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<p>Ficha Técnica</p><p>Título: Unicórnios Portugueses</p><p>Autor: Ana Pimentel</p><p>Revisão: Ana Marta Ramos</p><p>Capa: Joana Tordo</p><p>ISBN: 9789892352572</p><p>LUA DE PAPEL</p><p>[Uma chancela do grupo Leya]</p><p>Rua Cidade de Córdova, n.º 2</p><p>2610-038 Alfragide – Portugal</p><p>Tel. (+351) 21 427 22 00</p><p>Fax. (+351) 21 427 22 01</p><p>© 2021, Ana Pimentel</p><p>Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor</p><p>luadepapel@leya.pt</p><p>www.luadepapel.pt</p><p>www.leya.pt</p><p>mailto:luadepapel%40leya.pt?subject=</p><p>http://www.luadepapel.pt/</p><p>http://www.leya.pt/</p><p>https://pt-pt.facebook.com/editoraLuadePapel</p><p>https://www.instagram.com/editoraluadepapel/</p><p>Índice</p><p>Capa</p><p>Ficha Técnica</p><p>Banda Sonora</p><p>Prefácio</p><p>Introdução</p><p>PRIMEIRA PARTE: NÃO HÁ MAGIA AQUI (MAS PARECE)</p><p>1. Como nasce um unicórnio</p><p>2. Porque é que um unicórnio vale tanto</p><p>3. O poder de uma só ronda</p><p>SEGUNDA PARTE: DINHEIRO EM QUEDA LIVRE</p><p>1. Quem manda é a bolsa</p><p>2. Espelho meu, haverá unicórnio melhor do que o meu?</p><p>3. Póneis com um chifre na testa</p><p>TERCEIRA PARTE: JOSÉ NEVES CHEGA A WALL STREET</p><p>1. O milionário que nunca teve um emprego</p><p>2. Brincar aos legos num ZX Spectrum</p><p>3. A necessidade aguça o engenho</p><p>4. Medo de ter medo</p><p>QUARTA PARTE: A CAVALGADA DOS UNICÓRNIOS</p><p>1. A dor, a sobrevivência e os percalços da OutSystems</p><p>2. O MacBook Air e duas tias freiras: como nasceu a Talkdesk</p><p>3. Adrenalina</p><p>QUINTA PARTE: A PANDEMIA CONTRA-ATACA</p><p>1. Agarrados ao ecrã</p><p>Epílogo</p><p>Agradecimentos</p><p>clbr://internal.invalid/book/OEBPS/Text/Section0001.xhtml</p><p>Ana Pimentel</p><p>UNICÓRNIOS PORTUGUESES</p><p>A história das startups</p><p>de mil milhões de dólares</p><p>Para a minha mãe e para o meu pai,</p><p>que nunca deixaram de acreditar</p><p>e são luz e pilares de tudo o que sou hoje.</p><p>u.ni.cór.ni.o</p><p>1. [Mitologia] Animal fantástico semelhante ao cavalo, com um</p><p>chifre comprido e geralmente espiralado na testa. = LICORNE</p><p>2. [Zoologia] Rinoceronte asiático (Rhinoceros unicornis) dotado de</p><p>apenas um chifre. = MONOCERONTE, UNICORNE</p><p>3. Substância extraída do chifre desse rinoceronte.</p><p>4. [Astronomia] Constelação equatorial. (Geralmente com inicial</p><p>maiúscula.) = LICORNE</p><p>5. [Economia] Empresa recente ou em fase de</p><p>desenvolvimento, ligada à indústria de software e às novas</p><p>tecnologias, cuja avaliação é superior a mil milhões de dólares</p><p>de investimento (ex.: surgiram alguns unicórnios na última</p><p>década).</p><p>in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa</p><p>Não podes nadar para novos horizontes</p><p>até teres coragem de perder a costa de vista.</p><p>William Faulkner</p><p>Nada é tão desconfortável, perigoso e doloroso</p><p>como acreditar que estou no exterior da minha vida</p><p>a olhar para dentro e a perguntar -me como seria</p><p>se tivesse coragem de aparecer e deixar que me vissem.</p><p>Brené Brown</p><p>BANDA SONORA</p><p>Se este livro tivesse uma banda sonora, seria esta.</p><p>É uma playlist para começar de novo e ter coragem para</p><p>mudar o que está mal (ou reinventar o que já é bom).</p><p>Lucy Dacus – Dancing In The Dark (2019)</p><p>Franz Ferdinand – Lois Lane (2018)</p><p>Arcade Fire – Put Your Money on Me (2017)</p><p>Hamilton Leithauser – Don’t Check the Score (2020)</p><p>Kendrick Lamar – Backseat Freestyle (2012)</p><p>Childish Gambino – This is America (2018)</p><p>Anderson .Paak – The Dreamer (2016)</p><p>Anderson .Paak feat Rick Ross – CUT EM IN (2020)</p><p>Slow J – Só Queria Sorrir (2019)</p><p>Lana Del Rey – Money Power Glory (2014)</p><p>Joan as Police Woman – Let It Be (2020)</p><p>Lena D’Água – Grande Festa (2019)</p><p>Sufjan Stevens – Make Me An Offer I Cannot Refuse (2020)</p><p>Elvis Presley – Pocketful of Rainbows (1960)</p><p>Nina Simone – Ain’t Got No – I Got Life (1968)</p><p>The Mamas & The Papas – California Dreamin’ (1966)</p><p>The Chemical Brothers – The Darkness That You Fear</p><p>(2021)</p><p>The Strokes – Happy Ending (2013)</p><p>Sérgio Godinho – O Primeiro Dia (1978)</p><p>PREFÁCIO</p><p>Estamos a 5 de Novembro de 2015 em Dublin, na Irlanda. Eu estou na Web</p><p>Summit, a olhar para o palco e a assistir ao anúncio da decisão que vai levar</p><p>a conferência para Lisboa. Estou com o meu sócio na Beta-i, o Pedro Rocha</p><p>Vieira, e com o meu colega Pedro Caio, e estamos todos animados. Tinha</p><p>chovido muito nesse dia. Como o evento acontece num espaço de</p><p>competições equestres, há várias tendas, o que significa que, para nos</p><p>deslocarmos de um sítio para outro, apanhamos umas valentes molhas.</p><p>O palco principal parece uma tenda gigante de circo. Cabem lá talvez</p><p>umas duas ou três mil pessoas e está cheio. O Wi-Fi está com imensos</p><p>problemas e abundam comentários pouco simpáticos. A mim só me ocorre</p><p>que, se a Web Summit for mesmo para Lisboa e para a zona da Expo (onde</p><p>está a FIL), então vai ter um enorme upgrade em termos de logística e</p><p>organização. É neste momento que entra em palco a delegação portuguesa,</p><p>liderada pelo vice-primeiro-ministro Paulo Portas e pelo presidente da</p><p>AICEP, Miguel Frasquilho. A emoção está ao rubro.</p><p>Um pouco mais tarde, encontro o meu amigo Nuno Sebastião (CEO da</p><p>Feedzai e meu antigo sócio) e sentamo-nos a trocar algumas impressões.</p><p>Passados poucos minutos, aparece Paddy Cosgrave, presidente da Web</p><p>Summit, que nos cumprimenta efusivamente. Como tem uns minutos livres,</p><p>senta-se a conversar connosco – quer saber como está a ser para nós, como</p><p>vemos a ida do evento para Portugal e como achamos que o evento pode</p><p>ajudar o ecossistema de startups, empreendedores e investidores do país. A</p><p>conversa prolonga-se, juntam-se outros empreendedores portugueses na</p><p>mesa e falamos de vários temas, até que Paddy toca no ouvido e diz que</p><p>tem de ir: “Vou entrar em palco agora mesmo”.</p><p>O dia é longo, com muitas caminhadas entre as várias partes da Web</p><p>Summit, e acabo por almoçar com outro amigo, o Diogo Mónica (antigo</p><p>security lead nas empresas Square e Docker e, em 2021, CEO da</p><p>Anchorage). Conversamos sobre tudo e mais alguma coisa. Está em Dublin</p><p>muita gente que conhecemos a nível nacional e internacional e isso dá-nos</p><p>conforto sobre a dinâmica do evento.</p><p>Quando o dia já está perto do fim, acabamos por encontrar a equipa staff</p><p>sénior da Web Summit. Conversamos com eles enquanto nos fazem uma</p><p>visita guiada ao backstage e nos explicam alguns detalhes sobre como se</p><p>monta um evento daquela dimensão (o meu colega Pedro Caio está</p><p>maravilhado).</p><p>Quando finalmente acabamos o tour pelo evento, estamos ao lado do</p><p>palco principal (a tal tenda gigante), que agora está vazia, à excepção de</p><p>uma pessoa. Essa pessoa está freneticamente a escrever no seu portátil e</p><p>está tão concentrada que, provavelmente, nem reparou que é a última a sair.</p><p>Olho melhor e percebo que a conheço. É a minha amiga Ana Pimentel, do</p><p>Observador.</p><p>Vou ter com a Ana e ela diz-me que está quase a terminar, que tem um</p><p>prazo para publicar uma peça sobre o que se tinha passado durante aquele</p><p>dia, depois do anúncio da ida da Web Summit para Lisboa. E de repente</p><p>oiço um: “Uff, já está, conta, Ricardo”. Falamos durante uns largos minutos</p><p>sobre como foi o dia, o que achámos, o que pensávamos deste evento em</p><p>Portugal e o que podia vir a ser diferente.</p><p>Sempre gostei de conversar com a Ana. Encontrámo-nos pela primeira</p><p>vez em 2011, quando fez uma das primeiras reportagens à Beta-i, no nosso</p><p>escritório no Marquês de Pombal, ainda ela não estava no Observador. Ao</p><p>longo dos anos, fomo-nos cruzando em vários eventos, acontecimentos,</p><p>anúncios, debates, encontros sobre o ecossistema de startups em Portugal.</p><p>A Ana viveu, tal como nós, o início do desabrochar deste movimento</p><p>grassroots, que nasceu na comunidade e se empoderou, e é provavelmente a</p><p>jornalista com mais conhecimento da área no nosso país. Não só por ter</p><p>estado sempre presente em tudo o que mexia sobre startups, mas</p><p>principalmente pela forma como aprofundava, em detalhe, o que escrevia</p><p>sobre o que estava a acontecer. Sempre gostei da análise directa e franca e</p><p>da forma como escrevia.</p><p>Um dia até a desafiei a ser moderadora de um evento da Beta-i, o Lisbon</p><p>Investment Summit (LIS). Disse-me mil vezes que não, que não tinha jeito</p><p>para essas coisas, que nunca tinha feito moderação de debates e que podia</p><p>correr mal. E mil vezes eu insisti até que, um dia, me disse que sim. O</p><p>evento não podia ter corrido melhor, ganhou-lhe o gosto de moderar em</p><p>palco e nunca mais parou.</p><p>Este livro é o reflexo de um trabalho</p><p>o que</p><p>defendi no comité de investimento, porque não era óbvio fazer um</p><p>investimento já tão caro naquela altura, tão pequenino e tão caro”, explicou.</p><p>E como é que fizeram as contas? “Fizemos uma análise sobre os</p><p>múltiplos, ou seja, [comparámos] empresas do mesmo tamanho em termos</p><p>de receitas e mais uma ou outra métrica que já não me lembro, [e</p><p>percebemos] quais eram as avaliações que estavam a ter naquela altura. E</p><p>eram superiores às que a Farfetch estava a ter. Portanto, achei que ainda</p><p>havia espaço para crescer. E houve. Chegou até aos 7 mil milhões, portanto,</p><p>foi 7 vezes.”</p><p>Na ronda que avaliou a loja online de moda de luxo em unicórnio, a</p><p>Caixa Capital participou naquele que era o mercado secundário, ou seja,</p><p>comprou uma parcela da empresa a um investidor que queria sair do capital</p><p>accionista da startup de José Neves. Mas as métricas não foram as únicas</p><p>bases do negócio: “Havia uma outra razão: nós fomos os únicos</p><p>investidores portugueses que tiveram esta hipótese. E também havia algum</p><p>prestígio em sermos o único fundo português que teve acesso ao primeiro</p><p>unicórnio português”, acrescentou.</p><p>Na altura, José Neves queria incluir na oferta da empresa a possibilidade</p><p>de os consumidores receberem entregas no próprio dia, em vários mercados</p><p>globais, e o desenvolvimento continuado de programas VIP e de fidelização</p><p>dos consumidores, que estavam presentes em 180 países. Em 2015, e</p><p>segundo o Financial Times, os principais mercados da plataforma online de</p><p>moda de luxo eram o Reino Unido e os Estados Unidos da América, e os</p><p>mais recentes eram a Rússia, a China e o Japão.</p><p>Quando, no final de 2017, voltei a falar com José Neves para a rubrica do</p><p>Observador “O meu fracasso antes do meu sucesso” e lhe perguntei se já</p><p>tinha conseguido, finalmente, falar com o fundador do Facebook, a resposta</p><p>chegou entre algumas risadas: “Ainda não falei com Zuckerberg, mas já</p><p>falei várias vezes com David Marcus, que é o director do Messenger, foi</p><p>CEO do Paypal, será o número dois ou três… É um dos de topo do</p><p>Facebook, que é muito amigo do meu primeiro investidor. São ambos</p><p>franceses e temos uma relação muito próxima com ele e com o Facebook.</p><p>Fica para um dia destes esse encontro. Quando ele tiver tempo... Vai ser</p><p>difícil”.</p><p>Venham mais cinco, perdão, quatro</p><p>A segunda notícia de uma ronda de investimento que levaria outra empresa</p><p>fundada por um português ao estatuto de unicórnio só chegaria três anos</p><p>depois, a 5 de Junho de 2018. Depois de ter fechado uma operação de</p><p>financiamento no valor de 360 milhões de dólares, a OutSystems ficou</p><p>avaliada em mais de mil milhões, 17 anos depois de ter sido criada.</p><p>Paulo Rosado era o homem por detrás da empresa de desenvolvimento de</p><p>aplicações de software, que tinha nascido já numa segunda aventura: depois</p><p>de o empreendedor ter vendido a sua primeira empresa.</p><p>Em 17 anos, a empresa contabilizou 5 rondas de investimento, num total</p><p>de 422,1 milhões de dólares. A última foi a que a avaliou em unicórnio e</p><p>contou apenas com dois investidores: a casa de investimento norte-</p><p>americana Kohlberg Kravis Roberts e a também americana Goldman Sachs.</p><p>O objectivo era expandir o negócio e apostar em Investigação &</p><p>Desenvolvimento na área de automação de software. “Ao tirar partido da</p><p>automação, inteligência artificial e integrações de tecnologia, software</p><p>developers e utilizadores empresariais podem criar aplicações através de</p><p>uma interface visual intuitiva, ao invés do código tradicional”, lia-se no</p><p>comunicado que enviaram às redacções nesse dia.33</p><p>Quando Paulo Rosado entrou para o clube dos seres mitológicos, a</p><p>plataforma de low-code da OutSystems já era usada em empresas como a</p><p>Toyota, Deloitte, Schneider Electric e GM Financial, era líder no mercado</p><p>em que actuava e tinha receitas acima dos 100 milhões de dólares, com um</p><p>crescimento anual superior a 70%, e milhares de clientes no mundo, num</p><p>ano que foi “recorde para a empresa”. Era, portanto, uma tecnológica com</p><p>uma solidez e maturidade diferentes.</p><p>“Estamos a combater um dos maiores problemas que as empresas</p><p>enfrentam actualmente – a falta de velocidade e agilidade do</p><p>desenvolvimento tradicional de software, que está a dificultar as iniciativas</p><p>de transformação digital”, dizia Paulo Rosado nessa altura. Sobre o</p><p>investimento de 360 milhões nesta tecnológica portuguesa, as casas de</p><p>investimento diziam o seguinte:</p><p>*</p><p>“Acreditamos que estamos no início do que será um longo</p><p>período de crescimento significativo no mercado de</p><p>desenvolvimento de aplicações low-code, e estamos muito</p><p>entusiasmados em apoiar um líder da categoria da OutSystems” –</p><p>Stephen Shanley, director na Kohlberg Kravis Roberts;</p><p>“A OutSystems está directamente alinhada com o que procuramos</p><p>para novos investimentos: o apoio de fundadores excepcionais e</p><p>equipas de gestão em negócios inovadores que oferecem uma</p><p>oportunidade significativa para criar valor a longo prazo” –</p><p>Christian Resch, managing director na Goldman Sachs Private</p><p>Capital Investing;</p><p>“Com clientes em mais de 50 países e quase 250 integradores de</p><p>parceiros no desenvolvimento da plataforma, fica claro que o</p><p>mercado de low-code alcançou um ponto de mudança, e a</p><p>OutSystems é o líder indiscutível” –Mike Pehl, membro do</p><p>conselho de administração da OutSystems e managing partner na</p><p>Guidepost Growth Equity.</p><p>*</p><p>Quando, alguns meses depois, perguntei ao empresário de 53 anos em que</p><p>é que o novo estatuto mudava a sua vida, a resposta foi: em nada. “O facto</p><p>de sermos um unicórnio não vem mudar o dia-a-dia da empresa. A última</p><p>ronda de financiamento não muda nada drasticamente. A única coisa que</p><p>nos permite é ter uma folha de balanço muito mais equilibrada, que nos</p><p>permite ser muito mais agressivos. Nós já tínhamos e temos dezenas de</p><p>iniciativas em várias áreas, onde estamos a investir muito. E isto,</p><p>basicamente, permite-nos investir ainda mais, reforçar esses investimentos.”</p><p>Então, porque é que é importante? “Não é o facto de ser unicórnio, é o de</p><p>esta ronda de investimento ter uma determinada valorização. E os</p><p>investidores apostaram, porque acham que a empresa vai continuar a</p><p>crescer e ser muito bem-sucedida para o futuro. Fizemos essa promessa e</p><p>agora temos de a cumprir”, respondeu-me na sala que ocupava no escritório</p><p>de Linda-a-Velha, em Lisboa.</p><p>Ainda nesse ano, foi a vez de a Talkdesk aparecer na imprensa associada</p><p>à mesma terminologia: depois de ter avaliado as seis propostas de</p><p>financiamento que vários fundos lhe fizeram chegar para fechar a segunda</p><p>ronda, o CEO Tiago Paiva escolheu a dos nova-iorquinos Viking Global:</p><p>100 milhões de dólares que avaliavam a startup em mais de 1,2 mil milhões</p><p>de dólares. A Treshold Ventures, de São Francisco – que já tinha participado</p><p>em rondas anteriores – também acompanhou a Série B.</p><p>Desde 2011, ano em que foi lançada por Cristina Fonseca e Tiago Paiva,</p><p>até àquela data, a startup que prometia “montar um call center em cinco</p><p>minutos” recebeu 124,5 milhões de dólares de investidores.</p><p>Quando conversei com Marco Costa, nessa altura director-geral da</p><p>Talkdesk para Portugal, Europa, Médio Oriente e África, para o artigo que</p><p>publiquei no Observador sobre o investimento, o gestor explicou-me que</p><p>aquela ronda era “claramente, o maior levantamento de capital de uma</p><p>empresa privada” no sector em que a startup actuava.</p><p>Fui fazer mais contas e descobri que também era a ronda Série B com o</p><p>valor mais elevado entre as maiores startups de origem portuguesa: na</p><p>mesma ronda e fase da empresa, a Farfetch captou 18 milhões de dólares</p><p>em 2012; a OutSystems reuniu 5,4 milhões em 2007; a Feedzai (apontada à</p><p>data como um próximo unicórnio, viria a sê-lo em 2021) levantou 17,5</p><p>milhões de dólares em 2015; e a Unbabel, que em 2019 concluiu uma ronda</p><p>Série C, captou 23 milhões de dólares na B, que tinha fechado em 2018.</p><p>No dia em que se tornou unicórnio, a Talkdesk empregava 400 pessoas –</p><p>250 em Portugal e 150 nos EUA –; no portefólio de cerca de 1500 clientes</p><p>encontravam-se nomes como a Glintt, IBM, a Dropbox ou a Pivotal; e o</p><p>slogan “montar um call center em cinco minutos” já não traduzia tudo o</p><p>que a empresa</p><p>fazia: “É uma boa definição, mas hoje já é um bocadinho</p><p>limitativa do nosso produto, ou seja, esse pilar de sermos muito ágeis, muito</p><p>fáceis de integrar e de utilizar é um pilar importante que está lá e é um</p><p>factor que nos distingue, mas não é só esse”.</p><p>O objectivo da ronda era que uma parcela do investimento servisse para</p><p>reforçar a equipa de Investigação & Desenvolvimento portuguesa, porque –</p><p>apesar de a sede da empresa estar nos EUA – a tecnologia era, à data,</p><p>“completamente desenvolvida em Portugal” e, até 2020, a Talkdesk queria</p><p>atingir os mil colaboradores. Outra parcela do investimento tinha como</p><p>destino fazer crescer aquele que consideravam ser o produto certo: “Aquele</p><p>que os nossos clientes precisam e que nós acreditamos que precisam, mas</p><p>que ainda não sabem”, explicou-me Marco Costa.</p><p>E depois de fechar a ronda que elevou a terceira empresa de portugueses a</p><p>unicórnio, o que é que era preciso? “Usar bem este dinheiro”, respondeu-me</p><p>o director da empresa para Portugal, Europa, Médio Oriente e África.</p><p>Lembra-se do que era um unicórnio? Um cocktail de dinheiro, inovação,</p><p>métricas, potencial e risco.</p><p>Com todos estes ingredientes anotados, foi preciso esperar três anos – e</p><p>uma pandemia de Covid-19 – para haver um novo unicórnio em território</p><p>nacional. A 24 de Março de 2021, a Feedzai anunciava que tinha fechado</p><p>uma ronda de investimento de 200 milhões de dólares, que avaliava a</p><p>empresa em 1,3 mil milhões de dólares, contou-me o CEO Nuno Sebastião</p><p>numa conversa que tivemos mais tarde nesse mesmo dia.</p><p>A operação de financiamento tinha sido liderada pela investidora</p><p>internacional KKR e contou também com a participação de nomes que já</p><p>tinham investido na empresa antes, como a Sapphire Ventures e a Citi</p><p>Ventures. Era a sétima ronda, de acordo com os dados do Crunchbase, e ia</p><p>servir para a Feedzai acelerar a expansão global, aumentar a oferta de</p><p>produtos e consolidar-se no mercado de gestão de risco e prevenção de</p><p>cibercrime.</p><p>A notícia não foi tão surpreendente assim, porque a expectativa sobre a</p><p>empresa lançada em 2009, em Coimbra, por Nuno Sebastião, Paulo</p><p>Marques e Pedro Bizarro já era muita. Em 2018, a Feedzai tinha sido</p><p>considerada pela Forbes uma das 50 empresas mais promissoras na área da</p><p>tecnologia financeira. Dois anos antes tinha entrado, pela primeira vez, para</p><p>a lista do Tech Tour, que incluía as 50 empresas europeias com maior</p><p>potencial, sendo também a primeira organização portuguesa a fazê-lo. Em</p><p>2021, a startup contava com uma equipa de mais de 500 pessoas e tinha</p><p>escritórios em Lisboa, Porto, Coimbra, Nova Iorque, Atlanta, Silicon Valley,</p><p>Londres, Hong Kong e Sydney.</p><p>Quando a ronda aconteceu, em plena pandemia, a Feedzai nem sequer</p><p>andava à procura de capital. “Nós não precisávamos disto. O ano passado</p><p>foi o nosso melhor ano de crescimento, adaptámo-nos muito bem à Covid-</p><p>19”, explicou-me em entrevista para o Observador. Mas dado o primeiro</p><p>passo, bastou-lhe três semanas para completar o negócio. Três semanas para</p><p>valer 1,3 mil milhões.</p><p>Quatro meses depois, e em tempo recorde, era a vez da muito recente</p><p>Remote anunciar a ronda de investimento que a transformou também num</p><p>unicórnio. Dois anos de vida em pandemia que se traduziram em milhares</p><p>de milhões de pessoas em teletrabalho no mundo todo. A 13 de Julho de</p><p>2021, a startup co-fundada por Marcelo Lebre fechava a maior ronda série</p><p>B das empresas com ADN nacional – 150 milhões investidos pelos fundos</p><p>internacionais Accel, Sequoia, Index Ventures, Two Sigma, General</p><p>Catalyst e Day One Ventures.</p><p>30 https://breakthroughprize.org/Yuri_Milner</p><p>31 https://observador.pt/especiais/a-farfetch-vale-mil-milhoes/</p><p>32 https://techcrunch.com/2009/05/26/mark-zuckerberg-and-yuri-milner-</p><p>talk-about-facebooks-new-investment-video/</p><p>33 https://observador.pt/2018/06/05/ha-um-novo-unicornio-de-origem-</p><p>portuguesa-a-outsystems/</p><p>https://breakthroughprize.org/Yuri_Milner</p><p>https://observador.pt/especiais/afarfetchvalemilmilhoes/</p><p>https://techcrunch.com/2009/05/26/markzuckerbergandyurimilnertalkaboutfacebooksnewinvestmentvideo/</p><p>https://observador.pt/2018/06/05/haumnovounicorniodeorigemportuguesaaoutsystems/</p><p>Quando se começa um projecto de uma startup, sabe-se tudo menos</p><p>aquilo que vai acontecer na realidade.</p><p>Epifânio da Franca, ex-presidente da Portugal Ventures</p><p>CAPÍTULO 1</p><p>QUEM MANDA É A BOLSA</p><p>Cristina Fonseca estava sentada com Ricardo Torgal na cafetaria do Museu</p><p>das Comunicações, na zona do Cais do Sodré, quando me aproximei.</p><p>Passava pouco das 17 horas e Lisboa já tinha entrado no lusco-fusco</p><p>amarelado que tanta inveja faz a outras cidades. Naquela quinta-feira de</p><p>fins de Novembro de 2019, o frio denunciava a chegada do Inverno. Na</p><p>mesa onde se sentavam os dois co-fundadores da Indico Capital Partners,</p><p>viam-se os vestígios de um lanche das cinco. “Conversamos no escritório</p><p>da Indico ou aqui mesmo?”</p><p>Decidimos ficar ali mesmo.</p><p>A empreendedora e investidora portuguesa estava sentada à minha</p><p>esquerda. Com 32 anos, Cristina Fonseca já tinha o unicórnio Talkdesk num</p><p>dos lados do currículo e um fundo de investimento de 51 milhões no outro</p><p>(a par do conselho de administração da Galp, que integrava desde Março</p><p>desse ano). Quando lhe perguntei se estávamos, de facto, a viver uma bolha</p><p>tecnológica nas empresas sobrevalorizadas (em 2019), a resposta foi</p><p>afirmativa. Estávamos. “Mas isso é o reflexo de haver muito dinheiro no</p><p>mercado. E se há capital disponível…”, dizia. Então, para o resto, não seria</p><p>preciso fazer muitas contas.</p><p>“O que pagas para entrar numa ronda não é o preço real de uma empresa,</p><p>é o que permite à matemática fazer sentido para alinhar os interesses de</p><p>toda a gente”, esclareceu a investidora. “E desse ponto de vista, o mercado</p><p>está louco. Há muitas empresas que se calhar não deviam ser financiadas e</p><p>são. As empresas ficam privadas durante muito tempo e, depois, acontece o</p><p>que aconteceu com os IPO [recentes, como o da Uber ou Lyft].”</p><p>A 6 de Novembro de 2019, seis meses depois da estreia em bolsa, as</p><p>acções da Uber chegaram a valer, às 12h25 (hora de Nova Iorque), 25,58</p><p>dólares, naquele que foi o ponto mais baixo do título nesse ano – valiam, a</p><p>essa hora desse dia, pouco mais de metade do valor com que se</p><p>apresentaram ao mercado.34 Até ao final de 2019, o preço não ultrapassou</p><p>em muito os 30 dólares por título e, a 31 de Dezembro, a Uber fechava a</p><p>sessão com um valor de mercado de 50,73 mil milhões de dólares35 – cerca</p><p>de menos 28% do que valia na última avaliação privada.</p><p>“Parte do problema e do porquê desta pressão é que a Uber e muitos dos</p><p>seus companheiros de IPO deste ano permaneceram privados durante muito</p><p>tempo”, justificou à agência financeira Bloomberg o analista Yagl Arounian,</p><p>da casa de investimento Wedbush. Por esta altura, também as acções da app</p><p>rival da Uber, a norte-americana Lyft, tinham caído 24% desde a admissão</p><p>na bolsa de Nova Iorque, a 29 de Março de 2019. Não estava a ser um bom</p><p>ano para as tecnológicas que se decidiram estrear nos mercados públicos.</p><p>Apesar das quedas, nada parecia estar a assustar verdadeiramente Wall</p><p>Street. Segundo a Bloomberg, em Novembro de 2019 apenas um dos</p><p>analistas que acompanhava a Uber recomendava vender as acções, 25</p><p>recomendavam a compra e 12 sugeriam mantê-las. Estariam à espera de</p><p>boas notícias?</p><p>Apesar do aparente optimismo, era impossível ficar indiferente ao</p><p>trambolhão que as acções da tecnológica liderada por Dara Khosrowshahi</p><p>estavam a dar em Nova Iorque. Na base da queda, as revelações pouco</p><p>animadoras que saíram dos resultados que a empresa (por ser pública) era</p><p>então obrigada a apresentar trimestralmente aos mercados.</p><p>Logo em Agosto de 2019, um recorde: 5,2 mil milhões de dólares em</p><p>prejuízos e um crescimento de apenas 14% nas receitas. Das perdas, 3,9 mil</p><p>milhões diziam respeito às compensações (em acções) dadas aos</p><p>trabalhadores aquando do IPO36, um procedimento bastante comum quando</p><p>este tipo de empresas vai para a bolsa. E, no trimestre seguinte, outros 1,2</p><p>mil milhões em prejuízos – bastante menos, mas ainda assim um valor</p><p>superior ao que a empresa tinha apresentado</p><p>um ano antes.</p><p>Por esta altura, a Bloomberg escrevia que os resultados trimestrais da</p><p>empresa não estavam a conseguir “acabar com a melancolia” que se tinha</p><p>apoderado dos investidores. E os analistas referiam que era preciso que a</p><p>empresa mostrasse um crescimento consistente e constante no número de</p><p>utilizadores que usavam os seus vários serviços – além do transporte em</p><p>carro, nesse ano, a Uber também tinha o serviço de entrega de refeições ao</p><p>domicílio Uber Eats e integrava bicicletas e trotinetes eléctricas partilháveis</p><p>em algumas cidades.</p><p>“A empresa precisa de mostrar um caminho estável para os lucros futuros,</p><p>além de ter de dar maior clareza àqueles que são os obstáculos regulatórios,</p><p>para que o sentimento do mercado comece a virar-se a seu favor”,</p><p>escreviam a 6 de Novembro os jornalistas Drew Singer e Esha Dey.</p><p>Um mês antes, no site de notícias Business Insider, o jornalista Ben</p><p>Winck explicava o fenómeno assim: “2019 não foi um bom ano para os</p><p>unicórnios. Dos vendedores de bicicletas de fitness aos gigantes de partilha</p><p>de carros, as novas empresas públicas de 2019 estão a debater-se [nos</p><p>mercados], apesar de terem ascendido tão depressa à notoriedade cultural.</p><p>Quase metade das empresas que se tornaram públicas em 2019 estão a</p><p>negociar as acções abaixo do preço da oferta pública inicial, com os</p><p>principais IPO a apagarem centenas de milhões de dólares da riqueza dos</p><p>investidores num único dia.”37</p><p>“É a loucura não é?”, atirava Cristina Fonseca, co-fundadora da Talkdesk</p><p>e da Indico naquele fim de tarde no Cais do Sodré. Duas semanas antes,</p><p>contudo, Stephan Morais tinha sido um pouco mais cauteloso no decorrer</p><p>da nossa conversa. Quando lhe perguntei se os mais recentes IPO</p><p>tecnológicos tinham desiludido as expectativas, a resposta foi mais contida:</p><p>“Quase todos, não foram todos”.</p><p>“Acho que no segmento B2C [negócios direccionados ao consumidor]</p><p>está pior, mas em B2B [negócios direccionados a outras empresas] é um</p><p>bocadinho mais fácil de apresentar resultados e de ter consistência. Quando</p><p>é B2C é muito naquela onda de ‘vamos perder dinheiro, porque isto um dia</p><p>tal…’ E isso é perigoso”, explicava o investidor português. Quer a Uber</p><p>quer a Farfetch eram empresas que tinham como público-alvo o consumidor</p><p>final, ou seja, eram B2C. A OutSystems, a Talkdesk e a Feedzai eram B2B.</p><p>No artigo em que o editor de mercados da Bloomberg, Michael P. Regan,</p><p>detalhava o “sangue de unicórnios” que escorria em Nova Iorque nos finais</p><p>de 2019, também referia o seguinte: “Alguns investidores estão a apontar</p><p>para uma desconexão entre os mercados privados – onde estes unicórnios se</p><p>deleitavam com uma corrente aparentemente interminável de dinheiro e</p><p>avaliações, que começam a parecer uma bolha – e os mercados públicos,</p><p>onde o escrutínio dos modelos de negócios é mais robusto”.</p><p>O problema dos gráficos em queda dos unicórnios recém-estreados em</p><p>bolsa parecia estar precisamente aí: no escrutínio às contas. A</p><p>obrigatoriedade de apresentar resultados trimestrais denunciava prejuízos</p><p>escondidos, deixando à mercê da opinião pública o valor de cada uma das</p><p>acções e das empresas no geral. Era preferível, então, que se mantivessem</p><p>as perdas fechadas a sete chaves?</p><p>Quando a cabeça não tem juízo, o unicórnio é que paga</p><p>O pós-IPO da Uber pode não ter aquecido o Verão dos seus investidores em</p><p>2019, mas a empresa de transporte não era caso isolado em Wall Street. Por</p><p>esta altura, também o português José Neves via as suas acções arrefecerem</p><p>no mercado público. Os resultados que a Farfetch apresentou nas contas do</p><p>segundo trimestre de 2019, a 8 de Agosto, atiraram os títulos do primeiro</p><p>unicórnio made in Portugal para uma queda superior a 42%, assim que o</p><p>mercado nova-iorquino abriu. No dia seguinte, os títulos chegaram a ser</p><p>negociados a 9,22 dólares – até esse momento, as acções da empresa nunca</p><p>tinham valido tão pouco em bolsa – e terminaram a sessão a cair perto de</p><p>45%, ou seja, a valer 10,13 dólares.</p><p>De onde vinha o frio? Dos resultados trimestrais da Farfetch. Entre Maio</p><p>e Junho desse ano, a loja online de moda de luxo apresentou prejuízos de</p><p>89,6 milhões de dólares – multiplicando por 5 as perdas realizadas no</p><p>mesmo trimestre, no ano anterior (quando ainda era uma empresa</p><p>privada).38 Apesar de ser um valor inferior ao apresentado no início de</p><p>2019, a julgar pelo comportamento em bolsa nesse dia e nos que se</p><p>seguiram, não terá sido suficiente para agradar aos investidores.</p><p>Em Maio de 2019, quando a empresa apresentou as contas referentes aos</p><p>primeiros três meses do ano, o relatório mostrou que os prejuízos da</p><p>empresa mais do que duplicaram quando comparados com o período</p><p>homólogo: passaram de 50,727 milhões de dólares para 109,03 milhões.39</p><p>No comunicado que a empresa enviou às redacções, justificou estes</p><p>números com a subida dos custos operacionais (para 85,5 milhões de</p><p>dólares) e com o “impacto” que “um dólar mais forte” teve no negócio.</p><p>Entrevistei José Neves para o Observador um mês depois da apresentação</p><p>destes resultados, em Londres, no encerramento da segunda edição do</p><p>Dream Assembly, o programa de aceleração de startups que a Farfetch</p><p>lançou, em 2018, em parceria com as marcas de moda Burberry e Stella</p><p>McCartney. Quando lhe perguntei se estava preocupado com os prejuízos, a</p><p>resposta foi uma tripla negativa: “Não, nada, nada.”</p><p>Pegando na guerra comercial que existia por esta altura entre os EUA e a</p><p>China, o empresário (então com 45 anos) afastou cenários de inquietação.</p><p>“Se fosse de preocupar, os analistas teriam descido o rating [notação de</p><p>risco da empresa]. Obviamente, os mercados estão complicados com as</p><p>questões macroeconómicas da China e Trump, mas ao nível daquilo que são</p><p>[os números] fundamentais da empresa, estamos a entregar exactamente</p><p>aquilo que dissemos que íamos entregar”, disse.40</p><p>Outra das justificações apresentadas por José Neves estava relacionada</p><p>com o programa de acções que a empresa tinha reservado aos trabalhadores,</p><p>o Farfetch for all. “Todos os funcionários da Farfetch, da nossa</p><p>recepcionista ao nosso CFO [director financeiro], são accionistas da</p><p>empresa. Essas acções estão atribuídas e, ao subirem e descerem, vão</p><p>impactar a linha final dos resultados”, explicou-me.</p><p>“O que aconteceu foi que o valor pago em acções aos colaboradores foi</p><p>ajustado à performance da Farfetch na bolsa. Como as acções no fecho</p><p>daquele trimestre tinham subido bastante, o valor contabilizado de share-</p><p>based payments foi superior ao esperado. Portanto, se for ver, grande parte</p><p>dos resultados negativos vem deste share-based payments, são as opções, as</p><p>acções. Não é dinheiro que saiu da empresa para fornecedores, é a nossa</p><p>compensação [para os colaboradores].”</p><p>Enquanto conversámos, o quarto empresário mais rico de Portugal,</p><p>segundo o ranking da revista Forbes, deu destaque ao volume de negócios,</p><p>que tinha subido para cerca de 419 milhões de dólares (mais 43% do que no</p><p>mesmo período do ano anterior), e ao crescimento de 39% nas receitas</p><p>consolidadas, que atingiram cerca de 174 milhões. “A nível de crescimento</p><p>batemos todas as expectativas”, disse-me, enquanto o evento final do</p><p>Dream Assembly não começava. Ainda assim, a empresa contabilizava</p><p>109,03 milhões de dólares em perdas.</p><p>“Seremos lucrativos quando quisermos ser lucrativos”, respondeu-me,</p><p>afastando preocupações. “Neste momento, estamos a crescer a 50% e não</p><p>há muitas empresas – são muito poucas, talvez uma ou duas no mundo –</p><p>com 2 mil milhões de equivalente a vendas [estimadas para o ano], que é o</p><p>nosso GMV [Gross Merchandise Value], mais de 500 milhões [de dólares]</p><p>de receitas previstas para este ano, a crescer 50% ao ano”, acrescentou na</p><p>mesma conversa.</p><p>A aposta de José Neves não estava, à data, na rentabilidade imediata, mas</p><p>sim em conquistar quota de mercado e continuar a crescer. “Temos meios</p><p>financeiros para isso. Temos zero de dívidas, portanto, não temos quaisquer</p><p>dívidas no balanço. Temos os meios financeiros e é isso que os nossos</p><p>investidores querem que façamos, que é crescer. Se quiséssemos crescer um</p><p>pouquinho menos, imediatamente...”</p><p>Perguntei</p><p>de seguida: “Ou seja, se fossem menos ambiciosos e quisessem</p><p>crescer menos a Farfetch já seria lucrativa?” A resposta do português que</p><p>pôs a bandeira portuguesa em Wall Street não se fez esperar: “Claro,</p><p>obviamente”. Mais: “Se olhar para os ratings dos analistas, não descemos</p><p>em nenhum, de nenhum analista. A Goldman Sachs tem um rating da</p><p>Farfetch de 40 dólares, não tocou no rating”.</p><p>Quando, no trimestre seguinte, a Farfetch apresentou resultados, o</p><p>comportamento de alguns analistas já foi diferente. Várias casas de</p><p>investimento cortaram a avaliação das acções da empresa e, em alguns</p><p>casos, esses cortes chegaram a 50%, de acordo com a agência financeira</p><p>Bloomberg, citada pelo Jornal de Negócios.41</p><p>Nessa altura, terão sido os indicadores de rendibilidade, as margens e as</p><p>estimativas para o terceiro trimestre que terão decepcionado os analistas. A</p><p>Farfetch apontava para um crescimento entre 30 a 35% no volume de</p><p>negócios (o tal GMV) dos três meses seguintes, quando a percentagem</p><p>estimada pelos analistas era superior: 41%.</p><p>Os analistas da Wells Fargo, que acompanhavam as acções, destacaram o</p><p>facto de a margem da empresa ter caído 17 pontos percentuais – um</p><p>“colapso” – e mostraram-se “altamente surpreendidos e decepcionados”</p><p>com o abrandamento no crescimento do volume de negócios. Outro motivo</p><p>que terá surpreendido os analistas foi o facto de a Farfetch ter comprado a</p><p>plataforma de marcas de design New Guards por 675 milhões de dólares.</p><p>Aparentemente, ninguém estava à espera.</p><p>Sobre esta compra, José Neves dizia que iria alavancar a base global de</p><p>consumidores, parcerias com boutiques e bases de dados. “A aquisição da</p><p>New Guards aumenta a estratégia da Farfetch em ser a plataforma</p><p>tecnológica global de moda de luxo, potenciando a individualidade e</p><p>ligando criadores, curadores e consumidores”, lia-se no comunicado</p><p>enviado às redacções.</p><p>A equipa de analistas liderada por Ike Boruchow parecia não concordar.42</p><p>Mas a Wells Fargo continuava optimista em relação à “grande</p><p>oportunidade” de mercado que a loja online de moda de luxo representava,</p><p>escrevia por esta altura a publicação financeira MarketWatch.</p><p>O facto de Andrew Robb ter saído do cargo de Chief Operational Officer</p><p>(director operacional) da empresa onde trabalhava há nove anos também</p><p>deverá ter apanhado os analistas desprevenidos nesse Verão de 2019. E</p><p>havia ainda outro pormenor a juntar-se a esta equação: no início de Julho, a</p><p>Condé Nast – grupo que detém títulos como a Vogue, GQ, Vanity Fair ou a</p><p>The New Yorker – abandonou a participação de 234 milhões de libras que</p><p>detinha no capital social da Farfetch. Segundo avançou na altura o jornal</p><p>britânico The Sunday Times, o grupo de comunicação social que investiu na</p><p>ronda “unicórnio” estava preocupado com o dinheiro que a empresa estava</p><p>a gastar em marketing.</p><p>Depois da apresentação destes resultados, algumas casas de investimento</p><p>reviram em baixo a avaliação da empresa, baixando o preço-alvo das acções</p><p>da Farfetch. De acordo com a Bloomberg, a China Renaissance desceu-o de</p><p>32 para 18 dólares, a Wells Fargo de 32 para 17, e a Cowen de 32 para 16.</p><p>Já o KeyBanc, por exemplo, manteve o preço-alvo nos 27 dólares, por ser</p><p>um “ponto de entrada muito atractivo”.</p><p>Para José Neves, havia motivos para festejar. Nesses fatídicos três meses,</p><p>a Farfetch tinha batido um novo recorde: o volume de negócios da empresa</p><p>tinha atingido os 488 milhões de dólares, mais 44% do que tinha registado</p><p>no mesmo trimestre de 2018; e as receitas tinham subido 43% para 209</p><p>milhões de dólares. O número de consumidores activos da loja também</p><p>subiu 56% e, no final de Maio de 2019, havia cerca de 1773 milhões de</p><p>pessoas a comprar artigos de luxo no site da Farfetch.</p><p>Quanto aos prejuízos, a empresa apontava o dedo, sobretudo, ao valor das</p><p>moedas. As perdas tinham sido, “em grande parte, motivadas pela subida</p><p>anual dos prejuízos operacionais, que passaram de 36,8 milhões de dólares</p><p>para 95,8 milhões, parcialmente causados pela redução nas perdas cambiais</p><p>não realizadas sobre a reavaliação de contas a receber e a pagar em dólares</p><p>não americanos”.</p><p>A empresa dizia ainda que a exposição aos ganhos e perdas cambiais</p><p>estrangeiros tinha diminuído “após uma alteração na moeda funcional da</p><p>nossa entidade legal principal, a Farfetch UK Limited – da libra esterlina</p><p>para dólares americanos, a 1 de Janeiro de 2019”. Recorde-se que a</p><p>Farfetch tinha sede em Londres e passou a ser cotada no mercado</p><p>americano em Setembro de 2018.</p><p>Nas palavras do líder português, havia sinais de optimismo: “À medida</p><p>que nos aproximamos do nosso primeiro aniversário enquanto empresa</p><p>pública, estou encantado com o progresso com que executamos a nossa</p><p>visão para o capítulo 2 – construir a nossa plataforma global para aproveitar</p><p>a parte principal do crescimento de 100 mil milhões de dólares que se</p><p>espera na indústria do mercado de luxo online. O sector validou ainda mais</p><p>o nosso modelo global de concessão electrónica, no último ano, à medida</p><p>que vimos grandes grupos de luxo aumentarem o fornecimento directo [de</p><p>artigos] na nossa plataforma e anunciarem planos para reduzir a distribuição</p><p>no retalho. O nosso número geral de marcas e de boutiques parceiras</p><p>continuou a crescer, excedendo agora as 1100.”</p><p>A citação do presidente-executivo da Farfetch terminava com referências</p><p>àquele que era, na altura, “o único marketplace de escala global da indústria</p><p>de luxo” que se posicionava “de forma única” para capacitar criadores,</p><p>curadores e consumidores da indústria que a marca “amava”. Ou seja, a da</p><p>moda.</p><p>A mediática fome dos accionistas</p><p>Apesar do “amor”, do “encanto” e do “progresso”, nada disto pareceu</p><p>suficiente para animar os accionistas do primeiro unicórnio português no</p><p>Verão de 2019. Na sequência dos resultados trimestrais, várias sociedades</p><p>de advogados começaram a investigar a empresa luso-britânica por alegada</p><p>violação da lei federal norte-americana de valores mobiliários. Em causa</p><p>estavam as novidades recém-apresentadas ao mercado e as projecções que a</p><p>marca fazia para o trimestre seguinte.</p><p>Segundo a The Fashion Law, uma publicação independente para</p><p>advogados, executivos, empresários e estudantes de moda, a 16 de Agosto</p><p>de 2019 existiam pelo menos nove sociedades de advogados norte-</p><p>americanas que apontavam o dedo à loja online de produtos de luxo por ter,</p><p>alegadamente, prestado declarações enganadoras aos mercados.</p><p>A Hagens Berman, por exemplo, investigava a “veracidade das</p><p>declarações sobre o modelo de negócio da empresa, particularmente as</p><p>relacionadas com o crescimento e lucros”, que tinham permitido à Farfetch</p><p>levantar mais de 880 milhões de dólares no IPO. Na mira dos advogados</p><p>estavam também os resultados trimestrais que a empresa tinha apresentado,</p><p>com prejuízos “maiores do que o esperado”, escrevia o escritório.43 À</p><p>Hagens Berman juntaram-se sociedades como a Johnson Fistel, LLP; a</p><p>Bronstein, Gewirtz & Grossman, LLC; ou a Holzer & Holzer, entre outras.</p><p>A 26 de Setembro de 2019, a agência Lusa noticiava que o escritório The</p><p>Schall Law Firm tinha avançado com uma acção colectiva de investidores</p><p>nos Estados Unidos contra a Farfetch por a empresa ter, alegadamente,</p><p>violado a lei federal44 aquando da entrada em bolsa. Logo nesse mês, fonte</p><p>oficial da Farfetch confirmou aos jornalistas as acusações de que a empresa</p><p>estava a ser alvo, mas recusou-se a prestar declarações. Foi preciso esperar</p><p>dois anos para haver novidades sobre este assunto. A 4 de Outubro de 2021,</p><p>a Visão noticiava que a Farfetch tinha vencido o processo interposto pelos</p><p>investidores em Nova Iorque, com a juíza Alison J. Nathan a considerar que</p><p>os queixosos não tinham conseguido comprovar as irregularidades que</p><p>apontavam à empresa.</p><p>Os anúncios que as sociedades de advogados publicaram nesse Verão</p><p>serviam para cativar possíveis investidores queixosos a juntarem-se à acção.</p><p>“Se comprou acções da Farfetch e sofreu uma perda com esse investimento,</p><p>é recomendável entrar em contacto”, lia-se em alguns dos textos que a</p><p>GlobenewsWire, que divulga em bruto comunicados de imprensa, publicou</p><p>em Agosto e Setembro de 2019.</p><p>Este tipo de investigações e de acções judiciais era, na verdade, um</p><p>procedimento comum nos EUA. Costumava decorrer quando empresas</p><p>promissoras, nas quais se depositavam bastantes expectativas, eram</p><p>admitidas em bolsa e apresentavam grandes perdas nas apresentações de</p><p>resultados seguintes. Aconteceu o mesmo com o unicórnio Lyft, que foi</p><p>admitido no mercado nova-iorquino em Março desse ano45 e com o</p><p>unicórnio Slack, que fez o IPO em Junho, por exemplo.46</p><p>No documento que o primeiro unicórnio com ADN português entregou ao</p><p>regulador do mercado norte-americano, a Securities and Exchange</p><p>Comission (SEC), a 20 de Agosto de 2018 – antes do IPO –, José Neves</p><p>dedicava 35 páginas aos factores de risco do negócio.47 Todas as empresas</p><p>são obrigadas a divulgar este tipo de informação quando vão para a bolsa.</p><p>“Investir nas nossas acções Class A [que têm mais direitos de voto]</p><p>envolve um alto nível de risco”, começava por explicar José Neves. De</p><p>seguida, enumerava as 64 razões pelas quais os investidores deviam olhar</p><p>para o investimento com redobrada atenção. Exemplos:</p><p>*</p><p>“Tivemos prejuízos depois de impostos de (…) 61,8 milhões, 81,5</p><p>milhões e 112,3 milhões nos anos que terminaram a 31 de</p><p>Dezembro de 2015, 2016 e 2017, respectivamente. Podemos</p><p>continuar a experienciar prejuízos depois de impostos no futuro, e</p><p>não podemos assegurar que vamos alcançar a lucratividade,</p><p>podendo continuar a incorrer em perdas significantes em períodos</p><p>futuros”;</p><p>“Enquanto plataforma global para a moda de luxo, estamos</p><p>sujeitos às condições variáveis da indústria. (...). Com este</p><p>ambiente de constante mudança, as nossas estratégias, práticas e</p><p>resultados de negócio futuros podem não ir ao encontro das</p><p>expectativas ou responder rápido o suficiente à procura dos</p><p>consumidores”;</p><p>“Para adquirir e reter consumidores, incorremos e continuaremos</p><p>a incorrer em despesas substanciais relacionadas com a</p><p>publicidade e outros esforços de marketing”;</p><p>“Adquirimos e podemos continuar a adquirir outras empresas ou</p><p>tecnologias, que podem desviar a atenção da administração e</p><p>interromper as operações, prejudicando os nossos resultados</p><p>operacionais. Podemos falhar ao comprar empresas cujo poder ou</p><p>tecnologia de mercado possa ser importante para o sucesso futuro</p><p>dos nossos negócios. (...) Se um negócio adquirido não atender às</p><p>nossas expectativas, isso poderá ter um efeito adverso relevante</p><p>nos nossos negócios, resultados operacionais, condições</p><p>financeiras e perspectivas”;</p><p>*</p><p>A 14 de Novembro de 2019, a Farfetch voltava a apresentar resultados</p><p>trimestrais: os prejuízos desceram ligeiramente face ao trimestre anterior,</p><p>para 85,4 milhões de dólares, e subiram mais de 10% em relação ao mesmo</p><p>período do ano anterior. À semelhança do que já havia sido registado nos</p><p>três meses anteriores, o volume de negócios e as receitas da loja online de</p><p>moda de luxo também subiram: o primeiro indicador atingiu 492 milhões e</p><p>o segundo, 255,5 milhões.</p><p>Para José Neves, os resultados eram “fantásticos” e as previsões para o</p><p>trimestre seguinte, fortes. “Estou muito contente com o nosso contínuo</p><p>progresso na construção de uma plataforma global para o luxo. Tivemos um</p><p>terceiro trimestre fantástico, que bateu as nossas expectativas, e</p><p>continuamos a capturar quota de mercado a um ritmo muito rápido”,</p><p>escreveu o presidente-executivo no comunicado que apresentou ao</p><p>mercado.</p><p>Desta vez, os mercados reagiram de forma diferente – as acções do</p><p>unicórnio subiram mais de 15% no after hours da bolsa. E, no dia seguinte,</p><p>os títulos abriram a bolsa de Nova Iorque a subir mais de 30% e a valer</p><p>10,01 dólares – ainda assim, cerca de metade do valor com que se estrearam</p><p>na bolsa.</p><p>Quanto a lucros, à data, ninguém se comprometia, mas Elliot Jordan,</p><p>director financeiro da empresa, não descartava a hipótese de a empresa se</p><p>tornar operacionalmente rentável dali a dois anos. Quando Irwin Boruchow,</p><p>analista da Wells Fargo, lhe perguntou numa conferência se lhe parecia</p><p>razoável atingir um EBITDA (sigla em inglês para lucros antes de juros,</p><p>impostos, depreciação e amortização) positivo em 2021, o CFO (sigla em</p><p>inglês) respondeu que, numa situação normal, não daria orientações para o</p><p>ano de 2020 e posteriores, mas que, neste caso, atingir o break-even em</p><p>2021 lhe “parecia correcto naquele momento”.48</p><p>Em entrevista ao Jornal Económico, José Neves reforçou a mesma ideia.</p><p>“A média dos analistas tem 2021 como o ano em que a Farfetch será</p><p>rentável [ao nível do EBITDA ajustado] e o que dizemos é que estão</p><p>correctos nessas estimativas”, afirmou, reforçando logo de seguida que essa</p><p>não era a orientação “oficial da empresa”. Mas o tema já estava na agenda e</p><p>não havia volta a dar.49</p><p>No terceiro trimestre de 2019 (aquando destas declarações), o unicórnio</p><p>português apresentava um EBITDA ajustado negativo, no valor de 35,6</p><p>milhões de dólares, mas, ao contrário das expectativas, não teve de esperar</p><p>dois anos para ficar positivo. Cerca de um ano depois destas declarações, as</p><p>estimativas da Farfetch tinham sido afinadas e havia novo horizonte</p><p>temporal à espreita, como afirmou José Neves na entrevista que lhe fiz em</p><p>Novembro de 2020 para o Observador.50</p><p>No último trimestre de 2020, em plena pandemia de Covid-19, a Farfetch</p><p>apresentava pela primeira vez na sua história um trimestre</p><p>operacionalmente lucrativo. Entre Outubro e Dezembro desse ano, a</p><p>plataforma de moda de luxo atingiu um EBITDA ajustado de 10,376</p><p>milhões de dólares positivos, antecipando as projecções feitas dois anos</p><p>antes – nessa altura, ainda não se sabia que estava por vir uma pandemia</p><p>mundial, que confinaria consumidores pelo globo todo às suas casas,</p><p>impedidos de viajar e com uma única opção de compra: o online.</p><p>A trajectória continuava ascendente e, no final de 2020, a Farfetch via as</p><p>suas receitas crescerem 41%, atingindo 540 milhões de dólares, e o volume</p><p>de negócios a subir 43%, ultrapassando os mil milhões. A acompanhar estas</p><p>subidas estiveram também os prejuízos, que dispararam para 2,3 mil</p><p>milhões de dólares em três meses.</p><p>Nota: mais de 91% destas perdas (cerca de 2,1 mil milhões de dólares)</p><p>diziam respeito a um “impacto não monetário”, ou seja, estavam</p><p>relacionadas com a valorização do preço das acções da empresa e com um</p><p>financiamento negociado em obrigações convertíveis. Não era dinheiro que</p><p>estava a sair da empresa, era apenas “uma questão contabilística”. Ou um</p><p>“prejuízo teórico”, como me tinha explicado José Neves em Novembro.</p><p>“Tenho muito orgulho em que toda a gente na Farfetch seja accionista da</p><p>empresa. Quando as acções […] sobem – e subiram este ano cerca de 500</p><p>ou 600% –, as provisões que temos de fazer para as acções que vão ser</p><p>entregues aos colaboradores [também sobem], porque são alocadas no</p><p>início do ano.”</p><p>Além das provisões sobre as acções pagas aos colaboradores, a Farfetch</p><p>tinha ainda outro factor a impactar as contas dos prejuízos: os empréstimos</p><p>convertíveis em acções que tinha contratualizado. E sobre isto deu-me um</p><p>exemplo que considerou “absurdo”: “Se as acções desvalorizassem</p><p>abruptamente teríamos, de repente, centenas de milhões de lucro. São esses</p><p>movimentos nos mecanismos [de financiamento] que escolhemos – foi uma</p><p>escolha nossa para financiar a empresa – que levam a estes números muito</p><p>grandes, sempre que há uma apreciação muito grande da empresa”,</p><p>explicou.</p><p>O exemplo acabou, na verdade, por acontecer. No primeiro trimestre de</p><p>2021, pela primeira vez na história, a Farfetch apresentou um lucro depois</p><p>de impostos de 516,7 milhões de dólares (diferente dos lucros</p><p>operacionais), originados “pelo impacto de um preço de acção mais baixo”,</p><p>ou seja, pela desvalorização das acções. Tal como acontecia com os</p><p>prejuízos, estes lucros também eram “puramente contabilísticos”, explicou-</p><p>me o COO Luís Teixeira em Maio de 2021.51 Não eram reais.</p><p>Quando a startup de José Neves entrou no clube dos unicórnios, em 2015,</p><p>o que se sabia à data era que facturava 293,7 milhões de euros em vendas e</p><p>que estava bem longe de atingir a sustentabilidade financeira. Os prejuízos</p><p>não eram conhecidos,</p><p>porque a empresa não era obrigada a divulgar essa</p><p>informação – tal como qualquer outra empresa privada.</p><p>Nesse mês de Março de 2015, quando perguntei a José Neves se a última</p><p>ronda de investimento (a que a tornou num unicórnio) não tinha avaliado</p><p>por excesso a sua loja online, o empresário respondeu: “Por cada céptico,</p><p>há uma pessoa que escreveu o cheque, assinou e pagou. É como outra coisa</p><p>qualquer. Quando vai a um restaurante, será que o preço que paga por</p><p>aquela refeição vale mesmo esse dinheiro? Por cada pessoa que não entra,</p><p>há uma que entra. Os preços estão determinados assim.”</p><p>Quando os mercados abriram, naquele 21 de Setembro de 2018 em que a</p><p>Farfetch entrou para a bolsa, as acções da empresa de José Neves</p><p>começaram a ser vendidas aos investidores a 20 dólares cada, avaliando o</p><p>unicórnio em 5,8 mil milhões de dólares. Nos primeiros minutos das</p><p>negociações, as acções subiram 46%, atingindo 29,28 dólares por título e</p><p>um valor de mercado superior a oito mil milhões. No final de 2019, a</p><p>Farfetch fechava a bolsa a valer cerca de 3152 milhões de dólares – menos</p><p>de metade. E dois anos (e uma pandemia) depois, a 9 de Julho de 2021,</p><p>valia cerca de 17,39 mil milhões, mais do dobro do que no dia do IPO.</p><p>34 https://www.bloomberg.com/news/articles/2019-11-06/large-uber-block-</p><p>trade-is-said-to-price-as-ipo-lockup-expires</p><p>35 https://ycharts.com/companies/UBER/market_cap</p><p>36 https://www.nytimes.com/2019/08/08/technology/uber-earnings.html?</p><p>action=click&module=Top%20Stories&pgtype=Homepage</p><p>37 https://markets.businessinsider.com/news/stocks/ipo-market-outlook-</p><p>trends-why-investors-rebelling-against-unicorns-implications-2019-9-</p><p>1028570687#reason-1-weak-margins1</p><p>38 https://observador.pt/2019/08/08/farfetch-volume-de-negocios-sobe-no-</p><p>segundo-trimestre-mas-os-prejuizos-tambem/</p><p>39 https://observador.pt/2019/05/16/prejuizos-da-farfetch-duplicam-no-</p><p>arranque-do-ano-receitas-sobem-39/</p><p>40 https://observador.pt/especiais/prejuizos-na-farfetch-seremos-lucrativos-</p><p>quando-quisermos-nao-estou-nada-preocupado/</p><p>41 https://www.jornaldenegocios.pt/mercados/bolsa/detalhe/farfetch-afunda-</p><p>42-em-wall-street-analistas-arrasam-avaliacao-das-acoes</p><p>42 https://www.marketwatch.com/story/farfetch-stock-plummets-40-after-</p><p>earnings-present-a-much-different-company-from-ipo-one-year-ago-2019-</p><p>08-09</p><p>https://www.bloomberg.com/news/articles/20191106/largeuberblocktradeissaidtopriceasipolockupexpires</p><p>https://ycharts.com/companies/UBER/market_cap</p><p>https://www.nytimes.com/2019/08/08/technology/uberearnings.html?action=click&module=Top%20Stories&pgtype=Homepage</p><p>https://markets.businessinsider.com/news/stocks/ipomarketoutlooktrendswhyinvestorsrebellingagainstunicornsimplications201991028570687#reason1weakmargins1</p><p>https://observador.pt/2019/08/08/farfetchvolumedenegociossobenosegundotrimestremasosprejuizostambem/</p><p>https://observador.pt/2019/05/16/prejuizosdafarfetchduplicamnoarranquedoanoreceitassobem39/</p><p>https://observador.pt/especiais/prejuizosnafarfetchseremoslucrativosquandoquisermosnaoestounadapreocupado/</p><p>https://www.jornaldenegocios.pt/mercados/bolsa/detalhe/farfetchafunda42emwallstreetanalistasarrasamavaliacaodasacoes</p><p>https://www.marketwatch.com/story/farfetchstockplummets40afterearningspresentamuchdifferentcompanyfromipooneyearago20190809</p><p>43 https://www.thefashionlaw.com/home/as-farfetchs-stock</p><p>44 https://www.globenewswire.com/news-</p><p>release/2019/09/25/1920625/0/en/INVESTOR-ACTION-REMINDER-The-</p><p>Schall-Law-Firm-Announces-the-Filing-of-a-Class-Action-Lawsuit-</p><p>Against-Farfetch-Limited-and-Encourages-Investors-with-Losses-in-</p><p>Excess-of-100-000-to-Co.html</p><p>45 https://www.cnbc.com/2019/05/20/lyft-dips-after-lawsuit-claims-the-</p><p>company-misled-investors.html</p><p>46 https://www.rosenlegal.com/cases-1682.html</p><p>47</p><p>https://www.sec.gov/Archives/edgar/data/1740915/000119312518252315/d</p><p>532260df1.htm</p><p>48 https://www.fool.com/earnings/call-transcripts/2019/11/14/farfetch-</p><p>limited-ftch-q3-2019-earnings-call-transc.aspx</p><p>49 https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/exclusivo-farfetch-com-</p><p>breakeven-em-2021-e-cenario-perfeitamente-realista-diz-jose-neves-</p><p>513978</p><p>50 https://observador.pt/especiais/entrevista-a-jose-neves-farfetch-vai-ter-</p><p>lucros-operacionais-ja-no-proximo-trimestre-de-2020/</p><p>51 https://observador.pt/2021/05/13/farfetch-continua-a-crescer-em-</p><p>pandemia-desvalorizacao-das-acoes-leva-empresa-a-apresentar-lucros/</p><p>https://www.thefashionlaw.com/home/asfarfetchsstock</p><p>https://www.globenewswire.com/newsrelease/2019/09/25/1920625/0/en/INVESTORACTIONREMINDERTheSchallLawFirmAnnouncestheFilingofaClassActionLawsuitAgainstFarfetchLimitedandEncouragesInvestorswithLossesinExcessof100000toCo.html</p><p>https://www.cnbc.com/2019/05/20/lyftdipsafterlawsuitclaimsthecompanymisledinvestors.html</p><p>https://www.rosenlegal.com/cases1682.html</p><p>https://www.sec.gov/Archives/edgar/data/1740915/000119312518252315/d532260df1.htm</p><p>https://www.fool.com/earnings/calltranscripts/2019/11/14/farfetchlimitedftchq32019earningscalltransc.aspx</p><p>https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/exclusivofarfetchcombreakevenem2021ecenarioperfeitamenterealistadizjoseneves513978</p><p>https://observador.pt/especiais/entrevistaajosenevesfarfetchvaiterlucrosoperacionaisjanoproximotrimestrede2020/</p><p>https://observador.pt/2021/05/13/farfetchcontinuaacrescerempandemiadesvalorizacaodasacoeslevaempresaaapresentarlucros/</p><p>CAPÍTULO 2</p><p>ESPELHO MEU, HAVERÁ UNICÓRNIO MELHOR DO QUE O</p><p>MEU?</p><p>Entradas em bolsa que desiludiam expectativas não eram, em 2019,</p><p>fenómenos recentes e exclusivos desta vaga de unicórnios – nem tão pouco</p><p>provavam que os negócios estavam para sempre condenados a gráficos</p><p>vermelhos. Duas semanas depois de o Facebook se ter estreado na bolsa de</p><p>Nova Iorque, em Maio de 2012, o The Wall Street Journal – uma das mais</p><p>respeitáveis publicações financeiras – escrevia que o IPO da maior rede</p><p>social do mundo tinha sido um “fiasco”.52 Assim mesmo.</p><p>“O fiasco da Facebook Inc. ainda está a ser falado em Wall Street. As</p><p>novas acções públicas estão a perder em média um dólar por dia desde a</p><p>oferta. Se continuar assim, a rede social não vai valer nada no final de</p><p>Junho e as viagens do CEO Mark Zuckerberg ao McDonald’s vão parecer</p><p>menos chiques e mais necessárias”, escrevia o jornalista David Weidner</p><p>naquela publicação.</p><p>Sete anos depois, Steven Santos, que era gestor do BiG (Banco de</p><p>Investimento Global) lembrou, num artigo publicado no Observador, que o</p><p>primeiro ano da rede social enquanto empresa pública tinha sido “uma</p><p>desgraça”, com os títulos a derraparem até metade do que valiam no IPO –</p><p>38 dólares por acção.53 E, ao contrário da Uber ou da Farfetch, o Facebook</p><p>foi para a bolsa no verde, ou seja, já dava lucros.</p><p>No documento que entregou ao SEC para avançar com o IPO, a rede</p><p>social liderada por Mark Zuckerberg anunciava que tinha fechado o ano de</p><p>2011 com 3,7 mil milhões de dólares em receitas (uma subida de 88% face</p><p>ao ano anterior) e mil milhões de dólares em lucros, mais 65% do que em</p><p>2010. O Facebook terminou esse ano com 3,9 mil milhões de dólares em</p><p>cash.54 Prejuízos? Nem vê-los.</p><p>Ainda assim, os milhões com que o Facebook acenava no mercado não</p><p>foram suficientes para convencer os investidores da altura. Steven Santos</p><p>contou ao jornalista Edgar Caetano, do Observador, que se recordava de ter</p><p>tido vários clientes a ligar-lhe e a dizer: “Eu não quero isto”. Sete anos</p><p>depois, a 31 de Dezembro de 2019, o Facebook terminava a sessão na bolsa</p><p>de Nova Iorque a valer 205,25 dólares por acção – quase 6 vezes mais do</p><p>que o que valia no “fiasco” que foi o IPO. Em 2021, o valor de mercado do</p><p>Facebook chegou a ultrapassar um bilião (trillion, em inglês) de dólares.</p><p>Mas, voltando à Uber e à mais recente vaga de unicórnios. Para o analista</p><p>do BiG, estas empresas representavam oportunidades de investimento</p><p>diferentes, porque “uma rede social depende muito mais de um efeito-rede</p><p>do que uma app de transportes”. Ou seja, “o valor do Facebook, para mim,</p><p>é saber que encontro lá os meus familiares ou amigos. Em contraste, na</p><p>Uber, isso não acontece – não tenho qualquer interesse em saber se a pessoa</p><p>ao meu lado tem a mesma app ou outra,</p><p>pelo que é uma empresa muito</p><p>mais susceptível à concorrência”, dizia Steven Santos.</p><p>Quando, no final de 2019, me sentei com Stephan Morais no escritório da</p><p>Indico Capital Partners e lhe perguntei se estes IPO mostravam que os</p><p>unicórnios estavam sobrevalorizados, o investidor português lembrou que a</p><p>bolsa funcionava como um jogo, “não é nem branco nem preto”, e que tanto</p><p>podia haver momentos bons como maus. Ou seja, o comportamento do</p><p>passado nem sempre determinava o do futuro.</p><p>“Teoricamente, sim. Se o julgamento final for a bolsa, teoricamente, sim</p><p>[estão sobrevalorizados]. Claro que há sempre altos e baixos e já tivemos</p><p>alturas em que o Facebook esteve mal, a Apple esteve mal, e depois</p><p>recuperaram. Isto é sempre um jogo”, explicava-me. Na opinião do</p><p>investidor, o que parecia estar naquela altura em causa eram as elevadas</p><p>rondas que se estavam a fazer em fases mais tardias da vida de algumas</p><p>empresas.</p><p>“Dá a impressão de que se pagaram avaliações que não faziam sentido. E</p><p>que o mercado de capitais – e o público em geral – não está a considerar</p><p>que fossem justas.” Para um investidor como Stephan Morais, que entrava</p><p>no capital das empresas quando estas estavam mesmo no início, este tipo de</p><p>rondas e avaliações (ou sobreavaliações) não o afligia, porque mesmo que a</p><p>maré baixasse isso não o prejudicava. “Mas, para os investidores que estão</p><p>mais à frente e que entraram na última maré, bom, se calhar vão bater nas</p><p>rochas. O Softbank entrou [na Uber] ultra ultra ultra caro, porque achava</p><p>que assim é que era”, explicava o investidor.</p><p>Em 2017, o grupo japonês de telecomunicações SoftBank – fundado e</p><p>liderado pelo multimilionário Masayoshi Son – lançou um fundo de</p><p>investimento em capital de risco no valor de 100 mil milhões de dólares, o</p><p>Vision Fund, que rapidamente se tornou num dos fundos mais relevantes de</p><p>Silicon Valley, pondo dinheiro em vários dos já muito cobiçados unicórnios.</p><p>Foi através deste fundo que o grupo japonês investiu 9 mil milhões de</p><p>dólares na Uber, no final de 2017.</p><p>De acordo com a base de dados Crunchbase, o SoftBank pôs, a 28 de</p><p>Dezembro de 2017, 1,3 mil milhões de dólares na empresa, através de uma</p><p>ronda de investimento. Depois, comprou cerca de 7,7 mil milhões de</p><p>dólares em acções no mercado secundário, com um desconto de 30% face</p><p>ao que a empresa valia em 2016. Ou seja, o acordo do SoftBank fez cair a</p><p>avaliação da Uber de 68,5 mil milhões de dólares para 48 mil milhões.</p><p>Na altura, a tecnológica estava a lidar com uma série de processos,</p><p>conflitos e polémicas que afectaram (e muito) a sua imagem pública, e</p><p>enfrentava uma maior competição em vários países do mundo, com o</p><p>aparecimento de alguns operadores locais55 a ameaçarem o mercado. Com</p><p>este investimento, o grupo japonês passou a deter 15% do capital accionista</p><p>da Uber e, apesar do downround, nesse ano ainda havia investidores que</p><p>estimavam que o IPO iria avaliar a empresa em cerca de 100 mil milhões de</p><p>dólares. Mas, como já expliquei anteriormente, tal não aconteceu.</p><p>Dois anos depois, a 6 de Novembro de 2019, o Softbank apresentou –</p><p>pela primeira vez em 14 anos – prejuízos operacionais de cerca de 6,5 mil</p><p>milhões de dólares, correspondentes ao terceiro trimestre desse ano. A</p><p>contribuir para as perdas estiveram sobretudo os investimentos feitos em</p><p>dois dos mais polémicos unicórnios: a Uber e a WeWork, que protagonizou</p><p>o escândalo do quase-IPO que mais abalou a comunidade tecnológica em</p><p>2019, levando ao despedimento de milhares de pessoas no mundo todo.</p><p>“Agora, a valorização cada vez menor da Uber e da WeWork, que</p><p>estavam entre as estrelas mais brilhantes da constelação SoftBank, aumenta</p><p>as perspectivas de haver mais baixas no portefólio do Vision Fund, com a</p><p>alta exposição que tem a empresas que priorizam o crescimento em vez da</p><p>lucratividade”, escrevia o jornalista Pavel Alpeyev, da Bloomberg56 nessa</p><p>altura. Na apresentação dos resultados, o multimilionário Masayoshi Son</p><p>chegou mesmo a admitir que tinha havido “um problema” com o seu</p><p>julgamento e que isso era uma coisa sobre a qual precisava de reflectir.</p><p>No trimestre que terminava a 30 de Setembro, o Vision Fund dava conta</p><p>de que os seus 88 investimentos valiam, à data, 776 mil milhões de dólares,</p><p>mais 9,8% do que o valor a que o fundo japonês adquiriu as suas fatias no</p><p>capital social destas empresas. Mas, do total dos seus investimentos, 25</p><p>empresas viram o seu valor subir nesses três meses e outras 25 viram-no</p><p>cair.</p><p>Um mês e meio depois, Shuli Ren, que escrevia opinião para a</p><p>Bloomberg, referia o seguinte numa das suas colunas: “Os investidores</p><p>estão a questionar quão bom é o mais proeminente fundo de capital de risco</p><p>a escolher vencedores. As dúvidas sobre o Vision Fund, o veículo de</p><p>investimento bandeira do SoftBank Group Corp, de Masayoshi Son,</p><p>intensificaram-se depois do colapso que foi o plano do IPO de 20 mil</p><p>milhões de dólares da WeWork, mas já andavam a flutuar há algum tempo”.</p><p>Num tom ainda mais ríspido, a especialista em mercados terminava o artigo</p><p>desaconselhando os investidores de retalho a seguir as dicas do fundo</p><p>japonês.</p><p>“Com base na taxa de sucessos passados, a maioria dos unicórnios que o</p><p>Vision Fund coloca no mercado são fracassos.”57 Isso mesmo: fracassos. Os</p><p>fracassos que tiveram o patrocínio do maior fundo de capital de risco do</p><p>mundo.</p><p>Ninguém é quem queria ser</p><p>Botas pretas, calças pretas, t-shirt preta e casaco de cabedal preto. No Verão</p><p>de 2018, era Adam Neumann quem fazia a capa da edição britânica da</p><p>prestigiada revista Wired. Nas mãos do empreendedor de 38 anos, uma</p><p>placa vermelha: “Como a WeWork se tornou na startup mais badalada do</p><p>mundo”. Por detrás do CEO, algumas pessoas trabalhavam num espaço de</p><p>cowork e, abaixo da placa, alguns números-chave: uma avaliação de 20 mil</p><p>milhões de dólares, uma comunidade com cerca de 250 mil membros e</p><p>localizações em 72 cidades do mundo. Dentro do artigo, a jornalista</p><p>Victoria Turk explicava quais eram os planos daquela que era uma das</p><p>cinco empresas privadas que mais valiam nos EUA: a WeWork queria</p><p>assumir o controlo dos locais onde as pessoas trabalhavam.58</p><p>O unicórnio que fez vários analistas questionarem as decisões de</p><p>investimento do SoftBank (e do seu multimilionário líder) começou por</p><p>fornecer escritórios e espaços de trabalho partilhados a startups, freelancers</p><p>e grandes empresas, em 2010, nos EUA. E nos oito anos que se seguiram,</p><p>replicou o modelo noutros 21 países, juntando às incubadoras outros</p><p>projectos, como ginásios ou casas partilhadas. À data do artigo da Wired, a</p><p>WeWork tinha 253 localizações no mundo e todas tinham de respeitar</p><p>aquilo que a empresa chamava de “We Generation”.</p><p>Mais do que um sítio para trabalhar, a startup transformou-se num estilo</p><p>de vida e as estimativas de Adam Neumann apontavam para o seguinte: o</p><p>unicórnio terminaria esse ano com 400 escritórios e 400 mil membros no</p><p>mundo, estando lado a lado com aqueles que eram, à data, os unicórnios</p><p>privados mais valiosos dos EUA: a Uber (que, na época, ainda não tinha</p><p>feito o IPO, a Airbnb, a Palantir Technologies e a SpaceX. No centro de</p><p>tudo isto, um investimento de 3 mil milhões de dólares do SoftBank.</p><p>À jornalista Victoria Turk, o empreendedor contou como convenceu o</p><p>líder do gigante japonês a avaliar a WeWork em 20 mil milhões: insistindo</p><p>para que Masayoshi Son conhecesse pessoalmente a sede da empresa, numa</p><p>visita que durou apenas 12 minutos – ao contrário das duas horas que</p><p>tinham agendado. O acordo de investimento começou a ser desenhado logo</p><p>ali, num iPad. Ao investimento de 3 mil milhões, juntaram-se mais 1,4 mil</p><p>milhões para criarem juntos outras três empresas: a WeWork China, a</p><p>WeWork Japan e a WeWork Pacific.</p><p>Parecia que era tudo uma maravilha, mas as dúvidas sobre o valor da</p><p>startup já existiam, com alguns dos críticos a defenderem que a empresa</p><p>devia ser tratada como uma imobiliária tradicional e não como um</p><p>unicórnio de Silicon Valley (porque não era tecnológica). Mas, quando foi</p><p>questionado por Turk sobre esse assunto, o empreendedor perguntou à</p><p>jornalista se não existiam problemas maiores no mundo por</p><p>resolver. De</p><p>seguida, listou as grandes casas de investimento que tinham financiado a</p><p>WeWork ao longo do tempo, como a Fidelity Investments, a Benchmark</p><p>Capital ou a JP Morgan.</p><p>“Quando os melhores investidores concordam sobre a mesma empresa,</p><p>confie em mim: eles fizeram as contas, conhecem os nossos resultados,</p><p>sabem perfeitamente o que Wall Street paga quando uma empresa se torna</p><p>pública, e têm a certeza de que vão ter retorno”, disse à jornalista. Cerca de</p><p>um ano depois, o SoftBank tinha investido mais de 10 mil milhões de</p><p>dólares na empresa, avaliando-a em 47 mil milhões.</p><p>Quando, em Agosto de 2019, a WeWork entregou ao regulador norte-</p><p>americano a documentação necessária para fazer um IPO e tornar-se numa</p><p>empresa pública, o autor e empreendedor Bill Murphy descrevia na Inc.</p><p>aquele que considerava ser o anúncio “mais bizarro (e divertido) de todos</p><p>os tempos”.59 “Se és um empreendedor que sonha construir um negócio</p><p>ridiculamente massivo, tenho de dizer: é obrigatório que leias isto”,</p><p>escrevia em tom irónico o especialista.</p><p>A forma meio filosófica como a empresa se descrevia, a informação que</p><p>revelava sobre a irresponsabilidade do seu CEO, e as contas – 689,7</p><p>milhões de dólares em perdas e receitas de 1,54 mil milhões, no primeiro</p><p>semestre de 2019 – que a WeWork apresentava naquele documento vieram</p><p>pôr um fim à bonança que tinha atingido Adam Neumann nos últimos dois</p><p>anos. Segundo as contas feitas pela cadeia de televisão CNBC, por cada</p><p>cliente que a empresa ganhava, perdia 5200 dólares, 28 vezes mais do que a</p><p>Uber perdia por cada viajante activo60. Isso: 28 vezes mais.</p><p>À medida que se iam descobrindo cada vez mais detalhes sobre o CEO –</p><p>conflito de interesses entre o negócio e propriedades que detinha,</p><p>demasiado poder e influência sobre a startup e a venda da marca “We” à sua</p><p>própria empresa por 5,9 milhões de dólares, entre outras coisas –, também</p><p>se via a imagem pública do unicórnio a afundar. A 13 de Setembro de 2019,</p><p>a agência Reuters noticiava “um dramático desconto” no valor do IPO:</p><p>afinal, a empresa poderia valer entre 10 mil e 12 mil milhões de dólares, ao</p><p>contrário dos 47 mil milhões que valia no mercado privado.61 Em quatro</p><p>semanas, a WeWork passou a valer sensivelmente menos 37 mil milhões.</p><p>Três dias depois, o unicórnio atrasava os planos e anunciava que esperava</p><p>que o IPO se realizasse até ao final do ano; a 25 de Setembro, Adam</p><p>Neumann saía da presidência da empresa sob muito mediatismo; a 30 de</p><p>Setembro, a nova presidência punha oficialmente em pausa o plano para um</p><p>IPO e afirmava que iria dedicar-se “ao seu negócio principal”, sem revelar</p><p>data para nova tentativa de entrada em bolsa; e, a 23 de Outubro, a operação</p><p>de resgate multimilionária do SoftBank para salvar a empresa: um novo</p><p>financiamento de 5 mil milhões de dólares, a compra de 3 mil milhões de</p><p>dólares em acções e a aceleração de um plano de investimento no valor de</p><p>1,5 mil milhões. Com tudo isto, o grupo japonês passou a deter 80% da</p><p>WeWork.</p><p>A operação de resgate reviu novamente a avaliação do unicórnio em</p><p>baixa, para 7 mil milhões de dólares (portanto, perdeu 40 mil milhões), mas</p><p>isso não impedia Adam Neumann de ter a possibilidade de sair da empresa</p><p>com a quantia de mil milhões de dólares no bolso pelas acções que teve de</p><p>vender ao fundo japon��s.62 Ou seja, continuava milionário.</p><p>Segundo o The New York Times, nesse mês de Outubro, o também</p><p>multimilionário Masayoshi Son pediu desculpa aos investidores do Vision</p><p>Fund, numa conferência pelo telefone, por ter tido tanta fé no fundador da</p><p>WeWork. E Bill Ackman, gestor de um hedge fund, disse publicamente que</p><p>havia uma “grande probabilidade” de o valor da empresa baixar para zero.</p><p>Ou seja, de não valer nada. Em Novembro, surgia a notícia de que pelo</p><p>menos 4 mil pessoas seriam despedidas da “startup mais badalada do</p><p>mundo todo”.</p><p>A queda épica da avaliação da WeWork punha assim a descoberto o</p><p>fenómeno que muitos especialistas já referiam há algum tempo como</p><p>fazendo parte da bolha dos unicórnios – o investimento desenfreado de</p><p>alguns fundos estava a empolar valorizações que não eram reais. Quando</p><p>estas empresas tentavam ir para a bolsa, ficavam sob o escrutínio dos</p><p>mercados públicos. E nem sempre o resultado era bom.</p><p>Apesar do gelo do quase-IPO da WeWork e da queda no valor das acções</p><p>da Uber, Masayoshi Son anunciou, no Verão de 2019, que queria lançar um</p><p>novo fundo, desta vez destinado a startups que actuassem na área da</p><p>inteligência artificial. Valor: 108 mil milhões de dólares, com a promessa de</p><p>que seria o maior fundo de investimento tecnológico do mundo. “O</p><p>objectivo é facilitar a contínua aceleração da revolução da inteligência</p><p>artificial, através de um investimento em empresas líderes de mercado que</p><p>crescem através da tecnologia”, escreveu o SoftBank no comunicado que</p><p>endereçou à bolsa de Tóquio.</p><p>De onde vinha todo este dinheiro do SoftBank? A resposta não era óbvia:</p><p>do príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, através do</p><p>fundo soberano daquele país. Ora, os acontecimentos relatados acima</p><p>decorriam enquanto as televisões do mundo todo tinham os olhos postos no</p><p>Reino, mas por outro motivo: o misterioso assassinato de Jamal Khashoggi.</p><p>A 2 de Outubro de 2018, o jornalista saudita foi morto no consulado da</p><p>Arábia Saudita, em Istambul, na Turquia. A investigação ao seu</p><p>desaparecimento acabou por concluir que Khashoggi tinha sido morto por</p><p>agentes sauditas e, no final de 2019, a justiça condenou cinco homens à</p><p>morte e outros três a 24 anos de prisão efectiva pelo seu homicídio.</p><p>Um relatório independente que a ONU divulgou em Junho de 2019 –</p><p>escrito pela especialista em Direitos Humanos Agnes Callamar – concluiu</p><p>também que havia “provas credíveis” contra o príncipe Mohammed bin</p><p>Salman e indícios de que o “crime internacional” tivesse contado com a</p><p>colaboração do príncipe herdeiro e de altos oficiais do Estado da Arábia</p><p>Saudita.63 Contudo, apesar de as autoridades terem investigado Saud al-</p><p>Qahtani, conselheiro do príncipe herdeiro, este acabou por não ser acusado</p><p>e foi libertado.</p><p>A controvérsia sobre o assassinato de Jamal Khashoggi levou vários</p><p>líderes empresariais a afastarem-se das relações que detinham com o país.</p><p>O CEO da Uber, Dara Khosrowshahi, desistiu de participar numa</p><p>conferência que teria lugar em Riade, a capital saudita, a 23 de Outubro.</p><p>O fundador e líder do fundo de investimento japonês era dos poucos que</p><p>mantinha inalterada a sua proximidade ao príncipe, escrevia a Bloomberg</p><p>no final de 2019. No primeiro Vision Fund, de 100 mil milhões de dólares,</p><p>a Arábia Saudita investiu cerca de 45 mil milhões e, para o segundo,</p><p>estimava-se no final de 2019 que investisse sensivelmente a mesma quantia.</p><p>Com mais dinheiro a entrar no ecossistema, os investimentos japoneses</p><p>continuaram. Dois anos depois, a WeWork tentava renascer como empresa,</p><p>aproveitando o panorama do teletrabalho, mas o seu passado continuava a</p><p>não dar tréguas. A 2 de Abril de 2021, a plataforma de streaming norte-</p><p>americana Hulu estreava o documentário WeWork: or The Making and</p><p>Breaking of a $47 Billion Unicorn, que prometia contar a história da</p><p>“empresa mais sobrevalorizada do mundo”.</p><p>Também nesse ano, os jornalistas do Wall Street Journal Eliot Brown e</p><p>Maureen Farrell faziam o mesmo no livro The Cult of We: WeWork, Adam</p><p>Neumann, and the Great Startup Delusion. E enquanto o mundo se</p><p>restabelecia do naufrágio que foi a queda da WeWork, o seu fundador</p><p>estava longe, mas continuava com uma fortuna pessoal estimada em 750</p><p>milhões de dólares, segundo a Forbes.</p><p>Quanto ao Softbank, dois anos depois também continuava a dar que falar</p><p>– mas agora por outros motivos. A 12 de Maio de 2021, a imprensa norte-</p><p>americana noticiava que o banco tinha quebrado um recorde: nunca uma</p><p>empresa japonesa tinha apresentado tantos lucros anuais como aqueles que</p><p>o SoftBank apresentou em 2020 – perto de 46 mil milhões de dólares.</p><p>Bastou um ano para que novos investimentos revertessem as desilusões que</p><p>Masayoshi Son teve em 2019. Um ano em pandemia.</p><p>52</p><p>https://www.wsj.com/articles/SB1000142405270230482130457743687395</p><p>2633672</p><p>53 https://observador.pt/especiais/uber-dececiona-na-bolsa-como-o-</p><p>facebook-em-2012-a-reviravolta-pode-repetir-se/</p><p>54</p><p>https://www.sec.gov/Archives/edgar/data/1326801/000119312512034517/d</p><p>287954ds1.htm#toc287954_8</p><p>55 https://observador.pt/2018/01/03/acionistas-uber-vendem-acoes-com-</p><p>desconto-ao-softbank-mas-alguns-ganham-10-000/</p><p>56 https://www.bloomberg.com/news/articles/2019-11-06/softbank-posts-6-</p><p>5-billion-operating-loss-on-wework-and-uber</p><p>57 https://www.bloomberg.com/news/articles/2019-11-18/most-of-softbank-</p><p>s-vision-fund-unicorns-will-be-flops</p><p>58 https://www.wired.co.uk/article/we-work-startup-valuation-adam-</p><p>neumann-interview</p><p>59 https://www.inc.com/bill-murphy-jr/wework-just-made-an-astonishing-</p><p>announcement-about-going-public-official-filing-is-most-bizarre-and-</p><p>entertaining-legal-document-ever.html</p><p>60 https://www.cbsnews.com/news/wework-ipo-office-sharing-prospectus-s-</p><p>1-shows-losses/</p><p>61 wework considers IPO valuation of as low reuters</p><p>62 https://www.nytimes.com/2019/11/02/business/adam-neumann-wework-</p><p>exit-package.html</p><p>63 https://www.dn.pt/mundo/relatorio-da-onu-aponta-dedo-a-principe-</p><p>saudita-na-morte-de-khashoggi-11025406.html</p><p>https://www.wsj.com/articles/SB10001424052702304821304577436873952633672</p><p>https://observador.pt/especiais/uberdececionanabolsacomoofacebookem2012areviravoltapoderepetirse/</p><p>https://www.sec.gov/Archives/edgar/data/1326801/000119312512034517/d287954ds1.htm#toc287954_8</p><p>https://observador.pt/2018/01/03/acionistasubervendemacoescomdescontoaosoftbankmasalgunsganham10000/</p><p>https://www.bloomberg.com/news/articles/20191106/softbankposts65billionoperatinglossonweworkand-uber</p><p>https://www.bloomberg.com/news/articles/20191118/mostofsoftbanksvisionfundunicornswillbeflops</p><p>https://www.wired.co.uk/article/weworkstartupvaluationadamneumanninterview</p><p>https://www.inc.com/billmurphyjr/weworkjustmadeanastonishingannouncementaboutgoingpublicofficialfilingismostbizarreandentertaininglegaldocumentever.html</p><p>https://www.cbsnews.com/news/weworkipoofficesharingprospectuss1showslosses/</p><p>https://www.nytimes.com/2019/11/02/business/adamneumannweworkexitpackage.html</p><p>https://www.dn.pt/mundo/relatoriodaonuapontadedoaprincipesauditanamortedekhashoggi11025406.html</p><p>CAPÍTULO 3</p><p>PÓNEIS COM UM CHIFRE NA TESTA</p><p>Risco, poder e imprevisibilidade.</p><p>As entradas em bolsa requerem um elevado nível de resistência à</p><p>adversidade, mas nem por isso deixam de ser o exit preferido das empresas</p><p>mitológicas. Quando me sentei na sala de reuniões da Indico Capital</p><p>Partners com Stephan Morais, no espaço que a sociedade de capital de risco</p><p>ocupava no edifício do Museu das Comunicações, o investidor português</p><p>explicava-me porque é que, apesar do escrutínio e da agressividade dos</p><p>mercados, a admissão em bolsa era preferível à venda de um unicórnio a</p><p>outras empresas – pela notoriedade que espelhava.</p><p>“Acho que se associa a entrada em bolsa a um elemento de prestígio, até</p><p>porque se a pessoa entrar em bolsa pode continuar teoricamente como CEO,</p><p>enquanto se vender [a empresa] é integrado num grupo novo. E pode ficar</p><p>ou não”, explicava-me o gestor do fundo português que, no final de 2019, já</p><p>contava com 51 milhões de euros para investir.</p><p>Havia ainda outras questões que influenciavam os processos de decisão:</p><p>como estava o mercado, qual era o apetite dos investidores, o que queriam</p><p>os fundadores em matéria de controlo da empresa, se haveria ou não</p><p>possibilidade de maximizar o lucro.</p><p>Juntava-se a isto outro problema: a partir de determinada dimensão,</p><p>também já não existiam muitas empresas dispostas a comprar estes</p><p>unicórnios e só a dispersão do capital no mercado permitia a entrada de</p><p>novos investidores.</p><p>No gabinete que ocupava na Universidade Nova de Lisboa, Paulo Soares</p><p>de Pinho – à data, director académico do The Lisbon MBA – explicava-me</p><p>o mesmo por outras palavras, três anos antes desta conversa com Stephan</p><p>Morais: “A estratégia de saída indo ao mercado é uma estratégia de alto</p><p>risco e com custos elevados. Não é a estratégia preferida dos venture</p><p>capitalists [investidores de capital de risco] em parte nenhuma do mundo.</p><p>Porém, há empresas que são muito valiosas, tão valiosas que não têm outra</p><p>possibilidade de saída. E essas, obviamente, só saem pelo mercado”.</p><p>Na base desta linha de raciocínio, há vários exemplos: o Facebook, que</p><p>foi quase obrigado a fazer um IPO porque tinha mais de 500 accionistas</p><p>diferentes e isso obrigava a que tivesse de se comportar como uma empresa</p><p>cotada; ou a Amazon, que foi para a bolsa quando os investidores nem</p><p>sequer estavam a tentar sair da empresa, lembrava o especialista em private</p><p>equity.</p><p>“Noutras vezes, passam-se outros fenómenos no mercado, as bolhas</p><p>especulativas, em que as empresas, por qualquer razão, valem para os</p><p>agentes institucionais e para o público em geral mais do que o que valem</p><p>para compradores profissionais. E isso abre uma janela para o IPO”,</p><p>explicou-me. Para o académico, a única saída possível que existia para os</p><p>grandes unicórnios era a bolsa, porque se tinham tornado demasiado</p><p>valiosos nas rondas de investimento privado.</p><p>As entradas em bolsa eram, então, determinadas pela oportunidade que o</p><p>negócio representava e por aquele que era o principal objectivo dos</p><p>investidores: maximizar a sua taxa interna de rendibilidade.</p><p>“Não se esqueça que os investidores são venture capitalist – gestores de</p><p>activos que gerem dinheiro de outros. E os outros, os investidores dos</p><p>venture capitalist, estão preocupados é com o retorno que recebem.”</p><p>A lógica é simples: quanto maior for o retorno do investimento num</p><p>unicórnio, maior é a partilha de retorno entre o venture capitalist e os seus</p><p>investidores. Ou seja, a taxa interna de rendibilidade do investimento é</p><p>então maximizada.</p><p>“É um jogo muito difícil este de, por um lado, esperar para ter a melhor</p><p>valorização possível e, por outro, fazer a saída depressa para ter a maior</p><p>taxa interna de rendibilidade possível. Tem de haver tempo e valorização”,</p><p>explicou-me</p><p>Estes movimentos são muito difíceis de prever, porque é preciso ter</p><p>atenção ao mercado, principalmente o das ofertas públicas, e perceber como</p><p>vai evoluir. Mais: é importante perceber como é que o mercado está a olhar</p><p>para este tipo de organizações. “Há uma coisa que a gente aprende quando</p><p>está nos mercados: o que está na moda sai de moda de um dia para o outro.”</p><p>Por esta altura, convém não esquecer o seguinte: uma entrada em bolsa é</p><p>um negócio no qual um conjunto de investidores (sociedades de capital de</p><p>risco) vende acções a outros investidores (fundos institucionais e grandes</p><p>casas de gestão de activos). Por vezes, o preço a que se consegue vender um</p><p>título num IPO só é conhecido no último dia do mesmo. “Muitas vezes,</p><p>depois de terem passado por um processo longo e de terem gasto dezenas de</p><p>milhões, chegam à conclusão que, afinal, o preço a que conseguem é muito</p><p>baixo. E cancelam”, explicava o professor. Está recordado da</p><p>desvalorização de 40 mil milhões da WeWork?</p><p>Em Abril de 2019, existiam 88 empresas na zona de São Francisco, nos</p><p>Estados Unidos, que valiam mais de mil milhões de dólares – “mais do que</p><p>em qualquer outra parte do mundo” –, segundo as contas feitas pelos</p><p>jornalistas da The Economist.64</p><p>Para a revista britânica, os unicórnios tinham-se tornado na parte</p><p>dominante daquilo que Silicon Valley produzia, mas o feito merecia mais</p><p>desconfiança do que entusiasmo. Apesar de as empresas valerem mais do</p><p>que em fases anteriores, demoravam nesta altura mais tempo a chegar aos</p><p>mercados. Se, em 2013, as empresas americanas demoravam em média sete</p><p>anos a fazer um IPO, em 2018 estas contas subiam para dez anos.</p><p>“Numa inspecção mais aprofundada, há problemas à vista. Se olharmos</p><p>de perto para este rebanho de unicórnios, percebemos que não são tão</p><p>impressionantes como julgávamos. Alguns parecem ter sido gerados para se</p><p>mostrarem, e não para trabalhar, e nem todos vencerão as suas corridas.</p><p>Estas fraquezas não representam apenas questões individuais, são antes</p><p>sinais de que a cultura empresarial que produziu estas bestas está a começar</p><p>a sofrer com as suas falhas e desequilíbrios</p><p>estruturais”, lia-se no artigo.</p><p>Para medir o pulso ao boom de unicórnios, a equipa da The Economist</p><p>juntou num estudo doze empresas, públicas e privadas, focadas na internet –</p><p>seis americanas, cinco asiáticas e uma europeia –, com mais ou menos dez</p><p>anos de existência e características semelhantes (mercados vastos e taxas</p><p>fortes de crescimento nas receitas, entre outras). Entre as empresas</p><p>escolhidas pela revista estava a Uber (que ainda não tinha feito o IPO) e a</p><p>WeWork (que ainda não tinha perdido 30 mil milhões de dólares), o Spotify,</p><p>a Lyft, o Snap ou o Pinterest. Destas 12 empresas, apenas uma era lucrativa.</p><p>O professor da Universidade da Flórida Jay Ritter explicava, em 2019,</p><p>que 84% das empresas que queriam ser admitidas em bolsa não</p><p>apresentavam lucros nas suas contas, quando, 10 anos antes, a proporção</p><p>era de apenas 33%.</p><p>“Para ver uma ausência de lucros tão desenfreada como a de hoje é</p><p>preciso recuar ao pico da bolha das dotcom [bolha especulativa que ocorreu</p><p>na década de 1990 e 2000 à volta das novas empresas tecnológicas com</p><p>negócios na internet]. Nessa altura, a promessa (muito rapidamente</p><p>quebrada) era a de que os lucros chegariam quando as empresas</p><p>crescessem”, lia-se na publicação. A diferença para a nova bolha é que estes</p><p>unicórnios já tinham crescido e muito – e continuavam sem lucros à vista.</p><p>Juntos, os 12 unicórnios agrupados pela The Economist valiam um terço</p><p>de um bilião de dólares. Feitas as contas, a equipa concluiu o seguinte: para</p><p>que os resultados destas empresas justificassem as avaliações que lhes</p><p>tinham sido atribuídas nos mercados privados, cada um destes unicórnios</p><p>precisava de aumentar as suas vendas a uma taxa anual composta de 49%,</p><p>durante 10 anos.</p><p>Mais: teriam de aumentar as margens do seu negócio em 34 pontos</p><p>percentuais, algo que nunca tinha acontecido. Para chegar a este resultado,</p><p>os jornalistas usaram o modelo de fluxo de caixa descontinuado, uma das</p><p>metodologias mais utilizadas para calcular o valor de uma empresa nos</p><p>mercados públicos.</p><p>“Nada disto significa que sejam maus negócios. Mas faz com que</p><p>pareçam muito caros”, lia-se na revista britânica. Segundo Ilya Strebulaev,</p><p>que é professor na escola de negócios da Universidade de Stanford, estes</p><p>cálculos mostram que um unicórnio estava, em média, sobrevalorizado em</p><p>cerca de 60%.</p><p>Quando a portuguesa Farfetch foi admitida na bolsa de Nova Iorque, o</p><p>jornalista Edgar Caetano, do Observador, também fez as contas à avaliação</p><p>de 5,8 mil milhões de dólares. Como o unicórnio não pagava dividendos</p><p>nem tinha lucros, a única forma de avaliar se a empresa estava cara era</p><p>olhando para a sua avaliação em relação às vendas registadas. Se o múltiplo</p><p>que saísse desta conta fosse muito elevado, isso poderia criar dúvidas: a</p><p>empresa seria capaz de aumentar as receitas até que o valor justificasse o</p><p>preço que estava a ser pago por cada acção?</p><p>Recorrendo ao último valor anual disponível na altura do IPO, sabia-se</p><p>que em 2017 as vendas da Farfetch tinham totalizado 385 milhões de</p><p>dólares na totalidade do ano. Ou seja, a avaliação de 5,8 mil milhões</p><p>representava um múltiplo de 15 vezes as receitas. Em jeito de comparação,</p><p>o múltiplo da Amazon para o mesmo rácio, na altura, era de menos de 5</p><p>vezes.65</p><p>Quando perguntei a Paulo Soares de Pinho, em 2016, se estávamos a</p><p>viver uma bolha nos unicórnios, a resposta confirmou a desconfiança. “Há</p><p>todas as características de uma bolha e essa bolha não rebentará enquanto as</p><p>taxas de juro não subirem ou os investidores não perceberem que andaram a</p><p>pagar demasiado.”</p><p>Porque, conforme frisou o professor, o rebentar de uma bolha no capital</p><p>de risco e o rebentar na bolsa são coisas bem diferentes. Nos mercados, os</p><p>preços das acções podem mudar a cada segundo e é possível alienar activos</p><p>facilmente. “Quando, de repente, há a falência de um Lehman Brothers e as</p><p>pessoas entram em pânico, desatam a vender [as acções].”Ora, no mercado</p><p>privado, não é assim que o processo se desenrola. Os investidores em</p><p>private equity não podem simplesmente dizer “dêem-me o meu dinheiro de</p><p>volta”. Os investimentos estão feitos e, até haver uma saída, o dinheiro está</p><p>lá.</p><p>“Só acabamos por nos aperceber dessas bolhas quando as empresas</p><p>comparáveis a elas vêem a sua cotação cair em bolsa. O que temos de ver é</p><p>o que se passa em bolsa e estar atentos a todo e qualquer factor que possa</p><p>provocar uma crise bolsista. Quando acontecer uma crise bolsista,</p><p>inevitavelmente rebenta a crise dos unicórnios”, disse-me.</p><p>Negociar na corda bamba</p><p>Empresas sobrevalorizadas, avaliações recorde e negócios que desiludem</p><p>quando chegam à bolsa. Mas, afinal, como é que tudo isto aconteceu? Por</p><p>que é que a avaliação das startups tecnológicas inflacionou desta maneira?</p><p>Todas estas perguntas têm a mesma resposta: a bolha começou com a</p><p>descida das taxas de juro por parte dos bancos centrais.</p><p>Em 2016, o director do The Lisbon MBA dizia-me que as taxas de juro</p><p>estavam tão baixas que os gestores profissionais eram obrigados a comprar</p><p>activos de altíssimo risco para poderem, de facto, justificar as comissões</p><p>que estavam a cobrar aos clientes:</p><p>“O capital de risco é apenas um de muitos sintomas. Há bolhas em todo o</p><p>lado. Há bolhas imobiliárias e em créditos de alto risco, outra vez. A</p><p>indústria de private equity está outra vez a fazer operações com níveis de</p><p>endividamento que não se via desde 2007, porque as taxas de juro são</p><p>baixíssimas e os bancos não sabem, literalmente, o que fazer ao dinheiro.”</p><p>Depois da falência do banco de investimento Lehman Brothers, em 2008,</p><p>a Reserva Federal norte-americana (Fed) activou uma série de medidas de</p><p>estímulo à economia, descendo as taxas de juro para cerca de zero – o ponto</p><p>mais baixo da história do banco central norte-americano – e só voltou a</p><p>subi-las sete anos depois, em Dezembro de 2015. Mas em 2019, a Fed</p><p>voltava a descer as taxas três vezes consecutivas e, no final desse ano, a</p><p>maioria dos membros do comité do banco estimava que não haveria</p><p>mudanças nas taxas até 2021.</p><p>Historicamente, as bolhas especulativas seguem um padrão. “Isto é assim</p><p>há duzentos anos. Na sequência de uma crise financeira, os bancos centrais</p><p>entram em pânico e baixam as taxas de juro. O que faz com que os</p><p>investidores não encontrem alternativas interessantes para aplicar o</p><p>dinheiro”, dizia Paulo Soares de Pinho. A solução dos gestores de activos</p><p>passava então pelos activos de alto risco.</p><p>Três anos depois, Stephan Morais repetia-me a mesma ideia – era normal</p><p>que os gestores procurassem activos onde pudessem ter um retorno maior.</p><p>“Em Silicon Valley, estamos a falar de fundos de capital de risco que têm 2</p><p>mil ou 3 mil milhões de dólares sob gestão, o que, no panorama mundial</p><p>[de investimento], não é nada, é zero. O problema é que quando dás uma</p><p>migalhinha aos melhores fundos do mundo, em vez de terem um fundo com</p><p>3 mil milhões, de repente, ficam com um fundo de 5 mil milhões.”</p><p>A isto, junta-se um outro problema: em que empresas devem os gestores</p><p>investir? Nas grandes vencedoras, ou seja, nas que cativavam a atenção dos</p><p>fundos mais conceituados. E se estes estiverem a investir numa Uber,</p><p>WeWork ou Farfetch, então a lógica inverte-se e são as sociedades que</p><p>competem entre si para ver quem dá mais por aquele unicórnio. Não é o</p><p>empreendedor que tem de convencer o investidor, é quase o contrário.</p><p>“The winner takes it all. Quando se vislumbra que há uma startup que vai</p><p>vencer, toda a gente quer investir e isso inflaciona [a avaliação da empresa]</p><p>”, explicava Stephan Morais. O poder deixa, assim, de estar do lado do</p><p>investidor para estar do lado do fundador.</p><p>Paulo Soares de Pinho tinha uma perspectiva semelhante: há efeitos de</p><p>manada entre os investidores que tentam tirar partido das empresas de que</p><p>toda a gente fala. “É evidente que o problema das empresas que têm uma</p><p>parte da valorização baseada no facto de estarem na moda é que, quando</p><p>deixam de estar, as valorizações caem a pique. A própria Amazon soube o</p><p>que era estar na moda e ficar fora de moda, esteve um dia à beira de</p><p>entregar a declaração para evitar falência”, explicou-me.</p><p>de dez anos da Ana, anos em que</p><p>acompanhou e observou o arrancar do ecossistema de startups; percebeu o</p><p>que fazia uma startup crescer; os desafios e percalços que tinha de</p><p>enfrentar; os momentos importantes, mas também o dia-a-dia; a sorte e o</p><p>azar; os avanços e os recuos; os sacrifícios pessoais e as difíceis decisões,</p><p>que também são necessárias para atingir o estatuto de unicórnio.</p><p>Este livro é para todos aqueles que já ouviram falar de unicórnios, mas</p><p>que têm curiosidade em perceber melhor de que realmente se está a falar. A</p><p>Ana aprofunda especificamente três histórias de unicórnios – a da Farfetch,</p><p>a da Outsystems e a da Talkdesk – e fala também do percurso da Feedzai e</p><p>da Remote, mas é realmente nos detalhes dessas histórias que está o sumo</p><p>do livro. São estes pormenores que nos fazem entender, na realidade o que</p><p>acontece durante todo este processo, o que se passa behind the scenes de</p><p>uma startup que cresce a um ritmo alucinante até se transformar em</p><p>unicórnio.</p><p>E, acima de tudo, presta o enorme serviço de dar a conhecer uma</p><p>dimensão do movimento grassroots, que moldou o ecossistema de startups</p><p>em Portugal nesta última década, revelando uma nova realidade económica</p><p>para o futuro do nosso país.</p><p>Ricardo Marvão</p><p>Co-fundador, Beta-i</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Queria muito ler um livro sobre unicórnios. Como não o encontrei, escrevi-</p><p>o. Parece fácil, não é? Não foi. Quando comecei esta odisseia a minha ideia</p><p>era simples: contar a história do fenómeno que durante vários anos tinha</p><p>acompanhado de perto, como jornalista, e que acreditava que ficaria para</p><p>sempre na história.</p><p>Em 2019 vivíamos uma era sem precedentes em Portugal (e no mundo) –</p><p>Lisboa queria afirmar-se como um dos principais hubs tecnológicos</p><p>europeus, atraindo a atenção de grandes players internacionais para a</p><p>capital portuguesa. O termo startup tinha-se massificado e nunca tinha</p><p>havido tanto dinheiro disponível para investir em novos negócios. O</p><p>Governo punha o empreendedorismo na agenda, as notícias sobre rondas de</p><p>investimento multiplicavam-se e a Web Summit, que à data era a maior</p><p>conferência de empreendedorismo e tecnologia da Europa, atraía mais de 70</p><p>mil pessoas ao Parque das Nações, em Lisboa, uma vez por ano.</p><p>No mundo, a revolução digital acelerava a uma velocidade que parecia</p><p>difícil de acompanhar, a economia debatia-se com os novos conceitos e</p><p>serviços que emergiam, e a sociedade vivia, num todo, cada vez mais</p><p>dependente da internet e das aplicações móveis. Passou a haver uma app</p><p>para tudo, mesmo que essa app desaparecesse pouco tempo depois de ter</p><p>nascido.</p><p>Por esta altura, já eu trabalhava como jornalista há muito. Entrei na minha</p><p>primeira redacção, a da extinta revista Carteira, dias depois de o quarto</p><p>maior banco de investimento norte-americano ter colapsado, em Setembro</p><p>de 2008.</p><p>A falência do Lehman Brothers foi um ponto de viragem e acabou por</p><p>atirar o mundo para a maior crise financeira de que há memória desde o</p><p>crash de 1930, levando vários países a mergulhar numa crise económica</p><p>profunda. Portugal não foi excepção. Daí até surgirem as primeiras notícias</p><p>de problemas nos bancos portugueses foi um instante.</p><p>A 2 de Novembro desse ano, o Governo, na altura liderado por José</p><p>Sócrates, anunciava que ia nacionalizar o Banco Português de Negócios. E,</p><p>a partir daí, já não havia volta a dar. O colapso do BPN seria apenas o início</p><p>da crise bancária que se viveria em Portugal nos anos seguintes e que</p><p>envolveria a muito mediática implosão do Banco Espírito Santo.</p><p>A 6 de Abril de 2011, e depois de muita especulação, acontecia o</p><p>inevitável: o Governo pedia oficialmente ajuda externa à União Europeia e</p><p>ao Fundo Monetário Internacional (FMI), e duas semanas depois a troika</p><p>(composta pelo FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu)</p><p>chegava a Portugal. Objectivo: negociar o programa de resgate financeiro</p><p>que comandaria os destinos do país nos três anos seguintes.</p><p>Passado um mês foi assinado o memorando de entendimento que permitia</p><p>ao país financiar-se em 78 mil milhões de euros. Em troca, o Governo</p><p>comprometia-se com um programa de cortes na despesa, aumento de</p><p>impostos e reformas estruturais na economia.</p><p>Os anos seguintes seriam marcados pela austeridade.</p><p>Com a troika no país, a recessão bateu à porta dos portugueses e a taxa de</p><p>desemprego subiu até atingir o recorde de 17,5%, no início de 2013. A</p><p>recuperação económica só começaria a acontecer no ano seguinte, com a</p><p>saída de Portugal do programa de resgate. Nessa altura, porém, já muitas</p><p>pessoas tinham começado a empreender como forma de criarem os seus</p><p>próprios empregos. A revolução das startups estava em curso.</p><p>No mundo, os fundos de investimento em capital de risco iam</p><p>engordando cada vez mais com a falta de alternativas rentáveis para aplicar</p><p>o grande capital. E as empresas que à data prometiam mudar a indústria</p><p>tecnológica começavam a ter acesso a rondas de investimento com valores</p><p>cada vez mais elevados. A escassez de uns tornou-se, rapidamente, na</p><p>abundância de outros.</p><p>Apesar de o termo unicórnio só ter aparecido no mundo empresarial em</p><p>2013, foi preciso chegar a 2015 para vê-lo associado a uma startup fundada</p><p>e presidida por um português. Na altura, poucos sabiam o que a expressão</p><p>significava e, apesar de se ter normalizado com o passar do tempo, cinco</p><p>anos (e muitos unicórnios) depois, várias pessoas ainda me perguntavam:</p><p>“O que é mesmo um unicórnio? Que empresas são estas?”</p><p>A resposta ia-se perdendo em artigos e conversas, mas eu queria que</p><p>ficasse guardada e acessível a qualquer pessoa. Queria que ficasse</p><p>materializada. Quando em 2019 me propus a escrever este livro, as</p><p>preocupações sobre uma eventual bolha no sector eram muitas. E alguns</p><p>especialistas acreditavam que se aproximava o fim das hipervalorizações de</p><p>startups tecnológicas nos mercados privados.</p><p>No meio disso tudo, o que ninguém previu foi o acontecimento sísmico</p><p>de 2020: a pandemia de coronavírus.</p><p>Com a Covid-19 a deixar-nos confinados em casa durante largos meses,</p><p>também este livro se confinou, na ânsia de perceber o que aconteceria aos</p><p>mercados e aos unicórnios – e sobretudo às empresas portuguesas que, à</p><p>data, já pertenciam a este mitológico clube.</p><p>Seria expectável afirmar que há uma era de unicórnios pré-pandemia e</p><p>uma pós, mas a avaliar pelo que aconteceu em 2020 e 2021 não me parece</p><p>que surjam assim tantas diferenças no imediato. A não ser numa questão de</p><p>cifrões. À data em que escrevia estas palavras havia cada vez mais dinheiro</p><p>disponível. E mais unicórnios a proliferar no mundo.</p><p>Em Portugal, o fenómeno também foi crescendo. Depois de, em 2015, ter</p><p>surgido a primeira startup a valer mais de mil milhões de dólares no</p><p>mercado privado, a Farfetch, em 2018 assistimos a mais duas avaliações na</p><p>mesma ordem de valores, a OutSystems e a Talkdesk.</p><p>Durante cinco anos, estes foram os três unicórnios com ADN nacional</p><p>cujas histórias acompanhei de perto, enquanto jornalista e editora de</p><p>tecnologia e startups do Observador. Acreditava que a história destes</p><p>portugueses – de José Neves (Farfetch), Paulo Rosado (OutSystems),</p><p>Cristina Fonseca e Tiago Paiva (Talkdesk) – tinha de ser contada e registada</p><p>para a posteridade em livro.</p><p>Independentemente do que poderá acontecer nos próximos anos, estes</p><p>foram os primeiros líderes portugueses à frente de empresas tecnológicas a</p><p>valerem mais de mil milhões de dólares. E marcaram o início de uma nova</p><p>era no ecossistema das startups nacionais.</p><p>Mas a história não acabou aqui. Nem de perto.</p><p>Durante a pandemia de Covid-19, houve mais duas empresas fundadas</p><p>por portugueses a atingir esta valorização –uma delas, a Feedzai, liderada</p><p>por Nuno Sebastião, foi mesmo o primeiro unicórnio integralmente</p><p>português. A única com sede em Portugal, em Coimbra. Já a Remote (mais</p><p>recente) tinha conseguido esta avaliação apenas dois anos depois de ter</p><p>nascido.</p><p>É provável que os nomes portugueses que integram este clube mitológico</p><p>venham a crescer ou a ser reavaliados. Também pode acontecer o oposto,</p><p>mas tudo isto já é futurologia e não é para isso que vos escrevo. O que me</p><p>interessa</p><p>Junta-se a este cocktail de dinheiro e moda a inovação tecnológica que</p><p>acompanha a quarta revolução industrial, a digitalização da economia e o</p><p>boom das aplicações móveis. E ficávamos com a mistura perfeita para nos</p><p>embriagarmos de unicórnios durante largos anos. Para Paulo Soares de</p><p>Pinho, “o dinheiro não está a chegar à economia real, mas está a chegar a</p><p>outros sítios. E os outros sítios são bolhas.”</p><p>Empresas com asas nos pés</p><p>Já passava das 17h quando cheguei ao hotel Palácio do Governador, na zona</p><p>de Belém, em Lisboa. As primeiras chuvas do Outono de 2019 dificultavam</p><p>o já habitual (e complicado) trânsito de fim de tarde e uma multa por</p><p>excesso de velocidade – passada ao motorista do TVDE (aplicações como a</p><p>Uber, Bolt ou Kapten) que me transportava – acabaria por me fazer chegar</p><p>atrasada à entrevista que tinha marcado com Jonathan Littman. O guru da</p><p>inovação, que morava em São Francisco, tinha acabado de chegar a</p><p>Portugal para participar num laboratório de Design Thinking em Aveiro.</p><p>Autor de vários best-sellers sobre inovação, Littman estava por esta altura</p><p>a focar cada vez mais o seu trabalho em empreendedores e startups.</p><p>Reconhecia o valor destes negócios milionários, mas também se mostrava</p><p>preocupado:</p><p>“Há unicórnios que me parecem ser feitos para aparecer nos media, para</p><p>serem celebridades. Sou velho o suficiente para me lembrar que não se trata</p><p>tudo de dinheiro. E acho que um dos problemas com os unicórnios é que há</p><p>uma obsessão com o dinheiro e não com o valor ou qualidade, que são</p><p>coisas muito diferentes”, dizia-me naquele fim de tarde.</p><p>O autor do best-seller The Art of Innovation tinha fundado em Abril de</p><p>2015 o site SmartUp.life, juntamente com Susanna Camp, que passou pela</p><p>revista Wired. Juntos estavam também a escrever um livro sobre</p><p>empreendedorismo a nível global.</p><p>Quando lhe perguntei porque tínhamos chegado a este ponto, pediu-me</p><p>para olhar para o que tinha nas mãos – o smartphone que estava a utilizar</p><p>para gravar a nossa conversa. “A grande maioria dos unicórnios são</p><p>plataformas e agora não estás a vender apenas uma coisa física num país ou</p><p>em dez, estás a vender em duzentos países e a centenas de milhões de</p><p>pessoas. Isto é tudo muito recente”, disse-me.</p><p>Marvin Liao também estava numa viagem pela Europa quando aceitou</p><p>conversar comigo numa videochamada por Skype, meses antes. Sentado</p><p>num café, virado para a câmara do computador e com os auriculares nos</p><p>ouvidos, o investidor norte-americano da 500 Startups afirmava que não</p><p>conseguia entender o porquê de existirem tantas empresas a valer mais de</p><p>mil milhões de dólares.66</p><p>“Muitos destes unicórnios nem sequer têm um modelo de negócio real,</p><p>nem sequer têm bons indicadores económicos e estão mesmo</p><p>sobreinvestidos. Isto não faz sentido nenhum para as empresas. Acho que há</p><p>muito dinheiro a inundar estes negócios”, dizia.</p><p>Na edição da revista The Economist de Abril de 2019, lia-se o seguinte:</p><p>“Agora, há muitos póneis a serem apresentados como unicórnios: empresas</p><p>tecnológicas privadas que valem mais de mil milhões e que, supostamente,</p><p>são fortes e vão tomar conta do mundo. Só têm um problema: o seu modelo</p><p>de negócio”. Com o mito dos unicórnios a cair por terra, uma nova espécie,</p><p>“mais convincente”, teria de emergir, lia-se na revista.</p><p>“Em vez de se focarem em ser unicórnios, foquem-se em ser baratas. E</p><p>sobrevivam à guerra nuclear”, já me dizia Eze Vidra, ex-investidor da</p><p>Google Ventures, em 2016. Mas, três anos depois, nem todos concordavam</p><p>que a euforia dos unicórnios poderia estar a chegar ao fim. Nick Giovannu,</p><p>responsável do Goldman Sachs pela área de tecnologia, media e</p><p>telecomunicações, dizia à revista Fortune que um grupo de empresas</p><p>privadas tinha passado por anos difíceis, “mas os relatos de unicórnios</p><p>moribundos eram muito exagerados”.67</p><p>Uma coisa parecia certa nos finais de 2019: viam-se sinais de alarme</p><p>vindos dos negócios tecnológicos. Se os empreendedores os percebiam era</p><p>uma coisa. Se os investidores os ignoravam era outra. E se o mundo estava</p><p>preparado para lidar com as suas consequências era a derradeira questão.</p><p>Faltava ainda um teste, que ninguém conseguia prever à data: como iriam</p><p>estes negócios adaptar-se à pandemia de Covid-19 que seria decretada a 11</p><p>de Março de 2020. A avaliar pelas notícias publicadas sobre os portugueses</p><p>no decorrer de 2020 e 2021, a missão dos unicórnios nacionais continuava a</p><p>ser a mesma: crescer.</p><p>64 https://www.economist.com/briefing/2019/04/17/the-wave-of-unicorn-</p><p>ipos-reveals-silicon-valleys-groupthink</p><p>65 https://observador.pt/especiais/farfetch-vai-para-a-bolsa-e-e-mais-cara-do-</p><p>que-a-amazon-porque-e-que-a-empresa-de-jose-neves-vale-tanto/</p><p>66 https://observador.pt/especiais/a-bolha-dos-unicornios-vai-rebentar-e-vai-</p><p>ser-feio-vejo-muito-dinheiro-a-ir-para-negocios-muito-maus/</p><p>https://www.economist.com/briefing/2019/04/17/thewaveofunicorniposrevealssiliconvalleysgroupthink</p><p>https://observador.pt/especiais/farfetchvaiparaabolsaeemaiscaradoqueaamazonporqueequeaempresadejosenevesvaletanto/</p><p>https://observador.pt/especiais/abolhadosunicorniosvairebentarevaiserfeiovejomuitodinheiroairparanegociosmuitomaus/</p><p>67 https://observador.pt/especiais/em-vez-de-unicornios-transformem-se-em-</p><p>baratas-sobrevivam-a-guerra-nuclear/</p><p>https://observador.pt/especiais/emvezdeunicorniostransformemseembaratassobrevivamaguerranuclear/</p><p>O falhanço faz parte e não é uma contingência do sucesso, é parte</p><p>essencial e constitutiva do processo de empreender.</p><p>Só empreende falhando. Mesmo aqueles que hoje são bem-sucedidos</p><p>têm a honestidade de reconhecer que não foi à primeira.</p><p>Miguel Fontes, director da Startup Lisboa</p><p>CAPÍTULO 1</p><p>O MILIONÁRIO QUE NUNCA TEVE UM EMPREGO</p><p>Camisa branca, blazer preto, braços cruzados e um sorriso aberto que</p><p>reclamava, entre outras coisas, vitória. Aos 44 anos, José Neves conseguiu</p><p>aquilo que durante dez anos tinha sido, para muitos, uma incógnita a</p><p>merecer desconfiança – transformou a Farfetch numa empresa cotada.</p><p>Atrás de si, na fachada setecentista da bolsa de Nova Iorque, três</p><p>bandeiras em destaque: a dos Estados Unidos, a do Reino Unido e a de</p><p>Portugal. Estávamos a 21 de Setembro de 2018 e já todos sabíamos que a</p><p>vida deste unicórnio não voltaria a ser igual.</p><p>Se perguntássemos a alguém que passasse naquela manhã em Wall Street</p><p>quem era o homem que posava com tanta alegria para as fotografias, o mais</p><p>provável era que ninguém nos soubesse responder. Um desconhecido. Um</p><p>empresário entre tantos outros. Em Portugal, contudo, o marco era</p><p>histórico: o mítico sino nova-iorquino, naquele dia, seria finalmente tocado</p><p>por um português. A Farfetch tornava-se, assim, na primeira empresa</p><p>tecnológica nacional a entrar numa das maiores bolsas de valores do</p><p>mundo.</p><p>Às 11h30 da manhã daquela sexta-feira em Nova Iorque (16h30 em</p><p>Lisboa), as acções da loja online de moda de luxo começavam finalmente a</p><p>ser negociadas. Ao lado de José Neves, no epicentro financeiro do mundo,</p><p>estava a mulher, Daniela Cecilio, o ministro da Economia da altura, Manuel</p><p>Caldeira Cabral, vários representantes das casas de investimento que</p><p>prepararam a admissão em bolsa, o IPO, e outros convidados do</p><p>empresário.</p><p>Caldeira Cabral diria mais tarde, nesse mesmo dia, que a Farfetch estava</p><p>“a criar riqueza para o país”, a dar “notoriedade” às empresas tecnológicas</p><p>portuguesas e a atrair ainda mais investidores para Portugal. Se dúvidas</p><p>existissem sobre o valor multimilionário do unicórnio, para o governante,</p><p>naquele momento, tinham sido esclarecidas “Havia quem discutisse se esta</p><p>empresa já valia mil milhões de dólares. Agora, essa discussão está</p><p>completamente ultrapassada.”68</p><p>A 21 de Setembro de 2018, José Neves beijava a mulher no balcão da</p><p>bolsa de Nova Iorque, num momento de celebração que ficará decerto para</p><p>a história: foram dispersas, naquele dia, mais de 44 milhões de acções da</p><p>empresa que Neves tinha fundado em 2008 no pico da crise financeira.</p><p>Um mês depois de o primeiro unicórnio com ADN nacional ter entregado</p><p>os documentos ao SEC (o regulador norte-americano dos mercados), e</p><p>oficializado o pedido de admissão</p><p>à bolsa, o desejo tornou-se realidade.</p><p>“Colocar a bandeira portuguesa no New York Stock Exchange (NYSE) era</p><p>um dos pequenos sonhos que tínhamos e que foi realizado hoje”, disse o</p><p>empreendedor à agência Lusa.69</p><p>Um ano depois, José Neves dir-me-ia, em Londres, que o IPO tinha sido</p><p>“realmente uma vitória colectiva” e que esperava estar a inspirar outras</p><p>pessoas em Portugal e no mundo. Como é que se leva uma empresa que</p><p>nasceu no pico de uma crise à bolsa de Nova Iorque? Com muito trabalho,</p><p>muito suor e um bocadinho de inspiração, respondeu-me. “Mas é possível</p><p>atingirmos os objectivos, mesmo quando, no início, eles parecem</p><p>inimagináveis.”</p><p>Apesar da imprevisibilidade do que estava por vir, naquela sexta-feira de</p><p>2018 só havia espaço para uma coisa em Wall Street: festa. “Hoje foi um</p><p>dia fantástico de celebração. Este dia é para a equipa. Sei que todos os</p><p>nossos escritórios internacionais, incluindo os de Portugal, celebraram com</p><p>muita alegria. O trabalho é deles, os resultados são deles.” E era</p><p>precisamente a eles, a esta “equipa fantástica de três mil pessoas”, que José</p><p>Neves agradecia. Para o futuro, quais eram as perspectivas? Mais pessoas e</p><p>mais emprego.</p><p>As ambições eram, naquela altura, muitas. José Neves acreditava que em</p><p>2018 apenas 9% das vendas de luxo eram feitas online, mas que essa</p><p>percentagem iria progredir para 25% nos 10 anos seguintes, representando</p><p>uma fatia de mercado equivalente a 100 mil milhões de dólares.</p><p>O português argumentava que a indústria de luxo facturava, à data, 300</p><p>mil milhões de dólares anualmente e que a Farfetch era o único marketplace</p><p>online disponível neste tipo de mercado, com um modelo de negócio que</p><p>não apresentava qualquer concorrência – a plataforma portuguesa era</p><p>apenas um intermediário entre o cliente e as boutiques ou marcas, não era</p><p>uma retalhista tradicional e, por isso, não tinha inventário ou stock.</p><p>À televisão da agência financeira Bloomberg, José Neves disse no dia do</p><p>IPO – com os ecrãs da bolsa de Nova Iorque atrás de si – que os objectivos</p><p>para os próximos anos não passavam apenas por crescer online, mas</p><p>também por fazer optimizar a relação entre as marcas e clientes offline.</p><p>Como? Pondo a tecnologia ao serviço das lojas, para que esta melhorasse a</p><p>experiência do cliente no local, algo que, aliás, a empresa já tinha começado</p><p>a fazer. “Começámos esta parceria inovadora com a Chanel e estamos a</p><p>investir nestas duas oportunidades”, ou seja, dentro e fora da internet.70</p><p>Na carta que o empresário escreveu aos accionistas (e que constava da</p><p>documentação entregue no SEC), as intenções eram claras: o futuro estaria</p><p>sempre assente numa base de inovação tecnológica, que respondesse à</p><p>seguinte questão: “Como é que o mundo vai fazer compras de moda dali a</p><p>5, 10 ou 20 anos?”.</p><p>Apesar das dúvidas, havia uma garantia dada por José Neves: “Internet</p><p>das Coisas, dispositivos comandados por voz, realidade aumentada ou</p><p>realidade virtual… Qualquer que seja o novo veículo que os consumidores</p><p>escolham, o nosso sistema API [Interface de Programa de Aplicações] será</p><p>facilmente incorporado em cada uma dessas vias, da mesma forma que nos</p><p>adaptámos ao WeChat [aplicação onde é possível fazer várias coisas ao</p><p>mesmo tempo, como trocar mensagens e fazer pagamentos] na China, e</p><p>integrando uma plataforma de e-commerce conversacional na nossa</p><p>empresa.”</p><p>Sobre o consumo offline, o empresário português não parecia ter grandes</p><p>dúvidas: as lojas físicas continuariam a existir, não valia a pena lutar contra</p><p>elas. Na sua opinião, o sector da moda não seguiria a tendência de</p><p>indústrias como a música ou o vídeo, nas quais a experiência tinha sido</p><p>irremediavelmente digitalizada, porque continuava a haver “algo mágico”</p><p>na experiência de ir a uma loja comprar roupa e tocar nos tecidos. Algo que</p><p>o digital ainda não conseguia reproduzir.</p><p>Em que é que estava determinado em apostar, então? Nas experiências de</p><p>consumidor “ultra personalizadas”. Ou seja, na “Loja do Futuro”, onde a</p><p>informação online sobre os consumidores e a “magia” da experiência offline</p><p>convergiam. “Planeamos para os próximos anos um investimento intensivo</p><p>em Investigação & Desenvolvimento”, lia-se no prospecto do IPO. Para a</p><p>próxima década, as armas da Farfetch já estavam prontamente apontadas e</p><p>as contas provisoriamente feitas. “A distinção entre offline e online irá</p><p>dissipar-se por completo.”</p><p>O empresário que viria a tornar-se num dos mais ricos em Portugal</p><p>assegurava, em 2018, que a indústria de luxo tinha crescido a um ritmo</p><p>constante de 6% nos últimos 20 anos. Se se replicasse a mesma taxa para os</p><p>próximos 10, isso significaria que o valor da mesma indústria ascenderia a</p><p>450 mil milhões de dólares. Para José Neves, 25% destas vendas seriam</p><p>feitas online e 75% em lojas físicas.</p><p>Certo de que o futuro passaria pela junção do offline ao virtual, o</p><p>empresário acreditava que só havia uma forma de orquestrar esta</p><p>conversão: optando por deixá-la nas mãos de uma só empresa, ou seja, nas</p><p>da Farfetch – a única que, à data, era capaz de oferecer um vislumbre sobre</p><p>este tipo de experiência. “Isto traduz-se num potencial de mercado para a</p><p>Farfetch de 450 mil milhões de dólares”, escrevia. A missão continuava a</p><p>mesma de 10 anos antes, mas a revolução já não se fazia apenas online. Era</p><p>toda uma experiência imersiva.</p><p>Aos colaboradores, José Neves deixava no dia da entrada em bolsa a</p><p>promessa de que a empresa iria continuar a sua missão, guiando-se “por</p><p>valores que criavam felicidade no trabalho”. E, aos consumidores, deixava</p><p>outra: a de continuar a disponibilizar marcas e lojas “que continuarão a</p><p>fasciná-los todos os dias”.</p><p>Com a venda das 44,2 milhões de acções a 20 dólares cada uma, a</p><p>Farfetch encaixou 885 milhões de dólares com o IPO e José Neves – que</p><p>por esta altura detinha 14,8% da empresa – encaixou uma fortuna pessoal</p><p>superior a mil milhões de dólares.71</p><p>A operação fez com que o portuense nascido em São Roque da Lameira,</p><p>um bairro da freguesia de Campanhã, protagonizasse no ano seguinte uma</p><p>subida considerável no ranking dos mais ricos da revista Forbes em</p><p>Portugal. A edição anterior, de Julho de 2018, colocava-o no nono lugar,</p><p>com uma fortuna estimada em 689 milhões de euros.72 Mas, em Julho de</p><p>2019, José Neves era a quarta pessoa mais rica do país, com os valores a</p><p>crescerem para 1010 milhões de euros.</p><p>A bola de cristal para a próxima década estava, naquele ano, em Wall</p><p>Street, com todos os accionistas a assistir às premonições. Mas aquela</p><p>história tinha começado há 36 anos, no Natal em que José Neves, um miúdo</p><p>de 8 anos, recebeu dos pais um computador ZX Spectrum, sem monitor</p><p>nem jogos.</p><p>“Sempre tive o sonho de ter o meu próprio negócio, de criar coisas, de</p><p>construir coisas. E sempre tive o sonho de viver no estrangeiro, de ter uma</p><p>vida internacional, de viajar. Quando tinha 13 anos, a minha mãe fez um</p><p>doutoramento no King’s College London e eu ia para lá frequentemente</p><p>com ela. Apanhei aquele gosto pelas viagens e por Londres, em particular, e</p><p>penso que depois era uma questão de tempo. De uma forma ou de outra,</p><p>seria lá que iria parar.”</p><p>Quando me sentei para conversar com José Neves pela primeira vez, em</p><p>Março de 2015, o ambiente no escritório da Farfetch, na Lionesa, onde</p><p>trabalhavam cerca de 300 pessoas, era descontraído quanto baste. José</p><p>Neves apresentava então um look mais descontraído e casual do que o do</p><p>dia do IPO: tinha a camisa desentalada, os botões do colarinho</p><p>desabotoados e um casaco azul-escuro mais desportivo. A barba, que</p><p>ameaçava o grisalho, também já fazia parte da imagem de marca de Neves e</p><p>assim se manteria no decorrer dos anos seguintes. Eu não sabia, mas estava</p><p>diante do português que, em breve, pertenceria ao top cinco dos mais ricos</p><p>do país. Naquela altura, para mim, era apenas o fundador de uma empresa</p><p>unicórnio. Não que isso fosse pouco – não era, de todo –, eu é que ainda</p><p>não sabia o que estava por vir.</p><p>Empreendedor desde muito jovem, contou-me de forma igualmente</p><p>descontraída que nunca soube o que era trabalhar para terceiros. Ter um</p><p>patrão, alguém a quem prestar contas ou chamar</p><p>“chefe”. Sempre teve</p><p>empresas, desde os 19 anos. Primeiro de tecnologia, depois de moda (de</p><p>calçado) e, por fim, uma de tecnologia e de moda.</p><p>Sem que nada tivesse sido planeado ao detalhe, José Neves sempre soube</p><p>que seria ali que iria parar – não “ali”, ao balcão da bolsa de Nova Iorque</p><p>em 2018, mas “ali”, às semanas da Moda em Paris, ao centro financeiro de</p><p>Londres, ao glamour das boutiques de luxo que contrastavam com o céu</p><p>mais cinzento da indústria têxtil, no Norte de Portugal, de onde era a sua</p><p>família. Ali, onde esteve durante os dez anos que marcaram a história do</p><p>unicórnio pré-IPO.</p><p>Para arriscar sempre por conta própria, eram precisos vários ingredientes,</p><p>que se consolidam e fortalecem pelo caminho, e José Neves sabia-o. Era</p><p>preciso ter arrojo, coragem, perseverança, flexibilidade ao risco e</p><p>resistência à adversidade. Mas era suficiente? Aparentemente, não. Pelo</p><p>menos, não para ele.</p><p>“Sempre fui patrão de mim próprio, desde os 19 anos”, contou-me nessa</p><p>conversa. “Nunca tive um emprego, o que é bom e é mau. Às vezes digo</p><p>que não me consigo relacionar muito com os problemas dos meus</p><p>colaboradores. Porque certas apreensões, certas dificuldades que eles têm,</p><p>apreensões sobre mudança, sobre como vai ser a sua função no próximo</p><p>ano... Tudo isto foi uma coisa que nunca senti. Às vezes, são os recursos</p><p>humanos que têm de me ensinar e guiar, porque eu, naturalmente, não</p><p>passei por essa experiência”, dizia-me.</p><p>Naquela sexta-feira, em Leça do Balio, estavam centenas de pessoas</p><p>sentadas nas suas secretárias, no open space, muitas vezes com dois</p><p>monitores de computador à frente. Pela manhã, tinha havido a surpresa do</p><p>dia: bolas de Berlim oferecidas pelo unicórnio a todos os funcionários. À</p><p>data, era política da empresa oferecer algo aos colaboradores no último dia</p><p>útil da semana. Cinco anos depois, as ofertas mantinham-se, mas à quarta-</p><p>feira.</p><p>Quando cheguei à sala de videojogos, onde também estava uma mesa de</p><p>pingue-pongue e outra de matraquilhos, vi quatro pessoas agarradas a uma</p><p>PlayStation. Ao lado, numa Wii, estava Daniel Martinho, a tentar vencer um</p><p>campeonato de karts virtual enquanto esperava pelo autocarro que o levaria,</p><p>por volta das 19h, até casa, em Vila Nova de Gaia. Todos os dias saíam</p><p>daquele escritório dois autocarros para levar os colaboradores que moravam</p><p>em Braga ou em Guimarães a casa. Cinco anos depois desta minha visita, os</p><p>autocarros também se mantinham.</p><p>Pouco depois de ter conversado com Daniel Martinho, entraram mais</p><p>cinco pessoas na sala, com roupa adequada para fazerem exercício físico e</p><p>colchões debaixo do braço. Estava prestes a começar a transmissão em</p><p>vídeo da modalidade de treino T25, com o instrutor de fitness norte-</p><p>americano Shaun T a dar as ordens no ecrã. Às terças e quintas-feiras, por</p><p>exemplo, existiam aulas de quizomba, salsa e bachata dentro da empresa.</p><p>Cinco anos depois, as actividades desportivas estavam inseridas num</p><p>programa de benefícios mais alargado, ao qual todos os colaboradores</p><p>tinham acesso.</p><p>Em 2015, a startup de José Neves tinha acabado de se apresentar ao país</p><p>e ao mundo como o primeiro unicórnio com raízes nacionais, mas, já na</p><p>altura, surgiam dúvidas sobre as altas avaliações que estavam a acontecer</p><p>neste tipo de empresas. Quando lhe perguntei se as dúvidas sobre uma</p><p>eventual bolha não o assustavam, mostrou-se despreocupado. “Nem sequer</p><p>estamos cotados em bolsa. Nunca poderíamos criar uma bolha que a afectar</p><p>alguém, afectaria os investidores. E esses investidores são investidores</p><p>profissionais que avaliaram a empresa entre centenas de outras empresas”,</p><p>respondeu.</p><p>O facto de a empresa ainda não ser rentável também já era assinalado na</p><p>imprensa internacional como uma bandeira vermelha, mas, mais uma vez, o</p><p>empreendedor desvalorizava, não era isso que interessava aos investidores.</p><p>À data da celebração unicorniana, o negócio da Farfetch na Europa era</p><p>rentável, dizia-me José Neves, mas isso não se reflectia a nível global.</p><p>Razão? Porque a empresa continuava a fazer investimentos na abertura de</p><p>novos mercados, como o de Xangai ou de São Paulo.</p><p>“Em Portugal, a empresa tem resultados líquidos positivos, paga</p><p>impostos”, acrescentou na mesma conversa, sem nunca revelar números.</p><p>Em 2015, não havia lucros para mostrar e, no final de 2019, continuava a</p><p>não haver. A empresa, apesar de já estar cotada, continuava a apresentar</p><p>milhões de dólares em prejuízos, como expliquei no capítulo anterior. No</p><p>final desse ano, foram perto de 374 milhões, mas já lá iremos.</p><p>Se a preocupação com uma eventual bolha tecnológica fazia levantar</p><p>alguns sobrolhos entre os cépticos da altura, a concorrência da gigante Net-</p><p>a-Porter fazia levantar outros. À data, era esta a empresa que liderava o</p><p>mercado das lojas online de moda de luxo, posição que o unicórnio</p><p>português queria assumidamente alcançar, apesar da diferença nos modelos</p><p>de negócio – a primeira era considerada uma empresa retalhista, com</p><p>produtos em stock, e a segunda funcionava como intermediária entre</p><p>boutiques e utilizadores.</p><p>Como funciona a Farfetch? “Muito simples”, dizia-me José Neves nesse</p><p>dia. Para o consumidor final, a Farfetch é uma “viagem fantástica” pelo</p><p>mundo da moda, permite a uma pessoa em Lisboa ou no Porto comprar nas</p><p>lojas de Milão, Paris, São Paulo ou Nova Iorque, acrescentava, assegurando</p><p>que o processo decorria de forma fácil e simples. “Os impostos estão</p><p>incluídos, não há surpresas, os preços vêm em euros, a entrega é rápida. Se</p><p>não servir ou quiser devolver, a devolução é gratuita. Enviamos um estafeta</p><p>para fazer a recolha onde a pessoa estiver e não paga nada por isso”, dizia.</p><p>Para que tudo isto acontecesse, o utilizador tinha só de fazer a encomenda</p><p>no site. A comunicação era, depois, feita em tempo real com a loja, que</p><p>tinha “apenas” de acondicionar o produto “de forma perfeita” nas</p><p>embalagens. “A partir daí, o processo é todo controlado pela Farfetch, tanto</p><p>a nível de logística como de desalfandegamento e serviço ao cliente. Todos</p><p>os serviços associados são prestados por nós”, dizia-me.</p><p>Além de ter um modelo de negócio diferente, José Neves queria</p><p>diferenciar-se da concorrência pelo tipo de peças que vendia. “Temos cerca</p><p>de mil marcas, mil designers mais alternativos, mais interessantes”, dizia-</p><p>me no escritório que montou na antiga fábrica de sedas da Lionesa. “É essa</p><p>parte de curadoria, de presença física e de descoberta de novos mundos que</p><p>vamos explorar.”</p><p>Dois anos depois, em Março de 2017, Natalie Massenet, fundadora da</p><p>Net-a-Porter, juntava-se ao conselho de administração da Farfetch como co-</p><p>presidente não executiva do unicórnio com ADN português.73 A ex-</p><p>jornalista de moda tinha fundado a loja online no ano 2000 e manteve-se</p><p>nos comandos da empresa – já líder no comércio electrónico de moda de</p><p>luxo – até Setembro de 2015, altura em que a marca se fundiu com a</p><p>concorrente italiana Yoox. Entre 2013 e 2017, Natalie foi também</p><p>presidente do conselho de administração do British Fashion Council, a</p><p>organização sem fins lucrativos que era responsável pelas semanas de moda</p><p>de Londres.</p><p>Fã convicto da ex-jornalista e empreendedora, José Neves dizia, nesse</p><p>ano, que queria contar com a ajuda de Natalie para fazer crescer a marca da</p><p>Farfetch no mundo todo. “Sou um enorme admirador da Natalie desde o</p><p>lançamento da Net-a-Porter. Ela é pioneira e abriu-nos o caminho.</p><p>Demonstrou não apenas que o luxo podia ser vendido online, mas também</p><p>que a internet se tornaria na principal forma de interacção entre as marcas e</p><p>os consumidores globalmente.”</p><p>Do outro lado, a empreendedora britânica retribuía os elogios. Sublinhava</p><p>que o unicórnio tinha reescrito as regras da tecnologia no sector da moda,</p><p>mostrando que era possível trabalhar lado a lado com as lojas físicas.</p><p>“Quando o José me pediu para me juntar à Farfetch, sabia que não podia</p><p>perder esta oportunidade. O José é um verdadeiro inovador e estou muito</p><p>feliz.”</p><p>Na altura, a loja online do português contava com peças de mais de 750</p><p>designers, que eram vendidas para 190 países. Empregava perto de 1500</p><p>colaboradores e tinha mais de uma</p><p>dezena de escritórios espalhados pelo</p><p>mundo. A 31 de Dezembro de 2018, a Farfetch tinha mais de 3000 marcas</p><p>na plataforma, 2,8 milhões de consumidores, 15 sites em idiomas locais, 13</p><p>escritórios no mundo e conseguia entregar compras em 90 minutos em 19</p><p>grandes cidades. Nas palavras de José Neves, a Farfetch era a plataforma</p><p>líder do mercado de luxo online.</p><p>No dia da entrada em bolsa do unicórnio português, Natalie publicava na</p><p>sua conta de Instagram um vídeo do içar de uma faixa negra com “Farfetch”</p><p>escrito a branco na fachada da bolsa de Nova Iorque. Na legenda: “Muito</p><p>orgulhosa de fazer parte deste dia tão excitante em que a Farfetch se torna</p><p>numa empresa pública. É um dia importante para aquela que é A plataforma</p><p>da moda de luxo”.</p><p>Na fase em que Natalie Massenet se juntou à empresa, a notícia do rótulo</p><p>de unicórnio já não era novidade. Pelo meio, já tinha havido outra ronda de</p><p>investimento (a série F), em Maio de 2016, no valor de 110 milhões de</p><p>dólares. A sexta ronda de investimento da história da Farfetch foi liderada</p><p>por uma casa de investimento de Singapura, o Temasek Holdings, pela</p><p>chinesa IDG Capital e pela francesa Eurazeo. Nenhum destes nomes tinha</p><p>participado em operações de financiamento anteriores.</p><p>Na injecção de 110 milhões de dólares, participaram outras cinco casas de</p><p>investimento, incluindo as norte-americanas e.ventures e FJ Labs e o seu</p><p>co-fundador Fabrice Grinda, que já tinham participado na ronda que pôs a</p><p>empresa no clube dos unicórnios. O objectivo era o de ajudar a Farfetch a</p><p>apostar em força no mercado chinês (que na altura já captava 12% das</p><p>vendas da empresa), bem como noutros mercados asiáticos. À data,</p><p>estimava-se que o investimento avaliava a Farfetch em 1,5 mil milhões de</p><p>dólares.</p><p>Cerca de um ano depois, em Junho de 2017, o unicórnio português</p><p>fechava o maior financiamento pré-IPO da sua história: 397 milhões de</p><p>dólares vindos daquele que era o maior retalhista da China, o grupo</p><p>JD.com, liderado por Richard Liu. Com este investimento, as duas</p><p>empresas queriam criar a maior plataforma para marcas de luxo a operar na</p><p>China.</p><p>À data, a empresa luso-britânica tinha parcerias com 200 marcas de luxo</p><p>e mais de 500 retalhistas multimarca naquele país. José Neves dizia que a</p><p>parceria ligava a curadoria da Farfetch à escala e influência do gigante do</p><p>comércio electrónico que era o grupo JD.com. Este investimento fez com</p><p>que a empresa chinesa se tornasse na principal accionista do unicórnio com</p><p>raízes em Leça do Balio. Mas, antes de chegarmos à outra ponta do mundo,</p><p>recuemos então à origem.</p><p>68 https://www.dn.pt/lusa/farfetch-entrou-hoje-na-bolsa-de-nova-iorque-a-</p><p>27-dolares-por-acao--9888504.html</p><p>69 https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/detalhe/farfetch-cumpriu-o-</p><p>sonho-de-icar-a-bandeira-portuguesa-na-bolsa-de-nova-iorque?out</p><p>70 https://www.bloomberg.com/news/videos/2018-09-21/how-farfetch-s-</p><p>ceo-plans-to-capture-the-growth-in-online-luxury-video</p><p>71 https://www.jornaldenegocios.pt/mercados/bolsa/detalhe/ipo-da-farfetch-</p><p>leva-fortuna-de-jose-neves-a-superar-mil-milhoes-de-dolares</p><p>72 http://www.jornaldenegocios.pt/empresas/detalhe/os-45-mais-ricos-de-</p><p>portugal-tem-24-mil-milhoes-de-euros-sao-13-do-pib</p><p>73 https://observador.pt/2017/03/01/fundadora-da-net-a-porter-junta-se-a-</p><p>jose-neves-na-lideranca-da-farfetch/</p><p>https://www.dn.pt/lusa/farfetchentrouhojenabolsadenovaiorquea27dolaresporacao9888504.html</p><p>https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/detalhe/farfetchcumpriuosonhodeicarabandeiraportuguesanabolsadenovaiorque?out</p><p>https://www.bloomberg.com/news/videos/20180921/howfarfetchsceoplanstocapturethegrowthinonlineluxury-video</p><p>https://www.jornaldenegocios.pt/mercados/bolsa/detalhe/ipodafarfetchlevafortunadejosenevesasuperarmilmilhoesdedolares</p><p>http://www.jornaldenegocios.pt/empresas/detalhe/os45maisricosdeportugaltem24milmilhoesdeeurossao13dopib</p><p>https://observador.pt/2017/03/01/fundadoradanetaporterjuntaseajosenevesnaliderancadafarfetch/</p><p>CAPÍTULO 2</p><p>BRINCAR AOS LEGOS NUM ZX SPECTRUM</p><p>Vinte e quatro de Dezembro de 1982. José Neves era um miúdo de 8 anos e</p><p>na árvore de Natal tinham-lhe deixado o brinquedo que viria a moldar-lhe o</p><p>resto da vida – um computador ZX Spectrum (48k de memória que</p><p>acabaram por abrir a porta para tudo o que veio a seguir). “Era um</p><p>brinquedo fantástico”, recordou numa das nossas conversas. Apesar de o</p><p>presente ser suficiente para arrancar pulos de alegria a todas as crianças,</p><p>tinha um problema: não vinha com jogos ou monitor – como seria de</p><p>esperar – e, por isso, era preciso ligá-lo à televisão para funcionar. A única</p><p>coisa que acompanhava aquela caixa de hardware era um manual de</p><p>programação.</p><p>Na ânsia de usar o brinquedo novo, o (então) pequeno José decidiu abrir a</p><p>primeira página do livro que acompanhava o microcomputador da Sinclair</p><p>Research e começar a testar o que ali estava escrito. Ou seja, começou a</p><p>programar. Quando percebeu que podia “mandar” no que estava a acontecer</p><p>na televisão – era ele quem dava as ordens –, a novidade ganhou um</p><p>atractivo extra e, durante uns dias, a única coisa que fez foi brincar aos</p><p>programadores. Não foi preciso muito para que aquela criança de 8 anos</p><p>ficasse rendida à novidade. “Achei aquilo fascinante. Fiquei apaixonado e a</p><p>partir daí já nem quis saber de jogos”, contou-me.</p><p>Filho único, cresceu num ambiente que lhe permitiu aguçar o gosto pela</p><p>programação – primeiro em Campanhã, onde nasceu; depois em Esposende,</p><p>para onde foi viver aos 5 anos; depois em Algés (Oeiras), para onde a</p><p>família se mudou depois de o pai ter sido promovido.</p><p>“Detestei a escola porque faziam pouco do meu sotaque e pedi para ficar</p><p>com os meus avós no Porto”, contou numa entrevista que deu ao Expresso</p><p>em 2019.74 Como os avós moravam muito perto do apartamento que os pais</p><p>mantiveram no Porto, José Neves ia almoçar e jantar a casa deles</p><p>diariamente, mas morava na dos pais, sozinho. Tinha 13 anos. “Tive de ser</p><p>independente muito cedo. Aprendi a resolver os meus problemas e a</p><p>encontrar os meus caminhos.”</p><p>Desde aquele ZX Spectrum de 82 que nunca mais parou. A mãe, Maria</p><p>Augusta Ferreira Neves, era autora de manuais escolares de Matemática,</p><p>tendo-se doutorado mais tarde em linguagens de programação de auxílio ao</p><p>ensino.75 O pai foi director de marketing de uma farmacêutica e lançou</p><p>depois uma empresa de calçado. Quando a mãe ia dar aulas na Universidade</p><p>Portucalense, José ia com ela só para poder estar no centro de computação.</p><p>“A minha paixão sempre foi programação”, disse-me em 2017. E parecia</p><p>não restar espaço para dúvidas.</p><p>Por volta dos 12 anos, José Neves fez um programa para o</p><p>desdobramento do Totobola. Mais tarde, fez vários casos práticos da tese de</p><p>doutoramento que a mãe estava a escrever sobre a utilização de linguagens</p><p>de programação no ensino de geometria a crianças e jovens. E, aos 14 anos,</p><p>começou a praticar artes marciais, actividade que também o levou mais</p><p>tarde ao budismo e à meditação zen. “Era bastante nerd e os meus gostos</p><p>sempre foram peculiares.”</p><p>Porquê este fascínio com o código binário? Porque “programar é</p><p>construir coisas”, disse numa outra entrevista, desta vez à revista Visão.76</p><p>“Ao contrário do que se pensa, [programar] até é uma actividade muito</p><p>criativa. Há muitas formas de resolver o mesmo problema e, no fundo,</p><p>estamos a construir coisas que não existiam. É quase como um lego, mas ao</p><p>nível de software.”</p><p>Se a primeira paixão foi fácil de encontrar, a segunda também não andava</p><p>longe das raízes familiares. Do avô materno, que tinha uma fábrica de</p><p>calçado em Felgueiras, José Neves herdou o gosto pela moda – foi daí que</p><p>nasceu “o bichinho dos sapatos”, como chegou a referir. Foi também daí</p><p>que acabou por emergir uma marca própria e a sua segunda empresa, ainda</p><p>na década de 1990, a Swear.</p><p>Apesar do gosto pela programação e da ligação familiar à moda, na hora</p><p>de escolher um curso profissional José Neves optou por Economia, na</p><p>Universidade do Porto, curso para o qual entrou com uma nota de 100% na</p><p>Prova Global de Matemática. Quando, em 2015, lhe perguntei o porquê de</p><p>ter escolhido este caminho e não o da engenharia,</p><p>respondeu-me que já</p><p>sabia que conseguia aprender programação sozinho, não precisava de ter</p><p>aulas. Mas que também sabia que “não conseguia ler balanços e</p><p>demonstração de resultados e entender contabilistas. Para isso, precisava de</p><p>formação” adequada. Escolheu-a.</p><p>Não é difícil perceber que, na cabeça do ainda jovem José Neves, a ideia</p><p>de ser empresário e de ter um projecto ligado ao software de programação já</p><p>estava enraizada. Mal entrou na universidade, aventurou-se a solo. Tinha 19</p><p>anos quando lançou uma pequena empresa de produção e desenvolvimento</p><p>de software, a Grey Matter, com a ajuda dos pais e de três computadores.</p><p>Estávamos em 1993, “antes da revolução da internet”, como me contou em</p><p>2017.</p><p>A seu lado, estava Cipriano de Sousa – o engenheiro que quase 30 anos</p><p>depois continuava igualmente a seu lado, desta vez como Chief Technology</p><p>Officer da Farfetch. Ou seja, Cipriano era, em finais de 2019, a pessoa</p><p>responsável por liderar toda a equipa que desenvolvia a tecnologia do</p><p>unicórnio e foi a primeira pessoa que José Neves contratou para a Grey</p><p>Matter, ainda na faculdade. A segunda foi a muito “valiosa” Gracinda</p><p>Linhares, a engenheira que mais de duas décadas depois também</p><p>continuava a seu lado, na Farfetch.</p><p>O primeiro software que a empresa desenvolveu foi para uma clínica</p><p>dentária, mas não se ficaria por aí. Apesar de ser uma empresa tecnológica,</p><p>o primeiro negócio de José Neves já operava com um pé, literalmente, na</p><p>moda – naquela década de 1990, a Grey Matter trabalhava sobretudo para</p><p>fábricas de sapatos. “Foi muito interessante, porque estando aqui no Norte</p><p>de Portugal a produzir software, naturalmente que os nossos clientes</p><p>estavam ligados à moda”, explicava. O curso de Economia tinha ficado</p><p>entretanto por terminar.</p><p>Por esta altura, José Neves não era o único a arriscar a solo: o pai também</p><p>tinha deixado o emprego para abrir uma empresa de calçado. “O meu pai</p><p>tinha começado o negócio dele, mas eu queria mais do que ter uma fábrica,</p><p>não via muito valor acrescentado nisso, queria ter uma marca própria”,</p><p>contou ao Expresso.</p><p>Uma coisa levou à outra e, dois anos depois, José Neves pegou na</p><p>segunda paixão, a moda, e monetizou-a num segundo negócio. “Numa</p><p>daquelas decisões que se tomam quando se tem 22 anos e se acha que é</p><p>possível fazer tudo, decidi também criar uma marca de sapatos, a Swear, e</p><p>em 1996 abri a primeira loja da Swear em Londres.” E foi precisamente</p><p>nessa altura que o programador/empreendedor começou a desenhar sapatos.</p><p>Muda de vida (se não estás satisfeito)</p><p>Quando apresentou a sua primeira colecção numa feira de calçado, em</p><p>Milão, saiu de lá com encomendas para o Japão, Estados Unidos, Alemanha</p><p>e Inglaterra, contou numa entrevista ao jornal Público.77 “Nessa altura, a</p><p>moda já era global, ao contrário da tecnologia. Vi aí uma oportunidade de</p><p>viajar, de sair de Portugal e viver em Londres – um sonho desde pequeno –,</p><p>e em 1996 abri a minha primeira empresa lá.”</p><p>A loja na metrópole londrina foi só a primeira. Até ao final dessa década,</p><p>passaram a existir cerca de 40 lojas Swear espalhadas pelo mundo, em</p><p>países como a Rússia, Alemanha ou Japão, em nome próprio ou em regime</p><p>de franchising. E no início do novo milénio, Neves tentou criar a primeira</p><p>loja online, mas sem sucesso, contou na entrevista que deu ao Expresso.78</p><p>“Era um site de venda de designers de gama alta, mas com um modelo de</p><p>negócio diferente da Farfetch: comprávamos as colecções e vendíamos na</p><p>internet.”</p><p>A bolha das dotcom (como ficou conhecida a bolha especulativa das</p><p>empresas da Internet que decorreu no início dos anos 2000) acabou por</p><p>ditar o fim dessa aventura, mas o portuense não se deu por vencido.</p><p>Na década de 1990, a tecnologia era algo muito mais regional do que</p><p>aquilo que passou a ser com a massificação da internet, que permitiu a sua</p><p>globalização. “O software era vendido em supermercados e em caixas com</p><p>disquetes e manuais. Não havia downloads. Em 1993, ainda era impensável</p><p>que um jogo como o Angry Birds, concebido num país pequenino do Norte</p><p>da Europa, tivesse centenas de milhões de pessoas a jogá-lo em todo o</p><p>mundo.”79</p><p>A moda, por outro lado, era um negócio consolidado a nível global, com</p><p>as importações e exportações a assegurarem que as tendências atravessavam</p><p>continentes. Para isto, não era preciso estar online.</p><p>Até 2007, José Neves manteve em paralelo os dois negócios – a Swear e</p><p>a Grey Matter –, mas estava sempre a tentar juntar as duas coisas. “Até</p><p>porque achava que não tinha nenhuma vantagem competitiva nem como</p><p>designer de calçado nem como programador. Mas se juntasse as duas</p><p>coisas, talvez…”, disse-me em 2017.</p><p>Em 2011, José Neves decidiu fechar a loja da Swear em Londres, mas</p><p>não deixou morrer a marca. No início de 2020, ainda era possível comprar</p><p>as colecções mais recentes online, no site da Farfetch. Umas sapatilhas Air</p><p>Revive Nitro, por exemplo, custavam 350 euros. Já as Redchurch Hi-top</p><p>vendiam-se a 450 euros. A marca existia, sim, mas já não era o empresário</p><p>português quem desenhava as colecções.</p><p>Aos 33 anos, o programador/designer do Porto estava na Semana da</p><p>Moda de Paris – no showroom da Swear –, a ver as encomendas de sapatos</p><p>que as grandes marcas lhe tinham feito, quando chegou à conclusão que se</p><p>tornaria fulcral para a sua vida. As vendas dos retalhistas que ainda não</p><p>tinham abraçado a internet estavam estagnadas, ao contrário do que</p><p>acontecia com as boutiques que já tinham apostado no online. “Essas</p><p>estavam a crescer muito”, contou-me.</p><p>Dentro de portas, sentia, aliás, o mesmo problema. Apesar de ser</p><p>programador e de ter uma empresa tecnológica, José Neves não estava a</p><p>conseguir escalar as vendas online da Swear a nível global como gostaria</p><p>ou acreditava ser possível. Estávamos em Outubro de 2007, poucos meses</p><p>depois de a Apple ter lançado o primeiro iPhone e um ano antes de o banco</p><p>de investimento Lehman Brothers falir.</p><p>“Pensei: se nós temos este problema, provavelmente todos têm este</p><p>problema. E, de conversa em conversa, com as diversas boutiques e marcas,</p><p>cheguei a três conclusões: a primeira foi que o negócio online do luxo ia</p><p>explodir, ia crescer muito nos próximos anos. A segunda foi que as</p><p>pequenas marcas e empresas (e mesmo algumas das grandes) nunca</p><p>conseguiriam ter o ADN digital que lhes permitiria agarrar a oportunidade</p><p>do comércio electrónico. A terceira conclusão foi que não existiam</p><p>plataformas, só existiam retalhistas. Não havia nenhum marketplace,</p><p>nenhuma plataforma que agregasse todas estas boutiques e todas estas</p><p>marcas. E essa plataforma tinha de ser criada.”</p><p>Uma coisa estava certa para o portuense que há muito se tinha rendido à</p><p>terra de Sua Majestade, a Rainha Isabel II: se ainda ninguém tinha criado</p><p>essa tal plataforma, então teria de ser ele a criá-la. “Havia aí um potencial</p><p>de negócio que, pensei logo na altura, podia ser fantástico.” E a partir daí já</p><p>sabe o que se segue, não é? Desenrolou-se a história do unicórnio Farfetch.</p><p>Na altura em que José Neves teve a ideia de lançar uma plataforma que</p><p>ajudasse os retalhistas a vender online, a concorrente Net-a-Porter já existia</p><p>e facturava, mas tinha um modelo de negócio diferente daquele que o</p><p>português pretendia, como já expliquei páginas atrás. Os grandes</p><p>marketplaces como o eBay ou a Amazon também ainda não se tinham</p><p>dedicado ao segmento de luxo e, mesmo que avançassem nesta direcção,</p><p>isso não o assustava – o português não acreditava que a abordagem</p><p>massificada destas plataformas fosse compatível com a exclusividade do</p><p>mercado do luxo.</p><p>Quando chegou a Portugal, depois da Semana da Moda de Paris, José</p><p>Neves reuniu com os engenheiros da Grey Matter e disse-lhes para pararem</p><p>de desenvolver o software que tinham em mãos e se focarem em criar uma</p><p>plataforma que ligasse lojas físicas multimarca a uma loja online, em tempo</p><p>real, e com todas a logística integrada, contou na entrevista à Visão.</p><p>“Eles acharam que era um projecto maluco, megalómano, mas</p><p>extremamente interessante. É isso que os engenheiros têm de bom, adoram</p><p>trabalhar em coisas novas, diferentes e revolucionárias.” Enquanto se</p><p>dedicavam</p><p>a este novo software, o empreendedor assinou contractos com as</p><p>primeiras 25 empresas que fizeram parte do arranque da nova empresa, a</p><p>Farfetch.</p><p>74 https://vidaextra.expresso.pt/moda/2019-03-17-A-conversa-com-Jose-</p><p>Neves-o-portugues-mais-poderoso-do-mundo-da-moda</p><p>75 https://visao.sapo.pt/atualidade/economia/2016-11-09-jose-neves-lider-</p><p>da-farfetch-o-ceo-tem-a-profissao-mais-solitaria-do-mundo/</p><p>76 https://www.forbespt.com/lideres/jose-neves-nao-tenho-medo-de-crescer-</p><p>nem-de-vertigens-nao-tenho-medo-da-lenda-de-icaro/?geo=pt</p><p>77 https://www.publico.pt/2016/09/11/tecnologia/entrevista/o-negocio-de-</p><p>mil-milhoes-de-jose-neves-1743732</p><p>78 https://vidaextra.expresso.pt/moda/2019-03-17-A-conversa-com-Jose-</p><p>Neves-o-portugues-mais-poderoso-do-mundo-da-moda</p><p>79 https://visao.sapo.pt/atualidade/economia/2016-11-09-jose-neves-lider-</p><p>da-farfetch-o-ceo-tem-a-profissao-mais-solitaria-do-mundo/</p><p>https://vidaextra.expresso.pt/moda/20190317AconversacomJoseNevesoportuguesmaispoderosodomundodamoda</p><p>https://visao.sapo.pt/atualidade/economia/20161109josenevesliderdafarfetchoceotemaprofissaomaissolitariadomundo/</p><p>https://www.forbespt.com/lideres/josenevesnaotenhomedodecrescernemdevertigensnaotenhomedodalendadeicaro/?geo=pt</p><p>https://www.publico.pt/2016/09/11/tecnologia/entrevista/onegociodemilmilhoesdejoseneves1743732</p><p>https://vidaextra.expresso.pt/moda/20190317AconversacomJoseNevesoportuguesmaispoderosodomundodamoda</p><p>https://visao.sapo.pt/atualidade/economia/20161109josenevesliderdafarfetchoceotemaprofissaomaissolitariadomundo/</p><p>CAPÍTULO 3</p><p>A NECESSIDADE AGUÇA O ENGENHO</p><p>Camisa de ganga, calças azuis escuras e sapatilhas brancas. Foi assim que</p><p>José Neves me falou das dores de crescimento do seu unicórnio:</p><p>descontraído, sereno e consciente do que estava a correr bem e menos bem.</p><p>Na segunda vez em que me encontrei com José Neves no escritório da</p><p>Lionesa, a minha visita tinha um propósito muito bem delineado: levar o</p><p>empresário (já com 42 anos) a falar de tudo o que tinha corrido mal na</p><p>empresa até à data.</p><p>A conversa foi toda gravada em vídeo para entrar num dos episódios da</p><p>rubrica “O Meu Fracasso Antes do Meu Sucesso”, o primeiro que viria a ser</p><p>publicado no Observador, pela altura da Web Summit. Objectivo: mostrar</p><p>que todos os negócios, até os dos unicórnios, sofriam com algumas dores. E</p><p>as da Farfetch estavam logo na sua génese.</p><p>“A necessidade aguça o engenho, não é?”, disse-me numa das salas de</p><p>reuniões do escritório em Leça do Balio. O unicórnio português nasceu,</p><p>afinal, da dificuldade que José Neves sentiu quando quis desenvolver um</p><p>canal de vendas online para a Swear, que escalasse depressa a nível global.</p><p>“Era muito complicado e continua a ser ainda hoje. Continuo a dizer que</p><p>estamos numa era em que é mais fácil do que nunca lançar um site e é mais</p><p>difícil do que nunca que tenha visibilidade, porque esse site está no meio de</p><p>centenas de milhões de outros sites e vai ser muito mais difícil de ser</p><p>encontrado. Daí a importância de se ter uma plataforma feita com</p><p>curadoria”, ou seja, com uma selecção dos melhores produtos, explicou-me.</p><p>A ideia que viria a consolidar-se no negócio da Farfetch nasceu em 2007,</p><p>mas foi a 4 de Outubro de 2008 que a startup nasceu oficialmente – um ano</p><p>depois de Paris e cerca de duas semanas depois de o Lehman Brothers ter</p><p>colapsado, em plena crise financeira mundial. “Foi o timing perfeito”, disse-</p><p>me, com alguma ironia.</p><p>Quase dez anos depois, a falência da casa de investimento continuava</p><p>presente na memória do português. O empresário lembrava-se bem do</p><p>momento, porque também em Londres a situação tinha sido vivida “de</p><p>forma muito dramática”, não tinha sido apenas nos Estados Unidos. “Foi o</p><p>primeiro ano em que o sector do luxo a nível global contraiu”, disse-me.</p><p>Uma crise financeira mundial parece-lhe, à partida, um bom arranque</p><p>para uma empresa? Talvez o leitor mudasse de ideias, talvez eu também o</p><p>fizesse, mas José Neves não. Estava convicto de que o caminho se fazia por</p><p>ali e decidiu avançar com o negócio na mesma.</p><p>“Por um lado, foi bom. Obviamente que foi completamente impossível</p><p>encontrar investidores [que financiassem o arranque da Farfetch]. A nossa</p><p>primeira ronda de investimento aconteceu em 2010, portanto, de 2007 a</p><p>2010, a empresa foi financiada pelos outros negócios, que estavam a dar – o</p><p>da Swear e o tecnológico, que continuavam a funcionar – e por fundos</p><p>próprios. Costumo dizer que foi feito com o meu dinheiro. It was done with</p><p>my money, which means with no money [em português: foi feito com o meu</p><p>dinheiro, ou seja, foi feito sem dinheiro]”, contou-me.</p><p>A servir de combustíveis estavam as vendas iniciais que a empresa foi</p><p>registando e o facto de a Farfetch partilhar vários recursos, como os</p><p>humanos e financeiros, com as outras empresas de Neves. O escritório</p><p>também era partilhado com os da Swear em Portugal e Londres. “Foi muito</p><p>bootstrapped [sem investimento externo, com recursos próprios e</p><p>autonomia do fundador], como dizem os ingleses, e isso foi bom, porque</p><p>criou disciplina.”</p><p>Para o CEO, o facto de a Farfetch ter começado a operar no mercado sem</p><p>recorrer a investimento externo foi, na verdade, uma vantagem, uma mais-</p><p>valia. “Há muitas startups que começam logo com um ciclo de</p><p>investimento desde o primeiro dia e, muitas vezes, isso leva a uma perda de</p><p>noção da disciplina financeira e de controlo de custos”, explicava-me,</p><p>sentado no cadeirão preto em que gravámos a entrevista.</p><p>Outra vantagem que a crise trouxe foi a necessidade de as marcas e</p><p>boutiques terem novos canais para venderem os seus produtos. “Afinal de</p><p>contas, o mundo ia acabar… Porque não? Vamos lá tentar o que este</p><p>português meio maluco tem aqui para nos oferecer. Não temos nada a</p><p>perder e, portanto, às vezes a crise também traz oportunidades. E foi esse o</p><p>lado positivo.”</p><p>A crise financeira trouxe a José Neves disciplina e ponderação nos custos,</p><p>características que o empreendedor acreditava que tinham passado a fazer</p><p>parte do ADN da empresa. Nos primeiros três anos, contou-me que deu</p><p>“tudo o que tinha e o que não tinha” para tornar a Farfetch real e que só</p><p>sentiu algum desafogo em 2010, quando fechou a primeira ronda de</p><p>investimento da empresa, a Série A – 4,5 milhões de dólares que foram</p><p>investidos pela capital de risco britânica Advent Venture Partners, segundo</p><p>a base de dados Crunchbase. Tinha 36 anos.</p><p>Em 2010, a startup luso-britânica já tinha alguma tracção e números para</p><p>apresentar a investidores. “Fazíamos cerca de 15 milhões de dólares em</p><p>facturação anual, tínhamos uma equipa dinâmica e várias lojas na</p><p>plataforma. Já dava para perceber que era um negócio com pernas para</p><p>andar.”</p><p>Dois anos depois, nova ronda: 18 milhões de dólares, desta vez liderada</p><p>pela capital de risco norte-americana Index Ventures, contando com a</p><p>participação da também americana e.ventures e da britânica Advent. Em</p><p>2013, mais 20 milhões de dólares liderados pelo grupo de comunicação</p><p>social Condé Nast – operação à qual se juntaram os investidores anteriores.</p><p>Repetir os erros de outra maneira</p><p>Se de 2007 a 2010 a Farfetch não contou com investimento externo, nos</p><p>três anos seguintes acumulou 42,5 milhões de dólares em rondas. Até à</p><p>operação que a avaliou em mil milhões, em 2015, ainda contou com uma</p><p>quarta ronda, a série E, no valor de 66 milhões de dólares. Esta foi liderada</p><p>pela britânica Vitruvian Partners e contou com mais uma estreia entre</p><p>investidores – a Ceyuan Ventures, de Hong Kong –, além dos investidores</p><p>anteriores, segundo o Crunchbase. A portuguesa Caixa Capital, braço de</p><p>capital de risco da Caixa Geral de Depósitos, só entraria no negócio em</p><p>2015.</p><p>Quando, nesse ano de 2015, perguntei ao empresário qual tinha sido o seu</p><p>maior erro na história da Farfetch, não me apontou nenhum. Pelo contrário.</p><p>Respondeu-me que errava muito, todos os dias, e que era preciso sentir uma</p><p>determinação “inabalável” para continuar a fazer o que fazia diariamente.</p><p>“O mais importante é termos paixão pelo que estamos a fazer, ter uma ideia</p><p>clara da nossa missão. É daí que vem a força de vontade que faz com que</p><p>nada nos pare.”</p><p>Dois anos depois,</p><p>repetia a ideia: continuavam a cometer-se erros diários</p><p>na Farfetch. A cultura era precisamente essa, a de incentivar o risco, errar e</p><p>desses erros retirar aprendizagens. “Isto é muito característico das empresas</p><p>tecnológicas, o test and learn [em português, testar e aprender]. Estamos</p><p>constantemente a testar coisas, sabendo que a maior parte não vai funcionar.</p><p>Depois, vamos pegar nas que funcionam e apostar nessas e isto é um ciclo</p><p>contínuo.”</p><p>No meio de toda esta conversa, o empresário fazia, contudo, uma</p><p>ressalva: já não acreditava que o velho adágio de aprender com os nossos</p><p>erros funcionasse. Culpa da tão rápida evolução do mundo, dos</p><p>smartphones e até das redes sociais. Nada nos deveria impedir de tentar a</p><p>mesma coisa uma segunda vez. Era nisso que acreditava.</p><p>“As lições de há cinco anos já são irrelevantes hoje. O que antes era um</p><p>grande amigo – que era o reconhecimento de padrões e de erros do passado</p><p>– começa a ser o nosso inimigo. Porque, se calhar, as decisões que tomámos</p><p>no passado, que estavam erradas, podem estar perfeitamente certas hoje.”</p><p>Para o empreendedor, era preciso fazer tábua rasa aos erros, aceitar que</p><p>houve uma falha, que o erro existe, independentemente da razão. Podia</p><p>tratar-se de uma excelente ideia, que foi executada cedo demais (ou mal</p><p>executada). “Ou, então, se calhar era mesmo uma má ideia, que foi mal</p><p>executada e mal tudo”, disse-me.</p><p>Exemplos de empresas que só conseguiam ter sucesso à segunda tentativa</p><p>(ou empreendedores que só conseguiam ter sucesso com a segunda</p><p>empresa) eram vários e, para José Neves, talvez já não fizesse tanto sentido</p><p>aplicar a lógica de “punir pelo erro e pensar quais são as lições que há a</p><p>tirar para evitar o mesmo erro no futuro”.</p><p>O empresário recordava-se, por exemplo, de como tinha sido difícil</p><p>codificar a cultura da Farfetch quando a empresa começou a crescer e</p><p>contava já com cerca de 150 pessoas. “É uma empresa com um sentido de</p><p>missão, cultura e valores muito forte e nós não tínhamos feito ainda esse</p><p>trabalho, porque, no início, também não era necessário fazê-lo. Numa</p><p>empresa com 10, 15, 20 pessoas, a cultura está no ar e os valores são</p><p>vividos no dia-a-dia.”</p><p>Quando a equipa da Farfetch ultrapassou as 100, 150 pessoas, passou a</p><p>ser preciso estruturar os valores da organização e isso levou José Neves</p><p>numa busca “quase existencial” para tentar descobrir porque é que criou a</p><p>Farfetch. Qual era a sua missão.</p><p>Dessa jornada, saíram seis valores que passaram a orientar a missão do</p><p>unicórnio: “Be brilliant” (sê brilhante, com paixão e ambição), “Be</p><p>human” (sê respeitoso, meigo e empático com os outros); “Todos Juntos”</p><p>(escrito mesmo em português para apelar ao trabalho em equipa); “Think</p><p>global” (pensar global para criar um ambiente inclusivo); “Be</p><p>revolutionary” (sê revolucionário, curioso, com coragem para tomar</p><p>decisões) e, por fim, “Amaze Customers” (compreende os consumidores e</p><p>excede as suas expectativas).</p><p>“Na Farfetch, temos muito a consciência de que quando as pessoas se</p><p>apresentam aqui para trabalhar não se apresentam só com cérebro,</p><p>apresentam-se com cérebro, coração, estômago, gut e se isso tudo não</p><p>estiver bem, o resultado das decisões dessas pessoas e do nosso trabalho</p><p>também não vai ser melhor. Portanto, existe esse respeito também pelas</p><p>esferas individuais e familiares das pessoas, dentro dos limites daquilo que</p><p>é um negócio com fins lucrativos”, dizia-me o empreendedor.</p><p>A conversa foi mais além e, para o empresário que dividia a vida entre o</p><p>Porto e Londres, e que era pai de quatro crianças – fruto do primeiro</p><p>casamento –, uma coisa parecia estar certa: na hora de tomar decisões, em</p><p>termos de negócio, não era só o cérebro que comandava a acção para a</p><p>direcção certa, havia todo um contexto emocional e cultural que não podia</p><p>ser descurado.</p><p>“Todos sabemos que tomamos decisões nas quais a razão é uma parte da</p><p>tomada de decisão, mas a emoção, os sentimentos, as nossas crenças, os</p><p>nossos sistemas de valores são outra.” Daí ser tão importante para José</p><p>Neves dar espaço e voz a todos os colaboradores.</p><p>“Se não só aceitarmos como também celebrarmos essa diversidade de</p><p>pontos de vista, isso significa que damos espaço para que as pessoas entrem</p><p>aqui de cabeça, em harmonia com elas próprias. Portanto, de uma forma</p><p>muito pragmática e de negócio: tiramos o melhor das pessoas quando</p><p>realmente respeitamos a individualidade delas.”</p><p>A 30 de Junho de 2018, mesmo antes de chegar à bolsa de Nova Iorque, a</p><p>Farfetch empregava 3009 Farfetchers (termo que designava os</p><p>colaboradores da empresa), incluindo os 191 funcionários da Browns –</p><p>histórica retalhista londrina comprada pela Farfetch em 2015 –, que</p><p>estavam espalhados por 13 escritórios em nove países. Destes, 52% eram</p><p>homens e 48% eram mulheres. Só nos escritórios portugueses trabalhavam</p><p>1690 pessoas, e no Reino Unido trabalhavam outras 512. A equipa de</p><p>tecnologia e produto reunia 37% da força de trabalho, albergando 1106</p><p>destas pessoas, e o departamento de Operações empregava outras 960.</p><p>Além dos colaboradores da Farfetch, o unicórnio contava ainda com uma</p><p>rede de 200 freelancers e/ou consultores.</p><p>“Acha que se chega a este patamar sem nunca falhar?”, perguntava-lhe no</p><p>final de 2017. A resposta foi curta e concisa: “Isso é completamente</p><p>impossível. É como querer aprender a andar sem nunca cair”.</p><p>CAPÍTULO 4</p><p>MEDO DE TER MEDO</p><p>Discreto, o empresário que naquela sexta-feira de 21 de Setembro de 2018</p><p>festejava um IPO no balcão da bolsa de Nova Iorque era o mesmo miúdo do</p><p>Porto que gostava de mingau, como eram conhecidas as tradicionais papas</p><p>de aveia. Com quatro filhos a viver em Portugal, disse-me na primeira</p><p>conversa que tivemos para o Observador que não havia dinheiro no mundo</p><p>que pagasse as emoções e que era dos filhos que sentia sempre mais</p><p>saudades. Eram eles a melhor notícia que já tinha recebido. Quando lhe</p><p>perguntei de que é que tinha medo, a resposta também foi clara: “Tenho</p><p>medo de ter medo”.</p><p>Na carta que escreveu aos accionistas – e que constava na documentação</p><p>entregue ao regulador do mercado norte-americano –, José Neves definia-se</p><p>como “um designer de sapatos, dono de uma boutique, um organizador de</p><p>feiras, um verdadeiro faz-tudo no mundo da moda”, fascinado pelas</p><p>pessoas, sítios e pelo “caos criativo” que todo este universo fomentava.</p><p>Para contar a sua história foi buscar a história da Farfetch e de como, no</p><p>já remoto ano de 2007, havia três coisas que tinham sido “bastante claras”</p><p>para si: a internet ia dominar a indústria da moda, era preciso criar uma</p><p>plataforma que fosse a chave de um novo universo e, para o segmento do</p><p>luxo, mais do que bons preços era importante ter curadoria e criatividade.</p><p>Quando quis dar resposta a estas três categorias, o mundo estava no</p><p>epicentro de uma crise financeira mundial e, além dos desafios macro, José</p><p>Neves tinha de lidar também com os micro – os negócios de luxo estavam,</p><p>essencialmente, nas mãos de empresas familiares, por exemplo. “Salvo</p><p>raras excepções, nesta indústria, os grandes negócios são controlados por</p><p>famílias, bem como a maioria das grandes marcas e retalhistas. As relações</p><p>que se criam neste tipo de negócio são fundamentais para a sua</p><p>sobrevivência e a confiança demora muito tempo a ser construída.”</p><p>Na mesma carta, José Neves explicava como teve de fazer grande parte</p><p>destes contactos em francês e em italiano, conversando frequentemente com</p><p>patriarcas de família, avós e pais, filhos e filhas ao mesmo tempo, “muitas</p><p>vezes assistindo a verdadeiras disputas familiares no decorrer destes</p><p>contactos”. No final, o mais importante era criar laços de confiança, sem</p><p>nunca pôr em causa a reputação das marcas. “Lentamente, no decorrer desta</p><p>década, conseguimos.”</p><p>O pontapé de saída do primeiro unicórnio português foi dado assim, entre</p><p>disputas familiares que se revelaram vencedoras, mas a táctica do jogo não</p><p>se ficou por aqui. Pelo contrário. “Hoje, a Farfetch é a única plataforma</p><p>tecnológica global escalável na área da indústria de luxo”, chegando a mais</p><p>de 2 milhões de consumidores mundialmente, escrevia José Neves a 20</p><p>de</p><p>Agosto de 2018. Para o empresário português, isto era, no entanto, apenas o</p><p>início da corrida – o empreendedor estava convicto de que havia muita</p><p>margem para a Farfetch crescer online e offline e não dava sinais de querer</p><p>abrandar.</p><p>“O retalho tradicional terá de se reinventar e readaptar às novas</p><p>exigências do mercado, e nós queremos liderar essa revolução.” Confiante</p><p>de que as pessoas iam continuar a comprar roupa em lojas físicas, José</p><p>Neves estava determinado em apostar no conceito de “Loja do Futuro”.</p><p>“Para os próximos anos, planeamos um investimento intensivo em</p><p>Investigação & Desenvolvimento”, escrevia na documentação entregue ao</p><p>SEC.</p><p>Porquê? Porque queria usar a inovação tecnológica para revolucionar a</p><p>experiência em loja. Para isto, tinha até um novo conceito: “Retalho</p><p>Aumentado”, que faria com que a distinção entre offline e online se</p><p>dissipasse e convergisse.</p><p>Quando o unicórnio português chegou à bolsa, já não era apenas uma loja</p><p>online, era uma empresa com várias áreas de negócio. Logo em 2015, José</p><p>Neves comprou a boutique londrina Browns, que contava com 45 anos de</p><p>experiência e história, para implementar lá a Loja do Futuro, um conceito</p><p>onde se misturava tecnologia com a experiência do consumidor no espaço</p><p>físico.80 Para liderar este projecto, o empresário foi buscar Holli Rogers à</p><p>concorrência, a mulher que coordenava toda a área de Moda da rival Net-a-</p><p>Porter.</p><p>Ainda no mesmo ano, outra novidade: a Farfetch Black & White, uma</p><p>plataforma que o unicórnio lançou para vender a sua tecnologia a marcas e</p><p>retalhistas do sector do luxo que quisessem funcionar de forma</p><p>independente, ou seja, com a sua identidade. Descomplicando, era uma</p><p>espécie de marca branca do interface tecnológico da Farfetch, adaptável</p><p>depois às especificidades de cada cliente.81</p><p>Três anos depois, a Farfetch comprava uma empresa tecnológica chinesa</p><p>para reforçar esta mesma área de negócio, a CuriosityChina, mas os valores</p><p>desta operação não chegaram a ser revelados.82 Através desta plataforma, as</p><p>marcas parceiras do unicórnio passaram a ter uma porta de entrada para o</p><p>mercado chinês, estando disponíveis, inclusive, na popular app de troca de</p><p>mensagens chinesa, a WeChat. Mas esta não era a primeira aquisição da</p><p>Farfetch (nem seria a última).</p><p>Um ano antes, em 2017, o unicórnio lançou o serviço Store to Door in 90</p><p>minutes. Objectivo: garantir que quem comprava peças da marca Gucci pela</p><p>Farfetch as recebia na morada indicada em 90 minutos. Sim, numa hora e</p><p>meia. Este serviço começou por ser disponibilizado em dez cidades:</p><p>Londres, Nova Iorque, Dubai, Los Angeles, Madrid, Miami, Milão, Paris,</p><p>São Paulo e Tóquio.</p><p>Ao novo serviço da loja online made in Portugal, juntaram-se ainda duas</p><p>aquisições nesse ano: o site de comércio electrónico da Condé Nast83, o</p><p>Style.com, em Junho, e o negócio digital Fashion Concierge, em Outubro.</p><p>O primeiro custou mais de 12 milhões de dólares à Farfetch: 258 265</p><p>acções vendidas à empresa do português a 48 dólares cada, que totalizaram</p><p>12,411 milhões de dólares, sendo que o valor do negócio teve por base a</p><p>última ronda de investimento da empresa antes da compra.</p><p>O segundo custou mais de 2 milhões de dólares, mas tinha um pormenor</p><p>que não escapou à imprensa britânica84: a empresa à qual pertencia o</p><p>Fashion Concierge, a ASAP54, tinha sido fundada pela empreendedora</p><p>brasileira Daniela Cecilio, que era, também, a mulher de José Neves. A 31</p><p>de Outubro de 2017, a Farfetch comprava o Fashion Concierge por 2,183</p><p>milhões de dólares, com os títulos a valerem 48,40 dólares cada. À data do</p><p>negócio, Daniela Cecilio detinha 15% da empresa, segundo o britânico The</p><p>Times. A 15 de Janeiro de 2018, o unicórnio chegava a um acordo com</p><p>Daniela Cecilio, que permitindo à mulher de José Neves ficar com acções</p><p>(até 20 956) da Farfetch.</p><p>Com este novo serviço, a empresa quis aumentar a oferta de serviços que</p><p>tinha destinado aos seus clientes privados. Assim, os consumidores do</p><p>segmento Farfetch Private Client passaram a ter uma equipa de stylists à</p><p>procura de artigos de luxo que não estavam disponíveis no marketplace da</p><p>Farfetch, mas que constavam dos seus desejos de compra. Cada stylist</p><p>ficava responsável por encontrar estes itens no mundo e por fazê-los chegar</p><p>às mãos destes mesmos clientes privados.</p><p>“Adquirimos e podemos continuar a adquirir outras empresas ou</p><p>tecnologias, que podem desviar a atenção da administração e, de outra</p><p>forma, disromper as nossas operações e prejudicar os nossos resultados</p><p>operacionais. Podemos falhar na aquisição de empresas cujo poder de</p><p>mercado ou tecnologia possam ser importantes para o sucesso futuro dos</p><p>nossos negócios”, lia-se na documentação entregue pela empresa ao</p><p>regulador, antes do IPO.</p><p>No final de 2018, já depois de estar em bolsa, o unicórnio (agora mais</p><p>crescido) continuava às compras. Com 250 milhões de dólares, comprou a</p><p>Stadium Goods, uma plataforma online de venda de calçado desportivo e</p><p>streetwear, que se juntou assim ao portefólio da empresa. E, em Agosto de</p><p>2019, José Neves revelava a novidade que tanto arrefeceu o Verão desse</p><p>ano nos mercados, por ter apanhado os analistas e investidores</p><p>desprevenidos: a compra da plataforma de marcas de design New Guards</p><p>por 675 milhões de dólares.</p><p>Em Portugal, os planos continuavam a ser de expansão. Em Abril de</p><p>2019, o unicórnio anunciou que tinha comprado um terreno de 70 mil</p><p>metros quadrados em Matosinhos para construir aquele que seria o maior</p><p>centro de inovação tecnológica e de operações da empresa, num</p><p>investimento que rondava os 15 milhões de euros. A ideia era a de ter no</p><p>mesmo espaço áreas de operações, estúdios de produção digital e vários</p><p>equipamentos que fizessem do novo campus um espaço único.</p><p>Cipriano de Sousa dizia, na altura, que o novo espaço seria “um parque de</p><p>ciência e desenvolvimento tecnológico de larga escala em várias áreas”,</p><p>como a de engenharia informática, ciber-segurança, infra-estruturas e dados</p><p>científicos.85 Quando conversei com José Neves, em 2019, disse-me que</p><p>queria que “o campus do Porto” fosse “um dos edifícios mais sustentáveis</p><p>da Europa”.</p><p>Money, money, money</p><p>Depois de ter feito nascer e crescer a Farfetch e um programa de aceleração</p><p>de startups, o Dream Assembly, José Neves ainda não estava preparado</p><p>para dar a sua missão por terminada. Ainda em 2015, co-fundou juntamente</p><p>com Gonçalo Cruz, ex-director da Groupon em Portugal, outro projecto na</p><p>área da tecnologia e da moda, a Ripe Productions, que pouco tempo depois</p><p>viria a mudar de nome para Platforme.86</p><p>A mais recente startup do empresário do Porto prometia encetar (mais)</p><p>uma “mudança de paradigma” na indústria da moda e, desta vez, nem a</p><p>empresária Paula Amorim – presidente do conselho de administração da</p><p>Galp e líder do grupo Amorim – lhe ficou alheia. Em 2016, a startup</p><p>fechava uma ronda de investimento de 6 milhões de euros liderada pela</p><p>Amorim Holding, que punha a empresária (e uma das mulheres mais ricas</p><p>de Portugal na altura) no conselho de administração da Platforme.</p><p>Nesse ano – e apesar do secretismo à volta do projecto – a empresa já</p><p>estava a trabalhar com seis marcas, incluindo a do designer Karl Lagerfeld,</p><p>e tinha perto de 500 clientes. Mas, à data desse investimento, pouco ou nada</p><p>se sabia sobre o novo projecto de Neves.</p><p>“Não era segredo de propósito”, contou Gonçalo Cruz ao Observador em</p><p>Janeiro de 2017. “Estávamos muito focados no trabalho. Até porque o</p><p>produto é uma marca branca, ou seja, nós ajudamos as [outras] marcas a</p><p>fazê-lo. Simplesmente não foi o nosso foco, porque não vendemos nada ao</p><p>público. Não precisamos de ser tão conhecidos”, contou à jornalista</p><p>Cristiana Faria Moreira.</p><p>A ideia, contudo, já tinha começado a fervilhar em 2015. José Neves</p><p>queria dar um “twist” à sua marca própria de calçado, a Swear, e conversou</p><p>com Gonçalo Cruz para juntos perceberem como poderiam criar algo mais</p><p>tecnológico. E criaram. Na Swear, Gonçalo começou a desenhar um</p><p>projecto para personalizar os produtos da marca, mas depressa os</p><p>empreendedores perceberam que a tecnologia que estavam a desenvolver</p><p>tinha potencial</p><p>para ser explorada por toda a indústria.</p><p>Foi aí que se juntou ao projecto mais um sócio, Ben Demiri, que contava</p><p>com mais de 20 anos de experiência na indústria da moda e investiu 1</p><p>milhão de euros na startup. Foi este o primeiro investimento da (então)</p><p>Ripe.</p><p>Com o objectivo de desenvolver um sistema que permitisse às grandes</p><p>marcas terem produtos customizáveis ao gosto dos clientes conseguiram o</p><p>primeiro investimento: 1 milhão de dólares. Em 2016, chegou o segundo e</p><p>foi aí que tiveram de mudar de nome. “Um dos investidores disse-nos que</p><p>Ripe era um nome terrível e que as pessoas podiam reconhecê-lo com RIP</p><p>[Rest In Peace, que em português quer dizer “Descansa em paz”]. E</p><p>mudámos para Platforme”, explicava Gonçalo. A nova designação resultou</p><p>da junção do termo platform a me.</p><p>Depois de ter revolucionado a maneira como se comprava a moda de luxo</p><p>online, José Neves queria mudar agora a forma como se produziam e</p><p>consumiam estas peças. Como? Desenvolvendo uma peça tecnológica</p><p>neutra – como se fosse uma marca branca – que fizesse a ponte entre as</p><p>marcas e as fábricas, os pontos de venda e os clientes finais. Era assim que</p><p>os empreendedores queriam ajudar as marcas a personalizar produtos</p><p>digitalmente, recorrendo a técnicas de modelação em três dimensões.</p><p>Em Setembro de 2019, o Expresso noticiava87 que a startup co-fundada</p><p>por José Neves tinha fechado uma ronda de investimento Série B no valor</p><p>de 10,5 milhões de euros, avaliando a empresa em mais de 50 milhões. A</p><p>operação tinha sido liderada pela retalhista norte-americana Nordstrom e</p><p>por um gigante mundial da moda de luxo, cujo nome não foi revelado.</p><p>O empreendedor voltou a participar na operação de financiamento, bem</p><p>como a Amorim Holding Financeira (de Paula Amorim), a TLF – The</p><p>Luxury Fund e Carmen Busquets, que já tinha investido na Net-a-Porter e</p><p>na Farfetch, entre outros. O Fundo 200M – criado pelo Governo português</p><p>para co-financiar projectos nacionais com investidores privados –</p><p>contribuiu com cerca de 40% do montante: 4,225 milhões de euros.88</p><p>No início de 2017, Gonçalo Cruz explicava o que fazia a Platforme desta</p><p>forma: a equipa de 3D da startup pegava numa mala, por exemplo, e fazia o</p><p>modelo tridimensional respectivo, reproduzindo, ao detalhe, o produto</p><p>offline num virtual. “No final, temos um produto 3D que parece real, uma</p><p>escultura digital. Isso dá-nos a possibilidade de simular uma customização</p><p>que parece real. Podemos interagir com o produto, escolher as partes que</p><p>queremos mudar, escolhendo os materiais e as cores”, dizia.</p><p>O que é que os accionistas acreditavam que iam conseguir com uma</p><p>plataforma destas? Reduzir o excesso de produção, desperdício e poluição</p><p>da indústria da moda. Em 2019, os empreendedores portugueses já tinham</p><p>convencido marcas de luxo com a Gucci, a Dior, a Fendi e Emilio Pucci a</p><p>juntarem-se ao projecto português. Eram já mais de 25.</p><p>Depois de ter alcançado tudo isto, o que faltava? Ajudar os outros –</p><p>assunto que ficou resolvido com uma promessa ainda em 2019. “Lancei</p><p>uma fundação em Portugal, à qual me comprometi doar dois terços de tudo</p><p>o que tenho, no decorrer da minha vida, precisamente para ajudar Portugal a</p><p>abraçar esta nova economia digital, a formar mais quadros”, disse-me</p><p>quando nos encontrámos em Londres.89</p><p>A Fundação José Neves – como se chamava – nasceu com o objectivo de</p><p>transformar Portugal numa “economia do conhecimento”, intervindo na</p><p>área da educação e das competências digitais. Para o recente milionário</p><p>português, o caminho da economia nacional só podia ser feito num sentido:</p><p>o do digital. Sem recursos naturais para aproveitar (ou muito poucos),</p><p>Portugal ficava apenas com “algum turismo”, e as fichas das apostas</p><p>deviam estar na educação e no desenvolvimento humano.</p><p>“Penso que a iliteracia digital vai ser o novo analfabetismo. E com isto</p><p>não estou a dizer que toda a gente devia aprender a programar, não é nada</p><p>disso”, disse-me numa conversa que viria a ser publicada no Observador</p><p>nesse ano. Para José Neves, a premissa era simples: o mundo precisava de</p><p>psicólogos, sociólogos e de antropólogos, entre tantas outras profissões, que</p><p>percebessem de digital e pudessem trabalhar nessa área também.</p><p>“Todas estas disciplinas podem ser aplicadas a uma nova economia, mas</p><p>sem dúvida que, antes de tudo, precisamos de muitos engenheiros, muitos</p><p>cientistas de dados, e as universidades não conseguem ter mãos a medir,</p><p>não conseguem ter o output necessário”, explicou.</p><p>Em 2015, esta já era uma das suas preocupações. Quando conversámos a</p><p>propósito da ronda de investimento que avaliou a Farfetch em mil milhões,</p><p>o empreendedor-que-nunca-trabalhou-por-conta-de-outrem disse-me que</p><p>havia muita falta de pessoas qualificadas para a área de engenharia</p><p>informática e outras que se relacionassem com tecnologias.</p><p>E deixou, inclusive, uma sugestão aos governantes: que facilitasse a</p><p>reconversão de competências de pessoas que já se tivessem formado noutro</p><p>tipo de engenharias. “As teorias de base e a capacidade académica estão lá.</p><p>As bases científicas são as mesmas. Rapidamente poderia ser readaptado”,</p><p>diz.</p><p>Com a fundação que criou em nome próprio, e que viria a ser lançada</p><p>oficialmente em Setembro de 2020 – com um investimento de cinco</p><p>milhões de euros num programa de bolsas reembolsáveis –, José Neves</p><p>queria devolver algo à comunidade portuguesa, apesar de o programa de</p><p>aceleração de startups que lançou, o Dream Assembly, já ser uma forma de</p><p>ajudar outros empreendedores, que tinham, desta forma, a porta aberta para</p><p>os escritórios da empresa em Lisboa, Porto e Londres.</p><p>“Falam com toda a gente da empresa, com uma série de mentores em</p><p>todas as áreas, mas isto é uma coisa que também é mútua”, explicava-me.</p><p>Porque dentro da empresa as pessoas também se contagiavam com a</p><p>energia vinda de fora. “É óptimo sentarmo-nos com estas startups e ver o</p><p>mundo com os olhos completamente novos e frescos e isso também nos</p><p>inspira. Há aqui uma troca, não somos só nós a retribuir às startups,</p><p>também recebemos delas essa energia muito especial. E as ideias.”</p><p>Xeque-mate</p><p>Quando nos encontrámos em Londres, em 2019, as acções da Farfetch já</p><p>estavam há quase um ano na bolsa de Nova Iorque. E tinham passado</p><p>quatro desde que a loja de moda de luxo se transformou num unicórnio. A</p><p>forma como se geria uma empresa desta dimensão já não era comparável à</p><p>da pequena startup que nasceu a meio caminho entre a Swear e a Grey</p><p>Matter. José Neves sabia-o, mas não lhe fazia diferença: “Se tivesse de</p><p>começar tudo de novo, fazia exactamente igual. Acho que foi uma aposta</p><p>certeira.”</p><p>Na hora de apontar o dedo às dificuldades, fez notar o stress que</p><p>implicava transformar uma startup tecnológica numa empresa cotada, mas</p><p>preferiu estender o indicador directamente às alegrias. “Dizem que os IPO</p><p>são stressantes, é óbvio que são, há muita pressão. Mas também é uma</p><p>oportunidade única. Nós temos de ser gratos pelas oportunidades que</p><p>temos. Tenho uma gratidão enorme por estar no negócio em que sempre</p><p>quis estar.”</p><p>Vistas bem as coisas, talvez o optimismo não fosse assim tão descabido.</p><p>No passado, José Neves quis ter uma empresa de tecnologia e teve uma</p><p>empresa de tecnologia. Quis lançar uma empresa que fizesse o cruzamento</p><p>entre tecnologia e moda e lançou-a. Quis revolucionar um sector e uma arte</p><p>que “amava” e conseguiu revolucioná-la. “Portanto, acho que temos de</p><p>celebrar essas prendas que caem assim do céu aos trambolhões e não nos</p><p>queixarmos muito das dificuldades do dia-a-dia”, dizia-me.</p><p>Para o programador feito milionário, a moda era um fenómeno cultural,</p><p>tal como o cinema, a música ou a arquitectura, utilizado pelo ser humano</p><p>para navegar entre dois desejos que considerava universais: o de pertencer a</p><p>uma comunidade e o de se individualizar. “E isso é inerente à natureza</p><p>humana”, explicava-me.</p><p>Por tudo isto, em 2019, José Neves estava confiante no futuro do mercado</p><p>da moda de luxo, ainda que a lógica do consumo estivesse, nesta fase, a</p><p>caminhar para um lugar de maior sustentabilidade e combate ao</p><p>desperdício. “Temos nós próprios de criar uma economia circular</p><p>e isso vai</p><p>impactar o sector, porque o sector não está feito para isso, mas penso que é</p><p>positivo”, contava-me.</p><p>“Agora que a Farfetch era uma empresa cotada, qual era a pior coisa que</p><p>lhe poderia acontecer?”, perguntei, no final, para rematar a entrevista. “Não</p><p>penso nessas coisas. Acho que existem coisas perigosas e que existem</p><p>riscos. Riscos todos temos de correr, porque quem não arrisca não petisca.</p><p>Numas vezes acertamos, noutras falhamos. Perigos? Não há perigos”,</p><p>respondia, fazendo uma aposta clara na equipa de mais de 3 mil pessoas que</p><p>tinha construído na Farfetch. “Se tivermos uma boa equipa com uma boa</p><p>cultura e uns bons valores, o que vier aí, de uma forma ou de outra, com</p><p>mais ou menos obstáculos, vamos ultrapassar.”</p><p>No final de 2019, o volume de negócios do primeiro unicórnio com ADN</p><p>nacional tinha subido para mais de 2 mil milhões de dólares e as receitas</p><p>para mais de 1021 milhões. A par destas subidas, a empresa liderada por</p><p>José Neves também registou um aumento dos prejuízos. No ano de 2019, a</p><p>Farfetch mais do que duplicou as perdas (depois de impostos) que tinha</p><p>registado no ano anterior – atingiram 373,688 milhões de dólares. Só nos</p><p>últimos três meses desse ano, subiram para 110,126 milhões de dólares.</p><p>Apesar de os prejuízos atingirem as várias centenas, José Neves e Elliot</p><p>Jordan, o Chief Financial Officer (CFO) da empresa, mostravam-se</p><p>confiantes: previam um “forte crescimento” do volume de negócios e uma</p><p>“melhoria substancial do EBITDA [lucros antes de juros, impostos,</p><p>depreciações e amortizações] ajustado. “Queremos equilibrar as nossas</p><p>iniciativas de crescimento com investimentos contínuos no negócio em</p><p>direcção aos lucros, em 2021”, escrevia o CFO no relatório e contas desse</p><p>ano.</p><p>Em Wall Street, a reacção às contas apresentadas pela Farfetch também</p><p>foi positiva, com as acções do gigante do luxo a subirem mais de 15%</p><p>durante o dia. Quando conversei com o Chief Operational Officer (COO)</p><p>do unicórnio, Luís Teixeira, para um artigo que viria a ser publicado no</p><p>Observador no final do mês de Fevereiro de 2020, o responsável pelas</p><p>operações da empresa explicou porque é que a reacção da bolsa tinha sido</p><p>tão positiva. “Porque os resultados foram muito melhores do que no ano</p><p>anterior e melhores face às expectativas dos analistas.”90</p><p>Em causa estava o EBITDA, ou seja, os resultados operacionais da</p><p>empresa, explicava o COO, e a melhoria nas margens (diferença entre as</p><p>receitas e os custos) que a empresa apresentou nos resultados operacionais.</p><p>No final de 2019, o unicórnio liderado por José Neves apresentava uma</p><p>margem negativa de 13,6% nas suas contas quando, em 2018, esta mesma</p><p>margem tinha sido negativa em 19%. O que é que isto quer dizer? Que o</p><p>negócio estava mais sólido do que no ano anterior. E assim continuaria nos</p><p>trimestres seguintes, mesmo estando o mundo a atravessar uma pandemia</p><p>de Covid-19.</p><p>Tal como já tinha feito Elliot Jordan, também Luís Teixeira apontava,</p><p>nesta altura, 2021 como um ano de viragem para o unicórnio – o ano da</p><p>rentabilidade operacional. Quanto às margens do negócio, José Neves tinha</p><p>feito uma alteração estratégica que contribuiu para que estas subissem e</p><p>agradassem aos accionistas: tinham deixado de fazer tantas promoções no</p><p>site.</p><p>“Decidimos que não queríamos continuar a fazer muitas promoções, que</p><p>íamos preservar o nosso negócio com a totalidade dos preços e menos</p><p>promoções. E olhando para os últimos seis meses, este foi o primeiro</p><p>trimestre em que gastámos menos em promoções”, disse.</p><p>Para o ano que se seguia – 2020 –, as expectativas estavam alinhadas com</p><p>as ambições da empresa: crescer, crescer, crescer, controlando custos fixos.</p><p>“Isto não foi algo que começámos há três meses. O que temos de fazer é</p><p>continuar a entregar e capturar quota de mercado, mas não a qualquer custo</p><p>ou de forma a que as nossas margens sejam prejudicadas. Vamos continuar</p><p>a investir na plataforma e na tecnologia”, dizia-me Luís Teixeira pelo</p><p>telefone, ainda sem adivinhar o que viria por aí durante 2020.</p><p>Em 2019, e segundo José Neves, a plataforma digital da Farfetch cresceu</p><p>quase duas vez mais rápido do que a indústria de luxo online num todo.</p><p>Quando conversei com Luís Teixeira em Fevereiro de 2020, o unicórnio</p><p>contava com mais de 2 milhões de utilizadores activos, mais de 500 marcas</p><p>parceiras directas e mais de 20 clientes corporativos.</p><p>O que ninguém sabia era que o surto de Covid-19, que já estava a</p><p>acontecer por aquela altura na China, espalhar-se ia muito rapidamente pelo</p><p>mundo todo, provocando um tsunami nos países em que entrou. Por mais</p><p>previsões que houvesse sobre margens e subidas, era impossível prever uma</p><p>pandemia que contagiou centenas de milhões de pessoas e, só em 2020,</p><p>causou a morte a mais de um milhão.</p><p>80 https://observador.pt/2015/05/12/farfetch-compra-icone-do-retalho-</p><p>londrino-a-browns/</p><p>81 https://observador.pt/2015/09/11/farfetch-lanca-nova-area-negocio-black-</p><p>white-favor/</p><p>82 https://aboutfarfetch.com/news/press-releases/farfetch-acquires-</p><p>curiositychina-extending-its-black-white-solutions-offering/</p><p>83 https://wwd.com/business-news/media/exclusive-farfetch-buys-style-</p><p>com-forges -global-partnership-with-conde-nast-10911996/</p><p>84 https://www.thetimes.co.uk/article/farfetch-paid-2m-for-app-set-up-by-</p><p>founder-s-wife-lh7hrbhqn</p><p>85 https://observador.pt/2019/04/09/farfetch-vai-construir-o-maior-centro-</p><p>de-inovacao-tecnologica-e-operacoes-em-matosinhos-tera-2-mil-pessoas/</p><p>86 https://observador.pt/2017/01/24/platforme-este-segredo-portugues-de-6-</p><p>milhoes-trata-a-moda-de-luxo-por-tu/</p><p>87</p><p>https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2447/html/economia/temas/pa</p><p>ula-amorim-e-jose-neves-investem-juntos-no-futuro-da-moda</p><p>88 https://www.200m.pt/pt-pt/case_study/sweet-capsule/</p><p>89 https://observador.pt/especiais/prejuizos-na-farfetch-seremos-lucrativos-</p><p>quando-quisermos-nao-estou-nada-preocupado/</p><p>90 https://observador.pt/2020/02/28/farfetch-o-mercado-nao-olha-a-</p><p>prejuizos-esta-preocupado-em-que-isto-seja-um-negocio-solido/</p><p>https://observador.pt/2015/05/12/farfetchcompraiconedoretalholondrinoabrowns/</p><p>https://observador.pt/2015/09/11/farfetchlancanovaareanegocioblackwhitefavor/</p><p>https://aboutfarfetch.com/news/pressreleases/farfetchacquirescuriositychinaextendingitsblackwhitesolutionsoffering/</p><p>https://wwd.com/businessnews/media/exclusivefarfetchbuysstylecomforgesglobalpartnershipwithcondenast10911996/</p><p>https://www.thetimes.co.uk/article/farfetchpaid2mforappsetupbyfounderswifelh7hrbhqn</p><p>https://observador.pt/2019/04/09/farfetchvaiconstruiromaiorcentrodeinovacaotecnologicaeoperacoesemmatosinhostera2milpessoas/</p><p>https://observador.pt/2017/01/24/platformeestesegredoportuguesde6milhoestrataamodadeluxoportu/</p><p>https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2447/html/economia/temas/paulaamorimejosenevesinvestemjuntosnofuturodamoda</p><p>https://www.200m.pt/ptpt/case_study/sweetcapsule/</p><p>https://observador.pt/especiais/prejuizosnafarfetchseremoslucrativosquandoquisermosnaoestounadapreocupado/</p><p>https://observador.pt/2020/02/28/farfetchomercadonaoolhaaprejuizosestapreocupadoemqueistosejaumnegociosolido/</p><p>Como dizia Jeff Bezos há duas semanas em Las Vegas, onde estive, o</p><p>que se deve fazer é delight ou maravilhar o cliente. Não é satisfazer,</p><p>é maravilhar, e é o que andamos aqui a fazer.</p><p>Daniela Braga, CEO da DefinedCrowd</p><p>CAPÍTULO 1</p><p>A DOR, A SOBREVIVÊNCIA E OS PERCALÇOS DA</p><p>OUTSYSTEMS</p><p>Paulo Rosado não se lembra exactamente do dia em que vendeu a primeira</p><p>empresa que criou à Altitude Software. Disse-me que a história não se</p><p>resumia a uma data. Mas foi esse o momento que acabaria por colocá-lo na</p><p>liderança de uma das empresas tecnológicas mais resilientes do tecido</p><p>empresarial português, a OutSystems. Estávamos em 1999 e a internet, ao</p><p>contrário da realidade de 2020, ainda era um bem escasso, fugaz e com</p><p>limitações várias – um cenário bem distante dos Wi-Fi e dados móveis que</p><p>nos invadiam vinte anos depois.</p><p>Quando me sentei no gabinete do CEO da OutSystems, no escritório que</p><p>o unicórnio mantinha em Linda-a-Velha, Oeiras, todo este cenário fazia</p><p>parte do passado. O ano de 2019 estava a terminar</p><p>são os factos que vão ficar para a história: entre 2013 e 2021 foi</p><p>isto que aconteceu no universo das startups internacionais e nacionais.</p><p>Durante 13 anos, como jornalista, contei várias histórias de</p><p>empreendedores que se diluíram em folhas de jornais e em links da internet.</p><p>Quando comecei a escrever sobre unicórnios, fiquei com tanta curiosidade</p><p>sobre este mundo do capital de risco que nunca mais parei de o</p><p>acompanhar.</p><p>Achava que era importante explicar às pessoas o que se passava, que</p><p>fenómeno era este, que riscos tinha, como é que estas empresas impactavam</p><p>a nossa vida e que portugueses eram estes que estavam a captar a atenção</p><p>de investidores pelo mundo fora. Mas sentia que tudo isto estava disperso e</p><p>desarrumado. Eu própria tinha já dificuldade em lembrar-me dos detalhes.</p><p>Escrever estas histórias foi um enorme desafio. Um desafio pessoal, mas</p><p>também profissional, porque, quer os unicórnios queiram quer não, há</p><p>mesmo uma vida pré e outra pós-pandemia. Para mim houve. E este livro</p><p>fazia cada vez mais sentido assim.</p><p>Boas leituras e boa viagem. Pode ser que, pelo caminho, tenha a ideia que</p><p>se vai tornar no próximo unicórnio com ADN nacional. Uma ideia</p><p>portuguesa. Uma ideia que valha milhares de milhões de dólares.</p><p>É um enorme erro achar que o empreendedorismo são ideias e que o</p><p>sucesso de uma empresa é a ideia. Ideias, tenho ali uma caixa cheia</p><p>delas, fabulosas. O segredo está na execução, está na equipa.</p><p>João Vasconcelos, ex-secretário de Estado da Indústria</p><p>CAPÍTULO 1</p><p>COMO NASCE UM UNICÓRNIO</p><p>Cheguei ao escritório da Farfetch, em Matosinhos, 24 dias depois de ter</p><p>escrito a notícia sobre a ronda de investimento que avaliava a empresa em</p><p>mil milhões de dólares. Estávamos a 28 de Março de 2015. Na altura, pouco</p><p>sabia sobre quem era José Neves. Do projecto, conhecia o suficiente apenas</p><p>para saber que o português que dividia a vida entre Londres e o Porto não</p><p>tinha muito tempo para falar com jornalistas.</p><p>A Farfetch era uma loja online de moda de luxo (na qual eu nunca tinha</p><p>comprado nada) arrojada o suficiente para cativar investidores como o</p><p>russo-israelita Yuri Milner a financiá-la em 86 milhões de dólares. E</p><p>interessante o suficiente para convencer mais de 300 lojas a vender, numa</p><p>plataforma desenhada com tecnologia portuguesa, marcas como Alexander</p><p>McQueen, Dolce & Gabbana ou Marc by Marc Jacobs. Sabia que era um</p><p>unicórnio, o primeiro com raízes nacionais. E isso bastava-me.</p><p>Cheguei à antiga fábrica de sedas, onde se situava aquele escritório da</p><p>Farfetch, com um rol de perguntas preparadas: quem era o português que</p><p>tinha sido tão destacado no Financial Times? Que startup era aquela que</p><p>empregava mais de 600 pessoas no mundo todo? O que tinha aquele site de</p><p>tão inovador para captar a atenção de um dos investidores do Facebook,</p><p>Twitter ou Airbnb? A tudo isto, José Neves respondeu-me mais com arte do</p><p>que com números: tinha curadoria, explicou-me, porque nada do que estava</p><p>disponível na plataforma era escolhido ao acaso. José Neves queria o</p><p>melhor.</p><p>A Farfetch funcionava como uma plataforma de curadores para todos</p><p>aqueles que gostavam de comprar roupa, sapatos ou acessórios de autor. E</p><p>como é que o mercado reagia? Com os clientes a gastarem, em média, mais</p><p>de 642 euros por compra no site, em Março de 2015 – mais do que o salário</p><p>mínimo em Portugal na altura. E foi assim que me foi apresentado o</p><p>primeiro unicórnio de portugueses.</p><p>A quem ler as próximas páginas deste livro, é importante que retenha o</p><p>seguinte: um unicórnio é uma startup tecnológica avaliada em mais de mil</p><p>milhões de dólares no final de uma ronda de investimento.</p><p>Nada disto é, porém, sinónimo automático de lucros ou sustentabilidade</p><p>financeira. Um unicórnio é um cocktail de dinheiro, inovação, métricas,</p><p>potencial e risco. A servir de base a este copo, está uma promessa: a de</p><p>mudar um mercado, um hábito de consumo ou comportamental, a forma</p><p>como se presta um serviço e, no limite, o mundo. Sim, o mundo todo. É a</p><p>promessa de responder com sucesso a um problema que ainda ninguém</p><p>conseguiu resolver, e essa resposta terá, acreditam os investidores, um</p><p>retorno financeiro que compensará todos os milhões investidos.</p><p>Um unicórnio não tem, por isso, magia nenhuma lá dentro – lamento</p><p>desiludi-lo, se acreditava que tinha. Tem tecnologia, pessoas, métricas</p><p>sólidas e (muito) arrojo – condição essencial para se desafiar as leis das</p><p>finanças.</p><p>É uma aposta no futuro, porque nenhuma empresa se transforma em</p><p>unicórnio por dar garantias de solidez e de retorno financeiro no momento</p><p>em que o investimento acontece. Isso nem sempre acontece. Alguns destes</p><p>negócios podem até morrer sem que ninguém recupere o dinheiro investido</p><p>anos ou meses antes na ideia – mas esse é um assunto que exploraremos,</p><p>em detalhe, mais à frente. Uma empresa unicórnio é um potencial. Um</p><p>potencial de pelo menos mil milhões de dólares no qual a maioria dos</p><p>fundos anseia por investir.</p><p>A origem</p><p>Para lhe explicar o início deste fenómeno, tenho de regressar a 2 de</p><p>Novembro de 2013. Em Portugal, as notícias desse sábado reflectiam</p><p>tempos incertos: “Orçamento aprovado: clima de ruptura dentro e fora do</p><p>Parlamento” (Público); “IRS vai tirar mais cem euros por mês à função</p><p>pública”; e “Portas quer avançar com negociações com Seguro” (Diário de</p><p>Notícias).</p><p>Em Lisboa, as temperaturas oscilavam entre os 20 °C de máxima e os 13</p><p>°C de mínima, com ventos a rondar os 8,9 quilómetros por hora. E, em</p><p>Santa Clara, na Califórnia, variavam entre os 21 °C e os 8 °C.</p><p>Por cá, a Startup Lisboa, primeira incubadora lisboeta para empresas com</p><p>este tipo de ADN, era um projecto ainda muito recente, tinha cerca de um</p><p>ano de vida. Um bebé. E a Beta-i – Associação para a Promoção da</p><p>Inovação e do Empreendedorismo era mais velha, mas pouco: tinha três</p><p>anos. Os portugueses ainda estavam a ser comandados pelos desígnios da</p><p>troika (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão</p><p>Europeia) e do programa de resgate financeiro a que o país fora submetido.</p><p>A taxa de desemprego caía (finalmente) pela primeira vez em cinco anos,</p><p>para 15,6%. Entre Julho e Setembro desse ano, o Instituto Nacional de</p><p>Estatística contabilizava 838,6 mil desempregados.</p><p>Em Novembro de 2013 o clima em Portugal era, portanto, de rigidez</p><p>financeira, e falar de negócios de mil milhões de dólares numa conversa de</p><p>café era como apontar o dedo a uma miragem. Não era possível. Nos</p><p>Estados Unidos, por outro lado, Barack Obama liderava o país no segundo</p><p>mandato, e Silicon Valley, na Califórnia, mantinha-se como epicentro</p><p>tecnológico do mundo ocidental, albergando a maioria das empresas que já</p><p>estavam a mudar (ou prometiam mudar em breve) as nossas vidas, bem</p><p>como as principais casas de investimento em capital de risco.</p><p>Foi nesse sábado, dia 2, que o TechCrunch, publicação digital que em</p><p>2021 se mantinha como referência entre empreendedores tecnológicos,</p><p>publicou o artigo que viria a ditar as regras deste jogo: “Bem-vindos ao</p><p>Clube dos Unicórnios: Aprender com startups de mil milhões de dólares”.1</p><p>À cabeça do artigo surgia o nome de uma mulher: Aileen Lee, fundadora da</p><p>capital de risco norte-americana Cowboy Ventures, com sede em São</p><p>Francisco. Foi ela quem assinou o texto que mudou, de vez, a forma como o</p><p>mundo passou a referir-se aos negócios multimilionários.</p><p>A terminologia “unicórnio” estreava-se assim no TechCrunch, mas</p><p>depressa galopou para outros meios mais conhecidos: Bloomberg, Financial</p><p>Times, Wall Street Journal, The New York Times, The Washington Post ou</p><p>The Guardian também abriram a porta a estes cavalos com um só chifre.</p><p>A partir desse dia, as rondas de investimento das startups ganharam um</p><p>potencial elevado à mitologia: aquelas que atingissem uma avaliação igual</p><p>ou superior a mil milhões de dólares entrariam no clube recém-formado</p><p>pelo fundo de investimento2 que Aileen Lee lançou em 2012, depois de ter</p><p>estado durante 12 anos noutra conhecida casa de investimento, a Kleiner</p><p>Perkins. O “clube” continha, a 2 de Novembro de 2013, 39 membros</p><p>públicos e privados, nascidos nos Estados Unidos. Estava longe</p><p>e as notícias sobre o</p><p>novo coronavírus, que viria a marcar profundamente o ano que se seguia,</p><p>ainda eram relativamente distantes. O cenário de uma pandemia era, então,</p><p>ainda mais improvável, nem sequer se suspeitava.</p><p>E, por entre o vento frio daquele Dezembro, começámos a conversa por</p><p>onde tinha de ser: pelo início do unicórnio, que é como quem diz, pelo fim</p><p>da Intervento, a primeira empresa de Paulo Rosado.</p><p>Criada em 1997, “no pico da bolha”, como já me tinha explicado, a</p><p>Intervento dedicava-se à construção de sistemas de internet, os chamados</p><p>extranet, direccionados ao sector empresarial. “Eram os primeiros grandes</p><p>sistemas web para empresas, que chegavam a milhares de utilizadores” e</p><p>que toda a gente queria instalar no final da década de 1990, contou-me</p><p>enquanto conversávamos para a rubrica “O Meu Fracasso Antes do Meu</p><p>Sucesso”91, publicada no Observador em 2018.</p><p>Regressado há pouco tempo dos Estados Unidos, onde tinha estudado e</p><p>trabalhado, juntamente com um colega aventurou-se naquilo que, à data</p><p>(1997), era considerado o futuro – a Internet. Mas, antes dele, já havia quem</p><p>andasse a trilhar o mesmo caminho. No final da década de 1980, o</p><p>empresário e engenheiro português Carlos Quinas fundou a SSF (Software</p><p>para Sociedades Financeiras) em Portugal, uma empresa que desenvolveu</p><p>um software (inovador, na altura) para ligar computadores a centrais</p><p>telefónicas, o Easyphone.</p><p>Este Easyphone viria a autonomizar-se enquanto empresa em 1993,</p><p>crescendo progressivamente a nível internacional e abrindo escritórios um</p><p>pouco por todo o mundo, inclusive na meca da tecnologia, em Silicon</p><p>Valley. Em 1999, um ano antes de a organização mudar de nome para</p><p>Altitude Software, comprava a Intervento, de Paulo Rosado, para</p><p>desenvolver uma solução de contact center multimédia e adicionar novos</p><p>canais de contacto para as empresas.92</p><p>A venda foi um sucesso, contou-me o líder do segundo unicórnio com</p><p>ADN nacional. Carlos Quinas fez uma proposta de fusão à Intervento, que</p><p>Paulo Rosado aceitou, e a empresa continuou assim a crescer. A Altitude</p><p>Software chegou a ter, aliás, uma Oferta Pública Inicial (um IPO, na sigla</p><p>em inglês) agendada para o índice tecnológico americano Nasdaq, mas a</p><p>bolha das dotcom (como ficou conhecida), que rebentou no início dos anos</p><p>2000, fez cair por terra a entrada em bolsa da empresa. O episódio é</p><p>lembrado num artigo de 2018 que a edição portuguesa da revista Forbes fez</p><p>sobre a OutSystems.93 Paulo Rosado acabou por sair da organização um ano</p><p>e meio depois da fusão.</p><p>A venda da Intervento pode ter sido, de facto, um sucesso, mas, com o</p><p>tempo, trouxe um dissabor ao engenheiro português. Apesar da rapidez com</p><p>que a sua tão recente empresa conquistou o mercado das tecnologias de</p><p>comunicação da altura, havia uma questão que Paulo nunca tinha</p><p>conseguido resolver enquanto estava na liderança da tecnológica: o</p><p>cumprimento dos prazos dos projectos de software que desenvolvia.</p><p>“De todos os projectos que fizemos, não houve um único que tivesse</p><p>conseguido entregar a tempo e horas e no orçamento determinado”, disse-</p><p>me. Porquê? Porque à medida que estes projectos iam sendo feitos, os</p><p>requisitos das empresas iam mudando ao longo do tempo. “E quando os</p><p>requisitos mudavam, nós tínhamos de alterar o software, a solução. E essa</p><p>alteração era extraordinariamente cara. Demorava muito tempo e era cara.”</p><p>Morosa e custosa. E, para Paulo Rosado, isto era um problema.</p><p>Entre a saída da primeira empresa e o arranque da segunda passaram</p><p>cerca de dois anos. Paulo ainda teve tempo de passar por uma série de</p><p>projectos que não foram bem-sucedidos e, no decorrer deste tempo,</p><p>continuou “a matutar” no que não tinha corrido bem na Intervento. Foi à</p><p>procura da causa, do porquê e percebeu que aquilo que era habitual no</p><p>panorama das Tecnologias de Informação (TI) da altura não era suficiente</p><p>para si. “Os projectos corriam tão bem como corria um projecto de TI</p><p>normal, o que para mim corria mal.”</p><p>O mercado do software estava, por isso, habituado aos atrasos, mas não</p><p>era nesta forma de trabalhar que o engenheiro natural de Évora se revia.</p><p>“Quando vendi a Intervento andei a matutar neste problema. Não andei a</p><p>matutar em criar uma empresa, andei foi a pensar em como conseguia</p><p>resolver esta dor”, contou-me. Dor? “Sim, era uma frustração. Era uma dor.</p><p>A primeira coisa que tem de se isolar é a dimensão da dor, a existência de</p><p>uma falha.” Como não encontrou o analgésico certo, criou-o de raiz. E</p><p>nasceu a OutSystems.</p><p>O diagnóstico clínico que viria a transformar-se num unicórnio envolveu</p><p>uma série de perguntas. Primeiro: porque é que os projectos de tecnologia</p><p>de informação nunca eram entregues a horas? Segundo: que solução</p><p>conseguiria criar para resolver este problema? Terceiro: mas isto acontece</p><p>assim porquê? Por causa de X. E porque é que X acontece? Por causa de Y.</p><p>E assim sucessivamente. “Diz-se que só ao fim de cinco perguntas destas é</p><p>que se chega realmente à causa [do problema]. Entre o sintoma e a causa</p><p>tudo parece causa”, explicou-me. E, regra geral, apontavam-se muitos</p><p>dedos. A terceiros.</p><p>O que Paulo Rosado encontrou no decorrer destas perguntas é que era</p><p>impossível para uma empresa definir um sistema de informação para outra,</p><p>a priori, sem que esta o tivesse experimentado. “Portanto, havia uma</p><p>pescada de rabo na boca, no fundo, em que fazendo as coisas com este tipo</p><p>de tecnologia e desta maneira não havia hipótese de os projectos não se</p><p>atrasarem e isso não era culpa de ninguém.” Sem culpas e sem soluções à</p><p>vista, inventou uma.</p><p>“Com a nossa tecnologia e a nossa abordagem, conseguimos entregar as</p><p>coisas sempre a tempo”, disse-me. “Como?”, perguntará o leitor. Com</p><p>muita persistência, trabalho e dedicação a uma frustração que se</p><p>transformou num negócio de mais de mil milhões de dólares.</p><p>Encontrada a causa do problema, foi hora de criar a solução. A explicação</p><p>é simples. Um software é construído como se fosse uma casa e o</p><p>programador fosse o arquitecto. Agora imaginemos que, a meio da</p><p>construção, o cliente decide que afinal quer duas alas na casa (e não uma) e</p><p>que gostava de ter uma parte da divisão em L. O problema é que nada disto</p><p>estava no desenho original da empreitada.</p><p>Neste cenário hipotético, o arquitecto responsável pelo projecto tem de</p><p>mandar coisas abaixo e redesenhá-las outra vez. “Imagine o custo adicional</p><p>que isto implica”, exemplificava-me Paulo. “Aquela mudança é</p><p>suficientemente drástica para ser muito difícil de fazer, o que significa que a</p><p>data do projecto fica imediatamente comprometida, aumentando também o</p><p>custo.” Com o software, passava-se exactamente a mesma coisa.</p><p>A analogia serve o propósito: feitos desta forma, os projectos estavam</p><p>condenados à nascença – ao contrário de uma casa, um software não pode</p><p>ser fixo, tem de se ir adaptando às necessidades dos utilizadores. “O</p><p>software suporta um negócio, mas os negócios mudam. E este problema,</p><p>que já era grande, começou a ficar insustentável à medida que os ciclos de</p><p>aceleração e de mudança dos negócios se comprimiam. O software de</p><p>suporte deixou de conseguir ser construído desta maneira.”</p><p>Quando nos encontrámos em 2019, os ciclos de alteração das empresas</p><p>eram cada vez mais curtos, explicou-me. Se, antes, quando se montava uma</p><p>empresa ela estava estabilizada para fazer um determinado negócio durante</p><p>15 ou 30 anos, com o passar do tempo, esse prazo foi diminuindo. Nesse</p><p>ano, o ciclo de alteração já estava entre os 18 meses e os três anos. E em</p><p>algumas indústrias, como a banca, esse ciclo podia ser ainda mais curto.</p><p>Isto queria dizer que os pilares dos projectos tinham de ser ajustados mais</p><p>frequentemente.</p><p>Qual era, então, a solução? Criar uma espécie de ponte flexível no</p><p>projecto, que permitisse aguentar as mudanças que cada negócio precisava.</p><p>“Em termos tecnológicos, isto é relativamente complexo, mas uma das</p><p>formas de fazer isto é recorrendo a modelos pré-fabricados, como se fossem</p><p>peças de lego”, explicou-me.</p><p>Quando Paulo Rosado lançou a OutSystems juntamente com Rui Pereira,</p><p>em 2001, era a isto que se propunha. A sua equipa foi uma das primeiras</p><p>a</p><p>criar uma plataforma capaz de suportar processos informáticos ágeis e</p><p>dinâmicos, contou-me. “Hoje é standard, é o mainstream, mas na altura não</p><p>era.”</p><p>No início do milénio, todo o ecossistema tecnológico estava adaptado</p><p>para lidar com grandes projectos atrasados e, por isso, as empresas</p><p>habituaram-se a pedir a quem desenhava os sistemas que incluísse logo tudo</p><p>o que poderia vir a precisar. “Isto aumentou também o problema. Era como</p><p>se eu dissesse: não sei se vou precisar de uma ala, mas, pelo sim pelo não,</p><p>peço-a já, porque senão só daqui a dez anos é que a tenho.” A verdade é que</p><p>esta metodologia trazia um outro problema: quanto maior era o sistema,</p><p>mais complicado era mudá-lo.</p><p>“Quando percebemos isto tudo, alterámos completamente o nosso modelo</p><p>de funcionamento. O nosso software acabou por ser um catalisador que</p><p>alterou a forma como a gestão de projectos era feita”, disse-me. A disrupção</p><p>a que a OutSystems se propunha permitiria acelerar a forma como se</p><p>trabalhava, mas como costuma acontecer em qualquer grande mudança, não</p><p>foi aceite de imediato.</p><p>“Demorámos muito tempo a descolar o projecto, porque, mesmo assim,</p><p>esta dor não era suficientemente grande para compensar o risco de se alterar</p><p>a forma como as pessoas trabalhavam. Chegávamos a uma empresa,</p><p>mostrávamos como era feito e ninguém acreditava que se conseguia fazer</p><p>um sistema grande daquela maneira.”</p><p>A verdade é que conseguiram. Quando a empresa se tornou num</p><p>unicórnio já tinha uma plataforma de desenvolvimento de aplicações web</p><p>mobile que desenvolvia soluções para empresas em quatro vezes menos</p><p>tempo. “São cerca de quatro anos de projectos comprimidos em cerca de</p><p>um ano, projectos de um ano que são comprimidos em três meses.” A esta</p><p>celeridade juntava-se a agilidade que permitia que as aplicações fossem</p><p>alteradas num espaço e num tempo muito curtos.</p><p>Até chegar a este patamar, Paulo Rosado teve de enfrentar outros tantos</p><p>desafios. O primeiro foi o do timing em que a sua empresa nasceu.</p><p>“Estávamos 12 anos à frente do nosso tempo”, revelou-me, quando</p><p>conversámos pela primeira vez, em 2018. “Talvez não tenhamos tido ideia</p><p>do quão à frente estávamos do mercado. A solução da OutSystems é muito</p><p>disruptiva, necessita que as empresas mudem a sua maneira de pensar, que</p><p>façam as coisas muito mais aos bocadinhos.”</p><p>Adoptar a tecnologia criada pela equipa de Paulo Rosado exigia que o</p><p>tecido empresarial, num todo, mudasse a forma como olhava para este tipo</p><p>de solução. “Basicamente tivemos de esperar 12 anos até começarmos a ver</p><p>em massa uma alteração do modo como as empresas funcionavam.”</p><p>E o que é que fez as empresas renderem-se, de vez, à necessidade de</p><p>terem processos mais ágeis? As aplicações móveis. Sim, as apps que temos</p><p>nos nossos smartphones e que são impossíveis de desenvolver da forma</p><p>mais tradicional, explicou-me Paulo. “Uma aplicação móvel que não é feita</p><p>num modelo interactivo falha nas duas primeiras semanas.” Porque precisa</p><p>de muitos testes de terreno, o que significa construir para destruir, caso não</p><p>funcione, e começar a construir tudo outra vez.</p><p>Nos anos mais recentes, as empresas que precisavam de desenvolver</p><p>aplicações tornaram-se numa grande fatia do portefólio de clientes da</p><p>OutSystems. E o que acabou por ser catalisador foi a pressão que as</p><p>empresas começaram a sentir para criarem interfaces móveis, que são mais</p><p>difíceis de desenvolver, porque estão sempre a ser mudadas.</p><p>“Isto de uma empresa estar há 12 anos à espera que o mercado dispare só</p><p>é possível na Europa. Nos Estados Unidos, uma empresa com mais de 3, 5</p><p>anos basicamente tem de fechar e de se criar outra”, contava-me Paulo, já</p><p>com 17 anos de história na OutSystems.</p><p>Mas a persistência do engenheiro natural de Évora tinha ADN português</p><p>e, 12 anos depois, o negócio disparou.</p><p>Rebenta a bolha das dotcom</p><p>“Todas as startups estão cheias de percalços, não é?”, perguntou-me Paulo</p><p>Rosado. Depois, explicou-me que cerca de dois terços das empresas</p><p>precisam de alterar as suas estratégias. “E à OutSystems aconteceu a mesma</p><p>coisa.” Apesar de ser visionária, a solução da startup portuguesa teve de</p><p>vencer vários desafios até se tornar na empresa que era em 2020 e 2021.</p><p>Mais robusta, mais resiliente. O primeiro percalço que Paulo teve de</p><p>resolver foi o do investimento (ou, melhor escrevendo, a falta dele).</p><p>Tinha passado pouco tempo desde o atentado terrorista de 11 de Setembro</p><p>de 2001 quando o engenheiro português conseguiu fechar a primeira ronda,</p><p>no valor de 1 milhão de euros. Segundo a base de dados Crunchbase, os</p><p>primeiros investidores da OutSystems foram os holandeses da capital de</p><p>risco NeSBUC CTe Fund. Quase 20 anos depois, Paulo Rosado não</p><p>hesitava em dizer-me que aquele tinha sido o financiamento mais difícil de</p><p>negociar da história do unicórnio.</p><p>“Fechámos a ronda depois do 11 de Setembro, não tínhamos nada. Aquilo</p><p>foi uma maluqueira. Nos EUA estava a haver uma recessão descomunal por</p><p>causa do rebentamento da bolha. Foi um tiro num porta-aviões. Passados</p><p>dois ou três meses, o mercado de capital de risco tinha fechado</p><p>completamente na Europa. Entrámos mesmo pela nesga da porta”, contou-</p><p>me. À revista Forbes, revelou que teve de fazer mais de 40 pitches a</p><p>investidores para conseguir ter um “sim” como resposta.</p><p>Com uma estratégia de financiamento que passava por fechar outra ronda</p><p>dois anos depois, neste caso de três milhões de euros, a ainda muito</p><p>pequena startup de Paulo Rosado depressa teve de mudar os planos. Não</p><p>conseguiu ir buscar os três milhões no prazo estimado e a segunda ronda só</p><p>viria a concretizar-se em 2005, no valor de 2,2 milhões de euros, segundo a</p><p>base de dados do Crunchbase.</p><p>O que é que aconteceu? Aconteceu que estávamos no início de 2002, o</p><p>índice tecnológico Nasdaq tinha colapsado, a bolha rebentado e, como</p><p>explicava Paulo, na Europa, “várias dezenas de fundos” tinham fechado.</p><p>“Tornou-se óbvio que não íamos conseguir encontrar mais dinheiro.”</p><p>Os problemas não se ficaram por ali. O plano inicial da OutSystems</p><p>passava por um processo de expansão europeu através do sector das</p><p>telecomunicações. Pelo menos, era essa a ideia. Mas Paulo não conseguia</p><p>prever como reagiria o mercado europeu à bolha das dotcom. Em 2002, o</p><p>mercado das telecomunicações “basicamente colapsou”. Palavras do</p><p>próprio.</p><p>E, quando uma coisa colapsa, o que se faz a seguir? Segue-se por outro</p><p>caminho. “De repente, ficámos sem vendas. Tivemos de passar do mercado</p><p>das telecomunicações para o mercado generalizado das empresas. E</p><p>também tivemos um percalço aí.”</p><p>Com o nicho de ataque inicial colapsado, Paulo Rosado teve de encontrar</p><p>alternativas. “As empresas de telecomunicações deixaram de investir e</p><p>congelaram os seus investimentos durante cerca de dois anos. Para todos os</p><p>efeitos, o nosso mercado desapareceu.” E a história ainda estava no início.</p><p>O primeiro milhão de euros que o empreendedor recebeu serviu para</p><p>montar a equipa e construir a primeira versão do produto da OutSystems.</p><p>Quando começou a perceber que não ia conseguir a injecção de 3 milhões,</p><p>passou para um plano B: baixou os salários de todos os funcionários,</p><p>reduziu o valor orçamentado para o marketing, e, em vez de</p><p>“investimento”, a palavra-chave passou a ser outra – “sobrevivência”.</p><p>“Pouco a pouco fomos aumentando as vendas, até que, em pouco tempo,</p><p>começámos a vender mais do que aquilo que gastávamos. A partir daí, o</p><p>dinheiro deixou de desaparecer do banco e começou a aumentar. Foi isto</p><p>que fizemos”, recorda.</p><p>No meio do caos, a sorte. Nessa altura, a Optimus (que mais tarde se</p><p>passaria a chamar NOS) já era cliente da OutSystems e utilizava a</p><p>plataforma para construir aplicações internas. Foi a partir deste cliente que</p><p>Paulo Rosado percebeu que não havia razão para manter a OutSystems</p><p>vinculada a um só sector da economia – as soluções podiam ser</p><p>generalizadas.</p><p>Alteraram o posicionamento e a equipa começou a tentar vender a</p><p>plataforma a empresas de diferentes sectores. Passados cinco meses, já</p><p>tinham a Brisa, que actuava no sector das auto-estradas, como cliente. E isto</p><p>foi só o início da transversalidade. “Fizemos</p><p>essa generalização e nunca</p><p>mais deixámos de a fazer.”</p><p>Com a nova estratégia de sobrevivência, os objectivos de expansão da</p><p>empresa também tiveram de ser reajustados. A internacionalização tornou-</p><p>se muito mais focada, com os olhos postos em Portugal, Holanda e</p><p>Espanha. E depois foi-se adaptando. Em 2018, por exemplo, a plataforma</p><p>da OutSystems estava presente em 42 indústrias, vendia para 52 países e</p><p>tinha milhares e milhares de soluções diferentes para os seus clientes.</p><p>“Todos nós temos, em determinado ponto, de escolher caminhos. E eu fiz</p><p>imensas coisas. Todas as coisas que queria fazer eu fiz. Podia ter feito</p><p>outras? Com certeza, mas fiz estas. Isto foi uma jornada muito, muito gira.</p><p>Está a ser ainda. Mas também é raro poder trabalhar em ambientes como o</p><p>da OutSystems.”</p><p>As escolhas de Paulo podiam ter levado a outros caminhos e a verdade é</p><p>que nem sempre as respostas foram óbvias. Quando lhe perguntei se alguma</p><p>vez as decisões fizeram com que perdesse o sono, a resposta foi imediata:</p><p>“Claro”. Mas depois compensou, conta. Lembrava-se dos primeiros meses,</p><p>quando o valor angariado com as vendas ainda não conseguia ultrapassar o</p><p>das despesas, de como ficava preocupado quando via o saldo da conta a</p><p>diminuir. Mas relativizava: “A preocupação é uma coisa com a qual se</p><p>aprende a viver”.</p><p>Uma das decisões que podia ter sido um passo em falso foi a que tomou</p><p>quando tiveram de mudar o modelo de negócio da empresa. Originalmente,</p><p>a OutSystems operava com um modelo de venda de software tradicional, as</p><p>chamadas licenças perpétuas. Mas, a determinada altura, Paulo percebeu</p><p>que o valor das soluções não estava relacionado apenas com a utilização</p><p>inicial das mesmas, mas com a continuidade da mudança. Nesta fase, a</p><p>indústria já se estava a virar para os modelos de subscrição pagos, por causa</p><p>do surgimento da cloud. E arriscou.</p><p>“Já não me lembro exactamente em que ano decidimos alterar [o modelo</p><p>de negócio] de um dia para o outro. Passámos a vender subscrições em vez</p><p>de licenças perpétuas. O impacto que isto tem no negócio é que,</p><p>inicialmente, as receitas caem cerca de 3 vezes. Era este o nosso plano.”</p><p>Mas como nem sempre controlamos o rumo dos planos, as contas com que</p><p>Paulo Rosado teve de lidar não foram necessariamente estas. E, no primeiro</p><p>ano, as receitas da OutSystems caíram 6 vezes. “Foi um sufoco tremendo”,</p><p>lembra.</p><p>Apesar das quebras, a empresa continuou a crescer e, durante quatro anos,</p><p>complementando as vendas com a área de serviços e consultoria, conseguiu</p><p>manter as receitas mais ou menos estáveis, contou-me. Tudo isto à medida</p><p>que iam recuperando as subscrições. Quando a empresa conseguiu</p><p>ultrapassar o arranque deste novo ciclo, ficou tudo muito mais fácil para</p><p>Paulo. “A mudança é que foi difícil.” E foi este o modelo que vingou.</p><p>“Quando estão estabelecidas, as empresas de cloud [na nuvem] com</p><p>subscrições têm um modelo de funcionamento muito mais confortável,</p><p>porque não têm de chegar ao fim do ano e voltar a vender tudo aquilo que já</p><p>venderam mais a taxa de crescimento. Aquilo que dá estabilidade e muita</p><p>valorização a este tipo de empresas é, precisamente, este modelo de</p><p>subscrições.” E se acha que no meio de tanta mudança, Paulo Rosado se</p><p>sentiu tentado em desistir, é melhor pôr essa ideia de parte.</p><p>“Nunca estive num ponto em que achasse que tinha de fechar a empresa”,</p><p>disse-me, relembrando que, ali por volta de 2013, sentia a equipa muito</p><p>cansada. “Nessa altura já tínhamos centenas de clientes, mas não estávamos</p><p>a conseguir crescer ao ritmo a que tínhamos imaginado e que achávamos</p><p>realista.” Passados uns dois anos, as coisas alteraram-se.</p><p>Com a vantagem trazida pela distância, tempo e maturidade, quando</p><p>olhava para trás, Paulo via coisas positivas no arranque da empresa, que foi</p><p>mais atribulado do que o que esperava. Contou-me que a OutSystems</p><p>resolveu um problema relativamente simples, mas que regra geral os</p><p>produtos de software tinham barreiras muito elevadas e precisavam de</p><p>muita experiência. “O que significa que, basicamente, precisam de tempo. E</p><p>essa é uma coisa que a OutSystems teve. Teve tempo para construir um</p><p>produto que é líder. Nesta altura, emergimos com uma vantagem</p><p>competitiva que é muito difícil de ultrapassar: um mercado gigante à nossa</p><p>frente e um produto impossível de bater.”</p><p>Os 12 anos em que sentiu que esteve à frente do seu tempo acabaram por</p><p>levar o unicórnio a bom porto. Quando olha para trás, Paulo Rosado tentaria</p><p>mudar algumas coisas. Pelo menos a duração da espera. “Acho que se</p><p>tivesse de fazer isto teria escolhido algo que não estivesse tão à frente do</p><p>tempo. Talvez uns 3 ou 5 anos, mas não 12”, brincou.</p><p>Durante muito tempo, não foi fácil para Paulo explicar às outras pessoas</p><p>o que é que a OutSystems fazia, que tipo de produto estava a desenvolver. E</p><p>também não foi simples convencê-las de que as soluções eram eficientes.</p><p>“Este tipo de produtos eram tão estranhos aqui há cinco anos, tão fora do</p><p>vulgar que a maioria das pessoas não acreditava que faziam o que faziam.”</p><p>Como é que as convencia, então? Com o modelo de vendas que a empresa</p><p>incorporou ao longo do tempo e que incidia nas provas de conceito. Ou</p><p>seja, mostrando.</p><p>“Não valia a pena estar a tentar convencer as pessoas. Tínhamos de</p><p>mostrar que o produto realmente funcionava e que dava a agilidade e</p><p>rapidez que prometíamos. Isso só se consegue fazer com provas dadas.</p><p>Ainda hoje é assim, mesmo já sendo um unicórnio.”</p><p>Ao longo desses 17 anos, houve muita coisa que Paulo teve de ir</p><p>aprendendo à medida que construía e modificava o negócio. “Houve muitas</p><p>aprendizagens. Uma muito importante está relacionada com a qualidade da</p><p>equipa e das pessoas com quem trabalhamos e contratamos.” E não hesitou</p><p>em dizer-me que foi isso que permitiu à OutSystems continuar a inovar,</p><p>crescer e, como diz o próprio, a vencer, mesmo quando os mercados eram</p><p>adversos.</p><p>“Tudo isto tem a ver com a cultura, com a qualidade das pessoas. Com o</p><p>facto de termos criado um ambiente onde as pessoas sentem que podem</p><p>inovar, que podem trazer soluções completamente esquisitas, novas. E são</p><p>essas as soluções que utilizamos actualmente para crescer aos ritmos a que</p><p>estamos a crescer.”</p><p>Qual era a diferença? É que fazer isto com uma equipa de cinco pessoas,</p><p>depois com uma de 13 e até com uma de 60 é diferente de fazer com uma</p><p>equipa de 800 pessoas ou mais. Quando se tem tantas pessoas para gerir, “o</p><p>barco é muito grande” e é preciso explicar muitas vezes o porquê de a</p><p>empresa fazer o que faz. Para Paulo, isto já não era um problema.</p><p>Se o início da OutSystems foi marcado pela dor e frustração, o que</p><p>marcava, então, o caminho pós-unicórnio? A complexidade dos sistemas, as</p><p>tendências do mercado, a escassez do talento técnico, a manutenção (e</p><p>quiçá aceleração) do ritmo de crescimento. Não, valer mil milhões de</p><p>dólares não é um destino ao qual se chega, é uma estação da qual se parte –</p><p>desta vez com mais bagagem, mais urgência e num comboio maior.</p><p>“Estamos a cavalgar as tendências, que estão a ficar cada vez piores. E</p><p>melhor para nós, não é? Mas pior em termos de dor. Estão a ficar cada vez</p><p>mais insustentáveis. Todas as empresas precisam rapidamente de acelerar as</p><p>suas transformações digitais.” E era por isso que o trabalho se complicava.</p><p>Com a procura por construção de software a disparar por todo o lado e a</p><p>exigência dos clientes a aumentar, aumentava também a necessidade de as</p><p>empresas terem um determinado tipo de talento técnico, que, nas palavras</p><p>de Paulo Rosado, praticamente não existia. “A superfície está a aumentar, o</p><p>talento não está a acompanhar e os ciclos de negócio estão a ficar mais</p><p>comprimidos”, explicava-me. Chegou-se a um ponto em que só se consegue</p><p>fazer isto com plataformas como a OutSystems.”</p><p>Quando conversámos no final de 2019, o engenheiro contava que a</p><p>tecnologia que tinha em mãos conseguia fazer o trabalho de 100 pessoas</p><p>com apenas 10. O próximo passo passava por saber como é que estas</p><p>mesmas 10 pessoas conseguiam fazer o trabalho de 200.</p><p>Com os problemas do talento e das alterações ao software resolvidos, as</p><p>ambições do</p><p>unicórnio passavam, naquela altura, por crescer. Por continuar</p><p>a engordar. E isso só se conseguiria com mais marketing, mais vendas, mais</p><p>expansão. “Qualquer empresa pode ser um cliente da OutSystems. E isto</p><p>significa que o nosso mercado é absolutamente gigantesco. Nesta altura,</p><p>falando de forma conservadora, o nosso mercado tem uma dimensão de</p><p>cerca de 25 biliões”, dizia-me.</p><p>Apesar da imensidão das perspectivas, as dores não desapareciam. A</p><p>velocidade a que a empresa mudava obrigava as pessoas a mudarem mais</p><p>depressa ainda, para que estivessem sempre preparadas para outras</p><p>alterações, muitas vezes de três em três meses. E, por isso, não havia tempo</p><p>para seguir ordens hierárquicas dentro da empresa. “Nunca tomei as</p><p>decisões todas”, disse-me com relativa serenidade.</p><p>Depois de fechar a segunda ronda de investimento, em 2005, a</p><p>OutSystem fechou apenas mais duas (uma em 2007 e outra em 2016) até</p><p>chegar à de 2018: 360 milhões de dólares que vieram sobretudo do banco</p><p>de investimento Goldman Sachs e da Kohlberg Kravis Roberts. E os planos</p><p>de Paulo passavam única e exclusivamente por crescer. “Temos imensas</p><p>coisas para fazer. Um unicórnio cresce exactamente da mesma maneira que</p><p>estava a crescer há um ano. Obviamente partimos de uma base maior, mas a</p><p>ideia é continuar com os mesmos ritmos de crescimento.”</p><p>Quando lhe perguntei se, apesar de todos os percalços, considerava o seu</p><p>unicórnio um sucesso, respondeu-me que sim. “É uma empresa um pouco</p><p>fora do vulgar quando comparada com outras da economia de cloud, porque</p><p>chegou prematuramente a muitos mais países do que é a norma.” E o que é</p><p>que o preocupava? Continuar a usar bem o dinheiro e a manter as pessoas</p><p>altamente motivadas e entusiasmadas com o projecto, respondeu-me.</p><p>Foi por isso que não se alongou quando a conversa passou por uma</p><p>eventual admissão da OutSystems em bolsa, um IPO. “Quando se atinge</p><p>este tipo de níveis, já estamos quase a funcionar com modelos de governo</p><p>muito parecidos com os das empresas que estão públicas. Na bolsa,</p><p>portanto. Nesta altura, não vemos como urgente fazer um IPO, embora já o</p><p>pudéssemos fazer”, explicou-me, referindo que as empresas públicas</p><p>tinham uma série de “espartilhos” que faziam com que fosse muito difícil</p><p>criar inovação. “E nós ainda temos muita inovação por implementar”, diz.</p><p>Um ano depois desta conversa, voltei a insistir no tópico e a resposta já se</p><p>tinha alterado um pouco: “Não digo que um IPO não esteja para breve, mas</p><p>temos de ter condições para assegurar que os dois anos a seguir não são</p><p>anos de stress constante, em que o meu tempo e o dos meus colegas é</p><p>passado a falar com investidores.” É preciso esperar para ver o que</p><p>reservam os anos seguintes.</p><p>A verdade é que, ao longo do tempo, a tecnológica portuguesa foi fazendo</p><p>chegar as suas soluções a cada vez mais pessoas. Em 2018, lançava dois</p><p>cursos de requalificação Low Code Developer – este low code é</p><p>precisamente o tipo de tecnologia que a OutSystems utiliza – em Proença-a-</p><p>Nova, para licenciados inscritos em centros de emprego, preferencialmente</p><p>vindos das áreas de Ciências, Tecnologias, Engenharia ou Matemática.</p><p>Um ano depois, já com as formações inseridas dentro do projecto Low</p><p>Code School, lançava mais três cursos gratuitos em Lisboa, Braga e Castelo</p><p>Branco. E, em 2020, chegava a internacionalização: a tecnológica planeava</p><p>expandir os seus cursos para os EUA, Holanda e Alemanha.</p><p>À revista Visão, numa entrevista que deu em 2020, Paulo Rosado contou</p><p>que no ano em que lançou a OutSystems não havia ecossistema em</p><p>Portugal. “E ainda não existe. Agora, é uma coisa sexy e emocionalmente</p><p>positiva. Não havia startups, havia empresários.” Na altura, Paulo chegava</p><p>a ter de defender o facto de estar a lançar uma empresa. “Havia mesmo um</p><p>preconceito em relação ao empresário. Era ‘empresário igual a capitalista’;</p><p>capitalista igual a explorador dos trabalhadores’. Percebe-se um bocadinho,</p><p>porque vínhamos de um contexto muito pobre e de muita desigualdade</p><p>social. Não se percebe tanto quando as pessoas a quem damos empregos</p><p>têm salários bons...”94</p><p>Quando em 2018 lhe perguntei o que aconteceria se a empresa, por algum</p><p>motivo, falhasse, a resposta de Paulo Rosado foi peremptória: “A</p><p>OutSystems já não falha. Não há hipótese”. Para o presidente da</p><p>tecnológica, a partir do terceiro ano ficou óbvio que a sua empresa nunca</p><p>falharia. “É uma máquina tão grande, com uma vantagem competitiva e</p><p>uma inércia tão grande em termos de crescimento que a única coisa que</p><p>poderia eventualmente acontecer era crescermos um bocadinho mais</p><p>devagar. Mas nem sequer seria muito… A partir de agora é só crescer.”</p><p>O unicórnio por conta própria</p><p>Quem conheceu bem o percurso e visão de Paulo Rosado foi Joaquim</p><p>Sérvulo Rodrigues, co-fundador e partner da capital de risco Armilar</p><p>Venture Partners, um dos primeiros investidores da OutSystems. Quando</p><p>conversámos, no início de 2020, para este livro, Sérvulo já acompanhava a</p><p>jornada da tecnológica há cerca de 14 anos. E não poupou nos elogios ao</p><p>empreendedor.</p><p>“A OutSystems tem uma equipa de fundadores formidável, o Paulo</p><p>Rosado é completamente invulgar, em muitas dimensões. O que eles se</p><p>propunham a fazer era uma coisa quase impossível, revolucionar a forma</p><p>como se desenvolvem aplicações para a área empresarial, que é um mundo</p><p>dominado por empresas gigantescas”, disse-me no escritório da sociedade</p><p>de capital de risco que tinha fundado há mais de 20 anos.</p><p>Apesar dos adjectivos com que caracterizou a tecnológica, contou-me que</p><p>não foi assim tão fácil convencê-lo a investir no projecto. “Demorou o seu</p><p>tempo. Nós fazemos sempre uma análise cuidada dos investimentos todos.</p><p>Portanto, daquele também fizemos, mas já nem consigo recordar os</p><p>detalhes. Passámos por muita coisa ao longo destes 14 anos.”</p><p>Assim como Paulo teve de esperar 12 anos para sentir que a plataforma</p><p>da OutSystems estava alinhada com o mercado, também Sérvulo teve de</p><p>esperar para sentir o mesmo. A tecnologia representava todo um paradigma</p><p>novo no mercado e, por isso, era preciso “educar os clientes” para aquilo</p><p>que a empresa fazia. Esse processo demorou muitos anos. Na altura em que</p><p>a Armilar investiu na empresa de Paulo Rosado, a OutSystems empregava</p><p>entre 20 a 30 pessoas. E ele recrutou-os um a um, contou-me o investidor.</p><p>“Uma capacidade que o Paulo Rosado tem e que também não é muito</p><p>vulgar é que rapidamente aprende, corrige e segue em frente. Hoje, a</p><p>OutSystems é uma empresa como há muito poucas no mundo.” E, com isto,</p><p>Sérvulo Rodrigues referia-se a quê? Ao facto de a tecnológica não “queimar</p><p>capital” – como se diz na gíria e como disse o investidor –, como fazem</p><p>outros unicórnios, explicou-me. “Conseguiu construir uma empresa</p><p>provavelmente de biliões praticamente sem nenhum investimento ou com</p><p>muito pouco investimento vindo de fora.”</p><p>Perseverante, empenhado, rápido aprendiz. Invulgar. Era assim que</p><p>Sérvulo Rodrigues descrevia Paulo Rosado. “O que é que o Paulo tem? Tem</p><p>várias características muito invulgares e todas juntas ainda mais invulgares</p><p>são. Porque ele é um visionário tecnólogo”, respondeu-me. Ou seja,</p><p>conseguia ter uma visão de todo o ecossistema onde a OutSystems se</p><p>inseria, uma visão que, segundo o investidor, não só era de alto nível como</p><p>também lhe permitia discutir detalhes. “Ele continua a ser um especialista</p><p>tecnológico, mesmo estando a gerir uma empresa com mais de mil</p><p>pessoas.”</p><p>Para que tudo isto resultasse, Sérvulo acredita que foi preciso pôr quatro</p><p>ou cinco princípios básicos em prática, que tinham a ver com a natureza do</p><p>empreendedor. “Confesso que desde muito cedo acreditei que a OutSystem</p><p>podia ser uma empresa de uma dimensão enorme. Lembro-me de quando</p><p>estava no processo de tentar convencer o primeiro investidor americano a</p><p>investir e de ter tido esta conversa com o responsável, de lhe dizer que</p><p>aquilo que a OutSystem procurava fazer no início era impossível, mas que</p><p>naquela altura estava muito mais próximo de se conseguir do que quando</p><p>nós investimos.” E conseguiu.</p><p>Sobre o futuro do unicórnio, o investidor explicou-me que se a</p><p>tecnológica quisesse</p><p>entrar em bolsa naquele momento (em 2020) já tinha</p><p>todas as condições para o fazer, mas que isso era uma decisão que também</p><p>trazia outros inconvenientes – como a obrigatoriedade de tornar os seus</p><p>planos e contas públicos. “Acho que o caminho natural seria uma entrada</p><p>em bolsa, não acontecendo nada de especial. Mas se a empresa quiser</p><p>continuar privada, há formas de a manter privada e a desenvolver-se sem</p><p>precisar de ir para a bolsa. Isso está mais relacionado com dar liquidez aos</p><p>investidores. E julgo que mais cedo ou mais tarde esse passo tem uma alta</p><p>probabilidade de acontecer, sim.”</p><p>Quais eram, então, os grandes desafios da OutSystems no início de 2020?</p><p>Conseguir que a sua forma de desenvolver aplicações se tornasse quase</p><p>num standard na indústria, treinar o máximo de pessoas possível para</p><p>trabalhar em low-code e continuar a desenvolver uma tecnologia mais fácil</p><p>de utilizar e ainda mais potente. E nada disto assustava Sérvulo. “A</p><p>OutSystems era um unicórnio antes de ser um unicórnio. Pode haver</p><p>unicórnios que não são públicos. Às vezes, a única coisa que não existe é</p><p>uma demonstração pública de que são unicórnios.”</p><p>Antes de o mundo ter sido invadido pelas consequências da pandemia do</p><p>novo coronavírus, Sérvulo Rodrigues contava-me que a OutSystem tinha</p><p>uma “fila de investidores” à porta que nunca mais acabava. E que isso era</p><p>normal. “A empresa não precisa de dinheiro: é evidente que está a valorizar</p><p>constantemente a taxas muito altas para o seu crescimento. Portanto, toda a</p><p>gente quer investir. Mas como, felizmente, não está a queimar dinheiro que</p><p>se veja, na realidade, não precisa.”</p><p>Em Fevereiro de 2021, em plena pandemia de Covid-19, a OutSystems</p><p>fechava mais uma ronda de 150 milhões de dólares liderada pelas empresas</p><p>de investimento americanas Abdiel Capital e Tiger Global, que a avaliava</p><p>em 9,5 mil milhões de dólares.95 À data deste investimento, o unicórnio</p><p>com ADN nacional tinha clientes em 87 países, empregava mais de 1300</p><p>pessoas e tinha parcerias com mais de 350 empresas. E já era uma empresa</p><p>do seu tempo.</p><p>91 https://observador.pt/programas/o-meu-fracasso-antes-do-meu-</p><p>sucesso/outsystems-estavamos-12-anos-a-frente-do-nosso-tempo/</p><p>92 https://pressreleases.pt/2018/07/24/altitude-celebra-25-anos-de-atividade/</p><p>https://observador.pt/programas/omeufracassoantesdomeusucesso/outsystemsestavamos12anosafrentedonossotempo/</p><p>https://pressreleases.pt/2018/07/24/altitudecelebra25anosdeatividade/</p><p>93 https://www.forbespt.com/lideres/outsystems-o-proximo-unicornio/</p><p>94 https://visao.sapo.pt/exame/2020-07-24-paulo-rosado-sempre-tivemos-</p><p>um-preconceito-em-que-confundimos-a-desigualdade-social-e-a-sombra-</p><p>do-capitalismo-com-o-facto-de-as-pessoas-criarem-empresas/</p><p>95 https://www.armilar.com/en/news/outsystems-raises-150m-investment-at-</p><p>9-5b-valuation/</p><p>https://www.forbespt.com/lideres/outsystemsoproximounicornio/</p><p>https://visao.sapo.pt/exame/20200724paulorosadosempretivemosumpreconceitoemqueconfundimosadesigualdadesocialeasombradocapitalismocomofactodeaspessoascriaremempresas/</p><p>https://www.armilar.com/en/news/outsystemsraises150minvestmentat95bvaluation/</p><p>CAPÍTULO 2</p><p>O MACBOOK AIR E AS DUAS TIAS FREIRAS:</p><p>COMO NASCEU A TALKDESK</p><p>Quando nos encontrámos na sede da Indico Capital Partners, em Lisboa, a</p><p>Cristina Fonseca que estava sentada naquela cafetaria já não era a mesma</p><p>que, oito anos antes, tinha co-fundado a Talkdesk – o unicórnio que em</p><p>2021 valia mais de 10 mil milhões de dólares. Pelo caminho, lançou uma</p><p>empresa com Tiago Paiva, viu essa empresa crescer, saiu (mantendo-se</p><p>como accionista), tirou umas “boas férias” – como faz questão de qualificar</p><p>–, esteve dois meses sozinha na Ásia e só depois explorou o que queria</p><p>fazer a seguir.</p><p>A viagem levou-a a agarrar desafios tão diversificados como ser</p><p>administradora não executiva na Galp ou fazer parte da equipa fundadora de</p><p>uma sociedade de capital de risco independente. A ideia era a de apoiar</p><p>outros projectos com potencial de crescimento (se possível ao nível de um</p><p>unicórnio). Tinha 31 anos quando conversámos para este livro, 23 quando a</p><p>trajectória no empreendedorismo começou. E tudo graças a um computador</p><p>– mas já lá vamos.</p><p>A história do unicórnio dos call centers com ADN português tem tudo o</p><p>que poderia interessar a uma boa produção hollywoodesca: dois jovens</p><p>acabados de sair da universidade querem criar impacto no mundo e</p><p>arriscam participar além-fronteiras num concurso promovido por uma</p><p>empresa tecnológica americana. O objectivo era o de ganharem um</p><p>computador portátil (que conseguiram), mas não se ficaram por aí. Aquilo</p><p>que podia ter sido apenas o contentamento de receberem um prémio</p><p>depressa se transformou na adrenalina de criarem algo novo.</p><p>Quando perceberam que podiam trocar as teclas daquele MacBook Air</p><p>por um visto para os EUA, fizeram-no. E num abrir e fechar de olhos</p><p>estavam os dois em São Francisco, o berço da tecnologia. E sem planos</p><p>para regressar.</p><p>Para contar a história mitológica que envolve a Talkdesk, o terceiro</p><p>unicórnio pré-pandemia de Covid-19 com raízes nacionais, é preciso recuar</p><p>até 2011: Cristina Fonseca e Tiago Paiva tinham sido colegas do curso de</p><p>Engenharia de Redes de Comunicações (antiga designação do curso em</p><p>Engenharia de Telecomunicações e Informática) no Instituto Superior</p><p>Técnico, e eram, já nessa altura, “fascinados” pelo ecossistema de empresas</p><p>tecnológicas.</p><p>Em Portugal, àquela data, todo este palavreado era desconhecido entre as</p><p>massas e Lisboa, por exemplo, ainda estava longe de se tornar no hub de</p><p>startups tecnológicas que passou a ser dez anos depois.</p><p>Recém-formados, o que tradicionalmente se esperaria de dois estudantes</p><p>acabados de sair do Técnico era que, depois dos estudos, fossem trabalhar</p><p>para uma grande empresa ou consultora, mas não era isso que Cristina e</p><p>Tiago queriam – pelo menos não naquele ano de 2010. Queriam construir</p><p>alguma coisa juntos, contou-me Cristina no final de 2019. Queriam fazer</p><p>aquilo que ouviam nos podcasts da altura, como o This Week in Startups, do</p><p>investidor Jason Calacanis – anos antes de também estes produtos de áudio</p><p>se terem massificado.</p><p>Queriam e fizeram-no.</p><p>Cristina e Tiago viram o caminho mais percorrido na altura, mas viraram-</p><p>lhe as costas e foram pelo desvio mais próximo, o do risco e da incerteza.</p><p>A verdade é que na história deste unicórnio não há ninguém que tenha</p><p>acordado a meio da noite com uma epifania, ou com a ideia luminosa que</p><p>iria revolucionar o problema que tanto queriam resolver. Não, aqui juntou-</p><p>se o acaso à vontade de empreender. Aliou-se a convicção de ambos à</p><p>capacidade de execução. E até chegarem ao produto do unicórnio houve</p><p>outras ideias que ficaram pelo caminho.</p><p>Durante cerca de um ano, Cristina e Tiago fizeram várias tentativas em</p><p>áreas e projectos diferentes. Criaram uma plataforma de explicações que</p><p>“deu muito trabalho”, contou-me a engenheira, mas que acabaria por não</p><p>vingar. Depois, dedicaram-se a uma solução de marketing que, na verdade,</p><p>nunca chegaram a lançar, além de uma outra ferramenta para</p><p>programadores que desenvolveram mas que também acabaria por não ter</p><p>sucesso.</p><p>“Fomos percebendo o que funcionava e o que não funcionava em termos</p><p>de mercado-alvo, de esforço, o que queríamos fazer e o que podíamos</p><p>agregar numa determinada indústria.” Tudo isto sozinhos, a empreender, à</p><p>procura da ideia perfeita, caminho que nem sempre foi fácil. E só passado</p><p>um ano tiveram a ideia para a Talkdesk.</p><p>“Tens de impor a ti própria uma rotina”, explicava-me Cristina Fonseca,</p><p>ao lembrar-se dessa altura. A rotina da recém-mestre era simples: Cristina</p><p>acordava, tomava o pequeno-almoço e, logo a seguir, pegava num livro</p><p>técnico para ler. “Lembro-me de vários, era a única coisa em que gastava</p><p>dinheiro: livros de marketing, livros para aprender outras linguagens de</p><p>programação.” Reservava uma hora por dia para ler e depois punha-se ao</p><p>computador o resto do tempo. “A programar coisas, a tentar programar</p><p>fosse o que fosse”, disse-me.</p><p>As ideias abundavam – a lista contava mais de 30 –, mas nenhuma era</p><p>aquilo que viria a ser a Talkdesk. Pelo meio, procurava</p><p>aprender sobre as</p><p>tecnologias que, à data, permitiam fazer as aplicações web mais recentes –</p><p>“que entretanto agora já nem existem, onde é que isso já vai” – e recusou</p><p>propostas de trabalho que poderiam parecer perfeitas, mas que para a jovem</p><p>engenheira não o eram.</p><p>Uma delas viria da Portugal Telecom (PT), a empresa de</p><p>telecomunicações que mais tarde, em 2015, viria a ser comprada pela</p><p>multinacional Altice Group. A vontade de empreender era um dos motivos</p><p>para a recusa. mas não era o único.</p><p>Enquanto tirava o mestrado em Engenharia de Redes de Comunicações,</p><p>Cristina Fonseca apanhou uma pneumonia grave e teve de ser hospitalizada.</p><p>Esteve durante uma semana internada numa unidade de cuidados</p><p>intensivos. Aos pais, os médicos disseram que a jovem tinha 50% de</p><p>probabilidades de sobreviver. “Tive uma noção clara de que viver ou não</p><p>era uma escolha minha, tinha apenas de suportar a dor. E suportei”,</p><p>escreveu num texto publicado no Medium96 aquando da sua saída da</p><p>Talkdesk. O episódio, que acabou por ser uma das experiências mais</p><p>transformadoras e profundas da sua vida, obrigou-a a reavaliar algumas</p><p>prioridades.</p><p>“Quando saí do hospital, achava que a vida era mais importante do</p><p>que…” Não acabou a frase, mas a ideia é a que o leitor estará a pensar: a</p><p>vida era mais importante do que estar a dedicar-se a um trabalho em que</p><p>não sentia que podia fazer a diferença. E Cristina não queria desperdiçar</p><p>tempo. “Nestas propostas que recebia, sentia sempre que eram coisas que</p><p>não iam criar assim muito impacto no mundo. Eu vou fazer isto, mas podia</p><p>ser outra pessoa qualquer.”</p><p>Ainda demorou algum tempo a decidir o que fazer em relação à PT, mas</p><p>acabou por rejeitar a proposta. “Disseram-me para demorar o tempo que</p><p>precisasse para decidir, mas houve um dia em que estava na faculdade e</p><p>disse: ‘Vou já acabar com isto’.” E acabou. Não se lembra muito bem do</p><p>que estava a fazer na altura, mas sabe que nesse preciso momento foi ao</p><p>carro, que estava estacionado no parque do Técnico, sentou-se e ligou para</p><p>a PT.</p><p>“Olhe, agradeço imenso a oportunidade, mas não vou aceitar. Quero fazer</p><p>uma coisa minha e acho que, se não explorar isso agora, se calhar nunca</p><p>vou explorar. E, pronto, é isso.” Do lado de lá, a receptividade manteve-se –</p><p>as portas continuavam abertas, caso mudasse de ideias.</p><p>Quase dez anos depois, o momento manteve-se nítido na sua memória.</p><p>Durante o processo de recrutamento ainda se cruzou com o ex-presidente</p><p>executivo Zeinal Bava no processo de entrevistas, mas nem isso a fez ficar.</p><p>“Disseram-me para escolher o trabalho que queria, que havia vaga para</p><p>mim, e respondi que não. Ao Tiago, que já trabalhava na Procter & Gamble,</p><p>ofereceram-lhe lugar nos quadros e ele não quis”, contou à publicação</p><p>Delas97, em 2016, quando os fundadores da Talkdesk foram seleccionados</p><p>pela revista norte-americana Forbes como dois dos jovens sub-30 mais</p><p>promissores na categoria de empreendedorismo tecnológico98, integrando a</p><p>conceituada lista 30 Under 30.</p><p>“Éramos jovens, inconscientes e ignorantes. Só sendo corajosos, mas</p><p>também muito ignorantes, é que nos podíamos ter lançado na ideia de</p><p>querer mudar o mundo sem ter nada na mão”, disse Cristina na mesma</p><p>entrevista. Mas fizeram-no, convictamente e apesar do risco.</p><p>A decisão de empreender estava tomada, mas faltava contar aos pais, à</p><p>família, aos professores. “Se calhar foi mais fácil porque sabia que em casa</p><p>não era problema. E isso implicitamente faz muita diferença. Não tinha</p><p>pressão. Os meus pais diziam: ‘Nunca fizeste nada de trágico, se calhar</p><p>também não vai ser agora’. Acho que eles sempre assumiram que podiam</p><p>não perceber o meu contexto todo. Esforçaram-se muito por nos mandar</p><p>para a faculdade, que foi uma coisa que eles não fizeram, e a partir daí</p><p>confiaram. E isso foi incrível”, partilhou.</p><p>Se para os pais esta mudança de trajectória foi relativamente fácil de</p><p>entender, no meio académico a receptividade já foi diferente. “Foi confuso</p><p>para muita gente”, lembrava Cristina naquele fim de tarde, no Cais do</p><p>Sodré. Tão confuso que foi percepcionada como louca. Na altura, Cristina</p><p>tinha sido contemplada para receber uma bolsa de doutoramento da</p><p>Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), mas acabou por desistir: não</p><p>iria dedicar-se mais à vida académica.</p><p>“Em 200 e tal pessoas que tinham sido seleccionadas para ter bolsas da</p><p>FCT, eu era o número 11. Tinha boas notas, tinha feito investigação no</p><p>INESC [Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Investigação</p><p>e Desenvolvimento] durante o mestrado, publicado três papers [científicos]</p><p>e o meu orientador de mestrado disse-me: ‘Tu és louca, se eu fosse os teus</p><p>pais mandava-te trabalhar’. E esta pessoa é uma pessoa que eu adoro, que</p><p>me ensinou imenso, é um académico.” Mas a decisão estava tomada e não</p><p>havia volta a dar.</p><p>“Numa startup podes trabalhar muitas horas, mas vês o cliente que usou o</p><p>teu produto, estás a resolver um problema, isso traduz-se em coisas</p><p>concretas e isso para mim é fascinante. Fazer isto em ciclos rápidos é</p><p>incrível”, dizia-me. Na investigação não era assim: os processos eram muito</p><p>mais morosos e dolorosos: fazia-se um artigo científico, alguém revia,</p><p>depois esperava-se para saber se era aceite ou não. “E depois o paper</p><p>morria e isso é muito triste.” Havia esforço e dedicação, mas não se via o</p><p>impacto.</p><p>Por tudo isto não foi fácil convencer as pessoas à sua volta de que o</p><p>empreendedorismo era um destino igualmente válido para a sua vida</p><p>profissional. Ninguém sabia muito bem o que era um empreendedor, mas</p><p>isso não fazia diferença para Cristina. “No final do dia, estava super bem</p><p>com a minha decisão.”</p><p>Depois de terem estado durante cerca de um ano a testar várias ideias,</p><p>Cristina Fonseca e Tiago Paiva decidiram participar num concurso</p><p>promovido pela Twilio, uma startup tecnológica americana recente, que</p><p>tinha desenvolvido uma plataforma de comunicações na cloud que acabaria</p><p>por dar muito que falar.</p><p>Oito anos depois de ter sido fundada por Jeff Lawson, Evan Cooke e John</p><p>Wolthuis (em 2008), a Twilio saiu da esfera dos mercados privados e foi</p><p>admitida na bolsa de Nova Iorque. A 23 de Junho de 2016, estreava-se no</p><p>mercado nova-iorquino e, no fecho da primeira sessão em bolsa, cada acção</p><p>da tecnológica valia 28,79 dólares99, quase o dobro do que estava previsto</p><p>para o IPO, fechando o dia a valer cerca de 2,4 mil milhões de dólares.100 A</p><p>10 de Agosto de 2021 (5 anos depois do IPO), cada acção da Twilio custava</p><p>366,69 dólares cada e a empresa valia, no total, perto de 65 mil milhões de</p><p>dólares.101</p><p>Em 2011, Cristina Fonseca e Tiago Paiva já navegavam muito pelo</p><p>ecossistema tecnológico norte-americano (ainda que à distância) através dos</p><p>podcasts que ouviam, dos livros que liam ou dos vídeos a que assistiam.</p><p>Numa entrevista que deu para o blogue da Talkdesk, em 2017, Tiago</p><p>contava que o sonho de lançar uma startup era anterior à faculdade, tinha</p><p>começado na adolescência, enquanto estudava no Ensino Secundário.</p><p>“O meu objectivo era o de criar um produto que dominasse uma indústria</p><p>e mudasse o mundo”102, respondeu a Taylor Johnson, o product marketing</p><p>manager com quem conversou. Problema? A inexistência de ecossistema no</p><p>país: não havia startups, nem investidores em capital de risco ou mentores</p><p>em Portugal naquela altura. Não teve outra opção: aprendeu a programar</p><p>sozinho.</p><p>“Depois de ter tirado um mestrado em engenharia, decidi que não tinha</p><p>nascido para ter uma vida das 9h às 17h. Por isso, em vez de ir à procura de</p><p>um emprego no mundo empresarial, trabalhei em pequenos projectos que</p><p>geraram algumas receitas, fiz algum trabalho online como freelancer e</p><p>comecei a focar-me em ideias para produtos que pudesse transformar numa</p><p>empresa”, contou.</p><p>Quando os dois jovens se depararam com o hackathon (que é uma espécie</p><p>de maratona de programação) que a Twilio estava a organizar online,</p><p>decidiram concorrer. A ideia era que os participantes desenvolvessem uma</p><p>aplicação que pudesse ser usada por cima da tecnologia deles, o recém-</p><p>lançado Twilio Client. “Ganhava quem fizesse a melhor aplicação”, contou-</p><p>me Cristina. Foram</p><p>eles.</p><p>O prémio deste hackathon era um portátil, um MacBook Air, mas as</p><p>oportunidades que representava eram infinitas. “Eu tinha 24 anos, um</p><p>computador velho e nenhum dinheiro para gastar – e queria aquele</p><p>MacBook”, contou o CEO da Talkdesk na mesma entrevista.</p><p>Em dez dias, criaram o software que iria permitir às pequenas e médias</p><p>empresas criar um call center na cloud “em cinco minutos”, prometiam,</p><p>reduzindo assim os custos com as infra-estruturas mais tradicionais. Desta</p><p>forma, quem estava nos contact centers conseguia saber tudo o que</p><p>precisava sobre a pessoa que estava a ligar antes mesmo de atender o</p><p>telefone.</p><p>“Ganhámos e foi espectacular”, recordou Cristina Fonseca. A</p><p>empreendedora lembrava-se de, naquela noite de Agosto, ter estado sempre</p><p>a fazer refresh na página do concurso, a ver se o resultado saía. Devido à</p><p>diferença de oito horas no fuso horário (entre Lisboa e São Francisco), os</p><p>jovens portugueses só souberam que tinham vencido por volta da uma da</p><p>manhã em Lisboa. Mas isso não a impediu de acordar a casa toda aos gritos.</p><p>Passada a euforia, tinha chegado a hora de reclamar o que era deles por</p><p>direito. Quando o computador veio dos EUA para Portugal, ficou retido na</p><p>Alfândega porque era preciso pagar o IVA associado ao equipamento para</p><p>conseguirem levá-lo para casa. Não pagaram e devolveram-no. “Dissemos:</p><p>‘Então, vamos a São Francisco. Dá-nos jeito lá. E não queremos pagar o</p><p>IVA. Não temos 300 euros para pagar por um prémio que ganhámos’. Isso</p><p>foi giro”, contou-me, entre risos.</p><p>Estávamos em Setembro de 2011 e a Twilio preparava-se para organizar a</p><p>sua primeira conferência, a TwilioCon, onde iria decorrer uma competição</p><p>de startups. Quando os fundadores da Talkdesk foram convidados a</p><p>participar na TwilioCon nem hesitaram. “Lembro-me de quando recebi o</p><p>email. Era domingo à noite e eu estava a ver o Benfica a jogar, no estádio, e</p><p>no email pediam-me para estar em São Francisco na terça-feira.”</p><p>Tiago não tinha passaporte, nem dinheiro, e não conhecia ninguém nos</p><p>Estados Unidos, mas isso não o impediu de dizer que sim. “Com a ajuda</p><p>dos meus pais, consegui rapidamente tratar do meu passaporte na</p><p>embaixada e, na segunda à noite, estava num voo para os Estados Unidos”,</p><p>contou na mesma entrevista. Já Cristina usou o cartão de crédito dos pais e,</p><p>em dois dias, estavam ambos na costa Oeste dos EUA. E eram a única</p><p>empresa que não era americana a marcar presença na conferência.</p><p>O que é certo é que nada disso os impediu de, no final, ganharem também</p><p>a competição de startups. Tiago lembrava-se de estar no palco do evento</p><p>quando anunciaram o vencedor e de ter pensado: “É isto. Vou criar a minha</p><p>empresa com este dinheiro e nunca mais vou precisar de angariar capital”,</p><p>revelava no blogue da Talkdesk. Mas estava absolutamente errado.</p><p>Um dos jurados da competição organizada pela Twilio era Paul Singh,</p><p>partner na reputada aceleradora de startups americana, a 500 Startups.</p><p>Quando a equipa de portugueses ganhou o concurso, Paul convidou-os a</p><p>participar no programa de aceleração que tinham em São Francisco.</p><p>“Respondi-lhe: ‘Claro, quando começa?, e ele disse-me que era dali a duas</p><p>semanas”, lembrava Tiago na mesma entrevista.</p><p>Reuniram-se com a equipa da 500 Startups no dia seguinte, voltaram a</p><p>Lisboa para fazer o resto das malas, avisar os pais, tratar dos vistos, e</p><p>mudaram-se para os EUA. Segundo a empreendedora, foi tudo sem aviso</p><p>prévio. “Sem pensar muito bem se iriam ser seis meses ou se seria para</p><p>sempre. Não pensámos no longo prazo, pensámos no que é que, naquela</p><p>altura, precisávamos de fazer para que o negócio funcionasse.”</p><p>Cristina Fonseca e Tiago Paiva foram os primeiros portugueses a</p><p>participar nos programas de aceleração da 500 Startups. Dez anos depois,</p><p>ainda era pelos EUA que o CEO da Talkdesk vivia. O rumo de Cristina</p><p>acabou por ser diferente, dividindo-se mais por Lisboa e São Francisco até</p><p>deixar de vez a empresa, mas já lá iremos.</p><p>Com 50 mil dólares de investimento da 500 Startups e a oportunidade de</p><p>participar num dos programas de aceleração mais conceituados, o que</p><p>ambos ouviam nos podcasts e liam nos livros estava mais próximo de se</p><p>tornar real. A semente estava plantada e aquilo que viria a ser o unicórnio já</p><p>estava definido. “Lembro-me das primeiras versões da Talkdesk que</p><p>criámos, a primeira foi feita numa tecnologia que hoje já nem se usa”,</p><p>recordava Cristina, em 2019, entre risos e com alguma nostalgia.</p><p>O produto foi evoluindo e alterando-se, mas a premissa manteve-se a</p><p>mesma: a de ajudar empresas a optimizar o contacto que tinham com os</p><p>clientes e a proporcionarem-lhes uma melhor experiência. Quando se</p><p>mudaram para os EUA, em Setembro de 2011, não levaram quase nada com</p><p>eles, mas tinham o essencial: vontade.</p><p>Sendo portugueses, os dois jovens estavam habituados a ter recursos</p><p>escassos, e a experiência dizia-lhes que o acesso ao capital não era fácil.</p><p>“Isso levou-nos a privilegiar construir um negócio. Hoje, há muitas startups</p><p>que a primeira coisa que pensam é que precisam de angariar capital e não</p><p>de provar o modelo de negócio. E nós, se calhar claramente pela escassez</p><p>de recursos e pelo contexto económico em que estávamos, fomos forçados a</p><p>provar o negócio desde muito cedo. E isso deu-nos vantagem, levou-nos</p><p>para os EUA, o que fez uma diferença incrível.”</p><p>Apesar de terem ido com essa vantagem, os primeiros meses nos EUA</p><p>não foram fáceis. Em 2011, Silicon Valley era muito diferente de Lisboa,</p><p>apesar de ir ao encontro daquilo que Cristina lia e imaginava. “Era tudo</p><p>novo.” Na viagem para São Francisco, foram com o empreendedor Tiago</p><p>Forjaz (que naquela altura já vivia por lá) no avião, mas não o conheciam.</p><p>“Ele sabia que éramos portugueses e, quando estávamos a comprar os</p><p>bilhetes de metro, ofereceu-nos ajuda. Perguntei-lhe o que é que ele fazia e</p><p>ele respondeu: ‘Sou empreendedor’. E eu lembro-me de pensar: ‘Ok, estas</p><p>pessoas existem, mas elas estão aqui, não estão em Lisboa’. Para mim, essa</p><p>foi a realização.”</p><p>Quando chegaram para participar no programa da 500 Startups ficaram</p><p>uma semana em casa de umas pessoas que tinham conhecido durante a</p><p>competição da Twilio, mas que ficava bastante longe da aceleradora.</p><p>Começaram à procura de casa, mas o processo revelou-se uma odisseia</p><p>“Tivemos muita dificuldade, porque o mercado é muito competitivo e tu</p><p>tens dois passaportes portugueses, não tens histórico de cartão de crédito,</p><p>não tens provas de receber um salário, tens uma empresa que acabou de ser</p><p>criada e não tens nada, não consegues dar garantias nenhumas.”</p><p>Ironia do destino, Cristina Fonseca tinha duas tias freiras que moravam na</p><p>Califórnia já há meio século. Eram a tia Júlia e a tia Lucinda e foram elas</p><p>que os ajudaram. Naturais de Fátima, o pai de Cristina Fonseca era o mais</p><p>novo de 11 irmãos. “Três eram freiras e duas delas foram para a Califórnia</p><p>há 50 anos. O meu pai chama-se Américo, porque a irmã mais velha tinha</p><p>ido para a América quando a mãe estava grávida.”</p><p>Em 2011, quando os dois empreendedores foram para os EUA, as duas</p><p>tias de Cristina dirigiam uma comunidade para a terceira idade no Sul da</p><p>Califórnia, que tinha apartamentos para idosos, uma enfermaria e outros</p><p>serviços. Quando a sobrinha chegou a São Francisco, disseram-lhe</p><p>“Cristina, estamos aqui”. E foi uma delas que acabou por ser fiadora da casa</p><p>para onde foram morar. “Senão, nem sei como é que nos íamos safar. E</p><p>depois, obviamente, foram as tias que nos deram os primeiros colchões</p><p>onde dormíamos.”</p><p>Na entrevista que Tiago Paiva deu para o blogue da Talkdesk, também</p><p>contava que quando se mudou para os EUA não tinha dinheiro, que tinha</p><p>sobrevivido a uma dieta a tostas e a Red Bull e que dormia no chão de um</p><p>apartamento com cobertores e almofadas emprestadas. “Quando olho para</p><p>trás, não acho que tenha sido difícil, acho que foi divertido. Era a vida de</p><p>startup, a vida que eu tanto tinha sonhado em Portugal. Há sempre desafios,</p><p>mas eu adoro a batalha. É isso que me entusiasma.”</p><p>Com a casa (finalmente) tratada, dedicaram-se a acelerar a Talkdesk. Mas</p><p>era tudo novidade, não havia rede de apoio no final</p><p>do dia, nem de</p><p>contactos. Eram a equipa mais pequena do acelerador e tinham chegado</p><p>atrasados ao programa porque demoraram mais tempo a receber os vistos.</p><p>De repente, estava tudo diferente na vida dos dois.</p><p>Cristina Fonseca lembrava-se de um dos investidores perguntar de quanto</p><p>dinheiro precisavam para lançar para o mercado a solução que estavam a</p><p>criar. E, às tantas, estavam os dois portugueses nas ruas de São Francisco a</p><p>questionarem-se: “De quanto dinheiro precisamos?” Não havia resposta</p><p>para essa pergunta, porque nunca tinham pensado nela. Nunca ninguém lhes</p><p>perguntou isso antes.</p><p>O choque cultural foi evidente para a empreendedora, porque, em</p><p>Portugal, o ecossistema ainda estava a dar os seus primeiros passos e</p><p>programas como os das aceleradoras de Silicon Valley ainda eram uma</p><p>miragem. “Às segundas-feiras, o Dave McClure [fundador da 500 Startups]</p><p>perguntava quem é que não andava a angariar dinheiro. E nós ouvíamos</p><p>aquilo e pensávamos: “Mas nós ainda não temos uma empresa… Raise</p><p>money? A gente quer ter é um negócio”.</p><p>96 https://medium.com/@cnfonseca/personal-update-on-leaving-talkdesk-</p><p>6ffd0845b200</p><p>97 https://www.delas.pt/uma-portuguesa-nos-sub-30-da-</p><p>forbes/atualidade/2487/</p><p>98 https://www.forbes.com/30-under-30-2016/enterprise-</p><p>tech/#6b2997213466</p><p>99 https://www.cnbc.com/2016/06/23/twilio-ipo.html</p><p>100 https://www.marketwatch.com/story/twilio-rockets-more-than-90-in-</p><p>debut-but-might-not-spark-an-ipo-trend-2016-06-23</p><p>101 https://www.nyse.com/quote/XNYS:TWLO</p><p>102 https://www.talkdesk.com/blog/tiago-paiva-dreamer-became-doer/</p><p>mailto:https://medium.com/@cnfonseca/personal-update-on-leaving-talkdesk-6ffd0845b200</p><p>https://www.delas.pt/umaportuguesanossub30daforbes/atualidade/2487/</p><p>https://www.forbes.com/30under302016/enterprisetech/#6b2997213466</p><p>https://www.cnbc.com/2016/06/23/twilioipo.html</p><p>https://www.marketwatch.com/story/twiliorocketsmorethan90indebutbutmightnotsparkanipotrend20160623</p><p>https://www.nyse.com/quote/XNYS:TWLO</p><p>https://www.talkdesk.com/blog/tiagopaivadreamerbecamedoer/</p><p>CAPÍTULO 3</p><p>ADRENALINA</p><p>O início da Talkdesk foi atribulado, mas acabou por compensar. Em plena</p><p>pandemia de Covid-19, a 23 de Julho de 2020, o unicórnio dos call centers</p><p>fechava uma nova ronda de investimento no valor de 143 milhões de</p><p>dólares, que o avaliava em mais de 3 mil milhões de dólares. E, no Verão de</p><p>2021, fechava outra, no valor de 230 milhões.</p><p>Quando olhava para estes primeiros dias nos EUA, Cristina Fonseca (ao</p><p>contrário de Tiago Paiva) dizia que tinham sido tempos duros. “A vantagem</p><p>é que nas primeiras semanas dormíamos no chão, acordávamos de manhã e</p><p>íamos para o escritório, onde não estava frio e que não era desconfortável.</p><p>Foi duro. Estava um bocado anestesiada com a adrenalina toda de estar a</p><p>fazer aquilo, mas não foi muito fácil. Nada fácil.”</p><p>Apesar das dificuldades, a empreendedora confessou-me que a ida para o</p><p>500 Startups foi um bilhete de lotaria que ganharam. Isso acabou por dar</p><p>aos dois fundadores a rede de contactos de que precisavam em São</p><p>Francisco. Mas, como engenheiros que eram, não descuravam o</p><p>desenvolvimento do negócio. Sabiam que o mais importante era terem</p><p>clientes, eram as métricas. “Acho que tanto eu como o Tiago somos muito</p><p>conscientes. Temos uma mente muito engenheira, somos pragmáticos. Se</p><p>temos um problema, vamos resolver esse problema.”</p><p>Não precisaram de chegar ao fim do programa da 500 Startups para</p><p>receberem o primeiro investimento. Durante aqueles seis meses, captaram</p><p>várias atenções dentro do ecossistema e isso não passou despercebido a</p><p>quem tinha capital para investir. Em Outubro de 2011 (mês em que</p><p>lançaram a empresa oficialmente), a Talkdesk já contava com 450 mil</p><p>dólares no banco, vindos do angel investor britânico Alex Klein e da 500</p><p>Startups, segundo os dados do Crunchbase.</p><p>“Quando um investidor te dá 400 mil dólares para ires explorar uma ideia</p><p>de negócio, no dia a seguir tens de ser um bocado mais responsável do que</p><p>o dia anterior. Agora, fica tudo resolvido? Não fica. Pensas que está, mas</p><p>não está. Sentes pressão para não falhar, para fazer as coisas acontecer.</p><p>Estás a fazer uma coisa que nunca fizeste antes”, explicava-me.</p><p>Três anos depois, fechavam a sua primeira ronda seed: 3 milhões de</p><p>dólares liderados pela capital de risco Storm Ventures, onde estava o</p><p>americano Jason Lemkin, que era reconhecido por ser um guru de tudo o</p><p>que era SaaS (software as a service, ou seja, quando o software é</p><p>comercializado e distribuído como se fosse um serviço) e uma das pessoas</p><p>que os empreendedores mais respeitavam.</p><p>“No outro dia, numa conferência, fui rever o email que enviámos”,</p><p>contava-me Cristina, na cafetaria do Museu das Comunicações. “O primeiro</p><p>email foi para pedir ajuda. Ele era o expert do SaaS e nós queríamos</p><p>perceber alguma coisa. Acabou por investir em nós, o que foi espectacular.</p><p>Porque a seguir disse-nos que o dinheiro era para montar uma equipa de</p><p>vendas, outra de marketing e para contratar dois VP [vice-presidentes].”</p><p>Para Tiago Paiva, este foi um dos momentos que mais marcou a história</p><p>da Talkdesk. Na entrevista que deu ao blogue da empresa, o CEO contou</p><p>que, quando atingiram 1 milhão de dólares em ARR (receita anual</p><p>recorrente), decidiu que era hora de avançar para uma ronda de</p><p>investimento seed (ainda para fases muito iniciais das startups), porque</p><p>tinha um produto sólido o suficiente para isso. O interesse dos investidores</p><p>também era elevado na altura, mas Tiago já tinha Lemkin na mira.</p><p>“Queria um investidor em capital de risco que pudesse ser também meu</p><p>mentor. Por isso, entrei em contacto com Jason Lemkin, uma das pessoas</p><p>que mais respeitava dentro daquilo que era o espaço SaaS, e perguntei-lhe</p><p>se nos podíamos encontrar.” O feedback foi positivo, Tiago meteu-se num</p><p>avião para São Francisco (morava em São Diego na altura), bebeu um café</p><p>com Lemkin e, duas semanas depois, o investidor estava a liderar a ronda</p><p>de 3 milhões de dólares. “Foi um momento de viragem para a Talkdesk.”</p><p>Com o passar dos anos, à medida que Cristina olha para trás, percebe que</p><p>era natural haver interesse por parte dos investidores. “Trabalhávamos para</p><p>ter clientes e as coisas estavam a funcionar, mas estávamos tão focados na</p><p>nossa cave que nem sequer prestávamos atenção às métricas que</p><p>precisávamos para levantar uma ronda. Estávamos a trabalhar para ter um</p><p>negócio e isso fez muita diferença”, contou-me. Quando precisaram de</p><p>levantar uma ronda, foram estas métricas que facilitaram o processo.</p><p>Quando surgiu o investimento da Storme Ventures, a Talkdesk não estava</p><p>propriamente a precisar de dinheiro. A co-fundadora do unicórnio dos</p><p>contact centers lembrava-se de que quando estavam a negociar esta ronda</p><p>tinham cerca de 350 mil dólares no banco, o que era bom, mas não o</p><p>suficiente para abrirem um escritório nos EUA.</p><p>Com o investimento fechado, abriram-no. A sede da empresa mudou-se</p><p>para Mountain View, em Silicon Valley, e começaram a recrutar aquela que</p><p>viria a ser a equipa americana. Mais tarde, abriram escritório em São</p><p>Francisco, o que lhes deu acesso a mais pessoas, a mais talento. Num ano, a</p><p>equipa norte-americana da Talkdesk cresceu de 20 para 100 funcionários.</p><p>Nessa altura, Cristina Fonseca já tinha voltado para Lisboa, onde acabou</p><p>por ficar a equipa tecnológica. Trabalhava em dois fusos horários</p><p>diferentes, enquanto Tiago Paiva liderava as operações a partir dos EUA. O</p><p>regresso da empreendedora, em Março de 2012, não foi uma decisão muito</p><p>planeada, acabou por ser uma consequência natural daquilo que eram as</p><p>necessidades da startup à data.</p><p>Era preciso contratar pessoas e, nos EUA, não tinham rede para isso.</p><p>“Quando pensas que tens de contratar engenheiros, o que fazes? Vais ao</p><p>sítio onde estudaste, porque sabes que é lá que eles estão. Foi o que fizemos</p><p>e eu vim.”</p><p>A partir desse dia, Cristina Fonseca começou a fazer dois turnos por dia,</p><p>em dois fuso horários diferentes, o de Lisboa e o da Costa Oeste dos EUA,</p><p>com oito horas de diferença. Ia aos EUA de três em três meses, estava lá</p><p>duas semanas, e depois regressava. “Se há coisa difícil que fiz na vida foi</p><p>essa. Mas</p><p>tens uma adrenalina… O meu corpo, a minha Cristina zombie</p><p>movia-se a adrenalina. Era a adrenalina de teres de reagir e de ir fazendo</p><p>coisas.”</p><p>Durante os quatro anos em que esteve neste registo, a engenheira deitava-</p><p>se por volta das 2h, 3h da manhã e começava a trabalhar às 9h. Até à ronda</p><p>de 3 milhões, a equipa da Talkdesk era constituída apenas por 7 portugueses</p><p>(6 eram engenheiros), que durante dois anos estiveram a desenvolver a</p><p>solução que prometia montar um call center em 5 minutos, a testá-la com</p><p>clientes e a gerar as primeiras vendas.</p><p>Quando receberam o investimento da Storm Ventures, começaram a</p><p>contratar a equipa de marketing e de vendas nos EUA, e havia um esforço</p><p>de interacção entre as duas equipas que era preciso manter, passando</p><p>contexto de um lado para o outro. Para que não se perdesse informação. A</p><p>equipa de engenheiros em Portugal também foi crescendo. Os 7 passaram a</p><p>20, depois a 30, a 40, a 80. No dia em que a empreendedora saiu da</p><p>empresa, a 5 de Fevereiro de 2016, a Talkdesk empregava 150 pessoas,</p><p>tinha clientes em 50 países e acumulado mais de 24 milhões de dólares em</p><p>investimento.</p><p>Cinco anos depois de ter co-fundado a Talkdesk, Cristina Fonseca decidiu</p><p>que tinha chegado a hora de parar e mudar a forma como trabalhava e,</p><p>sobretudo, como vivia. Tinha 28 anos. Dali a dois, a startup que tinha</p><p>ajudado a criar iria fechar a ronda que a avaliaria em mais de mil milhões</p><p>de dólares, mas aí a empreendedora participaria apenas como accionista. “A</p><p>very happy shareholder, como costumo dizer.”</p><p>Nos anos em que se dividiu entre dois continentes, Cristina sentia que o</p><p>corpo lhe estava a dar vários sinais de que estava a abusar. Teve uma</p><p>tendinite tão grave na mão, por estar ao computador tantas horas seguidas,</p><p>que quando o médico lhe disse que precisava de parar durante três semanas,</p><p>perguntou-lhe: “Está louco?”. Não se lembrava de ter tirado férias nessa</p><p>altura, mas lembrava-se de ter estado muito doente. Descansava em alguns</p><p>fins-de-semana e quando ia a conferências. O facto de não estar no</p><p>escritório sabia-lhe a férias.</p><p>“Tenho amigos que ainda hoje gozam comigo, porque abria o portátil</p><p>várias vezes nos jantares, não fosse acontecer alguma coisa. Nas minhas</p><p>malas tinha sempre de caber o portátil. Ainda hoje tenho alguma resistência,</p><p>penso sempre se devo sair de casa sem o portátil ou não.” Esteve neste</p><p>ritmo até ao dia em que percebeu que a empresa não era ela. E que ela não</p><p>era a Talkdesk. E que também não era suposto ser.</p><p>Sair não foi uma decisão tomada num acaso, a empreendedora ponderou-</p><p>a com as pessoas certas, demorou o tempo que foi necessário, mas a 5 de</p><p>Fevereiro de 2016 comunicou ao mundo, através de um post que fez na</p><p>publicação Medium, que estava de saída da empresa que tinha ajudado a</p><p>lançar e a crescer.</p><p>“Investi toda a minha energia e inspiração nesta empresa. Vivi e respirei a</p><p>Talkdesk todos os dias e todas as noites, mesmo durante os fins-de-semana</p><p>e as férias. Trabalhar até muito tarde à noite e acordar muito cedo no dia</p><p>seguinte não era incomum, mas encontrei sempre energia para continuar</p><p>inspirada pela equipa fantástica que temos”, escreveu no texto de</p><p>despedida.103</p><p>Depois da viagem que tinha sido a Talkdesk, Cristina queria tirar algum</p><p>tempo para se dedicar a coisas tão simples como escrever mais, ler, ter</p><p>férias, passar tempo com a família, amigos, voltar a estudar. Fazer outras</p><p>coisas. “Não viver de acordo com os padrões de outras pessoas foi uma das</p><p>melhores decisões que já tomei. E agora é hora de começar outra vez”,</p><p>admitiu no mesmo post.</p><p>Três anos depois de ter tomado esta decisão, a agora investidora contava-</p><p>me que quando saiu da empresa sentiu que precisava de aprender a viver</p><p>como um adulto normal. Sim, um adulto normal. Quando começou a</p><p>Talkdesk, Cristina tinha 23 anos e nada do que se seguiu era considerado</p><p>normal para a altura. Mas não havia como fugir às oportunidades que a vida</p><p>lhe estava a dar.</p><p>“Nessa idade, quando alguém te dá a oportunidade da tua vida, que inclui</p><p>construíres uma empresa, estares no sítio mais competitivo do mundo para</p><p>o fazer e teres as melhores pessoas à tua volta para te guiarem, fazes o que</p><p>for preciso para aproveitar.” Cristina fez o que foi preciso, mas teve de</p><p>sacrificar outros aspectos da sua vida. Nem sequer sabia como é que se</p><p>tirava férias.</p><p>Em 2019, as coisas já tinham mudado. Quando acordava e sentia que o</p><p>corpo estava descansado, sabia o valor que isso tinha. Já não era um</p><p>zombie, já não era a Cristina que chegava a um avião e adormecia ainda</p><p>antes de levantar voo, acordando só quando aterrava. A Cristina que</p><p>adormecia no sofá dos amigos. “Todos os momentos em que dava para</p><p>descansar, o meu corpo fazia isso. Fazia um shut down automático.”</p><p>A despedida pública ocorreu a 2 de Fevereiro de 2016, mas o momento</p><p>em que Cristina percebeu que estava na hora de sair aconteceu algum tempo</p><p>antes, enquanto estava na conferência do Fórum Económico Mundial, que</p><p>decorria na China. A internet não estava a funcionar muito bem no evento e</p><p>a empreendedora tinha assuntos pendentes da Talkdesk para tratar, mas não</p><p>estava a conseguir. Acabou por ligar a outro colega, explicou-lhe a situação</p><p>e disse-lhe: “Se precisares de mim, avisa, volto à vida quando conseguir”.</p><p>Durante aqueles dois dias foi obrigada a desligar um pouco do trabalho e</p><p>a conferência foi “tão fixe, tão fixe, tão fixe, tão fixe”, que fez com que</p><p>naquele momento repensasse a forma como vivia: o mundo, ou o mundo da</p><p>Talkdesk, não estava a girar à sua volta. “Foi na China que percebi uma</p><p>série de coisas: o mundo lá fora é espectacular, não gira à tua volta e a</p><p>Talkdesk não és tu. O mundo é incrível e tu não estás sequer a prestar</p><p>atenção.” Feitas as devidas notas, começou a dar-lhe a atenção que o mundo</p><p>merecia.</p><p>Na hora de olhar para trás, não se sentia arrependida da intensidade com</p><p>que viveu e abraçou o projecto. Contou-me que para criar um negócio, para</p><p>fazer uma startup funcionar, era preciso ser obcecado. “Precisas mesmo,</p><p>tens de ter ali uma obsessão ou por aquele produto pelos clientes.” O que é</p><p>certo é que a obsessão deu frutos, mas Cristina queria partir para outras</p><p>viagens.</p><p>Nos cinco anos que se seguiram, a Talkdesk continuou a crescer,</p><p>mantendo a liderança de Tiago Paiva. A 3 de Outubro de 2018 revelava ao</p><p>mundo que era um unicórnio. Com 6 propostas de investimento em cima da</p><p>mesa, acabou por escolher a dos investidores nova-iorquinos da Viking</p><p>Global – 100 milhões de dólares levantados numa ronda Série B. Por esta</p><p>altura, a empresa já somava 124,5 milhões de dólares em financiamento,</p><p>mas estava longe de se ficar por ali.</p><p>Marco Costa, na altura director-geral da Talkdesk para Portugal, Europa,</p><p>Médio Oriente e África, explicava-me em entrevista para o Observador que</p><p>esta tinha sido “claramente o maior levantamento de capital de risco de uma</p><p>empresa privada no nosso sector”. Antes desta ronda, há três anos que a</p><p>empresa não procurava capital. O executivo dizia que isso aconteceu porque</p><p>durante esse tempo tinham estado a crescer de forma orgânica. “O que é</p><p>óptimo. Crescemos muito a nossa base de clientes e, a partir daí,</p><p>suportámos o investimento.”104</p><p>Com mais 100 milhões investidos, o unicórnio continuava a apostar tudo</p><p>no crescimento: fazer crescer a empresa, ter mais clientes, melhor produto,</p><p>mais robustez, solidez, estar em mais sítios e ser cada vez mais global.</p><p>Nesta altura, o produto da Talkdesk já tinha evoluído – feito com know-how</p><p>português, apesar de a sede se manter nos EUA, a empresa empregava 400</p><p>pessoas, 250 em Portugal e 150 nos EUA. Entre o portefólio de 1500</p><p>clientes liam-se nomes como o da Glintt, da IBM ou da Dropbox.</p><p>Quando lhe perguntei que impacto tinha tido a saída de Cristina Fonseca</p><p>da empresa, Marco Costa referiu que a empreendedora tinha sido “uma</p><p>pessoa marcante” e que “terá sempre essa marca e importância”, mas que a</p><p>empresa tinha sido capaz de se reorganizar. “Acredito que não só na</p><p>Talkdesk, mas em todas as empresas, nenhum de nós é insubstituível”,</p><p>acrescentou.</p><p>Nesta altura, a organização já tinha crescido dos</p><p>pequenos contact centers</p><p>para outros maiores e isso implicou mudar algumas coisas, como o produto,</p><p>o serviço de apoio ao cliente e o de pós-venda. Marco Costa explicou-me</p><p>que os desafios da empresa mudavam completamente a cada 6 meses e que</p><p>aqueles 100 milhões representavam novos desafios e uma aposta nos</p><p>sistemas de inteligência artificial.</p><p>“Queremos, com a análise da inteligência artificial, garantir não só que</p><p>sabemos mais sobre a pessoa que nos está a ligar, mas que também sabemos</p><p>mais sobre os nossos agentes. E fazemos um match perfeito. Muitas vezes,</p><p>não são só as competências técnicas e os agentes, é também a empatia.</p><p>Como se mede a empatia? O que é a empatia? E é isso que os nossos</p><p>clientes querem. Clientes satisfeitos, clientes leais e aí a inteligência</p><p>artificial pode ajudar muito”, dizia-me.</p><p>Na conversa que tivemos em 2018 não revelou contas, mas disse que em</p><p>três anos tinham conseguido multiplicar por 10 vezes as receitas e que eram</p><p>a empresa que mais crescia naquele espaço. “Não partilhamos números de</p><p>facturação, mas são muitos milhões, muitos, muitos, muitos milhões</p><p>mesmo.”</p><p>As receitas não terão parado de crescer por aqui. Nem as ambições. Em</p><p>plena pandemia, a Talkdesk fechou mais duas rondas de investimento e</p><p>terminava o ano de 2020 com cerca de 2000 funcionários, o dobro dos que</p><p>tinha. Na entrevista que Marco Costa me deu no final desse ano, contava-</p><p>me que mesmo que a empresa tivesse parado as vendas durante a pandemia,</p><p>continuava a crescer mais de 30% ao ano. “Estamos a crescer mais de 100%</p><p>de trimestre em trimestre”, disse.</p><p>A 12 de agosto de 2021, a empresa estava avaliada em mais de 10 mil</p><p>milhões de dólares. Já não era só um unicórnio, era um decacórnio. O</p><p>objectivo desta última ronda, no valor de 230 milhões de dólares, era o de</p><p>impulsionar a segunda década de crescimento.</p><p>Entre outras distinções internacionais de que foi sendo alvo ao longo dos</p><p>anos, pela terceira vez consecutiva, em 2021, a Talkdesk voltou a marcar</p><p>presença no ranking da revista Forbes que distinguia as 100 empresas de</p><p>topo no mundo a actuar na área da cloud, o Forbes Cloud 100. Subiu 36</p><p>lugares face à edição de 2020 e estava nesse ano na 17.ª posição. E tudo</p><p>porque Cristina Fonseca e Tiago Paiva, acabados de sair da faculdade,</p><p>quiseram ganhar um computador.</p><p>103 https://medium.com/@cnfonseca/personal-update-on-leaving-talkdesk-</p><p>6ffd0845b200</p><p>104 https://observador.pt/especiais/a-talkdesk-vale-mil-milhoes-de-euros-e-o-</p><p>terceiro-unicornio-com-adn-portugues/</p><p>https://medium.com/@cnfonseca/personalupdateonleavingtalkdesk6ffd0845b200</p><p>https://observador.pt/especiais/atalkdeskvalemilmilhoesdeeuroseoterceirounicorniocomadnportugues/</p><p>Nove em dez startups que encontram investimento não têm sucesso.</p><p>Acho que é de doidos lançar uma empresa. É uma ideia louca,</p><p>porque as probabilidades dizem que o mais provável é que nunca</p><p>vás conseguir investimento.</p><p>Paddy Cosgrave, CEO da Web Summit</p><p>CAPÍTULO 1</p><p>AGARRADOS AO ECRÃ</p><p>A 2 de Março de 2020 Portugal conhecia os primeiros casos de Covid-19:</p><p>um médico de 60 anos, que estava internado no Centro Hospitalar</p><p>Universitário do Porto, e um jovem de 23 anos, também internado no</p><p>Hospital de São João, na Invicta. O primeiro tinha vindo de umas férias no</p><p>Norte de Itália e sentido os primeiros sintomas da doença dois dias antes. O</p><p>último tinha estado em Valência, Espanha, e sentia-se doente desde o dia 26</p><p>de Fevereiro.</p><p>O anúncio – que marcou uma viragem incontornável no país – foi feito</p><p>por Marta Temido, ministra da Saúde da altura, e pela directora-geral da</p><p>Saúde, Graça Freitas, numa conferência de imprensa que se viria a tornar</p><p>regular nas semanas e meses seguintes. Por esses dias, já chegavam a casa</p><p>dos portugueses relatos de muito caos em vários hospitais de Espanha e</p><p>Itália. As imagens que eram captadas nas unidades de cuidados intensivos</p><p>eram impressionantes e quase nem pareciam reais. Por cá, apesar de os dois</p><p>portugueses estarem internados, encontravam-se ambos estáveis. Mas o</p><p>ponto de partida estava marcado. Já não dava para voltar atrás.</p><p>À semelhança do que aconteceu noutros países, não foi preciso esperar</p><p>muito para ver estes dois casos multiplicarem-se velozmente. A 11 de</p><p>Março, havia já 59 pessoas infectadas em Portugal com o vírus SARS-CoV-</p><p>2, responsável pela Covid-19. Nesse mesmo dia, em Genebra, a</p><p>Organização Mundial de Saúde declarava que estávamos perante uma</p><p>pandemia mundial da doença. As regras do jogo passaram a ser outras. E, a</p><p>partir desse momento, o cenário no mundo começava a piorar</p><p>consideravelmente.</p><p>Cinco dias depois, acontecia o inevitável: morria a primeira pessoa em</p><p>Portugal vítima da Covid-19. Tratava-se de um homem de 80 anos que tinha</p><p>outras patologias associadas. Nesse dia, contavam-se já 331 casos de</p><p>infecção no país. E a 18 de Março dava-se o que já era tido como certo nos</p><p>dias anteriores: o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa,</p><p>decretava Estado de Emergência nacional, durante 15 dias – que viria a ser</p><p>renovado consecutivamente até 2 de maio (quando se contabilizavam 1023</p><p>óbitos causados pela Covid-19 e 25 190 infectados) de 2020.105</p><p>Nesses três meses, o país viveu um período de confinamento sem</p><p>precedentes: as escolas encerraram, o ensino à distância normalizou-se, as</p><p>casas transformaram-se em escritórios, as lojas, restaurantes e cafés</p><p>fecharam portas e as ruas tornaram-se quase desertos. Imagens que ninguém</p><p>esquecerá. E as empresas? E a economia? Foram invadidas pelos receios e</p><p>inseguranças de uma crise económica que já era dada como inevitável.</p><p>Para fazer face às dificuldades que se começaram a sentir no tecido</p><p>empresarial, o Governo liderado por António Costa pôs em curso várias</p><p>medidas de apoio à economia, mas o medo da crise já estava impregnado na</p><p>população.</p><p>A 26 de Março, o Banco de Portugal estimava que o Produto Interno</p><p>Bruto (PIB) do país caísse 3,7% em 2020 e que a taxa de desemprego</p><p>subisse acima dos 10%. Quase um ano depois, a 2 de Fevereiro de 2021, o</p><p>Instituto Nacional de Estatística (INE) traçava um cenário ainda mais</p><p>desolador: o PIB português tinha caído 7,6% no ano da pandemia,</p><p>representando assim uma queda histórica – era a contracção “mais intensa</p><p>da actual série de Contas Nacionais, reflectindo os efeitos marcadamente</p><p>adversos da pandemia de Covid-19 na actividade económica”, dizia o</p><p>INE.106</p><p>No primeiro trimestre de 2021 as expectativas económicas continuavam</p><p>pouco animadoras. A 18 de Maio, o Eurostat (Gabinete de Estatísticas da</p><p>União Europeia) previa que a economia da Zona Euro tivesse recuado 1,8%</p><p>nos primeiros três meses do ano, e que a da União Europeia se tivesse</p><p>retraído 1,7%. Portugal era, entre os Estados-membros para os quais havia</p><p>dados disponíveis, o país com o maior recuo do PIB quando comparado</p><p>com os mesmos meses de 2020 – menos 5,4%.107</p><p>Quanto ao desemprego, novamente quedas (mas mais reduzidas). No final</p><p>de 2020, a taxa de desemprego no país tinha-se fixado em 6,8%, mais 0,3</p><p>pontos percentuais do que no ano anterior, segundo os dados partilhados</p><p>pelo INE a 10 de Fevereiro de 2021. De acordo com as mesmas contas, a 31</p><p>de Dezembro de 2020 contavam-se menos 99 mil pessoas empregadas em</p><p>Portugal.108 Olhando para as estimativas do gabinete estatístico europeu em</p><p>Abril, esta taxa de desemprego mantinha-se, ainda assim, abaixo da média</p><p>da União Europeia (7,1%).109</p><p>Em 2020 e 2021 havia duas crises a decorrer em simultâneo: a de saúde</p><p>pública e a económica. E era como se se atacassem mutuamente.</p><p>A tecnologia na frente de batalha</p><p>A pandemia apanhou o mundo desprevenido, disso ninguém duvida, e no</p><p>dia em que escrevia estas palavras – em que perto de 64% da população</p><p>portuguesa já se encontrava totalmente vacinada contra a Covid-19 –, as</p><p>dúvidas ainda eram muitas. Das grandes empresas às mais pequenas, todas</p><p>as organizações tiveram de se readaptar à nova realidade. E as startups não</p><p>foram excepção.</p><p>Por terem estruturas menos rígidas, algumas startups conseguiram</p><p>flexibilizar-se rapidamente ao novo dia-a-dia e, por navegarem mais</p><p>naturalmente no meio digital, não tiveram problemas em</p><p>de ser</p><p>aquilo em que se transformou passados sete e nove anos.</p><p>Quando Aileen Lee ousou pegar numa criatura rara e mitológica para</p><p>descrever os projectos tecnológicos que atingiam uma avaliação</p><p>multimilionária, não o fez por acaso. À data, as startups com um chifre em</p><p>espiral na testa prometiam ser uma raridade. E, de facto, se olharmos para</p><p>os números do clube, eram. Mas nem por isso a escolha da nomenclatura foi</p><p>óbvia para a investidora.</p><p>Antes de optar pelo termo unicórnio, Lee ainda pensou noutras palavras</p><p>que traduzissem bem o potencial destes negócios, como mega hits ou home</p><p>run (uma das jogadas mais importantes do beisebol), mas nenhuma fazia</p><p>justiça “ao fenómeno misterioso”3 que estava a decorrer nas avaliações da</p><p>indústria tecnológica, como escreveu o New York Times dois anos depois:</p><p>“Que palavra poderá descrever aquilo que todos nós estamos a tentar, que</p><p>é lançar, trabalhar ou investir numa empresa que seja a vencedora de todas</p><p>as vencedoras?” Quando a investidora experimentou usar a palavra mágica</p><p>no artigo que publicou no TechCrunch, não teve dúvidas: “Pareceu-me bem.</p><p>Era legível e divertida e ainda não tinha sido usada para descrever isto.” E</p><p>por “isto” leia-se: empresas que valem mais de mil milhões de dólares. Em</p><p>poucas semanas, o termo passou a fazer parte do vocabulário de Silicon</p><p>Valley, primeiro, e do resto da comunidade tecnológica, depois. Oito anos</p><p>mais tarde, fazia a capa deste livro.</p><p>Para chegar à listagem que apresentou no artigo do TechCrunch, em</p><p>2013, a equipa de Aileen Lee fez a seguinte filtragem: só interessavam ao</p><p>clube dos unicórnios empresas tecnológicas nascidas nos EUA, depois de</p><p>Janeiro de 2003, e que tivessem visto o seu negócio avaliado em pelo</p><p>menos mil milhões de dólares nos mercados públicos ou privados, ou seja,</p><p>dentro e fora das bolsas.</p><p>O “super-unicórnio” foi logo encontrado: a rede social fundada por Mark</p><p>Zuckerberg liderava o clube, valendo, à data, 122 mil milhões de dólares.</p><p>Oito anos depois e em plena pandemia de Covid-19, o Facebook</p><p>ultrapassava a fasquia reservada aos gigantes tecnológicos e valia, no fecho</p><p>do mercado de 28 de Junho de 2021, mais de 1 bilião de dólares (trillion,</p><p>em inglês). Sim, mais de 1 bilião.4</p><p>Apesar de todas as polémicas – por esta altura, o fundador da rede social</p><p>já tinha sido chamado várias vezes ao Congresso norte-americano para lidar</p><p>com questões tão delicadas como o escândalo Cambridge Analytica ou o</p><p>lançamento da moeda virtual Libra –, o “super-unicórnio” (segundo a</p><p>denominação de Aileen Lee) valia cerca de dez vezes mais do que em 2013.</p><p>Trocando os dólares por euros, em 2019 Portugal tinha produzido cerca</p><p>de um quinto deste valor em riqueza e apresentava um Produto Interno</p><p>Bruto (PIB) no valor de 213 949,3 milhões de euros.5</p><p>Voltando a Aileen Lee. Identificadas as lupas com que decidiu olhar para</p><p>o universo tecnológico daquela década, entre 2003 e 2013 (que incluía uma</p><p>estimativa de 60 mil empresas norte-americanas), a investidora concluiu o</p><p>seguinte: só 39 organizações reuniam as condições necessárias de admissão</p><p>ao clube dos unicórnios, ou seja, 0,07% do grupo de startups de software</p><p>que tinham recebido financiamento nos últimos 10 anos. Apesar de ter sido</p><p>difícil apurar estes dados com exactidão, a equipa da Cowboy Ventures</p><p>concluiu que apenas uma em cada 1538 startups tinha recebido uma</p><p>avaliação com pelo menos nove zeros. Uma raridade, portanto.</p><p>A 14 de Novembro 2019, seis anos depois (e num mundo pré-pandemia),</p><p>a plataforma norte-americana CB Insights6 listava 418 unicórnios,</p><p>provenientes de todos os países do mundo, mas excluindo do ranking as</p><p>empresas entretanto tornadas públicas. (Adeus, Facebook! Adeus, Uber!)</p><p>Quer isto dizer que o capital destas quatro centenas de unicórnios</p><p>permanecia entre investidores privados, longe das teias imprevisíveis das</p><p>bolsas e, a bem da verdade, de todos nós. Ainda assim, eram cerca de 10</p><p>vezes mais do que os unicórnios inicialmente apurados por Lee e valiam, no</p><p>total, mais de 1,3 biliões de dólares no mercado privado. E isto tudo no</p><p>espaço de seis anos.</p><p>A Farfetch, oficialmente o primeiro unicórnio com ADN português,</p><p>estava fora desta listagem, porque já era uma empresa cotada na altura.</p><p>Tinha entrado para a bolsa de Nova Iorque em Setembro de 2018. Mas</p><p>sobre isto falaremos mais adiante.</p><p>Quando a equipa da Cowboy Ventures retirou a super-avaliação do</p><p>Facebook da listagem de 2013 e se focou nos outros 38 unicórnios, concluiu</p><p>que valiam, em média, 3,6 mil milhões cada. Na cauda do ranking,</p><p>avaliados em mil milhões de dólares, estavam os sites de comércio</p><p>electrónico Fab.com – que, em 2015, já com muito poucos funcionários, foi</p><p>comprado pela PCH International por um valor que não chegou a ser</p><p>revelado7 –; o Gilt – que em Janeiro de 2016 foi vendido à Hudson’s Bay</p><p>Company por 250 milhões de dólares (menos do que o valor que os</p><p>investidores meteram no projecto)8 –; o Zulily – que em Novembro de 2013</p><p>foi admitido em bolsa (fez um IPO, na sigla inglesa) a valer 2,6 mil</p><p>milhões9 – e o Instagram, que passou para as tão conhecidas garras do</p><p>Facebook, em 2012, por mil milhões de dólares10, o que hoje nos parece</p><p>preços de saldo.</p><p>Por esta altura, ainda estávamos longe de imaginar que teríamos empresas</p><p>made in Portugal no clube recém-criado por Aileen Lee. O termo startups</p><p>não tinha sequer entrado para o vocabulário dos portugueses, ainda que</p><p>fossem já noticiadas e começassem a efervescer nas universidades e</p><p>primeiras incubadoras. Foi preciso esperar dois anos, até 4 de Março de</p><p>2015, para ler o nome de José Neves no artigo do Financial Times11 que</p><p>noticiava a nova avaliação do negócio da Farfetch: mil milhões de dólares.</p><p>Com sede em Londres e tecnologia desenvolvida na Leça do Balio, a loja</p><p>online do empresário português de 40 anos tornava-se, assim, no primeiro</p><p>unicórnio com ligações a Portugal. A OutSystems, liderada pelo também</p><p>português Paulo Rosado, só se transformaria em unicórnio a 6 de Junho de</p><p>2018; a Talkdesk, co-fundada por Tiago Paiva e Cristina Fonseca, a 3 de</p><p>Outubro de 2018; a Feedzai, presidida por Nuno Sebastião, a 24 de Março</p><p>de 2021; e a Remote, co-fundada por Marcelo Lebre, a 13 de Julho de 2021.</p><p>Dos cinco, a Remote era o único que não era presidido por um português.</p><p>À data do célebre artigo do TechCrunch, estes cenários eram, para o</p><p>comum dos portugueses, tão reais como os unicórnios: só existiam em</p><p>sonhos.</p><p>A entrada da Farfetch no clube iniciado pela Cowboy Ventures aconteceu</p><p>quando a empresa fechou a quinta ronda de investimento, em 2015, no</p><p>valor de 86 milhões de dólares. A operação foi liderada pela capital de risco</p><p>de Yuri Milner, o ex-físico e empresário que fundou uma das capitais de</p><p>risco mais relevantes da Rússia, a DST Global, e que era um dos nomes</p><p>mais sonantes do ecossistema tecnológico. Foi através deste fundo que</p><p>Milner investiu em “super-unicórnios” como o Facebook e o Twitter e, mais</p><p>tarde, no Airbnb e Spotify.12</p><p>Ao Financial Times, aquando da ronda de investimento da Farfetch, Yuri</p><p>Milner disse que financiou a empresa porque esta tinha “uma equipa forte,</p><p>um crescimento impressionante e um grande potencial”. Mas eu, nessa</p><p>altura, não conhecia a equipa de José Neves, nem o crescimento, nem o</p><p>potencial.</p><p>Além da DST Global, participaram naquela ronda mais nove investidores.</p><p>A primeira notícia que escrevi sobre a Farfetch data de 4 de Março de 2015,</p><p>mas estava longe de ser a última. A partir daquele momento, já não dava</p><p>para voltar atrás: a loja online de José Neves tinha entrado definitivamente</p><p>no radar dos jornais portugueses. E os unicórnios também.</p><p>Negócios arriscados</p><p>Apesar da velocidade destas criaturas mitológicas, Aileen Lee deixou logo</p><p>claro, em 2013, que o estatuto de unicórnio não garantia que fossem</p><p>exemplos de estabilidade suficientes para levar rapidamente os investidores</p><p>a bom exit, ou seja, a bom porto – um exit acontece quando estas startups</p><p>são admitidas em bolsa ou adquiridas por outras empresas, permitindo aos</p><p>investidores ter retorno do investimento. Antes pelo contrário. “É uma</p><p>maratona, não uma corrida: são</p><p>adaptar-se à nova</p><p>forma de vida e de trabalho – em casa, num ecrã e por Zoom (ou noutras</p><p>plataformas de videochamadas equivalentes).</p><p>Certo é que, em tempos de crise, a inovação é uma aliada (e neste caso</p><p>foi). Quem teve capacidade de se reinventar e adaptar rapidamente às</p><p>circunstâncias acabou por ganhar um papel dianteiro na corrida. Em</p><p>Portugal, houve mesmo um movimento que juntou vários players do</p><p>ecossistema de startups e tecnológico para ajudar o país na luta contra o</p><p>coronavírus. Chamava-se Tech4COVID19 e queria fazer da inovação</p><p>tecnológica uma mais-valia para a sociedade e economia, criando várias</p><p>ferramentas e aplicações que ajudassem os portugueses a adaptar-se à vida</p><p>em pandemia.</p><p>Apesar da flexibilidade que caracteriza este tipo de negócios, nem todos</p><p>escaparam ilesos a este mundo em mudança. Num estudo que foi divulgado</p><p>pela Aliados Consulting e pela FES Agency, 73% das startups inquiridas</p><p>sentiram um impacto negativo devido à pandemia. Mais: 67% admitiu que</p><p>teve mesmo de reduzir custos para lidar com as consequências da Covid-19,</p><p>sobretudo a nível dos serviços contratados e orçamento de marketing.</p><p>Houve ainda quem admitisse que só tinha capital disponível para os seis</p><p>meses seguintes.110</p><p>A 21 de Abril de 2020, o Ministério da Economia e da Transição Digital,</p><p>liderado por Pedro Siza Vieira, anunciava um pacote de mais de 25 milhões</p><p>de euros, com 5 medidas, para apoiar mais de 2500 startups portuguesas a</p><p>superar as consequências da pandemia. Como? Estendendo bolsas de apoio,</p><p>promovendo empréstimos com condições especiais e vales para facilitar o</p><p>acesso a incubadoras.</p><p>No Observador, os jornalistas Manuel Pestana Machado e Catarina</p><p>Peixoto foram perguntar a alguns players do ecossistema se consideravam</p><p>estas medidas suficientes, tendo em conta o abalo que a pandemia estava a</p><p>causar um pouco por todo o lado. A resposta não foi consensual. Houve</p><p>quem concordasse, quem discordasse e quem achasse que, apesar de serem</p><p>boas medidas, podiam ser ainda melhores. No final, todos os entrevistados</p><p>concordavam numa coisa: faltava esclarecimento sobre como chegar a estes</p><p>mesmos apoios.</p><p>Entre as iniciativas promovidas pelo Executivo de António Costa, esteve</p><p>também a adaptação de dois apoios que já estavam em vigor em pré-</p><p>pandemia: o Fundo 200M – uma ferramenta de investimento do Estado</p><p>(mínimo de 500 mil euros e máximo de 5 milhões) em parceria com</p><p>investidores privados –, e o fundo de co-investimento para a inovação</p><p>social, em que o Estado co-investia com privados em empresas que</p><p>tivessem impacto social.</p><p>Mas, como em qualquer outra crise, na busca pelas soluções que</p><p>facilitariam a vida em pandemia houve também quem tivesse conseguido</p><p>ver o seu negócio crescer. E muito. A nível micro (em Portugal) e a nível</p><p>macro (no mundo). Das startups aos unicórnios e às Big Tech, enquanto</p><p>alguns projectos desapareciam, outros viam as suas vendas dispararem.</p><p>No final de Julho de 2020, a riqueza acumulada dos multimilionários</p><p>(pessoas com fortunas superiores a mil milhões de dólares) ascendia a cerca</p><p>de 10,2 biliões de dólares, ultrapassando assim o recorde anterior de 8,9</p><p>biliões, atingido em 2017. Os dados foram divulgados num estudo feito</p><p>pelo banco suíço UBS e pela consultora PricewaterhouseCoopers, que</p><p>davam conta de que não tinha sido só a fortuna dos multimilionários a subir</p><p>– havia também naquele ano mais 31 pessoas que tinham entrado para esta</p><p>categoria.111</p><p>Não havia dúvidas: as fortunas estavam a polarizar-se, lia-se no estudo. E</p><p>eram os líderes dos negócios inovadores e disruptivos que estavam na</p><p>dianteira da revolução económica. Em 2018, 2019 e nos primeiros sete</p><p>meses de 2020, a revolução económica da época estava a ser encabeçada</p><p>pelos empresários da indústria tecnológica e da saúde.</p><p>“A tempestade da Covid-19 acelerou esta divergência. São os inovadores</p><p>em ascensão, os cientistas, os programadores e os engenheiros que estão a</p><p>revolucionar as indústrias a um ritmo sem precedentes”, lia-se no estudo. E</p><p>à medida que estes empreendedores iam aplicando as tecnologias</p><p>emergentes que criavam, também iam enriquecendo.</p><p>Em dois anos e meio, as fortunas dos multimilionários do sector de</p><p>tecnologia aumentaram 42,5%, atingindo, num todo, cerca de 1,8 biliões de</p><p>dólares. Mais: só durante a pandemia, a fortuna dos 9 empresários de topo</p><p>do sector tecnológico americano – que inclui nomes como o de Elon Musk</p><p>(Tesla e SpaceX), Jeff Bezos (Amazon) e Mark Zuckerberg (Facebook) –</p><p>cresceu mais 360 mil milhões de dólares do que no ano anterior, segundo</p><p>um levantamento feito pelo jornal norte-americano The Washington Post,</p><p>publicado a 12 de Março de 2021.112</p><p>Elon Musk, por exemplo, mais do que quadruplicou a sua riqueza e</p><p>chegou mesmo a disputar com Jeff Bezos o título de pessoa mais rica do</p><p>mundo. Já o fundador e presidente do Facebook, Mark Zuckerberg, viu a</p><p>sua fortuna pessoal atingir 100 mil milhões de dólares. E Larry Page e</p><p>Sergey Brin, co-fundadores da Google, ganharam juntos 65 mil milhões de</p><p>dólares.</p><p>Em matéria de unicórnios, a 13 de Agosto de 2021 a listagem CB Insights</p><p>contava com 790 empresas privadas que valiam mais de mil milhões de</p><p>dólares cada, quase o dobro das empresas que compunham o ranking a 14</p><p>de Novembro de 2019 (418). Ao todo, os unicórnios de 2021 valiam mais</p><p>de 2,5 biliões de dólares – também quase o dobro do que a mesma lista</p><p>apontava dois anos antes.</p><p>No topo do ranking continuava a empresa chinesa ByteDance, que depois</p><p>do sucesso estrondoso que o TikTok fez durante a pandemia, estava no</p><p>Verão de 2021 avaliada em 140 mil milhões de dólares, duplicando a</p><p>avaliação que tinha dois anos antes (75 mil milhões). Em segundo lugar</p><p>estava agora a fintech americana Stripe, que valia 95 mil milhões, e na</p><p>terceira posição encontrava-se a SpaceX, de Elon Musk, que somava uma</p><p>avaliação de 74 mil milhões de dólares.</p><p>Por esta altura, a concorrente chinesa da Uber, a Didi Chuxing, já estava</p><p>fora do ranking – a 30 de Junho de 2021, as acções do unicórnio</p><p>começaram a ser transaccionadas na bolsa americana, avaliando a empresa</p><p>em mais de 68 mil milhões de dólares. Este IPO tornava-se assim na maior</p><p>entrada em bolsa de uma empresa chinesa no mercado norte-americano</p><p>desde 2014.</p><p>Já a polémica JUUL, que em 2019 ocupava o terceiro lugar do ranking</p><p>unicorniano (a valer 50 mil milhões de dólares) não conseguiu superar as</p><p>controvérsias em que esteve envolvida. Dois anos depois, a empresa de</p><p>cigarros electrónicos estava na 25.ª posição da CB Insights, avaliada em 12</p><p>mil milhões – cerca de 4 vezes menos.</p><p>A história da ascensão e queda deste unicórnio deu origem a dois livros;</p><p>Big Vape: The Incendiary Rise of Juul, lançado a 25 de Maio de 2021 e</p><p>assinado por Jamie Ducharme, jornalista da revista americana Time; e o The</p><p>Devil’s Playbook: Big Tobacco, Juul, and the Addiction of a New</p><p>Generation, escrito por Lauren Etter, jornalista da Bloomberg. E não deixou</p><p>a comunidade tecnológica indiferente – foi mais uma promessa mitológica</p><p>que se esvaziou.</p><p>Oito meses depois de chegar a Portugal, a empresa fechou as operações</p><p>no país (e noutras subsidiárias). Em Junho de 2021, tornou-se público que a</p><p>fabricante de cigarros electrónicos tinha concordado em pagar 40 milhões</p><p>de dólares ao estado norte-americano da Carolina do Norte, devido à sua</p><p>estratégia de marketing para jovens. Este estado acusava a startup de</p><p>promover o consumo dos cigarros electrónicos e de apresentar informações</p><p>falsas sobre os malefícios da nicotina.</p><p>Enquanto esta disputa legal se resolvia, os processos de que era alvo em</p><p>estados como a Califórnia e Nova Iorque prosseguiam. Pelo caminho, a</p><p>história da JUUL ficou marcada pela associação da marca a mortes</p><p>relacionadas com as vaporizações e pelo surgimento de uma lesão pulmonar</p><p>associada especificamente à utilização dos cigarros electrónicos, a</p><p>EVALI.113</p><p>Se, a nível internacional, a fortuna de alguns milionários disparava com a</p><p>pandemia de Covid-19, em Portugal as disparidades económicas também se</p><p>faziam sentir. De acordo com o estudo The Global Wealth Report,</p><p>promovido pelo banco de investimento</p><p>Credit Suisse, em 2020, Portugal</p><p>contava com 136 430 milionários – pessoas com fortunas avaliadas em mais</p><p>de 1 milhão de dólares –, mais 19 430 do que no ano anterior.</p><p>Destes, 72 tinham uma fortuna avaliada entre 50 e 100 milhões de</p><p>dólares, 24 estavam entre os 100 e os 500 milhões e apenas uma pessoa</p><p>contava com uma riqueza superior a 500 milhões de dólares. O país estava</p><p>mais pobre, mas não havia dúvidas de que tinha mais ricos.</p><p>A verdade é que a pandemia não fez abrandar a produção de unicórnios</p><p>com ADN nacional. E os que já existiam continuaram a crescer, apesar dos</p><p>tempos atribulados que se viviam. Depois de, em 2018, as avaliações da</p><p>OutSystems e da Talkdesk terem atingido um patamar mitológico, em 2021</p><p>foi a vez de assistirmos a mais dois fenómenos do género: a (muito</p><p>esperada) Feedzai, liderada por Nuno Sebastião, e a (muito recente)</p><p>Remote, co-fundada por Marcelo Lebre.</p><p>As novidades chegaram com quatro meses de diferença. A 24 de Março</p><p>de 2021, a startup criada em 2009 por Nuno Sebastião, Pedro Bizarro e</p><p>Paulo Marques para tornar a actividade bancária mais segura tornava-se no</p><p>primeiro unicórnio 100% nacional (por ser o único com sede em Portugal,</p><p>os restantes têm subsidiárias), depois de fechar a sua sétima ronda de</p><p>investimento, no valor de 200 milhões de dólares. Nessa mesma manhã, o</p><p>CEO revelava-me numa conversa por videochamada que a Feedzai valia, à</p><p>data, 1,3 mil milhões de dólares.114</p><p>Há já alguns anos que a startup de tecnologia financeira era apontada</p><p>como um potencial unicórnio, mas Nuno Sebastião nunca achou que isso</p><p>fosse um fim em si mesmo. “É uma consequência de estares a executar</p><p>muito bem, porque depois o que acontece connosco e com as empresas boas</p><p>é que tens investidores a baterem-te à porta e a quererem investir em ti e aí</p><p>dizes: ‘Não, estou a executar bem e não preciso’”, disse-me numa entrevista</p><p>que fizemos no terraço do Observador, em 2018.</p><p>Para o ex-engenheiro da Agência Espacial Europeia, no final do dia não</p><p>eram os rótulos que interessavam. “Mil milhões é muito dinheiro, mas se tu</p><p>gerares muitos mais milhões do que isso, de repente, se calhar não é assim</p><p>tanto. Por isso, não acho que deva ser o objectivo. O objectivo é criar</p><p>valor”, acrescentou, enquanto bebia uma cerveja alemã, uma Franziskaner.</p><p>O facto de o estatuto de unicórnio não encerrar um fim em si mesmo não</p><p>queria dizer que Nuno Sebastião estivesse alheado do assunto. Pelo</p><p>contrário. Confessava que ainda há pouco tempo tinha dito à sua equipa que</p><p>havia, claramente, espaço para surgir uma empresa independente na área em</p><p>que a Feedzai actuava, que acabaria por se tornar uma referência mundial</p><p>no sector.</p><p>E o que é que este unicórnio faz? Usa mecanismos de inteligência</p><p>artificial e de machine learning para prevenir e detectar cibercrimes</p><p>financeiros, como tentativas de apropriação de contas, de falsificação de</p><p>identidade ou fraudes bancárias online. O objectivo do software</p><p>desenvolvido pela Feedzai é o de tornar mais seguras as transacções</p><p>digitais, da banca ao comércio online.</p><p>“Somos a que está mais bem posicionada, entre todas as empresas</p><p>emergentes, de longe. Não fomos a primeira a começar, mas hoje o nosso</p><p>concorrente directo tem um terço das nossas pessoas, nós estamos a</p><p>executar muito mais negócios, portanto, acho que vamos ser nós.”</p><p>Demorou três anos a tornar-se público, mas quando Nuno Sebastião</p><p>decidiu que era hora de ouvir os investidores que tanto lhe batiam à porta,</p><p>resolveu o processo todo em três semanas. Tudo à distância. Tudo em plena</p><p>pandemia.</p><p>Em menos de um mês, a fintech portuguesa que se dedicava a combater e</p><p>a prevenir o cibercrime financeiro fechava uma ronda de investimento de</p><p>200 milhões de dólares, liderada pela investidora internacional KKR.</p><p>Participaram também na operação de financiamento as investidoras</p><p>americanas Sapphire Ventures e a Citi Ventures, que já tinham estado</p><p>presentes também em rondas anteriores. O objectivo era que este dinheiro</p><p>acelerasse a expansão global, aumentasse a oferta de produtos da</p><p>tecnológica e consolidasse a sua presença no mercado.</p><p>Quando, naquela manhã de Março de 2021, perguntei ao empreendedor</p><p>conimbricense de 42 anos como tinha sido negociar esta ronda em</p><p>pandemia, a resposta fez justiça à espontaneidade que sempre caracterizou o</p><p>CEO da Feedzai. “Foi um pincel”, riu.</p><p>“Quando negoceias estas coisas, negoceias duas variáveis: uma é o preço,</p><p>a outra é o controlo. E se as negoceias em separado, estás tramado. Podem</p><p>dar-te um preço muito grande, mas depois têm o controlo da empresa e, na</p><p>verdade, o preço não é aquele”, explicava-me. Nuno Sebastião queria</p><p>equilibrar as duas coisas, o que podia ser difícil, mas conseguiu.</p><p>Pelo meio, teve um gozo enorme com outro pormenor: conseguiu que</p><p>todo o processo que envolveu a ronda fosse feito com equipas portuguesas:</p><p>quer a interna, da Feedzai, quer as que prestaram aconselhamento externo a</p><p>nível legal e fiscal. “Era tudo ‘tuga’. E do lado de lá tinhas americanos,</p><p>ingleses, alemães e por aí fora. Isso deu-me um gozo muito grande, porque</p><p>conseguimos três coisas muito importantes: manter a empresa em Portugal,</p><p>o controlo do conselho de administração e o preço que queríamos. E isso é</p><p>difícil. Tipicamente, só consegues isto quando tens o poder de dizer que</p><p>não.”</p><p>Com mais de 800 milhões de clientes em 190 países, incluindo os 5</p><p>maiores bancos da América do Norte, Nuno Sebastião tinha poder para</p><p>dizer os “nãos” que quisesse. À data deste investimento, a Feedzai</p><p>empregava mais de 500 pessoas, tinha escritórios em Lisboa, Porto,</p><p>Coimbra, Nova Iorque, Atlanta, Silicon Valley, Londres, Hong Kong e</p><p>Sydney, e a empresa somava várias distinções internacionais.</p><p>Os feitos tinham repercussões à escala global: em nove meses – e durante</p><p>a pandemia – os programadores portugueses criaram um banco de raiz em</p><p>Hong Kong, e em três ajudaram uma empresa americana a criar o</p><p>concorrente do Apple Card para a Samsung. A solução de inteligência</p><p>artificial desenvolvida pelo unicórnio português era utilizada em bancos</p><p>como o Citibank ou o Santander. Mas a sede da empresa, essa, continuava</p><p>no sítio onde a Feedzai nasceu: no Instituto Pedro Nunes, em Coimbra.</p><p>O processo que envolveu a última ronda de investimento da empresa nem</p><p>sequer foi planeado, contou-me Nuno Sebastião. Começou em Setembro,</p><p>quando o empreendedor fez uma apresentação num evento da sociedade</p><p>financeira J.P. Morgan, o J.P. Morgan Tech Stars. Foi lá vender o seu peixe,</p><p>disse-me. “E depois aconteceu uma coisa estranha: começaram a pingar</p><p>pedidos de vários [investidores] e não estávamos muito para aí virados.”</p><p>Recusaram as propostas, mas os investidores não desistiram. Insistiram,</p><p>insistiram e insistiram, até que Nuno Sebastião voltou atrás.</p><p>Alinhou três ou quatro investidores e fez o inverso do que era suposto.</p><p>“Nós é que os entrevistámos.” Acabou por escolher a KKR porque lhe dava</p><p>uma visão verdadeiramente global da indústria e por saber que era</p><p>composta por investidores que respeitavam muito os fundadores e a cultura</p><p>da empresa. E não porque precisava do dinheiro. Esse nunca foi o</p><p>problema. Na mesma conversa revelou-me ainda que o ano de 2020 foi o</p><p>melhor ano de crescimento da empresa, que todos se tinham adaptado muito</p><p>bem aos desafios criados pela pandemia.</p><p>Quando lhe perguntei se os resultados financeiros eram igualmente</p><p>apetecíveis aos investidores, respondeu, com o sorriso que mantinha em</p><p>todas as conversas, que tinham sido “porreiros”. “São muito bons, mas mais</p><p>não posso dizer”, sublinhou, admitindo, ainda assim, que a equipa estava</p><p>melhor no final do ano do que no início, antes da Covid-19. “Estávamos</p><p>muito fortes.”</p><p>Depois de ter estado durante sete anos na Alemanha, Nuno Sebastião</p><p>despediu-se da Agência Espacial Europeia e regressou a Portugal para</p><p>lançar um projecto seu. Diz que nunca se arrependeu de o fazer.</p><p>“Gosto muito daquilo que faço”, respondeu-me em 2018, ainda que</p><p>aquilo que fazia o obrigasse a dividir-se frequentemente por três casas –</p><p>uma em Coimbra, outra em Lisboa e outra nos EUA. E a ter réplicas de</p><p>tudo em todas. “Honestamente,</p><p>acho que a casa é um estado mental. Não é</p><p>um espaço físico. E quando viajas tanto começas a conhecer muita gente</p><p>que tem o mesmo tipo de perfil, malta que corre o mundo.”</p><p>Para manter alguma coerência na sua vida, mantinha alguns hábitos quer</p><p>na Alemanha quer nos EUA. Viciado em pastéis de nata, pedia sempre a</p><p>quem viajava para os sítios onde estava que lhe levassem caixas com esta</p><p>doçaria, que depois congelava. Era o seu ritual da manhã: “Um pastel de</p><p>nata e um cafezinho Sical. Pá, tem de ser.”</p><p>Comidas à parte, a curiosidade sobre o que podia seguir-se à ronda que</p><p>avaliou a Feedzai em mais de mil milhões era muita. Estaria uma entrada</p><p>em bolsa para breve? “Esta área vai criar empresas globais líderes fortes. E</p><p>quero que seja a Feedzai. Portanto, tenho de correr para ser a Feedzai. É isto</p><p>que temos de fazer”, respondeu-me.</p><p>Ciente da corrida que poderia ter pela frente, Nuno Sebastião sabia que</p><p>era preciso cimentar o caminho da startup até então e torná-la uma empresa</p><p>verdadeiramente líder na área. “Se conseguirmos fazer isso, depois se</p><p>calhar ninguém te vai conseguir comprar. Tu é que vais às compras. E é</p><p>natural que o mercado diga ‘esta é uma empresa sólida, é forte e, portanto,</p><p>deve estar nos mercados públicos’. Mas isso é uma consequência e virá a</p><p>seu tempo.”</p><p>A Feedzai podia ter estado a galopar nos últimos anos, mas Nuno</p><p>Sebastião reconhecia o quão importante era ter um equilíbrio entre a vida</p><p>profissional e pessoal. Apesar das exigências de liderar uma empresa como</p><p>a sua não descurava nos hobbies, neste caso, nas suas motas. “Digo isto à</p><p>malta: you need to slow down [vocês precisam de abrandar]. E quando estás</p><p>a fazer trabalho físico, seja ir correr, o que for, como o caso das motas, vês</p><p>que aquilo demora mesmo muitas horas, demora tempo. Às vezes estás a</p><p>processar tão rápido que podes ir depressa demais. E é preciso equilibrar</p><p>isso.”</p><p>A 4 de Agosto de 2021, a Feedzai anunciava que tinha comprado a</p><p>plataforma biométrica comportamental Revelock, o que lhe permitia ter a</p><p>maior rede de inteligência financeira do mundo, “uma base de dados com</p><p>mais de um trilião de pontos de dados, sessões e perfis quer de bons actores,</p><p>quer de maus”.115 Não precisou de muito tempo – Nuno Sebastião foi</p><p>mesmo às compras.</p><p>Uma ascensão meteórica</p><p>As boas notícias que a pandemia trouxe não se ficaram pela Feedzai. A 13</p><p>de Julho de 2021, a (muito recente) Remote anunciava que tinha fechado</p><p>uma ronda de investimento Série B (apenas) no valor de 150 milhões de</p><p>dólares, que a avaliava em mais de mil milhões. Com apenas dois anos de</p><p>vida, a startup co-fundada pelo português Marcelo Lebre atingia assim o</p><p>estatuto de unicórnio mais rápido das cinco empresas com ligações a</p><p>Portugal.</p><p>Fundada em Janeiro de 2019 por Job van der Voort (CEO), holandês a</p><p>viver em Portugal desde 2011, e por Marcelo Lebre (director tecnológico), a</p><p>Remote criou uma plataforma para gestão de recursos humanos em</p><p>teletrabalho e não tinha sequer escritórios físicos. Toda a premissa da</p><p>empresa era a do trabalho à distância, algo que se massificou com a</p><p>pandemia de Covid-19. Por esta altura, com 300 colaboradores,</p><p>trabalhavam todos remotamente, distribuídos por 50 países – cenário que a</p><p>pandemia só veio privilegiar.</p><p>Em cerca de um ano (e em pandemia), a startup conseguiu acumular 196</p><p>milhões de dólares em investimento: a primeira ronda seed, no valor de 11</p><p>milhões de dólares, foi fechada em Abril de 2020; a ronda Série A, de 35</p><p>milhões, ocorreu seis meses depois; e, em Julho de 2021, a Série B marcava</p><p>a entrada da Remote no clube dos unicórnios. A operação foi liderada pelo</p><p>fundo americano Accel, com participação de outros investidores americanos</p><p>como a Sequoia Capital, a Index Ventures ou a Two Sigma Ventures.</p><p>A verdade é que o timing do lançamento da Remote foi quase perfeito.</p><p>Um ano depois de terem fundado a empresa, os dois empreendedores</p><p>depararam com um mercado mundial que estava maioritariamente em</p><p>teletrabalho, por causa da pandemia, e que precisava de continuar a gerir,</p><p>contratar e a remodelar equipas de forma virtual. A tecnologia da startup,</p><p>que tinha Marcelo Lebre à cabeça, prometia a essas mesmas empresas</p><p>contratar pessoas a nível mundial sem terem de se preocupar com questões</p><p>legais, laborais ou fiscais. A missão deste unicórnio era mesmo essa: a de</p><p>remover as barreiras para contratação internacional e fornecer acesso a</p><p>oportunidades de trabalho no mundo todo.</p><p>Não foi a única. Por muito irónico que possa parecer, a pandemia acabou</p><p>por trazer vantagens comerciais a todos os unicórnios com fundadores</p><p>portugueses. O primeiríssimo – a Farfetch, de José Neves –, conseguiu ter</p><p>resultados operacionais positivos três meses antes do previsto, ainda em</p><p>2020, e continuava a crescer em vendas, em facturação e em clientes no</p><p>início do ano seguinte.</p><p>Só nos primeiros três meses de 2021, a plataforma conseguiu captar quase</p><p>mais 500 mil novos clientes, que compravam mais itens e que faziam cestos</p><p>de compras com um valor superior, explicou-me Luís Teixeira, responsável</p><p>pelas operações globais da empresa. Poucos meses antes, José Neves</p><p>também me dizia, após a apresentação de resultados trimestrais, que, em</p><p>seis meses, a pandemia de Covid-19 tinha trazido mais 900 mil clientes à</p><p>Farfetch. E o regresso destes consumidores a uma eventual normalidade não</p><p>o preocupava.</p><p>“O que estamos a ver é uma mudança de paradigma”, disse-me. Em 2019</p><p>a penetração do luxo no online era de 12%, mas as estimativas da empresa</p><p>portuguesa apontavam para que chegasse aos 25% em 2025. O que veio</p><p>acontecer, com a pandemia de Covid-19, foi a aceleração deste movimento,</p><p>explicou-me. “Essa mudança de paradigma está aqui para ficar. Fizemos</p><p>uma sondagem aos nossos clientes, 45% disseram que iam comprar mais</p><p>luxo online depois da pandemia e 23% que iam fazer a maior parte das</p><p>compras de luxo online.”</p><p>Com mais clientes e mais vendas em pandemia, o primeiro unicórnio com</p><p>ADN nacional teve ainda outra surpresa em 2021: foi destacado pela revista</p><p>Time como uma das 100 empresas mais influentes do mundo, naquele que</p><p>foi o primeiro ranking da publicação dedicado ao sector empresarial.</p><p>Nesse mesmo ano, a Fundação José Neves celebrou um ano de existência</p><p>e o empreendedor comemorou-o com o lançamento de uma aplicação</p><p>móvel de saúde mental gratuita, feita em parceria com a organização sueca</p><p>29K. A missão desta app era a de ajudar os portugueses a lidar com</p><p>questões do foro emocional e mental, como o stress, a ansiedade, a</p><p>resiliência ou o amor-próprio.</p><p>Já o segundo unicórnio, a OutSystems, de Paulo Rosado, viu o seu valor</p><p>de mercado subir para 9,5 mil milhões de dólares durante a pandemia,</p><p>depois de, em 2021, ter fechado uma ronda de investimento de 150 milhões.</p><p>E a Talkdesk, terceiro unicórnio com raízes portuguesas, fechou não uma,</p><p>mas duas rondas destas num ano – uma em Julho de 2020, no valor de 143</p><p>milhões de dólares; e outra de 230 milhões em Agosto de 2021.</p><p>Ambas as empresas integraram, nesse ano, o ranking da revista Forbes</p><p>(em parceria com a Bessemer Venture Partners e a Salesforce Ventures) que</p><p>distingue as 100 melhores empresas no sector da cloud – a Talkdesk tinha</p><p>ficado na 17.ª posição e a OutSystems na 61.ª . Tudo parecia estar a correr</p><p>bem para os unicórnios portugueses.</p><p>Contudo, as dúvidas sobre uma eventual bolha no sector continuavam.</p><p>Num ano em que o investimento em capital de risco nos EUA voltou a bater</p><p>recordes, um estudo da norte-americana National Venture Capital</p><p>Association e da empresa de análise de dados Pitchbook dava conta do</p><p>seguinte cenário: nos primeiros seis meses de 2021, os investidores</p><p>americanos injectaram 150 mil milhões de dólares em startups, perto de</p><p>90% de todo o dinheiro que investiram em 2020 (164,3 mil milhões).116 E o</p><p>ano ia a meio.</p><p>No mesmo estudo lia-se: “2021 a preparar-se para ser o melhor ano para o</p><p>capital de risco até à data”. Só o valor das mega rounds, as que excediam os</p><p>100 milhões de dólares, totalizou, ao fim de seis meses, 85,5 mil milhões,</p><p>representando outro recorde para o sector. Em todo o ano de 2020, por</p><p>exemplo, este tipo</p><p>de rondas somou uma quantia de 75 mil milhões de</p><p>dólares. E, de acordo com a CB Insights, só nos primeiros seis meses de</p><p>2021 houve 249 startups que atingiram o estatuto de unicórnio, quase o</p><p>dobro de todo o ano de 2020.</p><p>Mas seriam estes dados assim tão boas notícias?</p><p>Em Julho de 2021, já havia quem fizesse soar (novamente) o alarme em</p><p>torno de uma eventual bolha no sector como a das dotcom, que decorreu no</p><p>início do milénio. As injecções brutais de capital em empresas tecnológicas</p><p>e o entusiasmo à volta deste tipo de negócios levaram o investidor Hussein</p><p>Kanji, da investidora britânica Hoxton Ventures, a fazer o paralelismo com</p><p>esses tempos.</p><p>“Isto a mim lembra-me muito o ano de 1999. Tinhas tantas ofertas, tanto</p><p>entusiasmo”, disse ao canal de televisão norte-americano CNBC.117 “Era o</p><p>entusiasmo por conseguires estar na próxima grande cena”, acrescentou,</p><p>explicando que isto fazia com que as avaliações privadas das tecnológicas</p><p>estivessem cada vez mais distantes da realidade. Razão? O medo que os</p><p>investidores tinham em ficar de fora destes negócios.</p><p>Na Europa, o cenário era semelhante. A 7 de Julho de 2021, a</p><p>Bloomberg118 fazia este título: “Avaliações arrasadoras das tecnológicas</p><p>europeias fazem aumentar o receio de uma bolha”. Os jornalistas Ivan</p><p>Levingston e Adeola Eribake escreviam que as startups europeias nunca</p><p>tinham captado tanto dinheiro como naquele ano, mas que alguns dos</p><p>maiores líderes da indústria já começavam a preocupar-se com a</p><p>sustentabilidade do momento que estávamos a viver. Em causa estavam as</p><p>avaliações de startups como a Hopin, que actuava na área dos eventos</p><p>digitais, ou a Klarna Bank AB e a Revolut, que prestavam serviços</p><p>financeiros online.</p><p>À agência financeira Bloomberg, Martin Davis, CEO da capital de risco</p><p>Draper Esprit Plc (que viu o valor do seu portefólio de empresas subir 51%</p><p>num ano), dizia que havia “um pouco de uma bolha tecnológica” e que esta</p><p>“não ia durar para sempre”. Erin Platts, responsável pelo mercado europeu,</p><p>africano e do Médio Oriental do Silicon Valley Bank, concordava.</p><p>“Algumas destas avaliações são absolutamente arrasadoras. Tem sido</p><p>assim nos EUA há alguns anos e está a chegar aqui”, dizia. Mais do que os</p><p>números de investimentos e de empresas que chegavam a estes valores,</p><p>preocupava-a a velocidade a que tudo isto estava a acontecer.</p><p>A 5 de Julho de 2021, a investidora americana Allison Baum Gates</p><p>também se perguntava, num artigo de opinião publicado na Forbes119, se</p><p>estávamos perante uma bolha no investimento em capital de risco, tendo em</p><p>conta os sucessivos recordes que se estavam a bater.</p><p>“Um ambiente muito acelerado e competitivo nos fundos, combinado</p><p>com o boom do mercados de acções e a ascensão acelerada das valorizações</p><p>em qualquer fase das empresas fez com que muitos perguntassem: ‘Estamos</p><p>numa bolha? Quanto tempo vai demorar?” A resposta só virá com o tempo,</p><p>acabou por concluir, mas de uma coisa Gates estava convicta: “Muito</p><p>provavelmente, as tendências actuais vão continuar”.</p><p>Enquanto não houver respostas (ou a história não se repetir), é provável</p><p>que o mundo continue a assistir à proliferação de unicórnios, como se de</p><p>cogumelos se tratassem – ainda que mais bonitos, mais valiosos e mais</p><p>tecnológicos. Em Portugal, e no mundo, estes negócios já fizeram história,</p><p>leve-nos ela onde levar. Se ganharem asas, talvez o meu próximo livro seja</p><p>sobre Pegasus, o cavalo branco que na mitologia grega simbolizava a</p><p>imortalidade. Porque não?</p><p>105 https://observador.pt/2020/05/31/covid-19-os-tres-meses-que-mudaram-</p><p>tudo-dia-a-dia/</p><p>106 https://www.ine.pt/xportal/xmain?</p><p>xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=414810864&D</p><p>ESTAQUESmodo=2</p><p>107 https://www.publico.pt/2021/05/18/economia/noticia/portugal-maior-</p><p>queda-pib-europa-trimestre-1963008</p><p>108 https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/taxa-de-desemprego-em-2020-</p><p>foi-de-68-em-portugal-699548</p><p>109 https://www.tsf.pt/portugal/economia/desemprego-aumenta-em-2020-</p><p>em-todas-as-regioes-de-portugal-exceto-no-alentejo-e-acores-</p><p>13620874.html</p><p>110 https://issuu.com/aliadosconsulting/docs/aliados_covid_v2</p><p>111 https://www.pwc.ch/en/publications/2020/UBS-PwC-Billionaires-</p><p>Report-2020.pdf</p><p>112 https://www.washingtonpost.com/technology/2021/03/12/musk-bezos-</p><p>zuckerberg-gates-pandemic-profits</p><p>113 https://www.cdc.gov/tobacco/basic_information/e-cigarettes/severe-lung-</p><p>disease.html</p><p>114 https://observador.pt/especiais/feedzai-e-a-avaliacao-de-13-mil-milhoes-</p><p>em-3-semanas-comecaram-a-pingar-investidores/</p><p>115 https://feedzai.com/blog/why-feedzais-revelock-acquisition-is-a-game-</p><p>changer/</p><p>116 https://files.pitchbook.com/website/files/pdf/Q2_2021_PitchBook-</p><p>NVCA_Venture_Monitor.pdf</p><p>117 https://www.cnbc.com/2021/07/13/startup-funding-vc-dotcom-</p><p>bubble.html</p><p>https://observador.pt/2020/05/31/covid19ostresmesesquemudaramtudodiaadia/</p><p>https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=414810864&DESTAQUESmodo=2</p><p>https://www.publico.pt/2021/05/18/economia/noticia/portugalmaiorquedapibeuropatrimestre1963008</p><p>https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/taxadedesempregoem2020foide68emportugal699548</p><p>https://www.tsf.pt/portugal/economia/desempregoaumentaem2020emtodasasregioesdeportugalexcetonoalentejoeacores13620874.html</p><p>https://issuu.com/aliadosconsulting/docs/aliados_covid_v2</p><p>https://www.pwc.ch/en/publications/2020/UBSPwCBillionairesReport2020.pdf</p><p>https://www.washingtonpost.com/technology/2021/03/12/muskbezoszuckerberggatespandemicprofits</p><p>https://www.cdc.gov/tobacco/basic_information/ecigarettes/severelungdisease.html</p><p>https://observador.pt/especiais/feedzaieaavaliacaode13milmilhoesem3semanascomecaramapingarinvestidores/</p><p>https://feedzai.com/blog/whyfeedzaisrevelockacquisitionisagamechanger/</p><p>https://files.pitchbook.com/website/files/pdf/Q2_2021_PitchBookNVCA_Venture_Monitor.pdf</p><p>https://www.cnbc.com/2021/07/13/startupfundingvcdotcombubble.html</p><p>118 https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-07-07/european-tech-s-</p><p>eye-watering-valuations-raise-bubble-fear</p><p>119 https://www.forbes.com/sites/allisonbaumgates/2021/07/05/are-we-in-a-</p><p>venture-capital-bubble/?sh=114353116f08</p><p>https://www.bloomberg.com/news/articles/20210707/europeantechseyewateringvaluationsraisebubblefear</p><p>https://www.forbes.com/sites/allisonbaumgates/2021/07/05/areweinaventurecapitalbubble/?sh=114353116f08</p><p>EPÍLOGO</p><p>Agora que já fizemos esta viagem juntos, olhe para o seu smartphone e faça</p><p>um pequeno exercício: de quantas aplicações prescindiria no seu dia-a-dia?</p><p>Uma? Duas? Dez? Ainda usa agenda analógica ou tem as consultas e</p><p>reuniões marcadas online, com notificações a alertá-lo 10 minutos antes?</p><p>Compra diariamente jornais ou lê as notícias em newsletters e aplicações</p><p>móveis? E como é que faz compras: sai de casa sempre que quer comprar</p><p>um livro, uma camisa ou uma planta? Ou fá-lo a partir do sofá?</p><p>E seria capaz de voltar atrás com todos estes hábitos?</p><p>O mundo muda a cada minuto que passa, ainda que nem sempre o faça na</p><p>mesma direcção ou na direcção desejável. São pequenos passos, quase</p><p>microscópicos, que são dados em várias esferas – da política às ciências e</p><p>às artes – e que, todos juntos, nos preparam para tudo o que ainda há-de vir.</p><p>No decorrer deste processo, tornou-se claro o papel que a revolução digital</p><p>está a ter – transformou completamente a nossa economia. Revolucionou a</p><p>forma como vivemos. E fê-lo a uma velocidade que é difícil de</p><p>acompanhar.</p><p>É por isso que acho que as empresas unicórnio vieram para ficar, ainda</p><p>que, para algumas vingarem, muitas outras acabem por desaparecer. É delas</p><p>que nascem os produtos ou serviços que se propõem a mudar o mundo e</p><p>que farão os hábitos de amanhã. Com mais ou menos milhão, avaliações</p><p>mais ou menos empoladas, parece-me inevitável que o fenómeno perdure</p><p>algum tempo. E que as empresas continuem a manter-se privadas, mesmo</p><p>tendo valores de mercado superiores a algumas cotadas.</p><p>A premissa é simples – depois de a Internet ter mudado a forma como</p><p>vivemos, de o Facebook ter mudado a forma como socializamos e de a</p><p>Apple ter mudado a nossa relação com o telemóvel, a pergunta que se</p><p>coloca é: qual</p><p>será a próxima empresa que vai mudar o que ainda nem</p><p>sequer sabemos que precisa de ser mudado? Onde essa empresa estiver,</p><p>estarão também os investidores. Estará o dinheiro e estará o tesouro</p><p>escondido destes unicórnios, ainda que isso signifique lidar com muitas</p><p>desilusões pelo caminho.</p><p>No que a Portugal diz respeito, desconfio que a tendência se mantenha.</p><p>Os exemplos a que temos vindo a assistir, cada vez mais mediáticos,</p><p>provam que lançar um negócio próprio, criar algo do zero, fazer abanar as</p><p>dinâmicas de determinado mercado não é um destino reservado aos mais</p><p>afortunados. É aberto a todos aqueles que quiserem ousar e tenham muita</p><p>vontade de persistir e de se vulnerabilizar.</p><p>Se há coisa que a história dos unicórnios portugueses me ensinou foi que</p><p>chegar a um estatuto de mil milhões de dólares dá muito trabalho, exige</p><p>muita dedicação e não é um caminho isento de dores, receios e muitos</p><p>erros. Pelo contrário. É normal falhar pelo caminho. Tal como é normal as</p><p>startups reinventarem-se a seguir. Empreender é só mais uma escolha de</p><p>vida, uma alternativa ao status quo e é sobretudo um rasgo de inovação e</p><p>dinamismo. Um rasgo que Portugal precisa.</p><p>No dia em que escrevo estas palavras, sei que já se fez história. Ou</p><p>melhor, José Neves, Paulo Rosado, Cristina Fonseca, Tiago Paiva, Nuno</p><p>Sebastião e Marcelo Lebre fizeram história quando decidiram lançar a</p><p>Farfetch, OutSystem, Talkdesk, Feedzai ou a Remote. Independentemente</p><p>do que vier a seguir, estas eram as empresas portuguesas que, em 2021,</p><p>construíam um caminho de liderança global os mercados em que operavam:</p><p>o comércio online da moda de luxo, o desenvolvimento de software low</p><p>code, de tecnologia para contact centers, a segurança financeira online ou a</p><p>gestão de recursos humanos à distância. E não eram as únicas.</p><p>Com os holofotes apontados para território nacional, havia outras startups</p><p>a afirmar, sem medos, que era uma questão de tempo até se tornarem</p><p>unicórnios. A DefinedCrowd, liderada por Daniela Braga, era uma delas. A</p><p>empresa que quer ajudar a forma como os humanos comunicam com as</p><p>máquinas, através da análise de dados e recurso à inteligência artificial, já</p><p>dava tanto que falar que levou Joe Biden, presidente dos EUA, a convidar a</p><p>fundadora portuguesa a integrar a task force da sua administração que seria</p><p>responsável por montar a estratégia em torno da inteligência artificial. Esta</p><p>task force era composta por 12 pessoas e uma delas era portuguesa.</p><p>Numa reunião que teve por videochamada com Marcelo Rebelo de Sousa,</p><p>no decorrer da pandemia, Daniela Braga disse ao presidente português que</p><p>a sua empresa seria o próximo unicórnio com ADN nacional e alertou para</p><p>a importância de criar condições fiscais que retivessem a sede destas</p><p>empresas no país. Apesar de ter sido fundada por uma portuguesa e de ter</p><p>tecnologia desenvolvida em Portugal, a DefinedCrowd tem sede nos EUA.</p><p>Numa entrevista ao DN Insider, em 2019, Daniela Braga apontava para</p><p>2021 como o ano em que seria um unicórnio, mas graças às receitas que já</p><p>estava a conseguir obter e não a rondas de financiamento externo.</p><p>Em Junho de 2021 era a vez de Virgílio Bento, CEO da Sword Health,</p><p>dizer ao mundo que esperava ser um unicórnio até ao final desse ano.</p><p>Depois de em Janeiro ter fechado uma ronda de investimento de 25 milhões</p><p>de dólares, seis meses depois, a startup portuguesa de fisioterapia digital,</p><p>que combina inteligência artificial com sensores de movimento, fechou</p><p>mais uma, de 85 milhões. E prometia não se ficar por ali.</p><p>Ao jornal Expresso, Virgílio Bento revelou que se quisesse ter esperado</p><p>mais três ou quatro meses para fechar esta ronda conseguiria uma avaliação</p><p>de mais de mil milhões, mas que preferiu “escolher em função do investidor</p><p>certo” para a empresa. E que, por isso, abdicou do marco de unicórnio por</p><p>uns meses. Ou melhor, atrasou-o.</p><p>Certo é que os objectivos estavam traçados: também a Sword Health</p><p>queria liderar o mercado em que operava. Delian Asparuhov, da empresa de</p><p>investimento Founders Fund, chegou mesmo a dizer que a startup</p><p>portuguesa fazia parte do 1% de startups com um crescimento mais</p><p>acelerado nos EUA e que estava posicionada para ser uma das empresas de</p><p>saúde mais importantes do mundo nos cinco anos seguintes. Já no final do</p><p>ano anterior, a Sword tinha sido eleita a melhor startup portuguesa de 2020,</p><p>no ranking da aceleradora BGI.</p><p>Por esta altura, também o CEO da Unbabel, Vasco Pedro, fazia</p><p>declarações no mesmo sentido. O líder da startup especializada em software</p><p>para tradução automática (através de inteligência artificial) acreditava que</p><p>estava cada vez mais perto de ver a sua empresa transformar-se num</p><p>unicórnio. À Exame Informática, Vasco Pedro dizia que não tinha dúvidas</p><p>de que ia chegar à avaliação de mil milhões de dólares em breve. “Em 2017</p><p>sentia mais a ânsia, tinha que ser rápido – agora tenho mais a certeza.” Ao</p><p>Observador, em 2019, e depois de fechar uma ronda de investimento de 60</p><p>milhões de dólares, Vasco Pedro dizia que esperava fazer um IPO dentro de</p><p>quatro ou cinco anos e de ser um unicórnio (de preferência, com asas) em</p><p>dois ou três.</p><p>A lista podia continuar, mas não há nada melhor do que deixarmo-nos</p><p>levar pelas histórias dos portugueses e pela imprevisibilidade de tudo o que</p><p>ainda está por vir. Algumas destas histórias inspiram-nos, outras alertam-</p><p>nos, mas raramente nos deixam indiferentes. São testemunhos de um</p><p>passado que ainda é muito recente para analisar e um vislumbre do que</p><p>poderá ser o nosso futuro.</p><p>A todos os leitores que hoje se olham ao espelho e se perguntam para</p><p>onde vão, a bússola é vossa e só vocês decidem o caminho. Mas se o</p><p>caminho for dar a um unicórnio, tanto melhor. Será um caminho de mil</p><p>milhões de dólares.</p><p>AGRADECIMENTOS</p><p>Escrever este livro foi um enorme desafio. Um desafio que não teria</p><p>ultrapassado sem o apoio incondicional das pessoas mais importantes da</p><p>minha vida. E é por isso que o meu primeiro agradecimento vai para elas.</p><p>Vai para a minha mãe, Célia, que é sempre o meu colo, tenha eu a idade</p><p>que tiver, e que me diz que vou conseguir, mesmo quando acredito</p><p>convictamente que não. Vai para o meu pai, Mário, que sempre fez (e faz)</p><p>tudo para que pudesse correr atrás dos meus sonhos, sem nunca duvidar de</p><p>que são possíveis. Vai para a minha irmã, Mariana, que é um pilar na minha</p><p>vida e cujo abraço me puxa para terra sempre que a minha ansiedade me</p><p>leva para outros mundos. Vai para os meus tios, Francisco e Graciosa, e</p><p>para a minha prima Cátia, por me terem acarinhado e encorajado sempre a</p><p>seguir o meu caminho, por muito atribulado que pudesse ser.</p><p>À minha Arianinha e à pequena Gabriela, uma mensagem para o futuro:</p><p>que este livro vos ajude a acreditar que até os unicórnios são possíveis. Não</p><p>há limites para o que podemos sonhar. E à minha querida avó Júlia, que me</p><p>dizia sempre que tinha de “ir à minha vidinha”, um beijo especial rumo às</p><p>estrelas. Consegui, avó, e tenho saudades tuas.</p><p>Ter o apoio da minha família foi sem dúvida importante, mas este livro</p><p>não teria sido possível sem a confiança que o meu editor, José Prata,</p><p>depositou em mim e nesta minha ideia. Obrigada, José, por teres acreditado</p><p>e por me teres feito sair de zonas de conforto que eu nem sabia que tinha.</p><p>Bem sei que não é fácil acreditar em unicórnios, mas ainda bem que o</p><p>fizeste.</p><p>A verdade é que este livro não é apenas uma condensação de páginas, é o</p><p>reflexo do meu trabalho enquanto jornalista e, sobretudo, da minha</p><p>passagem pelo Observador, onde sempre pude ir atrás das histórias que</p><p>acreditava valerem a pena. E que foram muitas.</p><p>Obrigada, Miguel Pinheiro e Filomena Martins, por tudo o que aprendi</p><p>convosco e pelo voto de confiança que sempre deram ao meu trabalho.</p><p>Nunca esquecerei. Obrigada, João Cândido da Silva, José Vegar e David</p><p>Almas, por terem sido os primeiros a acreditar que o meu caminho se faria</p><p>no jornalismo. Estarei para sempre grata. E obrigada aos colegas e amigos</p><p>jornalistas e editores com quem me cruzei no Bairro Alto e em Alvalade, e</p><p>com quem aprendi tantas coisas. Foi um privilégio trabalhar ao vosso lado,</p><p>beber da</p><p>vossa experiência e do olhar com que viam o mundo e faziam as</p><p>notícias acontecer. Foram a minha escola.</p><p>Às minhas amigas e amigos do coração – da Figueira, de Lisboa, do Obs,</p><p>vocês-sabem-quem-são –, um beijo enorme pelo apoio incansável não só</p><p>neste livro como no meu percurso. Obrigada por me terem dito tantas vezes</p><p>que estava “quase” e que no final tudo valeria a pena. Acredito</p><p>profundamente que só somos bons profissionais se formos boas pessoas. E</p><p>só somos boas pessoas se nos rodearmos das melhores. Tenho a sorte de ter</p><p>mantido relações de amizade ao longo da vida que me provam isto mesmo.</p><p>São pessoas inspiradoras nos mais diversos domínios, que me acrescentam</p><p>dimensões e me fazem acreditar que vale a pena vivermos fiéis a tudo o que</p><p>temos cá dentro, mesmo que isso signifique nadar contra a corrente lá de</p><p>fora. Não há nada melhor do que abraçar a quem tanto quero bem. E os</p><p>vossos abraços são a minha fonte de energia.</p><p>Não posso terminar sem agradecer também a todos aqueles que aceitaram</p><p>conversar comigo para este livro (Stephan Morais, Cristina Fonseca, Paulo</p><p>Rosado, Sérvulo Rodrigues, Jonathan Littman); ao Ricardo Marvão, que</p><p>aceitou escrever o prefácio; à Filipa Jardim da Silva, por todas as reflexões</p><p>dos últimos anos (há viagens das quais já não se volta); aos leitores da</p><p>newsletter Startups e a todas as pessoas no ecossistema com quem fui</p><p>aprendendo a desbravar este caminho novo dos unicórnios. E a si, caro</p><p>leitor e cara leitora, obrigada por ter embarcado nesta viagem comigo. Até à</p><p>próxima.</p><p>Ficha Técnica</p><p>Banda Sonora</p><p>Prefácio</p><p>Introdução</p><p>PRIMEIRA PARTE: NÃO HÁ MAGIA AQUI (MAS PARECE)</p><p>1. Como nasce um unicórnio</p><p>2. Porque é que um unicórnio vale tanto</p><p>3. O poder de uma só ronda</p><p>SEGUNDA PARTE: DINHEIRO EM QUEDA LIVRE</p><p>1. Quem manda é a bolsa</p><p>2. Espelho meu, haverá unicórnio melhor do que o meu?</p><p>3. Póneis com um chifre na testa</p><p>TERCEIRA PARTE: JOSÉ NEVES CHEGA A WALL STREET</p><p>1. O milionário que nunca teve um emprego</p><p>2. Brincar aos legos num ZX Spectrum</p><p>3. A necessidade aguça o engenho</p><p>4. Medo de ter medo</p><p>QUARTA PARTE: A CAVALGADA DOS UNICÓRNIOS</p><p>1. A dor, a sobrevivência e os percalços da OutSystems</p><p>2. O MacBook Air e duas tias freiras: como nasceu a Talkdesk</p><p>3. Adrenalina</p><p>QUINTA PARTE: A PANDEMIA CONTRA-ATACA</p><p>1. Agarrados ao ecrã</p><p>Epílogo</p><p>Agradecimentos</p><p>precisos mais de sete anos para haver um</p><p>evento de liquidez”, escreveu Lee no TechCrunch.</p><p>A propósito de maratonas, uma ressalva: um exit nem sempre garante que</p><p>os investidores venham a recuperar todos os euros ou dólares investidos</p><p>nestas empresas. Mas é isso que é suposto. Segundo as contas da equipa da</p><p>Cowboy Ventures, em 2013, tinham sido precisos sete anos, em média, para</p><p>que 24 das empresas do clube fossem compradas por outras ou admitidas</p><p>em bolsa – exclusão feita para o YouTube e Instagram, que foram</p><p>comprados por mais de mil milhões de dólares dois anos depois de terem</p><p>surgido. À data, avaliando pelas 14 startups que ainda estavam na esfera</p><p>privada do capital, Lee apontava para que a média subisse para mais de oito</p><p>anos.</p><p>As contas da Cowboy Ventures não eram de estranhar. Se pegarmos numa</p><p>lupa e olharmos para os unicórnios portugueses, depressa concluímos o</p><p>seguinte: a Farfetch esperou 12 anos para ver os seus títulos serem</p><p>transaccionados em Wall Street; a OutSystems só atingiu o estatuto de</p><p>unicórnio 17 anos depois de ter nascido e permanecia privada no dia em que</p><p>estas palavras foram escritas; a Talkdesk, fundada em 2011, demorou outros</p><p>7 anos a obter o mesmo rótulo e estava nas mesmas condições; bem como a</p><p>Feedzai, que precisou de 12 anos para o mesmo e se mantinha igualmente</p><p>na esfera privada.</p><p>Em Outubro de 2018 a Talkdesk tornou-se oficialmente um unicórnio. Na</p><p>altura perguntei a Marco Costa – director para Portugal, Europa, Médio</p><p>Oriente e África – se um IPO (sigla em inglês para o processo de admissão</p><p>de uma empresa em bolsa) estaria nos planos da equipa. A resposta revelou</p><p>ambição, mas poucas certezas: “O nosso grande objectivo é continuar a</p><p>fazer crescer a empresa, ter mais clientes, um melhor produto, mais</p><p>robustez e mais solidez, estarmos em mais sítios, mais globais ainda e</p><p>quando tivermos isto tudo vamos ter mais opções. Um IPO será uma boa</p><p>opção, mas temos de ter outras. Não ter opções é que é mau.”13</p><p>Sete meses depois, o CEO Tiago Paiva confirmava ao Observador que “ir</p><p>para a bolsa” era, de facto, “um passo importante na vida de uma empresa”</p><p>e que o objectivo da Talkdesk era continuar a crescer para conseguir</p><p>alcançá-lo.14 “Mas vamos para a bolsa e continuamos, não é um objectivo</p><p>final.”</p><p>Encontrada a designação mitológica para as startups que apaixonam</p><p>investidores a este nível, só foi preciso deixar que o mundo do dinheiro e da</p><p>alta finança fizesse o resto. Em finais de 2019, como se podia comprovar</p><p>pelo ranking da CB Insights, já não era assim tão raro encontrar unicórnios</p><p>em Silicon Valley, nos EUA, Londres (Reino Unido), Telavive (Israel) ou</p><p>até em Portugal. Dois anos depois ainda menos raro era. E, ainda assim, o</p><p>clube unicorniano tinha sido reduzido às startups que negociavam estas</p><p>rondas de forma privada, à porta fechada, onde só os fundos de capital de</p><p>risco e empreendedores tomavam a palavra. Ou seja, longe do escrutínio da</p><p>opinião pública, dos mercados e dos supervisores financeiros.</p><p>Nenhuma destas distâncias impediu a Uber (que liderava o ranking dos</p><p>unicórnios em 2019) de valer em 2016, três anos antes de ser uma empresa</p><p>cotada, cerca de 68,1 mil milhões de dólares15, mais do que todas as</p><p>empresas da bolsa portuguesa daquele ano juntas – valor que continuou a</p><p>subir até ao momento do tão esperado IPO.</p><p>Esperado, porque a especulação sobre a eventual entrada em bolsa da</p><p>polémica Uber – fundada pelo também muito polémico Travis Kalanick, em</p><p>2009 –, sempre foi muita. E só terminou depois de o novo presidente</p><p>executivo, Dara Khosrowshahi, chegar à empresa.</p><p>No dia em que se estreou na bolsa de Nova Iorque, a 10 de Maio de 2019,</p><p>as acções da startup que prometia revolucionar o sector da mobilidade</p><p>começaram a ser negociadas a 45 dólares e a empresa valia 82,4 mil</p><p>milhões de dólares. Mas poucas horas depois de ter tocado o sino em Wall</p><p>Street, já havia um sabor amargo na boca dos muitos investidores: às 11h57,</p><p>as acções do reinventado unicórnio – nessa altura, a Uber prometia uma</p><p>liderança e cultura organizacional diferente da era de Kalanick – tinham</p><p>caído 8%. A empresa valia menos do que o montante apurado no arranque</p><p>da sessão, 71 mil milhões de dólares, e os títulos vendiam-se, a essa hora, a</p><p>41,44 dólares cada.16</p><p>Não é incomum que as estreias em bolsa desiludam as expectativas –</p><p>aconteceu o mesmo com o Facebook, em 2012 – e no final do dia do IPO</p><p>confirmava-se um dos piores cenários: a Uber encerrou a sessão a valer</p><p>menos do que o que valia no mercado privado: 69,7 mil milhões de dólares.</p><p>Em jeito de comparação, o último investimento que a Uber, recebeu, antes</p><p>de ser admitida em bolsa, veio do PayPal: a empresa de pagamentos online</p><p>investiu 500 milhões de dólares, avaliando a tecnológica fundada por Travis</p><p>Kalanick em 78,8 mil milhões.17</p><p>As expectativas para a entrada em bolsa da Uber estavam, por isso, em</p><p>alta e os olhos do universo tecnológico estavam todos virados para Wall</p><p>Street – o IPO da Uber prometia ser a maior entrada em bolsa nos EUA</p><p>desde que a empresa chinesa Alibaba tinha feito o mesmo, em 2014. Só</p><p>para o leitor ter uma ideia: o intervalo máximo do preço das acções</p><p>estipulado para o dia da estreia em bolsa avaliava a empresa em 91 mil</p><p>milhões de dólares, com os títulos a serem negociados a 50 dólares cada.</p><p>Foi uma descida significativa. E, nos dias seguintes, as acções da Uber</p><p>continuaram a rolar escada abaixo, perdendo um quinto do valor.18</p><p>Há sangue de unicórnio nas ruas</p><p>Serve a história da Uber para lembrar que, redefinidas as regras do jogo</p><p>“unicórnios” e tirando as empresas públicas da listagem, a empresa fundada</p><p>por Kalanick tomou de assalto o clube mitológico. E durante muito tempo</p><p>manteve-se como a empresa mais valiosa do mercado privado tecnológico,</p><p>a nível mundial.</p><p>Líder do ranking unicorniano da CB Insights, só em Novembro de 2018</p><p>foi superada pela ByteDance, a empresa chinesa de inteligência artificial</p><p>responsável pelo sucesso que a plataforma de vídeo TikTok gozava em</p><p>2020 e 2021. Assim que a Uber saiu do mercado privado para o público, o</p><p>seu valor em bolsa indicava aquilo que alguns analistas receavam: a startup</p><p>de mobilidade, que encheu os noticiários de polémicas e promessas de</p><p>carros voadores e autónomos, parecia estar sobrevalorizada. Não valia, à</p><p>data da sua entrada em bolsa, aquilo que os investidores pagaram por ela no</p><p>mercado privado. E não era a única.</p><p>Depois de a Uber ter abandonado o clube mitológico da CB Insights, em</p><p>2019, e ter entrado na bolsa nova-iorquina, as atenções pareciam ter-se</p><p>voltado para o lado de lá do mundo, para a China: avaliada em 75 mil</p><p>milhões de dólares, a ByteDance era agora a nova líder dos unicórnios.</p><p>Logo a seguir, na vice-liderança, estava a app rival da Uber na China: a</p><p>Didi Chuxing, com uma avaliação estimada em 56 mil milhões de dólares.</p><p>Foi a esta empresa que a norte-americana Uber vendeu o seu negócio no</p><p>mercado chinês, em Agosto de 2016. A operação que envolveu as duas</p><p>empresas ficou avaliada em 35 mil milhões de dólares19, mas não se</p><p>chegaram a saber oficialmente que valores foram transaccionados. Por não</p><p>serem cotadas, estas startups não eram obrigadas a divulgar este tipo de</p><p>informação, que ficava, então, à mercê das fugas e da investigação</p><p>jornalística.</p><p>Em terceiro lugar, regressamos às startups norte-americanas, mas também</p><p>às já habituais polémicas: avaliada em 50 mil milhões de dólares, no final</p><p>de 2019, estava a maior fabricante de cigarros electrónicos dos EUA, a</p><p>JUUL, que chegou ao mercado português em Outubro de 2019.</p><p>Na pesada bagagem, esta startup trazia já várias polémicas e</p><p>investigações: da Comissão Federal de Comércio dos EUA, da Food and</p><p>Drug Administration (que regula o sector da alimentação e medicamentos) e</p><p>da Procuradoria do estado da Califórnia.20 No centro das críticas, estava o</p><p>aumento no número de menores que passou a fumar cigarros electrónicos</p><p>(apesar de não serem consumidores de cigarros tradicionais) e o surto de</p><p>doenças pulmonares e mortes ligadas ao seu consumo.</p><p>A 4 de Outubro de 2019, o centro para a prevenção e controlo de doenças</p><p>(CDC,</p><p>na sigla em inglês) dos Estados Unidos revelava que tinham sido</p><p>confirmados 1080 casos prováveis de doenças relacionadas com a</p><p>vaporização dos cigarros electrónicos em 48 estados norte-americanos e nas</p><p>ilhas Virgens. Pelo menos 18 pessoas morreram, em 15 estados, com o</p><p>mesmo tipo de ligação, sendo que havia, à data, mais mortes a serem</p><p>investigadas.21 No centro de todas estas notícias, permaneciam as dúvidas</p><p>sobre as reais consequências da tecnologia usada pela JUUL.</p><p>Por esta altura, também a portuguesa Farfetch aparecia em páginas reais e</p><p>virtuais dos jornais no país: a startup liderada por José Neves enfrentava</p><p>uma acção judicial colectiva de investidores nos EUA por alegadas</p><p>violações da lei federal de valores mobiliários. Este tipo de acções eram</p><p>comuns e costumavam acontecer quando empresas com IPO promissores</p><p>revelam posteriormente perdas de capital – a Uber e a concorrente Lyft</p><p>passaram pelo mesmo.22 José Neves não estava sozinho.</p><p>Talvez por isso não seja de estranhar que, em finais de 2019, “os</p><p>vigilantes dos unicórnios” estivessem todos com as antenas no ar. “Há</p><p>sangue de unicórnio nas ruas”, escreveu Michael P. Regan23, editor de</p><p>mercados da Bloomberg, a 3 de Outubro de 2019.</p><p>“O que temos agora é um rebanho de unicórnios com avaliações</p><p>empoladas, que estão a tentar vender-se numa bolsa de valores, onde os</p><p>investidores estão dispostos a jogar à defesa. E que preferem não fazer</p><p>apostas arriscadas em empresas que já não estão na fase de ambição e que,</p><p>em muitos casos, têm pouco lucro.” Michael P. Regan não fazia ideia de</p><p>como estaria o mundo (e os unicórnios) dois anos depois.</p><p>1 https://techcrunch.com/2013/11/02/welcome-to-the-unicorn-club/</p><p>2 https://www.crunchbase.com/organization/cowboy-ventures#section-</p><p>overview</p><p>3 https://bits.blogs.nytimes.com/2015/07/05/unicorns-a-fitting-word-for-its-</p><p>time-and-place/</p><p>4 https://www.cnbc.com/2021/06/28/facebook-hits-trillion-dollar-market-</p><p>cap-for-first-time.html</p><p>5 https://www.pordata.pt/Europa/Produto+Interno+BrutEuro)-1786</p><p>6 https://www.cbinsights.com/research-unicorn-companies</p><p>7 https://www.theverge.com/2015/3/3/8140367/fab-acquired-pch-jason-</p><p>goldberg</p><p>8 https://www.vox.com/2016/1/6/11588572/gilt-groupe-to-announce-sale-to-</p><p>saks-fifth-avenue-owner-as-soon-as</p><p>9 https://www.bloomberg.com/news/articles/2013-11-18/how-zulily-turned-</p><p>distracted-moms-into-a-red-hot-tech-ipo</p><p>10 https://techcrunch.com/2012/04/09/facebook-to-acquire-instagram-for-1-</p><p>billion/</p><p>11 https://www.ft.com/content/e20f6c92-c1d0-11e4-abb3-00144feab7de</p><p>12 https://www.forbes.com/profile/yuri-milner/#3e01507d5e26</p><p>13 https://observador.pt/especiais/a-talkdesk-vale-mil-milhoes-de-euros-e-o-</p><p>terceiro-unicornio-com-adn-portugues/</p><p>14 https://observador.pt/especiais/tiago-paiva-ceo-da-talkdesk-se-as-coisas-</p><p>correrem-mal-pode-custar-nos-milhoes/</p><p>15 https://www.vox.com/2018/2/9/16996834/uber-latest-valuation-72-</p><p>billion-waymo-lawsuit-settlement</p><p>https://techcrunch.com/2013/11/02/welcometotheunicornclub/</p><p>https://www.crunchbase.com/organization/cowboyventures#sectionoverview</p><p>https://bits.blogs.nytimes.com/2015/07/05/unicornsafittingwordforitstimeandplace/</p><p>https://www.cnbc.com/2021/06/28/facebookhitstrilliondollarmarketcapforfirsttime.html</p><p>https://www.pordata.pt/Europa/Produto+Interno+BrutEuro)1786</p><p>https://www.cbinsights.com/researchunicorncompanies</p><p>https://www.theverge.com/2015/3/3/8140367/fabacquiredpchjasongoldberg</p><p>https://www.vox.com/2016/1/6/11588572/gilt-groupe-to-announce-sale-to-saks-fifth-avenue-owner-as-soon-as</p><p>https://www.bloomberg.com/news/articles/2013-11-18/how-zulily-turned-distracted-moms-into-a-red-hot-tech-ipo</p><p>https://techcrunch.com/2012/04/09/facebooktoacquireinstagramfor1billion/</p><p>https://www.ft.com/content/e20f6c92c1d011e4abb300144feab7de</p><p>https://www.forbes.com/profile/yurimilner/#3e01507d5e26</p><p>https://observador.pt/especiais/atalkdeskvalemilmilhoesdeeuroseoterceirounicorniocomadnportugues/</p><p>https://observador.pt/especiais/tiagopaivaceodatalkdeskseascoisascorreremmalpodecustarnosmilhoes/</p><p>https://www.vox.com/2018/2/9/16996834/uberlatestvaluation72billionwaymolawsuitsettlement</p><p>16 https://www.bloomberg.com/news/articles/2019-05-10/uber-indicated-to-</p><p>below-ipo-price</p><p>17 https://techcrunch.com/2019/04/26/paypal-makes-a-big-marketplace-</p><p>play-with-its-500m-investment-in-uber/</p><p>18 https://observador.pt/especiais/uber-dececiona-na-bolsa-como-o-</p><p>facebook-em-2012-a-reviravolta-pode-repetir-se/</p><p>19 https://www.cnbc.com/2016/08/01/chinas-didi-chuxing-to-acquire-ubers-</p><p>chinese-operations-wsj.html</p><p>20 https://www.wsj.com/articles/federal-prosecutors-conducting-criminal-</p><p>probe-of-juul-11569268759?mod=e2tw</p><p>21 https://www.cbsnews.com/news/vaping-illnesses-related-to-vaping-reach-</p><p>1000-18-dead-2019-10-03/</p><p>22 https://observador.pt/2019/09/26/farfetch-acusada-de-declaracoes-</p><p>enganadoras-aos-mercados-nos-eua/</p><p>23 https://www.bloomberg.com/news/articles/2019-10-03/after-latest-ipo-</p><p>setbacks-there-s-unicorn-blood-in-the-streets</p><p>https://www.bloomberg.com/news/articles/20190510/uberindicatedtobelowipoprice</p><p>https://techcrunch.com/2019/04/26/paypalmakesabigmarketplaceplaywithits500minvestmentinuber/</p><p>https://observador.pt/especiais/uberdececionanabolsacomoofacebookem2012areviravoltapoderepetirse/</p><p>https://www.cnbc.com/2016/08/01/chinasdidichuxingtoacquireuberschineseoperationswsj.html</p><p>https://www.wsj.com/articles/federalprosecutorsconductingcriminalprobeofjuul11569268759?mod=e2tw</p><p>https://www.cbsnews.com/news/vapingillnessesrelatedtovapingreach100018dead20191003/</p><p>https://observador.pt/2019/09/26/farfetchacusadadedeclaracoesenganadorasaosmercadosnoseua/</p><p>https://www.bloomberg.com/news/articles/20191003/afterlatestiposetbackstheresunicornbloodinthestreets</p><p>CAPÍTULO 2</p><p>PORQUE É QUE UM UNICÓRNIO VALE TANTO</p><p>Quando, em Março de 2015, entrei pela primeira vez na antiga fábrica de</p><p>sedas que se converteu no centro empresarial da Lionesa – onde se situava</p><p>aquele escritório da Farfetch –, sabia que tinha de ser rápida e que não me</p><p>podia esquecer de nenhuma das muitas perguntas que levava comigo de</p><p>Lisboa. A entrevista ia ser gravada em vídeo, tinha uma componente de</p><p>contexto, mais pessoal e económica, e um questionário de 25 perguntas de</p><p>resposta rápida para que os leitores do Observador pudessem conhecer</p><p>melhor o português que tinha caído nas boas graças do ecossistema</p><p>tecnológico. José Neves tinha reservado meia hora para aquela entrevista,</p><p>sem atrasos. E não havia tempo para mais.</p><p>Três anos e meio antes de vermos a bandeira portuguesa hasteada na</p><p>entrada da bolsa de Nova Iorque, em Wall Street, o escritório do primeiro</p><p>unicórnio com ADN português já se destacava do resto do tecido</p><p>empresarial do nosso país – nas cores, no arrojo, na dimensão, no escorrega</p><p>vermelho em espiral que ocupava parte do piso inferior, na sala para</p><p>ginástica e também na sala de jogos onde os trabalhadores podiam</p><p>descomprimir. Mais tarde, haveria de ter também uma casa na árvore e</p><p>outros escritórios irmãos no Porto e em Lisboa – a par do mundo todo.</p><p>Naquela altura, José Neves, então com 40 anos, ainda não era uma das</p><p>pessoas mais ricas do nosso país, mas caminhava para o pódio. Quatro anos</p><p>depois, em Julho de 2019, o fundador da já cotada Farfetch tinha uma</p><p>fortuna pessoal avaliada em 1010 milhões de euros e era o quarto português</p><p>mais rico da listagem feita pela revista Forbes24, precedido de Fernanda</p><p>Amorim & família (no topo, com 4173 milhões de euros em fortuna), de</p><p>Alexandre Soares dos Santos (em segundo lugar, com 3554 milhões) e de</p><p>Vítor da Silva Ribeiro & família (em terceiro, com 1192 milhões). Mas, em</p><p>Março de 2015, tudo isto era – ainda – uma imagem distante.</p><p>Do sítio onde fizemos aquela entrevista, no primeiro andar do escritório</p><p>da Lionesa, podíamos ver bem o open space onde trabalhavam os</p><p>programadores que punham a loja online de moda de luxo a funcionar.</p><p>Entre José Neves e o escorrega vermelho, vários monitores, cadeiras e</p><p>mesas brancas corridas compunham o meu campo de visão. Era ali que se</p><p>construía a tecnologia que tinha convencido o grupo de comunicação social</p><p>Condé Nast International, por exemplo, a transformar a Farfetch</p><p>num</p><p>negócio de mil milhões de dólares, quando investiu na quinta ronda de</p><p>investimento (Série D) da empresa.</p><p>À data, aquela tecnologia chegava a 450 mil clientes que estavam</p><p>espalhados por 180 países, suportava nove milhões de visitas mensais e</p><p>aglomerava 125 mil produtos de luxo de mais de 1500 marcas. Só nos</p><p>escritórios portugueses da empresa trabalhavam 300 pessoas e, no mundo</p><p>todo, a startup empregava mais de 600 colaboradores.</p><p>Se estes números o impressionam, anote que, por esta altura, a Farfetch</p><p>tinha um quinto da dimensão que apresentava quando se estreou na bolsa de</p><p>Nova Iorque – a 30 de Junho de 2018, a empresa de José Neves empregava</p><p>3009 pessoas em 13 escritórios espalhados por 9 países. Só em Portugal,</p><p>empregava 1690 colaboradores – 5 vezes mais.</p><p>E, na minha cabeça, persistia a dúvida: por que é que uma coisa que nem</p><p>sequer é palpável, que assenta num código binário, vale tanto? Como é que</p><p>uma loja online se transforma num unicórnio?</p><p>Os negócios assentes na inovação passam todos por esta premissa:</p><p>ninguém investe apenas no que é mostrado no momento do pitch (na</p><p>apresentação breve que o fundador faz sobre a sua startup), mas antes no</p><p>potencial daquilo que vê. Ou seja, investe no futuro. E investe por camadas</p><p>– as tais rondas de investimento Série A, B ou C e por aí fora. Em teoria,</p><p>quanto mais dinheiro estes fundos injectarem de forma privada nestas</p><p>empresas, mais elas valem (a não ser que aconteça um downround, ou seja,</p><p>quando uma empresa faz uma nova ronda de financiamento a um preço</p><p>inferior à da anterior, o que não é muito comum).</p><p>Por cada montante injectado, o fundo ou investidor fica com uma</p><p>percentagem sobre o capital accionista da empresa. De uma forma muito</p><p>simplista isto explica-se assim: se eu investir 10 milhões de euros na startup</p><p>X e ficar com 10% da empresa – sendo que os sócios fundadores ficam com</p><p>os outros 90% –, isso quer dizer que a startup X passou a valer 100 milhões</p><p>de euros nessa ronda.</p><p>Stephan Morais, que co-fundou a sociedade de capital de risco Indico</p><p>Capital Partners em 2019, explicou-me o processo desta forma: se um</p><p>empreendedor precisar de 1 milhão de euros para os próximos 12 meses e</p><p>diluir 20% do seu capital pelos investidores que lhe derem esse dinheiro, a</p><p>empresa passa, então, a valer 5 milhões. “Mas se, numa ronda seguinte,</p><p>outros investidores meterem 50 milhões por 20% da empresa, então 5 vezes</p><p>50 dá 250. A empresa passou a valer 250 milhões.”</p><p>Mas, atenção: neste cenário, o valor da empresa não estava escrito em</p><p>lado nenhum, foram os investidores e os fundadores que o calcularam. À</p><p>medida que mais investidores forem entrando e que mais contas sejam</p><p>feitas, esse valor vai sofrendo alterações – sempre por estimativa, sempre</p><p>por percepção e potencial. E sempre à porta fechada.</p><p>Cada ronda desta série de rondas vai crescendo em valor, mas também</p><p>nos objectivos definidos para aquele projecto em específico, que são, regra</p><p>geral, assentes em métricas de crescimento e vendas cada vez mais</p><p>agressivas à escala global. Uma startup é, por natureza, um projecto</p><p>empresarial que promete escalar globalmente de forma muito rápida.</p><p>Porque só assim conseguirá a sustentabilidade do modelo de negócio e, por</p><p>sua vez, ter um exit que permita aos investidores ter retorno – refiro-me à</p><p>tal aquisição ou entrada em bolsa.</p><p>Até que a startup X conquiste o mundo todo e seja rentável e lucrativa,</p><p>alguém tem de pagar as contas. Refiro-me aos salários da equipa (que</p><p>também tem de crescer a passo de galope), aos escritórios que são abertos</p><p>no mundo todo, aos novos mercados, aos produtos que têm de ser</p><p>optimizados, ao hardware, ao marketing, às licenças para operar, aos</p><p>advogados para resolver os problemas legais – que, acredite, irão surgir – e</p><p>aos erros, os vários erros e falhanços que se vão cometendo pelo caminho.</p><p>Esse alguém que paga a festa é constituído pelos investidores em capital</p><p>de risco, e é para isso que estas rondas também servem. As regras do jogo</p><p>são estas e não as do sector empresarial mais tradicional. E isto é um ponto</p><p>que convém ficar claro, logo aqui, de início.</p><p>“Um investidor de capital de risco quer obter retornos exponenciais. O</p><p>que significa que, idealmente, a startup em que investe deve dar-lhe um X</p><p>de retorno. É disso que os investidores dos fundos de capitais de risco estão</p><p>à espera. E é por isso que arriscam com capital: para apanharem a grande</p><p>onda. É importante atacarem um grande mercado que está a crescer”, disse-</p><p>me numa conversa para o Observador em 2016 Eze Vidra, ex-managing</p><p>partner da Google Ventures – fundo de investimento em capital de risco da</p><p>gigante tecnológica.</p><p>Voltando às minhas dúvidas: por que é que uma coisa que nem sequer é</p><p>palpável, que é código, vale tanto? Porque assim o determinam os</p><p>investidores, com base nas métricas a que têm acesso no momento em que</p><p>investem e o potencial que representam.</p><p>“É altamente subjectivo, mas o que é que é o preço? O preço é o que as</p><p>pessoas estão dispostas a pagar. É tipo magia. Acaba por haver aqui</p><p>métricas comparáveis: se uma startup equivalente, com estas vendas, foi</p><p>transaccionada por X, então, esta também há-de valer mais ou menos entre X</p><p>e Y”, explicou-me Stephan Morais, que, através da Indico, lançou o</p><p>primeiro fundo de venture capital português, independente e privado, em</p><p>Janeiro de 2019.</p><p>Não há, então, “exactidão matemática nenhuma” nas contas que avaliam</p><p>uma empresa. “Isso não existe. É sempre uma aproximação. Só que nas</p><p>startups a aproximação é mais difícil, porque não há resultados positivos e</p><p>porque a incerteza é muito grande”, acrescentou Stephan.</p><p>Voltemos então às métricas – as bolas de cristal que permitem aos</p><p>investidores vislumbrar o que aí vem. Segundo o fundador da Indico, “os</p><p>unicórnios, teoricamente, são empresas que estão mais avançadas e têm</p><p>métricas muito sólidas. Podem não ganhar dinheiro, mas têm vendas e um</p><p>resultado líquido como outra empresa normal.”</p><p>Quando falamos em startups, são as métricas que traduzem o presente</p><p>daquela empresa em números, mas são os múltiplos que representam o que</p><p>se prevê que aconteça no futuro. Como não há fluxo de caixa nenhum (ou</p><p>há muito pouco), a única forma de estimar o valor da empresa é fazendo</p><p>múltiplos das vendas, explicou-me o Stephan. “No fundo, estás a acreditar</p><p>que aquilo [as contas] não há-de estar sempre no vermelho”, ou seja, a dar</p><p>prejuízo. Haverá um momento em que o jogo muda e o resultado começa a</p><p>ser positivo.</p><p>Não referi anteriormente que as métricas eram bolas de cristal? “É tudo</p><p>futurologia, é tudo magia. Não tem nada de científico, tem aquilo que se</p><p>chama múltiplos de mercado. É uma suposição que fazes: dentro deste</p><p>padrão, isto vale três vezes as vendas, por exemplo”, explicou o gestor. E é</p><p>por isso que o título do primeiro capítulo deste livro não é de todo</p><p>enganador: no que toca a unicórnios multimilionários, não há, na verdade,</p><p>magia nenhuma que os caracterize. Há risco e expectativa. Muito risco e</p><p>alguma expectativa. E uma forte crença de que todo este cocktail poderá um</p><p>dia funcionar.</p><p>O mundo é de quem arrisca</p><p>Não seríamos portugueses se não sentíssemos um arrepio na pele quando</p><p>ouvimos a palavra “risco”. Estou certa? Não querendo entrar em</p><p>generalizações que possam induzir-nos em erro, penso que não é</p><p>imprudente afirmar que a cultura europeia é, por tradição, mais avessa ao</p><p>risco do que a norte-americana. Se olhássemos para os números do ranking</p><p>da CB Insights a 20 de Novembro de 2019, eles diziam-nos o seguinte:</p><p>cerca de metade dos unicórnios do mundo eram, à data, norte-americanos</p><p>(207), e a Europa, com os seus 50 unicórnios, perdia em larga escala para a</p><p>China, com 101 empresas. Em jeito de comparação, Israel apresentava-se</p><p>no ranking com 6 startups, o Brasil com 5 e a Índia com 18.</p><p>Apesar de, nos últimos anos, a imprensa ter dado conta de que havia</p><p>startups com ADN nacional com um chifre em espiral na testa, só a Feedzai</p><p>tinha efectivamente uma sede em Portugal. As outras tinham subsidiárias.</p><p>Apesar de desenvolverem a tecnologia no nosso país, as sedes da Talkdesk,</p><p>OutSystem e Remote estavam</p><p>registadas nos EUA; e a da Farfetch, no</p><p>Reino Unido.</p><p>Quando, em 2021, o ministro da Economia e da Transição Digital, Pedro</p><p>Siza Vieira, usou o Twitter para felicitar a Feedzai, escreveu que esta era</p><p>“uma notícia importante para Portugal, que passava a contar com quatro</p><p>‘startup unicórnios’”. Nuno Sebastião fez questão de lhe explicar que não</p><p>era bem assim; a empresa de Coimbra era a primeira “com sede em</p><p>Portugal e segundo a lei portuguesa a valer mais de mil milhões”.</p><p>Mas voltando ao “risco”, condição sine qua non para alguém se aventurar</p><p>nas lides do empreendedorismo, sobretudo o tecnológico. Escrevia eu que</p><p>os portugueses têm, por natureza, alguma dificuldade em tomar decisões de</p><p>risco. Não será por acaso. E tão pouco seremos os únicos.</p><p>Etimologicamente, a palavra “risco” deriva do termo grego de navegação</p><p>marítima rhizikón, que descreve um perigo. A economista e jornalista</p><p>Allison Schrager explica, no livro Um Economista Entra Num Bordel e</p><p>Noutros Lugares Inesperados Para Compreender o Risco25, que, com a</p><p>exploração do Novo Mundo, o conceito de “risco” se tinha alterado um</p><p>pouco. O tal perigo deixou de estar à mercê do destino, passando a ser</p><p>encarado, então, como algo possível de ser controlado pelas pessoas. Com a</p><p>evolução para o alto-alemão médio, a palavra rysigo passou a significar</p><p>“ousar, tomar iniciativa, empreender, aspirar ao sucesso económico”. Ou</p><p>seja, unicórnios?</p><p>“Quando as pessoas ouvem a palavra ‘risco’, pensam imediatamente no</p><p>mais grave dos cenários, algo terrível como perder o emprego, as poupanças</p><p>ou um companheiro. No entanto, se queremos melhorar as nossas vidas,</p><p>temos de correr riscos. Temos de entrar no jogo, mesmo que com isso venha</p><p>a possibilidade de sairmos a perder. Se desejarmos ter um relacionamento</p><p>amoroso, arriscamo-nos a que nos partam o coração. Se queremos progredir</p><p>na nossa carreira, temos de nos voluntariar para projectos nos quais</p><p>podemos até falhar redondamente. Se passarmos a vida a evitar o risco, não</p><p>iremos a lado nenhum. Tecnicamente, o risco inclui tudo o que pode vir a</p><p>acontecer – tanto de bom como de mau –, bem como o quão provável é</p><p>cada uma destas hipóteses”, escreveu Schrager.</p><p>Com o “perigo” e “o sucesso económico” de braço dado neste conceito,</p><p>não é então de estranhar que o combustível que alimente as empresas que</p><p>valem milhares de milhões de dólares seja o venture capital, ou seja, o</p><p>capital de risco. São as sociedades ou fundos deste tipo de investimento</p><p>(bem como os business angels, ou seja, investidores particulares) que</p><p>alimentam esta cadeia de rondas.</p><p>Como explica a Associação Portuguesa de Capital de Risco26, “a</p><p>participação destas entidades no capital das sociedades é temporária e, na</p><p>generalidade dos casos, minoritária. O operador de capital de risco intervém</p><p>na empresa com o objectivo de criar valor, alienando a sua participação</p><p>num prazo médio de três a sete anos”. Lembra-se de, há algumas páginas,</p><p>ter lido que Aileen Lee concluiu que eram “precisos mais de sete anos para</p><p>haver um evento de liquidez” nestes unicórnios? Começa a fazer sentido?</p><p>Sem exigir garantias reais ou pessoais caso o investimento não chegue a</p><p>bom porto, este tipo de operações são uma espécie de tudo ou nada para</p><p>quem investe: em caso de sucesso, as mais-valias podem ser muitas, mas,</p><p>em caso de fracasso, o investidor pouco ou nada recupera. “Arriscarmo-nos</p><p>a perder é o preço que pagamos pela possibilidade de ganharmos mais”,</p><p>escreveu Allison Schrager.</p><p>E quando é que estes fundos decidem que estão dispostos a perder?</p><p>Quando se focam nos eventuais ganhos: “Quanto maior a potencial</p><p>recompensa, maior o risco que temos de assumir. Porém, riscos maiores</p><p>nem sempre representam ganhos maiores”, acrescentava a economista no</p><p>mesmo livro.</p><p>Já em 2015, sete meses depois de ter sido noticiado o nascimento do</p><p>primeiro unicórnio com raízes portuguesas (a Farfetch), Stephan Morais –</p><p>na altura, administrador-executivo da Caixa Capital – dizia-me, numa</p><p>entrevista ao Observador, que este tipo de investimento era “um negócio de</p><p>paciência e ritmo, mas também de grande ambição”. E que era importante</p><p>que os fundos investissem nas startups que consideravam promissoras com</p><p>“montantes adequados e diluição adequada”.27</p><p>Quer isto dizer o seguinte: calma, empreendedores. Nem sempre uma</p><p>ronda elevada se traduz em benefícios elevados; nem sempre uma</p><p>valorização elevada é vantajosa para a fase da vida em que a startup se</p><p>encontra. Pode, inclusive, ser prejudicial às rondas que a empresa terá de</p><p>fazer a seguir para dar outras passadas: se o caminho é ascendente e o valor</p><p>da primeira ronda for já muito alto, pode, então, deixar de haver espaço no</p><p>mercado para as subsequentes. E isso será um problema.</p><p>Como explicava Stephan Morais, a propósito do investimento de 1</p><p>milhão de euros que a Caixa Capital tinha feito nesse ano na Codacy,</p><p>startup de análise de código co-fundada por Jaime Jorge e João Caxaria, “as</p><p>rondas devem ser graduais, nem demasiado rápidas nem demasiado lentas.</p><p>Têm de ser ao ritmo certo”. E acrescentou: “As rondas de investimento</p><p>devem ser uma consequência e não um objectivo. O objectivo da empresa</p><p>deve ser tornar-se robusta, saudável e crescer de forma sustentada”. Por esta</p><p>altura, a Codacy tinha 3 anos de vida. E em 2014 tinha vencido a</p><p>competição de startups da Web Summit, na sua penúltima edição em</p><p>Dublin, na Irlanda.</p><p>Quatro anos depois, em Outubro de 2019, a Codacy levantava mais 7</p><p>milhões de euros28, numa ronda de investimento liderada pela capital de</p><p>risco alemã Join Capital e com a participação de outros investidores. Com</p><p>um escritório em Lisboa e outro em Nova Iorque, empregava cerca de 50</p><p>pessoas, à data, e estava a contratar mais 30.</p><p>Um mês depois, quando voltámos a conversar para a Rádio Observador,</p><p>durante a Web Summit de 2019, Jaime Jorge revelou que facturava “alguns</p><p>milhões de euros” e que desejava que, no espaço de cinco anos, “pudesse</p><p>estar a pensar num possível IPO”. Haveria novo unicórnio português à</p><p>vista? “[Ser unicórnio] é um processo natural, a avaliação é uma coisa</p><p>natural. Se acontecer, tanto melhor.”</p><p>O que é certo é que a maioria das avaliações destas startups não chegam</p><p>sequer a ser conhecidas, a não ser que sejam a esta escala – a de unicórnio.</p><p>Muitos empreendedores e investidores decidem revelar o valor das rondas</p><p>de investimento que fecham, mas não o montante em que ficam avaliadas.</p><p>Até porque, a bem da verdade, como me explicava, no final de 2016, Paulo</p><p>Soares de Pinho – à data, director académico do The Lisbon MBA –, estas</p><p>avaliações privadas e o seu respectivo peso em nada se comparam às</p><p>públicas.29</p><p>“É difícil dizer realmente quanto vale uma startup, mesmo quando</p><p>olhamos para uma ronda de capital de risco. Uma ronda não é uma emissão</p><p>de acções em bolsa. Numa emissão de acções em bolsa, vende-se uma</p><p>determinada quantia de acções a um determinado preço. Numa ronda de</p><p>capital de risco, não é isso que acontece. As acções têm um determinado</p><p>preço, mas, depois, há um conjunto de cláusulas que, na prática, afectam a</p><p>valorização daquelas acções.”</p><p>Ou seja, se comprar acções a determinado valor numa ronda e ficar com</p><p>20% da empresa, isso não quer dizer que depois vá receber 20% do capital</p><p>próprio quando a empresa for vendida. Pode até receber muito mais do que</p><p>isso, o que na prática até desvaloriza o preço da ronda, explicou o professor.</p><p>“Por outras palavras, duas empresas que numa ronda tenham conseguido a</p><p>mesma valorização podem gerar retornos completamente diferentes para os</p><p>investidores, o que torna as coisas muito pouco comparáveis.”</p><p>O especialista em private equity explicou ainda que o valor de uma</p><p>empresa passa pela sua capacidade de gerar dinheiro no futuro e que “a</p><p>maior parte dos pseudo-empreendedores” não percebia que, num contracto</p><p>com um investidor, “a avaliação importava muito pouco”.</p><p>“Você, como empreendedor, pode ter uma avaliação da empresa tão</p><p>grande que fica com 80%, mas se a saída for por um preço baixo, você pode</p><p>receber zero, dependendo do contracto que estabeleceu com o investidor. A</p><p>avaliação muito alta pode não</p><p>ter servido de nada. As avaliações de capital</p><p>de risco não são comparáveis com as avaliações em bolsa. É preciso ter</p><p>sempre este cuidado”, disse-me.</p><p>E, por falar em rondas, vamos a elas?</p><p>24 https://www.forbespt.com/listas/os-10-mais-ricos-de-portugal-2/?geo=pt</p><p>25 Referência bibliográfica: “Um economista entra num bordel e noutros</p><p>lugares inesperados para compreender o risco”, publicado pela Vogais, em</p><p>Setembro de 2019</p><p>26 http://www.apcri.pt/capital-de-risco/</p><p>27 https://observador.pt/2015/10/28/stephan-morais-ninguem-duvida-que-ha-</p><p>capital-em-portugal-para-investir/</p><p>28 https://observador.pt/2019/10/08/codacy-capta-7-milhoes-de-euros-em-</p><p>investimento/</p><p>29 https://observador.pt/especiais/startups-os-investidores-comportam-se-</p><p>em-manada/</p><p>https://www.forbespt.com/listas/os10maisricosdeportugal2/?geo=pt</p><p>http://www.apcri.pt/capitalderisco/</p><p>https://observador.pt/2015/10/28/stephanmoraisninguemduvidaquehacapitalemportugalparainvestir/</p><p>https://observador.pt/2019/10/08/codacycapta7milhoesdeeuroseminvestimento/</p><p>https://observador.pt/especiais/startupsosinvestidorescomportamseemmanada/</p><p>CAPÍTULO 3</p><p>O PODER DE UMA SÓ RONDA</p><p>Quando Portugal se estreou na terminologia unicorniana, a 4 de Março de</p><p>2015, a Farfetch tinha acabado de anunciar a sua ronda série E: 86 milhões</p><p>de dólares. No total – e até chegar à bolsa de Nova Iorque –, a loja online de</p><p>moda de luxo recolheu 701,5 milhões de dólares em oito rondas deste tipo.</p><p>A última aconteceu cerca de um ano antes do IPO, em Junho de 2017, no</p><p>valor de 397 milhões de dólares – um aumento de capital feito junto do</p><p>grupo chinês JD.com, que liderava, na altura, o retalho naquele país. À data,</p><p>o unicórnio luso-britânico anunciava que a parceria entre as duas empresas</p><p>serviria para criar a maior plataforma para marcas de luxo na China, e a</p><p>conclusão deste investimento fez do grupo chinês o maior accionista da</p><p>Farfetch.</p><p>No comunicado de imprensa que dava conta da novidade, a loja online</p><p>dizia que a parceria estratégica com o grupo alavancava “capacidades</p><p>inigualáveis de logística, compras online, tecnologia e social media, nas</p><p>quais se incluíam a parceria com a WeChat [aplicação de troca de</p><p>mensagens muito popular na China], na liderança da Farfetch no mercado</p><p>de luxo global, criando uma experiência de compra e de marca sem</p><p>barreiras”. Com o aumento de capital, Richard Liu, fundador e CEO da</p><p>JD.com, passou a integrar o conselho de administração da empresa de José</p><p>Neves e a Farfetch continuava, assim, com esta parceria, a ser a marca de</p><p>contacto com os clientes.</p><p>Mas recuemos dois anos, ao momento em que a empresa ficou avaliada</p><p>em mil milhões de dólares e José Neves se tornou no primeiro português à</p><p>frente de um unicórnio. A startup contava então com 194,5 milhões de</p><p>dólares investidos em 5 rondas diferentes. A operação que a colocou no</p><p>clube dos unicórnios foi liderada pela DST Global, a capital de risco</p><p>fundada em 2010 por Yuri Milner, “um dos investidores em tecnologia mais</p><p>influentes da Rússia”, segundo a Forbes, e um dos nomes mais sonantes de</p><p>Silicon Valley.</p><p>Só para ter uma ligeira noção de quem é este</p><p>físico/empreendedor/investidor: em 2012, Yuri Milner lançou juntamente</p><p>com a mulher, Julia, a fundação Breakthrough Prize Foundation30, cuja</p><p>missão era apoiar investigadores de topo em áreas como a Ciência e a</p><p>Matemática, ajudar a transmitir as ideias científicas para as próximas</p><p>gerações e investir em programas espaciais.</p><p>Numa parceria com vários outros multimilionários tecnológicos (como</p><p>Mark Zuckerberg, do Facebook, ou Anne Wojcicki, fundadora da empresa</p><p>de testes de ADN 23andMe e mulher de Sergey Brin, da Google), lançou os</p><p>maiores prémios científicos do mundo, os Breakthrough Prizes. Estes</p><p>galardões distinguiam conquistas importantes e recentes em áreas como a</p><p>Física Fundamental, as Ciências da Vida ou a Matemática. Em Julho de</p><p>2015, juntamente com o génio da física Stephen Hawking, Yuri Milner</p><p>lançou a Breakthrough Listen, uma iniciativa de 100 milhões de dólares</p><p>para impulsionar a procura por inteligência extraterrestre no universo.</p><p>Quando nos encontrámos em 2015 no escritório da Farfetch, na Lionesa,</p><p>José Neves contou-me que o financiamento de 86 milhões (este valor</p><p>exacto) não tinha sido por acaso. Nem a avaliação que recebeu como</p><p>consequência do seu negócio – era precisamente a que tinha pedido aos</p><p>investidores em troca de uma percentagem da empresa (estes valores não</p><p>foram revelados). Em cima da mesa das negociações, estiveram três</p><p>propostas de financiamento e a da DST Global venceu, “porque tinha os</p><p>ingredientes necessários”, explicou-me.31</p><p>“[A DST Global] foi um dos investidores mais fortes do Facebook. Se eu</p><p>quiser falar com Mark Zuckerberg através deste investidor, consigo. Não</p><p>estou a dizer que é fácil e que basta pegar no telefone e ligar. Mas sei que</p><p>tenho as portas abertas, se for necessário e estratégico para a empresa”,</p><p>contou-me na conversa que tivemos para o artigo publicado no Observador</p><p>a 10 de Abril de 2015. Seis anos antes, em Maio de 2009, Yuri Milner tinha</p><p>investido 200 milhões de dólares no Facebook em troca de 1,96% da</p><p>empresa, operação que avaliou a rede social em 10 mil milhões de dólares,</p><p>tornando-a num decacórnio (um unicórnio que vale mais de 10 mil</p><p>milhões).</p><p>Quando Michael Arrington, jornalista do TechCrunch, lhe perguntou,</p><p>nesse ano, porque é que tinha decidido apostar na rede social de</p><p>Zuckerberg, Milner respondeu: “Porque é um grande negócio”. E estava</p><p>confortável com a avaliação de 10 mil milhões de dólares que o Facebook</p><p>recebeu na altura? “Sem dúvida. E, sabes, posso repetir as razões do porquê</p><p>disto. Acho que têm uma perspectiva muito única sobre a monetização da</p><p>rede social, que outros investidores não vêem necessariamente. Vês como</p><p>as redes sociais têm sido monetizadas no nosso lado do mundo, e estamos</p><p>só a fazer nossa matemática, a pôr números a descoberto que nos deixam</p><p>muito confortáveis em avançar. Nós, na verdade, não avaliamos o negócio</p><p>com base em 2009, mas no longo prazo, mais uma vez tendo por base a</p><p>nossa experiência e estamos muito confiantes de que esses números vão ser</p><p>atingidos.”32</p><p>Em 2015, o objectivo da quinta ronda de investimento da Farfetch era</p><p>ajudar a empresa a expandir-se internacionalmente – com sites em idiomas</p><p>como o alemão, o coreano e o espanhol, e novos escritórios em países como</p><p>o Japão e a Austrália – e a ter uma oferta omni-canal, ou seja, que integrasse</p><p>todos os canais de venda de moda de luxo e tratasse o consumidor de forma</p><p>única, independentemente do formato em que este estivesse a comprar.</p><p>Muitas mais coisas aconteceram depois disto: a Farfetch fez aquisições,</p><p>diversificou as áreas de negócio e aventurou-se em mais mercados. Quando</p><p>entrou em bolsa, a realidade era outra, como poderá ler um pouco mais à</p><p>frente.</p><p>Regressando a 2015: para fechar aquela ronda não bastava um investidor</p><p>e Yuri Milner não estava sozinho. Participaram na operação de</p><p>financiamento outros nove nomes, entre os quais a sociedade de capital de</p><p>risco norte-americana e.ventures, o empreendedor e investidor norte-</p><p>americano Fabrice Grinda, que co-fundou empresas como o OLX e a</p><p>capital de risco FJ Labs, as britânicas Vitruvian Partners e Felix Capital,</p><p>bem como o grupo de comunicação social Condé Nast International (que</p><p>viria a sair do capital accionista da empresa em 2019) e a portuguesa Caixa</p><p>Capital, o braço de capital de risco da Caixa Geral de Depósitos, que, na</p><p>altura, tinha como administrador-executivo Stephan Morais.</p><p>Quando em finais de 2019 perguntei a Stephan – nesta altura, já no</p><p>escritório da Indico Capital Partners, a capital de risco que lançou</p><p>juntamente com Cristina Fonseca (co-fundadora e accionista da Talkdesk) e</p><p>Ricardo Torgal (ex-gestor de investimentos na Caixa Capital) – porque</p><p>tinha decidido participar na quinta ronda da Farfetch, respondeu: “Porque</p><p>tinha uma progressão incrível”.</p><p>“Tinha métricas muito boas – perdia dinheiro, obviamente – e tinha</p><p>investidores muito bons, o que também é sempre uma boa indicação: bons</p><p>investidores com capacidade financeira, boas métricas. E isto foi</p>