iriam viver, a Rue de la Juiverie. Lá perto, outra rua emblemática</p><p>desta cidade, a Rue Sainte-Catherine, uma das mais movimentadas de</p><p>Bordéus, frequentada por todo o género de pessoas, e onde se faziam todos</p><p>os negócios possíveis e imagináveis.</p><p>A paróquia a que pertenciam também lhes agradou, pelas pessoas</p><p>simpáticas que aí foram encontrando. Frequentavam a Igreja de Saint Louis,</p><p>e mais de 40 anos depois, numa das muitas visitas que fiz a Bordéus, ainda</p><p>encontrei, por acaso, pessoas que se lembravam «dessa família tão católica,</p><p>que era vista quase todos os dias na primeira missa da manhã», e cuja</p><p>imagem permanecia na memória de alguns. Foi nesta mesma igreja que em</p><p>2004, no 50.º aniversário da morte de Aristides, o arcebispo de Bordéus,</p><p>Jean-Pierre Ricard, celebrou missa em sua homenagem, e evocou muitas</p><p>das frases do meu avô, com destaque para a que acabou por se tornar a sua</p><p>mais conhecida: «Assim declaro que darei com todo o entusiasmo vistos</p><p>para todos, independentemente da origem de quem o peça. O meu desejo é</p><p>antes “estar com Deus contra os homens do que com os homens contra</p><p>Deus”.»</p><p>Gradualmente, no outono de 1938, apesar das circunstâncias, a rotina</p><p>acabou por se instalar no consulado e na família. Para chanceler, apareceu</p><p>um indivíduo chamado Seabra, de quem nunca ouvi falar muito bem na</p><p>família. O meu pai, que o conheceu durante os tempos que passou de visita</p><p>a Bordéus, classificava-o de “salazarista”, tal como os meus tios Pedro</p><p>Nuno e José António, que sempre o viram com alguma reserva. E, pelo</p><p>visto, com alguma razão, como se verá quando da “crise dos vistos”, em</p><p>junho de 1940. Há quem, no entanto, tenha tendência a considerar Seabra</p><p>como “fiel” a Aristides, ou pelo menos “simpatizante”, mas francamente,</p><p>não faço ideia de onde e como essa ideia poderá ter surgido. O biógrafo do</p><p>meu avô, Rui Afonso, descreve-o como sendo uma pessoa solitária, que</p><p>teria sofrido um desgosto amoroso e ia regularmente ao cemitério deixar</p><p>flores na campa da sua amada.</p><p>No serviço da casa e da família, a minha avó tinha a ajuda da Fernandita,</p><p>a quem chamavam a “petiza”, e que já falava francês por ter estado com os</p><p>Sousa Mendes na Bélgica. O meu tio José António, pela sua idade e</p><p>experiência, agia cada vez mais como braço direito do meu avô, e tratava de</p><p>assuntos mais pessoais. Saía bastante para ir passar umas horas ao piano,</p><p>em bares ou cafés. Outro local que frequentava para tocar, era o</p><p>Conservatório de Música de Bordéus, hoje Conservatoire de Bordeaux</p><p>Jacques Thibaud. Jacques Thibaud foi um grande violinista francês que</p><p>morreu num desastre de avião nos anos 50. Para perpetuar a sua memória, a</p><p>cidade atribuiu o seu nome ao conservatório, já depois da sua morte.</p><p>Durante o verão, Thibaud dava aulas na sua casa de praia, no sul de França,</p><p>em Saint-Jean-de-Luz.</p><p>Em 1940, entre os seus alunos encontrava-se César, o filho do gémeo de</p><p>Aristides, que desde 1934 era ministro plenipotenciário de Portugal em</p><p>Varsóvia, Polónia. O jovem César estudava violino no conservatório, e</p><p>assim, com a invasão de França no início de junho de 1940, será mais uma</p><p>testemunha do inferno vivido pelos refugiados em Bordéus, deixando um</p><p>depoimento escrito sobre o desempenho humanitário dos seus tios e primos</p><p>naquela cidade.</p><p>Ventos de guerra</p><p>Pedro Nuno, que tinha sido escuteiro durante vários anos em Lovaina e que</p><p>tinha uma boa experiência de observação de pessoas e de situações</p><p>diversas, tornou-se numa espécie de “repórter de exteriores” numa altura</p><p>em que as emissões de rádio e o jornalismo em geral eram incipientes.</p><p>Pedro Nuno era cada vez mais o arauto que levava as “últimas notícias”</p><p>para casa, descrevendo aos pais como o ambiente social se ia degradando</p><p>no centro e nos arredores de Bordéus. As idas à estação de Bordéus-Saint</p><p>Jean deixavam perceber a presença de novos refugiados que falavam</p><p>alemão, provavelmente vindos da região dos sudetas ou da Áustria, que</p><p>passara a fazer parte do III Reich, o que era um sinal inquietante. Tudo isto</p><p>era seguido ao pormenor, e Aristides ia medindo a evolução da situação ao</p><p>mesmo tempo que escutava atentamente as notícias na rádio, que falavam</p><p>de movimentos de armamento pesado em território alemão.</p><p>Busto de Aristides em Bordéus, homenagem da cidade e da comunidade ao “cônsul</p><p>desobediente”, que foi descerrado por Mário Soares, então Presidente da República,</p><p>em 1994.</p><p>Um dia, no início de janeiro de 1940, Aristides dirige-se a Pedro Nuno</p><p>com ar algo “aborrecido” e faz-lhe um pedido que o filho considerou muito</p><p>singular: «Ouve, Pedro Nuno, tenho um pedido a fazer-te que vais</p><p>certamente achar estranho: há uma senhora que encontrei há dias e que</p><p>começou a falar muito comigo “sobre tudo e mais alguma coisa”, e agora</p><p>quer ir ao cinema… Imagina! Mas ela é muito mais nova do que eu, deve</p><p>ter uns 30 anos, portanto, pela idade é muito mais próxima de ti. Além de</p><p>que sou casado, como sabes. Tens de ajudar-me. Vai encontrá-la tu, diz-lhe</p><p>que estou muito ocupado, mas que tu tens tempo e podes acompanhá-la ao</p><p>cinema. Chama-se Andrée Cibial.»</p><p>O meu tio assim fez. Foi ao encontro de Andrée Cibial, como previsto,</p><p>mas explicou-lhe simplesmente que o pai não podia ir com ela ao cinema,</p><p>não se oferecendo ele para ir. E não mais a viu nem ouviu falar dela… até</p><p>muitos anos depois.</p><p>Esta foi a resposta que o meu tio Pedro Nuno me deu há cerca de 30</p><p>anos, quando lhe pedi que me contasse tudo o que sabia sobre a presença</p><p>dessa senhora na história da nossa família. Foi nos anos 90 do século</p><p>passado, quando em Portugal se começou a falar muito do meu avô, e se</p><p>começaram a ouvir “histórias” vindas de certos sectores ligados ao antigo</p><p>regime, com o intuito de denegrir a memória de alguém de quem não</p><p>sabiam absolutamente nada, e de quem não tinham ouvido falar até esse</p><p>momento.</p><p>Notícias de Andrée Cibial na família só voltaria a haver em finais de</p><p>outubro desse ano de 1940…</p><p>A 1 de setembro de 1939, a rádio anunciava que as tropas do III Reich</p><p>tinham passado a fronteira Oder-Neisse, que separava a Alemanha da</p><p>Polónia, e tinham feito avanços rápidos com blindados e transportes de</p><p>tropas dentro do território polaco — o famoso Blitzkrieg. O historiador de</p><p>origem polaca Adam Zamoyski, descreve assim esta nova maneira de fazer</p><p>guerra na sua História da Polónia: «Cerca de um milhão e meio de</p><p>soldados alemães invadiram a Polónia a partir de três lados […] contavam</p><p>com o apoio de 2700 tanques e de 1900 aviões […] a campanha de</p><p>setembro é habitualmente retratada para o lado polaco como um fiasco</p><p>corajoso e caracterizada pela imagem de uma carga de lanceiros polacos a</p><p>cavalo contra tanques nazis.»</p><p>Os governos francês e inglês lançam um ultimato a Hitler, exigindo uma</p><p>retirada da Polónia e dando como data limite o dia 3 de setembro.</p><p>Em casa de Aristides, no 14, Quai Louis XVIII, os vários membros da</p><p>família olharam com grande apreensão uns para os outros quando ouviram</p> <p>estas notícias. Aristides e Angelina sentaram-se com os filhos à volta da</p><p>mesa da sala de jantar e rezaram (muito provavelmente) o terço, como era</p><p>hábito fazer em momentos de grande tensão. Tinham escapado à Grande</p><p>Guerra de 1914/18 por se encontrarem longe, na ilha de Zanzibar, mas desta</p><p>vez estavam mesmo no centro da Europa, no coração do conflito, num país</p><p>que nesse dia 1 de setembro ainda não era uma nação beligerante, mas iria</p><p>sê-lo dentro de dois dias. Como e onde vão Aristides e Angelina conseguir</p><p>colocar os filhos em lugar seguro? Em Cabanas de Viriato?</p><p>Naquele preciso momento, Aristides tem o coração voltado para</p><p>Varsóvia, onde o irmão gémeo é ministro de Portugal. Os telefones estão</p><p>cortados, e pelo pouco que se sabe em França, a capital polaca está sob</p><p>intenso bombardeamento aéreo. A batalha de Varsóvia tinha começado a 1</p><p>de setembro e iria durar até 28 desse mês. Para Aristides, a única maneira</p><p>de prestar auxílio a César e aos seus próximos é através da oração. E é</p><p>também através da oração que em Varsóvia, na cave do palacete onde se</p><p>encontra a Legação de Portugal, César consegue encontrar forças e</p><p>consegue, de certa maneira, entrar em contacto com Aristides — a</p><p>“telepatia” entre os gémeos não sofre cortes.</p><p>O palacete onde César vivia em Varsóvia há seis anos tinha sido alugado</p><p>pelo ministério português dos Negócios Estrangeiros, e encontrava-se numa</p><p>zona nobre da cidade. César, como diplomata, era alvo de grande</p><p>consideração, por vários motivos, sendo um deles a sua fé em Deus e na</p><p>religião católica. O proprietário do palacete, igualmente católico, que vivia</p><p>noutra cidade, quando vinha à capital pedia a César para aí pernoitar, e</p><p>assim passavam bons momentos de conversa sobre assuntos espirituais e</p><p>culturais. Desta vez, com os bombardeamentos, a companhia do “diplomata</p><p>crente em Cristo” era muito procurada, como me foi confirmado mais de 40</p><p>anos depois, no Canadá, por pessoas que o conheceram e viveram esses</p><p>momentos tão assustadores.</p><p>De facto, no fim do cerco de Varsóvia, quase um mês depois do seu</p><p>início, quando saíram da cave e abriram as janelas e as portas de casa,</p><p>verificaram que toda a vizinhança tinha sido arrasada. Não restava uma</p><p>única casa em pé. O único prédio que se encontrava intacto era a Legação</p><p>de Portugal (que hoje pertence ao Estado polaco, na Rua Rosen)…</p><p>Alguns dias antes do fim de agosto, as autoridades polacas, prevendo o</p><p>que poderia suceder, tinham organizado comboios para a retirada de</p><p>estrangeiros residentes em Varsóvia, e César tratou de encontrar lugar para a</p><p>mulher (em 1933, tinha-se casado em segundas núpcias com D. Maria de</p><p>Assunção da Mata de Sousa Coutinho, filha do marquês de Penafiel) e para</p><p>os filhos num desses comboios em direção a Paris, onde apanhariam o Sud-</p><p>Express para Lisboa. Foi o último comboio a sair de Varsóvia e a atravessar</p><p>a Alemanha nazi, causando muitos arrepios aos que nele viajavam.</p><p>Com a queda de Varsóvia, Salazar envia César para Riga, capital da</p><p>Letónia, onde este também era acreditado e onde se solidariza com a “ação</p><p>humanitária” de Aristides através de um ato simbólico, mas muito real.</p><p>“Prevaricar” para pôr a família a salvo</p><p>Os novos desenvolvimentos obrigam à tomada de decisões em casa de</p><p>Aristides e Angelina. O casamento de Clotilde estava marcado para 17 de</p><p>dezembro de 1939, em Cabanas de Viriato, com receção e “copo-de-água”</p><p>na Casa do Passal. Porque não antecipar para outubro o regresso a Portugal</p><p>dos filhos, ficando apenas Aristides e Angelina em Bordéus, com José</p><p>António para ajudar no consulado e Pedro Nuno para continuar as aulas na</p><p>Faculdade de Direito de Bordéus? Decidido e feito. Fernanda Dias — a</p><p>“petiza” ou Fernandita, a jovem criadinha — deixou um relato dessa</p><p>viagem, numa entrevista publicada na revista do Expresso de 9 de</p><p>novembro de 1996, assinada por Carlos Magno: «Fernanda viajava sentada</p><p>entre o condutor e a sua esposa, Angelina, quando o carro, superlotado,</p><p>capotou perto de Salamanca. Ao volante vinha Aristides de Sousa Mendes,</p><p>nervoso, com o coração aos saltos e a alma no acelerador. Tinha de chegar</p><p>rapidamente à fronteira portuguesa. Não queria que Salazar soubesse que</p><p>ele se ausentara por três dias do seu posto consular/diplomático para pôr os</p><p>filhos a salvo.» A “petiza” caracterizou o meu avô Aristides como «o mais</p><p>justo e sofredor de todos os santos». Em contraste com esta admiração e</p><p>amizade profunda de Fernandita a Aristides e Angelina, vem-me à ideia a</p><p>senhora doutoranda da Universidade de Coimbra, já por mim citada, que se</p><p>tivesse sabido deste episódio poderia muito bem ter dito: «Aristides, mais</p><p>uma vez a prevaricar!»</p><p>Por um lado, temos um coração humano, simples e verdadeiro, por outro,</p><p>temos um julgamento político e de carácter sob a capa de uma tese de</p><p>doutoramento pela Universidade de Coimbra, com tese defendida em 2013,</p><p>em que no último parágrafo se escreve a respeito de Aristides: «Estamos,</p><p>portanto, diante de um funcionário prevaricador. Se bem que jamais se</p><p>considerasse como tal.»</p><p>Casamento da filha mais velha, Clotilde Augusta, em dezembro de 1939, em Cabanas</p><p>de Viriato. Foi a última vez que Aristides teve a oportunidade de usar o colar de</p><p>comendador da Ordem da Coroa de Leopoldo III da Bélgica.</p><p>Após o despiste, motivado pelo cansaço, o meu avô terminou a viagem</p><p>em Ciudad Rodrigo, em Espanha, mesmo antes da fronteira com Portugal,</p><p>para pôr a família em lugar seguro. Aí, apareceu Silvério, seu sobrinho, que</p><p>os ia buscar para passarem a fronteira para Portugal, evitando que a polícia</p><p>política na fronteira identificasse o cônsul. A PVDE estava a tornar-se cada</p><p>vez mais interventiva, e com o estado de guerra declarado na Europa, o seu</p><p>comandante, o capitão Agostinho Lourenço, aproveitava tudo para se pôr</p><p>em evidência e ganhar mais terreno e poder. As suas pressões, juntamente</p><p>com as de outros funcionários do MNE e elementos da sociedade</p><p>portuguesa com simpatias germanófilas — e havia bastantes — levaram</p><p>Salazar a assinar mais uma circular para conter os fluxos migratórios de</p><p>seres humanos que desejassem entrar em Portugal. Chegara-se assim à</p><p>Circular 14, assinada a 11 de novembro de 1939. Não trazia boas notícias…</p><p>Aristides e Angelina voltaram a ver a família reunida em dezembro desse</p><p>ano para o casamento de Clotilde, em Cabanas de Viriato, uma bela</p><p>cerimónia que deixou bonitas recordações na população da aldeia. A</p><p>fotografia principal, na escadaria do Passal, mostra Aristides a usar o colar</p><p>de comendador da Ordem da Coroa de Leopoldo III da Bélgica — talvez a</p><p>última ocasião em que teve oportunidade de usar tal distinção. Um degrau</p><p>mais abaixo, imediatamente à sua frente, está Clemens Skalski, diplomata e</p><p>jurisconsulto polaco, a viver na altura perto de Bordéus, em Arcachon, para</p><p>não o deixar esquecer de que “lá fora” havia um conflito tenebroso em</p><p>desenvolvimento, para o qual todas as suas qualidades e compaixão iriam</p><p>muito em breve ser necessárias.</p><p>Clemens Skalski encontrava-se em França nessa época devido à</p><p>ocupação nazi da Polónia, mas as relações com os gémeos Sousa Mendes</p><p>tinham começado anos antes em Varsóvia. Skalski começara a dar-se com</p><p>César de Sousa Mendes, devido à sua experiência em Direito Internacional</p><p>e aos seus dotes linguísticos. Em Bordéus, Skalski funcionava como</p><p>colaborador do consulado de Portugal, tal como já tinha acontecido na</p><p>Legação de Portugal, em Varsóvia, junto de César.</p><p>A famigerada Circular 14</p><p>Depois do Natal e Ano Novo em família, Aristides e Angelina regressaram</p><p>com José António e Pedro Nuno para Bordéus. A rotina ia recomeçar… Mas</p><p>que rotina seria? Em janeiro de 1940 estamos em plena drôle de guerre em</p><p>França. Uma guerra declarada, com campos identificados, mas em que</p><p>havia apenas ações bélicas a decorrer no leste da Europa. Como iria ser essa</p><p>“guerra estranha” no território francês, sem confrontos armados ou</p><p>bombardeamentos, e como iria afetar a vida da família Sousa Mendes em</p><p>Bordéus?</p><p>Pedro Nuno ia prevendo cenários possíveis… Haveria mais refugiados</p><p>nas ruas, certamente. Teria de ajudar mais pessoas com “esmolas” e</p><p>alimentação?</p> <p>Como é que isto iria afetar a sua vida de estudante, com</p><p>exames à vista? De facto, o ser humano adapta-se facilmente a novas</p><p>situações. Em poucas semanas, os refugiados vindos de países do leste</p><p>europeu e que se encontravam em diferentes cidades francesas, começaram</p><p>a pensar que iriam viver o “resto da guerra” nessas cidades e que não iriam</p><p>ter de passar por mais sustos.</p><p>Sabemos hoje que não foi assim. Podemos associar um outro significado</p><p>à expressão drôle de guerre, o de “guerra enganadora”, que talvez seja mais</p><p>próximo da realidade. Dessa “guerra enganadora” já se vislumbrava uma</p><p>pontinha na bela fotografia de casamento de Clotilde, não só pela presença</p><p>de Skalski, o bom amigo que os ligava ao dever que os esperava numa</p><p>França a viver em drôle de guerre, mas também por, curiosamente, não</p><p>haver grandes sorrisos em ninguém, nem sequer nas crianças. Nesta altura,</p><p>por causa da Circular 14, o cônsul Sousa Mendes já tinha um conflito a</p><p>decorrer com a hierarquia. O início do conflito que o conduziria à sua</p><p>tragédia pessoal, mas também a um lugar na História.</p><p>A famigerada Circular 14, de 11 de novembro de 1939, assinada por Luiz</p><p>de Sampaio (secretário-geral do MNE), em nome do ministro António de</p><p>Oliveira Salazar, começava por evocar «as atuais circunstâncias anormais</p><p>para adotar certas providências e definir algumas normas que previnam […]</p><p>em matéria de concessão de passaportes consulares portugueses e de vistos</p><p>consulares, abuso e práticas de facilidades que a Polícia de Vigilância e</p><p>Defesa do Estado entende inconvenientes ou perigosas […] nesta orientação</p><p>fica determinado o seguinte:</p><p>[…]</p><p>2 — Os cônsules de carreira [Aristides de Sousa Mendes e outros]</p><p>não poderão conceder vistos consulares sem prévia consulta ao</p><p>Ministério dos Negócios Estrangeiros:</p><p>aos estrangeiros de nacionalidade indefinida, contestada ou em</p><p>litígio, aos portadores de passaportes Nansen [nome do diplomata</p><p>norueguês pelo qual ficaram conhecidos os “passaportes” que deu</p><p>aos apátridas, isto é, aos que foram expoliados da sua nacionalidade</p><p>e ficaram indocumentados] e aos russos;</p><p>aos estrangeiros que não aleguem de maneira que o cônsul julgue</p><p>satisfatória, os motivos da vinda para Portugal e ainda àqueles que</p><p>apresentem nos seus passaportes a declaração ou qualquer sinal de</p><p>não poderem regressar livremente ao país de onde provêm; com</p><p>respeito a todos os estrangeiros devem os cônsules procurar</p><p>averiguar se têm meios de subsistência;</p><p>aos judeus expulsos dos países da sua nacionalidade ou de aqueles</p><p>de onde provêm;</p><p>A Circular 14 encontra-se na íntegra no final deste livro (em Anexos).</p><p>O caso Wiznitzer — o primeiro “visto”</p><p>Pedro Nuno, o “repórter” da família, que todos os dias saía para observar as</p><p>ruas e as pessoas, ia encontrando no centro da cidade de Bordéus cada vez</p><p>mais casos, todos com histórias muito diferentes mas sempre com alto nível</p><p>de dramatismo, esperando que a situação (a drôle de situation) se</p><p>resolvesse com tempo e paciência. À medida que o tempo passava, essas</p><p>situações tornavam-se cada vez mais prementes e tornava-se evidente que a</p><p>primavera que se aproximava não ia trazer flores.</p><p>Ao olharmos para a lista dos emolumentos do consulado de Portugal com</p><p>os nomes de pessoas que pagaram para obter o visto, é possível constatar a</p><p>existência de muitos nomes que poderiam ser “suspeitos” segundo os</p><p>critérios da PVDE. As pessoas falavam umas com as outras e transmitiam</p><p>os seus sentimentos, os medos e as ânsias de forma espontânea. O cônsul de</p><p>Portugal começava a ser falado nos lugares públicos, por «ajudar judeus a</p><p>deixar França», como relata o biógrafo Rui Afonso.</p><p>Quando Aristides vem a Portugal para o casamento da filha, já traz na</p><p>bagagem o início do primeiro caso que vai custar-lhe a carreira: é o caso</p><p>Wiznitzer — o primeiro visto, passado apenas dez dias depois da entrada</p><p>em vigor da Circular 14. Arnold Wiznitzer, a mulher e o filho, por terem</p><p>perdido a nacionalidade austríaca e por serem judeus, tinham-se tornado</p><p>personae non gratae numa Europa em guerra. O seu único objetivo era</p><p>sobreviverem e conseguirem sair do continente europeu. Aristides assina-</p><p>lhes o visto para virem a Portugal apanhar um navio para o outro lado do</p><p>Atlântico, a 21 de novembro de 1939. Não havia tempo a perder com</p><p>burocracias, pois Wiznitzer iria ser “internado” num campo de concentração</p><p>por se encontrar em França de forma irregular. O pedido da autorização</p><p>para passar o visto foi enviado para Portugal a 27 de novembro por</p><p>Aristides, repetido a 6 de dezembro, e sempre nada… As autoridades</p><p>portuguesas nunca responderam de forma séria, pois começaram a dizer em</p><p>tom de troça que o cônsul primeiro passava os vistos e depois é que pedia</p><p>autorização, para estar conforme à Circular 14. De facto, enquanto os</p><p>militares nazis primeiro atiravam a matar e depois é que faziam perguntas,</p><p>Aristides primeiro salvava as pessoas e depois é que se conformava à</p><p>burocracia lenta e pesada. O cônsul estava a expor-se perigosamente aos</p><p>olhos da PVDE e da hierarquia do MNE. E também aos de muitos</p><p>candidatos a vistos salvadores.</p><p>Nas explicações fornecidas ao próprio Salazar, o cônsul expõe as razões</p><p>humanitárias corporizadas por este “primeiro caso”. Era o princípio da</p><p>formação da imagem do «Portugal, porto de abrigo» que estava ali a forjar-</p><p>se nas ruas de Bordéus e que perdura até hoje, e do mais difícil dos</p><p>precedentes — «o humanitário», de que fala a embaixadora Manuela</p><p>Franco no artigo de introdução ao Livro-Catálogo Vidas Poupadas, do</p><p>Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros.</p><p>Quase ao mesmo tempo em que surge o “caso Wiznitzer” aparece outro</p><p>que vai aumentar as queixas contra Aristides de Sousa Mendes por parte das</p><p>autoridades nacionais — da PVDE e do MNE. O “caso Eduardo Neira</p><p>Laporte”, como conta Rui Afonso, um “indesejável” para a PVDE. No caso</p><p>de Neira Laporte havia uma componente política que afetava o regime</p><p>salazarista. Desde o início da Guerra Civil de Espanha, em 1936, que havia</p><p>uma colaboração do salazarismo com o franquismo, em que a polícia</p><p>portuguesa detinha e entregava à polícia espanhola muitos “refugiados</p><p>vermelhos”, que acabariam por ser fuzilados. Laporte tinha sido um</p><p>resistente ao franquismo, e para a PVDE já tinha destino marcado — não</p><p>iria muito longe.</p><p>No entanto, «o cônsul rebelde», que via nele apenas um professor da</p><p>Universidade de Barcelona com excelentes referências das autoridades</p><p>francesas e já com passagem de barco de Lisboa para a Colômbia, envia a 3</p><p>de fevereiro de 1940, ao Ministério português dos Negócios Estrangeiros,</p><p>um pedido de autorização para visar o seu passaporte. A 11 de março, o</p><p>MNE, com a sua habitual lentidão (para ganhar tempo), envia a recusa para</p><p>o cônsul, mas no dia a seguir, a 12 de março, Laporte chega a Lisboa com</p><p>visto assinado por Aristides, que entende que em tempos de guerra, mesmo</p><p>que seja uma drôle de guerre, não devem fazer-se esperar seres humanos.</p><p>Sincronização certa. Ficava a questão para o regime: o que fazer com</p><p>Eduardo Neira Laporte?</p><p>Arnold Wiznitzer, salvo do campo de concentração in extremis por</p><p>Aristides, apanha um barco em Lisboa, com a mulher e o filho, e vai</p><p>primeiro para o Brasil, onde durante vários anos aprofunda, através de</p><p>estudos e investigações, o papel dos judeus naquele país. Acabará por</p><p>publicar, primeiro em inglês, em Nova Iorque, e seis anos depois, em</p><p>português, em São Paulo, Os judeus no Brasil colonial. Nos Estados Unidos</p><p>consideram-no o maior especialista na matéria. Em Portugal, no verão de</p><p>1940, Aristides de Sousa Mendes deverá responder no âmbito do seu</p><p>processo disciplinar pelo bem que fez a Wiznitzer.</p><p>Para o capitão Agostinho Lourenço, «o cônsul de Bordéus andava mesmo</p><p>a pedi-las», e essas contas teriam de ser ajustadas, quanto mais cedo,</p><p>melhor! A PVDE, entretanto, ia-se substituindo ao próprio MNE na decisão</p><p>de atribuição de vistos, como o demonstra a comunicação da polícia política</p><p>de 22 de abril de 1940, recebida a 23 no MNE: «Tem notado esta diretoria,</p><p>de há uns tempos a esta parte, que os pedidos de judeus holandeses para</p><p>virem</p> <p>para Portugal tomam um volume que não é de desprezar, atendendo à</p><p>convulsão que agita a Europa. Por outro lado, os nossos serviços têm</p><p>registado uma agitação por parte dos judeus, que nos tem feito tomar</p><p>medidas rigorosas sobre a sua atividade. Nestes termos, rogo a V. Exa. que</p><p>a bem do serviço público, os senhores cônsules na Holanda sejam avisados,</p><p>para antes de pedirem autorização para visarem os passaportes, averiguarem</p><p>bem se os indivíduos que desejam vir são ou não judeus, a fim de se evitar a</p><p>entrada em Portugal de indivíduos dessa qualidade. A bem da Nação.</p><p>Lisboa, Secretaria-Geral da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. 22 de</p><p>abril de 1940.» Esta atitude da direção da PVDE reflete bem o espírito das</p><p>autoridades portuguesas em relação à “qualidade de certos indivíduos” e,</p><p>naturalmente, adequa-se perfeitamente ao espírito da Circular 14.</p><p>Quanto a Neira Laporte, as últimas notícias que se souberam na época,</p><p>foi que conseguiu também sair daquela Europa enlouquecida, e terá ido</p><p>mesmo para a Colômbia, exercer o ensino da medicina.</p><p>«Não participo em chacinas, por isso desobedeço a Salazar!»</p><p>Como Rui Afonso indica, e também o professor Ansgar Schaefer, no seu</p><p>livro Portugal e os refugiados judeus provenientes do território alemão</p><p>1933-1940, estes dois casos deram origem a um aviso formal a Aristides de</p><p>Sousa Mendes: «Qualquer nova falta ou infração nesta matéria será havida</p><p>por desobediência e dará lugar a procedimento disciplinar em que não</p><p>poderá deixar de ter-se em conta que são repetidos os atos de V. Sa. que</p><p>motivam advertências e repreensões.» Era um aviso bem claro que</p><p>estabelecia as regras do jogo: Salazar e o regime queriam continuar a seguir</p><p>a Circular 14, portanto, a perseguir os judeus; a bloquear-lhes o caminho</p><p>para a salvação e impedindo-os de escapar a um assassínio em massa, sem</p><p>«cônsules ou indivíduos fora do seu estado normal», a incomodarem</p><p>publicamente esse desígnio.</p><p>Pelo seu lado, Aristides decidiu continuar a seguir a sua consciência. O</p><p>seu jogo seria deixar-se estar no seu posto como cônsul durante o mais</p><p>longo espaço de tempo possível, e sempre que tivesse ocasião, passar o</p><p>maior número de vistos, dando pelo menos a possibilidade de sobreviver</p><p>aos que lhe aparecessem pela frente. A atitude de Aristides é clara: «Não</p><p>participo em chacinas, por isso desobedeço a Salazar!» Aristides identifica</p><p>sem rodeios Salazar com a força bruta de Hitler e do nazismo no que diz</p><p>respeito aos judeus, e é disso que o acusa com esta frase. A sociedade</p><p>portuguesa prefere, para ficar bem com a sua consciência, olhar para o lado,</p><p>e vai escolher vergar-se ao poder, evitando mais tempos de incerteza como</p><p>os vividos antes de Portugal ter Salazar e o Estado Novo. Ninguém queria</p><p>uma “democracia” ou uma república cheia de dúvidas. Foi por este motivo</p><p>que o caso de Aristides de Sousa Mendes caiu tão rapidamente no</p><p>esquecimento e aí se conservou tantos anos.</p><p>Gravura dos arquivos municipais de Bordéus, que mostra o pânico e a confusão que se</p><p>instalaram na Pont de Pierre, em junho de 1940, quando os refugiados que entravam</p><p>em Bordéus procuravam uma alternativa à morte.</p><p>Objetivo: escapar</p><p>«No dia 10 de maio de 1940, fomos acordados em sobressalto por um</p><p>barulho estranho; lá fora estava um belo dia cheio de luz e vimos aviões</p><p>sobrevoando Bruxelas, largando bombas que pareciam grandes objetos cor</p><p>de prata, brilhando ao sol. Ao ligarmos a rádio, ouvimos dizer que a</p><p>Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo tinham sido invadidos na véspera pela</p><p>Alemanha e a população era convidada a manter-se à escuta para ouvir</p><p>outras informações.» Esta é uma tradução livre sobre a forma como Lucie</p><p>Matuzewitz descreve o fim da drôle de guerre no seu livro Le Cactus et</p><p>l’ombrelle, publicado em Paris pelo editor Guy Autier, em 1977 (que em</p><p>português poderíamos traduzir por Crónica de uma família judaica: o cato</p><p>e a sombrinha). Foi assim, de surpresa, como era próprio da Blitzkrieg. Não</p><p>se avisava ninguém e era só avançar, aterrorizando e esmagando o povo</p><p>invadido. Os belgas, os franceses e outros povos voltavam 20 anos para</p><p>trás. As estradas tornaram a encher-se de famílias que levavam alguns bens</p><p>que na desgraça lhes pudessem valer, e alguns alimentos. Os belgas dizem</p><p>que dois milhões de compatriotas seus se puseram em fuga. Outros falam</p><p>em dois milhões e meio.</p><p>Nesta sua crónica mais tarde transformada em livro, Lucie Matuzewitz</p><p>continua a descrever a sua odisseia, da qual deixo excertos numa tradução</p><p>minha, adaptada da edição francesa: «Apanhámos o último comboio que</p><p>saía para Paris; os comboios seguintes foram bombardeados e nunca</p><p>chegaram ao destino. As estradas estavam completamente bloqueadas com</p><p>automóveis dirigindo-se para sul […] havia aviões que metralhavam em</p><p>voo picado os refugiados que caminhavam ao longo das estradas […]</p><p>passámos uma noite muito agitada, porque uma bomba caiu ao lado da</p><p>Torre Eiffel, perto do nosso hotel […]. Decidimos ir para Bordéus.</p><p>Infelizmente, poucos dias depois todo o governo francês estava nesta</p><p>cidade. Uma nuvem de refugiados vindos do norte de França, da Bélgica, da</p><p>Holanda, deambulava agora pelas ruas, dormindo nos parques e nas</p><p>estações, não encontrando alojamento […].»</p><p>A vida no início da ocupação</p><p>Com a entrada das forças alemãs em Paris, o governo francês retira-se para</p><p>sul, e instala-se em Bordéus, pela terceira vez na história. No dia 17 de</p><p>junho, Pétain forma um governo pró-nazi, inaugurando um regime</p><p>colaboracionista com Hitler, numa França “livre”, com capital em Vichy.</p><p>No dia 22 de junho, Pétain assina o Armistício com as forças nazis,</p><p>simbolicamente em Rethondes, exatamente no wagon onde a 11 de</p><p>novembro de 1918 os aliados humilharam a Alemanha, após a derrota na</p><p>guerra de 1914/18. A assinatura deste Armistício, aparentemente, iria trazer</p><p>um cessar-fogo e uma não beligerância para os franceses, mas para os</p><p>refugiados e, sobretudo, para os judeus, equivalia a um mandato de captura.</p><p>Para “esses” começava uma corrida infernal. Era absolutamente necessário</p><p>sair de França antes que as tropas alemãs chegassem ao sul do país. A</p><p>fronteira de Hendaia/Irun tornava-se, para pessoas como os Habsburgos da</p><p>Áustria, ou os membros da família grã-ducal do Luxemburgo, um objetivo</p><p>valioso a ser alcançado sem perda de tempo. Para Hitler, os Habsburgos</p><p>representavam a resistência ao seu grande Reich, com um só Führer, e por</p><p>essa razão tinham a cabeça a prémio. Se fossem apanhados, isso</p><p>significava, para Hitler, que qualquer oposição ao III Reich desapareceria</p><p>na Áustria. A família da grã-duquesa Charlotte e todo o seu séquito eram</p><p>igualmente alvos a atingir pela mesma razão (a carta da grã-duquesa para os</p><p>familiares do consûl encontra-se nos Anexos). Para o III Reich, subjugar o</p><p>Luxemburgo era conseguir finalmente a reunificação de todos os estados e</p><p>regiões da Alemanha. A grã-duquesa Charlotte representava a liberdade</p><p>para a maioria do povo luxemburguês e era essencial que conseguisse</p><p>chegar a um país neutro, como Portugal, para daí alcançar os Estados</p><p>Unidos, onde poderia organizar a resistência, e preparar-se para voltar</p><p>depois da guerra para o Luxemburgo, como Estado independente que nunca</p><p>tivesse estado associado ao nazismo.</p><p>Para essas e outras famílias com o mesmo tipo de simbolismo era vital</p><p>chegar à fronteira antes dos nazis: a corrida tinha começado. Uma corrida</p><p>na qual os alemães contavam com alguns trunfos: a velocidade à qual</p><p>avançavam, com um material de grande qualidade, e em quantidade; apoios</p><p>das forças colaboracionistas de Pétain e de Franco, e o apoio “tranquilo” de</p><p>“um bom aluno” — António de Oliveira Salazar, com uma Circular 14</p><p>mesmo oportuna.</p><p>Em situação semelhante estavam os membros do governo belga em</p><p>debandada, depois de o rei Leopoldo III, comandante das Forças Armadas</p><p>belgas, se ter entregado às forças do Reich, e ter ficado “fechado” no</p><p>castelo de Laeken, para evitar mortes desnecessárias. Entre esses ministros</p><p>contavam-se Albert de Vleeschauwer, Gutt, van Zeeland, Jaspar e outros,</p><p>que procuravam passar por Portugal, com a ajuda de Aristides de</p> <p>Sousa</p><p>Mendes, para não deixarem o poder da Bélgica cair nas mãos dos nazis.</p><p>E os judeus, obviamente, que por o serem só tinham um único interesse:</p><p>sair de França e da Europa ocupada pelos alemães o mais depressa possível.</p><p>Muitos, como Arnold Wiznitzer e a família, organizaram a saída do</p><p>continente europeu, e “por acaso” encontraram a pessoa certa. Mas muitos</p><p>milhares, possivelmente milhões, na Holanda, Bélgica ou França tiveram</p><p>relutância em fazê-lo antes de se sentirem obrigados a isso, pois tinham</p><p>profissões e interesses a proteger nos países de onde eram originários, e o</p><p>seu destino acabou por ser a câmara de gás.</p><p>Lucie Matuzewitz continua a sua narrativa: «Um dia, o meu marido,</p><p>Joseph, conheceu um rabino de barba e cabelo ruivo, que pelas longas</p><p>tranças mostrava ser muito ortodoxo e tradicional do ponto de vista</p><p>religioso, e que lhe disse algo de muito espantoso: “Imagine que há dias fui</p><p>abordado pelo cônsul de Portugal em Bordéus, que me perguntou onde é</p><p>que estava alojado. Respondi-lhe que infelizmente estava a dormir em cima</p><p>de um banco, na sala de espera da estação de caminhos de ferro, com a</p><p>minha mulher e cinco filhos. O cônsul respondeu que compreendia a</p><p>situação que os judeus estavam a viver, devido às mentiras que os nazis</p><p>andavam a espalhar acerca das pessoas da nossa religião, e como tal</p><p>ofereceu-me hospitalidade na sua própria casa — venham morar em minha</p><p>casa, convidou. Desde há vários dias que estamos a viver em casa do</p><p>cônsul, que é de uma amabilidade extrema connosco, e que me disse para ir</p><p>aos lugares públicos da cidade e dirigir-me aos refugiados que querem sair</p><p>de França para os informar de que ele dará vistos para Portugal a todos os</p><p>que o desejarem.” O cônsul explicou que não tinha autorização para o fazer,</p><p>pois só podia passar vistos a quem já tivesse bilhete ou passagem para outro</p><p>país fora da Europa, o que obviamente não é o caso para a grande maioria</p><p>das pessoas. Disse saber que iria perder o seu lugar, mas daria a Portugal a</p><p>honra de receber refugiados da nossa religião, podendo assim apagar os</p><p>crimes dos anos 1496, quando Portugal e a Inquisição expulsaram os</p><p>judeus, tal como fez Espanha.</p><p>Com o visto português podíamos obter o visto de saída de França, e ao</p><p>mesmo tempo o visto de trânsito por Espanha. Entre os refugiados em</p><p>Bordéus, a notícia espalhou-se rapidamente de boca a orelha, e os salões do</p><p>consulado encheram-se até transbordarem. O cônsul ficava até muito tarde a</p><p>passar vistos em passaportes para todas as pessoas.»</p><p>«Justo Entre as Nações»</p><p>Foi assim que a família Matuzewitz conheceu o rabino Kruger, que haveria</p><p>de ser uma personagem central na vida de Aristides. Através do rabino, a</p><p>família Matuzewitz chegou ao meu avô. Na sala de espera do consulado</p><p>receberam a atenção muito particular da mulher do cônsul, Angelina de</p><p>Sousa Mendes, que acolhia sempre os refugiados de forma carinhosa e</p><p>maternal, especialmente aqueles que tinham famílias ou precisavam de</p><p>cuidados especiais.</p><p>Aristides de Sousa Mendes com o rabino Kruger, que o ajudou a salvar milhares de</p><p>judeus, e que se tornou uma personagem central na sua vida.</p><p>Quando os Matuzewitz chegaram à Gare Saint-Jean, a estação central de</p><p>Bordéus, viram uma multidão de tal maneira assustadora que perceberam</p><p>que a fuga de comboio seria muito difícil. Ao verificarem que ainda tinham</p><p>algum dinheiro disponível, saíram de Bordéus num automóvel alugado, e</p><p>em poucos dias conseguiram chegar a Portugal, entrando por Vilar</p><p>Formoso. Ao fim de algumas semanas conseguiram passagens num barco</p><p>para o Brasil. Mais tarde, foram para os Estados Unidos.</p><p>Hoje, os descendentes desta família estão envolvidos de forma muito</p><p>ativa na Sousa Mendes Foundation, uma organização que nos Estados</p><p>Unidos realiza um trabalho muito importante para identificar e retratar</p><p>famílias descendentes dos milhares de refugiados que se encontravam no</p><p>sul de França naqueles anos, e que nos dão preciosos contributos para</p><p>conhecer melhor os atos de Aristides e de Angelina de Sousa Mendes em</p><p>Bordéus em 1940.</p><p>O rabino Kruger foi quem deu o maior contributo formal para que</p><p>Aristides de Sousa Mendes fosse reconhecido como «Justo Entre as</p><p>Nações». A sua carta para a Autoridade do Holocausto Yad Vashem, escrita</p><p>originalmente em hebreu no ano 5727 da era hebraica, e do dia 13 do mês</p><p>de Iyyar (que segue em anexo no final deste livro) dá um testemunho</p><p>essencial do gesto do cônsul. Destaco aqui alguns pontos principais dessa</p><p>carta, que descrevem a situação existente em finais de maio e durante o mês</p><p>de junho de 1940 em Bordéus.</p><p>«Fugimos de Bruxelas através de França, com milhares de irmãos</p><p>nossos da Casa de Israel, que tinham sido expulsos ou fugiam da</p><p>Bélgica para França, que já se encontrava sob a autoridade dos</p><p>assassinos nazis, amaldiçoados sejam os seus nomes […]. Chegámos</p><p>a Bordéus e aí encontrámos muitos milhares de irmãos nossos</p><p>vagueando pelas ruas e dormindo junto à sinagoga […]. Um dia,</p><p>parou lá em frente um grande carro com um chauffeur, e o referido</p><p>diplomata saiu dele e convidou-me para sua casa, com a minha</p><p>mulher e os nossos cinco filhos, com idades entre os 10 e os 2 anos</p><p>[…] quando lá chegámos [a casa dele], disse-me que era o cônsul-</p><p>geral de Portugal em França e ofereceu-nos todo o conforto de sua</p><p>casa. Mas eu senti que não podia aceitar, porque não me podia alhear</p><p>da multidão que continuava a vaguear pelas ruas […] depois voltei lá</p><p>para falar com o cônsul e expliquei-lhe que tínhamos apenas um</p><p>único pedido que era que ele nos desse vistos para Portugal. A meio</p><p>da nossa conversa, o chanceler (um tal senhor Seabra) avisou o</p><p>cônsul para não se deixar levar pela minha conversa respeitante à</p><p>atribuição de vistos […] mas nada do que disse surtiu efeito junto do</p><p>cônsul.</p><p>O Dr. Sousa Mendes prometeu que nos daria vistos, a mim e à minha</p><p>família, mas em relação a outros refugiados teria que pedir primeiro</p><p>autorização ao ministério em Lisboa. Pedi-lhe para não dar ouvidos</p><p>ao chanceler (o senhor Seabra), e depois disso o Dr. Sousa Mendes</p><p>disse-me que eu podia informar os outros refugiados que quem</p><p>quisesse poderia vir ao Consulado e receberia um visto.</p><p>Obviamente, logo que anunciei isto junto dos refugiados, todos eles</p><p>foram pedir vistos, e receberam. O Dr. Sousa Mendes passava o dia</p><p>todo a assinar vistos, e eu ajudava-o, carimbando os vistos que ele</p><p>assinava depois. O Dr. Sousa Mendes não comia nem bebia o dia</p><p>todo, até altas horas da noite. Em pouco tempo, passou milhares de</p><p>vistos, até ao momento em que o opressor chegou a Bordéus. Foi</p><p>quando fui obrigado a fugir de lá através de Espanha.</p><p>Quando chegámos à fronteira de Espanha, já havia uma ordem do</p><p>Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal declarando que</p><p>todos os vistos passados pelo cônsul Sousa Mendes tinham deixado</p><p>de ser válidos. Era sexta-feira ao fim do dia. Pedimos aos guardas</p><p>fronteiriços que nos permitissem passar a fronteira como pessoas em</p><p>trânsito por Espanha […]. O cônsul Sousa Mendes apareceu e disse-</p><p>nos para esperarmos um pouco […], ao fim de uma hora ou duas, ele</p><p>próprio abriu a cancela e todos os que tínhamos vistos passados por</p><p>ele conseguimos passar a fronteira. De lá, apanhámos um comboio</p><p>direto para Lisboa […]. Lá, informaram-nos que não seríamos</p><p>autorizados a entrar em Lisboa, e soubemos que no meio disto tudo</p><p>estava a mão de Hitler.»</p><p>Imagem da ponte (Pont d´Hendaye) que se tornou o símbolo do pânico instalado entre</p><p>os refugiados que tentavam escapar da morte em Bordéus.</p><p>Estes parágrafos, retirados da carta do rabino Kruger para a Autoridade</p><p>do Holocausto Yad Vashem, em Jerusalém, resumem de forma muito</p><p>simples, mas clara, a atitude e o gesto de Aristides de Sousa Mendes no</p><p>verão de 1940, quando as tropas nazis do III Reich esmagaram uma França</p><p>dividida em duas — a França livre (Pétain/Vichy) e a França ocupada (De</p><p>Gaulle/Resistência).</p><p>Efetivamente, a determinação em salvar pessoas desobedecendo às</p><p>ordens do governo expressas na Circular 14, a abertura de espírito e o amor</p><p>ao próximo, seguindo o exemplo do «Bom Samaritano», a compaixão para</p><p>com os que sofrem</p> <p>os dois</p><p>gémeos começava uma dura e longa separação, só atenuada pelas</p><p>tradicionais cartas que demoravam semanas a chegar ao destino. Mas era o</p><p>“charme” da carreira diplomática…</p><p>CAPÍTULO I</p><p>As origens da família, a tradição dos nomes e a diáspora dos Sousa</p><p>Mendes</p><p>Aquilo que somos está intrinsecamente ligado àquilo que fomos, ao que é</p><p>— foi — a nossa família, o meio em que crescemos, as influências que nos</p><p>marcaram. Aristides e César de Sousa Mendes provêm de duas famílias</p><p>profundamente enraizadas na Beira. A genealogia da família é algo</p><p>complexa, até porque os nomes se repetem com frequência, não só de</p><p>geração para geração, como na mesma geração, ou então saltam gerações</p><p>— muitos filhos, muitos primos, muitos nomes de família. E casamentos</p><p>entre primos, próximos ou afastados, o que dificulta ainda mais as</p><p>identificações. A repetição de nomes e a dificuldade de sabermos a quem</p><p>estamos a referir-nos é, sem dúvida, umas das curiosidades desta família. A</p><p>escolha do meu próprio nome reside no legado de um tio-trisavô…</p><p>Quem quiser entrar no estudo destas famílias encontra um bom manual</p><p>no livro As Raízes da Beira, de Eduardo Osório Gonçalves, por exemplo,</p><p>onde as famílias dos meus antepassados vêm explicadas, a par com várias</p><p>outras da mesma região. A minha genealogia socorre-se um pouco deste</p><p>livro, e também da minha modesta pesquisa (será mais uma consulta) em</p><p>arquivos e locais, do trabalho feito por primos e amigos, e das memórias da</p><p>família — afinal, tantos tios e tantos primos conseguem preservar uma boa</p><p>parte do legado familiar.</p><p>Os gémeos César e Aristides de Sousa Mendes, as duas crianças que se veem na</p><p>fotografia, nascidos em 1885, com a família.</p><p>Os gémeos Aristides e César de Sousa Mendes, nascidos a 19 e 18 de</p><p>julho de 1885, respetivamente, eram filhos de José de Sousa Mendes e de</p><p>Maria Angelina Ribeiro de Abranches, que vinham de duas famílias</p><p>estreitamente ligadas às tais “raízes da Beira”.</p><p>José de Sousa Mendes, nascido em janeiro de 1857, era filho de um</p><p>proprietário abastado da Muxagata (Fornos de Algodres), Manuel Alves de</p><p>Sousa, um homem com preocupações intelectuais que sonhava dar</p><p>formação universitária a, pelo menos, um dos seus dois filhos, e de Raquel</p><p>Augusta Mendes da Gama, nascida em Alvarelhos (Carregal do Sal), no</p><p>“solar da fidalga”, que pertencia a uma família com quem tinha parentesco.</p><p>José de Sousa Mendes mostrou ser um estudante aplicado e metódico.</p><p>Lia sobretudo livros de carácter religioso, como a Bíblia, Imitação de</p><p>Cristo, Qui est Jésus-Christ de Lacordaire, e outros ligados aos direitos do</p><p>Homem, em especial obras filosóficas dos enciclopedistas, assim como</p><p>autores ingleses e alemães. Foi José quem transmitiu aos filhos a admiração</p><p>por Pascal, Montaigne, Kant e Santo Agostinho durante as longas conversas</p><p>em família. O filho mais novo de Manuel Alves de Sousa, António, era mais</p><p>sonhador e admirador da beleza e da calma campestres. José e António</p><p>interessavam-se, entre outros assuntos, pelas tradições familiares que os</p><p>ligavam a personagens históricas que desde o início da nação portuguesa</p><p>tinham deixado marcas. Para eles, a formatura em Leis e/ou em Teologia</p><p>ocupava um lugar cimeiro ao lado de Medicina. Um seu tio-avô, irmão da</p><p>avó materna, foi o célebre Dr. Jerónimo Joaquim de Figueiredo, natural da</p><p>Muxagata (Fornos de Algodres), Beira Alta, professor de Medicina na</p><p>Universidade de Coimbra e diretor dos Hospitais da Universidade de</p><p>Coimbra. Este tio-avô fez parte de uma comitiva da Universidade de</p><p>Coimbra que foi dar as boas-vindas ao Rei D. Miguel I, quando este</p><p>regressava de Viena de Áustria, em 1828. Um grupo de estudantes armou</p><p>uma cilada a essa comitiva e os seus membros foram todos assassinados.</p><p>O Livro de Oiro da Nobreza menciona outro familiar de José e de</p><p>António de Sousa Mendes que se destacou no início do século XIX por ter</p><p>acompanhado, como secretário, o príncipe regente D. João (futuro D. João</p><p>VI), na sua deslocação para o Brasil, em 1807, juntamente com a mãe e</p><p>irmãos, o resto da família e a Corte, devido à invasão dos exércitos de</p><p>Napoleão Bonaparte.</p><p>José de Sousa Mendes, o estudioso, formou-se primeiro em Teologia, e</p><p>depois em Direito, na Universidade de Coimbra. As primeiras funções que</p><p>desempenhou foram na área jurídica, como presidente da Câmara e</p><p>administrador de Carregal do Sal, e depois como administrador de Tondela.</p><p>Começou a sua carreira de magistrado em 1885, no mesmo ano em que</p><p>nasceram os dois gémeos, e exerceu-a até morrer, em 1921, pouco tempo</p><p>depois de ter sido nomeado juiz desembargador no Tribunal da Relação de</p><p>Coimbra. Nesse ano, o Conselho Superior da Magistratura classificou de</p><p>“Ótimo” o serviço deste magistrado ao longo da sua carreira. O povo de</p><p>Cabanas, conforme se pode ler em jornais regionais da época, guardou do</p><p>juiz José de Sousa Mendes uma recordação de grande integridade.</p><p>Classificavam-no como «o verdadeiro juiz incorruptível»: «Não aceitava</p><p>favores nem prendas de nenhum género»; «preocupava-se muito com o</p><p>bem-estar dos encarcerados e sempre que possível promovia ações em que</p><p>estes pudessem ter algum alívio […] refeições e encontros com as famílias</p><p>ou ajuda espiritual, em ocasiões especiais».</p><p>O jornal Debates, de 12 de junho de 1913, descreve assim José de Sousa</p><p>Mendes: «Nós não conhecemos magistrado mais escrupulosamente</p><p>cumpridor dos seus deveres, pulso mais firme e forte para empunhar, em</p><p>toda a sua coruscante grandeza, a figura da Justiça — sempre iluminadora e</p><p>intangível.» Contava-se, a respeito do pai dos gémeos, um episódio que</p><p>ficou na memória coletiva das gentes do Redondo, onde também exerceu a</p><p>magistratura: «Aconteceu que certo dia, o Dr. José de Sousa Mendes foi</p><p>assaltado por uma grave enfermidade, que pôs em sobressalto todos os seus</p><p>admiradores. O pároco da freguesia resolveu então rezar uma missa em</p><p>ação de graças pelas suas melhoras, indo toda a vila assistir, num verdadeiro</p><p>recolhimento de fé pelas melhoras de quem tão grandemente encarna e sabe</p><p>cumprir os supremos princípios da Justiça.»</p><p>Se, pelo lado do pai, os gémeos podiam inspirar-se numa linha de</p><p>conduta baseada na ética, na espiritualidade, na caridade, amor ao próximo,</p><p>e no cumprimento das regras da justiça, pelo lado da mãe, Maria Angelina</p><p>do Amaral e Abranches, Aristides e César recebiam exemplos do mesmo</p><p>teor, mas relacionados com comportamentos de uma tradição ligada aos</p><p>processos democráticos, e mais politizada. Maria Angelina era filha de</p><p>Silvério Coelho Pais do Amaral, natural de Beijós, descendente de Simão</p><p>Pais do Amaral, da Casa do Canedo (Mangualde) e de Maria dos Prazeres</p><p>Ribeiro de Abranches. Silvério Coelho Pais do Amaral era considerado</p><p>como «um homem de rígida envergadura moral» e estimado por muita</p><p>gente entre Cabanas, Midões, e em toda a região. Foi administrador da</p><p>Câmara de Carregal do Sal, e de outras vilas, e sobretudo dos bens de César</p><p>Ribeiro de Abranches, que foi juiz conselheiro do Supremo Tribunal de</p><p>Justiça, assim como pai de Maria dos Prazeres, com quem Silvério viria a</p><p>casar-se. Maria dos Prazeres, avó dos gémeos, teve um irmão, António</p><p>Pedro, que seguiu a vida religiosa e foi arcipreste de Papízios (Carregal do</p><p>Sal), deixando uma grande saudade junto das populações que serviu. Por</p><p>sugestão dos meus avós, e dentro do espírito da família, foi-me atribuído o</p><p>nome de António Pedro — sempre numa tentativa de manter viva a</p><p>memória daqueles que tinham deixado um exemplo digno de bom cristão.</p><p>O primeiro César</p><p>César Ribeiro de Abranches, pai de Maria dos Prazeres, segundo visconde</p><p>de Midões, um dos quatro filhos de Roque Ribeiro de Abranches de Abreu</p><p>Castelo-Branco, legitimados por Carta Régia, nasceu em 1803 e faleceu em</p><p>1889, quando os gémeos tinham apenas quatro anos. Mas lembrariam, ao</p><p>longo de toda a vida, nas suas conversas a figura já distante do bisavô de</p><p>Mildões. O juiz aposentado do Supremo Tribunal de Justiça deixou-lhes</p><p>uma imagem simpática, apesar de não o terem visto muitas vezes. Em notas</p><p>soltas aqui e ali, vemos que a figura do bisavô lhes despertou curiosidade e</p><p>interesse. Talvez tenham</p> <p>transformando-se num deles e aceitando todo o</p><p>sofrimento que daí veio “com amor”, como a Dra. Raquel Andrade tão bem</p><p>exprimiu no subtítulo da sua tese de doutoramento O Diplomata que se fez</p><p>Refugiado, esclarecem-nos sobre a epopeia de Aristides.</p><p>Há uns anos, o parlamento português organizou, em conjunto com o</p><p>MNE e o Yad Vashem de Israel, uma exposição sobre Os Justos Entre as</p><p>Nações, e convidaram o filho do rabino Kruger a vir a Lisboa dar o seu</p><p>testemunho e encontrar-se com os familiares vivos de Aristides de Sousa</p><p>Mendes. Quando o vi no salão principal do Palácio de São Bento tive de</p><p>controlar a minha emoção, pois a parecença com o rabino Hayyim Kruger</p><p>(pai) era tão grande que me fez recuar no tempo até a um momento em que</p><p>eu ainda nem sequer existia. Perguntei-lhe se se lembrava da chegada deles</p><p>(pais e irmãs) a Bordéus. Como resposta, este rabino Kruger (filho) abriu</p><p>uma pequena pasta que continha uma série de documentos e mostrou-me</p><p>um bilhete de comboio, de cartão como era costume naquela altura, e disse-</p><p>me que aquele era o bilhete de comboio (meio-bilhete de 2.ª classe)</p><p>Paris/Bordéus que o pai lhe deu naquele dia quando todos viajaram para</p><p>Bordéus… à espera de um milagre. Explicou-me ainda que guardava todos</p><p>os documentos ou bilhetes que tivessem sido relevantes ao longo da sua</p><p>vida, e que em 1940 tinha cinco anos.</p><p>O sentimento de derrota</p><p>O dia 10 de maio de 1940 marcou o reencontro com a realidade. Belgas,</p><p>holandeses, luxemburgueses, franceses, e finalmente o mundo inteiro,</p><p>acordaram e fizeram-se à estrada, em fuga.</p><p>Em casa da família Sousa Mendes, em Bordéus, as orações estavam</p><p>presentes nos gestos diários. Angelina não conseguia deixar de pensar, a</p><p>cada momento, se conseguiriam sair vivos daquele inferno, mas pensava</p><p>também que era necessária para acolher pessoas, algumas em mau estado,</p><p>como certamente aconteceu muitas vezes — era preciso alimentá-las, dar-</p><p>lhes carinho e conforto.</p><p>José António tornou-se impaciente e ansioso. Começou a sair com mais</p><p>frequência para falar com transeuntes. A ideia de tragédia iminente não o</p><p>deixava dedicar-se a algo de útil. Pedro Nuno, o agora estudante de Direito</p><p>da Universidade de Bordéus, em vésperas de exames, também não</p><p>conseguia concentrar-se nos estudos. Refugiados continuavam a afluir a</p><p>Bordéus, vindos de todas as partes da Europa. Muitos da Bélgica, e com os</p><p>quais ele também falava para saber notícias desse país — de Lovaina, dos</p><p>seus amigos… O que iria acontecer ao seu grande amigo de escola, o</p><p>DeWitt, iria sobreviver? E à irmã Isabel, que tinha tido um bebé há menos</p><p>de um ano? Jules, marido de Isabel e seu cunhado, iria alistar-se para</p><p>combater o invasor ou iria tomar outra atitude?</p><p>Como já referi, a 28 de maio de 1940, Leopoldo III, rei dos belgas,</p><p>decide, sem consultar os seus ministros, pôr fim às hostilidades, perante a</p><p>desproporção esmagadora entre as forças belgas e alemãs, provocando</p><p>muitas críticas por parte dos movimentos políticos e dos cidadãos em geral.</p><p>Muitos milhares de belgas deixam as suas casas e alguns irão bater à porta</p><p>do 14, Quai Louis XVIII, em Bordéus.</p><p>Nos primeiros dias de junho, as tropas alemãs começaram o cerco a</p><p>Paris. A força aérea alemã, com os seus Stukas, efetuava ataques pelo ar,</p><p>pressionando e aterrorizando a população civil francesa, que começou a</p><p>abandonar as grandes cidades. Bordéus, que em tempos de paz tinha cerca</p><p>de 200 mil habitantes, até 15 de junho iria contar com mais de um milhão</p><p>de habitantes. Como acolhê-los, onde se refugiariam eles?</p><p>Em 1940, as pessoas não tinham máquinas fotográficas como hoje. Se</p><p>não há registos de imagem suficientes desses dias negros, há, no entanto,</p><p>uma gravura que ilustra melhor que tudo o que foi a entrada em Bordéus,</p><p>em meados de junho de 1940, pela Pont de Pierre. Essa visão catastrófica</p><p>ficou, sem dúvida, gravada nas mentes de Aristides e Angelina, tal como</p><p>ficou gravada na mente do pintor e gravador Charles Philippe, o artista que</p><p>a celebrizou dois anos mais tarde numa gravura que faz parte dos Arquivos</p><p>Municipais de Bordéus, e que já foi reproduzida muitas vezes.</p><p>Do Quai Louis XVIII e das janelas do consulado de Portugal viam-se</p><p>facilmente os autocarros, as ambulâncias, as centenas de automóveis</p><p>particulares e os milhares de pessoas “engarrafados” nesta entrada de</p><p>Bordéus, à mercê de um eventual ataque aéreo.</p><p>Aristides e Angelina sabiam que não podiam ser apenas espectadores e</p><p>ficar à espera de que algo acontecesse. Um dia, Pedro Nuno e José António</p><p>sentiram um impulso para irem à rua ver se reconheciam alguém nessa</p><p>massa humana. Foram à procura de caras que lhes parecessem conhecidas.</p><p>Algumas pessoas pareciam-lhes antigos amigos em situação de desespero,</p><p>mas depois verificavam que tudo não passava de uma sucessão de ilusões.</p><p>De regresso a casa no 14, Quai Louis XVIII, Pedro Nuno avista uma</p><p>pequena família no meio da multidão: um pai carregando uma mala muito</p><p>pesada, e uma jovem mãe com um bebé nos braços… Estremece e pensa</p><p>imediatamente na sua irmã Isabel. Puxa o braço de José António. Podiam</p><p>ser “eles”… Se tivessem fugido de Bruxelas, iriam certamente para</p><p>Portugal, e de caminho passariam por casa dos pais em Bordéus. Mas José,</p><p>mais frio, aponta os óculos e a barriga deste pai, que não correspondiam de</p><p>todo ao físico de Jules, sempre tão elegante. Ao chegarem mesmo diante de</p><p>casa e do consulado verificaram que a fila de refugiados que se amontoava</p><p>para pedir vistos de trânsito para Portugal desde há alguns dias se tinha</p><p>tornado ainda mais longa e espessa. Lá tiveram de dizer mais uma vez aos</p><p>candidatos a vistos quem eles eram e que queriam entrar em casa. Era assim</p><p>já há uns dias. Estava-se a 15 ou a 16 de junho.</p><p>Desde o dia 14, o dia em que Hitler entrou em Paris e subiu ao primeiro</p><p>andar da Torre Eiffel para assistir ao desfile da vitória das suas tropas, que o</p><p>ritmo de resposta aos pedidos de visto tinha abrandado, não porque o</p><p>número de refugiados tivesse diminuído, mas… era como se Aristides</p><p>tivesse cedido ao peso da vitória nazi, como fizeram tantos milhões de</p><p>pessoas. Angelina estava deveras preocupada com o marido, que tinha caído</p><p>à cama e estava em depressão aguda. O chanceler Seabra é que aproveitava,</p><p>e só passava vistos a quem, na sua opinião, francamente, não parecia de</p><p>“raça” ou “religião” judaica, como especificado na Circular 14, e fazendo-</p><p>se pagar conforme o regulamento.</p><p>O Livro de Registos, encontrado muitos anos depois numa gaveta de um</p><p>velho móvel que tinha sido do consulado (hoje encontra-se no MNE),</p><p>indica que no dia 15 de junho houve apenas 120 vistos pagos e cobrados</p><p>por Seabra, apesar de se encontrarem «muitas centenas de pessoas lá fora à</p><p>espera» (como dirá o próprio Seabra num inquérito que lhe foi feito pelo</p><p>MNE). Aristides sentia-se derrotado perante aquele caos e a impossibilidade</p><p>de agir de maneira digna como lhe dizia a consciência, pois as ordens do</p><p>seu superior neste mundo tolhiam-lhe os movimentos. A consciência de</p><p>Aristides encontrava-se cada vez mais agitada — não podia responder a</p><p>tantas súplicas assinando vistos, permitindo àquelas pessoas irem, pelo</p><p>menos, um pouco mais longe. Para aguentar, tinha de reunir forças sobre-</p><p>humanas que só podiam vir de “cima”, e enquanto não chegavam…</p><p>permanecia de rastos.</p><p>A 16 de junho, segundo o mesmo registo, o número de vistos desceu</p><p>para… 40! O que é que estava a passar-se? Claro, cada visto podia valer</p><p>para quatro, cinco ou seis pessoas, ou nalguns casos para famílias ainda</p><p>mais numerosas, mas o dia 16 foi talvez o mais penoso para Aristides, por</p><p>saber que o seu funcionário da chancelaria era tão avarento a dar vistos que</p><p>poderiam salvar a vida de muitas pessoas.</p><p>Felizmente que também surgiram algumas alegrias nesse dia, a par de</p><p>alguns momentos menos agradáveis. Aquela espécie de “visão” que Pedro</p><p>Nuno tinha tido na véspera, ao pensar ver a irmã, iria tornar-se realidade. Já</p><p>próximo da hora do almoço, Angelina vai à porta de entrada, sempre aberta</p><p>para poder socorrer algumas pessoas que desfaleciam e precisavam de mais</p><p>atenção. No meio da multidão e da confusão,</p> <p>Angelina teve a impressão de</p><p>ouvir um bebé a chorar e teve uma espécie de pressentimento. Começou a</p><p>olhar para todas as caras, e de repente há uma cabecinha de bebé que lhe</p><p>salta aos olhos por lhe fazer lembrar os seus próprios filhos. Olhando</p><p>melhor, Angelina reconhece os braços da mãe e a cabeça de Isabel seguida</p><p>da de Jules. Eram eles — afinal, sempre tinham conseguido sair da Bélgica.</p><p>Era, de facto, o seu primeiro neto que estava ali à sua frente, e que ela já</p><p>não via há alguns meses. Foi uma alegria como já não tinha há muito</p><p>tempo.</p><p>Angelina levou-os para o quarto onde Aristides dormitava, e propôs a</p><p>Isabel que se deitasse num divã que estava vazio, para que a jovem mãe</p><p>recuperasse as forças por uns momentos. Começaram a falar baixinho, mas</p><p>acabaram por acordar Aristides, que sorriu e riu como não fazia há muitos</p><p>dias. Isabel e Jules explicaram que tinham conseguido sair de Lovaina com</p><p>uns amigos há algum tempo, e a pouco e pouco tinham conseguido avançar</p><p>e escapar à força aérea alemã, que dava provas de uma pontaria certeira.</p><p>Um desses amigos era o filho do talhante que tinha fornecido a casa de</p><p>Aristides em Lovaina durante bastantes anos. Jules informou que</p><p>provavelmente iriam ter visitas importantes nesse dia, pensando que seria</p><p>melhor que Aristides estivesse mentalmente preparado para as receber.</p><p>Depois do almoço ligeiro que partilharam com quantas pessoas puderam,</p><p>um pouco à maneira do “banquete” bíblico da multiplicação dos pães,</p><p>vieram informar que havia um senhor muito importante para falar com</p><p>urgência com o cônsul Sousa Mendes. Aristides ainda ponderou levantar-se,</p><p>mas quando finalmente soube que se tratava do ministro de Portugal em</p><p>Bruxelas, um seu conhecido e colega do corpo diplomático, mandou dizer</p><p>que o receberia ali mesmo no quarto.</p><p>Tratava-se de Calheiros e Menezes, ministro de Portugal em Bruxelas, a</p><p>caminho de Lisboa, uma pessoa de quem, na minha família, apenas ouvi</p><p>dizer bem. Poucas semanas depois, Calheiros e Menezes seria a principal</p><p>testemunha de defesa no processo disciplinar que Salazar moverá a</p><p>Aristides por desobediência. Eis alguns extratos do seu depoimento sobre o</p><p>encontro com Aristides de Sousa Mendes, apresentado no seu processo</p><p>disciplinar, sublinhando que em Bordéus tinha visto «milhares e milhares</p><p>de fugitivos. Um tráfego inaudito […] a mesma impressão de pânico</p><p>coletivo.»</p><p>No seu depoimento, Calheiros e Menezes descreve ainda o ambiente</p><p>assustador do consulado de Portugal: «A confusão e o barulho eram</p><p>indescritíveis […]», e em resumo e em geral a sua opinião acerca do cônsul</p><p>de Bordéus: «[…] para resistir às súplicas e imploração de tantos</p><p>desgraçados apavorados com a aproximação do invasor e ao justo medo do</p><p>campo de concentração […] ou fuzilamento […] se requeria uma coragem</p><p>pouco banal. Eram milhares de pessoas angustiadas que haviam sido</p><p>metralhadas ou bombardeadas na fuga […] uma fuga desordenada de dois</p><p>milhões e meio de belgas […]. O cônsul em Bordéus deixou-se dominar,</p><p>como tantos outros, pelo horror da tragédia a que assistia.» É curioso ver</p><p>como no seu depoimento para o processo de Aristides, em agosto de 1940, o</p><p>ministro Calheiros e Menezes é claro na utilização da expressão «campo de</p><p>concentração» que, como é sabido, começou logo a ser usada em 1933, mas</p><p>que “certos” senhores em Portugal dizem que “só apareceu em 1942”.</p><p>O dia 16 de junho avançava sem que de Lisboa viesse algum sinal</p><p>positivo. Lá fora, a multidão aumentava a todas as horas, estendendo-se até</p><p>à Esplanade des Quinconces. Os cafés e hotéis estavam cheios. Os</p><p>candidatos a asilo não se afastavam. Sabiam que era ali, e só ali, que estava</p><p>a esperança.</p><p>Jules contou a Aristides que estava a acompanhar vários ministros belgas,</p><p>que nalguns casos viajavam com as respetivas famílias, em fuga para</p><p>Portugal, esperando que daí pudessem ir para Inglaterra. Também se tinham</p><p>cruzado, no meio de grande pânico, com a comitiva que transportava o</p><p>“tesouro da Bélgica em ouro” para que não caísse nas mãos do inimigo.</p><p>O ministro belga das Colónias nunca esquecerá a ajuda prestada por Jules</p><p>d’Août para porem o “tesouro” a salvo, e também pelo facto de este ser</p><p>genro do cônsul de Portugal. Desta relação virá o apoio oferecido pelos</p><p>meus avós a estes ministros e respetivas famílias, que irão passar uns</p><p>tempos agradáveis em Cabanas de Viriato, na Casa do Passal. A presença</p><p>das famílias dos ministros belgas naquela aldeia, em 1940, irá marcar as</p><p>memórias dos cabanenses, que durante muitos anos contarão aos amigos</p><p>como os mais jovens se divertiram em Cabanas naquele verão, longe do</p><p>horror, organizando bailaricos e longas passeatas a pé com piqueniques,</p><p>enquanto “lá fora” a Humanidade se matava.</p><p>A voz de Deus</p><p>A noite de 16 para 17 de junho foi de suor, nervosismo, meditação, e muita</p><p>oração. Aristides e Angelina, na companhia de Isabel e dos dois filhos,</p><p>rezam desesperadamente por uma inspiração divina. Jules também,</p><p>certamente, mesmo não sendo tão crente, mas tal como eu o conheci, não</p><p>duvido de que se terá associado a essas preces, pois a sombra da morte</p><p>pairava por cima de todos. Nessa noite, Aristides não conseguia adormecer.</p><p>Como resolver este dilema? Procurando profundas justificações filosóficas</p><p>ou religiosas? Vai simplesmente obedecer ao ditador de Lisboa, que na</p><p>realidade nem sequer viu o “campo de batalha”? Um ditador que não</p><p>respeita sequer a sua própria Constituição, e que atua abertamente contra o</p><p>seu artigo 8.º? Para Aristides — trineto de um dos “pais” da primeira</p><p>Constituição de Portugal — obedecer a Salazar era contranatura.</p><p>Vinham-lhe constantemente à cabeça as palavras de sua mãe: «Nunca</p><p>faças nada de que te possas envergonhar e que não me possas contar.» E</p><p>também as palavras do seu irmão gémeo: «Nós [os dois gémeos] sabemos</p><p>sempre em que o outro pensa, e concordamos um com o outro!» Ou as</p><p>palavras do juiz, seu pai: «Faz sempre o bem. Faz aos outros aquilo que</p><p>gostarias que te fizessem.»</p><p>Teria de encontrar uma resposta para aquele “mundo” que ali se</p><p>concentrava. Aristides vai ter de decidir nessa mesma noite. Não se pode</p><p>desperdiçar uma ocasião daquelas para fazer o bem! Deus colocou-o no</p><p>centro de uma guerra que vai ser monstruosa, e ele sabe-o. O seu coração</p><p>implora-lhe que salve ao menos as pessoas que estão à sua porta, e a sua</p><p>consciência está atenta à voz de Deus.</p><p>Aristides está pronto. Nessa noite não dorme. Sai da cama às cinco horas</p><p>da manhã, lava-se e barbeia-se. Angelina prepara um bom pequeno-almoço.</p><p>Aristides manda chamar a polícia, para que a ordem seja mantida. Cerca das</p><p>seis e meia, pede ajuda aos filhos e ao genro. Manda alguém ir chamar o</p><p>rabino Kruger, que deixara bem claro que só iria para Portugal quando</p><p>Aristides desse vistos a todos os seus irmãos. O cônsul e a mulher dirigem-</p><p>se para a porta do segundo andar e abrem-na. As escadas estão cheias de</p><p>pessoas — pais, mães e crianças sentados e deitados pelo chão. Em francês,</p><p>o cônsul-geral de Portugal fala em voz bem alta para ser ouvido por todos</p><p>os que estavam ali, e que irão repetir aos outros: «Bom dia a todos, a minha</p><p>mulher e eu decidimos que vamos dar vistos de trânsito para Portugal a</p><p>todos os que o desejarem, sem qualquer limite ou condição. Serão vistos</p><p>gratuitos, que só pagarão à polícia portuguesa quando chegarem à fronteira.</p><p>Alguns de vós já aqui estão há vários dias e sabemos que têm passado por</p><p>muito sofrimento. Dentro do possível, continuaremos a ajudar os mais</p><p>necessitados.»</p><p>Estava a começar o que o historiador da Universidade de Jerusalém,</p><p>Yehuda Bauer, qualificou no seu livro A History of the Holocaust, como a</p><p>maior operação de salvamento da Segunda Guerra Mundial, levada a cabo</p><p>por uma só pessoa, contra as autoridades do seu próprio país. Estávamos no</p><p>dia 17 de junho de 1940.</p><p>Ao falar com Angelina e com os filhos, Aristides explicou que durante a</p><p>sua noite de vigília, num momento crítico, ouviu claramente dentro da sua</p><p>cabeça “a voz de Deus” a dizer-lhe: «Levanta-te e dá vistos a todos.» É</p><p>daqui que vem a frase de Aristides que tão conhecida ficou: «Tenho de</p><p>salvar todas estas</p> <p>pessoas, tantas quantas eu puder. Se tenho que</p><p>desobedecer a ordens, prefiro estar com Deus contra os homens, do que</p><p>com os homens contra Deus!»</p><p>Na conversa que Aristides teve com Angelina e com os filhos José</p><p>António, Pedro Nuno e Isabel (e Jules d’Août, seu genro) invocou vários</p><p>argumentos espirituais e históricos, que já foram citados por vários autores.</p><p>Tentarei recriar um deles, que me foi dito e repetido muitas vezes pelos</p><p>meus familiares e por outras pessoas que o conheceram bem: «Estes</p><p>refugiados são filhos de Deus, vítimas inocentes de uma guerra monstruosa</p><p>que os foi tirar a suas casas, e se não fizermos nada por eles, poderão</p><p>morrer debaixo de bombas, ou de fome, ou serem assassinados pelo invasor.</p><p>A nossa obrigação e dever, como pessoas crentes em Deus, é ajudá-los, tal</p><p>como faria o Bom Samaritano. A Circular 14 é injusta e não tem em conta</p><p>os terríveis sofrimentos causados a todas estas pessoas. Foi redigida numa</p><p>secretaria em Lisboa, longe desta realidade, sob influência de um polícia</p><p>que apenas pensa na sua carreira e bem-estar.</p><p>Vou desobedecer frontalmente a esta Circular a partir de hoje, e fazer</p><p>tudo quanto puder para ajudar o maior número de refugiados. Conto com a</p><p>vossa total colaboração para dar vistos gratuitos a todos quantos pudermos.</p><p>A vossa mãe, com quem já falei, dá-me todo o seu apoio, e está disposta a</p><p>também prestar ajuda e a cuidar das pessoas que tenham mais necessidade</p><p>de atenção. Estou consciente de que perderei o meu trabalho, e a vossa vida</p><p>vai alterar-se. Tudo vai ser mais difícil para nós, mas também tenho a</p><p>confiança de que Deus não nos abandonará. Ao fazermos o bem a estes</p><p>refugiados é ao próprio Cristo que o faremos e não seremos esquecidos —</p><p>um dia poderemos ganhar o céu.</p><p>Por outro lado, este gesto redentor é-lhes devido pelos sofrimentos</p><p>causados nos séculos XV e XVI pela lei da expulsão dos judeus de 1496 e</p><p>pelo estabelecimento da Inquisição em Portugal. Esta é uma oportunidade</p><p>para o nosso país reparar um erro histórico e corrigir os erros do seu</p><p>passado.»</p><p>Ordem para desobedecer</p><p>O amigo e diplomata de origem polaca, Clemens Skalski, entre curtas</p><p>visitas e idas a alguns cafés, transformados em autênticos centros de</p><p>negócios e negociatas, também ia informando o cônsul Aristides sobre a</p><p>situação caótica e de pânico que se vivia em Bordéus, ao mesmo tempo que</p><p>dava a sua preciosa colaboração, fazendo contactos com as autoridades</p><p>francesas e com potenciais beneficiários de vistos. Entre as várias tarefas a</p><p>realizar, Aristides ordenou, através do telefone, ao cônsul honorário de</p><p>Portugal em Toulouse, Émile Gissot, que desse vistos gratuitos sem limites.</p><p>A mesma ordem foi para Bayonne, onde Faria Machado, também seu</p><p>subalterno, a recebeu por telefone, e para Hendaye, na fronteira com</p><p>Espanha, onde o vice-cônsul Vieira Braga a recebeu.</p><p>O Marechal Pétain acabava de ser nomeado, nessa mesma noite de 16</p><p>para 17, na própria cidade de Bordéus, presidente do Conselho de Ministros</p><p>desta «nova França», uma terminologia que fazia lembrar a do estado</p><p>corporativo português — Estado Novo. Poucos dias depois, Pétain tornar-</p><p>se-ia no chefe do Estado francês. Era evidente que a colaboração com os</p><p>nazis estava garantida; os judeus e outros refugiados não podiam ter</p><p>qualquer tipo de ilusões sobre o futuro. Em dois anos, a estrela amarela de</p><p>David iria tornar-se de uso obrigatório para todos os judeus em solo gaulês.</p><p>No apartamento/consulado de Portugal apinhado, havia um sentimento de</p><p>naufrágio. Alguns desses “náufragos” deixaram testemunhos escritos, tais</p><p>como o professor Charles Oulmont (a carta integral está nos Anexos), da</p><p>Universidade Sorbonne, de Paris (famoso escritor e erudito, por cuja cabeça</p><p>os nazis dariam boas alvíssaras), que com a mulher aí se instalou durante</p><p>vários dias. Encontrava-se num tal estado de depressão que mal chegou a</p><p>casa de Aristides e Angelina, se vestiu com o pijama e assim permaneceu</p><p>até ao dia em que Pedro Nuno o levou de carro até à fronteira de Espanha</p><p>para aí seguir viagem no Sud-Express para Lisboa, salvando a sua vida e a</p><p>da mulher. Viveu até aos cem anos.</p><p>O meu tio Pedro Nuno contou-me muitas vezes como teve de conduzir</p><p>frequentemente carros de grandes marcas para trás e para a frente, pois</p><p>naqueles dias só havia gasolina para militares e para quem apresentasse</p><p>passaporte diplomático, como era o seu caso, já que, como filho de</p><p>diplomata, tinha a possibilidade de comprar o precioso combustível. Numa</p><p>carta datada de fevereiro de 1968, escrita a Joana de Sousa Mendes, a filha</p><p>de Aristides e Angelina que a partir de Nova Iorque se bateu valentemente</p><p>pela reabilitação do pai até à sua morte, o professor Charles Oulmont</p><p>escreve: «[…] Nunca esquecerei a forma como o seu pobre pai se</p><p>empenhou para aliviar o sofrimento dos judeus durante a invasão de França</p><p>em 1940, em Bordéus. Pessoalmente, encontrava-me também nessa</p><p>situação desesperada, como refugiado, apesar de ter sido convidado pelo</p><p>governo português para estar presente nas cerimónias da Independência de</p><p>Portugal. Poderíamos pensar que tal facto protegeria a minha vida!</p><p>Infelizmente, não foi o caso, e foi o seu pai e só ele, com a sua bondade,</p><p>quem me salvou… Foi ele quem levou a minha preciosa bagagem para</p><p>Lisboa. Graças a ele, as minhas obras escaparam às mãos destruidoras dos</p><p>alemães […] essas mesmas mãos que já tinham anteriormente devastado a</p><p>minha casa em Paris, Saint Cloud.»</p><p>Na realidade, foi Pedro Nuno (com o seu passaporte diplomático) que,</p><p>nos últimos dias de junho de 1940, se pôs ao volante de um magnífico carro</p><p>descapotável que um casal belga lhe tinha “emprestado” para os transportar</p><p>para Portugal, e trouxe os quatro famosos sacos com os “valores de prata e</p><p>ouro maciço” que constituíam o “pé-de-meia” do professor Oulmont, e que</p><p>depois, já em Lisboa, lhos entregou.</p><p>Em geral, todos mereciam a atenção de Angelina e dos filhos de</p><p>Aristides, e não faltam inúmeros testemunhos de gratidão e</p><p>reconhecimento. Há uma pequena história, que já foi contada várias vezes</p><p>por outras pessoas, com narrações diferentes, mas como o meu tio Pedro</p><p>Nuno fez questão de me contar tantas vezes, vejo-me obrigado a deixá-la</p><p>aqui na sua versão, que, aliás, considero a mais próxima da realidade. Num</p><p>dia de grande afluência de refugiados (dia 13 ou 14 de junho), que ficavam</p><p>obviamente ao ar livre, entre toda a gente aparece um rapazinho com uns</p><p>dez anos. Ninguém sabe quem é, de onde vem, que língua fala. A minha avó</p><p>imediatamente o acolhe como se ele fosse seu, e põe-no no quarto dos</p><p>rapazes, onde já dormiam outros, um deles o próprio Pedro Nuno. O meu</p><p>tio estabelece uma relação muito cordial com o rapaz, e durante alguns dias</p><p>torna-se para ele um autêntico irmão mais velho, conversando com ele,</p><p>levando-o a dar um ou outro passeio, e oferecendo-lhe a verdadeira amizade</p><p>que só os irmãos mais velhos sabem dar.</p><p>A 18 ou 19 de junho há uma família que ao receber o visto para Portugal,</p><p>e antes de se dirigir para a estação de Saint-Jean, percebendo que o jovem</p><p>estava sozinho, se oferece para o levar consigo. A separação vai dar-se em</p><p>breve e talvez nunca mais se vejam. O rapaz leva Pedro Nuno para um</p><p>canto e fala-lhe de toda a sua admiração pela forma como foi tratado</p><p>naquela casa. Para demonstrar o seu reconhecimento, tira um lenço do</p><p>bolso, abre-o e retira dele uma pedrinha que oferece a Pedro Nuno, dizendo:</p><p>«Toma, é para ti. Isto tem muito valor. O meu pai disse-me para as esconder</p><p>bem e só dar uma de vez em quando, se estivesse numa situação muito</p><p>difícil. Por exemplo, com muita fome. Mas vocês foram tão bons para mim</p><p>que quero dar-te uma.» Evidentemente, Pedro Nuno recomendou-lhe,</p><p>“como irmão mais velho”, que fizesse como o pai lhe tinha dito e que as</p><p>guardasse todas, que só as usasse numa ocasião de vida ou de morte. Talvez</p><p>este miúdo fosse filho de algum diamanteiro de Antuérpia, e muito</p><p>provavelmente a conversa terá decorrido em francês — já não me lembro</p><p>bem de todos os pormenores que o meu tio Pedro Nuno me contou a este</p><p>respeito.</p><p>Entretanto, ainda no dia 17 de junho, em Londres, o</p> <p>general De Gaulle</p><p>acertava com a BBC os pormenores técnicos para a difusão da sua</p><p>mensagem aos franceses, que iria ficar conhecida como «O apelo do dia 18</p><p>de junho». Uma mensagem cuja preparação lançava ondas de agitação no</p><p>ar, e que, apesar de curta e simples e de ter tido uma audiência muito</p><p>reduzida, ficou para sempre na história.</p><p>CAPÍTULO VII</p><p>Bordéus II</p><p>Operação de salvamento, o processo disciplinar, o ato solidário de César</p><p>Há muitas histórias e muitos relatos — até oficiais, e que levaram à</p><p>instauração do processo disciplinar ao meu avô — sobre aqueles dias em</p><p>Bordéus, e não só: a Operação de Salvamento estendeu-se também a</p><p>Toulouse e a Bayonne, e levou Aristides até à fronteira quando os seus</p><p>vistos foram dados como nulos. Mas os mais emotivos e, para mim, os mais</p><p>fidedignos, são os contados na primeira pessoa, pelos meus tios que os</p><p>viveram, pelo meu pai, e pelos meus tios ausentes desses momentos, mas</p><p>que tantas vezes os partilharam em família, e pelos refugiados que os vistos</p><p>salvaram, e que desses dias deram testemunho, quer direto quer escrito,</p><p>quer ainda por interpostas pessoas (filhos, netos, parentes, amigos). É difícil</p><p>imaginar o estado de espírito de Aristides quando se apercebeu de que não</p><p>conseguiria salvar todos os refugiados que por ele esperavam. A imagem do</p><p>cônsul português a passar freneticamente vistos na rua em Bayonne, ou a</p><p>acelerar rumo à fronteira para abrir ele próprio a cancela antes que lá</p><p>chegasse a ordem que dava os seus vistos como nulos, foi aproveitada pelos</p><p>instigadores do seu processo disciplinar para sugerir “ato de loucura” de um</p><p>“homem perturbado por trágicas circunstâncias”. Mas nós, a sua família,</p><p>sabemos que era a compaixão e o sentido de justiça que o moviam, e a</p><p>vontade de “desobedecer até ao fim” para conseguir salvar o máximo de</p><p>vidas possível. Mesmo que isso lhe custasse o resto da carreira.</p><p>Operação de Salvamento</p><p>A “Operação de Salvamento”, como muitos lhe chamaram, foi-me contada</p><p>por várias pessoas, especialmente pelo meu pai, que quase todos os dias me</p><p>falava no assunto, embora não a tenha testemunhado diretamente, por se</p><p>encontrar em Portugal. Mas tinha no seu coração — e na sua memória,</p><p>porque os pais e os irmãos tantas vezes recordaram esses dias — as</p><p>centenas de pessoas que suplicavam por vistos (e pela vida) fora do</p><p>consulado. Nunca conseguiu esquecer o estado desesperado em que se</p><p>encontravam, e muitos outros pormenores que só quem lá esteve pode</p><p>contar.</p><p>Uma das pessoas que mais me falou daqueles dias em Bordéus, foi o meu</p><p>tio Pedro Nuno, que até ao final dos seus 85 anos de vida conseguiu</p><p>descrever-me detalhadamente a epopeia que pôs o meu avô na história, mas</p><p>que naquela altura afetou tão negativamente toda a família. Foi um dos tios</p><p>com quem mais convivi, e além do meu pai foi, com certeza, quem melhor</p><p>me transmitiu o espírito da família de Aristides e de Angelina.</p><p>Retrato do cônsul Aristides de Sousa Mendes.</p><p>Pedro Nuno era o oitavo filho dos meus avós. Nasceu em Portugal, em</p><p>1920. Estava em Bordéus com os pais, porque em 1939 tinha começado a</p><p>cursar Direito naquela cidade, e acabou por tornar-se uma espécie de</p><p>secretário pessoal de Aristides.</p><p>Sebastião e Francisco Fernando, os dois filhos nascidos nos Estados Unidos, a quem</p><p>chamavam “os americanos”, que participaram no desembarque das tropas aliadas na</p><p>Normandia, a 6 de junho 1944.</p><p>Muito importantes na construção das minhas “memórias de guerra”</p><p>foram também os meus tios “americanos”, Sebastião e Francisco Fernando</p><p>— que tinham nascido na Califórnia em 1923 e 1924, respetivamente —</p><p>que, como soldados norte-americanos, participaram no desembarque das</p><p>tropas aliadas na Normandia, a 6 de junho de 1944. Sobreviveram para o</p><p>contar, e nos anos 70 e 80 tive a oportunidade de conviver frequentemente</p><p>com eles e de ouvir os seus relatos de guerra (e também da vida da família).</p><p>Ao longo da minha vida, e da minha “pesquisa” sobre a vida do meu avô,</p><p>conheci muitas outras pessoas que me contaram como participaram no</p><p>esforço da atribuição de vistos em Bordéus, em Bayonne e em Hendaye, na</p><p>fronteira com Espanha (Irun) — alguns deles tinham chegado a beneficiar</p><p>dos vistos do meu avô, atribuídos nos passaportes dos pais.</p><p>Testemunhos reais</p><p>Quem me relatou espontaneamente, e na primeira pessoa, o que se viveu em</p><p>Bordéus nesses dias, foi o arquiduque Otto von Habsburg, herdeiro do trono</p><p>imperial da Áustria/Hungria, que tive a honra de conhecer em Bruxelas, em</p><p>1986, quando Portugal e Espanha passaram a integrar a então CEE. Voltarei</p><p>a falar sobre este encontro, pois o que o arquiduque nessa altura me contou</p><p>corresponde totalmente ao testemunho escrito que foi enviado à minha tia</p><p>Joana (sétima filha de Aristides e Angelina, nascida no Brasil em 1918, e</p><p>que foi uma das mais ativas na defesa dos atos do pai), que na altura residia</p><p>em Nova Iorque, pelo seu secretário pessoal, o conde Degenfeld, num relato</p><p>com grande riqueza de pormenores. Na carta, datada de 18 de maio de</p><p>1968, o conde Degenfeld escreve:</p><p>«O arquiduque pediu-me que lhe dissesse que ficou muito comovido</p><p>pelo conteúdo da sua carta, que veio lembrar-lhe os tristes dias de</p><p>Bordéus de junho de 1940, e em especial a enorme ajuda que o seu</p><p>falecido pai, o cônsul-geral de Portugal em França, Aristides de</p><p>Sousa Mendes, lhe prestou a ele e à sua inteira família […]. Na</p><p>verdade, o seu pai mereceu o reconhecimento como Justo Entre as</p><p>Nações, por parte de Israel, por ter salvo a vida a tantos milhares de</p><p>judeus, nesses dias tenebrosos, sem olhar às consequências que daí</p><p>viessem para si mesmo.</p><p>O arquiduque ficará para sempre grato a seu pai pela nobre maneira,</p><p>como em momentos tão perigosos, ele o ajudou e à sua família,</p><p>atribuindo-lhes os vistos necessários para Portugal, de modo que no</p><p>dia seguinte puderam alcançar a fronteira com Espanha.</p><p>[…] Na manhã em que chegaram, o arquiduque, o seu irmão Carlos,</p><p>e eu próprio, fomos visitar uma série de pessoas importantes para</p><p>fazermos o ponto da situação […] e ficou bem claro que o governo</p><p>francês [Pétain] iria pedir o Armistício, e que nesse caso a família</p><p>imperial correria o risco de ser entregue aos alemães, se não</p><p>conseguisse escapar antes […] E foi no dia seguinte, dia 17 de junho,</p><p>cerca das cinco horas, que me dirigi ao consulado-geral de Portugal.</p><p>Nas escadas do prédio e na rua (Quai Louis XVIII), havia uma</p><p>enorme quantidade de pessoas à espera de vistos, que iam entrando</p><p>rapidamente para a chancelaria do consulado. Consegui dizer</p><p>algumas palavras a um funcionário, que imediatamente me levou à</p><p>presença do seu pai, o cônsul-geral, que foi muito amável e que me</p><p>disse que, devido ao enorme número de pessoas que esperavam obter</p><p>vistos, voltasse às dez horas da noite, antes do fecho.</p><p>[…] Às dez horas voltei ao consulado, e o seu pai, apesar do grande</p><p>cansaço causado pela enorme carga de trabalho, carimbou</p><p>pessoalmente e assinou os dezanove passaportes que lhe apresentei.</p><p>Tive então ocasião de apreciar os nobres sentimentos do seu pai, que</p><p>tinha decidido ajudar o maior número possível de refugiados a</p><p>escapar ao perigo alemão […] entre eles muitos austríacos, judeus e</p><p>não judeus.</p><p>Também pedi ao Dr. Sousa Mendes para ter a bondade de atribuir</p><p>vistos a um grupo de austríacos conhecidos do arquiduque que</p><p>trabalhavam em França há dois anos […]. O seu pai manteve-se fiel</p><p>à promessa que tinha feito de dar vistos a todos os que os pedissem e</p><p>que mencionassem que tinham trabalhado para o arquiduque, e todos</p><p>eles — tal como muitos milhares de refugiados — chegaram a</p><p>Portugal, e de lá foram para os Estados Unidos ou para a América do</p><p>Sul.</p><p>[…] Nessa altura, o arquiduque não fazia ideia nenhuma das</p><p>enormes dificuldades que o seu pai iria ter por causa da ajuda</p><p>prestada aos refugiados […]</p><p>[…] Antes de terminar, gostava de dizer-lhe que o arquiduque e a sua</p><p>família, em especial a imperatriz Zita da Áustria, recordarão sempre</p><p>com a máxima gratidão o que o seu pai fez por eles e por tantos</p><p>milhares de refugiados em situação desesperada.</p><p>Que Deus guarde o seu pai, certamente agora na Sua presença, por</p><p>tudo</p> <p>quanto fez durante a sua vida, especialmente durante aqueles</p><p>dias de junho de 1940.»</p><p>Esta carta deixa perceber bem o ambiente que se vivia a 17 de junho no</p><p>consulado-geral de Portugal em Bordéus, e é uma peça essencial para se</p><p>avaliar na sua justa medida a ação de Aristides de Sousa Mendes. Qualquer</p><p>historiador ou investigador tem de analisar o seu conteúdo, e tem de a</p><p>mencionar para poder transmitir uma imagem correta dos acontecimentos</p><p>de Bordéus. Se o não fizer, faltará deliberadamente à verdade.</p><p>Um outro documento com bastante peso histórico é a carta escrita pela</p><p>grã-duquesa Charlotte do Luxemburgo, também dirigida à minha tia Joana,</p><p>datada de 30 de julho de 1968, e que começa logo por ser identificada como</p><p>uma homenagem «em memória do falecido Dr. Aristides de Sousa</p><p>Mendes»: «Desejo exprimir o meu profundo reconhecimento pela preciosa</p><p>ajuda que ele (Dr. Sousa Mendes) deu, na sua qualidade de cônsul-geral de</p><p>Portugal em Bordéus, em 1940, aos refugiados luxemburgueses.</p><p>Guardamos uma recordação cheia de gratidão pelos eminentes serviços que</p><p>o Dr. Sousa Mendes prestou ao nosso país durante os dez anos em que foi</p><p>acreditado cônsul-geral no Grão-Ducado do Luxemburgo.</p><p>Mas principalmente, os seus méritos num momento de tragédia e de</p><p>pânico, serão sempre lembrados pelos refugiados luxemburgueses, muitos</p><p>deles de religião judaica, pelos membros do governo luxemburguês e pela</p><p>minha própria família, que foram salvos por sua própria iniciativa da</p><p>perseguição, e assim puderam chegar aos países livres.</p><p>O seu gesto humanitário servirá para sempre de exemplo de total devoção</p><p>às causas da liberdade e compreensão entre todas as nações e raças.»</p><p>Estas duas cartas foram escritas em 1968, 28 anos depois dos</p><p>acontecimentos de Bordéus, e portanto, não serviram para a defesa de</p><p>Aristides no seu processo de outubro de 1940. Mas mesmo que tivessem</p><p>chegado a tempo de servirem de apoio, o mais provável é que tivessem</p><p>desaparecido, tal como aconteceu nessa altura a outros documentos</p><p>favoráveis ao cônsul. Em 1940, Salazar e os seus próximos estavam</p><p>convencidos de que a “nova ordem mundial” viria do lado do III Reich, e o</p><p>cônsul de Bordéus teria de ser afastado e severamente castigado, para que</p><p>aos olhos dos nazis tal punição fosse bem visível.</p><p>Hoje, estes documentos são conhecidos e incontornáveis em qualquer</p><p>trabalho sobre Aristides de Sousa Mendes, tal como o testemunho do rabino</p><p>Kruger e vários outros, que confirmam a bondade do gesto do meu avô em</p><p>Bordéus. Para mim, é difícil entender como é que um doutoramento da</p><p>Universidade de Coimbra, em 2013, ignora totalmente tais testemunhos, e</p><p>até sugere que o processo contra Aristides, em 1940, foi uma «mentira</p><p>arranjada pelo regime de Salazar para desviar de si as atenções e proteger</p><p>um certo secret d’état». Aristides de Sousa Mendes — o mau funcionário,</p><p>dizem “eles” — serve apenas de bode expiatório para esconder algo de</p><p>muito superior que estaria a ser projetado por Salazar e pelos seus próximos</p><p>(a tese de que Salazar, no fundo, era um “humanitário escondido”). Ao que</p><p>parece, o meu avô ter-lhes-á estragado os planos…</p><p>A aventura dos vistos</p><p>A carta do conde Degenfeld dá uma ideia da situação caótica vivida nas</p><p>imediações e no interior do consulado. Mas apesar de tudo, havia uma certa</p><p>organização. Quando Aristides abriu as portas e anunciou a sua decisão aos</p><p>refugiados, já havia uma ideia quanto à forma de proceder.</p><p>As escadas estavam cheias de pessoas, desde a rua até ao segundo andar</p><p>— ninguém conseguiria cair no chão, mesmo que desmaiasse, por falta de</p><p>espaço, fazendo lembrar a já mencionada gravura sobre a Pont de Pierre,</p><p>que constituía uma porta de entrada em Bordéus. Era por aí que Pedro</p><p>Nuno, Jules e alguns amigos da Bélgica, iriam mandar entrar os refugiados</p><p>ou receber os passaportes. Entre esses amigos vindos da Bélgica, estava o</p><p>português Manita, casado com Lionne, originária de Lovaina — agora</p><p>acompanhados da filha de ambos, de tenra idade, entretanto nascida em</p><p>Portugal. Perante a imensidão do trabalho em vista, José António decidiu</p><p>“pôr de lado os bons momentos passados ao piano” e, também ele, juntar-se</p><p>a uma boa causa.</p><p>Para começar, dirigiram-se às pessoas pedindo-lhes que entregassem os</p><p>documentos (passaportes ou, nalguns casos, simples documentos com o</p><p>nome e alguma fotografia) e os pusessem dentro de caixotes de cartão ou</p><p>sacos de correio. Esses caixotes e sacos eram levados para o gabinete de</p><p>Aristides, onde Pedro Nuno ou José António preenchiam um mínimo de</p><p>formalidades, carimbavam, e o cônsul-geral assinava. Quando o chanceler</p><p>Seabra apareceu ao serviço, à hora normal, a “linha de produção” já</p><p>funcionava em velocidade de cruzeiro. Seabra, “desobedecendo” ao seu</p><p>superior imediato, o cônsul Aristides, não podia deixar de cobrar o preço</p><p>dos vistos, o que atrasava o processo formal… Mas a “linha de produção”,</p><p>rebelde e desafiadora, continuava sem cessar, apesar do mau humor do</p><p>chanceler. Angelina e a filha Isabel, e certamente a criada, davam apoio</p><p>logístico, trazendo regularmente mantimentos para a sala de espera e, claro,</p><p>doses de coragem e de ajuda espiritual.</p><p>Várias pessoas com quem contactei (algumas já falecidas), falaram-me</p><p>desses momentos, inesquecíveis para quem os viveu. Como Henri Zvi</p><p>Deutsch, jovem adolescente na altura, que me contou que os pais, fugidos</p><p>da Alemanha, nem papéis tinham — com eles apenas traziam fé e</p><p>esperança. Zvi Deutsch mencionou-me o tipo de vistos que vários autores</p><p>consideram como únicos na história da diplomacia mundial e que o cônsul</p><p>de Bordéus terá produzido às centenas. Tratava-se de um simples pedaço de</p><p>papel onde Aristides (ou talvez um dos seus filhos) escrevia o seguinte</p><p>texto: «O governo português pede às autoridades francesas e espanholas</p><p>que deixem passar o portador, ou portadores, deste visto de trânsito</p><p>temporário. Trata-se de um refugiado, ou refugiados, do conflito armado a</p><p>decorrer na Europa, a caminho de Portugal.»</p><p>Em 1992, Diana Andringa é autora e realizadora de um filme</p><p>documentário — O Cônsul Injustiçado — onde Zvi Deutsch aparece a</p><p>confirmar tudo isto. Este documentário marca um momento muito</p><p>importante para o reconhecimento do gesto de Aristides. Foi realizado e</p><p>produzido por Fátima Cavaco, da RTP, e teve direção de Teresa Olga e</p><p>Diana Andringa. Foi premiado pela Fundação Luso-Americana para o</p><p>Desenvolvimento (FLAD). Uma outra testemunha e ator destes</p><p>acontecimentos de junho de 1940, que também dá a cara neste</p><p>documentário, é o arquiduque Otto von Habsburg, que não se contentou</p><p>apenas em receber vistos e relata como participou no esforço da recolha de</p><p>passaportes para serem assinados e carimbados pelo cônsul. Uma vez na</p><p>rua, os heróis desta aventura chamavam o nome do titular do passaporte, à</p><p>medida que iam esvaziando os sacos.</p><p>Outro momento dramático, também recordado no trabalho de Diana</p><p>Andringa, é o bombardeamento da cidade de Bordéus na noite de 19 para</p><p>20 de junho, que causou algumas centenas de mortos e dezenas de feridos.</p><p>Neste documentário, o filho do rabino Kruger conta com vivacidade a</p><p>forma como o pai participou de forma tão eficiente nesta operação, indo</p><p>para a rua sem chapéu e sem casaco, algo de inusual para um rabino,</p><p>dirigindo-se diretamente aos refugiados: «Refugiados judeus e não judeus!</p><p>Todos! Dêem-me os vossos passaportes. Arranjo-vos vistos. Não é preciso</p><p>dinheiro!»</p><p>No dia 19 de junho, um jovem de 28 anos, por acaso filho do imperador,</p><p>o jovem Otto von Habsburg, e alguns dos seus próximos, juntaram-se aos</p><p>voluntários por acharem que era uma forma concreta de participarem</p><p>naquele esforço de salvação que estava a dar que falar em toda a cidade de</p><p>Bordéus. Nos cafés e hotéis mais famosos só se falava disto. Alguns</p><p>escritores, também eles à espera de visto, registaram estes acontecimentos,</p><p>como o fez o americano Eugen Bagger, no Café Splendide, um dos cafés</p><p>mais reputados de Bordéus, frequentado por políticos, diplomatas e muitos</p><p>famosos. Aristides também passava por lá às vezes, tal como Pedro Nuno,</p><p>para saber “as últimas”.</p><p>Uma senhora inglesa, ao ouvir contar</p> <p>tantas coisas sobre o cônsul e o</p><p>consulado de Portugal, dirigiu-se para lá, esperando obter um visto super-</p><p>rápido, talvez por ser inglesa… De facto, não foi o que aconteceu, e quando</p><p>chegou à fala com o cônsul, até sugeriu, de modo altivo, que se fosse uma</p><p>questão de dinheiro, poderia dar algum. Aristides respondeu que ali,</p><p>naquele momento, o dinheiro não servia para nada, mas se ela quisesse</p><p>desembolsar algum, então que contribuísse para um qualquer fundo de</p><p>caridade. A senhora não gostou da resposta, e imediatamente enviou uma</p><p>queixa para o ministério britânico dos Negócios Estrangeiros, dizendo que o</p><p>cônsul de Portugal em Bordéus protelava até altas horas o serviço de vistos</p><p>e que cobrava fundos sabe-se lá para quê e para quem! Este episódio</p><p>aparecerá nos autos do processo disciplinar instaurado por Salazar, algumas</p><p>semanas depois.</p><p>Salvamento em Bayonne</p><p>Com a “rodagem” adquirida pela equipa de Aristides, o processo de</p><p>recolher passaportes e de os entregar o mais depressa possível aos titulares,</p><p>fez com que no dia 19 ao anoitecer, a grande massa de candidatos a visto</p><p>tivesse sido reduzida de forma substancial, o que levou o meu avô a</p><p>contactar telefonicamente o consulado português de Bayonne, que era</p><p>gerido por um cônsul honorário (não de carreira), Faria Machado, ajudado</p><p>por Vieira Braga como vice-cônsul, que prestaria serviço sobretudo em</p><p>Hendaye, na fronteira franco-espanhola. Faria Machado respondeu com</p><p>espanto ao telefonema de Aristides, e de início não compreendeu de todo o</p><p>que estava a passar-se, nem que iria receber a visita do cônsul de Bordéus</p><p>dentro de duas horas. Para Faria Machado, a Circular 14 de Salazar era a</p><p>única ordem que existia, por isso, que houvesse milhares de refugiados em</p><p>Bayonne não o surpreendia muito… nem o incomodava.</p><p>Aristides entrou no seu carro e acelerou para sul, em direção a Bayonne.</p><p>Quando lá chegou, constatou junto da polícia local que só nas imediações</p><p>da Rue du Pilori (uma rua bastante mal frequentada, ainda hoje), onde se</p><p>situava o pequeno consulado, se encontravam pelo menos cinco mil</p><p>pessoas, desesperadas para obterem um visto para Portugal.</p><p>Quando Aristides viu Faria Machado, à entrada do consulado, no 2.º</p><p>andar do n.º 8 dessa rua, informou-o: «Como o senhor me disse que não</p><p>podia fazer nada para ajudar estas pessoas, por não ter recebido ordens</p><p>superiores para dar vistos a todos estes refugiados, e que não tinha pessoal</p><p>para o ajudar mesmo que quisesse, aqui estou eu na minha qualidade de seu</p><p>superior imediato para lhe dar a ordem para o fazer e para me pôr a seu lado</p><p>de forma ativa.» Faria Machado ficou boquiaberto, e aparentemente não</p><p>terá sido o único, pois por trás dele surgiu um outro personagem que ainda</p><p>no domingo, dia 16, tinha visitado Aristides no seu quarto: Francisco de</p><p>Calheiros e Menezes — a seguir o mesmo caminho que os refugiados: para</p><p>sul.</p><p>Calheiros e Menezes estava de volta a casa, pois Bruxelas, onde a sua</p><p>legação se encontrava, tinha caído nas mãos dos nazis, o que significava o</p><p>regresso, e não lhe tinha sido atribuída qualquer outra responsabilidade.</p><p>Faria Machado apenas acatava as ordens de Salazar. O único que se sentia</p><p>com responsabilidade própria para agir era o cônsul de Bordéus.</p><p>Aristides contou este episódio à família um pouco mais tarde (a mim</p><p>chegou-me pelo meu pai), e também o relata na sua defesa no âmbito do</p><p>processo disciplinar. Aristides declara que nessa ocasião também foi</p><p>ajudado pelo chanceler Seabra, por Faria de Machado, e pelo ministro</p><p>Calheiros e Menezes, valorizando-os por tal gesto. No entanto, perante</p><p>Salazar, todos o negam, deixando Aristides sozinho.</p><p>No dia seguinte, depois de ter pernoitado num pequeno hotel perto da</p><p>Rue du Pilori, Aristides foi para o consulado e começou a estampar vistos</p><p>em passaportes. As escadas até ao segundo andar deste velho prédio, que</p><p>ainda hoje existe, encheram-se rapidamente. As pessoas pensavam que se</p><p>esperassem mesmo junto à porta poderiam receber o visto mais depressa,</p><p>esquecendo-se de que velhas escadas de madeira poderiam não estar</p><p>preparadas para aguentar multidões. A dada altura, ouvem-se ruídos</p><p>estranhos, que se vão intensificando e tornando cada vez mais ameaçadores.</p><p>Acometido por uma visão de desastre, Aristides levanta-se rapidamente e</p><p>pede que o ajudem a descer uma mesa e várias cadeiras para a rua. É ali</p><p>mesmo, em plena Rue du Pilori, no meio da multidão, que vai continuar a</p><p>conceder vistos, para evitar a derrocada. Para a população de Bayonne, tal</p><p>como para os candidatos a visto, esta visão insólita ficará para sempre na</p><p>memória: é a diplomacia na rua.</p><p>Aristides consegue dois ou três voluntários para desempenharem as</p><p>funções de apoio que os seus filhos lhe davam em Bordéus. Os refugiados</p><p>vão-se aproximando e dando os seus passaportes ou os papéis que tivessem</p><p>consigo. Depois avançam para o lado da velha catedral de Bayonne e aí</p><p>esperam, por vezes uma ou duas horas, até que outro refugiado apareça e</p><p>comece a ler os nomes dos passaportes que vai retirando do saco, tal como</p><p>se tinha feito em Bordéus. Com tanta gente na rua, é evidente que tem de</p><p>haver polícia. A ordem está assegurada. Foi aí que a família Bromberger</p><p>ouviu o seu nome a ser chamado, e ficou a saber que a próxima etapa seria a</p><p>fronteira com Espanha, a caminho de Portugal, como conta David, um dos</p><p>seus membros, na altura com 15 anos, no documentário O Cônsul</p><p>Injustiçado.</p><p>Faria Machado fica espantado ao chegar à Rue du Pilori, e vai de</p><p>surpresa em surpresa. Será que está com visões? O que se passa em</p><p>Bayonne? O cônsul-geral Aristides de Sousa Mendes está mesmo a passar</p><p>vistos na rua? Corria então o dia 20 de junho, a França tinha-se rendido aos</p><p>nazis, Pétain tinha aceitado as condições impostas por Hitler, e dois dias</p><p>antes, o general De Gaulle tinha lançado, através da BBC, o seu famoso</p><p>apelo à resistência. Quando os refugiados começaram espontaneamente a</p><p>aplaudir na rua o cônsul Sousa Mendes, exclamando «Viva Portugal!»,</p><p>Faria Machado ficou atónito. Pouco tempo depois, contará a colegas, no</p><p>MNE, em Lisboa, este e outros episódios do género a que assistiu, levando</p><p>a que durante o período em que decorria o processo disciplinar, certos</p><p>funcionários e diplomatas na capital afirmassem com ar de troça que</p><p>Aristides de Sousa Mendes se teria feito aplaudir por exibicionismo…</p><p>Claro que é preciso não esquecer que naquela época ainda havia pessoas em</p><p>Portugal que achavam que não havia ninguém em perigo de vida na França</p><p>ocupada.</p><p>Os dias 20 e 21 foram essencialmente passados em Bayonne e na região à</p><p>volta. A tentação, ou talvez a intuição, de ir ver in loco a situação junto à</p><p>fronteira com Espanha, em Hendaye, empurram o meu avô nessa direção.</p><p>Há muitos relatos de locais, e de pessoas que escreveram as suas memórias,</p><p>a falar da presença do cônsul de Bordéus, a correr de um lado para o outro,</p><p>a tentar acudir a toda a gente.</p><p>A história de Madame de Guise</p><p>No ano 2000, nas Nações Unidas, em Nova Iorque, numa cerimónia de</p><p>homenagem aos Diplomatas Justos, conheci uma senhora que me deu um</p><p>testemunho da forma como o meu avô a salvou e à sua mãe e irmã, junto a</p><p>Hendaye, num desses dias de junho de 1940. Nessa altura, Madame de</p><p>Guise tinha menos de dez anos e usava o apelido judeu-holandês do pai,</p><p>falecido antes da invasão nazi. Tinham saído da Holanda a seguir à</p><p>ocupação alemã ocorrida na semana de 10 de junho de 1940. Eram judias e</p><p>calcularam as possíveis consequências de serem apanhadas pelas</p><p>autoridades nazis. Desde o início que a sua ideia era irem para os Estados</p><p>Unidos, mas para isso precisavam de atravessar o Atlântico. Portugal</p><p>surgiu-lhes, naturalmente, como a porta de saída. Chegaram a França em</p><p>junho, faltava-lhes apenas um visto para Portugal, mas não era fácil obtê-lo,</p><p>numa França também ela ocupada. Andavam pelas estradas do sudoeste</p><p>francês há já bastante tempo, até que um dia, quase a caírem no desespero,</p><p>viram um grupo de pessoas a rodearem um automóvel. Perguntaram o que</p><p>era “aquilo”, e disseram-lhes que seria «alguém a dar vistos em</p><p>passaportes». Decidiram esperar, nunca se sabe…</p> <p>Quando chegaram ao</p><p>automóvel de porta aberta, viram um senhor de cabelos brancos sentado no</p><p>lugar do condutor. Deram-lhe o passaporte da mãe, onde a futura Madame</p><p>de Guise figurava também, com a irmã mais velha. Rapidamente, esse tal</p><p>senhor escrevinhou qualquer coisa e carimbou o passaporte. Para a mãe e</p><p>para as duas irmãs, tal gesto representava a porta de saída daquela Europa</p><p>desesperada. A vida iria continuar, graças ao milagre que ali colocara aquele</p><p>homem.</p><p>Não faziam ideia de quem seria aquele personagem que as salvou das</p><p>garras dos nazis, sem as conhecer de parte nenhuma, e sem lhes pedir nada</p><p>em troca. Naquele momento, a sua preocupação era encontrar maneira de</p><p>seguir viagem. Não era importante quem assinava o visto, desde que</p><p>pudessem escapar a uma morte anunciada. Muito menos sabiam que esse</p><p>“alguém” que lhes assinou o visto era um cônsul que estava proibido de as</p><p>salvar por questões políticas relacionadas com a guerra da qual queriam</p><p>fugir. Se o soubessem, talvez tivessem procurado saber o seu nome, porque</p><p>teria interesse não só para elas, como também para a Humanidade. Pois</p><p>como diz o Talmude: «quem salva uma vida, salva o mundo inteiro».</p><p>A mãe e as duas filhas apanharam depois um barco de pescadores, talvez</p><p>em Saint-Jean-de-Luz (País Basco), que as levou ao norte de Espanha. Daí</p><p>seguiram para Portugal, e depois para os Estados Unidos. Foram precisos</p><p>58 anos para que Madame de Guise voltasse a ver, numa fotografia, a cara</p><p>do tal senhor de cabelos brancos que estava sentado ao volante daquele</p><p>carro, e que salvava vidas a carimbar e a assinar passaportes. Sim, era a</p><p>mesma pessoa que as ajudara nesse dia de junho de 1940. Mas, desta vez, a</p><p>cara tinha um nome: Aristides de Sousa Mendes, antigo cônsul de Portugal</p><p>em Bordéus.</p><p>A fotografia que Madame de Guise tinha nas mãos, estava na edição do</p><p>Washington Post desse dia de 1998, que noticiava a homenagem a um Justo</p><p>Entre as Nações que iria ser prestada a Aristides de Sousa Mendes em</p><p>Estrasburgo, pelo Parlamento Europeu. Ao ler o artigo, Madame de Guise</p><p>recordou todos os pormenores da sua fuga de França, e conseguiu atribuir</p><p>um nome àquele senhor que estava no carro e que lhe pareceu, naquele</p><p>momento, assumir uma dimensão de gigante. Tinha encontrado o seu</p><p>“herói”. Madame de Guise quis associar-se a esta homenagem ao homem</p><p>que lhe salvara a vida, a ela, à mãe e à irmã. Percebeu, pela notícia, que</p><p>alguns dos filhos desse senhor também viviam nos Estados Unidos. E foi</p><p>assim que contactou um dos meus tios, que depois me pediu para que me</p><p>encontrasse com Madame de Guise quando fosse à cerimónia de</p><p>homenagem aos Justos Entre as Nações do ano 2000, nas Nações Unidas.</p><p>Desobediência até ao fim</p><p>A 20 ou 21 de junho de 1940 chega ao MNE uma comunicação da</p><p>embaixada britânica de Lisboa, com a questão levantada pela cidadã inglesa</p><p>que se queixava do estranho horário do consulado de Portugal em Bordéus,</p><p>e que afirmava ter sido “convidada” a contribuir para um certo fundo de</p><p>solidariedade se realmente quisesse um visto. Este facto fez chegar aos</p><p>ouvidos de Salazar certos “ruídos” sobre eventuais irregularidades na</p><p>atribuição de vistos contrariando a famosa Circular 14.</p><p>O secretário-geral do MNE, Teixeira de Sampaio, envia para Bayonne</p><p>um funcionário da sua máxima confiança para verificar o que está a</p><p>suceder, e para que se faça um relatório para o senhor ministro, Oliveira</p><p>Salazar. Trata-se de Lopo Simeão, um conhecido germanófilo bem próximo</p><p>da “situação”, como era moda na altura em Portugal. Em junho de 1940,</p><p>com a sua inclinação política e perante a força e o avanço do exército nazi,</p><p>é fácil adivinhar com que estado de espírito será feito esse relatório, que</p><p>servirá como peça fundamental para a acusação a Aristides de Sousa</p><p>Mendes.</p><p>No seu relatório, Lopo Simeão declara ter chegado a Bayonne na tarde do</p><p>dia 22 de junho. No dia seguinte, 23 de junho 1940, Lopo Simeão envia um</p><p>primeiro telegrama para o MNE em Lisboa, no qual se pode ler: «Cônsul</p><p>Machado em perfeita saúde. Cônsul Bordéus (Aristides SM) ausente seu</p><p>posto. Dadas circunstâncias não poderei seguir Bordéus. Mendes, conforme</p><p>telegrama 108, ordenou cônsul Bayonne concessão geral vistos gratuitos</p><p>concedendo ele próprio muitíssimos. Cônsul Espanha com quem falei por</p><p>ordem expressa embaixador (Teotónio Pereira) declarou que governo</p><p>português não castigando cônsul (Aristides SM) não alijava inteiramente</p><p>sua responsabilidade por esses atos. Circunstâncias tragicamente anormais</p><p>poderão justificar ato loucura aludido funcionário (Aristides) ou de</p><p>qualquer outro. Observei incalculável multidão em situação</p><p>verdadeiramente desesperada enchendo ruas proximidade consulado cujo</p><p>acesso é difícil. Cônsul tomou todas providências manutenção ordem.</p><p>Vistos continuam gratuitos com prejuízo Estado por ser impossível</p><p>preencher formalidades regulamentares apesar aumento pessoal.»</p><p>Ainda a 22 de junho, é expedido do MNE em Lisboa o seguinte</p><p>telegrama para Aristides de Sousa Mendes. É enviado em francês para ser</p><p>lido corretamente pelos funcionários franceses e evitar qualquer falha de</p><p>compreensão: «Il vous est rigoureusement défendu d’accorder des visas</p><p>pour entrée Portugal à qui que ce soit. Tous les visas pour sortie de France</p><p>vers le Portugal doivent être demandés consulat Bayonne.» Assinado pelo</p><p>Ministre des Affaires Étrangères.</p><p>É nesse momento que entra em cena um outro “ator” fundamental —</p><p>Pedro Teotónio Pereira — uma das estrelas mais brilhantes do regime</p><p>salazarista, germanófilo assumido. Em 1940, depois de ter ocupado cargos</p><p>ministeriais e como embaixador político, foi mesmo indicado para ocupar a</p><p>cadeira do ditador, nos anos 60. No momento em que Teotónio Pereira</p><p>aparece em Hendaye e Bayonne, vem na qualidade de embaixador</p><p>extraordinário de Portugal junto de Franco. Tem 38 anos.</p><p>O contexto histórico (e humano) não poderia ser pior para pessoas como</p><p>o cônsul de Bordéus e outros “teimosos”, com Hitler a dominar a Europa,</p><p>Mussolini em Itália, Franco vitorioso em Espanha, e Salazar a estudar a</p><p>melhor maneira de reforçar a sua continuidade no poder.</p><p>Teotónio Pereira encontra-se com Aristides de Sousa Mendes no dia 23</p><p>de junho de 1940, e sai desse encontro muito mal impressionado. Escreve</p><p>Teotónio Pereira no seu auto de acusação: «Só no dia seguinte vim a</p><p>encontrar o cônsul Aristides de Sousa Mendes, e pedi-lhe que me explicasse</p><p>tão insólita atuação. De tudo o que ouvi, e do seu aspeto de grande</p><p>desalinho, deixou-me a impressão de um homem perturbado e fora do seu</p><p>estado normal. Mostrou não ter a mais ligeira noção dos atos cometidos e</p><p>disse não possuir quaisquer instruções contrárias ao procedimento que</p><p>seguira.»</p><p>No dia 24 de junho, Teotónio Pereira comete um gesto político duro e</p><p>impiedoso, mas que para ele e no contexto histórico descrito acima, foi</p><p>motivo de orgulho e certamente contribuiu ainda mais para a sua ascensão</p><p>aos olhos de Salazar e do regime, tal como ele próprio o descreve na</p><p>acusação: «O procedimento do senhor Aristides de Sousa Mendes implicara</p><p>tal desvairamento que comuniquei logo em seguida às autoridades</p><p>espanholas a decisão de dar por nulos os vistos concedidos pelo consulado</p><p>em Bordéus a numerosíssimas pessoas que ainda se encontravam em</p><p>França…».</p><p>Como toda a gente, também este senhor foi aprendendo ao longo da vida,</p><p>e 30 anos mais tarde, ao escrever as suas memórias, parece querer apagar</p><p>essa — a de ter barrado a saída de «numerosíssimas pessoas que ainda se</p><p>encontravam em França…».</p><p>É verdade que ao “anular” os vistos de Aristides, Teotónio Pereira dá um</p><p>rude golpe na iniciativa do cônsul de Bordéus de tentar salvar refugiados,</p><p>mas Aristides é um homem teimoso e vai encontrar novas formas de ajudar,</p><p>desobedecendo mais uma vez às ordens iníquas que vinham dos seus</p><p>superiores hierárquicos.</p><p>Se não pode carimbar vistos de entrada em Portugal a partir de 25 de</p><p>junho, por serem considerados inválidos na fronteira de Espanha, ao menos</p><p>pode receber algumas pessoas na sua casa em Bordéus, com a ajuda de</p><p>Angelina, como faz desde o início de junho, e isso já não é pouco.</p><p>Desde</p> <p>há vários dias que se encontravam na sua casa de Bordéus um pai</p><p>e uma filha de origem romena. Não tinham papéis, mas eram seres humanos</p><p>que era preciso ajudar. Se os vistos já não valiam grande coisa, pelo menos</p><p>se lhes desse um autêntico passaporte português, poderiam ir para outro</p><p>país. Foi o que aconteceu a Mosco Galimir e à filha, uma excelente</p><p>violinista. Foi como cidadãos portugueses que desembarcaram em Nova</p><p>Iorque, e por lá ficaram o resto da vida, permanecendo sempre amigos dos</p><p>filhos e familiares de Aristides e Angelina, que depois da guerra também</p><p>foram viver para os Estados Unidos.</p><p>Os outros passaportes portugueses não ficaram na gaveta. Apesar da</p><p>ordem do brilhante Teotónio Pereira a Aristides de Sousa Mendes para não</p><p>sair de casa em Bordéus, sabe-se que o meu avô não lhe obedeceu. O que</p><p>fez exatamente durante esses dias também não se sabe, nem sequer o</p><p>biógrafo de Aristides conseguiu desvendar. Levou os passaportes e andou</p><p>de norte para sul e de leste para oeste. Há várias histórias.</p><p>Nos anos 90, em Lisboa, conheci um cidadão de religião judaica (pai de</p><p>uma amiga dos meus filhos) que me contou como Aristides ajudou os seus</p><p>pais a passarem a fronteira franco-espanhola e a seguirem viagem até</p><p>Portugal. Teria sido devido à sua influência junto dos funcionários</p><p>espanhóis, uma vez que com a ocupação alemã os guardas franceses, já</p><p>desmoralizados, deixavam passar as pessoas para Espanha com toda a</p><p>facilidade.</p><p>Talvez um dos momentos mais épicos, e que é mencionado na carta do</p><p>rabino Kruger, tenha sido quando Aristides e Angelina chegaram à fronteira</p><p>com Espanha, em Irun, em direção a Portugal, e aí se depararam com uma</p><p>série de pessoas sentadas pelo chão, ou encostadas às paredes. Mais uma</p><p>vez tiveram um déjà vu. Quem eram aquelas pessoas? Não tinham sido as</p><p>que uns dias antes tinham recebido vistos assinados por Aristides? Com</p><p>efeito, algumas daquelas pessoas tinham recebido vistos assinados pelo meu</p><p>avô, mas foram apanhadas pela ordem de Teotónio Pereira de «dar por</p><p>nulos todos aqueles vistos». Essas pessoas não sabiam o que fazer. Voltar</p><p>para trás era impensável. Ficaram ali, penduradas, no extremo de França, à</p><p>espera…</p><p>Aristides de Sousa Mendes, que tão bem conhecia a região, engendrou</p><p>uma maneira de levar “toda aquela gente” para um outro posto fronteiriço,</p><p>sem telefone, onde os guardas de certeza não saberiam da ordem de</p><p>nulidade dos seus vistos, e, ao fim de alguns quilómetros, lá chegou o</p><p>cortejo de algumas centenas de refugiados de carro, e alguns a pé. Foi aí</p><p>que Aristides abriu a cancela que separava França de Espanha (como diz o</p><p>rabino Kruger).</p><p>Não se sabe exatamente onde foi, há várias possibilidades, mas um</p><p>grande admirador e estudioso do gesto do cônsul, Frère Bernard, aliás</p><p>Jacques Rivière — um monge capuchinho — insistiu comigo e mostrou-me</p><p>o local que ele acha que terá sido a porta de saída de França. Fica a poucos</p><p>quilómetros da fronteira de Hendaye e tem um nome basco: Biriatou.</p><p>Biriatou, que foneticamente lembra um nome tão ligado à região de</p><p>Aristides: Viriato.</p><p>Durante todos estes dias e semanas, apesar dos meios normais de</p><p>comunicação serem o que eram em 1940, e apesar da guerra, em Varsóvia,</p><p>César, o gémeo de Aristides, acompanha-o através da meditação e da</p><p>oração. Sabe o que o meu avô está a fazer, e vai aconselhando possíveis</p><p>refugiados a procurarem o irmão em Bordéus para poderem escapar à</p><p>morte.</p><p>Em outubro de 1940, Salazar assina uma sentença condenando Aristides</p><p>de Sousa Mendes num processo disciplinar por desobediência. Há, para</p><p>isso, uma razão forte: efetivamente, a PVDE, a PSP, o exército e os</p><p>portugueses em geral assistiram à entrada, em Portugal, de refugiados que</p><p>na ótica do regime nunca deviam ter cá entrado. Portanto, o «culpado desse</p><p>crime», como escreveu o antigo embaixador de Salazar que já mencionei —</p><p>Aristides —, recebeu o castigo devido. Mas por que razão terá sido o irmão</p><p>gémeo de Aristides também castigado?</p><p>César de Sousa Mendes era ministro de Portugal em Varsóvia, quando a Polónia foi</p><p>invadida pelos nazis e a família viveu tempos de grande aflição sem nenhumas notícias</p><p>do gémeo de Aristides. César também passou vistos a judeus e disse-o a Salazar, em</p><p>defesa do irmão.</p><p>Para Salazar, era claro: se era tão próximo do irmão, provavelmente faria</p><p>o mesmo, ou poderia fazê-lo. O melhor seria mantê-lo longe da tentação e</p><p>castigá-lo preventivamente, terá pensado o ditador. Foi assim que no outono</p><p>de 1940, César foi enviado para a sua casa em Mangualde, à espera de</p><p>melhores dias… que só vieram em janeiro de1945, com a Alemanha nazi</p><p>praticamente derrotada. Ao fim de quase cinco anos de inatividade, Salazar</p><p>nomeou César como ministro plenipotenciário no México (também</p><p>acreditado em Cuba).</p><p>Mas afinal, parece que até havia uma razão, que se encontra numa carta</p><p>dirigida por César a Salazar, que só foi descoberta recentemente. Nessa</p><p>carta, datada de agosto de 1940, César de Sousa Mendes escreve:</p><p>«Excelência: para os devidos efeitos, tenho a honra de comunicar a V. Exa.</p><p>que, ao partir de Riga, autorizei o nosso cônsul ali a dar passaporte</p><p>português à senhora Cecilia Dolata, de nacionalidade polaca. Fi-lo pelas</p><p>razões seguintes […]. […] 4. Ao deixar Varsóvia, como ali não tivesse</p><p>família […] Pediu-me que lhe permitisse acompanhar o pessoal da legação,</p><p>o que julguei dever consentir, prestando-lhe o apoio necessário. 5. Em Riga,</p><p>procurou […] conseguir a sua volta a Portugal onde conta numerosas</p><p>pessoas de amizade. O seu passaporte expedido há anos pelas autoridades</p><p>polacas, não lhe dava, porém, a garantia de chegar ao termo da viagem […]</p><p>correria o risco de ser enviada para um campo de concentração, o que,</p><p>tratando-se de pessoa que há muitos anos sofre de doença de certa</p><p>gravidade, poderia ser-lhe fatal […] 7. Em vista dos motivos invocados,</p><p>ouso esperar que V. Exa. não desaprove o meu procedimento, inspirado</p><p>unicamente em intuitos humanitários e do qual, afigura-se-me, nenhum</p><p>inconveniente poderia advir para a ordem pública portuguesa. A bem da</p><p>nação.»</p><p>César termina, dizendo: «Ouso esperar que V. Exa. não desaprove o meu</p><p>procedimento, inspirado unicamente em intuitos humanitários.» Esta frase</p><p>é, na minha opinião, a primeira defesa de Aristides. O irmão gémeo que</p><p>“ousa” desobedecer, também ele, à Circular 14, pois a pessoa em questão</p><p>«correria o risco de ser enviada para um campo de concentração», o que</p><p>indica que era certamente de religião judaica. César “ousa” denunciar-se</p><p>diretamente a Salazar, invocando a mesma razão que Aristides há de</p><p>apresentar no seu processo disciplinar. Gémeos de alma e coração!</p><p>CAPÍTULO VIII</p><p>Portugal</p><p>O regresso, o fim da carreira, a perseguição do regime, o casamento com a “francesa”, a</p><p>morte na miséria</p><p>Voltar a Portugal significou para o meu avô o princípio do fim. O seu ato</p><p>heroico foi classificado pelo regime como traição, e Salazar acabou-lhe com</p><p>a carreira e com quaisquer outras perspetivas profissionais. Para cúmulo,</p><p>não lhe foram pagos salários durante largos meses, e quando o fizeram foi a</p><p>metade do vencimento e a título provisório. Sobreviveu com ajudas da</p><p>família, de amigos e de alguns refugiados, gratos por lhes ter salvado a</p><p>vida. Tentou várias vezes que Salazar percebesse o seu gesto, mas sem</p><p>resultado. Tornou-se uma espécie de refugiado no seu próprio país. As</p><p>consequências da decisão de Bordéus estenderam-se a toda a família, e os</p><p>filhos tiveram dificuldade em arranjar trabalhos condignos em Portugal,</p><p>pelo que, a pouco e pouco, todos emigraram. Aristides ficou cada vez mais</p><p>só. Quando Gigi morreu, pediu a um padre que procurasse Andrée Cibial,</p><p>uma francesa que, em 1940, dera à luz na Maternidade Alfredo da Costa</p><p>uma filha que dizia ser sua, em circunstâncias que nunca entenderemos</p><p>muito bem. Casou com ela, e com ela viveu os últimos dias da sua vida,</p><p>sem ter conseguido ver o seu bom nome reabilitado. A última recordação</p><p>que tenho do meu avô é na Casa do Passal, à janela, a dizer adeus, uma vez</p><p>que lá fomos visitá-lo e Andrée fez uma “birra” e não nos deixou entrar.</p><p>Horror em Vilar Formoso</p><p>Depois</p> <p>de terem entrado em Espanha por Biriatou, no início de julho, com</p><p>aquelas centenas de refugiados — fazendo lembrar a travessia do Mar</p><p>Vermelho pelos escravos hebreus liderados por Moisés, tal como o Père</p><p>Bernard nos contou, fazendo uma analogia com o Êxodo da Bíblia — cujos</p><p>vistos tinham sido declarados nulos por Pedro Teotónio Pereira, Aristides e</p><p>Angelina dirigiram-se para a fronteira portuguesa onde queriam chegar o</p><p>mais depressa possível. É preciso não esquecer que estávamos em 1940,</p><p>numa Espanha que pouco tempo antes tinha sido massacrada pela Guerra</p><p>Civil, e onde as estradas se encontravam em estado caótico.</p><p>Rui Afonso, o biógrafo de Aristides de Sousa Mendes, diz que o meu avô</p><p>escolheu entrar em Portugal pela fronteira de Elvas, perto de Badajoz, a</p><p>mais afastada de sua casa em Cabanas de Viriato, para evitar maus</p><p>encontros com a PVDE.</p><p>Como terá Aristides sabido do pandemónio com os milhares de</p><p>refugiados à entrada de Vilar Formoso? Provavelmente, foi apenas bom</p><p>senso. Ele sabia que teria de haver muitos milhares de pessoas retidas</p><p>naquela fronteira, à espera de poderem entrar no país. Os jornais da região,</p><p>e não só, fizeram eco do que foram esses dias da última semana de junho e</p><p>primeiras de julho em Vilar Formoso. Os comboios chegavam cheios de</p><p>refugiados, e a PVDE mantinha-os, por vezes durante vários dias, nessa</p><p>estação, à espera de que os seus agentes tivessem tempo suficiente para</p><p>fazer um controlo eficaz.</p><p>Manuel Lourenço de Andrade, um jovem de 20 anos em 1940, habitava a</p><p>cem metros da famosa estação que iria ficar na história. Para ele, o mês de</p><p>junho desse ano, tornou-se um capítulo inesquecível da sua juventude.</p><p>Assistiu à dor de todas aquelas pessoas, e também presenciou gestos de</p><p>solidariedade numa base quotidiana. Contou-me como ele e a sua família</p><p>sentiram o sofrimento que começou a chegar a Vilar Formoso, em comboios</p><p>superlotados, a partir de meados de junho. Iam todos os dias à estação de</p><p>caminhos de ferro da vila, levando outros a seguir o seu exemplo, para</p><p>prestar ajuda e oferecer bens de primeira necessidade aos refugiados, por</p><p>vezes apenas umas palavras de encorajamento. Lembra-se de um refugiado</p><p>que ao fim de uma semana sucumbiu à doença, por falta de assistência</p><p>médica e de medicamentos. Ficou sepultado no cemitério de Vilar Formoso</p><p>— os habitantes da vila acompanharam o cortejo fúnebre.</p><p>Obviamente, a PVDE não estava lá por razões humanitárias, mas para</p><p>controlar o fluxo de pessoas e canalizá-las para diferentes zonas do país. O</p><p>aspeto humanitário não foi pensado pelas autoridades deste país tão</p><p>católico, num momento em que as consequências de mais uma guerra</p><p>mundial alastravam até ao território nacional.</p><p>Tinham de os deixar entrar porque, como era óbvio, os espanhóis não os</p><p>aceitavam de volta — com o argumento de que os refugiados apenas tinham</p><p>autorização para atravessar Espanha em trânsito para Portugal, como o</p><p>capitão Agostinho Lourenço, chefe da PVDE, esclareceu por escrito no</p><p>âmbito do processo contra Aristides de Sousa Mendes. Inúmeros</p><p>testemunhos de escritores ou de simples viajantes dão conta de como a</p><p>entrada em Portugal — este “paraíso triste”, como lhe chamou Antoine de</p><p>Saint-Exupéry — em fins de junho, princípios de julho daquele ano,</p><p>constituía uma experiência digna de filme de horror.</p><p>Lucie Matuzewitz, conta-nos, no seu livro Le Cactus et l’ombrelle,</p><p>anteriormente mencionado, uma pequena parte da sua experiência em Vilar</p><p>Formoso, quando, ao fim de vários dias passados em péssimas condições,</p><p>procuraram alugar um quarto para encontrar um pouco de conforto:</p><p>«Estávamos tão cansados que começámos a seguir um camponês que nos</p><p>propôs que fossemos para sua casa. Alugou-nos por 20 escudos um quarto</p><p>miserável, paredes meias com um estábulo […]. Cerca da meia-noite, veio</p><p>dizer-nos que tinha acabado de chegar mais um comboio com refugiados, e</p><p>que lhe ofereciam 40 escudos pelo mesmo quarto. Estaríamos dispostos a</p><p>pagar a diferença […] apesar das pulgas famintas?»</p><p>Condenado sem julgamento</p><p>Na Casa do Passal, em Cabanas de Viriato, Pedro Nuno, que já aí se</p><p>encontrava, ia regularmente a uma das janelas da mansarda olhar para o</p><p>horizonte, ver se avistava os pais, ao longe. Tinha chegado uns dias antes</p><p>num “magnífico carro”, a convite dos proprietários, o jovem Jean Duvivier,</p><p>da sua idade, e a irmã Adrienne, um pouco mais nova. Com o passaporte</p><p>diplomático de Pedro Nuno, os jovens belgas tinham garantida a viagem,</p><p>pois a venda de gasolina não era permitida a qualquer pessoa. À chegada a</p><p>Cabanas, Jean e Adrienne ficaram de tal modo encantados com a receção, e</p><p>com a beleza da região, que decidiram ficar alguns dias na Casa do Passal,</p><p>onde também já se encontrava a família do ministro belga das Colónias,</p><p>Albert de Vleeschauwer, que tinha chegado com Isabel e Jules a 23 de</p><p>junho.</p><p>Refugiados de várias nacionalidades recebidos pela família Sousa Mendes na Casa do</p><p>Passal, no verão de 1940.</p><p>A Casa do Passal ia-se enchendo aos poucos, e refugiados eram mais de</p><p>20. Nunca tal coisa tinha acontecido em Cabanas de Viriato. O povo sentia</p><p>que ali, diante deles e com eles, havia História a acontecer. Mais tarde,</p><p>apareceu o ministro belga das Finanças, um certo Gutt, seguido de Jaspar,</p><p>da pasta da Saúde. Veio também um antigo primeiro-ministro belga, Paul</p><p>van Zeeland, um homem que preconizava para depois da guerra, e para</p><p>proteger a Europa de futuras destruições, um certo “Mercado Comum</p><p>Europeu”… Outros foram surgindo, numa base rotativa, demorando-se ou</p><p>alguns dias, ou semanas. Muitos pertenciam a ordens religiosas, masculinas</p><p>ou femininas.</p><p>A 5 ou 6 de julho, ninguém na família se lembra já bem, Pedro Nuno, do</p><p>alto da janela do seu quarto, começou a ver ao longe o que a intuição lhe</p><p>dizia ser um automóvel com os pais. Havia, efetivamente, um automóvel</p><p>vermelho, descapotável, a aproximar-se do Passal, com duas pessoas</p><p>dentro. Eram mesmo eles, e estavam bem, felizmente.</p><p>De acordo com Rui Afonso, esse automóvel vermelho descapotável, da</p><p>marca Dodge, pertencia a uma célebre escritora de viagens, muito</p><p>conhecida na Europa e também em Portugal, chamada Gisèlle Quittner</p><p>Allotini, que tinha beneficiado de um visto salvador dado por Aristides.</p><p>Sabendo que não podia comprar gasolina para a viagem, tal como tinha</p><p>acontecido com os dois irmãos belgas que se fizeram acompanhar de Pedro</p><p>Nuno, deixou o carro ao cônsul português e seguiu de comboio para Lisboa.</p><p>Ao aproveitarem o carro para o regresso a Portugal, Aristides e Angelina</p><p>quiseram também fazer-lhe uma surpresa. No meio de tantos dissabores,</p><p>trouxeram-lhe o automóvel.</p><p>No MNE não se tinha perdido tempo. Salazar, na qualidade de todo-</p><p>poderoso ministro dessa pasta, tinha enviado, a 2 de julho, um telegrama (o</p><p>2139) para a embaixada de Portugal em Londres (ao embaixador Armindo</p><p>Monteiro) fazendo uma atualização dos acontecimentos em Portugal:</p><p>«Refugiados carácter político e intelectuais como aqueles a que se refere</p><p>telegrama V. Exa. são dos menos desejáveis pelas atividades que hão de</p><p>querer desenvolver […] Vistos concedidos em Bordéus foram-no em</p><p>contravenção instruções expressas do ministério, por cônsul que já afastei</p><p>do serviço.»</p><p>Isto significa que o meu avô, ao chegar a Portugal, já tinha sido julgado,</p><p>condenado e “afastado do serviço”, sem ter a menor ideia do que estavam a</p><p>fazer-lhe. O seu triste futuro estava todo traçado e ele nem sequer</p><p>desconfiava. Não tinha sido ouvido, nem por Salazar, nem por ninguém. No</p><p>entanto, havia um e só um regulamento disciplinar em vigor, o de 1913. O</p><p>mesmo regulamento disciplinar que Salazar tornará a violar algumas</p><p>semanas mais tarde, quando assinar a sentença do processo por</p><p>desobediência às suas ordens. Claro que se tentou dar um ar de alguma</p><p>legalidade, apesar de tudo. Assim, dois dias depois, Salazar assina outro</p><p>despacho: «Em vista dos factos que chegam ao meu conhecimento relativos</p><p>à concessão abusiva de vistos em passaportes de estrangeiros feita pelo</p><p>cônsul de Portugal em Bordéus, Dr. Aristides de Sousa Mendes, determino</p><p>que lhe seja instaurado processo disciplinar para</p> <p>o qual designo como</p><p>instrutor o cônsul-geral Francisco de Paula Brito. Lisboa, 4 de julho de</p><p>1940. Salazar.»</p><p>Conhecidos e amigos de Aristides e Angelina que tiveram de fugir da Bélgica, de</p><p>França, da Áustria, do Luxemburgo, encontraram refúgio em Cabanas de Viriato, em</p><p>1940. Nesta imagem vê-se o ministro de Vleeschauwer e a sua família.</p><p>Contudo, o arguido já tinha sido condenado. E mais castigos estavam</p><p>previstos para esmagar o “cônsul rebelde”, que em sua casa, em Cabanas de</p><p>Viriato, ainda sonhava com a compreensão do ditador (que até era beirão).</p><p>É neste estado de espírito que Aristides se encontra quando chega a</p><p>Lisboa na segunda-feira, dia 8 de julho, esperando poder ser recebido por</p><p>Salazar. O embaixador do costume dirá muito mais tarde, já nos dias de</p><p>hoje, que Aristides não tinha “categoria profissional” para ser recebido pelo</p><p>ministro, apenas isso. O meu avô nunca foi recebido por Salazar, apesar de</p><p>lhe ter enviado um telegrama nesse dia: «Cônscio ter cumprido meu dever</p><p>para com a pátria e em nada ter desmerecido consideração V. Exa., rogo-lhe</p><p>se digne receber-me, o que agradecerei penhoradamente. A. Mendes.» Mas</p><p>Salazar, que era um estadista tão importante (e arrogante), como escreveu o</p><p>tal embaixador, não se dignou receber o subalterno rebelde, sobretudo para</p><p>tratar de questões tão “insignificantes” como a vida ou a morte de</p><p>refugiados em tempo de guerra.</p><p>É interessante observar que Aristides escreve no telegrama acima referido</p><p>«o meu dever para com a pátria». A pátria de Aristides era uma pátria cristã,</p><p>em que o amor ao próximo estava acima de tudo, e é isso mesmo que</p><p>reafirma mais uma vez à sua hierarquia: Cristo e a sua lei acima de Salazar.</p><p>«Antes com Deus contra os homens…»</p><p>Sobreviver sem salário</p><p>Outros dissabores esperavam o meu avô nessa segunda-feira, 8 de julho de</p><p>1940. Quando chegou ao banco para levantar o cheque referente ao seu</p><p>ordenado de junho, depois de um mês tão agitado e com tantas despesas, o</p><p>cheque n.º 212 sobre o Chase National Bank of the City of New York, no</p><p>valor de 319,35 US dólares (8.743$43 ao câmbio de 27$378</p><p>escudos/dólares) não lhe foi entregue (a referência a este cheque encontra-</p><p>se nos Anexos).</p><p>Setenta e seis anos depois, não consigo imaginar qual terá sido a reação</p><p>de meu avô! Sobreviveu. E foi sobrevivendo até 3 de abril de 1954. Estaria</p><p>com algum filho ou filha nesse momento? Protestou diante dos empregados</p><p>do banco? Quando terá voltado para Cabanas?</p><p>O meu conhecimento da dinâmica familiar diz-me que o primeiro a</p><p>intervir para o ajudar, logicamente, terá sido César, o gémeo, mesmo</p><p>estando ainda no estrangeiro. Depois, Silvério, o irmão de Angelina,</p><p>certamente avançou-lhe dinheiro. E depois outros parentes, e depois…</p><p>houve a compreensão dos comerciantes de Cabanas que forneciam</p><p>alimentação e outros bens para a casa do Passal. Uma compreensão que foi</p><p>diminuindo com o passar do tempo. Houve, certamente, imagino, alguma</p><p>ajuda dos refugiados que encontraram asilo em sua casa. A correspondência</p><p>da época, encontrada em casa de César, revela alguns contactos feitos pelos</p><p>três irmãos para começarem a tentar vender as propriedades que tinham</p><p>herdado.</p><p>O meu avô foi tendo esperança de que o regime acabasse por entender o</p><p>seu gesto humanitário, Por vezes, encontro correspondência antiga da</p><p>família na qual leio frases escritas por Aristides como: «Sou otimista»,</p><p>«Continuo a ser otimista», «Tenho fé em Deus», etc., Mas compreendo o</p><p>sentimento de revolta de que o meu pai tantas vezes deu mostras — até</p><p>porque o meu pai, Geraldo, o seu sexto filho, ficou intensamente marcado</p><p>pelo sofrimento causado pelo regime, não só a Aristides, como, por</p><p>extensão, a si próprio. O meu pai licenciou-se em Ciências Económicas e</p><p>Financeiras, mas por ser filho de Aristides, e também por, em conjunto com</p><p>o meu avô e os meus tios, ter assinado as listas do MUD (Movimento de</p><p>Unidade Democrática, um movimento de oposição ao regime salazarista,</p><p>que chegou a apoiar a candidatura presidencial do general Norton de Matos,</p><p>e que Salazar ilegalizou) — razão pela qual foram todos chamados à PIDE</p><p>e passaram a integrar a chamada “lista negra” do regime — não conseguiu</p><p>arranjar trabalho na sociedade civil. Era oficial miliciano, e acabou por</p><p>aceitar uma comissão de serviço em Angola. Quando terminou, a única</p><p>entidade a dar-lhe trabalho foi o consulado da Bélgica em Luanda, deu-lhe</p><p>trabalho, mas nunca pôde fazer aquilo com que realmente sonhou.</p><p>A partir de julho de 1940 até 17 de março de 1941, o Estado português</p><p>não pagou mais nada ao “cônsul desobediente” (como se se tratasse de</p><p>algum proscrito), que se viu forçado, nesta última data, a enviar mais um</p><p>pedido (uma súplica, verdadeiramente) a Salazar, de forma telegráfica</p><p>(telegrama enviado de Lisboa, Restauradores): «Aristides Mendes cônsul na</p><p>inatividade com serviços prestados ao estado por tempo superior a trinta</p><p>anos, há meses absolutamente desprovido de recursos para sustentar sua</p><p>família, uma das mais numerosas de Portugal, roga a V. Ex.ª se digne</p><p>ordenar que com a maior urgência lhe sejam abonadas as verbas a que tem</p><p>direito pelas leis em vigor. Agradece favor solicitado. Mendes.»</p><p>«Pelas leis em vigor». O meu avô era mesmo otimista. As “leis” que o</p><p>regime ignorava totalmente… Aristides estava no deserto. Nesta altura, já</p><p>estava há nove meses sem receber ordenados. Convém ter presente que</p><p>neste período decorria o processo disciplinar contra Aristides e que a</p><p>sentença de Salazar a condená-lo é datada de 30 de outubro de 1940. E essa</p><p>sentença ilegal (que ignora o Regulamento Disciplinar de 1913) condenava-</p><p>o a «um ano de inatividade, com direito a metade do vencimento de</p><p>categoria, devendo em seguida ser aposentado».</p><p>Não chegou aos nossos dias nenhum documento oficial que confirme a</p><p>data em que essa metade do vencimento começou a ser paga. Por outro</p><p>lado, ainda existem cartas de serviço de 1943 nos arquivos do Ministério</p><p>das Finanças, nas quais os funcionários desejam saber «a data exata em que,</p><p>para efeito do despacho de 30/10/1940 [a infame sentença de Salazar],</p><p>começou a ser cumprida a pena de um ano de inatividade com metade do</p><p>vencimento de categoria, pois será até essa data que o interessado poderá</p><p>ver contado o seu tempo de serviço. A bem da nação. Lisboa, 4 de junho de</p><p>1943».</p><p>Nos arquivos das Finanças encontrei a cópia de uma carta datada de</p><p>1961, escrita a Andrée Cibial, sua viúva, onde se declara que Aristides de</p><p>Sousa Mendes recebia, à data da sua morte, a 3 de abril de 1954, 2304$56,</p><p>mas desse montante eram-lhe descontados à cabeça 750$60 para pagar uma</p><p>penhora.</p><p>Refugiado no seu país</p><p>É difícil perceber como é que a família conseguiu aguentar-se. No</p><p>documentário O Cônsul Injustiçado, de Diana Andringa, uma representante</p><p>da comunidade israelita de Lisboa, que eu também tive o prazer de</p><p>conhecer — Yvette Davidoff — lembra os momentos difíceis vividos pela</p><p>família de Aristides de Sousa Mendes no seu regresso de Bordéus e nos</p><p>tempos que se seguiram. Yvette recorda especialmente a ajuda alimentar</p><p>prestada pela cantina da comunidade israelita de Lisboa, assim como a</p><p>ajuda médica.</p><p>No início, a família deslocava-se com bastante frequência à cantina da</p><p>comunidade israelita (na Travessa do Noronha) e aí faziam as refeições</p><p>principais, quando estavam em Lisboa. Ao fim de algum tempo, passaram a</p><p>ir buscar a comida à cantina e levavam-na para casa.</p><p>Há um pequeno episódio engraçado, que ficou gravado na memória de</p><p>muita gente, e que no documentário é contado pelo sobrinho da dona Ester,</p><p>a senhora que dirigia a cozinha israelita. Havia duas salas de mesas: uma,</p><p>um pouco mais pequena, destinada aos portugueses com poucas posses, e a</p><p>outra, maior, era a sala para a comunidade israelita e refugiados. Um dia, os</p><p>meus avós e tios iam a entrar para o almoço, a falar em português,</p><p>obviamente, dirigindo-se para a sala maior, a dos estrangeiros. Logo</p><p>apareceu um jovem de uns 12 ou 13 anos, sobrinho da dona Ester, chamado</p><p>Isaac Bitton, que atenciosamente se dirigiu ao cônsul informando:</p><p>«Queiram desculpar, a sala para os portugueses</p> <p>sido os óculos redondos, os cabelos brancos e os</p><p>traços severos, mas que transmitiam humanidade. Ou o grande respeito das</p><p>pessoas que se lhe dirigiam, o que também contribuiu para a construção da</p><p>imagem do bisavô.</p><p>Foi este juiz o primeiro, pelo menos em tempos mais recentes, a usar o</p><p>nome de César, tendo o seu irmão recebido o nome de Aristides. E é esta a</p><p>razão para os dois gémeos, meus avós, virem também a chamar-se César e</p><p>Aristides… mas em “segunda edição”.</p><p>O pai deste “primeiro César”, Roque Ribeiro de Abranches de Abreu</p><p>Castelo-Branco, era filho de um fidalgo cavaleiro da Casa Real, e de Teresa</p><p>Leonor de Vasconcelos Soutomaior Mendonça, uma senhora de Seia</p><p>pertencente à Casa de Santa Eulália. Foi um dos membros do Sinédrio, uma</p><p>sociedade secreta que preconizava a implementação do liberalismo, e ficou</p><p>na história por ter participado ativamente na revolução de 1820. E por isso</p><p>foi bastante perseguido durante o reinado de D. Miguel I, assim como os</p><p>seus dois filhos, César e Aristides. Este último passou seis anos preso em</p><p>Almeida, por ser opositor do miguelismo. Com a vitória do liberalismo,</p><p>Roque foi elevado por D. Maria II, rainha de Portugal, a primeiro visconde</p><p>de Midões, par do reino (1834) e declarado Benemérito da Pátria. Em</p><p>compensação por lhe terem sido confiscados os bens pelos miguelistas, foi</p><p>nomeado Primeiro Prefeito da Beira Alta (1833). Foi também um dos “pais”</p><p>da primeira Constituição Portuguesa, aprovada em 1822, e este “amor” à</p><p>Constituição parece ter-se inscrito no ADN da descendência — nunca</p><p>poderia imaginar que um dos seus futuros trinetos, Aristides, mais de um</p><p>século depois, iria desobedecer a ordens superiores (e à tristemente famosa</p><p>Circular 14) para fazer cumprir o espírito com que os primeiros</p><p>constituintes a tinham redigido. Não é de estranhar que os meus dois avôs</p><p>tivessem um “culto especial” pela letra da Constituição, depois de terem</p><p>sido nados e criados no respeito e quase devoção pelo cumprimento estrito</p><p>da Lei Fundamental da nação.</p><p>Roque Ribeiro de Abranches de Abreu Castelo-Branco nasceu em 1770 e</p><p>faleceu em 1844, em Cabanas de Viriato, na Casa do Aido, onde 41 anos</p><p>mais tarde nasceriam os gémeos que tanto dariam que falar na carreira</p><p>consular-diplomática portuguesa.</p><p>A Casa do Aido</p><p>A velha Casa do Aido, em forma de U, que terá começado a ser construída</p><p>no século XVII, tinha uma capela do lado esquerdo, encimada pela pedra de</p><p>brasão de armas da família, e uma cozinha histórica do outro lado, onde,</p><p>ainda hoje, se pode admirar a chaminé renascentista classificada como</p><p>património nacional, que Aristides, meu avô, tanto admirava do alto da</p><p>mansarda da Casa do Passal. Esta casa, nos anos 30 do século XX, entrou</p><p>nas partilhas de bens dos vários ramos descendentes dos viscondes de</p><p>Midões, e os gémeos deixaram de lhe ter acesso.</p><p>Nalgumas cartas dirigidas a Aristides, o gémeo César manifesta interesse</p><p>em adquiri-la, tendo que dar «tornas» aos outros herdeiros. Como nunca se</p><p>chegou a um entendimento, devido às longas ausências deste último no</p><p>estrangeiro, a Casa do Aido foi finalmente atribuída a um parente de apelido</p><p>Portugal da Silveira. Este, perante a quantidade de obras de conservação</p><p>que se impunham, preferiu demoli-la, guardando apenas a capela e a</p><p>cozinha, que ainda hoje está intacta e pode ser admirada. A partir da</p><p>escadaria original da cozinha, o nosso parente mandou construir uma casa</p><p>muito mais pequena, o que lhe diminuiu consideravelmente as despesas.</p><p>Antiga Casa do Aido, datada do século XVII, onde os gémeos nasceram e cresceram.</p><p>Hoje apenas restam a capela, a cozinha e os jardins.</p><p>Os antigos jardins permaneceram, e guardam ainda um maravilhoso</p><p>chafariz, onde uma estranha cabeça de um qualquer ser mitológico abre a</p><p>boca e expele água, rodeado de belas plantas exóticas.</p><p>Estes são alguns elementos referentes ao ambiente familiar mais próximo</p><p>dos gémeos, que explicam como a sua formação humana e espiritual, as</p><p>leituras e as diversas fontes de conhecimento, inspiraram Aristides e César</p><p>ao longo da vida, tanto no comportamento entre colegas e familiares, como</p><p>nas ações a realizar, por vezes muito difíceis, como sucedeu em ocasiões</p><p>extremas, na Segunda Guerra Mundial.</p><p>A desobediência à Circular 14</p><p>No final do conflito mundial, Aristides reagiu ao castigo que lhe fora</p><p>imposto pelo regime ditatorial, e escreveu à Assembleia Nacional, composta</p><p>por deputados que pertenciam à União Nacional, explicando que as ordens</p><p>assinadas por Salazar a que tinha desobedecido estavam diretamente em</p><p>contradição com a Constituição de 1933, e configuravam uma violação do</p><p>texto fundamental. O espírito desta reação estava de acordo com a</p><p>manifestação de junho de 1940, na qual, confrontado com a força</p><p>esmagadora do invasor nazi, declarou: «Não participo em chacinas, por isso</p><p>desobedeço a Salazar.»</p><p>Esta frase foi vista e considerada pelo regime como uma inequívoca</p><p>acusação a Salazar. Para Aristides, a ordem expressa na Circular 14, não</p><p>permitindo que os cônsules de carreira passassem vistos de entrada em</p><p>Portugal a refugiados, era uma ordem colaboracionista: «Participar em</p><p>chacinas não era apenas praticá-las diretamente, bastava apenas impedir que</p><p>as potenciais vítimas tivessem uma porta de saída do inferno em que se</p><p>estava a tornar a Europa ocupada pelas forças nazis. Era o que fazia a</p><p>Circular 14.»</p><p>Foi a primeira vez (e talvez a única) em que um cidadão nacional,</p><p>funcionário do Estado, falando de direitos humanos num regime totalitário,</p><p>denuncia aos “representantes da Nação” a violação da Lei Fundamental por</p><p>parte do chefe do governo. Foi a 10 de dezembro de 1945 que a reclamação</p><p>de Aristides foi apresentada na Assembleia Nacional. Nem um único dos</p><p>120 deputados teve a coragem e a dignidade de responder… Exatamente</p><p>três anos depois, a 10 de dezembro de 1948, as Nações Unidas publicavam</p><p>em Nova Iorque a Declaração Universal dos Direitos do Homem.</p><p>Coincidências.</p><p>Num plano mais espiritual, outro ponto importante na formação dos</p><p>gémeos, houve uma reação ao mais alto nível. Aristides escreve uma carta a</p><p>Sua Santidade, o Papa Pio XII, dirigindo-a ao cardeal Masela, secretário</p><p>pessoal do Sumo Pontífice. A carta, escrita à máquina, expõe a dramática</p><p>situação vivida por si, sobretudo logo a seguir à invasão e à ocupação de</p><p>França pelos exércitos de Hitler. A sua angústia perante os milhares de</p><p>refugiados que poderiam ser enviados para os campos da morte e o dilema</p><p>entre a obediência aos seus superiores hierárquicos e a obediência aos</p><p>mandamentos de Deus fornece uma explicação para a sua decisão do ponto</p><p>de vista da sua fé e consciência. Daí, a sua tese: «Se tenho que desobedecer</p><p>a alguém, será a Salazar.» Ou «antes com Deus contra os homens do que</p><p>com os homens contra Deus». Esta carta, datada de 1946, entregue nos</p><p>serviços do Patriarcado de Lisboa, nunca de lá sairá e nunca chegará às</p><p>mãos de Sua Santidade.</p><p>Refugiado no seu próprio país</p><p>Esta questão acabou por tornar-se o ponto central da vida de Aristides e da</p><p>sua primeira mulher. Angelina, nascida em Beijós em 1888, era filha de</p><p>António de Sousa Mendes, irmão de José de Sousa Mendes, e de Clotilde</p><p>do Amaral e Abranches, irmã de Angelina do Amaral e Abranches. Este</p><p>parentesco tão próximo entre Aristides e Angelina — duplamente primos</p><p>em primeiro grau — trouxe também uma enorme confusão, pois há uma</p><p>sequência de nomes que se repetem três e quatro vezes, e precisamos</p><p>frequentemente de esclarecer de quem é que estamos a falar, sobretudo para</p><p>pessoas de fora da família. A que César ou Aristides nos referimos? Ou a</p><p>que Silvério? Eis outro nome que se multiplicará também nas várias</p><p>gerações desta família.</p><p>Aristides e Angelina, que se conheciam desde a mais tenra idade,</p><p>apaixonaram-se cedo e casaram-se cedo, em 1908. Ele tinha 23 anos e ela</p><p>apenas 20. Tiveram 14 filhos. Angelina tinha um irmão — Silvério Coelho</p><p>de Sousa Mendes, também nascido em Beijós, na Casa da Ribeira, em</p><p>1887.</p><p>Este Silvério, irmão de Angelina e primo direito de Aristides, entrou para</p><p>a marinha de guerra portuguesa, e mais tarde doutorou-se em Engenharia</p> <p>é aquela ali ao lado. Esta é a</p><p>sala para os refugiados.» Prontamente, Aristides, de braço dado com</p><p>Angelina, respondeu-lhe com toda a dignidade e solenidade: «Nós também</p><p>somos refugiados!»</p><p>A família aguentou, pois claro! A filha Clotilde, casada desde dezembro</p><p>de 1939, provavelmente ajudava os pais com algum dinheiro do marido.</p><p>Isabel também ajudava certamente, embora Jules, o seu marido belga, não</p><p>tivesse qualquer rendimento em Portugal. As coisas corriam mal do ponto</p><p>de vista financeiro, mas por outro lado havia muita coragem e algo a que</p><p>sempre assisti na minha família: muita fé e confiança em Deus. Depois, os</p><p>“milagres” iam acontecendo. Não nos esqueçamos das provações de Vigo e</p><p>de tantas outras. A certeza de Aristides e Gigi de que estavam a fazer o bem:</p><p>«Ao acolher e ajudar os refugiados é a Jesus que o fazemos», foi esse o</p><p>“pão” deles.</p><p>A presença dos estrangeiros em Cabanas de Viriato também os ajudou a</p><p>ultrapassar os momentos mais difíceis. Cantavam, liam, passeavam e</p><p>tinham conversas interessantes. Numa carta, datada de 1 de outubro de</p><p>1940, para César, Aristides relata aquilo que talvez tenha sido o único</p><p>momento em que houve um reconhecimento público do seu gesto em</p><p>Portugal. Foi em setembro, e passou-se poucos dias antes de escrever a</p><p>carta: «Estive há dias na Figueira, onde fui a convite da Madame Allotini</p><p>(Gisèlle Quittner), assistir a uma conferência que ela proferiu no Casino.</p><p>Incluo as palavras que ela disse a meu respeito, diante de numerosa</p><p>assistência. Se entenderes que devem ser juntas ao processo, e se ainda for</p><p>tempo disso, muito te agradeço [essas palavras foram, de facto, anexadas ao</p><p>processo, e ainda hoje existem, contrariamente a muitas de outros</p><p>refugiados dando provas de reconhecimento a Aristides e que</p><p>desapareceram do processo, sabe-se lá como].» Vejamos quais eram essas</p><p>palavras acerca de Aristides de Sousa Mendes, escritas por Madame</p><p>Allotini: «Faço questão de lhe escrever para lhe dizer da profunda</p><p>admiração que têm por si em todos os países onde exerceu as funções de</p><p>cônsul. O senhor é para Portugal a melhor das propagandas, é uma honra</p><p>para a sua pátria. Todos aqueles que o conheceram elogiam a sua coragem,</p><p>o seu grande coração. O seu espírito cavalheiresco, e acrescentam: se os</p><p>portugueses são como o cônsul-geral Mendes, são um povo de cavalheiros e</p><p>de heróis.»</p><p>Uma “bomba francesa”</p><p>No meio das grandes tempestades há sempre coisas que acontecem</p><p>inesperadamente. E quando as coisas estão a correr mal, parece que às</p><p>vezes ainda podem piorar mais. Em outubro de 1940, nas vésperas de</p><p>receber a sentença de Salazar, a família é atingida por uma estranha bomba.</p><p>Hoje, 77 anos depois, é muito difícil reconstituir tudo o que se passou,</p><p>sobretudo porque praticamente todos os intervenientes e eventuais</p><p>testemunhas da forma como se soube já desapareceram. Apenas através de</p><p>pequenas frases, escritas numa ou noutra carta, e conhecendo o assunto, se</p><p>consegue deduzir alguma coisa.</p><p>A 19 de outubro de 1940, uma senhora francesa deu à luz uma menina,</p><p>na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, e declarou que o pai da sua</p><p>filha era o cônsul Aristides de Sousa Mendes. Conclui-se, pelos contactos</p><p>que foram feitos pela maternidade, que o interessado não sabia de nada do</p><p>que estava a acontecer, e que “a francesa” não sabia como se dirigir</p><p>exatamente a sua casa (a Cabanas), pois tinha ido para Lisboa. Através do</p><p>apelido, a administração descobriu o paradeiro de um irmão, o comandante</p><p>José Paulo de Sousa Mendes (irmão mais novo dos gémeos), que consegue,</p><p>através de um amigo (Ferrer), pagar a dívida da maternidade, e assim tirar</p><p>“a francesa” do hospital, onde a conta aumentava de dia para dia. José</p><p>Paulo escreve várias cartas a César (o irmão mais velho, que tinha</p><p>regressado da Letónia havia pouco tempo), dizendo: «É certo que és</p><p>considerado como pessoa muito equilibrada e disposta a dar a melhor</p><p>solução aos casos de família», esperando que daí viesse uma solução para o</p><p>caso. Também havia a questão de evitar que Angelina soubesse, sem</p><p>preparação, do que se passava. Era preciso muito tato, para a proteger de</p><p>emoções perigosas.</p><p>Outra carta de José Paulo a César contém bastantes indícios de como a</p><p>questão foi resolvida naquela altura. É datada de 22 de novembro de 1940:</p><p>«[…] Resolver o caso da francesa, como? Perguntei eu ao Geraldo [filho de</p><p>Aristides]. Tratando de pôr a mulher em França, respondeu-me ele. Ora eu,</p><p>estando disposto a fazer o que o Aristides quiser […] tenho o muito</p><p>justificado receio de que qualquer passo que eu dê tenha alguma</p><p>consequência que vá afetar o Aristides profissionalmente. Eu tomei</p><p>encargos que o Aristides disse que tomasse […] a mulher em questão está</p><p>numa casa de Sintra pertencente ao Ferrer. Compreendo que seja preciso</p><p>que a Gigi [Angelina] ignore estas coisas […] quanto a encargos, muitos</p><p>tomei […] não quero que o Aristides me indemnize, desejando apenas que</p><p>resolva a atual situação.»</p><p>No imediato, a situação resolveu-se. A PVDE expulsou Andrée Cibial («a</p><p>francesa») ao fim de algumas semanas, interditando-lhe a entrada no país.</p><p>Ao regressar a França, Andrée foi entregar a pequena, a quem pôs o nome</p><p>de Marie-Rose, aos tios, em Ribérac (Dordogne), a quem ela também tinha</p><p>sido entregue na infância pela sua própria mãe, por razões que ignoro. Nos</p><p>tempos que se seguiram, claro, em Cabanas de Viriato contaram-se imensas</p><p>histórias, que foram desaparecendo com o tempo.</p><p>Só em 1949 é que Andrée Cibial será de novo falada, e vista, em Cabanas</p><p>de Viriato.</p><p>Os “dois americanos” na guerra</p><p>Em 1940, Portugal contava com pouco mais de oito milhões de habitantes.</p><p>Era uma sociedade muito rural, muito fechada, com muita pobreza. As</p><p>pessoas conheciam, ou “reconheciam”, quais eram as «boas famílias» e</p><p>quais eram as famílias “a evitar”. A nossa passou a ser reconhecida como</p><p>fazendo parte dessa última categoria por razões políticas, e isso era</p><p>pesado… Esse fardo foi-se tornando mais evidente à medida que os anos</p><p>foram passando, e não era nada fácil para os mais jovens. Por isso, não é de</p><p>espantar que, em 1943, “os dois americanos”, Sebastião, de 20 anos, e</p><p>Carlos Francisco Fernando, de 21, tenham convencido os pais a deixá-los</p><p>partir para a guerra. Queriam reverter a má sorte com as armas na mão: o</p><p>americano Dwight Eisenhower tinha sido nomeado general em chefe das</p><p>forças aliadas estacionadas em Inglaterra, e preconizava a invasão da</p><p>França para lutar contra o ocupante nazi no terreno. Eram precisos jovens</p><p>com vontade de lutar. Era preciso “carne para canhão” — a única maneira</p><p>de dar a volta.</p><p>Sebastião e Carlos Francisco Fernando souberam também eles “dar a</p><p>volta” ao pai e à mãe. A minha avó, Angelina, encontrava-se muito</p><p>vulnerável. O desgosto pela morte de Manuel e da pequenina Raquel, na</p><p>Bélgica, em 1934, não a largava. O lamentável episódio com “a francesa”</p><p>chegou ao seu conhecimento, e a situação financeira da família agravava-se.</p><p>No Passal, estavam todos convencidos de que quando os nazis perdessem a</p><p>guerra, atrás deles iriam Mussolini, Franco, Pétain e, porque não?, Salazar.</p><p>A 18 de setembro de 1943, é enviado por cabo submarino, a partir de</p><p>Birmingham (a segunda maior cidade de Inglaterra), o seguinte telegrama</p><p>para Aristides e Angelina: «Daqui enviamos muitas saudades. Estamos bem.</p><p>Contentes recebemos carta mamã pedimos notícias relations Papá =</p><p>Mendes» (Mendes, aqui, significa Sebastião e Carlos F.F.). A morada do</p><p>destinatário era: Rua Fialho de Almeida, 13 Lisbon. Acho que podemos</p><p>acreditar que o 13 da porta trouxe alguma sorte à “campanha de guerra” dos</p><p>“dois americanos” da família.</p><p>Não havia dia em que Aristides e Angelina não rezassem juntos pela vida</p><p>dos “dois americanos” que, em pouco tempo, receberam outra alcunha dada</p><p>por Aristides: “os dois de Inglaterra”, numa alusão aos «doze de Inglaterra»</p><p>celebrizados em Os Lusíadas, por Camões. Para Aristides e Angelina,</p><p>quando a guerra acabou e os “dois” apareceram em Cabanas, envergando o</p><p>uniforme americano, foi o grande suspiro de alívio e a sensação de que a</p><p>família tinha continuado a participar na</p> <p>escrita da História. Aristides armou-</p><p>se em jornalista e escreveu uma série de pequenos artigos, que publicou em</p><p>vários jornais, sobretudo da região centro, não se identificando, claro.</p><p>Fica aqui um desses artigos, publicado no Renascimento, de Mangualde,</p><p>no dia 1 de julho de 1946, provavelmente escrito um pouco antes.</p><p>«Dois combatentes portugueses no exército americano</p><p>Temos o prazer de dar aos nossos leitores desta vila uma notícia que</p><p>certamente lhes há de ser muito agradável: a de que o senhor Carlos</p><p>Francisco Fernando, antigo aluno do Colégio de S. José desta vila</p><p>[Mangualde], está são e salvo, assim como seu irmão Sebastião de</p><p>Sousa Mendes, segundo notícias telegráficas de Londres. Logo que a</p><p>América entrou na guerra, achavam-se os dois na povoação deste</p><p>distrito, Cabanas de Viriato, terra da naturalidade dos pais e,</p><p>patriotas ardentes, tiveram desde logo a ideia de se alistarem no</p><p>exército americano. Como, porém, consegui-lo se estavam na idade</p><p>militar em Portugal, o que os impediria de prestarem serviços à</p><p>América? Depois de estarem recenseados e inspecionados em</p><p>Portugal, requereram e foi-lhes concedido, irem para Inglaterra, a</p><p>título de fazerem estudos superiores, o que tornou a sua saída legal.</p><p>Foi por este processo que conseguiram satisfazer o seu ideal, tendo</p><p>sido os únicos voluntários portugueses, idos de Portugal, assim como</p><p>declara o adido militar americano em Lisboa. Chegados a Inglaterra</p><p>em setembro de 1943, ali foram desde logo incorporados no exército</p><p>americano de invasão, tendo atravessado o canal da Mancha entre os</p><p>primeiros a seguir ao “dia D”, e assistido a sangrentos combates na</p><p>Normandia, na Bélgica e Alemanha, onde estiveram até ao “dia V”.</p><p>Consta que brevemente regressarão a Portugal, onde os amigos se</p><p>preparam para os receber festivamente. Sentimo-nos,</p><p>particularmente, satisfeitos ao dar esta notícia, pois os dois rapazes</p><p>são simpáticos e merecedores de toda a nossa amizade e</p><p>consideração, pela sua nobre conduta.»</p><p>As diligências para a saída dos rapazes para Inglaterra não foram fáceis.</p><p>Aristides teve de ir a tribunal defender a causa dos filhos. Para isso,</p><p>precisava de estar inscrito na Ordem dos Advogados — o que já acontecera</p><p>havia algum tempo.</p><p>O facto de o MNE não informar a Ordem da razão do seu afastamento da</p><p>carreira consular e diplomática não ajudou as suas tentativas para continuar</p><p>a exercer advocacia. O meu avô tornara-se persona non grata do regime.</p><p>Quem iria contratar um advogado que, à partida, carregava a marca de</p><p>perdedor?</p><p>Por esta razão, observadores estrangeiros, quando tomaram</p><p>conhecimento do “caso Aristides de Sousa Mendes” começaram a escrever</p><p>que a prática da advocacia lhe tinha sido vedada. Por outro lado, os</p><p>defensores do regime salazarista, ainda hoje insistem que se Aristides de</p><p>Sousa Mendes não exerceu advocacia, foi porque não quis… ou por</p><p>incapacidade.</p><p>Quando foi necessário defender a saída dos seus filhos para a guerra,</p><p>Aristides voltou a inscrever-se na Ordem dos Advogados, tendo pago as</p><p>quotas necessárias para ser autorizado a fazê-lo. Ganhou o caso com uma</p><p>argumentação pertinente e bem fundamentada, em que defendia o princípio</p><p>da dupla nacionalidade, do qual goza um bom número dos seus</p><p>descendentes. A questão era evitar qualquer problema ligado a uma eventual</p><p>quebra de neutralidade de Portugal. Eles não podiam ser considerados</p><p>portugueses. Mas não houve dúvidas, Sebastião e Carlos F. F. saíram de</p><p>Portugal e puderam alistar-se como cidadãos americanos logo que</p><p>chegaram a Inglaterra.</p><p>Quando, bastante mais tarde, conheci pessoalmente os meus tios, nos</p><p>Estados Unidos, várias vezes tive ocasião de ouvir diretamente da boca</p><p>deles descrições de mortes e de ataques sangrentos, tal como aquelas que</p><p>vemos no cinema e que nos deixam horrorizados. Vou apenas relembrar</p><p>uma historieta que ambos me contaram em momentos diferentes, e que tem</p><p>mais a ver com paz e felicidade num cenário de destruição.</p><p>Depois das primeiras semanas de junho de 1944, a seguir ao</p><p>desembarque das tropas americanas na chamada Omaha Beach, na</p><p>Normandia, durante as quais se encontravam esporadicamente, Sebastião e</p><p>Carlos Francisco Fernando deixaram de saber um do outro. Soldados a</p><p>quem perguntavam pelo irmão também não sabiam, ou nem sequer o</p><p>conheciam. A dada altura, cada um deles começou a recear seriamente que</p><p>o outro tivesse morrido, situação que se prolongou durante vários meses, até</p><p>ao Natal de 1944. Sebastião esteve em situações mais difíceis, em batalhas</p><p>como a de Bastogne e outras, onde houve maior número de baixas. Carlos</p><p>Francisco Fernando, a partir de uma certa altura, ficou mais ligado ao</p><p>secretariado e à tradução, devido à sua vasta experiência em línguas</p><p>estrangeiras (português, espanhol, francês, inglês). Próximo do Natal, e já</p><p>com o cheiro da vitória no ar, o exército americano começou a organizar</p><p>festas para levantar o moral das suas tropas. E foi numa dessas ocasiões,</p><p>numa “festa” improvisada num barracão no norte de França, que</p><p>inesperadamente os “dois” se reconheceram… entre duas cervejas,</p><p>provavelmente por serem Stella Artois. Uma enorme alegria — afinal</p><p>estavam vivos e de boa saúde.</p><p>Caído em desgraça, mas sempre solidário</p><p>No verão de 1945, a família viveu um reencontro feliz com o regresso, de</p><p>perfeita saúde, dos «dois de Inglaterra». Mas também passou por um</p><p>momento de grande susto, quando Aristides sofreu uma hemorragia cerebral</p><p>da qual nunca recuperou totalmente, e que o fez perder o uso da mão</p><p>direita. Passou a ter de ditar as cartas aos filhos, sobretudo a Luís Filipe,</p><p>que assumiu funções de secretário do pai.</p><p>Pedro Nuno, entretanto, tinha-se casado, e tentava retomar os estudos de</p><p>Direito, iniciados em Bordéus anos antes, e interrompidos pelos</p><p>acontecimentos, o que não lhe permitia estar sempre em Cabanas.</p><p>A 19 de fevereiro de 1945, Aristides envia uma carta ao Dr. António Sá</p><p>Nogueira, então Bastonário da Ordem dos Advogados, onde esclarece a</p><p>situação que vivia nesse momento e na qual relembra as circunstâncias de</p><p>Bordéus:</p><p>«[…] em 1940, achava-me eu em Bordéus no desempenho das</p><p>funções consulares, quando se deu a queda de França […] Este</p><p>acontecimento, quase no começo da guerra, foi precedido de</p><p>circunstâncias verdadeiramente dramáticas que emocionaram o</p><p>mundo inteiro […] o que foram esses dias, não é fácil descrevê-lo,</p><p>mas pode ser imaginado por aqueles que têm sentimentos</p><p>humanitários e entendem que a fraternidade e a solidariedade</p><p>humanas não devem ser palavras vãs […] vi-me no dilema de: ou</p><p>cumprir as instruções do governo, proibitivas e draconianas,</p><p>entregando os fugitivos às hostes invasoras, ou salvá-los dos</p><p>horrores da guerra, cedendo ao ímpeto do coração, mas</p><p>desobedecendo às ditas instruções. Foi esta última decisão que</p><p>prevaleceu no meu espírito […] não hesitei um momento em me</p><p>sacrificar e aos meus pela salvação de tantos milhares de pessoas!</p><p>[…] Desejo apenas frisar que, em consequência disto, fui</p><p>severamente castigado e aposentado “por incapacidade</p><p>profissional”!!! […] não sendo rico, possuía em todo o caso, uns</p><p>pequenos bens herdados dos pais de que me fui desfazendo, tendo</p><p>mesmo chegado a hipotecar a minha casa; e hoje, apesar de ter</p><p>recebido e estar recebendo ainda um pequeno socorro de pessoas que</p><p>têm querido aliviar o meu sofrimento, vejo-me propriamente numa</p><p>situação de verdadeira penúria.</p><p>[…] Dirigindo-me a V. Exa., não me atrevo a pedir para mim</p><p>pessoalmente seja o que for, ainda que muito precise, mas rogo a</p><p>atenção de V. Exa. para um filho meu [Pedro Nuno] que, sendo já</p><p>casado e tendo família, se acha sem colocação. Apesar dos esforços</p><p>que tem empregado para a obter. Era aluno do 2.º ano da Faculdade</p><p>de Direito da Universidade de Bordéus e não conseguiu fazer valer</p><p>aqui os seus estudos para entrar na Universidade de Coimbra ou</p><p>Lisboa […] como pai e protetor muito agradeceria a V. Exa. o favor</p><p>[…] de lhe proporcionar, sendo possível, uma colocação que lhe</p><p>permitisse ganhar o seu sustento e o dos seus.»</p><p>Ignoro se houve alguma resposta concreta a esta carta. Apenas sei que o</p><p>meu tio Pedro Nuno acabou por</p> <p>se licenciar em Direito pela Universidade</p><p>de Toulouse, França, já depois da guerra, e foi fazer a sua vida profissional</p><p>para o Congo Belga (Leopoldville), onde foi muito bem-sucedido. Devo</p><p>dizer que o lugar de jurista que Pedro Nuno obteve foi devido à influência</p><p>do pai junto do ministro belga das Colónias, Albert de Vleeschauwer, que</p><p>encontrou assim uma forma de agradecer ao antigo cônsul o “verão de 40”.</p><p>O marido de Isabel, Jules d’Août, foi outro familiar de Aristides e Angelina</p><p>a beneficiar do apoio do meu avô — também ele foi nomeado para um</p><p>posto de chefia na administração belga, na direção das alfândegas na antiga</p><p>colónia da Bélgica. Aristides de Sousa Mendes, caído em desgraça e sem</p><p>atividade profissional, ainda pensava nos outros e em como ajudar outros a</p><p>encontrar emprego. E não só para os filhos. Há cartas em que recomenda</p><p>pessoas de Cabanas de Viriato para certos trabalhos (a solidariedade que</p><p>não se esgota).</p><p>Depois da independência do Congo Belga, em 1960, Pedro Nuno era tão</p><p>bem visto que, quando a administração belga regressou à Bélgica, ele foi o</p><p>único funcionário belga (tinha dupla nacionalidade) convidado a ficar pela</p><p>nova administração zairense. Lá ficou até se reformar e foi até agraciado</p><p>com três condecorações belgas, uma delas vinda do gabinete do rei.</p><p>Uma pequena esperança</p><p>Os anos que se seguiram não trouxeram nenhuma novidade significativa à</p><p>vida dos meus avós.</p><p>A guerra terminou a 8 de maio de 1945 e o dia 9 de maio foi declarado</p><p>Dia da Paz. Os chefes dos governos dos países aliados e de outros, para</p><p>comemorarem a ocasião, fizeram discursos para a nação. Portugal (ou</p><p>Salazar) não podia ficar atrás, e “naturalmente”, pôs-se do lado das nações</p><p>vitoriosas que se bateram pela democracia, pela liberdade e pela defesa dos</p><p>direitos humanos. Salazar, que se lembrou dos elogios que lhe foram</p><p>dirigidos em 1940, erradamente e por engano, pela imprensa estrangeira</p><p>devido à política de “abertura e acolhimento de refugiados”, proferiu, na</p><p>Assembleia Nacional, a 18 de maio, o discurso Portugal, a Guerra e a Paz</p><p>(in Discursos, Salazar). A parte que mais marcou os gémeos, os meus avôs,</p><p>começava assim: «Do mais não há que falar. Quaisquer outros na nossa</p><p>situação acolheriam refugiados, salvariam e agasalhariam náufragos,</p><p>ajudariam a suavizar a sorte dos prisioneiros, enviariam donativos a</p><p>necessitados, por dever de solidariedade humana e também para manter no</p><p>mundo convulsionado por ódios mortais o que poderia ser chama, embora</p><p>ténue, de caridade, antevisão, embora pálida, da justiça e da paz. Pena foi</p><p>não termos podido fazer mais.»</p><p>Palavras bonitas que ficam bem a um chefe de governo de um país</p><p>civilizado. No caso de Salazar, revelam uma enorme incoerência (e</p><p>oportunismo), pois o responsável pela entrada no país de milhares de</p><p>refugiados tinha sido condenado cinco anos antes, por desobediência a</p><p>ordens que iam em sentido oposto. Ordens que mostravam que Salazar</p><p>estava alinhado pelo mais forte em 1940, quer dizer, Hitler.</p><p>Aristides pensou que dentro da lógica que presidira a tal discurso, as</p><p>notícias da sua reintegração teriam de chegar em breve. Do México, onde</p><p>tinha sido colocado havia poucos meses, César escreveu a Salazar,</p><p>elogiando este seu discurso e regozijando-se com a passagem acima</p><p>referida, lembrando-lhe que o seu irmão Aristides, autor desse feito, ainda</p><p>se encontrava injustiçado precisamente por ter “acolhido refugiados”. Como</p><p>Salazar não deu qualquer seguimento ao “elogio” de César, este guardou-o</p><p>e tornou a dar-lhe utilização noutra ocasião, com Caeiro da Mata como</p><p>ministro dos Negócios Estrangeiros. Caeiro da Mata, jurista de reputação</p><p>internacional, foi nomeado por Salazar, em 1947, para a pasta dos Negócios</p><p>Estrangeiros, e através de conhecimentos comuns, manifestou a César a sua</p><p>vontade de rever o processo de Aristides.</p><p>Os gémeos pensaram que a questão iria finalmente resolver-se. Mesmo</p><p>que se tivessem passado sete anos, valeria sempre a pena. Impunha-se, por</p><p>uma elementar questão de justiça, restabelecer a verdade.</p><p>A 8 de março de 1947, César, ministro plenipotenciário de Portugal em</p><p>Berna, inspira-se e escreve, cheio de emoção, a Caeiro da Mata: «Senhor</p><p>ministro, é sob intensa emoção que dirijo estas linhas a Vossa Excelência.</p><p>Acabo de ter conhecimento do interesse que se dignou manifestar por meu</p><p>irmão Aristides, o irmão que veio ao mundo comigo, com quem tenho</p><p>partilhado sempre alegrias e tristezas […] Assim o entendeu o próprio</p><p>senhor presidente do Conselho, que em discurso proferido em 18 de maio</p><p>de 1945, perante a Assembleia Nacional, elogiou expressivamente a</p><p>maneira por que os refugiados foram recebidos em Portugal, e tantas outras</p><p>manifestações de solidariedade humana e de caridade do povo português.</p><p>Meu irmão foi apenas um intérprete desses sentimentos, servindo</p><p>dedicadamente a pátria […] Pode pois, V. Exa. avaliar da nossa grande</p><p>satisfação ao sabermos que V. Exa. permite a revisão do processo.»</p><p>Os meses passaram e Aristides e César aguardaram com impaciência que</p><p>o correio lhes trouxesse alguma novidade. Nalguns postais de Aristides,</p><p>ainda pode ler-se, escrito a lápis: «[…] do ministro ainda nada […].»</p><p>Claro… nada, porque Salazar também se aborreceu com Caeiro da Mata,</p><p>por essa e outras razões, e o caso de Aristides estava encerrado. Em 1950,</p><p>Salazar substitui Caeiro da Mata. O sonho acaba. Há outro aspeto em</p><p>relação a Salazar que pode estar ligado à vaidade, à fama internacional, aos</p><p>louros de poder vir a ser considerado um humanista. Os Direitos Humanos</p><p>começaram a ficar na moda depois das monstruosidades dos campos de</p><p>extermínio virem a lume, e a 10 de dezembro de 1948 surge a Declaração</p><p>Universal dos Direitos Humanos: «Art.14.º, 1. Toda a pessoa sujeita a</p><p>perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros</p><p>países.» A partir deste momento, as questões humanitárias iriam receber</p><p>outro tipo de atenção.</p><p>Terá sido ainda em 1945 ou 1946, antes deste episódio, que o meu pai,</p><p>inconformado com a decisão de Salazar e à procura de apoios, tomou a</p><p>decisão de escrever a um dos barões Rothschild, Maurice, se não me</p><p>engano, explicando-lhe que o «homem que o tinha ajudado a escapar aos</p><p>nazis, a ele e aos seus familiares, em 1940 [o cônsul Aristides de Sousa</p><p>Mendes], por ter agido contra as ordens do seu governo [de Salazar], se</p><p>encontrava numa grave situação financeira, devido a um castigo disciplinar</p><p>ilegal e necessitando de ajuda urgente». Reconhecido, o barão de</p><p>Rothschild enviou rapidamente um cheque de trinta mil escudos em nome</p><p>de Aristides de Sousa Mendes. Uma soma bem simpática, que foi muito</p><p>bem acolhida. Mas os bancos portugueses levantaram tantas complicações</p><p>que o dinheiro do cheque só chegou às mãos de Aristides em 1948 ou 1949,</p><p>segundo vi na correspondência de família. Por alguma razão, os bancos de</p><p>Portugal não quiseram, ou não puderam, pagar esse cheque. Foi preciso</p><p>enviá-lo para Berna, Suíça, onde entretanto César se encontrava desde 1946</p><p>como ministro plenipotenciário. César recebeu esse dinheiro, trouxe-o</p><p>consigo para Portugal, e só então Aristides pôde usá-lo. O que se terá</p><p>passado? Qual terá sido o impedimento?</p><p>À procura de justiça</p><p>Em outubro de 1945, a grande novidade em Portugal foi o aparecimento do</p><p>Movimento de Unidade Democrática (MUD), que trouxe uma ligeira</p><p>esperança de modificação da situação política em Portugal, devido à vitória</p><p>dos aliados e dos movimentos democráticos na Europa. Falou-se mesmo da</p><p>dissolução da Assembleia Nacional e gerou-se algum otimismo.</p><p>Organizaram-se listas de apoiantes do movimento com muitas assinaturas</p><p>de opositores ao regime. Só que essas listas acabaram por transformar-se</p><p>em “listas negras”, contendo milhares de nomes de quem se opunha ao</p><p>regime.</p><p>Entre os milhares de assinaturas figuram os nomes de Aristides, de</p><p>Angelina, e de alguns dos filhos, que são chamados pela PIDE a explicar</p><p>por que razão se opõem ao regime do Estado Novo. Sei que o meu pai e a</p><p>minha mãe, por exemplo, lhes deram respostas pouco amáveis em relação a</p><p>Salazar e ao regime, assim como à forma como</p> <p>Aristides de Sousa Mendes</p><p>foi tratado, por causa da “desobediência à Circular 14” por motivos</p><p>humanitários. Entre os que ficaram bem classificados na “lista negra”</p><p>encontrava-se o nome do meu pai.</p><p>Como referi logo no início deste livro, os meus avós tinham um lado</p><p>legalista muito forte; eram homens de Direito, trinetos de um dos “pais” do</p><p>texto Constitucional de 1822 — Roque Ribeiro de Abranches de Abreu</p><p>Castelo-Branco (Benemérito da Pátria e Par do Reino), em casa sempre se</p><p>alimentaram dos grandes princípios do Direito. Nessa lógica, findo o</p><p>conflito mundial, o meu avô Aristides dirige uma reclamação à Assembleia</p><p>Nacional que, mesmo composta unicamente por pessoas da União Nacional,</p><p>tinha por dever fazer cumprir a Constituição de 1933 (de Marcelo Caetano).</p><p>O texto dessa reclamação segue na íntegra nos Anexos que estão no final do</p><p>livro.</p><p>A reclamação, curiosamente (e premonitoriamente), é datada de 10 de</p><p>dezembro de 1945 (exatamente um ano antes da Declaração Universal dos</p><p>Direitos do Homem), e é dirigida ao presidente da Assembleia Nacional,</p><p>nessa altura o Dr. Albino dos Reis.</p><p>Na reclamação, Aristides começa por relembrar a situação vivida em</p><p>Bordéus em maio/junho de 1940, e a proibição recebida por parte do</p><p>governo português de conceder vistos aos israelitas (de acordo com a</p><p>Circular 14). Diz ele que não devia obedecer àquela proibição por a</p><p>considerar inconstitucional em virtude do artigo 3.º da Constituição, que</p><p>garante liberdade e inviolabilidade de crenças, não permitindo que ninguém</p><p>seja perseguido por causa delas, nem obrigado a responder acerca da</p><p>religião que professa. Acrescenta ainda que se não obedeceu, não fez mais</p><p>do que resistir, nos termos do n.º 18 do artigo 8.º da Constituição, a uma</p><p>ordem que infringia manifestamente as garantias individuais, não</p><p>legalmente suspensas nessa ocasião (artigo 8.º n.º 19). Mais adiante, pede à</p><p>Assembleia para declarar nula a pena que lhe foi imposta por Salazar,</p><p>exigindo a respetiva responsabilidade àquele ou àqueles funcionários que,</p><p>dando-lhe a referida ordem, «atentaram contra a Constituição e o regime</p><p>estabelecido (artigo 115.º, n.º 2). Para terminar, Aristides escreve que «a</p><p>Assembleia Nacional deve pôr termo ao absurdo de ele ter sido severamente</p><p>punido por factos pelos quais a administração [Salazar] tem sido elogiada</p><p>em Portugal e no estrangeiro, manifestamente por engano […] Em resumo,</p><p>a atitude do governo Português foi inconstitucional, antineutral e contrária</p><p>aos sentimentos de humanidade e, portanto, insofismavelmente “contra a</p><p>Nação”.»</p><p>Mais uma vez, Aristides fica à espera… Mas quem é que na Assembleia</p><p>Nacional, formada unicamente por elementos da União Nacional, tinha a</p><p>coragem de reagir? Ninguém, certamente, sobretudo, porque o senhor</p><p>presidente da Assembleia Nacional não terá dado autorização para que essa</p><p>reclamação fosse entregue aos senhores deputados.</p><p>E o que faz Aristides? Decide escrever uma carta a cada um dos 120</p><p>deputados, para ter a certeza de que a vão receber, e vai entregá-la em mão</p><p>à porta da Assembleia: «Exmo. Senhor Deputado, Tendo apresentado há</p><p>cerca de três meses à Assembleia Nacional de que V. Exa. é digno membro,</p><p>uma reclamação contra uma condenação que me foi imposta por não ter</p><p>obedecido a instruções que reputei inconstitucionais, tenho a honra de rogar</p><p>a V. Exa. se digne tomar providências para que a mesma reclamação seja</p><p>objeto de devida decisão que se impõe à coletividade que em Portugal</p><p>constitui a representação política da Nação.</p><p>Se a Constituição política da República Portuguesa não é, como muito</p><p>justamente pretende o chefe do governo, um diploma de carácter fascista,</p><p>nascido duma política fascista, é forçoso reconhecer que a Assembleia</p><p>Nacional a que V. Exa. certamente se honra de pertencer, também não é</p><p>fascista e que os senhores deputados, membros dela, só denegando justiça a</p><p>quem muito justamente clama por ela e que nunca se afastou da</p><p>Constituição, podem deixar de dar uma decisão à dita reclamação a que me</p><p>refiro acima».</p><p>Na mesma folha constava a seguinte nota: «Esta carta devia ter sido</p><p>entregue a V. Exa. na data indicada nela. Foi-me, porém, devolvida em 27</p><p>de março, por ordem do senhor Dr. Albino dos Reis, presidente da</p><p>Assembleia Nacional, que tendo tido o mesmo procedimento relativamente</p><p>a todas as cartas idênticas por mim remetidas aos senhores deputados da</p><p>nação, mostrou sem dúvida não querer que estas cartas fossem conhecidas</p><p>dos seus destinatários.</p><p>Lavro, pois, aqui como cidadão português, o meu mais veemente protesto</p><p>contra um ato do senhor presidente da Assembleia Nacional, que nenhuma</p><p>lei autorizada nada justifica, mas parece representar o receio de que os</p><p>dignos representantes […]» E… perdeu-se o resto da nota.</p><p>Como já disse, o lado religioso esteve sempre presente na vida de</p><p>Aristides de Sousa Mendes, vertente na qual teve sempre o total apoio de</p><p>Angelina. Se pelo lado jurídico e político se dirigiu ao órgão mais elevado</p><p>da nação através da Reclamação à Assembleia Nacional, pelo lado religioso</p><p>dirigiu-se ao representante de Deus na terra, o Papa. Foi a 10 de maio de</p><p>1946 que escreveu ao cardeal Masella, secretário pessoal de Sua Santidade,</p><p>o Papa Pio XII (uma cópia dessa carta encontra-se na íntegra, nos Anexos</p><p>deste livro).</p><p>Nessa carta, Aristides apresenta-se como um «humílimo servo de Cristo</p><p>[…] clamando por justiça perante a mais alta autoridade espiritual do</p><p>mundo.» Expõe a situação vivida em Bordéus em 1940, e a dos refugiados</p><p>que se «expunham às fúrias do invasor sem piedade — «Hitler, o</p><p>anticristo». Fala também do seu sofrimento físico e moral, e de como</p><p>reagiu: «Caí doente com uma crise cardíaca, mas quando estava resolvido a</p><p>fazer-me substituir por esse motivo, senti que uma força estranha e</p><p>misteriosa me dava alento, e em vez de sucumbir, foi com toda a fé e</p><p>confiança em Deus que me levantei do leito para procurar salvar toda</p><p>aquela gente, cujas vidas dependiam essencialmente de mim, em momento</p><p>tão trágico.» Ao terminar, Aristides evoca o poder de Sua Santidade, o Papa:</p><p>«Sua Santidade representa Cristo na terra; é a Ele que devo dirigir-me na</p><p>minha situação aflitiva e pedir-lhe misericórdia para quem não quis senão</p><p>cumprir as palavras divinas e assim foi favorável aos judeus por amor de</p><p>Jesus-Cristo.»</p><p>As cartas para o Vaticano eram entregues no patriarcado português e os</p><p>serviços deveriam dar-lhes seguimento. Mais uma vez, uma qualquer</p><p>presença sinistra terá evitado que esta carta seguisse o seu rumo. O país era</p><p>assim… De forma que a 12 de junho de 1946 segue outra carta, mais uma</p><p>vez dirigida a Sua Eminência, o cardeal Masella: «Perdoe-me Vossa</p><p>Eminência se volto a ocupar o seu precioso tempo com o assunto sobre o</p><p>qual entreguei a Vossa Eminência, por intermédio do Patriarcado de Lisboa,</p><p>uma larga exposição. Há muito que espero que uma palavra de Vossa</p><p>Eminência possa consolar o meu coração inquieto, mas essa palavra ainda</p><p>não chegou.</p><p>Cristo disse: “Pedi e vós recebereis e tereis uma grande alegria.” Se não é</p><p>em vão que eu pedi, aguardo sempre uma consolação espiritual, visto que</p><p>nada peço a Vossa Eminência de significado material.</p><p>Há muito perdi a confiança na justiça terrena, não, porém, na justiça</p><p>divina que só pode dar consolações à alma que crê e ao coração que ama</p><p>Nosso Senhor.</p><p>Se não andei mal em salvar os judeus das garras do anticristo, faça-me</p><p>Vossa Eminência a caridade de mo dizer para que eu possa proclamar aos</p><p>meus filhos o bem e a justiça da minha conduta, para que eles possam</p><p>orgulhar-se de seu pai que só quis cumprir a lei de Deus e seguir a sua</p><p>consciência, como sempre.»</p><p>Consequências para toda a família</p><p>No início de 1945, depois de passar quase quatro anos numa “inatividade</p><p>incompreensível e injustificada”, César foi finalmente enviado para o</p><p>México, recuperando a sua atividade profissional, sendo acreditado também</p><p>em Cuba. Devido à altitude da Cidade do México começou a ter problemas</p><p>cardíacos e escreveu a Salazar pedindo para ser transferido, justificando-se</p><p>com questões de saúde. Em meados de 1946, foi colocado em Berna, como</p> <p>ministro plenipotenciário de 2.ª classe (quando se tratava de um posto de 1.ª</p><p>classe). Salazar não o promoveu a 1.ª classe, como devia, e em 1949</p><p>substituiu-o pelo seu grande amigo António Ferro, de forma polémica, e</p><p>muito incorreta, mostrando-lhe assim o seu reconhecimento pela</p><p>“propaganda” que este último lhe tinha feito durante tantos anos.</p><p>O tempo passava, e Aristides não perdia a esperança de que melhores</p><p>dias viessem, apesar do seu estado de saúde deteriorado, pelo derrame</p><p>cerebral e pela situação absurda em que se encontrava. Houve quem lhe</p><p>sugerisse que se dirigisse a um influente amigo de Salazar — António</p><p>Cerejeira, o cardeal-patriarca. Sempre otimista, o meu avô assim fez.</p><p>Finalmente, obteve uma resposta: «Que se dirigisse a Fátima e aí rezasse</p><p>pela intercessão de Nossa Senhora.»</p><p>Houve um período em que conseguiu dar algumas aulas de português a</p><p>diplomatas estrangeiros, mas a sua situação económica não se alterou.</p><p>Nunca recebeu, em ocasião alguma, a pensão da sua categoria, pois não</p><p>estava em nenhuma. O que se vê e lê em documentos oficiais referentes aos</p><p>últimos tempos da sua vida é a menção «pensão provisória» — morreu na</p><p>situação de «aguardar aposentação».</p><p>Por essa altura, o regime promoveu uma amnistia política para</p><p>funcionários do estado, e Aristides teve esperança de poder “ver alguma luz</p><p>ao fundo do túnel”. César e outros tentaram saber como pedi-la, mas mais</p><p>uma vez mergulharam no nevoeiro, na confusão do «não se aplica», etc.,</p><p>etc. O túnel fechou-se e a luz desapareceu.</p><p>No início de 1948, Angelina, depois de tantas provações, sofre uma</p><p>trombose e fica em estado de coma até 30 de agosto desse ano, dia do seu</p><p>sexagésimo aniversário e também da sua morte.</p><p>O desaparecimento da minha avó causou grande consternação em</p><p>Cabanas e em Beijós, de onde era natural. Muitas senhoras olhavam para</p><p>ela como um exemplo de “santidade”. Uma prima minha disse-me um dia</p><p>que uma senhora lhe contou que, numa ocasião, ia pela rua diante da Casa</p><p>do Passal e ao olhar para uma janela, onde se via para dentro de casa, «tê-</p><p>la-á visto com um anjinho à sua volta…».</p><p>Pedro Nuno escreveu a respeito da mãe várias vezes: «Foi uma boa</p><p>esposa, uma boa mãe, uma boa cristã, e por isso damos graças a Deus.»</p><p>Houve outras consequências a nível da família. Luís Filipe, que se tinha</p><p>tornado “secretário” do pai, agia também, desde que Angelina sofrera a</p><p>trombose, como enfermeiro da casa. Aprendera a dar injeções assim como</p><p>os cuidados básicos, precisando apenas da ajuda de Fernanda e de outras</p><p>criadas para a toilette da mãe. Sem Angelina, Luís Filipe achou chegado o</p><p>momento de partir para o Canadá, a convite de monsenhor Parent que,</p><p>desde os tempos da Bélgica, se tinha tornado amigo da família e se sentia</p><p>como se fosse seu padrinho.</p><p>A forma como o pai era tratado pelo regime não o encorajava a ficar em</p><p>Portugal. Tinha 20 anos, e monsenhor Parent, ocupando um posto de</p><p>direção, oferecia-lhe a possibilidade de continuar os estudos na famosa</p><p>Universidade Laval, na cidade de Quebeque, no Canadá, onde obteve as</p><p>melhores classificações, na sua área. Tinha já três irmãos nos Estados</p><p>Unidos desde 1945, e duas das irmãs estavam igualmente a organizar a</p><p>saída do país: Joana e Teresinha do Menino Jesus. Luís Filipe fez as malas e</p><p>partiu.</p><p>Joana e a irmã foram para a Califórnia, aproximando-se assim dos “dois</p><p>de Inglaterra”, os dois irmãos americanos que desembarcaram nas praias da</p><p>Normandia em junho de 1944. João Paulo, o mais novo de todos, também</p><p>seguirá ainda no ano de 1949 o caminho da emigração para os Estados</p><p>Unidos. Influenciado pela experiência dos irmãos, começou por se alistar</p><p>no exército do país do Tio Sam, mas para uma missão bem ao frio, lá longe</p><p>no Alasca, perto dos esquimós e dos ursos brancos.</p><p>Andrée Cibial e Marie-Rose</p><p>Quanto ao meu avô Aristides, ninguém poderá dizer o que se passou na sua</p><p>consciência a seguir à morte de Angelina. Só ele e Deus saberão.</p><p>O meu pai e os meus tios, sobretudo Aristides César, o mais velho de</p><p>todos os irmãos, e Pedro Nuno, um tio com quem tive uma relação muito</p><p>próxima, falavam-me frequentemente do sentimento de arrependimento e</p><p>de expiação que o meu avô terá experimentado. Para mim, que era bastante</p><p>jovem na altura, tornava-se difícil interpretar bem as ideias e os sentimentos</p><p>que eles tentavam exprimir em relação a uma situação que tinha ocorrido</p><p>alguns anos antes, e cujos contornos nunca foram bem conhecidos.</p><p>Nalguns postais dirigidos ao irmão nos últimos anos da sua vida, escritos</p><p>a lápis com a mão esquerda, numa letra muito tremida, vejo que Aristides</p><p>falava na aceitação do sofrimento, que recebeu para expiação dos seus</p><p>pecados. Ao falar da sua vida, escreve: «Sofro, mas sofro com amor.»</p><p>Noutro bilhete-postal típico daquela época, datado de 2 de fevereiro de</p><p>1951, já um pouco em jeito de premonição do que estava para vir, Aristides,</p><p>à chegada a Cabanas, escreve a César, com a mesma letra tremidíssima,</p><p>também a lápis: «Meu caro César, chegámos bem, mas tivemos à chegada</p><p>um grande desgosto: os gatunos assaltaram a casa, roubando louças, roupas,</p><p>etc. Deus se compadecerá de mim, que fiz voto de sofrer para desconto dos</p><p>meus pecados! Um abraço afetuoso do teu irmão muito dedicado, Aristides»</p><p>Como se pode ler no bilhete-postal, Aristides escreve «Chegámos bem».</p><p>Sim, «nós», Aristides e… Andrée Cibial! De facto, a sua consciência dizia-</p><p>lhe que havia uma criança de oito anos que vivia sem pai. E a mãe dessa</p><p>criança anunciara de forma inequívoca que o pai seria Aristides. Quando se</p><p>tem um grande coração, há coisas que não se discutem nem negoceiam. O</p><p>meu avô colocou sempre a sua consciência acima de tudo.</p><p>Após a morte de Angelina, Aristides tentou entrar em contacto com</p><p>Andrée Cibial, nomeadamente através de um padre, para dar proteção à</p><p>criança. E foi por essa via que se casou com Andrée, por procuração, numa</p><p>igreja de Salamanca. Teve de ser por procuração, porque a PIDE não lhe</p><p>deu autorização para sair, nem permitiu a entrada de Andrée em Portugal —</p><p>só o pôde fazer depois de ser legalmente sua mulher. A filha, Marie-Rose,</p><p>ficou em França, em casa dos tios-avós. Aristides conseguiu que a PIDE lhe</p><p>desse licença para ir a França conhecê-la, por quatro vezes. Em 1950,</p><p>começou o processo de adoção de Marie-Rose, concluído em 1952.</p><p>A presença de Andrée em Cabanas de Viriato, e na região, foi uma</p><p>espécie de revolução — diria mesmo “uma revolução francesa”: vestia-se</p><p>de forma nunca antes vista por aqueles lados, achavam-na estranha, bizarra.</p><p>Em suma, uma mulher incompreensível para os cabanenses, que só</p><p>conheciam a pacatez de sempre, própria de uma aldeia portuguesa. Por</p><p>vezes, Andrée provocava desacatos e discussões, era extravagante, fazia rir</p><p>as pessoas por usar chapéus exuberantes, com plumas. Deram-lhe mesmo</p><p>uma alcunha, por essa razão: “a penucha”. Ainda hoje, há quem se lembre</p><p>da “penucha” em Cabanas de Viriato.</p><p>As birras da “penucha”</p><p>Deu dores de cabeça ao meu avô… mas também o fez rir. Viveu em</p><p>Cabanas entre finais de 1949 até à morte de Aristides, em 1954. Depois</p><p>tornou-se “difícil” para as autoridades portuguesas (isto é, para a PIDE),</p><p>que detestava maçadas, e foi “deportada” várias vezes. E várias vezes</p><p>reapareceu para tentar fazer valer os seus direitos, e pedir a pensão de</p><p>viuvez que nunca existiu, pois Aristides o pouco que recebia era numa base</p><p>provisória, indefinida, e o regime, francamente, queria lá saber das</p><p>viúvas…</p><p>A 7.ª repartição da direção-geral da Contabilidade Pública enviou, em</p><p>maio de 1961, uma carta dirigida a Andrée Cibial, para uma morada em</p><p>Algés, informando-a de que «a pensão provisória que estava sendo abonada</p><p>mensalmente [a seu marido, no momento do falecimento, em 3 de abril de</p><p>1954] era de 2304$60 […] e sobre a qual pesava uma prestação de 750$60</p><p>por uma penhora ordenada pelo 2.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa.»</p><p>Deve ter sido por essa altura que Andrée protagoniza um episódio que só</p><p>deve ter acontecido uma vez na vida de Salazar: cansada da injustiça e do</p><p>poder insensível do ditador, Andrée decide dizer-lho na cara, e dirige-se</p> <p>para o Palácio de São Bento, residência do presidente do Conselho. Haveria</p><p>alguma receção com portas abertas? A filha, Marie- Rose, já não se recorda.</p><p>Do que se lembra é que Andrée conseguiu infiltrar-se numa sala e deu de</p><p>caras com Salazar, a quem disse algumas “verdades inconvenientes”. O</p><p>ditador gritou por socorro, mas Andrée, agilmente, saltou para o jardim por</p><p>uma janela aberta e nunca mais a viram... por lá.</p><p>Ainda na companhia de Aristides, contribuiu para a venda gradual do</p><p>recheio do Passal — roupas, cortinados, livros, móveis e bibelots, louças,</p><p>etc., pois o não pagamento de ordenados a partir de julho de 1940, que se</p><p>prolongou até abril/maio de 1941, altura em que começou a receber apenas</p><p>metade do vencimento simples, sem ajudas de custo, durante um ano, teve</p><p>um impacto extremamente negativo nas finanças da família, e muito</p><p>importante a nível do moral.</p><p>A partir de 1949 já todos os meus tios estavam a viver fora de Portugal, o</p><p>que facilitou o sentimento de abandono e o início da derrocada de Aristides.</p><p>O episódio que considero ser a minha última visão do meu avô, ficou</p><p>marcado pela teimosia e mau feitio de Andrée. Consigo rever com tanta</p><p>nitidez o que se passou que é por isso que acho que deve ter sido a última</p><p>vez que fui a Cabanas quando era criança, devia ter quatro anos e meio.</p><p>Estávamos em Mangualde (a uns 30 quilómetros de Cabanas), a passar uns</p><p>tempos em casa do meu avô César, o irmão gémeo de Aristides, na Quinta</p><p>Alpoim, e um dia a minha mãe anunciou que íamos de táxi a Cabanas</p><p>visitar o “avô de Cabanas”, como nós o chamávamos. Fiquei todo contente,</p><p>porque era sempre uma festa estar com ele.</p><p>Lá fomos, e o taxista parou o carro mesmo em frente ao portão principal</p><p>da casa. A minha mãe saiu do carro e foi bater à porta. O taxista apitou e as</p><p>pessoas começaram a juntar-se na perspetiva de assistir a mais algum</p><p>espetáculo. Mas nada. Não havia nenhuma reação que viesse de dentro do</p><p>Passal. As pessoas sabiam que o meu avô e Andrée estavam em casa, e que</p><p>se tratava apenas de uma birra por parte de “madame”, como ela fazia</p><p>tantas vezes. Não queria abrir. Alguém sugeriu que se fosse chamar um dos</p><p>poucos agentes da Guarda Nacional Republicana para a convencer a deixar-</p><p>nos ver o «avô de Cabanas», mas nada. Andrée não cedia. Ao fim de um</p><p>certo tempo, a minha mãe decidiu que tínhamos de regressar a Mangualde e</p><p>disse, ou mandou dizer (já se passaram muito anos, para mim), que tinha</p><p>uns bolinhos para oferecer ao avô. Foi quando se começou a sentir uma</p><p>certa vida dentro de casa: coisas a mexerem, ruídos, etc. (e não eram</p><p>fantasmas). As senhoras na rua agiam como mensageiras, e fizeram</p><p>compreender à minha mãe, através de gestos, que algo iria acontecer.</p><p>De facto, a porta principal da casa entreabriu-se ligeiramente, uma das</p><p>senhoras subiu a escadaria, levando o embrulho de papel branco que a</p><p>minha mãe tinha levado, e entregou-o a uma mão feminina que saía de</p><p>dentro da casa. Deste detalhe lembro-me com muita nitidez — a mão, que</p><p>era a única coisa que se via, pegou no embrulho e fechou a porta</p><p>imediatamente. Depois, fizeram-nos sinal da rua para olharmos para cima,</p><p>para a janela da mansarda que se abria, e vimos a cabeça do “avô de</p><p>Cabanas”, com os cabelos brancos a esvoaçarem e a olhar para nós com um</p><p>sorriso, e uma mão a acenar-nos. Que me lembre, foi a última vez que o vi.</p><p>Os últimos dias</p><p>Em 1954, Aristides de Sousa Mendes, pai de 15 filhos de dois casamentos</p><p>católicos, encontra-se quase só, apenas acompanhado da sua segunda</p><p>esposa, Andrée Cibial.</p><p>Em 1934, perde dois filhos na Bélgica. Em 1938, Isabel casa-se na</p><p>Bélgica e depois da guerra vai viver para o Congo Belga. Clotilde casa-se</p><p>em dezembro de 1939, e nesse ano está a viver em Moçambique. Em 1943,</p><p>os “dois americanos” partem para a guerra, e depois, em 1945, continuam</p><p>viagem para os Estados Unidos, onde passarão a viver. Em 1948, duas</p><p>filhas vão reunir-se aos irmãos da Califórnia, e outro segue também, além</p><p>daquele que foi para o Canadá. O mais novo, João Paulo, segue em 1949</p><p>para os Estados Unidos. Pedro Nuno nessa altura também já está no Congo</p><p>Belga há alguns anos. Geraldo vive em Angola, para onde foi em missão</p><p>militar, e onde depois ficou a trabalhar no consulado-geral da Bélgica em</p><p>Luanda, pois o curso de Ciências Económicas e Financeiras, tirado em</p><p>Lisboa, no caso dele não servia para nada sem o aval da PIDE — e foi</p><p>precisa, mais uma vez, a influência junto da Bélgica, de um cônsul em</p><p>desgraça, para que outro filho de Aristides consiga um emprego. Quanto à</p><p>pequena Marie-Rose, nunca viveu em Portugal. O filho mais velho de</p><p>Aristides e Angelina, Aristides César, vive em Coimbra, onde dá aulas.</p><p>É preciso não esquecer que em 1954 não era habitual as pessoas terem</p><p>telefone em Portugal. As comunicações mais rápidas e curtas faziam-se</p><p>através de simples bilhetes-postais, que podiam demorar vários dias a</p><p>chegar ao destino, o que explica a situação de isolamento de Aristides em</p><p>relação à família mais próxima.</p><p>O meu avô morre a 3 de abril de 1954. Tinha regressado de França, de</p><p>Ribérac, na região de Dordogne, onde estivera uns dias de visita a Marie-</p><p>Rose. Já estava doente há umas semanas, com dificuldades respiratórias e</p><p>cardíacas, e dessa última vez, quando acompanhou o pai à estação de</p><p>caminho de ferro de Angoulême, Marie-Rose sentiu que era um adeus para</p><p>sempre: «Daquela vez, tinha-o achado muito fragilizado, e ele próprio</p><p>sentia a morte por perto, pedindo o regresso a Portugal.» A pequena Marie-</p><p>Rose, com 13 anos e meio, sabia que os últimos anos tinham sido severos</p><p>com o pai. As complicações sucediam-se, e durante as estadas em França</p><p>fez várias visitas ao médico, que lhe recomendou uma intervenção cirúrgica</p><p>ao “grande simpático”. Para Marie-Rose, acabavam-se para sempre as</p><p>visitas deste pai misterioso, que ela sabia ter sido diplomata, mas de quem a</p><p>mãe nunca revelou a verdadeira heroicidade de 1940. Era o pai que aparecia</p><p>à saída da escola em Ribérac, e que ela gostava de apresentar às amigas,</p><p>«um homem cheio de joie de vivre e de belle allure».</p><p>A intervenção cirúrgica foi feita num hospital do Porto, provavelmente</p><p>um ano antes da sua morte. Os fundos para essa operação, segundo me</p><p>contou Marie-Rose, terão vindo através do irmão gémeo e de outros</p><p>parentes, pois a carta enviada pela mão de Andrée Cibial a Rothschild</p><p>(aquele mesmo que já tinha ajudado a seguir à guerra, a pedido do meu pai),</p><p>expondo a grave situação, desta vez recebeu reposta negativa.</p><p>Para o alojamento no Porto valeu-lhe a “petiza”, a “famosa” criada dos</p><p>tempos da Bélgica e de Bordéus, que vivia agora no Porto, já casada. E era</p><p>o marido que conduzia Aristides no seu próprio carro e lhe dava todo o</p><p>apoio.</p><p>Morreu em Lisboa. Tinha sido admitido no Hospital da Ordem Terceira</p><p>de São Francisco, à qual pertencia, tal como o irmão César, e aí acabou por</p><p>sucumbir ao fim de três dias. Talvez só, ou talvez na companhia de Andrée,</p><p>nunca saberemos.</p><p>José da Mata de Sousa Mendes, filho de César, com 18 anos nessa altura,</p><p>lembra-se desses últimos momentos. Escreveu no posfácio da versão</p><p>portuguesa de O Justo de Bordéus, de José-Alain Fralon, a respeito do seu</p><p>tio Aristides: «Não foi letra morta a confissão cristã proclamada anos antes</p><p>na pedra dos monumentos (colocados junto à sua casa em Cabanas), pois</p><p>que ficou patenteada nas pedras vivas dos milhares que salvou. […] Guardo</p><p>dele na memória um lampejo de generosidade e alegria. […] O rosto</p><p>persistia acolhedor, mas o seu estado de saúde e as condições de vida</p><p>tinham-se deteriorado a tal ponto, que me deixaram profundamente</p><p>consternado. Nunca mais esqueci. […] No Hospital da Ordem Terceira, em</p><p>Lisboa, pelas quatro horas da tarde do sábado 3 de abril de 1954, morreu</p><p>Aristides de Sousa Mendes. O seu corpo foi envolto no hábito de S.</p><p>Francisco. Disse-me meu pai: “O tio Aristides foi um grande homem.”»</p><p>José da Mata de Sousa Mendes informou-me que a urna foi enviada para</p><p>o jazigo de família em Cabanas de Viriato, onde César e outros parentes o</p><p>esperavam, e aí ficou junto dos seus pais, de Angelina, e dos seus filhos</p> <p>Manuel e Raquel.</p><p>CAPÍTULO IX</p><p>Processo disciplinar</p><p>A sentença de Salazar, vendetta, o envelope lacrado</p><p>O processo disciplinar por desobediência movido por Salazar contra o meu</p><p>avô foi um verdadeiro caso de “antes de o ser já o era”. A sentença foi dada</p><p>e executada antes do julgamento, e a defesa de Aristides inútil. No entanto,</p><p>o meu avô não desistiu e recorreu até às últimas instâncias ajudado por um</p><p>jovem advogado, Adelino da Palma Carlos. Mas só depois do 25 de Abril,</p><p>anos após a sua morte, o envelope lacrado com o seu processo — do qual</p><p>nem a família conhecia a existência — seria aberto e a injustiça de todo o</p><p>caso revelada.</p><p>Ainda antes de ter dado início a qualquer processo disciplinar contra</p><p>Aristides de Sousa Mendes, Salazar avisa o seu embaixador em Londres,</p><p>Armindo Monteiro, de que o «cônsul que tinha atribuído vistos em Bordéus,</p><p>em contravenção de instruções expressas do ministério, já foi afastado». A</p><p>informação é de 2 de julho de 1940.</p><p>Dois dias depois, o ministro manda instaurar um processo disciplinar</p><p>cujo desfecho está definido mesmo antes do seu início, e até já é conhecido.</p><p>É, como se costuma dizer, um processo “para inglês ver”. Apesar de haver</p><p>um regulamento disciplinar em vigor (o de 1913), o regime faz letra morta</p><p>do que nele está escrito. Uma situação difícil “de engolir” noutros países</p><p>onde a democracia e o respeito pelas leis eram uma realidade, ao contrário</p><p>do que acontecia no Portugal subjugado ao chamado Estado Novo, e onde o</p><p>gesto de Aristides era conhecido, apenas por ter sido transmitido por muitos</p><p>daqueles a quem conseguira salvar a vida.</p><p>Uma das últimas fotografias de Aristides de Sousa Mendes, envelhecido pelas</p><p>provações que passara e pelo AVC que sofrera.</p><p>É um processo disciplinar “original” por muitos motivos. Desde logo,</p><p>porque ambas as partes concordam com o delito ou infração praticada:</p><p>desobediência. Os autores do processo acusam o infrator de desobediência a</p><p>ordens expressas contidas na Circular 14 — proibição total de passar vistos</p><p>de entrada em Portugal a pessoas de religião judaica e outros — e o infrator</p><p>aceita que, de facto, houve desobediência, mas alega tratar-se de uma</p><p>«desobediência que honra». Uma desobediência por cima, para respeitar a</p><p>Constituição portuguesa e os Direitos Humanos (mesmo antes da</p><p>Declaração Universal de 1948), e para não discriminar pessoas com base</p><p>em religiões ou quaisquer outros critérios.</p><p>A sociedade portuguesa de 1940 estava muito dividida no que dizia</p><p>respeito aos seus sentimentos por Salazar. E ainda hoje, apesar da revolução</p><p>de abril de 1974, que permitiu ao país viver em democracia, a memória do</p><p>ditador suscita ideias contraditórias em alguns sectores: há quem insista em</p><p>perpetuar a memória de um Salazar “autoritário, mas bonzinho”, pondo em</p><p>dúvida que tenha, sequer, colaborado com o nazismo (nem mesmo de forma</p><p>não consciente). Como se barrar o caminho da salvação a potenciais vítimas</p><p>da perseguição e dos campos de concentração e da morte, só para dar um</p><p>exemplo que me toca mais de perto, não fosse colaboração suficiente com o</p><p>horror nazi…</p><p>Há quem garanta que esta “é uma história mal contada”. O já falecido</p><p>historiador José Hermano Saraiva, conhecido admirador do ditador, disse e</p><p>escreveu: «Aristides de Sousa Mendes é uma invenção de uma certa</p><p>esquerda para denegrir a memória de Salazar.» E mais: «Quem salvou os</p><p>refugiados em 1940 foi o comboio […] para lá, levavam volfrâmio, e para</p><p>cá traziam refugiados.» É a versão do “volfrâmio humanitário”, uma</p><p>perigosa tentativa de revisionismo. José Hermano Saraiva nem pensou nas</p><p>questões técnicas: comboios para minério (abertos) não são a mesma coisa</p><p>que comboios para passageiros. É verdade que os nazis também usavam</p><p>comboios de carga (fechados) para levar pessoas para os campos de</p><p>concentração… E há outro detalhe: a bitola dos comboios ibéricos não é a</p><p>mesma dos comboios para lá da fronteira de Hendaye.</p><p>Para outros, a desobediência à Circular 14 é um episódio que em vez de</p><p>nos encher de orgulho nos enche de embaraço, e é melhor nem falar no</p><p>assunto. Seria muito melhor se fosse mentira. E há, na realidade, tentativas</p><p>de contar os factos de outra maneira, algumas que demonstram até uma</p><p>abundante criatividade.</p><p>Vendetta</p><p>A 15 de abril de 1996, o parlamento do estado da Califórnia aprova uma</p><p>resolução em que presta homenagem a Aristides de Sousa Mendes, tal como</p><p>acontecera em tantos outros estados americanos, e até a nível do estado</p><p>federal, em Washington D.C.</p><p>Tempos felizes na América. Aristides escreveu na fotografia dos nove filhos que então</p><p>tinha: “These are my jewels!”</p><p>O texto dessa resolução aprovada pela assembleia da Califórnia destaca o</p><p>percurso heroico do cônsul de Bordéus durante a Segunda Guerra Mundial.</p><p>Inclui mesmo considerandos que descrevem a chegada a Lisboa de</p><p>Aristides de Sousa Mendes em junho/julho de 1940, data que, consideram</p><p>os californianos, «marca o início de uma vendetta que o levará</p><p>gradualmente à pobreza; o Ministério dos Negócios Estrangeiros, acusando-</p><p>o de desobediência, expulsou-o do serviço diplomático, privando-o de</p><p>pensão e benefícios acumulados ao longo de 30 anos, e além disso, a</p><p>situação pública em que caiu, impediu-o de exercer advocacia.»</p><p>Ao analisarem os factos e os documentos constantes do processo</p><p>disciplinar movido a Aristides de Sousa Mendes em 1940, os deputados</p><p>americanos concluem que se tratou simplesmente de uma “vendetta”. Pelo</p><p>visto, a mesma opinião de um diplomata português, o embaixador Bessa</p><p>Lopes, que a pedido de Melo Antunes, ministro dos Negócios Estrangeiros</p><p>no pós-25 de Abril, abriu o envelope lacrado dentro do qual se encontrava</p><p>fechado, desde outubro de 1940, todo o “infame processo”, para que fosse</p><p>finalmente analisado.</p><p>No seu relatório, o embaixador Bessa Lopes escreve, após análise do</p><p>processo: «Não é de excluir que, a coberto de altas diplomacias, houvesse</p><p>ajuste de contas e de ódios velhos que não cansam». Uma clara referência</p><p>ao “velho episódio” entre o irmão gémeo de Aristides, César, quando era</p><p>ministro dos Negócios Estrangeiros, em 1932, e o famoso conde Tovar, que</p><p>lhe pedira “o favor” de ser reintegrado após nove anos de disponibilidade, e</p><p>a quem César informara, por escrito, que para esses casos havia regras</p><p>estabelecidas (por outras palavras, César não fazia favores a ninguém).</p><p>Tovar respondeu ao irmão gémeo de Aristides, em carta pessoal que existe</p><p>no espólio da família Sousa Mendes «pode ser que um dia venha a ter</p><p>necessidade de mim…». Em 1940, Tovar foi nomeado Relator do Processo</p><p>Disciplinar contra Aristides de Sousa Mendes.</p><p>Como é que Tovar, que podia ser considerado “parte interessada”, é</p><p>nomeado para Relator deste processo? E como se não bastasse, é, em</p><p>simultâneo, nomeado para o Conselho Disciplinar. Como muito bem frisou</p><p>Rui Afonso no seu livro Injustiça, Tovar é ao mesmo tempo acusador e juiz.</p><p>Mistérios que provavelmente nunca serão esclarecidos… o que também</p><p>agora já não teria grande importância.</p><p>O embaixador Bessa Lopes escreve também no seu parecer sobre o</p><p>processo disciplinar: «Note-se que o ministro dos Negócios Estrangeiros</p><p>[Salazar], designa como Relator do Parecer do Conselho Disciplinar o</p><p>próprio participante ou denunciante da falta!» Bessa Lopes acrescenta ainda</p><p>que, para mais, Tovar, «repele a opinião do instrutor do processo [Paula</p><p>Brito], que propunha uma simples pena de “suspensão de exercício e</p><p>vencimento de 30 a 180 dias”.» Claro que Tovar rejeita essa sanção, pois</p><p>Salazar tinha sido bem claro ao informar, a 2 de julho, que «o cônsul já foi</p><p>afastado» e esse era o castigo a que era preciso chegar. Mas Salazar</p><p>recompensou bem o conde de Tovar por esta preciosa colaboração. Depois</p><p>deste processo, enviou-o para o “paraíso”: primeiro, para Berlim (bem perto</p><p>de Hitler, com a possibilidade de o ver ao vivo), e depois para o Vaticano (à</p><p>procura de Deus), o posto mais cobiçado por alguns diplomatas</p><p>portugueses.</p><p>Instrução, acusação e defesa</p><p>Todo o processo é tão extraordinário, que é impossível não o citar sempre</p><p>que se fala ou escreve sobre o cônsul de Bordéus.</p> <p>Apesar do muito que já se</p><p>escreveu sobre este assunto, sinto que este livro não ficaria completo sem</p><p>referir os aspetos mais importantes de um documento profundamente</p><p>injusto, que destruiu o meu avô, separou a família, e ainda hoje é objeto de</p><p>discussão em livros, estudos, investigações, e até teses de doutoramento.</p><p>Fotografia de Gigi e Aristides, enviada a César.</p><p>O instrutor do processo é Paula Brito, e o relator é o conde de Tovar, que</p><p>critica o instrutor pela falta de rigor na instrução. Considera que o instrutor,</p><p>entre várias diligências que deveria executar, não ouviu nem um único</p><p>beneficiário da “desobediência” e nem uma única vez mencionou Bordéus,</p><p>o posto oficial de Aristides de Sousa Mendes; Paula Brito fala apenas de</p><p>Bayonne e Hendaye. Uma instrução bastante incompleta, de facto, talvez a</p><p>preparar já a decisão que Salazar irá tomar, de “repelir a pena proposta por</p><p>Paula Brito”, abrindo assim a porta para a sanção dupla e ilegal que o</p><p>ministro assinou na sua sentença de 30 de outubro de 1940.</p><p>Do lado da defesa há três testemunhas: Francisco de Calheiros e</p><p>Menezes, ministro de Portugal em Bruxelas; Agapito Pedroso Rodrigues,</p><p>inspetor consular; Agnelo Lopes da Cunha Pessoa, cônsul de 1.ª classe. Os</p><p>dois últimos foram chamados apenas para testemunharem do bom</p><p>comportamento e notoriedade de Aristides de Sousa Mendes, pois o</p><p>testemunho principal viria de Calheiros e Menezes, que presenciara a</p><p>invasão de França em junho de 1940. Paula Brito indica três atenuantes:</p><p>bom comportamento profissional anterior; confissão espontânea das</p><p>infrações; relevantes serviços pelos quais foi louvado por despacho de 14 de</p><p>julho de 1935. Atenuantes que serão liminarmente rejeitadas pelo relator, o</p><p>conde de Tovar.</p><p>Do lado da acusação há a considerar: o telegrama n.º 101 do embaixador</p><p>em Madrid, Pedro Teotónio Pereira, de 25 de junho de 1940; o relatório de</p><p>Armando Lopo Simeão sobre a sua missão especial a Bayonne, de 1 de</p><p>julho de 1940; o depoimento do capitão Agostinho Lourenço, diretor da</p><p>PVDE, de 15 de julho de 1940; o depoimento do embaixador Pedro</p><p>Teotónio Pereira, de 26 de julho de 1940. Vou apenas destacar algumas</p><p>partes que me parecem de maior relevância.</p><p>Telegrama n.º 101, de Teotónio Pereira, de 25 de junho de 1940,</p><p>para o MNE: «[…] encontrei zona fronteira franco-espanhola</p><p>situação caótica e suscetível produzir-nos várias complicações. Toda</p><p>massa estrangeiros existentes em França empurrada por invasão</p><p>alemã refluiu cidades sul e pretendia obter visto para Portugal. Entre</p><p>esses estrangeiros figuravam larga cópia de judeus […] que se</p><p>esforçavam com ou sem motivo por fugir França todo o custo.</p><p>Nossos vice-consulados sul de França mostraram-se desorientados,</p><p>situação que se agravou pelo facto cônsul em Bordéus (ASMendes)</p><p>desvairado por acontecimentos começar dando vistos grande</p><p>quantidade […] acusando-se nosso país de dar acolhimento escória</p><p>dos regimes democráticos e elementos vencidos em fuga perante</p><p>vitória alemã. Ficou entendido que dávamos por nulos vistos cônsul</p><p>de Portugal em Bordéus.»</p><p>Relatório de Armando Lopo Simeão, sobre a sua missão especial a</p><p>Bayonne, de 1 de julho de 1940: «Aqui me foi comunicado que o</p><p>Senhor Aristides Mendes […] começou concedendo vistos a toda a</p><p>gente que os solicitava, alegando, ao que parece, que era necessário</p><p>salvar toda essa gente. Uma multidão enorme enchia todas as ruas</p><p>dos arredores do consulado onde só podia circular-se acompanhado</p><p>pela força pública […] foi-me extremamente difícil entrar na</p><p>chancelaria do consulado apesar de ir acompanhado pelo cônsul […]</p><p>todos os corredores e escadas de acesso à chancelaria estavam</p><p>apinhados de gente […] Não me foi possível exercer qualquer</p><p>espécie de controlo já que os vistos continuaram a ser dados sem</p><p>registo nem cobrança de emolumentos […] constava que o cônsul</p><p>em Bordéus dava vistos mesmo fora da chancelaria […] de resto</p><p>toda a demora que houvesse nesse serviço só nos era favorável, por</p><p>evitar a entrada em Portugal de uma massa ignóbil e em grande parte</p><p>indesejável sob o ponto de vista social. […] Os pedidos eram</p><p>apreciados um por um, sendo concedidos apenas os autorizados</p><p>pelas autoridades portuguesas em Lisboa […] há ainda a acrescentar</p><p>as enormes despesas de gasolina efetuadas pelo cônsul (ASMendes)</p><p>e seus auxiliares com viagens a Hendaye, Irun, San Sebastian e Pau</p><p>[…].»</p><p>Neste pequeno extrato do relatório de Lopo Simeão sobressaem alguns</p><p>aspetos relevantes, a saber: a quantidade enorme de pessoas mencionadas e</p><p>o papel ativo de Aristides de Sousa Mendes para «salvar toda essa gente». É</p><p>que ainda hoje, em 2017, como já aqui mencionei, anda um certo</p><p>embaixador do regime salazarista a dizer que em 1940 ninguém estava em</p><p>perigo de vida em França, e estas atitudes não podem deixar de ser postas</p><p>em destaque quando falamos do que se passou naquela época.</p><p>Depoimento do capitão Agostinho Lourenço, diretor da PVDE, de</p><p>15 de julho de 1940: «[…] tendo conhecimento da participação do</p><p>conde de Tovar, confirma os factos nela relatados […] tendo estado</p><p>em Vilar Formoso durante os últimos dias de junho do corrente ano,</p><p>a fim de orientar a entrada de refugiados, verificou que a maioria dos</p><p>estrangeiros que se apresentavam para entrar em Portugal, traziam os</p><p>seus documentos visados pelo nosso consulado em Bordéus; que</p><p>entre esses estrangeiros se encontravam bastantes de nacionalidades</p><p>a quem por determinação do Ministério dos Negócios Estrangeiros,</p><p>estava interdita a concessão de qualquer visto mas que houve a</p><p>necessidade de deixar entrar no país visto que as autoridades</p><p>espanholas não consentiam o seu retorno […] que muitos dos vistos</p><p>foram apostos em documentos que nem sequer passaportes eram:</p><p>simples papéis de identidade, válidos para as autoridades locais,</p><p>serviram ao senhor cônsul em Bordéus como documento bastante</p><p>para viajar […].»</p><p>Depoimento do embaixador Pedro Teotónio Pereira, 26 de julho</p><p>de 1940: «[…] Surpreendido com tais factos que contradiziam</p><p>inteiramente as instruções que sabia enviadas pelo Ministério dos</p><p>Negócios Estrangeiros aos nossos cônsules, resolvi deslocar-me para</p><p>a fronteira de Irun para apurar o que se passava e adotar as</p><p>providências convenientes. Uma vez em Irun, vi que a situação ia</p><p>tomando a cada hora proporções mais graves e que estava eminente</p><p>um conflito com as próprias autoridades espanholas em virtude da</p><p>massa de gente que pretendia passar para Portugal. Verifiquei</p><p>também que a quase totalidade dos vistos fora concedida pelo cônsul</p><p>em Bordéus. Desloquei-me em seguida a Bayonne e ali me foi dito</p><p>pelo cônsul Faria Machado que Aristides de Sousa Mendes […]</p><p>continuara a dar vistos, ordenando ainda a ele, F. Machado, que</p><p>procedesse de igual forma e sem restrições de nenhuma espécie. Só</p><p>no dia seguinte vim a encontrar o cônsul A. Sousa Mendes e pedi-lhe</p><p>que me explicasse tão insólita atuação. De tudo o que ouvi e do seu</p><p>aspeto de grande desalinho deixou-me a impressão dum homem</p><p>perturbado e fora do seu estado normal. Mostrou não ter a mais</p><p>ligeira noção dos atos cometidos e disse não possuir quaisquer</p><p>instruções contrárias ao procedimento que seguira. O procedimento</p><p>do Sr. Aristides de S. Mendes implicara tal desvairamento que ao</p><p>comunicar logo em seguida às autoridades espanholas a decisão de</p><p>dar por nulos os vistos concedidos pelo consulado em Bordéus a</p><p>numerosíssimas pessoas que ainda se encontravam em França, não</p><p>tive dúvida em declarar que era minha convicção que o referido</p><p>cônsul havia perdido o uso da razão. A bem da nação.»</p><p>Neste aceso encontro entre Teotónio Pereira e Aristides houve troca de</p><p>palavras desagradáveis. A determinada altura, Teotónio Pereira declara que</p><p>Aristides deve ter enlouquecido, ao que este lhe responde: «Mas será</p><p>preciso ser-se louco para fazer o que está certo?»</p><p>Do lado da defesa, é de grande importância ler o depoimento de</p><p>Francisco de Calheiros e Menezes, e a resposta de Aristides de Sousa</p><p>Mendes, um texto inspirador e de grande beleza, também integralmente</p><p>reproduzidos nos Anexos.</p><p>Depoimento de Francisco de Calheiros e Menezes, ministro de</p><p>Portugal em Bruxelas</p> <p>e testemunha de defesa, de 19 de agosto de</p><p>1940: «[…] Foi nessa tarde que o depoente visitou pela primeira vez</p><p>o consulado de Portugal em Bordéus […]. Entretanto, o cônsul</p><p>doutor Mendes fazia saber ao depoente que se não tivesse</p><p>inconveniente, o receberia no seu quarto, mesmo deitado. O</p><p>depoente fora cumprimentá-lo, demorando-se apenas uns instantes</p><p>por ter encontrado o arguido de facto cansado. O cônsul Dr. Mendes</p><p>dissera então ao depoente que tinha tido nos últimos dias um</p><p>trabalho extenuante […] que havia milhares e milhares de fugitivos</p><p>procurando abrigo sem o encontrar. Numa palavra: mais uma vez a</p><p>mesma impressão de pânico coletivo com a ideia fixa de fugir […]</p><p>Na manhã seguinte dirigiu-se o depoente a Bayonne […] o</p><p>consulado de Portugal estava situado num péssimo terceiro andar a</p><p>que dava acesso uma difícil, frágil e detestável escada de madeira</p><p>[…]. O Dr. Mendes viera de Bordéus para transmitir as instruções</p><p>que recebera e que eram de visar todos os passaportes para Portugal</p><p>[…] o depoente julgou firmemente que eram verídicas e que, por</p><p>razões que desconhecia, se permitia a entrada em Portugal de</p><p>refugiados até nova ordem. Sabe bem o depoente que um</p><p>funcionário não tem que ser humano quando se trate de cumprir</p><p>ordens, seja de que natureza forem. Mas nem todos possuem idêntica</p><p>resistência moral que lhes permita enfrentar situações como as que o</p><p>depoente e o arguido sofreram. Pode o depoente garantir que para</p><p>resistir às súplicas e imploração de tantos desgraçados apavorados</p><p>com a aproximação do invasor e ao justo medo do campo de</p><p>concentração, ou, pior ainda, do fuzilamento, se requeria uma</p><p>coragem pouco banal […] eram milhares de pessoas angustiadas que</p><p>haviam sido metralhadas ou bombardeadas na fuga […] não viu o</p><p>depoente senão pessoas a quem faltava inteiramente a serenidade. É</p><p>neste ambiente, afigura-se ao depoente, que tem de ser vista e</p><p>julgada a atitude do arguido […] crê o depoente que o cônsul em</p><p>Bordéus se deixou dominar, como tantos outros, pelo horror da</p><p>tragédia a que assistia.»</p><p>Estes excertos são muito importantes, pois os de acusação atribuem a</p><p>Aristides de Sousa Mendes a autoria de quase todos os vistos assinados em</p><p>passaportes — e veremos quantos poderão ter sido, mais à frente — e o</p><p>depoimento de Calheiros e Menezes põe em relevo, de forma</p><p>impressionante, o drama dos refugiados, numa altura em que os</p><p>revisionistas tentam alterar os factos históricos, e, no caso do meu avô,</p><p>tentam reduzi-lo a um louco, tal como na altura Teotónio Pereira tentou</p><p>fazer, e nos nossos dias outros da sua laia ainda não desistiram de tentar</p><p>fazer passar essa ideia.</p><p>Outro aspeto interessante, é que Calheiros e Menezes, neste seu</p><p>depoimento redigido em 1940, usa a expressão «campos de concentração»,</p><p>que já existia desde 1933 (em Dachau), ano em que Hitler subiu ao poder, e</p><p>que era já de uso comum, não tendo sido necessário esperar pela</p><p>Conferência de Wannsee, em 1942, para se começar a utilizar tal</p><p>designação. Significa isto que era normal e corrente falar-se desses campos</p><p>e desses métodos de horror ainda antes de a guerra ter sido declarada, em</p><p>inícios de setembro de 1939. Os refugiados sabiam do que fugiam, e a</p><p>Circular 14 surgiu exatamente por causa disso, para tentar conter um dilúvio</p><p>de refugiados, que, na opinião de Salazar, poderia causar embaraços a</p><p>Portugal e situações de desprestígio junto das autoridades nazis, assim</p><p>como eventuais desordens.</p><p>A defesa de Aristides de Sousa Mendes é longa, pois contém respostas e</p><p>observações apropriadas e pertinentes a todos os 15 artigos de acusação. Tal</p><p>como fiz para os depoimentos anteriores, apenas seleciono os que me</p><p>parecem mais a propósito, encontrando-se nos Anexos o texto na íntegra.</p><p>Em carta dirigida ao ministro dos Negócios Estrangeiros (Salazar), o meu</p><p>avô defende-se assim:</p><p>«Intimado a responder à nota de culpa que me foi entregue pelo</p><p>senhor Dr. Francisco de Paula Brito em data de 3 de agosto corrente,</p><p>tenho a honra de expor a V. Exa. o seguinte: que […] era realmente</p><p>meu objetivo “salvar toda aquela gente”, cuja aflição era</p><p>indescritível: uns tinham perdido os seus cônjuges, outros não</p><p>tinham notícias dos filhos extraviados, alguns tinham visto sucumbir</p><p>pessoas queridas sob os bombardeamentos alemães que todos os dias</p><p>se renovavam e não poupavam os fugitivos apavorados. Quantos</p><p>tiveram de inumá-las antes de prosseguirem na louca correria da</p><p>fuga! Mas, além deste aspeto emocionante ao máximo, que me</p><p>enchia de comiseração por tanto infortúnio, outro havia para mim</p><p>que não era para desprezar, o da sorte que estava reservada a tanta</p><p>gente se caísse nas mãos do inimigo […] muitos deles eram judeus</p><p>que já perseguidos antes, procuravam angustiosamente escapar ao</p><p>horror de novas perseguições, por fim um sem número de mulheres</p><p>de todos os países invadidos que procuravam evitar ficar à mercê da</p><p>brutal sensualidade teutónica.</p><p>Junte-se a este espetáculo o de centenas de crianças que,</p><p>acompanhando os pais, participavam dos seus sofrimentos e</p><p>angústias, demandando cuidados que eles, naquela situação, lhes não</p><p>podiam prestar. Pensemos ainda que toda esta multidão, por falta de</p><p>alojamento, dormia nas ruas e praças públicas sujeita à intempérie.</p><p>Quantos suicídios e outros atos de desespero se produziram, quantos</p><p>atos de loucura de que eu próprio fui testemunha! Tudo isto não</p><p>podia deixar de me impressionar vivamente, a mim, que sou chefe de</p><p>numerosa família e compreendo, melhor do que ninguém, o que</p><p>significa a falta de proteção à família. Daí a minha atitude, inspirada</p><p>única e exclusivamente nos sentimentos de altruísmo e de</p><p>generosidade de que os portugueses, através dos seus oito séculos de</p><p>história, souberam tantas vezes dar provas eloquentes e que tanto</p><p>ilustram os nossos feitos heróicos. Se me é permitido focar um facto</p><p>que me diz pessoalmente respeito, contarei a V. Exa. que, tendo</p><p>passado pela Praça da Prefeitura de Bayonne, depois de conhecida a</p><p>minha atuação consular (a mesma que é considerada desprestigiante</p><p>para Portugal no número a que respondo), fui alvo de grande</p><p>manifestação por parte de muitas centenas de pessoas, que</p><p>entusiasticamente aclamavam Portugal e a V. Exa…</p><p>[…] Procurei honrar a missão que me estava confiada e defender o</p><p>nosso bom nome e prestígio […] posso ter errado, mas se errei não o</p><p>fiz com intenção, tendo procedido sempre segundo os ditames da</p><p>minha consciência que, apesar do esgotamento nervoso que sofri e</p><p>sofro ainda pelo excesso de trabalho suportado, passando semanas</p><p>quase sem dormir, nunca deixou de me guiar no cumprimento dos</p><p>meus deveres, com pleno conhecimento das minhas</p><p>responsabilidades.»</p><p>Do parecer do relator do Processo Disciplinar, conde de Tovar, de 19 de</p><p>outubro de 1940, vou sublinhar alguns parágrafos que resumem o estado de</p><p>espírito desse senhor em relação a este caso:</p><p>«[…] Em 18 ou 19 de junho o arguido (ASM) apresenta-se no</p><p>consulado em Bayonne (que dele depende) e ordena ao cônsul Faria</p><p>Machado que conceda independentemente de consulta e</p><p>gratuitamente, todos os vistos que lhe sejam pedidos […].</p><p>O arguido invoca invariavelmente considerações de ordem</p><p>sentimental e humanitária […] esta construção do arguido suscita,</p><p>porém, quanto a mim, duas objeções de peso: a primeira é que esse</p><p>impulso irresistível dos sentimentos humanitários de ASMendes não</p><p>se verifica apenas em junho de 1940 por ocasião da grande afluência</p><p>dos fugitivos vindos do norte de França. Já em novembro de 1939 o</p><p>arguido visava passaportes com desrespeito pelas instruções deste</p><p>ministério, e para desculpar-se dizia no seu ofício: “Espero que V.</p><p>Exa. se digne relevar-me da irregularidade cometida que foi</p><p>inspirada em sentimentos de humanidade […].</p><p>[…] Esta inconsciência do arguido, a sua falta de critério, a sua</p><p>incompreensão das suas responsabilidades no serviço público e da</p><p>sua própria razão de ser como funcionário é que, a meu ver,</p><p>constituem a feição mais impressionante e confrangedora deste</p><p>processo disciplinar.</p><p>O arguido tem 55 anos de idade e 30 de carreira. Não é nesta idade e</p><p>depois de tantos anos de serviço que se muda</p> <p>de mentalidade e de</p><p>procedimento.</p><p>Na defesa agora apresentada pelo arguido não se revela nem</p><p>arrependimento nem propósito de emenda: apenas incompreensão e</p><p>jactância. Qualquer que seja o castigo que se lhe aplique, estou</p><p>persuadido de que o Sr. Aristides de S. Mendes considerá-lo-á</p><p>imerecido e continuará a atuar como sempre atuou e a ser o que</p><p>sempre foi. Depois de cuidadosamente examinado o processo, julgo</p><p>o arguido insuscetível de compenetrar-se de que a aceitação do cargo</p><p>e dos vencimentos que o Estado lhe dá, envolve para ele a obrigação</p><p>inelutável de proceder em estrita conformidade com as ordens que</p><p>recebe.</p><p>Por ser esta a minha convicção, dificilmente poderei, dada a</p><p>incapacidade profissional do arguido, subscrever, como vogal do</p><p>Conselho deste ministério, alguma futura proposta para a sua</p><p>colocação num consulado geral ou num consulado de primeira</p><p>classe.»</p><p>Tovar prepara bem o terreno para Salazar poder aplicar a sua pena dupla</p><p>e ilegal de «um ano de inatividade com metade do vencimento», seguida de</p><p>“Aposentação”, ficando em paz com a sua consciência.</p><p>E para terminar, o conde de Tovar escreve: «Sou de parecer que a</p><p>qualquer das desobediências, corresponde a penalidade prevista no n.º 8 do</p><p>citado artigo 18.º de regulamento disciplinar; e que em razão da acumulação</p><p>de infrações e reincidência o arguido está incurso na penalidade constante</p><p>do n.º 9 do mesmo artigo: regresso à categoria imediatamente inferior.»</p><p>Todo o processo foi em seguida guardado num envelope e lacrado,</p><p>significando que era confidencial e não poderia ser aberto sem autorização</p><p>superior.</p><p>Cartões de visita e de apresentação de vários membros da família.</p><p>O envelope lacrado</p><p>Foram precisos 36 anos, mais a morte do ditador, uma revolução em 1974 e</p><p>a queda do regime, até que, já em democracia, um ministro dos Negócios</p><p>Estrangeiros, Melo Antunes, se tenha dignado mandar romper esse lacre,</p><p>para que finalmente o país pudesse ter acesso a tal processo e os</p><p>descendentes do cônsul de Bordéus pudessem começar a pensar que iria ser</p><p>feita justiça. Essa decisão veio dar seguimento ao pedido de uma das filhas</p><p>de Aristides de Sousa Mendes, Joana, que morava nos Estados Unidos</p><p>desde 1948.</p><p>Bessa Lopes, o embaixador nomeado para analisar o processo, refere-se à</p><p>“exposição” de Miss Sousa Mendes (Joana), dizendo que está</p><p>«devidamente documentada e é merecedora da melhor atenção, por razões</p><p>humanitárias, políticas e diplomático-jurídicas». A data do despacho do</p><p>ministro para a abertura do envelope lacrado é de 17 de maio de 1976,</p><p>tendo a receção dessa “exposição” sido registada no MNE, a 12 de agosto</p><p>de 1974.</p><p>O embaixador sublinha, na resposta à minha tia Joana, que se trata de um</p><p>caso de «alto significado na história diplomática portuguesa» no decurso do</p><p>segundo conflito mundial.</p><p>No relatório que elaborou sobre a sua análise ao processo, o embaixador</p><p>Bessa Lopes considera que «não foi apenas por motivos de desobediência</p><p>funcional que Mendes foi afastado da carreira, visto que à desobediência,</p><p>mesmo escandalosa, corresponde na lei uma mera pena de suspensão. Trata-</p><p>se de matéria política e diplomática. De início foi à “besta nazi” que o</p><p>governo de Salazar quis obedecer, sendo, portanto, cúmplice dos crimes</p><p>julgados em Nuremberga. Depois, finda a guerra, foi a famosa teimosia do</p><p>homem que teimava em durar, sem arredar pé das decisões tomadas, mesmo</p><p>sob o signo doutro contexto histórico, com o apoio dos que teimavam em</p><p>manter os seus privilégios […].»</p><p>O embaixador Bessa Lopes destaca ainda: «[…] depois de o processo ter</p><p>sido encerrado em envelope lacrado até aos nossos dias, pôs-se a circular</p><p>nos corredores do MNE que ASMendes saiu para a praça pública a dar</p><p>vistos a granel a quem queria fugir para Portugal. Por vezes, insinua-se</p><p>ainda que simultaneamente com o show existia um business […]. Tal versão</p><p>dos factos, da personalidade de Mendes, e sobretudo dos motivos da sua</p><p>atuação, é inteiramente falseada.</p><p>Aos 55 anos de idade, ASMendes arriscou a carreira por motivos</p><p>humanitários, quando os colegas lhe chamavam louco (ver depoimento de</p><p>Teotónio Pereira).» O embaixador acrescenta: «Mendes foi um português</p><p>que se foi louco, o foi por escassos três dias, à maneira de São Paulo</p><p>(paixão cega em Cristo, quer dizer, na humanidade digna e liberta).</p><p>Colocou-se moralmente acima do momento que então se vivia!» Bessa</p><p>Lopes resume o despacho ministerial contra Sousa Mendes como</p><p>«hipócrita, ilegal e iníquo (por tudo isso, o processo conservava-se muito</p><p>bem guardado em envelope lacrado). Todo o processo constitui uma farsa</p><p>inquisitorial destinada a justificar a decisão pré-fabricada do chefe, de</p><p>destruir um homem que acabava de cometer uma ação heroica e</p><p>humanitária.»</p><p>Aberto o envelope lacrado, verificou-se que dele não consta qualquer</p><p>notificação ao “condenado” para o inteirar da decisão final, e que a pena</p><p>aplicada, além da inatividade por um ano com apenas metade do</p><p>vencimento da categoria, foi a aposentação compulsiva (e não a demissão),</p><p>pena que não estava sequer prevista na lei (portanto, tudo isto era</p><p>manifestamente ilegal).</p><p>Há ainda duas conclusões do embaixador Bessa Lopes que merecem</p><p>destaque. A primeira considera que «há contradição flagrante entre as</p><p>declarações de Teotónio Pereira na instrução do processo disciplinar de</p><p>Sousa Mendes, e as descrições dos acontecimentos de Bordéus e Bayonne</p><p>em meados de junho de 1940 publicadas nas suas Memórias (vol. II,</p><p>1973)». A segunda afirma que «Sousa Mendes foi condenado por recusar</p><p>associar-se à cumplicidade com os crimes de guerra nazis (esse foi o sentido</p><p>humano da sua desobediência)».</p><p>Não resisto a relembrar aqui a frase profética do meu avô, proferida logo</p><p>no início da guerra: «Não participo em chacinas, por isso desobedeço a</p><p>Salazar!»</p><p>Também quero sublinhar que a contradição mencionada no seu relatório</p><p>pelo embaixador Bessa Lopes entre o depoimento de Teotónio Pereira no</p><p>processo disciplinar — no qual escreve que Aristides «tinha perdido o uso</p><p>da razão» — e o que recorda do mesmo acontecimento na página 220 do</p><p>vol. II das suas memórias (Memórias, de P. Teotónio Pereira) é arrasadora.</p><p>Em junho de 1940, Teotónio Pereira não teve quaisquer dúvidas em</p><p>declarar nulos todos os vistos passados pelo cônsul de Bordéus. Mas nas</p><p>suas Memórias escreve: «O pânico havia-se estendido às nossas autoridades</p><p>consulares e reinava confusão comparável ao que poderá ser o anúncio do</p><p>fim do mundo. Não se pode descrever a angústia dos fugitivos nas estradas</p><p>bloqueadas por infindáveis colunas de automóveis […] Durante dois ou três</p><p>dias circulei penosamente entre Hendaia e Baiona, fazendo respeitar pelas</p><p>autoridades espanholas os vistos portugueses, e acudindo àquele desastre</p><p>por todas as maneiras que estivessem ao meu alcance.»</p><p>No final do processo, mal se soube da pena ilegal de um ano de</p><p>inatividade (e não da ilegalíssima verdadeira pena, contida no envelope</p><p>lacrado), o espírito de jurista do meu avô levou-o a redigir um recurso para</p><p>o Supremo Tribunal Administrativo. O advogado a quem se dirigiu para, em</p><p>seu nome, o submeter, era considerado um dos grandes juristas da época,</p><p>apesar de ter apenas 35 anos: Adelino da Palma Carlos.</p><p>Palma Carlos, outra figura premonitória. Em 1974 será o primeiro a</p><p>liderar um governo saído da revolução do 25 de Abril. Nem Aristides nem</p><p>ele duvidavam do significado do envelope lacrado… já que nem sabiam que</p><p>existia tal coisa. Não havia recurso possível, enquanto o regime de Salazar</p><p>durasse.</p><p>Entretanto, o embaixador já mencionado, digno representante do antigo</p><p>regime, e que andou — e anda — a fazer propaganda de Salazar, escreveu</p><p>no seu “livrinho” de 2013, página 44, algo de absolutamente “brilhante”:</p><p>«Salazar ignorou as propostas que lhe apresentaram como conclusão de tal</p><p>processo, decidindo não aplicar a Aristides qualquer pena disciplinar, e fora</p><p>do quadro desse processo utilizou uma faculdade que a lei de então lhe</p><p>dava, colocando-o na disponibilidade fora do serviço por um ano, findo o</p><p>qual aguardaria aposentação — aposentação que nunca teve, pois morreu</p><p>antes de atingir</p> <p>Naval, em Génova, Itália. Seguiu a sua carreira na marinha até ao posto de</p><p>capitão-de-fragata. Como engenheiro naval, dirigiu a construção de</p><p>inúmeros navios de guerra, carga, passageiros e pesca. Foi ele quem, nos</p><p>anos 30 do século XX, concebeu e construiu os dois navios de guerra que</p><p>mais exigiam do ponto de vista técnico jamais construídos em Portugal, os</p><p>avisos João de Lisboa e Pedro Nunes, cujos modelos podem ser vistos no</p><p>Museu de Marinha. Comparados com os navios ingleses ou alemães, estes</p><p>dois avisos quase pareciam brinquedos. No entanto, estiveram ao serviço da</p><p>marinha de guerra portuguesa até aos anos 60 do século XX. De registar a</p><p>coincidência de o João de Lisboa ter tido como comandante, durante vários</p><p>anos, o irmão mais novo de Aristides, José Paulo de Sousa Mendes. Talvez</p><p>devido ao facto de a família ser grande, registou-se ainda uma outra</p><p>coincidência, a de nessa mesma época a esquadrilha de submarinos ser</p><p>comandada por outro primo de Aristides de Sousa Mendes, o comandante</p><p>Aarão Ribeiro de Abranches, então a bordo do Espadarte.</p><p>Silvério desempenhou um papel importante no apoio ao cunhado</p><p>Aristides quando este, a seguir ao afastamento da sua atividade como</p><p>diplomata, começou a enfrentar enormes e cruéis dificuldades económicas</p><p>e, principalmente, dificuldades morais.</p><p>Aos 55 anos, Aristides contava com uma carreira de 30 anos, a exercer</p><p>funções em quatro continentes, a prestar serviço sob a bandeira do último</p><p>rei de Portugal, D. Manuel II, dos sete primeiros Presidentes da República,</p><p>sob a ditadura militar entre 1926 e 1932 e, finalmente, ao longo do Estado</p><p>Novo até 1940. Foi alvo do “fogo” entre republicanos e monárquicos e</p><p>vice-versa, teve de atravessar um sem-fim de embaraços e obstáculos por</p><p>ter uma família tão numerosa mas, devido à sua resiliência, conseguiu</p><p>manter-se em funções oficiais até ao verão de 1940. Foram precisos nervos</p><p>de aço, uma coragem gigantesca e uma enorme fé em Deus.</p><p>Foi esta fé em Deus que o levou a aceitar o que se passou em Bordéus:</p><p>reconheceu a “missão” que lhe surgiu à frente, sabendo que para a levar até</p><p>ao fim teria de desobedecer aos seus superiores hierárquicos na terra, mas</p><p>acreditando sempre que o cumprimento dessa missão estava ligado a uma</p><p>hierarquia de natureza superior.</p><p>Em momentos críticos, a ajuda dos irmãos César e José Paulo, e de</p><p>primos direitos como Silvério e outros foi essencial para lhe dar algum</p><p>ânimo e esperança nos últimos 14 anos de vida. A maior parte dos primos</p><p>direitos vinha do lado Amaral e Abranches que, diga-se em abono da</p><p>verdade, no verão de 1940 não o aplaudiram exatamente. Esses primos</p><p>tinham carreiras e famílias a proteger, e estavam bem conscientes da</p><p>verdadeira natureza do Estado Novo, sabiam que podiam ser atingidos por</p><p>ricochete devido ao gesto rebelde do primo Aristides — que se tornaria um</p><p>proscrito e uma espécie de refugiado no seu próprio país.</p><p>Um primo de Aristides, Adolfo Abranches Pinto, que foi general e</p><p>ministro do exército durante quatro anos, entre 1950 e 1954, que exerceu</p><p>funções de adido militar em Washington D.C. (Estados Unidos) e que foi</p><p>embaixador na África do Sul e em Londres, nos anos que se seguiram a</p><p>1940 terá sido bastante crítico do gesto redentor do primo. No entanto,</p><p>segundo me contou a filha, a minha prima Maria Teresa Abranches Pinto</p><p>Lobão Ferreira, depois da guerra e no âmbito das atividades de verificação</p><p>pelas Nações Unidas das atrocidades cometidas pelos nazis, foi chamado a</p><p>participar em visitas de comissões internacionais aos campos de</p><p>concentração, tendo de efetuar relatórios descrevendo o horror que aí viu e</p><p>a vergonha que são para a espécie humana. Um dia, o primo Adolfo disse</p><p>para a sua família mais próxima: «Compreendo a posição e a atitude do</p><p>Aristides durante a guerra. Ele prestou um grande serviço à Humanidade!»</p><p>Dizer estas palavras é revelador de bons sentimentos, mas teria sido</p><p>muito mais benéfico e corajoso da parte de um general — um homem de</p><p>armas — dizê-lo diretamente a Aristides e a César. Mas a verdade é que o</p><p>regime ditatorial de Salazar não existia propriamente para estimular a</p><p>coerência e a dignidade. E as paredes tinham ouvidos… É só mais um</p><p>exemplo do que foi o quotidiano do meu avô a partir de julho de 1940 até 3</p><p>de abril de 1954, dia da sua morte.</p><p>Quatro filhos do irmão César e suas amas japonesas. Os dois mais novos nasceram no</p><p>Japão, onde César exercia funções diplomáticas entre 1914-1918.</p><p>Aristides teve de desafiar tudo isto e enfrentar todas as tempestades.</p><p>Devo dizer que depois da morte dos meus avós Aristides e César, era nestes</p><p>primos que eu tentava encontrar algo ou alguém que me ligasse a “eles”.</p><p>Nos anos 60 do século XX, encontrei o primo Adolfo com alguma</p><p>frequência, e por vezes tinha a impressão, também devido a algumas</p><p>parecenças físicas, de que estava a falar com um dos meus avós. Guardo</p><p>dele, sem dúvida, uma recordação bastante simpática.</p><p>Um dia, a minha mãe apresentou-me um senhor de “ar japonês”, com</p><p>uma certa idade, muito sorridente, acompanhado pela mulher e pela filha.</p><p>Uma verdadeira família japonesa: todos vénias e sorrisos. Tratava-se de</p><p>João Abranches Pinto, irmão de Adolfo, que quando era muito novo pediu a</p><p>César, que em 1914 tinha sido nomeado representante extraordinário do</p><p>governo português no Japão, para lhe encontrar um trabalho como professor</p><p>de português nalguma escola ou universidade japonesa. Assim foi, e pouco</p><p>depois João fundou, com um grupo de estudantes japoneses, uma</p><p>associação para poder representar as obras de Gil Vicente em português,</p><p>fazendo criações artísticas de grande qualidade. João apaixonou-se por uma</p><p>japonesa e casou, dando origem ao ramo japonês da família Abranches — e</p><p>neste país, além das funções académicas, também exerceu funções como</p><p>cônsul honorário de Portugal e do Brasil, representando os interesses dos</p><p>dois países no Império do Sol Nascente.</p><p>César ficou no Japão até 1918, e em 1916 esteve presente nas cerimónias</p><p>de entronização do imperador Hirohito que, como se sabe, foi “Deus na</p><p>terra” até 1945, quando os americanos impuseram a sua renúncia a esse</p><p>estatuto.</p><p>A diáspora</p><p>Um aspeto que se pode destacar na vida tanto de César como de Aristides</p><p>foi o apego à família, a dedicação à mulher e aos filhos. Isso era manifesto</p><p>nas ocasiões mais duras, e quando se é um jovem pai ou mãe, as separações</p><p>por razões profissionais constituem uma ameaça à felicidade e são muito</p><p>temidas.</p><p>Quando Aristides recebeu a sua primeira nomeação para funções</p><p>consulares em Demerara, na Guiana Britânica (América do Sul), no mesmo</p><p>dia em que foi nomeado cônsul de 2.ª classe, a 12 de maio de 1910,</p><p>começou a sentir os primeiros sintomas de um estranho mal: a saudade! O</p><p>mesmo aconteceu com a sua jovem mulher, Maria Angelina — Gigi —,</p><p>apesar de estar muito habituada às decisões rápidas e surpreendentes de</p><p>Aristides desde a infância e, sobretudo, desde a juventude, quando ele</p><p>aparecia de bicicleta, “modelo 1900”, perto da sua janela, na casa da</p><p>Ribeira, logo à entrada da aldeia, depois de uma longa descida.</p><p>Aristides César, o filho mais velho de Aristides e Maria Angelina, acompanhou os pais</p><p>em todas as viagens e desenhava as cidades e os portos por onde passavam.</p><p>Esse sentimento de partida, de corte com a vida tranquila do campo e do</p><p>contacto com os pássaros, as flores e pinheiros foi ainda mais forte no caso</p><p>de Angelina, pois até ao casamento, Gigi raramente saíra da sua aldeia natal</p><p>— Beijós —, a dois ou três quilómetros de Cabanas de Viriato. Foi lá que</p><p>frequentou a escola e aprendeu os factos da vida, lendo as obras dos</p><p>melhores autores portugueses: Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett,</p><p>Alexandre Herculano, Camões e outros. Os grandes autores franceses</p><p>também se encontravam na sua biblioteca pessoal, pois os pais de Angelina</p><p>acreditavam que aprender francês e tocar pelo menos algumas notas no</p><p>piano fazia parte da educação de uma menina de boas famílias — como</p><p>também aprender a bordar e a tratar das coisas práticas do lar, decoração,</p><p>etc., e, claro, conhecer e fazer a doçaria típica da região, e os pratos</p> <p>e os</p><p>caldos mais comuns da Beira Alta.</p><p>Nesta altura, Angelina começou a convencer-se de que a vida ia mesmo</p><p>mudar muito. Casada desde 1908, e mãe de um primeiro rapazinho no ano</p><p>seguinte — Aristides César, nascido em Beijós —, Gigi estava a</p><p>desenvolver os seus talentos de mãe paciente, doce e com espírito de</p><p>sacrifício. A partida rápida para Demerara iria ter como consequência a</p><p>separação do seu bebé. Como conciliar a vida de pai e mãe com as</p><p>exigências da vida diplomática, numa altura em que os meios de</p><p>comunicação modernos estavam ainda no início, ou nem sequer existiam?</p><p>Mas Aristides e Angelina possuíam uma característica pouco comum:</p><p>perante situações que lhes pareciam impossíveis, não se conformavam, e</p><p>punham em funcionamento a imaginação e a criatividade para as</p><p>ultrapassarem. Indo contra o que todos aconselhavam, a família partiu toda</p><p>para a Guiana Britânica — com o pequeno Aristides César, claro. Esse</p><p>primeiro ano foi muito duro para os jovens pais, marcados pela separação e</p><p>pela saudade dos parentes e amigos mais próximos. Esses sentimentos estão</p><p>bem expressos na correspondência entre Aristides e César, que tinha sido</p><p>nomeado para o consulado de Portugal no Pará, Brasil. Uma</p><p>correspondência franca e sincera, onde os dois gémeos discutiam os vários</p><p>aspetos da vida de cada um, e tentavam aconselhar-se mutuamente para</p><p>irem resolvendo os problemas que surgiam, colocando sempre a família em</p><p>primeiro lugar.</p><p>Aristides César, o primeiro filho de Aristides e Gigi, teve de esperar dois</p><p>anos para ter direito a um irmão — Manuel Silvério — que, tal como o seu</p><p>irmão mais velho, veio a ser um excelente rapaz, ótimo estudante e pianista.</p><p>Formou-se na antiga Universidade Católica de Lovaina em 1934, uma</p><p>instituição cheia de tradição e beleza.</p><p>Aristidinho, como era chamado o primogénito do cônsul, entretinha-se nas longas</p><p>viagens de barco a que os postos do pai o obrigavam, a desenhar e a pintar o que via.</p><p>Quando entraram para o camarote do vapor que os levava para Zanzibar,</p><p>na África oriental inglesa, Angelina levava Manuel nos braços e Aristides</p><p>transportava um menino já crescidinho, que respondia pelo nome de</p><p>Aristidinho. Acompanhava-os a Borges, que os apoiou e acarinhou até aos</p><p>anos 30, e cujos restos mortais se encontram no jazigo da família, ao lado</p><p>dos seus patrões, como se a “viagem” continuasse e ela fizesse parte da</p><p>família, até mesmo na eternidade. A Borges (que já tinha trabalhado para os</p><p>avós de Aristides) partiu com o jovem casal não só para lhes preparar os</p><p>cozinhados à maneira da Beira Alta para que eles se sentissem mais</p><p>aconchegados, mas também para lhes dar apoio moral e os proteger como</p><p>se fosse uma espécie de anjo da guarda.</p><p>Um dos desenhos de Aristides César, que assim documentava as viagens da família.</p><p>José António e Clotilde Augusta apareceram um atrás do outro nos anos</p><p>que se seguiram em Zanzibar. José nasceu em 1912, entre Manuel Silvério e</p><p>Clotilde, nascida em 1913. Foi um crescimento rápido da família Sousa</p><p>Mendes, que surpreendeu as gentes locais, pois a família exprimia-se aberta</p><p>e efusivamente, mesmo nas ruas. Parecia que estava sempre em festa.</p><p>Aristides e Angelina apresentavam-se sempre elegantes e distintos, e de</p><p>certa maneira começaram a servir de “modelo” para as outras famílias de</p><p>diplomatas e para a alta sociedade de Zanzibar. Foi nessa altura que uma</p><p>alta personalidade local começou gradualmente a aproximar-se e a convidar</p><p>Aristides e Angelina, acompanhados pela Borges e pelas crianças, para</p><p>festas e eventos importantes, mesmo quando estavam ligados à religião</p><p>nativa — o Islão. Estamos a falar do jovem sultão.</p><p>A Borges, que dedicou toda a sua vida à família Sousa Mendes, em companhia dos</p><p>dois filhos mais velhos de Aristides.</p><p>O sultão, líder espiritual de Zanzibar (já que o chefe de Estado era o</p><p>monarca do Reino Unido — Zanzibar fazia parte do Império Britânico</p><p>como protetorado), era um jovem que tinha estudado em Inglaterra, e</p><p>interessava-se muito pelas influências ocidentais na sua ilha, desde o tempo</p><p>em que por lá aparecera o primeiro europeu — outro português, à procura</p><p>do “caminho marítimo para a Índia”. Foi este jovem sultão, que simpatizava</p><p>com a comunidade portuguesa formada sobretudo por comerciantes, que se</p><p>tornou amigo da família de Aristides, e “assistiu” ao nascimento do quinto</p><p>filho de Aristides e Angelina — uma menina a quem puseram um nome</p><p>nada comum na família: Isabel Maria. As festas do batizado contaram com</p><p>a presença de vários diplomatas e pessoas ligadas ao comércio, e o próprio</p><p>sultão manifestou o desejo de se ligar à família através de um ato de</p><p>natureza espiritual. Aristides e Angelina, após terem conversado com o</p><p>bispo católico e com o bispo anglicano de Zanzibar, dirigiram-se ao palácio</p><p>do sultão e convidaram-no para ser o padrinho da próxima criança que</p><p>viesse.</p><p>O sexto filho do casal não se fez rogado, e passado pouco mais de um</p><p>ano, na primavera de 1917, apareceu Geraldo, que foi afilhado do sultão e</p><p>dos dois bispos cristãos (um católico e outro anglicano) presentes na ilha. O</p><p>batizado foi mais do que uma simples festa. Foi um símbolo da união e</p><p>amizade entre várias culturas e religiões. Serviu para a aproximação dos</p><p>vários povos e nacionalidades representadas naquele microcosmo. Assim,</p><p>aquele que viria a ser o meu pai chamou-se Feliciano do Nascimento Artur</p><p>Geraldo (Arthur pelo bispo católico francês, e Geraldo pelo bispo</p><p>anglicano).</p><p>Entretanto, bem longe de Zanzibar, no Extremo Oriente, em Tóquio,</p><p>Japão, Maria Luísa, a mulher de César (o gémeo), tinha dado à luz uma</p><p>Maria Luisinha (com um ar muito japonesinho), em janeiro de 1915, e mais</p><p>um César, em 1917.</p><p>A filha seguinte de Aristides e Angelina, Elisa Joana, “só” virá ao mundo</p><p>em setembro de 1918, em Curitiba, Brasil. Nos anos 50 e 60 do século XX,</p><p>Elisa Joana (a tia Joana) desempenhará um papel central no processo de</p><p>reabilitação da memória de seu pai.</p><p>Em 1920, em Coimbra, nasce um rapaz ao qual é dado o nome de Pedro</p><p>Nuno de Santa Maria, lembrando aquele que foi o Condestável da batalha</p><p>de Aljubarrota e que recentemente foi canonizado pelo Papa Bento XVI.</p><p>Um personagem da história de Portugal que tantas vezes foi lembrado em</p><p>casa dos meus avós. Pedro Nuno formou-se em Direito pela Universidade</p><p>de Toulouse, e deu uma ajuda decisiva ao pai, especialmente a partir de 14</p><p>de junho de 1940, depois da débâcle causada pela invasão de França pelos</p><p>nazis.</p><p>Os dois que se seguem são os “americanos”: nasceram em Berkeley,</p><p>onde ficava a residência consular, entre fevereiro de 1922 e outubro de</p><p>1923. Por terem nascido em solo americano obtiveram de imediato a</p><p>nacionalidade americana, e portuguesa por terem nascido no consulado de</p><p>Portugal em São Francisco. Estes “americanos”, depois de Aristides ter</p><p>ficado numa situação muito dramática a seguir ao seu gesto humanitário de</p><p>desobediência civil a Salazar, resolveram participar ativamente no derrube</p><p>de Hitler e, pensavam eles, por arrastamento no derrube do ditador</p><p>português. Dirigiram-se à legação americana de Lisboa pedindo para se</p><p>alistarem no exército americano que se estava a juntar em Londres com o</p><p>objetivo de invadir a França, pela Normandia. Assim fizeram. Voltaremos a</p><p>falar destes heróis “americanos”, o Carlos Francisco Fernando e o Sebastião</p><p>Miguel Duarte, que ficarão conhecidos por Chiconando e Sebastião. Eles</p><p>serão o “braço armado” desta família portuguesa que viveu intensamente</p><p>vários momentos da Segunda Guerra Mundial: a invasão e a ocupação do</p><p>país em que se encontravam (França); as faltas de bens essenciais,</p><p>alimentação e medicamentos; o bombardeamento noturno de Bordéus a 19</p><p>de junho, pela força aérea alemã, que causou dezenas de mortos; a partida</p><p>de dois dos seus filhos para a frente de batalha, em 1943, participando no</p><p>desembarque dos aliados na Normandia, França, a 6 de junho de 1944.</p><p>As longas viagens permitiam a Aristidinho desenhar com técnica e minúcia as cidades</p><p>que ia conhecendo.</p><p>Depois do nascimento dos “heróis americanos”, a família teve mais uma</p><p>vez de viajar, em 1924. De novo em direção do Brasil,</p> <p>para Maranhão e</p><p>Porto Alegre, onde estiveram até 1926, e de onde trouxeram mais uma</p><p>“brasileira”, a Teresinha do Menino Jesus, nascida em 1925, que poucos</p><p>anos depois vai aproximar a nossa família de uma das videntes de Fátima,</p><p>de forma estranha e inesperada, como relatará o próprio Aristides.</p><p>O bebé seguinte, Luís Filipe, nascerá em Tui, na Galiza, numa casa de</p><p>cujas janelas da frente se via Portugal, na margem sul do rio Minho.</p><p>Aristides, que tinha sido nomeado cônsul em Vigo, escolheu viver em Tui,</p><p>pela “bela vista” que observava da sua janela, e também pelas escolas, em</p><p>especial o Colégio das Doroteias, para as filhas.</p><p>O décimo terceiro e penúltimo filho, João Paulo, nasceu em 1931 em</p><p>Lovaina, Bélgica. Desempenhou um papel muito importante para o</p><p>reconhecimento do gesto do seu pai, mais tarde, nos Estados Unidos.</p><p>A última a nascer foi Raquel Hermínia, aquela que viria a ser o “anjinho”</p><p>que acompanharia seu irmão Manuel Silvério, em 1934, no tristemente</p><p>recordado cortejo fúnebre de Cabanas de Viriato. Raquel Hermínia viveria</p><p>apenas 18 meses. Nasceu e morreu em Lovaina, vítima de meningite.</p><p>CAPÍTULO II</p><p>César e Aristides</p><p>Escola, família, amigos e namoro</p><p>Os meus avôs gémeos foram-me sempre apontados como exemplos a</p><p>seguir, com um percurso escolar e académico sem mácula, excelentes</p><p>alunos e de comportamento admirável com colegas e professores.</p><p>Aristides e César eram grandes defensores das praxes académicas, um</p><p>tema agora muito em voga e envolto em bastante polémica. O jornal</p><p>Público fez uma investigação sobre estas práticas estudantis, e descobriu</p><p>que já no início do século XX as praxes eram consideradas uma forma de</p><p>cativar os jovens estudantes e assim os integrar na vida universitária, desde</p><p>que se baseassem em atividades ligadas às artes e à cultura: provas de</p><p>poesia e criação literária, teatro, pintura, exibições de canto e de música,</p><p>entre outras disciplinas. Os irmãos Sousa Mendes, César e Aristides,</p><p>contavam-se entre os adeptos deste tipo de praxe na Universidade de</p><p>Coimbra, tal como indicado no Público, e os jornais universitários e locais</p><p>mencionaram-nos várias vezes de forma simpática.</p><p>Os gémeos mudaram muitas vezes de casa e de terra. Nasceram em julho</p><p>de 1885 e o pai, José de Sousa Mendes, iniciou a carreira de magistrado</p><p>exatamente nesse ano, o que fez com que a família tivesse de sair de</p><p>Cabanas de Viriato, primeiro para Vila Nova de Foz Côa, e depois para</p><p>Mafra, em 1886. De lá, seguiram para Aveiro, e três anos depois mudaram-</p><p>se para os Açores. Em 1889, a família instalou-se no Redondo, e de</p><p>mudança em mudança passaram-se os anos até ambos ingressarem na</p><p>Universidade de Coimbra, no ano letivo de 1902/03, onde ficaram até se</p><p>formarem em Direito, em 1907.</p><p>César e Aristides, quando jovens estudantes liceais.</p><p>Em Mangualde, naquela que foi a casa de família do meu avô César,</p><p>ainda consegui encontrar antigos cadernos e notas de escola sobre matérias</p><p>diversas. Na parede do escritório encontra-se o diploma de Direito com o</p><p>nome de César, assinado pelo então reitor da Universidade de Coimbra,</p><p>Emmanuel da Costa Alemão. O diploma de Aristides irá recuperar o seu</p><p>lugar na Casa do Passal, assim que as obras de restauro o permitirem.</p><p>Nações Unidas avant la lettre</p><p>Os sucessos escolares dos gémeos eram frequentemente referidos nos</p><p>jornais da região, e nas casas da família há recortes antigos que o mostram</p><p>— todo este interesse por parte da comunicação social regional da época</p><p>talvez se devesse ao facto de eles virem de um meio privilegiado, e também</p><p>porque nessa altura não havia assim muitos jovens da zona a estudar.</p><p>Verdade seja dita que os irmãos eram grandemente motivados para</p><p>aprender: o pai tinha muitos amigos, que frequentavam a casa de família,</p><p>apareciam por vezes à hora do chá, e as conversas interessantes surgiam</p><p>naturalmente. Sem qualquer premeditação, discutiam-se casos judiciais,</p><p>questões filosóficas e teológicas, História, a Revolução Francesa, Napoleão,</p><p>o Congresso de Viena, a Conferência de Berlim…</p><p>Ninguém na família — pelo menos na atual — sabe muito bem de onde</p><p>veio a ideia de os gémeos seguirem a carreira diplomática. Uma fotografia</p><p>de 1892/3 mostra os dois irmãos mascarados de piratas — mas depois de</p><p>uma primeira observação percebe-se bem que o chapéu, a casaca, as calças</p><p>e os sapatos não têm nada a ver com aventuras de salteadores por mares</p><p>desconhecidos, mas antes com uma carreira de paz e negociação, a carreira</p><p>diplomática. Há uma corrente na família que garante que sempre houve</p><p>uma premonição de que aqueles meninos estavam guardados para práticas</p><p>simpáticas, para fazerem o bem, mas o mais natural numa árvore</p><p>genealógica com tantos juristas seria seguirem profissões orientadas para o</p><p>Direito. Logo depois de receberem o diploma da Universidade de Coimbra,</p><p>concorreram para os postos de Procurador Régio e foram ambos admitidos.</p><p>No entanto, nunca abandonaram a ideia de seguirem a diplomacia. O que</p><p>não é assim tanto de estranhar, se pensarmos na paixão que ambos nutriam</p><p>por matérias como História, Geografia, Línguas, e nas influências</p><p>constantes a que estiveram sujeitos no ambiente familiar, com as tais</p><p>conversas à hora do chá, os encontros com cavalheiros eruditos, as leituras</p><p>que lhes eram propostas.</p><p>Os dois irmãos mascarados de piratas – e há quem veja já nesta fotografia os dois</p><p>futuros diplomatas que viriam a ser.</p><p>O meu bisavô considerava e louvava a diplomacia como um instrumento</p><p>para a paz, antes de ser apenas um mecanismo de representação dos</p><p>interesses dos vários Estados-nação. Era uma visão da diplomacia ao</p><p>serviço direto da comunidade mundial, do estilo Nações Unidas avant la</p><p>lettre.</p><p>O lobo do mar e Einstein</p><p>Os gémeos César e Aristides com os pais, e o irmão mais novo, José Paulo.</p><p>Pouco depois, os gémeos tornaram-se os professores privados do jovem</p><p>José Paulo: ajudavam-no a fazer os trabalhos de casa e a ser um aluno</p><p>aplicado, e obediente aos pais e professores. José Paulo, “esmagado” entre</p><p>tantos homens de leis, por tantos direitos e deveres, por tanta moral, decidiu</p><p>tornar-se oficial da marinha de guerra. E foi como capitão-de-mar-e-guerra</p><p>que passou à reserva, em 1955. Foi o primeiro deste ramo da família a</p><p>“lançar-se ao mar”, e foi logo seguido pelo seu filho mais velho, José</p><p>Agostinho, que também foi capitão-de-mar-e-guerra e grande autor de</p><p>narrativas marítimas, assim como assíduo colaborador da Revista da</p><p>Armada.</p><p>Recordo-me bastante melhor do meu tio José Paulo do que dos meus</p><p>avós — vi-o pela última vez em 1960, pouco tempo antes da sua morte,</p><p>tinha eu quase 11 anos.</p><p>Lembro-me bem da sua boa figura, da sua imagem simpática, e agradeço-</p><p>lhe o legado precioso que me deixou — uma amostra dos modos e do estilo</p><p>dessa geração da família de finais do século XIX.</p><p>O comandante José Paulo de Sousa Mendes era um grande estudioso.</p><p>Interessava-se por História universal, Matemática, e temas científicos.</p><p>Frequentou a Universidade de Coimbra por diversas vezes, e escrevia</p><p>artigos sobre navegação que eram publicados nas revistas da especialidade.</p><p>As crianças também mereceram a sua atenção e chegou mesmo a publicar</p><p>um livro de contos infantis, Sete histórias simples.</p><p>Em 1933, numa das suas viagens para visitar os irmãos, foi até Lovaina,</p><p>na Bélgica, onde Aristides, que era cônsul-geral de Portugal em Antuérpia,</p><p>gozava de muito prestígio e era decano do corpo diplomático acreditado</p><p>nessa cidade. Nessa qualidade, o meu avô recebia e dava-se com muitas</p><p>pessoas. Um dia, teve a visita de Albert Einstein, que havia pouco tempo</p><p>tinha chegado à cidade em consequência das “leis”, saídas da mente de um</p><p>indivíduo que de leis apenas conhecia as suas: Adolf Hitler.</p><p>Einstein, provavelmente, queria alguma orientação de ordem</p><p>administrativa ou burocrática, pois preparava-se para deixar aquilo a que</p><p>chamava a «velha Europa doente». O futuro, para muitos como ele,</p><p>encontrava-se do outro lado do Atlântico.</p><p>Os meus tios e o meu pai referiam-se muitas vezes a essa visita quando</p><p>procuravam alguma coisa engraçada para me contar, tal como o faziam</p><p>sempre a respeito</p> <p>dos amigos ou conhecidos que frequentavam a sua casa</p><p>onde quer que estivessem, em Portugal ou em Zanzibar, na América ou na</p><p>Bélgica. Em relação à visita de Einstein, diziam que tinha sido a longa</p><p>conversa sobre matemática que houve entre o tio Zé Paulo e este prémio</p><p>Nobel que lhe abriu os olhos, mostrando-lhe como tudo é tão relativo… A</p><p>verdade é que o Nobel já estava nas mãos de Einstein desde 1921 e o nosso</p><p>“tio navegador” apenas olhava com espanto e de boca aberta para o génio</p><p>que estava à sua frente.</p><p>As artes e os amigos</p><p>A literatura e a música também se contavam entre os interesses dos gémeos.</p><p>Mas em Portugal, em finais do século XIX, o acesso às artes não era fácil, e</p><p>para os dois rapazes, sempre em constante movimento a acompanhar o pai</p><p>nas suas mudanças, a educação artística ainda se tornava mais difícil.</p><p>Na biblioteca familiar da casa de Mangualde ou na de Cabanas de Viriato</p><p>— que, infelizmente, foi muito dizimada — ainda foi possível encontrar</p><p>alguns livros assinados por poetas e escritores de renome, como edições</p><p>antigas de Camões, dos séculos XVIII e XIX. Por exemplo, em Mangualde,</p><p>na sala de visitas da casa de César, perto do piano, encontra-se uma</p><p>belíssima edição de Os Lusíadas («a Bíblia da pátria portuguesa», como lhe</p><p>chamava Aristides), com gravuras de excelente qualidade.</p><p>A música também era uma das expressões artísticas preferidas dos dois</p><p>irmãos. Aristides teve aulas de canto e de violoncelo, na Bélgica. Os</p><p>professores vinham a casa dar aulas aos filhos, com o objetivo de criar uma</p><p>orquestra de câmara, e já agora, porque não, também dar largas à sua paixão</p><p>e descobrir algum talento? Foi isso que levou Aristides a estar presente ao</p><p>lado dos filhos durante as aulas de música, dirigindo a sua atenção</p><p>sobretudo para as Lieder, de Brahms, Schubert e outros.</p><p>No tradicional carnaval de Cabanas, os gémeos mascaravam-se sempre.</p><p>As amizades de juventude ficavam-se em grande parte por Cabanas de</p><p>Viriato e redondezas. Famílias como as dos Teixeira de Abreu, dos Miranda</p><p>ou a dos Teles figuravam entre as mais próximas e, claro, as relações com</p><p>os primos Abranches Pinto, Sousas e Mendes da Gama e outros eram as</p><p>mais encorajadas. Não esqueçamos o irmão de José e tio de Aristides, e</p><p>César — António — que era casado com Clotilde, uma irmã de Maria</p><p>Angelina, mãe dos gémeos. Podemos imaginar os laços familiares que os</p><p>uniam e atraíam. António vivia em Beijós e ocupava-se das propriedades da</p><p>família, entre elas a Quinta do Tosculano. Havia ainda os primos pequenos,</p><p>Silvério, com dois anos a menos do que os gémeos, e Maria Angelina —</p><p>Gigi — três anos mais nova e já com uma beleza cativante.</p><p>Os primos gostavam tanto uns dos outros que as separações tornavam-se</p><p>dolorosas. Felizmente que, com a idade e o avançar nos anos escolares,</p><p>puderam utilizar-se de uma das “grandes invenções” da época — a escrita</p><p>em papel de carta! Os laços entre os primos vão-se tornando cada vez mais</p><p>fortes à medida que o tempo passa. Aristides e César transformam-se em</p><p>dois belos jovens, fortes tanto física como intelectualmente, o que os torna</p><p>muito populares junto das meninas, e Angelina, a quem todos chamavam</p><p>Gigi, vai ganhando a beleza e o charme que fazem dela a preferida de</p><p>Aristides. César olhava mais para os lados de Lisboa e de Mangualde onde,</p><p>com o seu primo Silvério, frequentava a casa de Francisco de Azevedo</p><p>Alpoim e Vasconcelos, pai de Maria Luísa e de Maria da Conceição, duas</p><p>meninas muito conceituadas na região e que os dois primos muito</p><p>admiravam. A convivência entre todos desenvolveu-se especialmente desde</p><p>que o pai fora transferido para juiz nessa comarca.</p><p>Orientação profissional e o apelo do namoro</p><p>Quando chegou o momento de escolherem uma orientação, os gémeos já</p><p>tinham decidido. A única opção que se lhes apresentava era a Universidade</p><p>de Coimbra e o curso de Direito, para seguirem uma carreira na</p><p>magistratura ou, eventualmente, no ensino. Mas conversas com o Conde de</p><p>Águeda fizeram-nos orientar os estudos para as Relações Internacionais. No</p><p>ano letivo de 1902/03, a Universidade de Coimbra iniciou uma reforma que</p><p>introduziu profundas alterações no ensino das diversas faculdades,</p><p>introduzindo ou inovando matérias como Filosofia do Direito, História do</p><p>Direito, História do Direito Romano ou Direito Eclesiástico. Uma brochura</p><p>da época, editada pela Universidade, refere que a cadeira de Direito</p><p>Internacional merece muita atenção, pois «tudo leva a crer que a</p><p>importância desta ciência vá aumentando cada vez mais nos estudos</p><p>jurídicos, em virtude do desenvolvimento progressivo das relações</p><p>internacionais e do maior número de questões que por isso tal direito é</p><p>chamado a resolver».</p><p>César e Aristides, estudantes da Universidade de Coimbra, eram grandes apreciadores</p><p>das praxes.</p><p>Em 1906/07, Aristides e César terminam o curso e recebem o grau de</p><p>bacharel. Obtêm uma média para a maioria das cadeiras entre os 16 e os 17</p><p>valores, e ficam entre os seis ou sete melhores estudantes da Faculdade de</p><p>Direito nesse ano. Foram contemporâneos de outros que fizeram história,</p><p>tendo conhecido o académico Bernardino Machado, que foi Presidente da</p><p>República portuguesa por duas vezes: entre 6 de agosto de 1915 e 5 de</p><p>dezembro de 1917, altura em que Sidónio Pais, à frente de uma junta</p><p>militar, dissolve o Congresso e o destitui, obrigando-o a abandonar o país.</p><p>Em 1925, volta à Presidência da República, e um ano depois é novamente</p><p>destituído, desta vez pela revolução de maio de 1926, que institui a ditadura</p><p>militar e abre caminho ao Estado Novo. Aristides voltará a encontrá-lo, em</p><p>1940, em França, numa situação difícil, em que será solidário no apoio a</p><p>dar-lhe.</p><p>Durante a faculdade, os gémeos tinham os seus corações noutro sítio:</p><p>Aristides em Cabanas de Viriato e Beijós, e César em Mangualde.</p><p>Aristides casou-se com Maria Angelina — Gigi —, a sua paixão de</p><p>infância, em 1908. César foi casar-se a Mangualde, em setembro de 1909,</p><p>com Maria Luísa de Moncada Alpoim, filha de Francisco de Azevedo</p><p>Alpoim e Vasconcelos, de Mesão Frio (Casa da Rede), e de Amélia</p><p>Adelaide Garcês de Moncada. Francisco tinha recebido como herança bens</p><p>que se situavam em Mangualde, entre eles uma quinta que passou a chamar-</p><p>se Quinta Alpoim, e um solar que foi vendido para aí se instalar a Câmara</p><p>Municipal de Mangualde. O primo Silvério, irmão de Angelina (Gigi),</p><p>também por aí se apaixonou, e casou-se com Maria da Conceição de</p><p>Moncada Alpoim, irmã da mulher de César.</p><p>E assim as relações entre estes primos e irmãos ficaram cada vez mais</p><p>entrelaçadas, de modo a formarem um bloco coeso e solidário, que ao longo</p><p>dos anos deu provas disso mesmo — e que também contribuiu para a</p><p>confusão de nomes e parentescos tão característica desta nossa família…</p><p>Maria Angelina, a quem todos chamavam Gigi, mulher de Aristides de Sousa Mendes.</p><p>CAPÍTULO III</p><p>Diplomacia em climas quentes</p><p>Guiana Britânica, Zanzibar, Brasil, com passagem pela Califórnia</p><p>Os meus avôs exultaram quando concretizaram o sonho de entrar na</p><p>carreira diplomática. Mas a concretização desse sonho também os obrigou a</p><p>separarem-se depois de uma vida inteira sempre juntos, numa altura em que</p><p>as comunicações eram difíceis. Passaram anos sem se verem, com</p><p>continentes e oceanos entre eles, mas mantendo aquela misteriosa ligação</p><p>própria dos irmãos gémeos. Ambos criaram famílias numerosas longe do</p><p>seu país e daqueles que lhes eram mais próximos, e construíram as suas</p><p>carreiras com base nos princípios de justiça, integridade e humanidade em</p><p>que sempre tinham sido educados — o que não deixou de trazer alguns</p><p>problemas a Aristides…</p><p>A data de 12 de maio de 1910 é um marco na vida de Aristides: foi o dia</p><p>em que iniciou a carreira diplomática e foi nomeado cônsul de 2.ª classe em</p><p>Demerara, na Guiana Britânica. César só foi nomeado a 16 de junho. Por</p><p>coincidência, também para a América do Sul — Pará, Brasil.</p><p>Logo após a licenciatura em Direito, os gémeos tinham-se candidatado</p><p>— e sido colocados — em postos administrativos. Foram também</p><p>professores: Aristides no Liceu Pedro Nunes, e César no Liceu Passos</p> <p>Manuel, em Lisboa. As candidaturas e admissões, com muito bons</p><p>resultados, à carreira consular e Diplomática iriam transformar de forma</p><p>radical as suas vidas.</p><p>Quando lhes foram atribuídos postos consulares, os gémeos tiveram de</p><p>passar da teoria à prática. Tudo iria mudar! Sair do conforto da casa de</p><p>família, falar outras línguas, viver noutras culturas, discutir e negociar com</p><p>estrangeiros, organizar o trabalho, atualizar dossiês… e separarem-se.</p><p>Com a nomeação para Demerara, Aristides e Gigi deram início a uma</p><p>série quase infindável de viagens de barco por vários oceanos. Mas se estas</p><p>viagens marcaram para sempre a memória dos pais, mais ainda marcaram</p><p>as dos filhos, em especial a de Aristides César, que, por ser o mais velho, os</p><p>acompanhou desde o início e fez dessas travessias marítimas um tema</p><p>favorito de desenhos e pinturas, que poderão ser apreciadas nalgumas</p><p>ilustrações incluídas neste livro.</p><p>Poucas semanas depois da nomeação, Aristides e a sua pequena família</p><p>apanharam um vapor inglês para um país longínquo, separado de Portugal</p><p>pelo oceano Atlântico, e do qual pouco conheciam. Começava uma vida de</p><p>preocupações e de problemas, mas também de descobertas e novos</p><p>conhecimentos, como só a vida diplomática pode proporcionar.</p><p>Não sou investigador, nem comentador, nem doutorando (Aristides de</p><p>Sousa Mendes já foi objeto de duas teses de doutoramento em Portugal) e,</p><p>portanto, estas minhas opiniões são dadas como neto, mas também como</p><p>cidadão, que já esteve emigrado e já foi refugiado político.</p><p>Maria Angelina (Gigi) e Aristides de Sousa Mendes, na Guiana Britânica.</p><p>Seja qual for o motivo pelo qual me encontro no estrangeiro — e a minha</p><p>vida profissional e pessoal tem-me levado a isso muitas vezes —, interessa-</p><p>me que o cônsul do meu país esteja atento aos problemas que possam</p><p>ocorrer com os seus compatriotas: roubo, doença, problemas económicos,</p><p>administrativos, etc. Interessa-me que este representante do meu país seja</p><p>correto, honesto, competente e amável. Um cônsul que me faça sentir bem</p><p>acolhido e me dê a impressão de estar no meu país de cada vez que vá ao</p><p>consulado. Espero aí encontrar uma pessoa capaz de criar um sentimento de</p><p>pertença a uma comunidade. Para isto, é preciso que o cônsul seja um</p><p>humanista, dedicado à sua função ou, mais do que isso, à sua missão. O</p><p>luso-canadiano Rui Afonso, biógrafo de Aristides de Sousa Mendes, louva o</p><p>“zelo” do meu avô em relação aos numerosos relatórios e artigos que</p><p>publicou nos diferentes postos em que esteve. No livro que publicou em</p><p>1990, Injustiça — o caso Sousa Mendes, diz: «Sousa Mendes era zeloso e</p><p>diligente no cumprimento dos seus deveres oficiais, indo sempre além</p><p>daquilo que era estritamente exigido.» Ir além daquilo que era «estritamente</p><p>exigido» é um traço de carácter que estará sempre presente em Aristides, e</p><p>vê-lo-emos desde o primeiro posto, em Demerara, até ao último, em</p><p>Bordéus, onde o seu gesto salvador é prova disso mesmo.</p><p>Rui Afonso, de origem madeirense, disse-me que a estada do meu avô em</p><p>Demerara coincidiu com um ano de terrível fome em várias zonas de</p><p>Portugal, nomeadamente na Madeira, devido às vicissitudes dos momentos</p><p>históricos que se viviam — o primeiro ano da República. Acontece que</p><p>muitos dos emigrantes portugueses que viviam na colónia britânica para</p><p>onde o meu avô fora nomeado eram de origem madeirense. Para Aristides, a</p><p>associação fez-se imediatamente: era preciso sensibilizar esses cidadãos</p><p>para o sofrimento que os familiares e conterrâneos poderiam estar a passar</p><p>na terra de origem, e fazê-los ver que a solidariedade era mais do que uma</p><p>palavra. Conseguiu que se organizasse uma recolha de fundos e de bens na</p><p>comunidade portuguesa em Demerara para enviar “para casa”, a fim de</p><p>ajudar a aliviar o sofrimento daqueles que permaneciam no país.</p><p>Aristides e Angelina nunca esqueciam os amigos, mesmo quando</p><p>estavam longe, e lembravam-se deles de formas concretas, propondo-lhes</p><p>trabalho ou atividades, tal como fazia o gémeo César nos países onde se</p><p>encontrava. Uma doutoranda da Universidade de Coimbra (a «universidade</p><p>de família», como Aristides lhe chamava) considerava na sua tese (de 2013)</p><p>que o zelo de Aristides era negativo, pois prejudicava o colega que o tinha</p><p>precedido e o que viesse a suceder-lhe…</p><p>O meu avô era este género de pessoa, de grande coração e impulsivo na</p><p>ação, e agiu sempre assim ao longo da sua vida, nunca se esquecendo de</p><p>que era um homem e um diplomata. E quero sublinhar a palavra</p><p>“diplomata” para significar o que há de mais nobre neste conceito, pois ao</p><p>analisar o seu percurso como ser humano e funcionário do Estado, é esse</p><p>aspeto que se impõe. No ano 2000, nas Nações Unidas, em Nova Iorque,</p><p>Elie Wiesel, exímio escritor e Prémio Nobel da Paz em 1986, declarou, num</p><p>discurso de homenagem aos Diplomatas Justos: «O primeiro dever de um</p><p>diplomata é o dever de humanidade.»</p><p>Eu também fui emigrante e refugiado político, e posso dizer que gostaria</p><p>de ter conhecido um cônsul do meu país como Aristides. Como tal não</p><p>sucedeu, posso ao menos contentar-me por o ter tido como avô, a ele e a</p><p>César, seu irmão gémeo, diplomata com a mesma nobreza de carácter.</p><p>Certamente que alguns dirão: «Obviamente, se você foi refugiado</p><p>político do regime salazarista, não poderia querer ser servido ou acolhido</p><p>por um representante desse regime.» Provavelmente não, mas ouvi falar,</p><p>por outros compatriotas, emigrados em vários países e sem problemas</p><p>políticos como eu, de casos em que recorriam aos consulados e o</p><p>comportamento dos funcionários era muitas vezes repressivo e inquisitorial.</p><p>No meu caso, tive encontros a esse nível do mais gélido que se possa</p><p>imaginar.</p><p>Quando chegava a um novo posto, Aristides tinha como preocupação</p><p>escolher uma casa espaçosa e em boas condições. Inquietava-se com a</p><p>saúde da sua jovem família, especialmente em más condições climáticas,</p><p>como era o caso de Demerara, Zanzibar e Curitiba. Hoje, aparecem novas</p><p>doenças assustadoras e todos nós nos assustamos. Há mais de cem anos,</p><p>com a falta de informação e de medicamentos adequados, era bem pior —</p><p>havia doenças desconhecidas dos europeus e, claro está, dos diplomatas e</p><p>dos cônsules… Aristides e a mulher, jovens pais, enfrentaram os temíveis</p><p>mosquitos transmissores do paludismo e muitas outras enfermidades. Mas o</p><p>que poderiam fazer? Deixarem-se ficar e sofrer, ou apresentarem razões de</p><p>força maior e pedir uma transferência de posto, justificando os motivos,</p><p>como tantos outros fizeram e fazem? A senhora doutoranda de Coimbra, no</p><p>seu trabalho, mostra-se crítica desse comportamento de prudência quando</p><p>se trata de Aristides. O mesmo não acontece quando fala de outros…</p><p>A vida em Zanzibar</p><p>No ano seguinte àquele que passou em Demerara, na Guiana Britânica, o</p><p>meu avô foi transferido para Lisboa, para um clima mais ameno. Depois de</p><p>uma curta missão na Galiza, é nomeado cônsul-geral de Portugal em</p><p>Zanzibar, um protetorado britânico desde 1890, situado na costa leste de</p><p>África, formado por uma série de ilhas, sendo as principais as de Zanzibar e</p><p>de Pemba. O casal partiu com mais um filho, o Manuel Silvério, nascido</p><p>durante a estada da família em Portugal, na região da Beira Alta.</p><p>Justificava-se o apoio consular em Zanzibar, que tinha uma comunidade</p><p>portuguesa formada sobretudo por comerciantes que negociavam com</p><p>especiarias. As relações institucionais com o sultão de Zanzibar também</p><p>mereceram a atenção particular de Sousa Mendes. De tal modo, que decidiu</p><p>ter aulas de suaíli, a língua local, também falada em países vizinhos. O meu</p><p>avô empenhava-se em conhecer os povos locais dos países para onde ia,</p><p>tanto por razões profissionais como pelo seu interesse pela História — no</p><p>caso de Zanzibar, fascinava-o a presença, quatro séculos antes, de Vasco da</p><p>Gama, que por ali passou na sua viagem para a Índia em 1502, e que, de</p><p>acordo com vários historiadores, terá sido o primeiro europeu a passar por</p><p>lá. Pelo menos, terá sido o primeiro europeu com “poder de fogo”,</p><p>chegando a dominar o arquipélago durante algum tempo, antes de este cair</p><p>nas mãos dos árabes.</p><p>Ao longo</p> o limite de idade [70 anos] […]. Salazar nunca o mandou aposentar, já que aguardando aposentação, ganhava o seu vencimento por inteiro […].» Nesta situação, o meu avô receberia o mesmo que outros colegas que tinham a sua categoria, como Rocha Prista e Figueiredo e Campos, sem nunca pôr os pés no ministério. É por isso que há hoje quem tenha a ousadia de dizer por aí que afinal Aristides de Sousa Mendes foi sempre um protegido de Salazar… E o problema é que isto é dito muito a sério! Como se os documentos dos arquivos do MNE nem sequer fizessem menção a «pensão provisória», que era a única coisa que recebia. Parece que Salazar e o salazarismo andaram a enganar o próprio regime e o próprio sistema, dando nomes enganadores às “coisas”. Porquê? Por razões altamente secretas, dizem os defensores destas tentativas de branqueamento dos atos do ditador. De acordo com as teorias destes senhores, quando Salazar escreve «condeno ASM à pena de um ano de inatividade», de facto, era apenas para “despistar”. Despistar o país, despistar o visado, despistar o regime… Há teorias para tudo e gente para as defender a todas. Claro que, mais uma vez, a culpa de as coisas não terem corrido bem foi do meu avô, que teve o desplante de morrer sem que Salazar tivesse a oportunidade de o aposentar. Fora de brincadeiras: o recurso para o Supremo Tribunal Administrativo não podia ter outro resultado senão o que já tinha sido decidido superiormente por Salazar, em finais de outubro de 1940. O regime manifestava-se em todo o seu esplendor. CAPÍTULO X Reabilitação Reconhecimento, reintegração, agradecimento internacional A reabilitação do nome de Aristides de Sousa Mendes começou em simultâneo com o ataque à sua honra e dignidade. Nem o meu avô, nem ninguém da família, teve na altura essa perceção, mas olhando em retrospetiva, percebemos que foi isso que aconteceu. Um processo longo e penoso para todos, em especial para o meu avô, que já não teve o prazer de ver o seu gesto reconhecido pelo país em que nasceu. Mesmo para os filhos não foi fácil conseguir que as autoridades portuguesas se dignassem, finalmente, olhar para a atitude de um homem que o resto do mundo já proclamava como herói, e que só em Portugal permanecia praticamente desconhecido. Hoje, felizmente, já não é assim. Aristides de Sousa Mendes, embora postumamente, foi reabilitado, reintegrado e condecorado com a mais alta comenda da nação, e é reconhecido pelos portugueses como um dos seus “grandes”. Pelo menos, nós, os netos, temos o prazer de ver que a decisão que o nosso avô tomou, e que tantas dificuldades trouxe ao fim da sua vida, é hoje objeto de gratidão pelos descendentes de quem salvou, e pelos compatriotas orgulhosos de um homem que soube desobedecer a Salazar para obedecer à sua consciência. Várias condecorações atribuídas ao cônsul Aristides de Sousa Mendes ao longo da sua carreira diplomática. Injustiça no ��� Quando o meu avô morreu, em 1954, a família estava destroçada e espalhada por vários países e continentes. Mas todos os descendentes transportavam dentro de si o sentimento de que a injustiça cometida contra os seus pais tinha de ser reparada. Esse sentimento era tão forte que os meus tios, os filhos de Aristides, o transmitiram aos seus próprios filhos como parte do ADN da família. Aristides de Sousa Mendes. Sebastião, um dos dois “americanos” e um dos “dois de Inglaterra” que tinha participado no desembarque da Normandia, ao despedir-se do pai prometeu-lhe, diante da mãe, que iria contar ao mundo a história da atitude heroica do cônsul de Bordéus em 1940. E assim o fez. Em agosto de 1945 instalou-se na Califórnia, e com o irmão Carlos Francisco Fernando começou a divulgar o gesto de rebeldia praticado pelo pai, que tantas vidas tinha salvado, e que era uma verdadeira proclamação dos direitos humanos. Escreveu vários rascunhos. Não queria que fosse uma narrativa demasiado longa, mas desejava chamar a atenção do público para uma história verídica, onde havia um herói de carne e osso muito real e que ele conhecia bem. Mas nos anos que se seguiram ao apocalipse que foi a Segunda Guerra Mundial, a Humanidade não estava preparada para ler histórias de morte, destruição e iniquidade. As pessoas queriam olhar para um futuro menos escuro, menos duro. Acabavam de sair do inferno, queriam esquecê-lo, queriam aproveitar o que a vida tinha de bom para lhes oferecer, e deixar para trás os anos de luta e desesperança. É verdade que havia filmes sobre a guerra, e as pessoas iam ao cinema vê-los, mas era difícil o processamento, de um ponto de vista mais racional, mais intelectual, de um horror como a carnificina que foi o Holocausto. Era muito penoso, como coletivo, termos de nos interrogar sobre as razões que permitiram que tal monstruosidade acontecesse. Teriam de passar 70 anos para que os países que participaram na Segunda Guerra Mundial se voltassem para esse período da História, fizessem eles parte dos vitoriosos ou dos derrotados. Essa já era uma história que tinha sido vivida pelos nossos avós, duas gerações tinham nascido e crescido depois daquele horror, e agora desejavam compreender minimamente aquilo que pais e avós não puderam entender. Em Portugal, este período foi ainda mais marcante, com a passagem de um regime autoritário e fechado, para um democrático e mais livre. Quando Aristides morreu, em 1954, não havia liberdade de expressão em Portugal, nem meios de comunicação social que tivessem algum poder de investigação, ou pudessem revelar o que quer que fosse. Em 1974, dá-se uma revolução democrática em Portugal, que põe fim a uma guerra colonial que se arrastava apoiando-se no autoritarismo. Em duas décadas, os portugueses evoluíram de uma forma que não lhes tinha sido permitida em quase 50 anos. Cartão (e respetivo envelope) enviado e assinado por Oliveira Salazar apresentando as condolências pela morte de Aristides a 3 de abril de 1954. Do lado da nossa família, arrasada pelos acontecimentos que tinham marcado o fim da vida de Aristides e levado a que os seus filhos (e netos) emigrassem para vários pontos do mundo, apenas tinham passado 20 anos. O gesto do pai continuava vivo e atual, e, no estrangeiro, os filhos começaram gradualmente a agir. Primeiro, surgiu o livro de Sebastião, A Flight through Hell (Fuga através do inferno), que só teve uma edição, complementada mais tarde pelas iniciativas de uma das irmãs, Joana, a quem os irmãos tinham posto a alcunha de “a teimosa”. Quando Sebastião concluiu a versão final do livro, enviou-a ao pai para obter a reação do herói principal da sua história, já que as outras personagens, também reais, tinham os nomes alterados. Aristides respondeu-lhe, simplesmente, numa carta: «As coisas passaram-se exatamente como contas.» Todos os irmãos desempenharam um papel no enaltecimento do nome de Aristides, transmitindo diretamente aos filhos e próximos o que viveram e o que sofreram de diferentes formas, de acordo com as suas maneiras de ser. O meu pai, Geraldo, se bem que tivesse permanecido em território administrado pelo Estado Novo (Angola), assinou a lista do MUD, como já disse, e falava sobre o gesto do pai sempre que tinha ocasião, de forma por vezes exaltada. Chegou mesmo a escrever uma carta a Marcelo Caetano, a propósito do que o último presidente do Conselho do antigo regime escreveu sobre a Segunda Guerra, na página 202 do seu livro Minhas Memórias de Salazar: «No território português, apesar das dificuldades naturais de receber, alimentar, e até controlar essa multidão que era praticamente impossível de selecionar nos consulados competentes para conceder os vistos de entrada, resistindo à pressão dramática do “salve-se quem puder”, os refugiados são acolhidos, assistindo-se os necessitados até se poderem organizar os serviços para os encaminhar aos seus destinos. Os judeus, sobretudo, graças a uma comissão que contou sempre com o apoio de Salazar, puderam através de Lisboa demandar países seguros.» O meu pai tinha a certeza de que Marcelo Caetano conhecia a verdadeira