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<p>FICHA CATALOGRÁFICA</p><p>Álvaro Cardoso Gomes</p><p>Eliane de Alcântara Teixeira</p><p>Maria Auxiliadora Fontana Baseio</p><p>Maria Zilda da Cunha</p><p>(Autores)</p><p>A LITERATURA E O IMAGINÁRIO: diálogos transversais</p><p>EDITORA CRV</p><p>Curitiba - Brasil</p><p>2017</p><p>DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)</p><p>CATALOGAÇÃO NA FONTE</p><p>Copyright © da Editora CRV Ltda.</p><p>Editor-chefe: Railson Moura</p><p>Diagramação: Editora CRV</p><p>Capa: Melissa Gomes Frosini</p><p>Revisão: Os Autores</p><p>G631</p><p>Gomes, Álvaro Cardoso</p><p>A literatura e o imaginário: diálogos transversais / Álvaro Cardoso Gomes, Eliane de Alcântara Teixeira, Maria Auxiliadora Fontana Baseio, Maria Zilda da Cunha –</p><p>Curitiba: CRV, 2017.</p><p>272 p.</p><p>Bibliografia</p><p>ISBN 978-85-444-2338-7</p><p>DOI 10.24824/978854442338.7</p><p>1. Literatura 2. Ensino de literatura 3. Literatura brasileira 4. Estudos literários I. Teixeira, Eliane de Alcântara II. Baseio, Maria Auxiliadora Fontana III. Cunha, Maria Zilda</p><p>da IV. Título V. Série</p><p>CDU 82 CDD 808.07</p><p>Índice para catálogo sistemático</p><p>1. Ensino de literatura 808.07</p><p>ESTA OBRA TAMBÉM ENCONTRA-SE DISPONÍVEL EM FORMATO DIGITAL.</p><p>CONHEÇA E BAIXE NOSSO APLICATIVO!</p><p>2017</p><p>Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004</p><p>Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV</p><p>Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV</p><p>Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac@editoracrv.com.br</p><p>Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br</p><p>Este livro foi avaliado e aprovado por pareceristas ad hoc.</p><p>Conselho Editorial:</p><p>Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB)</p><p>Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN)</p><p>Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ)</p><p>Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO/PT)</p><p>Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro)</p><p>Carmen Tereza Velanga (UNIR)</p><p>Celso Conti (UFSCar)</p><p>Cesar Gerónimo Tello (Univer. 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De um lado, ilustram a curiosidade dos pesquisadores, que os leva a ter as atenções voltadas para os múltiplos aspectos da vida cultural; de outro lado, registram um</p><p>modo de abordagem do fenômeno literário da perspectiva da interdisciplinaridade. Isso faz que todos eles, de uma forma ou de outra, concentrem-se em sua especialidade, que</p><p>resultou, em dois deles, da formação em Literatura Portuguesa e dos dois outros, em Estudos Comparados. Todavia, a curiosidade intelectual já mencionada faz que, utilizando-se</p><p>do instrumental de análise literária, procurem ir além da especialidade para também dialogar com outras formas de conhecimento como a Educação, a Psicanálise, a História, as</p><p>Artes Plásticas.</p><p>Esse interesse pela multiplicidade de temáticas faz que A Literatura e o Imaginário: Diálogos Transversais ofereça aos leitores uma vasta gama de autores brasileiros,</p><p>portugueses, africanos, irlandeses, como Péricles Prade, Albano Martins, Rocha Pombo, José Saramago, Gil Vicente, Yeats, Murilo Rubião, Mia Couto, Cruz e Sousa, Manoel de</p><p>Barros, iluminados por sensíveis olhares e, por isso mesmo, compreendidos de uma perspectiva bastante singular.</p><p>Não bastasse isso, o livro também traz o que há de mais moderno no que diz respeito ao instrumental para a análise literária, bem como uma vasta bibliografia teórica que dá</p><p>apoio à compreensão dos autores e tópicos fundamentais da teoria da literatura.</p><p>Prof. Dr. Álvaro Cardoso Gomes</p><p>Organizador</p><p>EROTISMO E DESSACRALIZAÇÃO</p><p>Álvaro Cardoso Gomes</p><p>Aceitando o pressuposto de que o desejo sexual, os impulsos carnais, a sexualidade latente na primeira infância e presente nos ritos e mitos, são poderosos princípios que,</p><p>ainda quando rechaçados, governam o homem e determinam seu comportamento, acreditamos que cabe à arte perpetuá-los e, em consequência, torná-los mais intensos. Nesses</p><p>casos, atingem uma potência insuspeitada, devido ao fato de a experiência sexual não se tratar “de uma experiência entre outras, mas daquilo que há de mais essencial na vida”</p><p>(2008, p. 135), conforme afirma Todorov, ao tratar do erótico nas narrativas fantásticas. A arte erótica, ao dar relevo às manifestações da sexualidade, não só as torna</p><p>presentes, como também desperta o leitor/espectador do letargo, podendo até lhe causar um verdadeiro choque. Isto porque a experiência sexual, sendo uma experiência vital,</p><p>faz com que o homem queira preservá-la a qualquer custo. Contudo, seu caráter efêmero, enquanto experiência vivida, costuma levá-la à extinção e, daí, ao esquecimento, o</p><p>que implica que necessite de representações que a eternizem. Na arte erótica, a sexualidade torna-se um meio para um fim, porquanto “a arma mais eficaz contra o fluxo da</p><p>natureza é a arte”, segundo Camile Paglia, que ainda acrescenta:</p><p>os intermináveis assassinatos e tragédias da literatura estão lá para o prazer da contemplação, não como lição moral. Seu status de ficção, transferido para o</p><p>recinto sagrado, intensifica nosso prazer, garantindo que a contemplação não pode transformar-se em ação (1992, p. 38- 39).</p><p>A arte erótica serve, pois, para intensificar o prazer, não no sentido da mera excitação sexual, o que implicaria uma intervenção direta do objeto artístico na realidade, sob</p><p>a forma de uma modificação físico-psíquica do sujeito. A arte visa a tornar a experiência erótica mais viva, de maneira a provocar no leitor/espectador sentimentos</p><p>desconhecidos, novos, ou despertar nele sentimentos que estariam adormecidos dentro de si e que só acordam para a vida por meio de um forte estímulo, seja na representação</p><p>harmoniosa do nu, seja na representação de cenas sexuais. Como a sexualidade – aceita ou negada – é uma força sempre em ebulição dentro do homem, que, as mais das vezes,</p><p>costuma ser sufocada, sublimada, a sua evocação numa obra de arte tem o condão de ativar em nós os sentidos, as sensações, a um grau bem elevado e ajudar-nos a criar a</p><p>sensação de vida pulsante. Por isso mesmo, segundo Camille Dumoulié, “o erotismo é o campo privilegiado dessa experiência da transgressão afirmativa que, todavia, nada</p><p>mais afirma senão o desejo, e abre o limite ao ilimitado” (2005, p. 282).</p><p>Conclui-se disso tudo que o erotismo é um típico produto humano e, por consequência, deve ser considerado como algo distinto da atividade sexual em si:</p><p>a mera atividade sexual é diferente do erotismo; a primeira se dá na vida animal, e tão somente a vida humana mostra uma atividade que determina, talvez, um</p><p>aspecto “diabólico”, a qual cabe a denominação</p><p>recibe material utilitario, cuidadosamente seleccionado, y elabora una reducida imagen de lo real que le permite limitarse y</p><p>sobrevivir en un mundo de posibilidades infinitas (1966, p. 31).9</p><p>Em suma: o especialista é aquele que procura reduzir a extrema complexidade do real, para melhor apreendê-lo; contudo, ao fazer isso, é obrigado a congelá-lo e, por</p><p>extensão, a condenar à morte o que é vivo. O encastelamento do especialista em seu pequeno reino da especialidade é a perda da rede de conexões entre as coisas e o</p><p>distanciamento progressivo do outro. Quem consegue intuir que o “mundo não é um teatro regido pelo acaso e o capricho, pelas forças cegas do imprevisível” (PAZ, 1984, 93),</p><p>sem abdicar da comunhão com o outro, sem perder a noção da totalidade, é o poeta. Isso porque, em vez de ver as coisas separadas entre si e catalogadas em categorias distintas,</p><p>prefere investir na busca da analogia entre tudo o que existe. Ainda segundo Paz,</p><p>pela analogia, a paisagem confusa da pluralidade e da heterogeneidade ordena-se e torna-se inteligível; a analogia é a operação, por intermédio da qual, graças ao</p><p>jogo das semelhanças, aceitamos as diferenças. A analogia não suprime as diferenças; redime-as, torna-se sua existência tolerável (Ibidem, p. 99).</p><p>Exemplar neste sentido é o conto “Rabos de Tigre”, em que o narrador se serve das analogias para tentar traduzir o sentido especial de um objeto, no caso, os três rabos de</p><p>um tigre. Esse animal, cuja simbologia é bastante ambígua, “monstre de l’obscurité et de la nouvelle lune, il est aussi une des figures du monde supérieur, le monde de la vie et de</p><p>la lumière naissantes” 10(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1973, p. 299, grifos dos autores), comparece na narrativa apenas como um ícone. Sua cauda é que se tornará o centro</p><p>das atenções do narrador, devido às conotações eróticas, capazes de deflagrar um processo criativo, fundado nas analogias. Mas um aspecto salta logo à vista: o fato de o tigre da</p><p>narrativa, exótico em sua peculiaridade, possuir três rabos. De um ponto de vista simbólico, a cauda dos animais “joue un role phallique dans les nombreaux mythes américains et</p><p>asiatiques. Elle s’apparente au complexe symbolique recouvert par le serpent”11 (Ibidem, p. 78) e essas características estão presentes nas três caudas, assim representadas:</p><p>O primeiro é muito fino e delicado, lembra cobra-coral adulta, prestes a cair n’água. Inclina-se mais à esquerda e não sei o porquê.</p><p>O segundo é muito grosso e indelicado. Lembra jibóia velha em repouso, ruminando a parte lasciva do touro. Inclina-se mais à direita e eu não sei o porquê.</p><p>O terceiro não é muito fino e nem muito grosso. Lembra chicote de couro rústico. Inclina-se ora à esquerda, ora à direita, eu sei o porquê mas não digo (PRADE,</p><p>2009, p. 26).</p><p>O analogista utiliza-se do verbo “lembrar” para aproximar os três rabos do tigre, por meio de símiles de cobras, animais simbolicamente eróticos por excelência, nos dois</p><p>primeiros casos, e de chicote, objeto também simbolicamente erótico, no segundo. Esse verbo serve de ponte entre ele e seu arquivo de imagens, retiradas da natureza e/ou</p><p>realidade, armazenadas na memória e ativadas pelo exercício do imaginário. À medida que o analogista integra coisas diferentes, fundindo-as, para criar uma outra, provoca o</p><p>nascimento de imagens correlatas, como a da cobra-coral em movimento, caindo na água, a da velha jiboia em repouso e, na sequência, a da cobra “ruminando a parte lasciva do</p><p>touro” – uma metáfora sub-reptícia do membro viril do animal. Desse modo, percebe-se que o tigre e, ainda mais, o seu apêndice, tornam-se apenas o motivo para o exercício</p><p>imaginativo do narrador, que tira deles ilações sexualizadas e enigmas que não são decifrados, referentes à razão de as caudas ora se inclinarem à esquerda, à direita e a ambos os</p><p>lados. Mas o que importa acima de tudo é essa capacidade de o analogista encontrar correspondências entre as coisas, ao fundir imagens de diferentes reinos da natureza, ao</p><p>energizar os elementos por meio da sexualidade. Neste caso, a natureza, em vez de se apresentar apenas como partes sem um todo – objetos desirmanados, passíveis de integrarem</p><p>um catálogo, um dicionário, tomos de uma enciclopédia –, ao contrário disso, apresenta-se como um todo harmônico, em que suas partes dialogam entre si, movidas pela força de</p><p>uma energia, que emana do sopro enunciativo da voz do analogista.</p><p>Assim, percebe-se que a analogia tem por base a chamada “ciência das correspondências”, que constituem o núcleo não só de “Correspondência”, como também de todo o</p><p>livro. Afinal, o físico nuclear descobre que só pode resolver o problema científico a contento, se declinar os verbos latinos numa determinada ordem que precisa descobrir qual</p><p>seja. Neste instante, oferece-se um enigma: que nexo há entre uma coisa e outra, já que ambas pertencem a áreas de conhecimento, na aparência, diferentes? O mesmo se pode</p><p>dizer das imagens chamadas para caracterizar o quid das caudas do tigre. Qual o nexo entre o termo considerado como ponto de partida e o seu par analógico? Este nexo só se</p><p>descobre por meio da “lógica do delírio”, que permitirá compreender a chamada “ciência das correspondências”.</p><p>O princípio da correspondência universal é bem antigo e, ao longo dos tempos, vem tendo os seus cultores, entre eles, os já citados visionários, Hermes Trismegisto e Jakob</p><p>Boehme. Mas quem elaborou a doutrina delas de maneira sistemática foi Emanuel Swedenborg (1688-1772) e alguns de seus discípulos. O místico sueco era um cientista já</p><p>bastante conhecido por seus trabalhos na área da mineralogia, da Física etc. Em 1743, um acontecimento sobrenatural veio modificar de maneira radical sua vida: Swedenborg</p><p>teve uma visão, em que um anjo lhe apareceu e lhe fez algumas revelações. Ao despertar, passou por um longo período em estado catatônico e, só depois disso, é que começou a</p><p>http://ebook/ChaveBoehme 1.htm</p><p>divulgar a nova doutrina, a partir das revelações e do que ele próprio viu em seus sonhos místicos. De Coelo et de Inferno, publicada em 1758, é sua obra mística mais conhecida e</p><p>a que exerceu grande influência entre místicos e escritores do Romantismo e Simbolismo. Dividido em três partes – “Do Céu”, “Do Mundo dos Espíritos, e do Estado do Homem</p><p>depois da Morte” e “Do Inferno” –, o livro, baseado nos Evangelhos, explica de maneira bastante minuciosa as íntimas relações entre os reinos do Céu e do Inferno e a Terra,</p><p>considerada como o espaço onde o homem deve procurar a presença do Divino. A religião criada por Swedenborg é toda ela simétrica, ao tratar das</p><p>chamadas correspondências entre os diversos reinos. Embora o princípio de tudo seja a unidade, que é Deus, de onde provém o Divino, sua emanação, “que afeta os anjos e</p><p>constitui o céu”, o ponto de referência para o imagismo swedenborguiano é sempre o homem (que, por sua vez, é o reflexo do divino).</p><p>A doutrina das correspondências comparece na primeira parte do livro, nos subcapítulos intitulados “Que há uma Correspondência de todas as coisas do Céu com todas as</p><p>Coisas do Homem” e “Que há uma Correspondência do Céu com todas as Coisas da Terra”. Dos parágrafos (sempre numerados), interessam-me mais de perto os seguintes:</p><p>89. Primeiramente, então, declarar-se-á o que é correspondência. Todo o mundo natural corresponde ao mundo espiritual, não somente o mundo natural em geral,</p><p>mas também em cada pormenor; porque cada coisa que existe, do mundo natural ao espiritual, é conhecida como correspondente. Nota-se que o mundo natural</p><p>existe e subsiste em função do mundo espiritual, conjuntamente como um efeito e sua causa eficiente. O chamado mundo natural é toda a extensão sob o sol e recebe</p><p>calor e luz do sol, e as coisas desse mundo são todas as coisas que então subsistem; mas o mundo espiritual é o céu, e as coisas desse mundo são as coisas que estão</p><p>nos céus.</p><p>106. Numa palavra, todas as coisas que existem na natureza, da menor à maior, são correspondências: a razão disso é que o mundo natural, com todas as coisas que</p><p>lhe pertencem, existe e subsiste</p><p>em função do mundo espiritual, e ambos em função do Divino [Ser e Princípio]. Diz-se que isto também subsiste, porque cada coisa</p><p>subsiste em função daquilo que lhe deu existência, porque subsistência é perpétua existência, e porque é impossível para alguma coisa subsistir por si própria, mas</p><p>sim em função de alguma coisa que é anterior a si própria; consequentemente, se alguma coisa fosse separada do Primeiro [Ser ou Princípio], pereceria ou</p><p>desapareceria completamente (SWEDENBORG, 1871, p. 85-86).</p><p>O pensamento cifrado de Swedenborg cobre três etapas de uma história em que as relações entre o Divino e o humano foram sofrendo um processo de deterioração. A</p><p>primeira etapa corresponde ao período em que o Divino se comunicava, ou melhor, se revelava (ou revelava os arquétipos) aos “antigos povos”, que tinham “imediata revelação”,</p><p>“visto que seus interiores estavam voltados para o céu”. A segunda etapa diz respeito ao período em que não mais existe a revelação e, nesse caso, os povos necessitam de</p><p>mediações, representadas pelas correspondências.</p><p>E o que são as correspondências? Tudo o que existe no mundo natural, sob o sol, explica Swedenborg, no sentido de que as coisas materiais não valem por si próprias, no</p><p>sentido de que são homólogas às coisas que existem no mundo espiritual, de onde emanaram. Ou seja, o místico concebe o Universo de maneira especular: as correspondências</p><p>seriam o elo entre as diferentes coisas do reino material, natural e as do reino espiritual. A razão para que haja a correspondência é que se uma coisa do mundo fosse separada de</p><p>seu arquétipo, desapareceria, porque nada subsiste por si próprio e porque tudo é emanação de um primeiro Princípio que é o Senhor. Portanto, se o homem, que não mais tem o</p><p>privilégio de pertencer aos antigos, ainda possuísse a ciência das correspondências, poderia interpretar o sentido enigmático das coisas do mundo natural e, a partir daí, entrar em</p><p>contato com os anjos, que são a manifestação primeira dos céus. Mas acontece que há uma segunda etapa nessa história mítica da humanidade12: para suprir a falta das</p><p>correspondências, o Senhor deu ao homem a Palavra que, de modo idêntico às coisas que mantêm correspondência entre si, tem um sentido interno ou espiritual e outro material.</p><p>É por meio da interpretação do sentido espiritual da Palavra (isto é, a Palavra jamais deve ser entendida ao pé da letra) que o homem vem a ter acesso ao universo das</p><p>correspondências, à linguagem dos anjos. Dessa perspectiva, parece que Swedenborg toca no problema do símbolo, porquanto a Palavra a que se refere é aquela conotativa, capaz</p><p>de sugerir o mundo das correspondências.</p><p>Entre os discípulos de Swedenborg que tratam das correspondências salientam-se Edouard Richer, autor de De l’État Actuel de l’Esprit Théosophique en Europe (1826),</p><p>Guillaume Oegger, autor de Le Vraie Messie (1829), e Balzac, autor de Louis Lambert, Seraphita (1832), mas é Ralph Waldo Emerson (1803-1882) quem desenvolverá, de</p><p>maneira bem incisiva, as teorias místicas de Swedenborg na modernidade, procurando estabelecer uma ligação entre elas a linguagem poética. Para o escritor norte-americano, o</p><p>homem e a natureza provêm do espírito de Deus, constituem mesmo sua emanação:</p><p>o mundo procede do mesmo espírito que o corpo do homem. É a mais remota e inferior encarnação de Deus, a projeção de Deus no inconsciente [...]. O mundo,</p><p>assim, é para nós o presente expositor da mente divina (1968, p. 36).</p><p>Tudo o que há sobre a face da Terra não constitui apenas emanação do divino, mas também uma forma de o manifestar. Em seu arraigado espiritualismo, Emerson acredita</p><p>na preexistência das Ideias sobre os fatos e na dependência destes em relação àquelas:</p><p>Parece ser uma necessidade de o espírito manifestar-se nas formas materiais; dia e noite, rio e tempestade, besta e pássaro, ácidos e alcalinos, preexistem em</p><p>necessárias Ideias na mente de Deus, e são o que são em virtude de precederem às afeições do mundo do espírito. Um Fato é o fim ou a última consequência, da do</p><p>espírito. A criação visível é o término ou a circunferência do mundo invisível (Ibidem, p. 19).</p><p>A manifestação da Divindade por meio do mundo material tem uma função significativa: é por meio das coisas materiais que o homem tem acesso ao divino, ou mesmo se</p><p>torna consciente de que, “dentro ou atrás de sua alma”, há uma “alma universal” (Ibidem, p. 15). Mas o único meio que o homem possui para poder intuir a divindade ou essa</p><p>“alma universal” é o de se transformar num “analogista”, o homem que entende a linguagem da natureza, porque é capaz de perceber as analogias entre o ser e as coisas:</p><p>É visível facilmente que não há nada casual ou caprichoso nessas analogias, mas que elas são constantes e permeiam a natureza. Estes são sonhos de uns poucos</p><p>poetas, aqui e ali, pois o homem é um analogista e estuda as relações em todos os objetos. Ele se coloca no centro dos seres, e um raio de relações passa de cada ser</p><p>para ele. E nem o homem pode ser entendido sem esses objetos, nem os objetos sem o homem (Ibidem).</p><p>Essa compreensão de que o Universo, a Natureza, são significantes implica vê-los como um “livro aberto”. Emerson antecipa aqui alguns dos princípios relativos ao que seja</p><p>o símbolo entre os simbolistas, pois o que chama, sobretudo, a atenção nessa teoria, além da ideia de que tudo é emblemático, é o princípio de que os estados da mente apenas</p><p>devem ser descritos com o auxílio de uma imagem extraída da Natureza. Desse modo, ainda voltando ao símbolo, parece que, para Emerson, os conteúdos da mente, enquanto</p><p>realidade espiritual, não têm outro meio de se expressar, senão por meio de uma linguagem toda especial, a linguagem poética, na medida em que o veículo dela é a imagem.</p><p>Assim, essa linguagem primitiva só existente na Idade de Ouro, referida por Swedenborg, tem caráter icônico, pois a palavra mantém estreita relação com o que significa, como se</p><p>o homem nomeasse o mundo in praesentia:</p><p>Devido à radical correspondência entre as coisas visíveis e os pensamentos humanos, os selvagens, que têm somente o que é necessário, conversam por meio de</p><p>figuras. Na medida em que voltamos na História, a linguagem se torna mais Pitoresca, até sua infância, quando é toda poesia; ou todos os fatos espirituais são</p><p>representados por coisas naturais. Os mesmos símbolos são encontrados para constituir os elementos originais de todas as linguagens (Ibidem).</p><p>Para o pensador norte-americano, o não entendimento da Natureza resulta da perda da “linguagem natural”, existente no princípio dos tempos e cuja característica básica</p><p>seria a sua potência enquanto imagem. Tal linguagem tem como ponto de apoio as chamadas correspondências, por meio das quais, o homem chega ao espírito, à “alma</p><p>universal”, ao “divino”. Por outro lado, se se deseja essa integração com o mundo, com o espiritual e com Deus, é necessário que se recupere a alma infantil, a alma primitiva, em</p><p>outras palavras, a alma de um autêntico poeta, capaz de ler os símbolos que o mundo natural lhe oferece e capaz também de manipular esses mesmos símbolos, em que a imagem</p><p>tem papel de fundamental importância.</p><p>Tais princípios doutrinários, de caráter místico, como já disse, exercerão grande influência nos românticos e, sobretudo, nos simbolistas, contudo, entre os poetas do fim do</p><p>século XIX, o viés místico passa a conviver com um viés estético, como, aliás, já Emerson antecipa em seu ensaio. Ao lado do culto dessa visão ocultista do mundo, com a crença</p><p>num Espírito onisciente pairando sob tudo o que existe, acontece a busca de uma linguagem que consiga unir o que foi separado pela razão e que, por isso mesmo, trabalhe com as</p><p>analogias, para que se encontrem os nexos entre tudo o que existe. Isso porque:</p><p>La analogía poética – dice Breton – tiene en común con la analogía mística el hecho de que ambas transgreden las leyes de la lógica y muestran al espíritu la</p><p>interdependencia de los objetos de pensamiento situados sobre planos diferentes, entre los cuales, el funcionamiento lógico del espíritu no es apto para establecer</p><p>ningún puente y se opone a priori a que todo puente sea establecido (AZCUY, 1966, p. 47).13</p><p>Tendo por base esses princípios, é possível dizer que Péricles Prade os retoma, mas é preciso dizer também que faz isso sem, no entanto, se apegar a esse misticismo de raiz,</p><p>de modo algum presente em sua obra. As correspondências, nele, servem a um fim estético, qual seja, o de traduzir as complexas relações entre as coisas e dar sentido a um</p><p>universo, cuja falta de sentido advém de uma abordagem lógica apenas. É como se ele promovesse o afastamento de um tipo de abordagem do real e o substituísse por um outro,</p><p>mais consentâneo com um modo de ver as coisas, ditado pelo constante analogismo e/ou pelas leis das correspondências, provocando, por consequência, o surgimento de um</p><p>mistério muitas vezes indecifrável. Os casos mais emblemáticos dessa atitude encontram-se em “Neto de Saltimbancos”, “Cárcere Marinho”, “Canil com Vista para o Mar”,</p><p>“Sonhos”, “Hipnotizador” e “Passaromorfose”.</p><p>As duas primeiras narrativas identificam-se por compreenderem o mundo como mera representação, como ilusão, como o “véu de Maya” schopenhauriano. Em “Neto de</p><p>Saltimbancos”, o espaço é um circo, espaço da ilusão, que terá continuidade mesmo após a morte da personagem e, em “Cárcere marinho”, é uma espécie de navio fantasma, que</p><p>navega rumo “a um país desconhecido”. Mas o que também há de comum entre ambos os textos é a inserção (ou a tentativa de inserção) das personagens em linhagens, que</p><p>servem para integrá-las a uma comunidade e, por consequência, para lhes dar sentido à existência, já que vivem reclusas num mundo ilusório, absurdo, desprovido de sentido.</p><p>Aquiles, “o neto de saltimbancos”, tem como espetáculo recitar, “em ordem alfabética, o rol imenso da linhagem de seus antepassados”, mas é dispensado pelo patrão, “com a</p><p>desculpa de que o seu calcanhar direito, o fosforescente, criava luminosos embaraços na apresentação dos trabalhos” (PRADE, 2009, p. 44). Complexa em sua ambiguidade, a</p><p>personagem, ao mesmo tempo em que se dedica ao divertimento dos outros, possui uma alma sombria, que o faz ausentar-se da realidade e isso o leva a se transformar num</p><p>morto-vivo. Como bem observa Starobinski: “a distração metafísica de Pierrot o separa dos vivos até transformá-lo em personagem póstumo, saído do limbo e destinado a</p><p>precipitar-se nele de novo” (2007, p. 63, grifo do autor) – é o que de fato acontece com Aquiles ao se despenar no inferno. Mas não só isso – pelo fato de ele, segundo Baudelaire,</p><p>esconder “sob seu triunfo e suas alegrias fingidas uma alma desesperada”, fará que se converta “assim em una figura exemplar do crime e do castigo” e seja “um paradigma do</p><p>fracasso” (BAUDELAIRE apud STROBINSKI, 2007, p. 68 e 63). Contudo, a par da estranheza de seu modo de ser, como é de praxe na ficção de Péricles Prade, nota-se a</p><p>presença de um enigma – a relação entre o trabalho do artista circense e o motivo da censura do patrão –, que, ao final, não se esclarece. Pelo contrário, o conto torna-se mais</p><p>enigmático ainda, porque, depois da morte, a personagem puxará, no inferno, “longa fila de artistas penitentes”, mas com o calcanhar apagado, o que só servirá para acentuar o seu</p><p>lado sombrio.</p><p>Em “Cárcere Marinho”, anões são contratados como marinheiros para trabalharem num enorme navio, cujo destino e função são ignorados. O princípio do estranhamento</p><p>dá-se pelo contraste entre o tamanho das criaturas e o espaço em que são inseridos. O fato de elas serem anãs e, portanto, personificarem “les manifestations incontrolées de</p><p>l’inconscient” (CHEVALIER; GHEERBANT, 1973, p. 252), faz que haja uma perfeita homologia entre essas personagens e a embarcação de caráter fantasmático. Por isso</p><p>mesmo, em vez de eles, como seria de esperar, exercerem a marinharia, são apenas encarcerados em caixões de madeira “com dois furos na parte de cima, quatro nos lados, para</p><p>facilitar a respiração orquestrada”. A explicação para esse procedimento insólito, dada pelo capitão do navio, é que isso se deve ao fato de “pertencerem a uma linhagem de</p><p>animais marinhos que optaram pela castidade, até o dia da morte, no fundo do mar” (PRADE, 2009, p. 46).</p><p>Há, portanto, correspondências, vistas isoladamente nos contos, já que as personagens se integram a uma comunidade e, entre uma narrativa e outra, pois ambas têm</p><p>estruturas similares, ao comporem mundos absurdos, em que as relações de causa e efeito são ditadas por aproximações inusitadas, fundadas apenas nas analogias.</p><p>“Canil com Vista para o Mar”, de “Novos Relatos de Luigi Pomeranos”, intensifica esse princípio das correspondências, ao explorar a ideia de integração entre o ser e a</p><p>paisagem:</p><p>Nem todo cão se espanta com a cor que no mar flutua à espera dos heróis ainda encarcerados.</p><p>Receoso, seu olhar não é como o do bêbado entre os mamilos da</p><p>noiva castelhana.</p><p>Não late. Com fervor, estende a pata esquerda sobre o melancólico rosto da paisagem móvel.</p><p>O que ele vê só uma companheira feliz revela. (PRADE, 2009, p. 31).</p><p>Condensado, o texto não tem, a rigor, um enredo, pois o que impera aí, como em outros casos assemelhados, é a imagem em si, que se associa a outras imagens, por</p><p>analogias e comparações ditadas por uma mente desvairada, em perene delírio. É isso que faz que a personagem – um cão a assumir a vez do sujeito – seja um ser de excepcional</p><p>categoria, a começar que se exila dos demais cães, ao se espantar com “a cor que no mar flutua”. A empatia dele com a paisagem advém de um enigma, a ser transliterado pela</p><p>“companheira feliz”, que, por não pertencer ao plano textual, é mera referência e, como tal, serve para que o narrador crie ambiguidade com o verbo “revelar”. Revelar significa</p><p>“tirar o véu”, ou seja, “deixar ver”, contudo, no texto, nada se revela, porque o que deveria ser revelado não deve sê-lo, no sentido de que constitui algo inefável que as palavras</p><p>não podem (e nem devem) traduzir, sob pena de abastardar o enigma. Algo similar acontece também em outras narrativas como “Rabos de Tigre” e “Junto ao Coração”. No</p><p>primeiro, a personagem tem a chave do enigma, mas se recusa a revelá-lo; no segundo, o sujeito, fascinado por uma criatura, que não se sabe qual é, penetra nela, conhecendo,</p><p>assim, o “universo de uma nova dimensão” (PRADE, 2009, p. 14), que, por sua vez, não é descrito. Retornando ao texto do cão, observo que esse enigma não decifrado e não</p><p>decifrável é que provocará o “fervor” (a intensidade dos sentimentos) com que o cão contempla a paisagem humanizada. Entre ele e a paisagem haverá como que a descoberta,</p><p>ainda que inconsciente, daquilo que os simbolistas costumavam denominar de “état d’âme”,14 estado anímico ideal a ser conquistado, para que o sujeito poético pudesse se</p><p>integrar com o Cosmo.</p><p>Em “Sonhos”, o enigma oferece-se na relação entre os amantes que têm o seguinte “hábito matinal”: “relatar, com detalhes, o nossos sonhos” (PRADE, 2009, p. 23). Como</p><p>não poderia deixar de ser, há uma diferença radical entre o sonho do homem e o da mulher. O daquele tem um caráter sacro:</p><p>Ontem, por exemplo, tendo lido uma nota de página ao conto “Os mujiques”, de Anton Tchekhov, sonhei que a mão exposta de São Damasceno, caluniado pelos</p><p>inimigos, se reintegrou, após ser cortada sem piedade a mando do Califa (Ibidem).15</p><p>O da mulher tem um caráter profano, ao misturar elementos da magia, da alquimia, o ocultismo:</p><p>Lorena, minha mulher, me disse que havia sonhado com sol negro, incidindo sobre a tábua de esmeralda, conduzida por dois leões melancólicos – um verde e outro</p><p>vermelho –, quando os unicórnios marrons, animais de estimação do pintor Piero della Francesca, choravam por não suportar a presença do anjo, no carro puxado à</p><p>margem do penhasco (Ibidem).</p><p>Acumulam-se, neste sonho, os elementos alquímicos como o sol negro que, segundo os alquimistas, “est la matière première, non encore travaillée, non encore mise sur la</p><p>voie d’une évolution”16 (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1973, p. 221), “a tábua de esmeralda”, espécie de tábuas de mandamentos, que “contiennent les axiomes</p><p>hermétiques”17, de Hermes</p><p>Trismegisto, “inscrits en caractères hiéroglyphiques”18(ROOB, 2005, p. 362), os leões vermelho e verde que evocam o sol e a lua filosófica, e, por</p><p>fim, os unicórnios, que simbolizam a pureza, a virgindade. Tais elementos têm em comum a manifestação da tristeza, pois o sol é negro, os leões, conduzindo a tábua esmeraldina,</p><p>são melancólicos e os unicórnios choram.</p><p>Desse modo, é como se os contos configurassem, pelo sonho, as marcas do masculino e do feminino que, assim, se antagonizam: enquanto o do homem é mais</p><p>intelectualizado, nascendo de uma fonte erudita – a leitura de um conto de Tchekhov –; o da mulher nasce de pulsões primitivas do inconsciente. Os sonhos vão se identificar num</p><p>sonho único, quando, num determinado dia, o casal evita, por um motivo desconhecido, relatar o que cada um sonhou. A revelação do que sonharam se dá porque resolvem</p><p>registrar os respectivos sonhos em papel: quando da morte da mulher, a personagem tem acesso ao que ela sonhou – para sua surpresa, fica sabendo que naquele dia haviam</p><p>sonhado os mesmos sonhos. Como é comum em todo o livro, Prade não revela o conteúdo dos sonhos dos amantes (como também não revela o que há de comum entre o problema</p><p>de Física e as declinações dos verbos latinos em “Correspondência”). Em realidade, isso pouco interessa – o que interessa mesmo é o fato de não só o enigma manter-se como tal e</p><p>de haver uma estreita correspondência entre os sonhos do homem e os da mulher e entre a questão científica e a linguística. No caso específico de “Sonhos”, é como se, pelo</p><p>sonho, os amantes, afinal, deixassem de ser o que são e encontrassem uma final identidade, como se constituíssem, no plano das ideias, o andrógino preconizado por Platão, ser</p><p>representativo da totalidade. Essa ideia de totalidade, ou de busca da totalidade, de certo modo, está também presente numa vinheta de “Hipnotizador”, quando o narrador faz</p><p>referência ao polímata Athanasius Kircher, “criador do orologium phantasticum, combinação feliz de uma clepsidra e de um relógio solar” (grifos do autor).</p><p>A conjugação das forças elementares da água e do fogo, mais do que representar apenas o aproveitamento utilitarista de energias naturais, representa o anseio de integração</p><p>de dois dos elementos básicos da natureza, para movimentar um engenho destinado à medida do tempo.</p><p>Já o conto “Passaromorfose” é marcado pela ambiguidade e pela ironia, ao enveredar pelo princípio das correspondências. A começar do neologismo do título, que ilustra o</p><p>desejo de transformação da personagem – um ornitólogo – numa ave. Esta narrativa configura-se, em princípio, como um manual de ornitologia, na medida em que há referências</p><p>a vários tipos de pássaros, organizados em categorias, determinadas por uma simbologia toda especial. No desenrolar da narrativa, a personagem procura encontrar o tipo de</p><p>pássaro que “melhor se afeiçoaria ao seu temperamento”, descartando aqueles que, “por diversas razões, não lhe agradam”, como o engole-fogo, o corvo, a coruja, o milhafre, o</p><p>pelicano e convocando apenas os que se caracterizam pela bondade, como o simorgh, o rouxinol e a andorinha. A essa altura, é preciso lembrar que as aves possuem um grande</p><p>valor simbólico, a começar que representam, entre outras coisas, a integração entre o Céu e à Terra, pelo fato de pertencerem a ambos os reinos: “l’oiseau, symbole de l’âme, a un</p><p>rôle d’intermédiaire entre la terre et le ciel”19 (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1973, p. 310). Nesse caso, as aves servem para ilustrar o princípio das correspondências, ainda</p><p>mais pelo fato de a personagem, ao final, ver-se transformada num “pavão bizantino”. Esse pássaro, por reunir várias cores e possuir uma plumagem exuberante, é uma síntese de</p><p>todas as aves: “dans les traditions ésotériques, le paon est un symbole de totalité, en ce qu’il réunit toutes les couleurs sur l’éventail de sa queue déroulée”20 (CHEVALIER;</p><p>GHEERBRANT, 1973, p. 353). Contudo, esse aspecto positivo da metamorfose acaba por ser negado, devido à fútil motivação da personagem:</p><p>Ao pular, passou-lhe pela mente, no instante do terceiro salto, a ideia que vinha se repetindo nos últimos tempos: se fosse pássaro, não precisaria agir assim. Bastaria</p><p>bater as asas, voar e chegar ao destino, rapidamente, sem necessidade de, sonolento, levantar-se da cama tão cedo (PRADE, 2009, p. 34).</p><p>O ornitólogo, ao sonhar se transformar em pássaro, não é movido por nenhuma transcendência ou anseio de totalidade, pois há aí apenas um princípio utilitário, ou seja, em</p><p>vez de ele almejar uma elevação ao reino celeste, deseja, por meio das asas, somente chegar a seu destino do modo mais rápido possível. O utilitarismo poderia, de certo modo, ser</p><p>atenuado pela vontade de ele se transformar numa ave de bom temperamento, mas esse intento também é desqualificado, porque esbarra em seu principal defeito, que é a vaidade,</p><p>exposta na sua metamorfose em pavão:</p><p>Vaidoso, seu primeiro reflexo foi o de cravar o rosto no espelho, embutido ao lado da janela do corredor. Viu, então, espantado como se tivesse cem olhos, que se</p><p>transformara num pavão bizantino (PRADE, 2009, p. 36).</p><p>O adjetivo “bizantino” acentua ainda mais essa sua qualidade negativa, porque, além do sentido patronímico (de Bizâncio), tem também os sentidos de frivolidade,</p><p>pretensão. Mas o símbolo desse tipo específico de ave não anula o princípio da totalidade, pois, em vez de remetê-lo às correspondências, à integração entre tudo que existe,</p><p>remete, de modo negativo, a uma intensificação da vaidade. Isso porque, se a ave tem um aspecto positivo, ao indicar “l’identité de nature de l’ensemble des manifestattions”, por</p><p>outro lado, tem igualmente um caráter negativo, pois as cores da cauda “apparaissent et disparaissent, aussi vite que le paon se déploie et se replie” (CHEVALIER;</p><p>GHEERBRANT, 1973, p. 353). Em síntese: neste conto, ao contrário do que acontece em “Canil com vista para o mar”, em “Sonhos”, em “Hipnotizador”, nota-se a subversão do</p><p>princípio das correspondências. É como se Péricles Prade, com sua proverbial ironia, visasse a criticar o homem vaidoso que, desprovido de maiores virtudes, transforma-se num</p><p>ser mutilado, perdendo, assim, o sentido da totalidade.</p><p>Mas, seja de uma perspectiva positiva ou negativa, o que se percebe neste livro de Péricles Prade é o investimento, às vezes, às claras, às vezes, de modo subliminar, no</p><p>princípio das correspondências. Tanto no plano formal, quanto no plano da concepção de mundo, percebe-se uma tentativa de integração entre tudo o que existe, no sentido de</p><p>busca de um princípio comum entre as coisas, princípio esse só detectado por meio da intuição mágica, de uma lógica que não é a formal.</p><p>3. A lógica do delírio</p><p>Segundo Remo Bodei, o delírio</p><p>apresenta-se, tradicionalmente, como sinônimo de irracionalidade (absurdidade, falta de fundamento, erro, caos), ao passo que seu oposto especular, a razão,</p><p>define-se, por contraste, mediante os atributos da evidência, da demonstração, da verdade e da ordem (2003, p. 15).</p><p>Esse preconceito em relação ao delírio é motivado por princípios apoiados na lógica da Razão Triunfante, que passou a imperar nos meados do século XIX, com o advento</p><p>do Positivismo, que rechaçava qualquer modo de conhecimento do mundo que não se baseasse nos métodos racionais e experimentais, na observação positiva do real. Contudo, a</p><p>razão, permeada pelos avanços da Psicanálise, pela investigação do Inconsciente, mais “hospitaleira e expansiva”, no dizer de Bodei, “mais humilde, mas nem por isso menos</p><p>rigorosa”, teria condições “de reconhecer os núcleos de verdade [...] dos delírios” (Ibidem, p. 16). Ainda segundo o pensador italiano, o sujeito delirante é capaz de construir um</p><p>mundo novo, ao adaptar a realidade a suas exigências, e esse mundo novo “apresenta-se, com frequência, como uma descoberta, porque, para o indivíduo, ele está iluminado por</p><p>evidências nunca antes observadas e fixado com vínculos de absoluta coerência”. Ou seja: há em todo delírio uma “verdade histórica oculta”, de modo que ele não venha a</p><p>“representar um vaguear sem destino”</p><p>(Ibidem, p. 128). Em suma: o delírio vem a preencher vazios de significado presentes na vida psíquica, que é descontínua e nem sempre</p><p>acessível aos métodos racionais.</p><p>Mutatis mutandis, é o que se verifica na ficção de Péricles Prade, regida pela “lógica do delírio” ou, se se quiser, pela desrazão poética, capaz ela só de tornar contínua a vida</p><p>psíquica, de encontrar nexos, afetividades, entre as coisas mais díspares, graças à adequada manipulação das analogias e, sobretudo, das correspondências. Suas narrativas, que</p><p>lembram o sonho, o devaneio, devido ao nonsense, ao desvairo, sempre conduzem o leitor por um labirinto, cuja saída, portal de acesso ao desconhecido, encontra-se barrada pela</p><p>Esfinge. Só não serão devorados aqueles que se deixaram conduzir por um paradoxal delírio lúcido, que, lhes fornecendo as chaves de decifração do enigma, ao mesmo tempo,</p><p>lhes fornecerá as chaves para abrir as portas do paraíso do imaginário.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>ADES, Dawn. O Dadá e o Surrealismo. S.l.p.: Editorial Labor do Brasil, 1976.</p><p>ARISTÓTELES. A Poética Clássica. Tradução de Roberto de Oliveira Brandão e Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1981.</p><p>ÁVILA, Myriam. Rima e Solução; a poesia nonsense de Lewis Carroll e Edward Lear. São Paulo: Annablume, 1996.</p><p>AZCUY, Eduardo A. El Ocultismo y la Creación Poética. Buenos Aires: Editorial Sulamericana, 1966.</p><p>BAUDELAIRE, Charles. Curiosités Esthétiques, l’Art Romantique et Autres Oeuvres Critiques. Paris: Garnier, 1962.</p><p>BODEI, Remo. As Lógicas do Delírio: razão, afeto, loucura. Bauru: EDUSC, 2003.</p><p>BORER, Alain. Joseph Beuys. São Paulo: Cosac & Naif, 2001.</p><p>BOEHME, Jakob. .</p><p>______. Jacob Boehme. São Paulo: Madras, 2007.</p><p>BOUISSON, Maurice. A Magia. Lisboa: Ulisseia, 1958.</p><p>CASSIN, Barbara. L’Effet Sophistique, apud Massaud Moisés. Dicionário de Termos Literários. 12. ed., revista e ampliada. São Paulo: Cultrix, 2004.</p><p>CHEVALIER, Jean et GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire des Symboles, Paris: Seghers, 1973. 4 v.</p><p>DUMAS, François Ribadeau. Historia de la Magia. Madrid: Plaza y Janes Editores, 1973.</p><p>EMERSON, Ralph Waldo. The Selected Works of Ralph Waldo Emerson. 3. ed. New York: Randon House, 1968.</p><p>GOMES, Álvaro. A Santidade do Alquimista. São Paulo: Unimarco, 1997.</p><p>HUTCHEON, Linda. Uma Teoria da Paródia. Lisboa: Edições 70, 1989.</p><p>LEAR, Edward. Adeus, Ponta do meu Nariz. São Paulo: Hedra, 2003.</p><p>MICHAUD, Guy. Message Poétique du Symbolisme. Paris: Nizet, 1969.</p><p>MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. 12. ed., revista e ampliada. São Paulo: Cultrix, 2004.</p><p>MORIN, Edgar. Educação e Complexidade: os sete saberes e outros ensaios. 3. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2005.</p><p>PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.</p><p>PRADE, Péricles. Correspondências. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2009.</p><p>http://ebook/ChaveBoehme 1.htm</p><p>ROOB, Alexander. L’Alchimie & Mystique. Paris: Taschen, 2005.</p><p>SANT’ANNA. Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia, São Paulo: Ática, 1991.</p><p>SELIGMANN. Kurt. História da Magia II. Lisboa: Edições 70, 1975.</p><p>STAROBINSKI. Jean. Retrato del Artista como Saltimbanco. Madrid: Abada Editores, 2007.</p><p>SWEDENBORG, Emanuel. A Treatise Concerning Heavens and its Wonders and Also Concerning Hell. 6. ed. London: E. Hodson, 1817.</p><p>TCHEKHOV. Anton. “Os Mujiques”. O Assassinato e Outras Histórias. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac & Naif, 2002.</p><p>UBALDO, Edson. Vinho: um presente dos deuses. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1999.</p><p>Notas de Rodapé</p><p>1 Em alguns casos, palavras também comparecem numa tela, como é o caso, por exemplo, de algumas perpetradas por alguns cubistas, mas, nesse caso, elas</p><p>se comportam como objetos entre outros objetos.</p><p>2 Tradução nossa: “Carregado com uma soma forte de elementos emocionais, raciocina na maioria das vezes, além da contradição, comparação, classificação e</p><p>análises prévias. Ele está aprisionado no que Ribot chama de "lógica da vida afetiva" ou "lógica dos sentimentos" em oposição à lógica clássica ou racional”</p><p>3 Remo Bodei. As Lógicas do Delírio: razão, afeto, loucura. Bauru: EDUSC, 2003.</p><p>4 Athanasius Kircher (1601-1680) nasceu na Alemanha. Escreveu 40 obras sobre estudos orientais, geologia, medicina, microbiologia. Foi também um grande</p><p>inventor. Entre suas invenções, salientam-se um megafone, um projetor de imagens e projetos para se criar um órgão automático e o já citado relógio</p><p>movido pela força da água e do sol.</p><p>5 Tadução nossa : «Por ter recriado sua Mãe Semei, que havia sido enganada por Zeus, no Inferno, e apresentado aos Imortais, Dionísio também foi</p><p>considerado um libertador do Mundo Inferior, o deus Ctônico [...]. No sentido mais profundamente religioso, o culto dionisíaco, apesar de suas perversões e</p><p>mesmo através deles, testemunha o esforço violento da humanidade para romper a barreira que o separa do divino”.</p><p>6 Tradução nossa: “Havia um Velho Homem, em cujo nariz,/Muitos pássaros do ar podiam descansar;/Mas todos voaram/No fim do dia,/O que deram alívio ao</p><p>Velho Homem e seu nariz”.</p><p>7 Observe-se que, nesse jogo de referências, como o autor dá à mulher o mesmo sobrenome de Lewis Carroll que, na realidade, se chamava Charles Lutwidge</p><p>Dodgson, também autor de nonsense da literatura inglesa.</p><p>8 Talvez valha a pena referir aqui que o nome do mestre. O personagem funde o de dois grandes ocultistas, Eliphas Levi e Nicolau Flamel. Aliás, uma tendência</p><p>muito comum em Péricles Prade é a de fazer essas referências a fontes e/ou personalidades que determinam o seu cânon de leituras, no caso, as de</p><p>magia, ocultismo.</p><p>9 Tradução nossa: “Nossa inteligência individual recebe material utilitário, cuidadosamente selecionado, e elabora uma reduzida imagem do real que lhe permite</p><p>limitar-se e sobreviver em um mundo de possibilidades infinitas”.</p><p>10 Tradução nossa: “monstro da escuridão e da lua nova, ele é também uma das figuras do mundo superior, o mundo da vida e da luz nascentes”.</p><p>11 Tradução nossa: “joga um jogo fálico nos numerosos mitos americans e asiáticos. Ela se aparenta ao complexo simbólico representado pela serpente”.</p><p>12 No parágrafo 115, Swedenborg distingue quatro idades do homem: a) a do ouro, em que os homens eram homens celestes e tinham consórcio com os anjos</p><p>através de naturais correspondências; b) a da prata, quando os homens tinham “ciência das correspondências” e uma relação não tão íntima com o céu; c)</p><p>a do cobre, quando os homens, embora intuitivamente conhecessem as correspondências, não entendiam a “ciência das correspondências”; d) a do ferro:</p><p>após as três primeiras idades, os homens só começam a pensar em coisas externas e corpóreas e perdem de vez o sentido das correspondências, o</p><p>conhecimento do céu e das muitas coisas relativas ao céu.</p><p>13 Tradução nossa: “A analogia poética – diz Breton – tem em comum com a analogia mística o fato de que ambos transgridem as leis da lógica e mostram ao</p><p>espírito a interdependência dos objetos do pensamento localizados em planos diferentes, entre os quais o funcionamento lógico do espírito. não é capaz de</p><p>estabelecer qualquer ponte e opõe-se a priori que cada ponte seja estabelecida.”</p><p>14 O crítico Brunetière, ao comentar a expressão de Amiel – “Uma paisagem é um estado de alma” –, lembra que “independentemente do gênero ou do tipo de</p><p>emoção que desperta em nós, independentemente de nós e daquilo que podemos dedicar de nós próprios, uma paisagem é, em si mesma, ‘tristeza’ ou</p><p>‘contentamento’, ‘alegria’ ou ‘sofrimento’, ‘cólera’ ou ‘apaziguamento’. Ou em outros termos ainda mais gerais, isso significa que entre a natureza e nós há</p><p>‘correspondências’, ‘afinidades’ latentes, ‘identidades’ misteriosas”, (apud MICHAUD, 1969, p. 739).</p><p>15 A nota é a seguinte: “O califa de Damasco mandou cortar a mão de São João Damasceno, caluniado por seus inimigos. A mão ficou exposta mas, por</p><p>milagre, se reintegrou” (TCHEKHOV, 2002, p. 126).</p><p>16 Tradução nossa : « É a matéria primeira, não ainda trabalhada, não ainda colocada num caminho de evolução”.</p><p>17</p><p>“contêm os axiomas herméticos”.</p><p>18 “inscritos em caracteres hierogíficos”.</p><p>19 Tradução nossa: “O pássaro, símbolo da alma, tem um papel intermediário entre a terra e o céu”.</p><p>UM ROMANCE INTERDISCIPLINAR REVOLUCIONÁRIO</p><p>Álvaro Cardoso Gomes</p><p>No Hospício, de Rocha Pombo21, é um romance singularíssimo, talvez um caso único na Literatura Brasileira, graças a seu radicalismo, graças às inovações que trouxe para</p><p>o romance do fim do século XIX. Sem fazer concessões de espécie alguma, o autor cria uma obra, que é um verdadeiro laboratório, ao enveredar pelo experimentalismo</p><p>romanesco. Com sua visceral opção por uma prosa voltada para o ensaístico, para o estético, para o metafísico e, ao mesmo tempo, voltada para o mundo das fantasmagorias, cria</p><p>algo que se poderia catalogar como um antirromance, mas que, de modo paradoxal, não perde as prerrogativas de romance. Isso porque é importante que se frise que a discussão</p><p>das ideias, as contínuas reflexões sobre o espectro cultural do fim do século XIX, que envolvem a filosofia, a sociologia, a política, as ciências, a literatura, não existem por si sós,</p><p>como especulação abstrata, o que negaria o princípio da ficção. É preciso considerar que, apesar de o texto ser na maior parte composto de longuíssimos diálogos, de reflexões</p><p>estéticas e metafísicas, ainda assim se vislumbram um tênue enredo, um espaço bem definido e personagens que têm um perfil psicológico e uma atuação física dentro da</p><p>narrativa. Essa singularidade do romance é que talvez tenha sido responsável pelo fato de que ele não obtivesse quase nenhum reconhecimento na época em que foi lançado, nas</p><p>primícias do século XX (em 1905). Andrade Muricy, em seu notável Panorama do movimento simbolista brasileiro (1973), alega que o lançamento do romance passou</p><p>despercebido pelo fato de ter surgido numa época “de predomínio materialista e naturalista”, em que ainda imperava a prosa realista, de costumes. Na sequência, dá a entender que</p><p>“a crítica, simplista, e mesmo elementar por vezes – a mesma que desconhecera Cruz e Sousa – não tomou conhecimento de No Hospício” (MURICY, 1973, p. 140). Poderia</p><p>acrescentar às judiciosas observações de Andrade Muricy mais duas hipóteses para justificar a indiferença do público pelo livro: (i) No Hospício apresenta inegáveis dificuldades</p><p>aos leitores em geral, porque deixa de lado a trama convencional, o psicologismo, a crônica de costumes e envereda pelo onirismo, pela especulação filosófica, pelo desbragado</p><p>ensaísmo, de caráter estético/metafísico. Sobretudo, se considerarmos os dois últimos tópicos, há que se constatar o seguinte: num país em que sempre houve muito pouco</p><p>interesse pela filosofia, pela metafísica, a ponto de não haver entre nós um grande e original filósofo, escrever um romance desse tipo seria quase um suicídio editorial. No</p><p>Hospício é um romance que surgiu dentro de uma estética, mais propensa à poesia do que a prosa, no caso, o Simbolismo. Assim, ter a ousadia de publicar uma narrativa</p><p>simbólica, com a flagrante contaminação do poético, o que dificulta a leitura, em vez de facilitar, talvez também tenha contribuído para o distanciamento do público. Esses fatores</p><p>todos é que fizeram com que No Hospício, uma obra difícil, se tornasse um caso único em nossa literatura, não deixando, a rigor, seguidores. Todavia, vencida uma hesitação</p><p>inicial com a inexistência de nexos causais, da descrição de cenários e personagens, com o hermetismo de longas passagens, caracterizados ou pelo poético ou pela exposição de</p><p>filosofemas, com certeza, o leitor sentir-se-á atraído pela trama metafísica, que sobrevaloriza um humanismo integral e rejeita os princípios e leis que tentaram, no passado, e ainda</p><p>vêm tentando, em nosso tempo, subjugar o espírito do homem, moldando seu caráter de acordo com valores preconcebidos. No Hospício “constitui o exemplar acabado de</p><p>romance simbolista, desde o estilo até o conteúdo”, pois “o próprio plano intelectual é que se impõe ao leitor, ao menos àquele desinteressado de encontrar no romance a mera</p><p>sucessão de peripécias horizontais”, no dizer de Massaud Moisés (1984, p. 158-159), no capítulo dedicado ao romance, em sua importante obra sobre o Simbolismo no Brasil.</p><p>Como tal, obriga-se a cumprir certas premissas específicas da estética finissecular, entre elas, a prática de uma prosa que prima pela alusividade, pela sugestão e que submete o</p><p>episódico ao que chamaríamos aqui, na falta de melhor tema, de “trama espiritual”, para expressar a comunhão do ser com o espírito, com a alma universal. Esse princípio, quiçá,</p><p>tenha seu fundamento na obra De Coelo et de Inferno, de Emanuel Swedenborg22 (aliás, citado no livro, direta e indiretamente), que exerceu grande influência na geração</p><p>simbolista. Para o místico sueco, todas as coisas que existem na natureza desde a menor ao que há de maior são correspondências. A razão para que sejam correspondências reside</p><p>no fato de que o mundo natural, com tudo o que contém, existe e subsiste graças ao mundo espiritual, e ambos os mundos graças á Divindade (SWEDENBORG, 1872, p. 64).</p><p>O simbolista, apoiando-se em Swedenborg, deseja encontrar a unidade do material e do espiritual aqui na Terra, de modo a “recuperar a unidade de um mundo</p><p>artificialmente dividido” (FEIDELSON, 1969, p. 56). Essa temática, a do “evangelho das correspondências”, constitui o núcleo do Simbolismo. Desprezando o aparente, o visível,</p><p>o poeta simbolista parte em busca do mistério, do que se oculta sob a aparência das coisas, como, aliás, dava a entender o poeta açoriano Roberto de Mesquita num de seus</p><p>sonetos: “No âmago de tudo, claramente, /Eu descubro um espírito a cismar” (1973, p. 30). Concebendo assim o mundo, o poeta descarta a ideia de que os objetos do real tenham</p><p>sentido em si – na verdade, não passam eles de índices do mundo espiritual, ou mesmo, símbolos do espírito. Mas, para expressar as correspondências entre o reino material e o</p><p>reino espiritual, era preciso encontrar uma linguagem especial, diferente daquela utilitária, do dia a dia. Nasce daí o princípio do símbolo, que sugere sem revelar e que visa a</p><p>expressar estados indefinidos de alma e que, em sua constituição, deve ser a representação mais fiel da continuidade e da infinidade de movimentos existentes na alma do ser. A</p><p>teoria das correspondências, com a consequente eleição da linguagem simbólica, só ela propícia a captar as nuanças da alma, provocou uma grande revolução estética dentro do</p><p>Simbolismo: a poesia, deixando de ser declamatória, descritiva, deixando de expressar o lirismo superficial, as confissões amorosas, volta-se para o misterioso, para o inefável.</p><p>Para tanto, ao apelar para o máximo de alusividade e sugestividade, de modo a expressar conteúdos tão imprecisos, nos casos mais extremos, torna-se hermética e só acessível a</p><p>iniciados.</p><p>Idêntica revolução verifica-se na prosa do período: o mundo real interioriza-se, e os pontos de referência espaciais se atenuam, porque geralmente servem apenas para evocar</p><p>estados de alma imprecisos, ou elucubrações metafísicas, traduzidas por imagens polivalentes. Determinados recursos, antes considerados restritos ao plano poético, como o uso</p><p>de aliterações, sinestesias, assonâncias, o amplo uso de maiúsculas, a musicalidade atingida pela intencional tautologia do discurso, invadem o terreno da prosa. Em No Hospício,</p><p>notam-se tais características, acentuando o caráter indeterminado do espaço, o que serve para tornar cada vez mais espectrais as personagens, movidas não por relações de causa e</p><p>efeito ou por humores e temperamentos, como no romance naturalista, mas por lacerações íntimas, que as impedem de agir e que as fazem se entregar a um estado de mórbida</p><p>indolência.</p><p>Vem daí que o enredo seja bem simples, reduzido a algumas poucas informações, que o leitor vai colhendo ao sabor da leitura e pode ser resumido ao seguinte: o Narrador</p><p>depara-se num hospício com um doido chamado Fileto Seixas, que lhe chama fortemente a atenção, devido a seu comportamento inusitado. Além de grande leitor de obras</p><p>místicas, vive como que exilado num mundo espiritual. Intrigado com isso, resolve se fazer de louco, internando-se também no Hospício, para se aproximar da estranha criatura.</p><p>Tornando-se seu amigo e confidente, trocam textos que escrevem e têm entre si longuíssimas conversações. Mais adiante, o Narrador vem a descobrir que o pobre rapaz foi</p><p>internado ali pela prepotência do pai, um rico Comendador, incomodado com os desatinos do filho. Agregam-se, ainda, a essa tênue linha do enredo, a história de Alice, irmã de</p><p>Fileto, também visionária, e a de um louco varrido, que tentou amar Alice e foi internado no sanatório, para que fosse afastado da moça, e a dos projetos de uma grande utopia,</p><p>forjada pelos amigos de irem para o Oriente, erigir a pátria ideal, longe deste insensato mundo.</p><p>Não é difícil verificar que a ação se esvazia, enquanto sequência de acontecimentos, de modo que os fatos do real sirvam apenas de suporte para profundas reflexões que têm</p><p>como base as oposições entre o sistema social e o indivíduo, o material e o espiritual, a ciência positiva e a imaginação simbólica, entre outros tópicos. A consequência disso está</p><p>no fato de que praticamente não há descrições do espaço. Sabe-se que o cenário de quase todo o livro é um hospício (que terá um valor simbólico, como mostraremos adiante),</p><p>descrito em breves pinceladas – os quartos dos doentes, o grande jardim, no fundo do edifício. De vez em quando, há pequenas descrições sugestivas da Natureza, com referências</p><p>às árvores, palmeiras, ao mar, mas como se ela fosse apenas mera extensão das personagens. Quanto ao tempo, é elástico o bastante para comportar as expressões da alma. Pouco</p><p>preciso, a mais das vezes, é referido em breves referências a um momento específico do dia, l’heure exquisse dos simbolistas: “a doce claridade dos crepúsculos, tão favorável à</p><p>meditação e ao mistério” ou “a hora indecisa que fica entre o dia e a noite” que “nos aperta o coração” (ROCHA POMBO, 1996, p. 125). O mesmo se pode dizer das personagens.</p><p>Em todo o romance, há somente uma ligeira descrição de Alice, a irmã de Fileto:</p><p>A presença daquela criatura me produzia, em volta da alma, uma solenidade de coisas celestes. A sua fonte aberta, a sua brancura de alabastro, quase transparente, a</p><p>sua beleza mística de santa – tudo inspira um suave sentimento de consolação infinita. Quando ela me apertou a mão, eu diria que não senti contato material, mas</p><p>como uma deliciosa emanação que me eletrizou. Seus olhos, lúcidos, fulgurantes, quase sumidos nas órbitas profundas, sombreados de cílios negros e longos –</p><p>como que penetram as almas (Ibidem, p. 149).</p><p>Mas como se pode ver, não é uma descrição objetiva – pelo contrário, os traços físicos são ínfimos, imprecisos e visam a traduzir a espiritualidade da personagem. A</p><p>ausência de atributos físicos está a serviço de uma concepção especial das personagens. A começar pelo fato de que elas são pouquíssimas: o Narrador/ personagem, Fileto e sua</p><p>família, formada pelo pai, o Comendador Seixas, pela mãe, dona Ângela, por Alice, pelo irmão Oscar, o doutor Tristão, diretor do asilo e sóror Teresa, a enfermeira.23 A ausência</p><p>de descrições físicas das personagens implica o fato de que elas se constituam mais em representações da sociedade e da psique do que propriamente em caracteres. Assim, o pai</p><p>de Fileto, o rico Comendador Seixas, e o doutor Tristão são metonímias do poder do dinheiro e das Ciências. Indiferentes aos valores espirituais do homem, prendem-se ao mais</p><p>grotesco materialismo e aos mais ignóbeis métodos de estudo da psique humana. Contudo, é no trio formado por Fileto, Alice e o Narrador que se encontra o cerne, o sumo das</p><p>personagens do livro, que conduzem toda a trama, não pela ação deles em si, mas pela especulação metafísica, o que as leva a serem mais representações simbólicas e/ou anímicas</p><p>do que qualquer outra coisa. Fileto projeta-se na irmã como sua contraparte masculina, ou, utilizando-me da terminologia junguiana, é o seu animus, enquanto ela, ao se projetar</p><p>no irmão, como se fosse sua contraparte feminina, seria a sua anima. Em suma, ambos, em seu amor algo incestuoso, se complementam. Não é à toa que, mais adiante, seja feita</p><p>referência à personagem Seráfita, do romance de mesmo nome de Balzac. Nessa obra, se encontram também pares do eterno feminino (Seráfita) e do eterno masculino</p><p>(representado pelo anjo Seráfitus) (BALZAC, 1993, p. 117-226), que almejam atingir a totalidade por meio da junção dos polos opostos. Já o Narrador e Fileto formam outro par</p><p>(e, de certo modo, se completam, como as duas faces de uma moeda), aquele representando, ainda de acordo com Jung, a persona, o indivíduo comprometido com o social, e este,</p><p>a sombra, o indivíduo fechado em sua intimidade. O uso de tais arquétipos por parte de Rocha Pombo é que faz com que, na economia do romance, haja um movimento pendular</p><p>de aproximação e distanciamento entre ambas as personagens, que são a base de todo o livro. Fileto é o homem separado do mundo, o sonhador das alturas, o ser que vive a magia</p><p>do Mistério, inacessível ao comum dos mortais; já o Narrador – e é bem proposital que seja um narrador – é quem traz à luz (ou tenta trazer à luz) as grandes iluminações e</p><p>revelações do doido genial, como se a sua “obra toda, na vida, tivesse de ser o desvendamento daquele ser” (ROCHA POMBO, 1996, p. 129).</p><p>Mas não só isso: há também nele a preocupação de objetivar o grande sonho de Fileto, que é arrastá-la para o Mundo. Assim se explica, pois, o nascimento do romance, que</p><p>não passa de uma tentativa de desvendamento de uma alma por uma pessoa que, mesmo que movida por altos ideais, ainda mantém tênues laços com a realidade. E entra também</p><p>nesse desvendamento a exegese que o Narrador faz das obras de Fileto, que têm um caráter hieroglífico, pelo fato de serem inconclusas e fragmentárias. A organização e estudo</p><p>desses textos acenam para a intertextualidade do romance, que se torna assim polifônico, no sentido bakhtiniano do termo, uma vez que a voz narrativa, em muitos momentos,</p><p>cede terreno ou convive com outras vozes, provenientes de textos poéticos, ensaísticos, ou ainda, “sob um texto ou um discurso ressoa outro texto ou outro discurso; sob a voz de</p><p>um enunciador, a de outro” (FIORIN; BARROS, 1994, p. 34). Mas a oposição mais forte que se opera entre Fileto e o Narrador está nos objetivos de ambos. Contudo, como o</p><p>romance é todo ele paradoxal.</p><p>Essa oposição, até certo ponto, se atenua, quando ambos encontram pontos em comum nas aspirações e teorias que desenvolvem ao longo do contato que mantêm entre si.</p><p>Tais objetivos trazem em comum um repúdio sistemático do todo social e a afirmação categórica da supremacia da individualidade, da espiritualidade do sujeito sobre o mundo</p><p>material. Do ponto de vista deles, a sociedade é estabelecida, tendo em vista aprisionar os cidadãos dentro de categorias estanques, de maneira que cada um cumpra um papel</p><p>adrede determinado. Isso fica bem patente na crítica que o Narrador faz dos vencedores, dos falsos heróis da modernidade:</p><p>Tudo isso ia eu fazendo com certa amargura, convencido de que meu coração e meu espírito capitulavam ante aquela torpeza de processos tão da índole dos que</p><p>triunfam na vida – fingindo amar quando odeiam, odiando sempre quando parecem amar; fugindo ao aplauso sem terem outro culto, no entanto, que não o da</p><p>própria pessoa; abnegados, quando não têm na alma senão egoísmo; sinceros quando são só perfídia; bons quando rugem por dentro; adoradores da justiça quando</p><p>vivem do crime... [...] Eu era evidentemente uma vítima do meu tempo (ROCHA POMBO, 1996, p. 70, grifos nossos).</p><p>Esse verdadeiro mascaramento social impede que os cidadãos assumam a própria identidade, de maneira que passam a ser um outro, em vez de serem eles próprios:</p><p>Bem dizia alguém que nós somos, entre os homens, antes de tudo, aquilo que os outros homens nos fazem ser... No tempo e no espaço, não basta que se queira. Ninguém é o</p><p>que quer. A nossa linha, a nossa dignidade parece, mesmo, que está mais nos outros do que em nós próprios</p><p>(Ibidem, p. 63).</p><p>A constatação disso faz que o Narrador sinta que vive de “arrepio com o mundo”, tendo como consequência o fato de o mundo também andar “de birra” com ele. Verifica-se</p><p>aí um conflito insolúvel entre o indivíduo e a sociedade, que deseja conformá-lo para seus fins imediatistas, o que leva o Narrador a lamentar-se: “eu queria ser como sou... e não</p><p>me era lícito senão ser como é preciso ser” (ROCHA POMBO, 1996, p. 115, grifos nossos). Quanto a Fileto, ao repudiar o mundo circundante, assume atitude radical, conforme a</p><p>descrição que sóror Teresa faz de seu comportamento esdrúxulo:</p><p>Ele era ainda estudante quando começou a desgostar a família com certas esquisitices. Não sabia trajar... Pouco caso fazia de sociedades... Andava sem</p><p>compostura... sem linha na vida... Vagueava como um palerma pelas ruas... chegando às vezes a sair sem gravata... Metia-se no seu cômodo a ler, quando à casa lhe</p><p>iam visitas. Tanta coisa, enfim, que a família, de envergonhada, chegou a afastá-lo para um lugarejo da província (ROCHA POMBO, 1996, p. 57).</p><p>Fileto configura-se como um autêntico gauche, permanecendo assim à margem da sociedade, que exige de cada cidadão um comportamento pautado por estereótipos. Esse</p><p>modo de ser da personagem é levado às últimas consequências quando ele começa a ter visões, a ponto de ver nas coisas, na vida, o que outros tantos não sentem. Nesse ponto,</p><p>atinge a loucura divinatória, que o leva a ter, em relação ao homem comum, um “domínio mais completo dos sentidos”, de modo a impulsioná-lo para um além, onde reside o</p><p>mistério, ou seja, ele passa a entender como um dever supremo do indivíduo “a ideia de devassar ao mundo as intimidades de nossa alma, os arcanos da nossa existência</p><p>espiritual” (Ibidem, p. 122).</p><p>Devido a isso, começa a desenvolver “o seu desamor pelos homens [...], um desafeto e absoluto descuido pela vida material. Para ele – subsistir nada era: a vida do seu</p><p>espírito é que é vida, a única legítima e digna de ser amada” (Ibidem, p. 126), como afirma o Narrador. A rejeição do social e a assunção deliberada do mundo espiritual por parte</p><p>de Fileto tem como efeito mais grave a rejeição da família (à exceção da irmã Alice, que comunga com suas ideias) e a sua internação no Hospício, o espaço concebido para tratar</p><p>aqueles que se desviam dos preceitos sociais e que tenham comportamentos que fogem ao normal. Não é à toa que o próprio Narrador faça críticas ao sistema iníquo do</p><p>confinamento dos loucos nos hospícios, bem como ao tratamento dado a eles:</p><p>- Vamos admitir que aquele homem sofre, de fato, algum desarranjo na dinâmica do seu organismo... pergunto: serão aqueles, meu Deus, os meios racionais, os</p><p>meios mais eficazes e principalmente, os meios mais humanos de restaurar o equilíbrio daquela vida, a consciência daquele ser? Suponhamos que se trata, não de</p><p>curar a doença, mas apenas de segregar o doente por comodidade dos sãos; mas então é preciso crer que não seja possível tornar menos doloroso e menos medonho</p><p>aquele castigo? (Ibidem, p. 101, grifos nossos).</p><p>Ainda: “que ciência é esta que condena uma pobre criatura humana sem ouvi-la e abandona assim um espírito à solidão horrível de um hospício... [...] Que sociedade então</p><p>fizemos que não salva os perdidos!...” (Ibidem, p. 57). Mas como o romance é todo ele paradoxal, é possível de se imaginar que essas contraposições sociedade X hospício e</p><p>sanidade X loucura venham a ter outra leitura, ou seja: o mundo é que é um vasto hospício e a loucura, sanidade. Ao deixar o asilo e caminhar pela cidade, o Narrador é tomado</p><p>pelo horror, ao constatar que:</p><p>Os próprios ares me pareciam lúgubres. [...] Uma atmosfera de inferno dir-se-ia pesando sobre a deidade. Uma vertigem penosa, uma tribulação de fim de mundo,</p><p>ameaça as criaturas... Ah! Estou no grande hospício, onde a perduta gente do poeta24 me faz um pavor semelhante ao que se há de sentir no meio da danação. Meu</p><p>Deus! Estes doidos daqui me quebrantam muito mais do que aqueles que eu lá deixei no seu descanso. (Ibidem, p. 268).</p><p>Essa inversão de valores, provocada pela concepção do Narrador de que o verdadeiro hospício é o mundo em si, nos permite conceber a instituição do hospício de uma</p><p>perspectiva simbólica, ou seja, como um espaço, não só de confinamento de doidos, mas como um espaço especial, onde se refugiam alguns seres de exceção. Nesse caso, ele se</p><p>identifica com a torre de marfim simbolista, ora, representada pelo castelo, onde o Conde de Axel, do poema dramático em prosa de Villiers de l’Isle Adam, refugia-se com sua</p><p>amada, ora, como a mansão, onde Des Esseintes, personagem de A Rebours, distancia-se das vulgaridades do mundo, ora como a “tour abolie”, do Prince d’Aquitaine, do poema</p><p>“El Desdichado”, de Nerval e ora, ainda, como a “torre do Anto”, espaço mágico dentro do qual António Nobre se põe a cismar, lembrando da infância. E o mesmo se pode dizer</p><p>da loucura de Fileto, que toma um contorno simbólico. Sendo ela uma loucura divinatória, que o faz intuir o mistério da vida, lembra em tudo aquela propugnada por Rimbaud,</p><p>Lettre au voyant, ao tratar do poeta vidente:</p><p>Je dis qu’il faut être voyant, se faire voyant. Le Poète se fait voyant par un long, immense et raisonné dérèglement de tous les sens. Toutes les formes d’amour, de</p><p>souffrance, de folie; il cherche lui-même, il épuise en lui tous les poisons, pour n’en garder que les quintessences. Ineffable torture où il a besoin de toute la foi, de</p><p>toute la force surhumaine, où il devient entre tous le grand malade, le grand criminel, le grand maudit, – et le suprême Savant – Car il arrive à l’inconnu! Puisqu’il</p><p>a cultivé son âme, déjà riche, plus qu’aucun ! Il arrive à l’inconnu, et quand, affolé, il finirait par perdre l’intelligence de ses visions, il les a vues! Qu’il crève dans</p><p>son bondissement par les choses inouïes et innombrables: viendront d’autres horribles travailleurs; ils commenceront par les horizons où l’autre s’est</p><p>affaissé! (RIMBAUD, 1951, p. 454-455).25</p><p>É a conclusão a que chega o Narrador: quando os sentidos se aperfeiçoam num cérebro perfeito, o homem pode vir a ter visões. Sendo assim, ele desmistifica os juízos</p><p>corriqueiros que se fazem dos gênios, contestando a simplória teoria de que o homem de gênio é apenas um desequilibrado, um desatinado, ao dizer que “o desequilíbrio nos</p><p>homens de gênio não é o desconcerto cerebral que se inculca: é mesmo o contrário disso, exatamente. Esse desequilíbrio é fisiológico: dá-se entre a capacidade do EU e os</p><p>recursos de exteriorização ou de expansão” (ROCHA POMBO, 1996, p. 143). A loucura, pois, é uma forma de Fileto fugir à opressão social e, ao mesmo tempo, de ele mergulhar</p><p>solitariamente em seu mundo privilegiado de visões.</p><p>Contudo, um problema aí se impõe: é o abismo que há entre essas visões e os meios de que o homem dispõe para expressá-las. Isso porque o Narrador não se sente capaz de</p><p>refletir, nesta pobreza de linguagem humana, as cintilações daquela intensa luz. Essa crítica à pobreza da linguagem ou mesmo da oposição entre o que se sente na interioridade e</p><p>o que se expressa já era tema recorrente entre os românticos. Lembramos aqui de Lamartine e Schiller. O poeta francês dizia que renunciava “a cantar, não por me faltarem as</p><p>melodias interiores, mas por não dispor nem de voz, nem de notas que as comuniquem”, pois “a alma é infinita e as línguas não são mais do que um pequeno número de sinais</p><p>elaborados pelo uso para as necessidades dos homens comuns”. (LAMARTINE, 1949, p. 29). O poeta alemão, por sua vez, expressa algo similar com o célebre aforismo: “quando</p><p>a alma fala, já não fala alma”. (SCHILLER, 1855, p. 117). Não seria demais dizer até que o seguinte comentário do Narrador a respeito do problema lembra bem a Schiller: “Que</p><p>uma alma nunca se objetiva com exatidão precisa e que fazer uma sillouette em vez de uma imagem real e fiel de sua alma seria ignóbil demais...” (ROCHA POMBO, 1996, p.</p><p>47).</p><p>A partir dessa constatação, as personagens entram a discutir a mediocridade da arte da época, com sua incompetência em representar as cintilações,</p><p>as visões, propondo, em</p><p>seu lugar, a arte do futuro. No início do romance, quando o Narrador compõe um soneto, hesita e acaba não o mostrando a Fileto, porque tem um pressentimento de que o amigo</p><p>não leria os versos, pois “são raros os versos naturais como a prosa e com certeza aquele espírito havia de ter suspeitas contra o metro e a rima” (ROCHA POMBO, 1996, p. 75,</p><p>grifos nossos). Eis por que parte ele à procura de uma nova arte, em que a palavra trivial ou mesmo o metro e o ritmo convencionais são substituídos de modo mais vantajoso pelo</p><p>símbolo, na medida em que “a palavra não deve ser para a alma senão um sinal misterioso, muito discreto, muito austero, só perceptível à visão dos espíritos”. (ROCHA POMBO,</p><p>1996, p. 76). Contudo, o símbolo é visto aqui de uma perspectiva algo diferente daquele convencional, como explica Edmund Wilson:</p><p>Os símbolos do Simbolismo têm de ser definidos de maneira algo diversa do sentido dos símbolos comuns – o sentido de que a Cruz é símbolo da Cristandade ou as</p><p>Estrelas e Listras o símbolo dos Estados Unidos. Esse simbolismo difere inclusive de um simbolismo fixo como o de Dante. Pois o tipo familiar do simbolismo é</p><p>convencional e fixo; o simbolismo da Divina Comédia é convencional, lógico, preciso. Mas os símbolos da escola simbolista são, via de regra, arbitrariamente</p><p>escolhidos pelo poeta para representar suas ideias; são uma espécie de disfarce de suas ideias (1993, p. 21).</p><p>Acrescentamos ainda que, no caso da discussão em pauta no romance, o símbolo, além de incomum, é entendido como algo que já existe na Natureza, como dá a entender o</p><p>Narrador na seguinte passagem:</p><p>Do mesmo modo que em toda a natureza – isto é, no mar, na estrela, no espaço, na árvore, no perfume, na luz, no movimento –, procuro na linha, no som, na</p><p>eloquência intangível do verbo, o signo excelente e invisível da vida. E assim como há almas que passam inabaladas ante o oceano, o firmamento e a montanha, e</p><p>não se agitam interiormente à vista de um inseto ou de uma flor – não é a todos que fala o verbo, pois que o verbo, no que tem de augusto só se faz entendido de</p><p>almas verdadeiramente grandes (ROCHA POMBO, 1996, p. 76).</p><p>Nada mais baudelaireano do que a defesa do princípio de que só as almas “verdadeiramente grandes” conseguem ler a cifra do universo, encontrando correspondências</p><p>latentes entre sua alma e a da Natureza.26 O símbolo, pois, em vez de dizer, de esclarecer, deve apenas sugerir: “eis aí o supremo ideal da arte, o seu poder infinito: ela tem por</p><p>fim sugerir, por meio do signo, o que não pode fazer ver senão ao espírito”. A nova arte propugnada pelo narrador e, por tabela, por Fileto “ainda está para vir, uma arte para os</p><p>espíritos: uma arte que nos revele as grandes figuras apenas pelas diagonais” (ROCHA POMBO, 1996, p. 153). Ora, o que se propõe em No Hospício, em termos de uma nova</p><p>arte, que seja capaz de traduzir os grandes anseios da alma, as iluminações do espírito, não é nada mais nada menos aquilo que Mallarmé defendia, para justificar a arte praticada</p><p>pelos poetas simbolistas:</p><p>A contemplação dos objetos, a imagem alçando voo dos sonhos por eles suscitados, são o canto; já os parnasianos tomam a coisa e mostram-na inteiramente: com</p><p>isso, carecem de mistério; tiram dos espíritos essa alegria deliciosa de acreditar que estão criando. Nomear um objeto é suprimir três quartos do prazer do poema,</p><p>que consiste em ir adivinhando pouco a pouco: sugerir, eis o sonho. É a perfeita utilização desse mistério que constitui o símbolo: evocar pouco a pouco um objeto</p><p>para mostrar um estado d’alma, ou inversamente, escolher um objeto e extrair dele um estado d’alma, através de uma série de decifrações (MALLARMÉ apud</p><p>GOMES, 1994, p. 102).</p><p>Contudo, de acordo com o Narrador, esta arte ainda está para ser criada e ela pode ser entrevista somente na música: “que a arte dos espíritos ainda não foi criada e que</p><p>apenas na música ele entrevê ou pressente alguma coisa dessa arte futura, que há de ser tão espiritual como os espíritos” (ROCHA POMBO, 1996, p. 68). Por que a música? Como</p><p>se sabe, ela é a mais imponderável, sugestiva e subjetiva das artes, por sua incapacidade de representar os objetos. A música constitui “um modo de representação que se tem por</p><p>forma e conteúdo o subjetivo em sua objetividade”, visando, com isso, não a “reproduzir objetos reais, mas a fazer ressoar o eu mais íntimo, a sua mais profunda subjetividade, a</p><p>sua alma ideal” (HEGEL, 1974, p. 180-182). Nesse sentido, se verifica que a “arte futura”, a que se refere o Narrador é, em realidade, ainda um projeto que deverá ganhar força e</p><p>se tornar mais explícita, na medida em que o Narrador promover a exegese da obra de Fileto, registrada em cadernos, a que, pouco a pouco, vai tendo acesso, com o auxílio de</p><p>sóror Teresa. Nesse ponto, entende-se melhor o papel do Narrador na economia do livro: além de ser o responsável por trazer à luz a figura de Fileto, além de construir para o</p><p>leitor a imagem desse homem excepcional, é também um intérprete de uma grande obra, fragmentária e inconclusa, de que restam somente indícios e que vai sendo ordenada ao</p><p>longo do romance.</p><p>Voltando à reflexão do início do ensaio: o Narrador/persona, com seu racionalismo, é quem traz a público, ou tenta trazer, as iluminações de Fileto/sombra. Mas como as</p><p>iluminações têm as suas peculiaridades – entre elas, a de não se deixarem captar pela linguagem lógica dos tratados –, foi preciso que o romance fosse narrado por alguém também</p><p>provido de uma alma de poeta, ainda que num grau inferior à de Fileto. Daí vem que No Hospício seja todo ele incongruente, desprezando descrições, o episódico, deixando-se</p><p>invadir pelo ensaístico, pelo poético, como se houvesse uma profunda coerência entre fundo e forma. Assim, se torna patente que a luta de Fileto é por chegar ao ponto máximo da</p><p>conquista do espírito, o que o leva a desprezar a materialidade vulgar do seu tempo e até mesmo a humanidade, como bem observa o Narrador: “Notei ainda que as ideias, das</p><p>cogitações de Fileto, andavam sistematicamente excluídas as questões de natureza social. Como se havia de explicar aquela absoluta despreocupação por tudo quanto respeita a</p><p>interesses coletivos, a destinos humanos!” (ROCHA POMBO, 1996, p. 124). A resposta de Fileto a essa dúvida crucial é bem clara, quando ele diz: “- Um verdadeiro espírito,</p><p>meu caro, não cogita dessas coisas... Só as almas nos merecem amor... Só me sinto solidário com as almas...” (Ibidem, p. 125).</p><p>Contudo, se o Narrador abraça a causa espiritualista de Fileto, não deixa, contraditoriamente, de sentir “vertigens de abismo” com as iluminações do amigo, porquanto, ao</p><p>contrário dele, ainda tem os pés fincados na realidade. E, levado por isso, é que rejeita, de modo mais dogmático, a sociedade e o Estado, porque este, a seu ver, é responsável por</p><p>toda a miséria do mundo. Isso faz que tente encontrar um porto seguro na construção de uma nova sociedade, em que “TODOS TÊM DE SER ESPIRITUAIS”. Para tanto,</p><p>constrói sua utopia, baseada nos pressupostos do socialismo utópico, como queria Proudhon, na qual haja a igualdade dos ofícios e em que nenhuma profissão seja considerada</p><p>superior às outras, em que seja reduzida a carga de trabalho e em que o homem apenas produza o suficiente para seu sustento e o da coletividade. Além disso, nessa sociedade</p><p>utópica, “em vez de governo, em vez de autoridade política, e fazendo de tudo que este deixa sempre de fazer, teremos a autoridade da Lei” (Ibidem, p. 177). Na sequência, o</p><p>Narrador dá mais detalhes desse mundo ideal, onde, em vez do individualismo, imperará a vida coletiva:</p><p>aliviados assim da faina da subsistência é que cada um poderá cuidar da sua vida superior. Depois: a grande cidade será eliminada: teremos núcleos, quando muito</p><p>de uma centena de famílias. Todas essas famílias terão a vantagem da vida coletiva: tanto o marceneiro, o ourives, o artesão, como o lavrador; tanto o fabricante, o</p><p>literato, como o criador, etc.: todos serão domiciliados na vila ou na cidade (Ibidem, p. 177).</p><p>A produção pensada desse</p><p>modo acaba por confinar na forma arcaica do escambo, ou seja, na predominância do valor de uso sobre o do lucro, com a troca de mercadorias,</p><p>sem o intercâmbio do dinheiro, quando o Narrador dá a entender que a princípio não se pode produzir no burgo tudo que é necessário à população, e por isso, periodicamente é</p><p>incumbido um dos chefes de família de ir às povoações vizinhas trocar os produtos da VILA por artigos indispensáveis ao consumo geral e ainda não produzidos na mesma</p><p>(Ibidem, p. 229).</p><p>Como se vê, de certo modo, a concepção dessa utopia de cidade – como, de modo geral, acontece com as grandes utopias – acaba por tentar recuperar valores anteriores ao</p><p>Capitalismo. Inclusive, o conceito de autoridade se altera quando o Narrador, inspirado pelo Carlyle, de Sartor Resartus, propõe uma nova hierarquia de líderes, tendo por base a</p><p>ideia do Herói da modernidade:</p><p>em vez de ricos e poderosos, teremos os bons e os grandes espíritos [...], em vez de reis das minas de ouro, em vez de reis de carvão e pedra, em vez de reis do</p><p>petróleo, em vez de reis das estradas de ferro, teremos os belos tipos que encarnarem o espírito da tribo – teremos O SÁBIO, O POETA, O ARTISTA, quer dizer, os</p><p>modernos HERÓIS, cuja glória será a nossa glória, pois a luz de todos eles há de refletir sobre cada um de nós (Ibidem, p. 122).</p><p>Ao elaborar, em longos períodos esta sua utopia, o Narrador pretende atrair com ela a Fileto e, ao mesmo tempo, tenta encontrar uma final conciliação entre as concepções</p><p>de mundo de ambos. Isso porque ele, além de saber que seu dever é o de buscar o “desvendamento daquele ser”, tem também consciência de que deve “arrastá-lo cá para o</p><p>Mundo”, para que suas iluminações não se percam, pois o gênio não seria mais do que uma simples aberração se não se objetivasse, se não saísse fora de si. A partir dessa</p><p>explanação sobre a sociedade do futuro, chega-se ao clímax do romance, quando se pensa que ambos, afinal, se reconciliam, ao abraçarem a mesma causa e ao projetarem a</p><p>construção de uma Vila, nos moldes do “socialismo utópico”, que seria localizada no Oriente, mais especificamente na Palestina. O plano então é deixarem o asilo e partirem à</p><p>procura da realização do sonho, mas, como se poderá ver pelo desfecho, isso não se realiza. Fileto, impedido pelo pai de sair do hospício, deixa-se morrer de inanição, enquanto o</p><p>Narrador consegue ir até o Oriente, para, no entanto, se frustrar, ao ver a impossibilidade de realizar o sonho. E resta a ele tão só escrever o livro em que se conta dessa grande</p><p>aventura espiritual, com a constatação de que Fileto passou como um fogo-fátuo para a vida, antecipando a revolução futura, pois o amor dele “já não é o amor humano, mas um</p><p>amor que é bastante alto e bastante incompreensível para ter semelhança com as coisas da Terra” (Ibidem, p. 274).</p><p>Terminada a leitura de No Hospício, fica-se com a constatação de que o livro é mesmo um romance singular, de grande inventividade e originalidade. É bem verdade que</p><p>Rocha Pombo é obrigado a pagar o preço do seu tempo, pois se notam aqui e ali traços do melodrama romântico, como a intervenção do acaso, como os suicídios de personagens,</p><p>como as mortes e revelações inesperadas. Há também um bom número de clichês, de figuras desgastadas, mas, no conjunto, a obra tem muitos mais méritos que defeitos. A</p><p>começar pelo fato de que o autor não faz concessões e radicalmente investe na construção do romance-ensaio ou mesmo no romance estético-metafísico, o que teve como</p><p>consequência, como já se viu, o desprezo do público e da crítica. E apesar dos fortes traços decadentistas, pode-se dizer com toda certeza que No Hospício antecipa muitas das</p><p>novidades da literatura da era moderna, ao conceber o romance de uma nova perspectiva, reduzindo a ação, o descritivismo, dando às personagens um perfil simbólico e, acima de</p><p>tudo, criando uma obra aberta, que acolhe em suas páginas vários tipos de discurso – o narrativo, o ensaístico, o filosófico, o metafísico, o religioso –, fazendo com que,</p><p>polifonicamente, vozes se alternem num compósito inusitado. Sem contar que o autor consegue, num tour de force extraordinário, conduzir a narrativa e manter vivo o interesse do</p><p>leitor, mesmo abafando a ação e fazendo com que o texto se sustente apenas por um fluxo contínuo e torrencial de consciências. Por fim, é preciso considerar ainda os temas bem</p><p>atuais que traz à luz, sobremaneira, os referentes aos embates entre a sociedade materialista, mercantilista e o indivíduo sonhador e às utopias que ainda encantam o homem</p><p>contemporâneo, tão perdido hoje quanto há um século atrás.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>BALZAC, Honoré de. Seráfita. A Comédia Humana. Organização, Introdução e notas de Paulo Rónai. São Paulo: Globo, 1993. 17 v.</p><p>BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du Mal. Paris: Garnier, 1961.</p><p>FEIDELSON Jr, Charles. Symbolism and American Literature. 7. ed. Chicago: University of Chicago Press, 1969.</p><p>FIORIN, José Luiz; BARROS, Diana de (Orgs.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1994.</p><p>GOMES, Álvaro Cardoso. A Estética Simbolista. São Paulo: Atlas,1994.</p><p>HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Estética: poesia e música. 2. ed., Lisboa: Guimarães Ed., 1974.</p><p>LAMARTINE, Alphonse de. Préface de 1984. Méditations Poétiques. Paris: Delmas, 1949.</p><p>MESQUITA, Roberto de. Almas Cativas. Lisboa: Ática, 1973.</p><p>MOISÉS, Massaud. Simbolismo. História da Literatura Brasileira. 2. ed., São Paulo: Cultrix/Edusp, 1984. 4 v.</p><p>MURICY, Andrade. Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro. 2. ed., Brasília: Conselho Federal de Cultura e Instituto Nacional do Livro, 1973. 2 v.</p><p>RIMBAUD, Arthur. Oeuvres Complètes. Paris: Gallimard, 1951.</p><p>ROCHA POMBO, José Francisco da. No Hospício. Curitiba: Prefeitura Municipal de Curitiba, 1996.</p><p>SCHILLER, Friedrich. Schiller’s sämmtliche Werke■. Christian Gottfried Körner, 1855.</p><p>SWEDENBORG, Emanuel. Du Ciel et de l’Enfer. Paris: E. Jung Trenttel, 1872.</p><p>WILSON, Edmund. O Castelo de Axel. Tradução de José Paulo Paes. 9. ed., São Paulo: Cultrix, 1993.</p><p>Notas de Rodapé</p><p>20 Tradução nossa: “Em tradições esotéricas, o pavão é um símbolo de totalidade, em que une todas as cores sobre o leque de sua cauda aberta”.</p><p>21 José Francisco da Rocha Pombo nasceu na cidade de Morretes, Paraná, em 4 de dezembro de 1857. Distinguiu-se pela atividade jornalística, pelo ensino (foi</p><p>um dos fundadores da Universidade do Paraná). Como escritor, publicou importantes obras históricas, História da América (1900), História do Brasil</p><p>(1905-1917), História do Rio Grande do Norte (1922), e ficção: A Honra do Barão (1881), Visões, contos e poesia (1888), No Hospício (1905). Faleceu em</p><p>1933.</p><p>22 Emanuel Swedenborg (1688-1772), cientista, filósofo e teólogo sueco. Teve uma prolífica carreira como inventor e cientista. Em 1741, entrando numa fase</p><p>espiritual, começou a ter sonhos e visões que, segundo ele, lhe permitiram visitar o Céu e o Inferno e falar com anjos, demônios e outros espíritos. Sua obra</p><p>mais conhecida, De Coelo et de Inferno, onde registrou tais sonhos e visões, foi publicada em 1758.</p><p>23 Observe-se que apenas Fileto (do grego, Philetos, “digno de ser amado”, “amável”) e Alice (do grego Alethia, “a verdadeira, que não conhece a mentira”) têm</p><p>nomes com um sentido simbólico. Os outros nomes nada (ou pouco) acrescentam ao caráter simbólico do romance.</p><p>24 O personagem/narrador está se referindo, no caso, a Dante e a sua Divina Comédia.</p><p>25 Tradução nossa: “Eu quero dizer que é preciso ser vidente, fazer-se vidente. O Poeta se faz vidente através de um longo, imenso e racional desregramento</p><p>de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura a si próprio, extrai de si todos os venenos para guardar apenas as</p><p>quintessências. Inefável tortura, contra a qual necessita de toda a fé, de toda a força sobre-humana, através da qual se torna, dentre todos, o grande</p><p>enfermo, o grande criminoso, o grande maldito — e o supremo Sábio! — Pois atinge o desconhecido! Pois cultivou a alma, já rica, mais do que ninguém!</p><p>de erotismo (BATAILLE, 1981, p. 37).</p><p>O erotismo é, por conseguinte, um dado de cultura – bem diferente da “sexualidade animal ligada, de imediato, aos órgãos da reprodução e voltada de todo para a</p><p>perpetuação da espécie” (PAES, 1990, p. 15) – e visa tão-só ao prazer ou ao seu contrário, à exasperação, à dor, suscitadas pelo mesmo prazer. Em alguns casos, até os</p><p>chamados prazeres da carne, quando exigem o refinamento dos sentidos a um alto grau, merecem ser compreendidos como uma ascese às avessas, como costumava acontecer</p><p>com os chamados libertinos do século XVIII, que procuravam atingir um refinamento dos sentidos, cultuando a carne. Mas seja num caso – a sexualidade que se presta tão só</p><p>aos fins genésicos –, seja noutro –, a sexualidade que não visa propriamente à procriação –, é preciso lidar com um dado novo, que diz respeito à questão do proibido, do</p><p>interdito.</p><p>Desde sempre, os costumes sociais e, por tabela, as religiões, procuraram refrear no homem o apetite sexual, tolerando-o apenas nos casos em que estaria voltado para o</p><p>ato procriador, o que provocou a proibição in limine da autossatisfação sexual, do culto do erotismo, das perversões e do homossexualismo. Esses “desvios” mereceram grande</p><p>destaque censório pelo fato de, nos tempos remotos, conspirarem contra a perpetuação da espécie, mais que necessária para a sobrevivência do homem na Terra. Vem daí que a</p><p>sexualidade, confrontada com o sagrado, começou a ser controlada por uma série de mandamentos, de restrições, de proibições. Isso se deu porque, de modo geral, as religiões</p><p>sempre tiveram como escopo a condenação da natureza animal do homem, impondo de maneira deliberada o princípio da castidade, sufocando o desejo e, quando não,</p><p>aceitando a sexualidade apenas dentro dos limites da instituição do casamento. Segundo Camille Dumoulié,</p><p>o cristianismo vai significar a catástrofe do desejo. Tudo começa pela Queda. E a causa do pecado original foi o desejo, que fez entrar na história, com o diabo,</p><p>um elemento até então ausente da visão filosófica do desejo: a mulher. Entrada catastrófica, então, isto é, segundo a etimologia, degringolada. O desejo é com</p><p>certeza de-siderium: afastamento de Deus, queda do céu e dos astros (sidera), desastre. O sentido primeiro, o sentido mais concreto do verbo latino desiderare é</p><p>“cessar de contemplar os astros” (2005, p. 83, grifos do autor).</p><p>Cria-se assim o plano do interdito que só serve para estimular ainda mais a busca do homem pelo prazer, cuja mola propulsora se encontra na proibição de praticá-lo,</p><p>pois, conforme ensina Bataille, “o proibido incita à transgressão, sem a qual a ação careceria de sua atração maligna e sedutora... O que seduz é a transgressão do proibido”</p><p>(1981, p. 80). Aceitando-se esse princípio de que o proibido provoca a transgressão, o que explica a natureza paradoxal do homem, que cria regras, mandamentos e, ao mesmo</p><p>tempo, procura transgredir essas mesmas regras e mandamentos, verifica-se que onde mais se dá essa postura transgressora é, na maioria das vezes, na sexualidade. Isso</p><p>porque ela, opondo-se a leis restritivas, coercitivas, presta-se a afirmar a liberdade do ser humano. Estabelece-se assim um jogo dialético entre o interdito e “a transgressão, a</p><p>qual, numa incoerência apenas aparente, serve exatamente para lembrá-lo e reforçá-lo: só se pode transgredir o que se reconheça proibido”, o que serve para configurar a</p><p>“mecânica do prazer” (PAES, 1990, p. 15).</p><p>Aceitando-se, pois, esta oposição entre o espaço do sagrado e o do profano, observa-se que enquanto, naquele, os homens se servem de regras e mandamentos morais,</p><p>visando a reprimir o que é instintivo e natural, neste, pelo contrário, procura se afirmar a liberdade, por meio da exaltação da carne e dos sentidos. No plano da arte, é possível</p><p>inclusive se pensar num outro tipo de oposição, não de todo dogmática, que se manifesta entre a arte clássica greco-latina e a cristã. Na poesia greco-latina, como nos dá fartas</p><p>mostras a poesia de Dioscórides, Safo, Catulo, Marcial, o erotismo era expresso às claras, enquanto que, na poesia da Idade Média em diante, se há erotismo (como de fato há),</p><p>é praticado, com raras exceções, às ocultas ou veladamente, como acontece com Aretino, Ronsard, Bocage, Verlaine. Em Albano Martins, o que se nota em sua longa e</p><p>profícua obra é um mais que saudável neopaganismo, não no sentido como queriam os árcades, com um artificioso retorno ao mundo clássico, mas no sentido de um</p><p>sistemático culto à Natureza, ao mundo das sensações, do erotismo, da carne. É o que acontece num grande número de poemas de A Voz do Olhar, em que a manifestação da</p><p>sensualidade está presente.</p><p>Comecemos por examinar o poema “Apolo dito Strangford”, que tem como motivo de inspiração um mármore grego do século V a. C., do Museu Britânico:</p><p>Sem braços</p><p>e sem pernas,</p><p>como podem</p><p>chamar-lhe Apolo?</p><p>E só o sexo</p><p>aponta ainda</p><p>a direcção do sol (MARTINS, 1998, p. 75).</p><p>Ao deparar com os efeitos nefastos da corrupção temporal, o poeta procura neutralizar tais efeitos, ativando o que é vital, ou mesmo o que foi vital, na imagem da</p><p>divindade. Se o tempo destruiu os braços, as pernas, o membro viril da estátua, o caráter vivo e apolíneo do objeto artístico subsiste tão-só graças ao olhar poético que dá vazão</p><p>às pulsões da sexualidade latente. É o poeta quem revela, através da ekphrasis, uma ilação subterrânea (de que os fragmentos da estátua mutilada constituem índices) entre o</p><p>sexo e o sol e, por conseguinte, entre a ruína de um deus e sua existência como ser solar. E essa ilação é trabalhada não só com o objeto artístico, mas com o objeto artístico e</p><p>sua inserção no tempo, no instante em que se nota no texto uma narrativa: o sexo ativo que “aponta ainda/a direcção do sol”. O que restou de Apolo e tudo o que ele representa</p><p>é o membro viril, que, posto que ausente, devido à mutilação, ao ser tocado pelo calor do sol, ainda possui uma carga erótica. A ativação da sexualidade frustra, assim, os</p><p>malefícios da temporalidade, que mutilou a estátua, tirando-lhe os membros de intervenção no real – os braços, as pernas e, sobretudo, o pênis. Cabe ao poeta dinamizar, dar</p><p>vida à estátua mutilada e, na aparência, morta, ao promover uma interligação simbólica entre forças elementares, como a libido e o fogo, que têm íntima relação entre si,</p><p>conforme Jung observa: “a força vital psíquica, a libido, é simbolizada pelo sol, ou personificada em personagens de heróis com atributos solares” (1967, p. 341). A</p><p>deformação de que a estátua é vítima só é superada pela intervenção de Albano Martins – afinal, o poeta recupera um tempo imemorial, não corrosivo, não destrutivo, em que</p><p>os deuses gozavam da imortalidade, pelo fato de comungarem de maneira ativa com as forças cósmicas.</p><p>Em “Kore”, o poeta serve-se de outra estátua mutilada, que se encontra no Museu da Acrópole, em Atenas, para mostrar o que não se vê, a sexualidade latente, que</p><p>retirará dessa escultura o selo de coisa morta, confinada a museus:</p><p>Do seu sorriso</p><p>de estame desprende-se</p><p>uma flor. E das tranças,</p><p>soltas como espigas</p><p>caindo-lhe dos ombros,</p><p>desabrocham</p><p>os seios. E na renda</p><p>do corpo e do seu braço</p><p>direito mutilado</p><p>dormem serpentes que umas vezes</p><p>lhe cingem os pulsos, outras</p><p>descem ao púbis, que todavia</p><p>não se vê</p><p>mas se pressente</p><p>no movimento estudado</p><p>do braço esquerdo. E é de lá</p><p>que a espiga do sexo</p><p>se abre, perfumada,</p><p>como uma rosa de sangue (MARTINS, 1998, p. 79).</p><p>Formalmente, a descrição da estátua, obedece a preceitos clássicos: o contemplador visita o objeto plástico partindo do ponto mais nobre do corpo, ou seja, do alto, do</p><p>rosto, para as partes baixas, ligadas à terra. Mas, já nos primeiros versos, percebe-se que o frio mármore é animado com vida, quando o poeta revela que uma flor nasce no</p><p>sorriso da mulher. Dá-se então uma estreita ligação entre a ideia do brotar da Natureza, presente na imagem da “rosa” e das “espigas”, e da sexualidade que, de latente, ao final</p><p>do poema, torna-se mais do que explícita. A começar da referência aos seios (que, como uma flor, também “desabrocham”),</p><p>Atinge o incógnito e, quando, enlouquecido, acabar perdendo a inteligência das suas visões, já as terá visto!”.</p><p>26 Em seu soneto Correspondances, Baudelaire refere-se à floresta de símbolos, na qual, os vivos pilares, metáforas das árvores, lançam olhares familiares ao</p><p>homem que aí passa. Nessa floresta, ainda segundo o poeta, tudo se corresponde: “Comme de longs échos qui de loin se confondent/Dans une ténébreuse</p><p>et profonde unité,/Vaste comme la nuit et comme la clarté,/Les parfums, les couleurs et les sons se répondent” (1961, p. 13).</p><p>27 “O prazer é o meio mais certo de conhecimento que a Natureza nos oferece e... aquele que muito sofreu é menos sábio do que aquele que muito se alegrou”.</p><p>28 Um dos maiores representantes, no Brasil do quadrinho pornográfico foi o desenhista Carlos Zéfiro (Rio de Janeiro, 1921-1992). Pseudônimo do funcionário</p><p>público Alcides Aguiar Caminha, ilustrou mais de 500 trabalhos que eram vendidos em bancas. Usava pseudônimo devido à censura muito rigorosa da</p><p>época que podia comprometer o seu emprego.</p><p>29 Tradução nossa : « Diz-se em consequência que Orion [...] segue constantemente o escorpião”.</p><p>30 Tradução nossa: “o primeiro, ut arrigat, é a ereção; o segundo, ut va saemineum referet, é a penetração; e o terceiro e último, ut em vase seminet, é a</p><p>ejaculação”.</p><p>31 Tradução nossa” Sob o domínio planetário de Marte, bem como a de Plutão, o poder misterioso e inexorável das sombras, o inferno, a escuridão interior.</p><p>Estamos no coração do complexo sado-anal do freudismo”.</p><p>32 Ismond Rosen dá a entender que é possível o exibicionismo numa mesma família, por uma “predisposição constitucional” ou de base genética (1971, p. 344 e</p><p>349).</p><p>33 Tradução nossa : “(O narcisista) experimenta o prazer sexual ao olhar, acariciar e apalpar seu corpo até a gratificação completa [...]. Tais pacientes, que</p><p>proponho denominar parafrênicos, apresentam duas características fundamentais: sofrem de megalomania e extraem seu interesse do mundo externo</p><p>(pessoas e coisas).”</p><p>34 Tradução nossa: “A personificação dessas forças que permanecem virtualmente fora da órbita da consciência [...] “certas características infantis condizentes</p><p>com seu pequeno tamanho ””</p><p>35 O nome Déruchette é de um dos personagens de Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo. Segundo Walter Benjamin (2007, p. 735), o escritor francês,</p><p>enquanto escrevia seu livro, tinha diante de si uma boneca, que lhe serviu de modelo para o personagem.</p><p>36 Tradução nossa : “no fetichista [...] há uma correspondência notável entre a questão fundamental que visa à recusa (castração, a diferença dos sexos), no</p><p>centro do alvo, e um prazer sexual bem definido, convergindo para o objeto fetiche.“.</p><p>37 O título deste conto talvez seja uma paródia do título de um filme de Elio Petri – Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, produzido em</p><p>1970.</p><p>38 “O fetichismo do pé e do calçado feminino só parece se sustentar como um símbolo, um Ersatz do membro adorado do tempo da infância, e depois perdido”</p><p>(VALAS, 1994, p. 55).</p><p>39 A postura de Marcel Duchamp, enquanto jogador de xadrez na foto em pauta, é muito similar à dos jogadores de xadrez de um poema de Ricardo Reis, que</p><p>define esse jogo como o “dos grandes indif’rentes”, no sentido de que quando se entregam a esse artifício, alheiam-se completamente das fainas e dramas</p><p>da vida, (PESSOA, 1972, p. 267-269).</p><p>40 A respeito da grande contribuição de Yeats para a cultura, consultar a obra de Evans (1980, p. 141).</p><p>41 Tradução nossa: “Sob um dourado e fundo céu”.</p><p>42 Tradução nossa: “O grande e branco lírio do mundo”, “as pálidas estrelas”.</p><p>43 Tradução nossa: “Mas primeiro sente-se e descanse um pouco,/ Pois meus velhos pais serviram seus pais, senhora,/ Mais do que os livros podem dizer – e</p><p>foi estranho/ Se você e seus pais não fossem bem-vindos aqui”.</p><p>44 Tradução livre nossa: “Lembre-se do objeto que vimos, minha alma/Esta linda manhã de verão tão doce:/Na curva de um caminho, uma infame arniça/Em um</p><p>leito repleto de pedrinhas,//Pernas no ar, como uma mulher lasciva,/Queimando e suando os venenos,/Abria de maneira indiferente e cínica/Sua barriga</p><p>cheia de exalações.//O sol brilhou nessa podridão/Como se para cozinhá-la com perfeição,/E para fazer cem vezes a grande natureza/Tudo o que ela</p><p>juntou;//E o céu olhava para a soberba carcaça/Como uma flor florescendo./O fedor era tão forte na grama/Que você acreditava que ia desmaiar.//Moscas</p><p>zumbiam nessa barriga pútrida,/De onde vinham os batalhões negros/De larvas, que fluíam como um líquido espesso/Ao longo desses trapos vivos. [...] – E</p><p>então assim você será como esse lixo,/ Nesta infecção horrível,/Estrela dos meus olhos, sol da minha natureza/ Você, meu anjo e minha paixão!//Sim! você</p><p>irá, ó rainha das graças,/Depois dos últimos sacramentos/ Quando você repousar sob a grama e as florações gordurosas,/ Moldar entre os ossos.//Então, oh</p><p>minha bela! Diga aos vermes/Quem vai comer seus beijos,/De Que guardei a forma e a essência divina/Do meus amores descompostos!”</p><p>45 Conforme Ernst Bloch, em o Princípio Esperança (2005).</p><p>46 Segundo Zumthor: Ser “moderno” é julgar homens e coisas em virtude do que eles têm ou do que lhes falta; é conhecer seus atributos a fim de domar-lhes o</p><p>uso. Ser “antigo” [...] é conhecer e julgar em virtude do ser e do nada. Pelo que concerne à poesia, a escritura parece moderna; a voz, antiga. Mas a voz</p><p>“moderniza-se” pouco a pouco: ela atestará um dia, em plena “sociedade do ter”, a permanência de uma “sociedade do ser”. (1993. p. 26).</p><p>47 Imaterialidade significa uma outra materialidade, pois existe sob uma forma codificada realizada pela organização de estados eletromagnéticos dos sinais de</p><p>0 e 1, comporta uma matriz virtual e potencial em memória que pode ser atual, visualizável por meio de transcodificadores. As mensagens imateriais não se</p><p>confundem com seus suportes, elas circulam através de múltiplos dispositivos.</p><p>48 O que nem sempre significa qualidade e adequação das novas produções dedicadas à juventude.</p><p>49 A leitura da literatura, a formação do leitor literário passa por mediações organizadas por adultos.</p><p>50 CUNHA, Maria Zilda. As matrizes de linguagem e pensamento na literatura Infantil e Juvenil: a tessitura dos signos em Ângela Lago e Octaviano Correia.</p><p>USP, 2002.</p><p>51 Sabemos, a invenção da escrita, e sua sofisticada maquinaria de combinatória alfabética, traz questões muito mais amplas, assunto que aqui não</p><p>discutiremos aqui, basta lembrar com Pierre Lévy (1996) que: “os modos de conhecimento teóricos e hermenêuticos passaram a prevalecer, impondo-se</p><p>“uma ecologia cognitiva largamente estruturada pela escrita (num suporte fixo)”,</p><p>52 Angela Lago – .</p><p>53 O termo é utilizado por Ítalo Calvino para designar o aspecto fragmentado do hiper-romance, que resulta no tema e no modelo.</p><p>54 Razoabilidade concreta é a denominação utilizada por Charles Sanders Pierce para uma razão em crescimento, uma razão criativa, que está sempre em</p><p>busca da verdade, uma verdade sempre movente.</p><p>55 Um processo cognitivo, que exige esforço de abstração e de interpretação, à medida que faz refletir sobre temas e situações da vida.</p><p>56 Macrossistema literário – cunhado por Abdala (2003) com base em Antonio Candido (1975) – deriva da compreensão de uma dinâmica que envolveu</p><p>historicamente constantes semelhantes da série ideológica. O macrossistema é marcado por um campo comum de contato entre sistemas literários</p><p>nacionais como os de língua portuguesa, que têm um passado comum e diferentes atualizações. Na atualização, engendra uma força dialética e, na</p><p>contramão, promove a convergência de tradição e ruptura. É um conceito operacional e estratégico politicamente (ABDALA, 2007).</p><p>57 “ Já nem sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do</p><p>corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia</p><p>escurecendo o resto do corpo. [...]</p><p>Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agora é ver-me a não largar seja</p><p>quem for enquanto não me disser por que é que eles têm as palmas das mãos assim tão claras.[(...] Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os</p><p>pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgínia e demais não sei aonde. Já se vê que a</p><p>Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos desbotarem à força de tão lavadas” (HONWANA, 1972).</p><p>58 Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho. Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito</p><p>porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os</p><p>pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem</p><p>exatamente como as palmas das mãos dos outros homens.</p><p>E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem, é</p><p>apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem, é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem</p><p>qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão</p><p>graças a Deus por não serem pretos” (HONWANA, 1972).</p><p>59 Para Morin, um paradigma efetua a seleção e a determinação das operações lógicas, designa as categorias fundamentais da intelegibilidade e opera o</p><p>controle de seu emprego. Assim, os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles. (2003, p. 25).</p><p>TRATADO DAS PERVERSÕES</p><p>Álvaro Cardoso Gomes</p><p>Il piacere è il più certo mezzo di conoscimento offertoci dalla Natura e... colui il quale molto ha sofferto è men sapiente di colui il quale molto ha gioito.</p><p>Gabriele D’Annunzio. Il Fuoco.27</p><p>Espelhos Gêmeos, já a uma primeira leitura, apresenta ao leitor os elementos essenciais da ficção de Péricles Prade: o fantástico, produzido por uma imaginação delirante, os</p><p>desvios narrativos, que permitem associações livres entre personagens históricas e fictícias, fatos históricos ou não, o fino humor, o poético, o paródico, o grotesco e o erótico. No</p><p>caso específico deste livro, esta última característica é que predomina, a ponto de se tornar o Leitmotiven de todos os contos, a obsessão comum a todas as narrativas. Espelhos</p><p>Gêmeos insere-se dentro do âmbito da chamada “literatura erótica”, de tanto que nele avultam as perversões, os desvios, as referências escatológicas, as monomanias das</p><p>personagens, que são movidas pelo motor da sexualidade desbragada e, ao mesmo tempo, movidas também por um frenesi que se esgota em si mesmo, como se o fim último do</p><p>desejo fosse o culto do próprio desejo. Como num moto-contínuo, elas deslocam-se angustiosamente nos círculos infernais dos prazeres, que jamais se esgotam ou, quando se</p><p>esgotam, os prendem em cárceres que são a representação simbólica do mundo da primeira infância. Desse modo, não é nada gratuito que a coletânea tenha como título Espelhos</p><p>Gêmeos, porquanto não bastasse a imagem narcísica sugerida por “espelhos”, ainda o adjetivo “gêmeos” vem a reforçar a ideia de uma contemplação que se contempla a si</p><p>mesma, servindo para criar um mundo à parte, um “véu de Maya” shopenhaureano, pura representação, cujos elementos se articulam de acordo com leis próprias e cujo</p><p>maquinismo funciona graças a um (quase) único combustível que é a sexualidade. É isso que leva as personagens do livro a se tornarem protótipos de erotômanos, cuja única</p><p>missão na existência é dar vazão às pulsões e satisfazer os prazeres, confrontando, com isso, os costumes, as leis impostas pelo sistema social e os mandamentos do sagrado.</p><p>Poderia parecer ocioso ou mesmo bizantino tentar caracterizar o que seja o “erótico”, para estudar este livro de Péricles Prade, ainda mais se o confrontarmos com termos,</p><p>digamos, irmãos, como “pornográfico” e “obsceno”. Contudo, essa distinção faz-se necessária, na medida em que ajuda a explicar o destaque dado à sexualidade e a finalidade</p><p>com que ela é explorada nesses contos, tendo em vista as relações complexas que se estabelecem entre o texto e o leitor. Diria que aqui é preciso pensar na questão do efeito, que</p><p>decorre tanto do modo como se manipula a sexualidade, um objeto entre outros da realidade, quanto da fruição pelo fruidor. Alexandrian, em sua História da Literatura</p><p>Erótica, estabelece uma distinção não muito precisa entre o pornográfico o obsceno e o erótico, pelo fato de a sua conceituação vir impregnada de juízo moral:</p><p>A pornografia é a descrição pura e simples dos prazeres carnais; o erotismo é essa mesma descrição revalorizada em função de uma ideia do amor ou da vida social.</p><p>Tudo o que é erótico é necessariamente pornográfico, com alguma coisa a mais. E muito mais importante estabelecer a diferença entre o erótico e o obsceno. Neste</p><p>caso, considera-se que o erotismo é tudo o que torna a carne desejável, tudo o que a mostra em seu brilho ou em seu desabrochar, tudo o que desperta uma impressão</p><p>de saúde, de beleza, de jogo deleitável; enquanto a obscenidade rebaixa a carne, associa a ela a sujeira, as doenças, as brincadeiras escatológicas, as palavras</p><p>imundas (1993, p. 8).</p><p>Se se aceitarem as conceituações do crítico francês, Safo, Catulo, Sade, Bataille e mesmo Péricles Prade, só para lembrar alguns nomes, receberiam o rótulo de</p><p>“pornográficos” e “obscenos”, pois, nas obras desses autores, avultam as “brincadeiras escatológicas”, as “palavras imundas (sic)”. O problema reside na inadequação dos termos</p><p>utilizados pelo autor para distinguir “obsceno” de “erótico”, de uma perspectiva apenas moral: de um lado, “desejável”, “brilho”, “impressão de saúde, de beleza”, “jogo</p><p>deleitável”; de outro lado, “sujeira”, doenças”, “palavras imundas”. Assim, livros, quadros e filmes edulcorados, que se utilizam de um teor sexual clean, dando a “impressão de</p><p>saúde”, deixariam de ser pornográficos, a se crer na distinção elaborada por Alexandrian. É o caso, por exemplo, dos filmes dedicados à figura de Emanuelle, que vive aventuras</p><p>sexuais, com pinceladas de voyeurismo, ninfomania, sadomasoquismo. Essas películas, como é notório, sem grandes pretensões artísticas, foram elaboradas com a finalidade</p><p>específica de estimular a sexualidade do espectador. O lado clean, asséptico das fitas, não disfarça a má cinematografia, as más interpretações, os cenários de caráter duvidoso, que</p><p>servem para compor narrativas primárias. Em realidade, os pobres resultados artísticos desses filmes têm um fim específico: o imediatismo das sensações, que procura provocar</p><p>num tipo de espectador pouco afeito a sutilezas. E isso é o resultado de um realismo nu e cru, via de regra, presente nas obras consideradas pornográficas, entendidas, segundo o</p><p>conceito de Peter Wagner, como uma “representação realista, escrita ou visual, de órgãos genitais ou condutas sexuais, que implica transgressão deliberada da moral e dos tabus</p><p>sociais existentes e amplamente aceitos” (1988, p. 7).</p><p>Talvez na expressão “estímulo sexual” esteja a chave da questão. É algo assemelhado que José Paulo Paes considera como fulcro dessa discussão. Para o crítico e poeta,</p><p>Efeitos imediatos de excitação sexual é tudo quanto, no seu comercialismo rasteiro, pretende a literatura pornográfica. Já a literatura erótica, conquanto possa</p><p>eventualmente suscitar efeitos desse tipo, não tem neles a sua principal razão de ser. O que ela busca, antes e acima de tudo, é dar representação a uma das formas da</p><p>experiência humana: a erótica. Representar é re-apresentar, tornar novamente presentes – presentificar – vivências que, por sua importância, mereçam ser</p><p>permanentemente lembradas: na mitologia grega, Mnemosina, a memória, era a mãe das nove Musas ou artes. Pois a arte faculta reviver, no plano</p><p>do imaginário, o</p><p>essencial do que se viveu ou se aspirou a viver no plano do real (1990, p. 14).</p><p>Aceitando o pressuposto de que o desejo sexual, os impulsos carnais, a sexualidade latente na primeira infância e presente nos ritos e mitos, são poderosos princípios que,</p><p>ainda quando rechaçados, governam o homem e determinam seu comportamento, sou levado a pensar que cabe à arte perpetuá-los e, em consequência, torná-los mais intensos.</p><p>Nesses casos, atingem uma potência insuspeitada, devido ao fato de a experiência sexual não se tratar “de uma experiência entre outras, mas daquilo que há de mais essencial na</p><p>vida” (2008, p. 135), conforme afirma Todorov, ao tratar do erótico nas narrativas fantásticas. A distinção estabelecida por José Paulo Paes é mais feliz que a de Alexandrian,</p><p>porque não há nela nenhum ranço moralista. Pelo contrário: o crítico envereda pelo estético, como fator diferenciador. O que na pornografia se reduz a um efeito passageiro sobre</p><p>a psique do leitor/espectador, no terreno da arte propriamente dita, transmuda-se em efeito duradouro.</p><p>Se a “excitação sexual” pode vir a estar presente tanto na pornografia quanto na arte erótica, a diferença entre as duas manifestações da sexualidade reside mais no modo</p><p>como a matéria, o tema, o assunto são tratados: numa, a finalidade primeira é causar determinado efeito no leitor e/ou espectador, de modo imediato, o que costumava acontecer,</p><p>por exemplo, nos famosos “catecismos” do passado, que jamais eram expostos e costumavam ser vendidos clandestinamente. Em forma de romances, de coletânea de contos ou de</p><p>histórias em quadrinhos28, serviam a um vasto público que prezava acima de tudo a manifestação direta da sexualidade, sem meios tons, sem sugestividade. Nesse tipo de</p><p>publicação,</p><p>são fixadas fantasias sexuais. Nelas há maior beleza física, maior potência masculina e entrega feminina, e uma liberdade sexual muito maior do que seriam</p><p>possíveis na realidade. Muitas vezes a vida é limitada a um aspecto puramente erótico-sexual. Muitas vezes mesmo os próprios homens e mulheres representados</p><p>deixam de ter qualquer papel como caracteres ou tipos (KNOLL; JAEKEL, 1977, p. 309).</p><p>Já na arte entendida como erótica (e não necessariamente pornográfica ou obscena), se, em alguns casos, a excitação sexual venha a acontecer, ela não é o fim. Em outros</p><p>casos, a excitação sexual até deixa de acontecer, e o erótico, assim, comparece como um meio de provocar no leitor/espectador uma sensação de outro tipo. Por exemplo, em vez</p><p>de causar excitação, prazer, pode causar espanto, repulsa, nojo e até mesmo o riso. É o que se dá na grande maioria dos relatos de Sade, nos quadros de Francis Bacon e em</p><p>narrativas de Péricles Prade. A respeito deste último, tomo, por exemplo, uma passagem de “Pão furtado”, em que a personagem tem como fetiche um pão, que lhe lembra o órgão</p><p>sexual feminino: “Tinha, na parte da frente, pequena mancha rosa, horizontal, em relevo, formando belo desenho. O desenho de uma bocetinha, com pentelhos ralos e crespos,</p><p>perto dos lábios superiores, parecendo delicada carne crua” (PRADE, 2009, p. 70).</p><p>O efeito sobre o leitor é evidentemente o de estranhamento pela cena absolutamente inusitada, grotesca, em que as palavras de baixo calão, a descrição precisa da anatomia</p><p>feminina, servem a um determinado fim, qual seja, o de representar simbolicamente uma fixação, uma tara, uma perversão. Com isso, o leitor não é convocado precipuamente</p><p>para se excitar sexualmente, mas para experimentar uma sensação nova, a do estranho, a do incomum. Na cena final de “Confissão de Rosália ou Deruchette”, o efeito do</p><p>estranhamento é conseguido graças ao fantástico: a boneca inflável, por ciúme, mata o amante e a prostituta com quem ele saiu, envolvendo-os e sufocando-os com a vagina:</p><p>Encontrei-o no cais, enlaçado com a prostituta, rindo à toa, sem sentir, atrás, a minha presença.</p><p>Num átimo, pus os dedos na vagina. Puxei com força seus lábios maiores e menores, esgarçando-a. Como se fosse um parto às avessas, eu a enfiei ns cabeças deles,</p><p>fechando-a até ouvir os últimos suspiros (PRADE, 2009, p. 32).</p><p>O grotesco da cena, em que o narrador se utiliza de termos ligados à sexualidade (“vagina”, “lábios”), mais serve para provocar o espanto ou mesmo o riso do leitor do que</p><p>propriamente “excitação”. Nessa inversão de valores, o órgão que se presta à manifestação da vida e/ou do prazer é usado para o seu oposto, a morte, como se o erotismo</p><p>implicasse, segundo Bataille, “um princípio de violência e de violação mais ou menos declarada” (BATAILLE apud PAES, 1909: p. 15). A violação de um princípio – prazer/vida</p><p>– não só tem como resultado a violência, mas também a violação da ordem normal das coisas, uma transgressão.</p><p>Dessa maneira, os efeitos da pornografia stricto sensu são efêmeros – basta lembrar fotos clandestinas de nus da época vitoriana ou mesmo publicações da Playboy, em seus</p><p>primórdios, quando ainda não era permitido exibir a genitália feminina, que não devem provocar mais do que bocejos de tédio nos aficionados por sexo de hoje em dia. Já a arte</p><p>erótica intensifica as manifestações da sexualidade, presentifica-as, torna-as mais intensas, de maneira a despertar o leitor/espectador do letargo, a causar-lhe, em muitos</p><p>momentos, até um verdadeiro choque. Isto porque a experiência sexual, sendo uma experiência vital, leva o homem a querer preservá-la a qualquer custo. Contudo, seu caráter</p><p>efêmero, enquanto experiência vivida, costuma levá-la à extinção e, daí, ao esquecimento, o que faz que necessite de representações que a eternizem. Na arte erótica, torna-se um</p><p>meio para um fim, porquanto “a arma mais eficaz contra o fluxo da natureza é a arte”, segundo Camile Paglia, que ainda acrescenta:</p><p>os intermináveis assassinatos e tragédias da literatura estão lá para o prazer da contemplação, não como lição moral. Seu status de ficção, transferido para o recinto</p><p>sagrado, intensifica nosso prazer, garantindo que a contemplação não pode transformar-se em ação (1998, p. 39).</p><p>Transferindo a reflexão para a experiência sexual, observa-se idêntico resultado: a arte erótica serve para intensificar o prazer, não no sentido da mera excitação sexual, o que</p><p>implicaria uma intervenção direta do objeto artístico na realidade, sob a forma de uma modificação físico-psíquica do sujeito. A arte visa a tornar a experiência erótica mais viva,</p><p>de maneira a despertar no leitor/espectador sentimentos desconhecidos, novos, ou despertar nele sentimentos que estariam adormecidos dentro de si e que só acordam para a vida</p><p>por meio de um forte estímulo, seja na representação harmoniosa do nu, de cenas sexuais, seja na representação grotesca do coito, seja em cenas de extrema violência</p><p>sadomasoquista, como acontece em Sade e congêneres. Como a sexualidade – aceita ou negada – é uma força sempre em ebulição dentro do homem, que é sufocada, sublimada,</p><p>exaltada, a sua evocação numa obra de arte tem o condão de ativar em nós os sentidos, as sensações, a um grau bem elevado e ajudar-nos a criar a sensação de vida pulsante. Por</p><p>isso mesmo, segundo Camille Dumoulié, “o erotismo é o campo privilegiado dessa experiência da transgressão afirmativa que, todavia, nada mais afirma senão o desejo, e abre o</p><p>limite ao ilimitado” (2005, p. 282).</p><p>Conclui-se disso tudo que o erotismo é um típico produto humano e, por consequência, deve ser considerado como algo distinto da atividade sexual em si, como bem</p><p>observa Bataille:</p><p>a mera atividade sexual é diferente do erotismo; a primeira se dá na vida animal, e tão somente a vida humana mostra uma atividade que determina, talvez, um</p><p>aspecto “diabólico”, a qual cabe a denominação de erotismo (1981, p. 37).</p><p>O erotismo é um dado de cultura – bem diferente da “sexualidade animal ligada, de imediato, aos órgãos da reprodução e voltada de todo para a perpetuação da espécie”</p><p>(PAES, 1990, p. 15), visa tão-só ao prazer ou ao seu contrário, à exasperação, à dor, suscitadas pelo mesmo prazer, e a perpetuá-los, por meio da representação artística. Em alguns</p><p>casos até os chamados</p><p>prazeres da carne, quando exigem o refinamento dos sentidos a um alto grau, merecem ser compreendidos como uma ascese às avessas, como costumava</p><p>acontecer com os chamados libertinos do século XVIII, que procuravam atingir um refinamento dos sentidos, cultuando a carne. Mas seja num caso – a sexualidade que se presta</p><p>tão só aos fins genésicos –, seja noutro – a sexualidade que não visa propriamente à procriação –, é preciso lidar com um dado novo, que diz respeito à questão do proibido, do</p><p>interdito. Desde sempre, os costumes sociais e, por tabela, as religiões, procuraram refrear no homem o apetite sexual, tolerando-o apenas nos casos em que estaria voltado para o</p><p>ato procriativo, o que provocou a proibição in limine da autossatisfação sexual, das perversões e do homossexualismo. Esses “desvios” mereceram grande destaque censório pelo</p><p>fato de, nos tempos remotos, conspirarem contra a perpetuação da espécie, absolutamente necessária para a sobrevivência do homem na Terra. Vem daí que a sexualidade,</p><p>confrontada com o sagrado, comece a ser controlada por uma série de mandamentos, de restrições, de proibições. Isso se dá porque, de modo geral, as religiões têm como escopo a</p><p>condenação da natureza animal do homem, investindo contra o desejo, assumindo deliberadamente o princípio da castidade e, quando não, aceitando a sexualidade somente dentro</p><p>dos limites da instituição do casamento. Segundo Camille Dumoulié,</p><p>o cristianismo vai significar a catástrofe do desejo. Tudo começa pela Queda. E a causa do pecado original foi o desejo, que fez entrar na história, com o diabo, um</p><p>elemento até então ausente da visão filosófica do desejo: a mulher. Entrada catastrófica, então, isto é, segundo a etimologia, degringolada. O desejo é com</p><p>certeza de-siderium: afastamento de Deus, queda do céu e dos astros (sidera), desastre. O sentido primeiro, o sentido mais concreto do verbo latino desiderare é</p><p>“cessar de contemplar os astros” (2005, p. 83, grifos do autor).</p><p>Cria-se assim o plano do interdito que, paradoxalmente, só serve para estimular ainda mais a busca do homem pelo prazer, cuja mola propulsora se encontra exatamente na</p><p>proibição de praticá-lo, pois, conforme ensina Bataille, “o proibido incita à transgressão, sem a qual a ação careceria de sua atração maligna e sedutora... O que seduz é a</p><p>transgressão do proibido” (1981, p. 80). Aceitando-se esse princípio de que o proibido provoca a transgressão, o que explica a natureza paradoxal do homem, que cria regras,</p><p>mandamentos e, ao mesmo tempo, procura transgredir essas mesmas regras e mandamentos, verifica-se que onde mais se dá essa postura transgressora é exatamente na</p><p>sexualidade. Isso porque ela, opondo-se a leis restritivas, coercitivas, presta-se a afirmar a liberdade do ser humano. Na realidade, como bem observou José Paulo, estabelece-se</p><p>um jogo dialético entre o interdito e “a transgressão, a qual, numa incoerência apenas aparente, serve exatamente para lembrá-lo e reforçá-lo: só se pode transgredir o que se</p><p>reconheça proibido”, o que serve para configurar a “mecânica do prazer” (PAES, 1990, p. 15).</p><p>É o que se nota em Espelhos Gêmeos: a presença do proibido, do interdito, faz-se notar em várias narrativas. Em “Doce Compulsão”, por exemplo, o anão observa que a</p><p>atração que exerce sobre a mulher (e vice-versa) “é o conhecimento do prazer oculto” (PRADE, 2009, p. 19). Em “Espelhos Gêmeos”, a mulher é proibida de entrar num</p><p>determinado cômodo da casa pelo pai – na sequência da narrativa, o leitor fica sabendo que o quarto está interditado devido a ameaças sempre de ordem sexual: a avó possuía três</p><p>seios, a garota que, entrando em um quarto proibido, viu “seu pequeno sexo, em carne viva, sangrar no vaso pleno de gerânios”, a mulher, sofrendo complexo de Minotauro,</p><p>trancou-se voluntariamente, guardando sob o travesseiro um “enorme pênis de touro branco” (PRADE, 2009, p. 22 e 23) etc.</p><p>Já no conto intitulado sintomaticamente “Sobre o Perigo”, o “perigo continua a rondar aqueles que fazem do prazer uma gruta terminal de explosões frequentes” (PRADE,</p><p>2009, p. 43), ou seja: os que infringem regras, mandamentos, levados pelo culto do prazeroso, correm o risco de serem castigados. Em “Flop, Flop, Flop”, o prazer nasce</p><p>exatamente da noção da infração, como se deduz do uso da palavra delito, em sua forma adjetiva: “como essa atitude podia ser resultado de um desses raros casos de telepatia,</p><p>agradeci, com simples gesto, para não estimular, ainda mais, o gozo pela cumplicidade delituosa” (PRADE, 2009, p. 60). O efeito transgressor mostra-se também de outro modo,</p><p>quando se dá, por exemplo, a profanação do sagrado, como em “Diário de um Sapato Acima de Qualquer Suspeita”, em que a personagem, para se excitar, coloca o pênis dentre</p><p>as páginas de um livro dedicado à Cabala ou como em “Termômetro”, em que um crítico de arte diletante exerce o seu mister, usando como instrumento de aferição de valores a</p><p>ereção. E a profanação ocorre, quando o pênis, em repouso, “quase rompeu a braguilha”, pelo fato de a personagem se postar diante das telas da Madona e de São João com o</p><p>Menino.</p><p>Contudo, tanto o interdito quanto a transgressão são relativos, pois, para serem considerados como tal, dependem do contexto social e/ou cultural. Não é difícil lembrar aqui</p><p>que o homossexualismo, por exemplo, era tolerado entre os gregos e que a prostituição, em algumas latitudes, no passado, tinha uma função evidentemente ritualística e era não só</p><p>aceita, como também estimulada, como ilustra Flaubert, em seu romance Salambô, e Frazer confirma, ao tratar do culto de Adônis na Antiguidade:</p><p>O povo de Biblos raspava a cabeça em seu luto anual por Adônis. As mulheres que se recusavam a sacrificar os cabelos tinham que se entregar aos estrangeiros em</p><p>certo dia de festa, e o dinheiro que assim ganhavam era dedicado à deusa. Esse costume pode ter sido uma forma moderada de uma velha norma que, tanto em</p><p>Biblos como em outros lugares, obrigada antigamente as mulheres, sem exceção, a sacrificar sua virtude a serviço da religião [...]. Na Armênia, as famílias mais</p><p>nobres dedicavam suas filhas ao serviço da deusa Anait em seu tempo em Acilisena, onde as moças viviam como prostitutas por muito tempo antes de se casarem</p><p>(1982. p. 128).</p><p>Em Espelhos Gêmeos, chamamos a atenção da história do jovem que nasce com o pênis localizado no lugar do nariz – a comunidade, ao contrário do que dita o senso</p><p>comum, não o condena, quando ele exibe seu portentoso membro; pelo contrário, deslumbra-se com a visão do “adolescente vaidoso e de pênis ereto” que “passeia com a</p><p>namorada”. O deslumbramento, que serve mais para exaltar do que para condenar, dá-se pela contemplação coletiva do “generoso membro” – devido a isso, o desvio do jovem</p><p>não merece censura. Em “Flop, Flop, Flop”, a personagem, de início, estranha quando a amante quer que ele participe de um ménage a trois, mas, não demora muito, tudo para ele</p><p>se torna normal: “no primeiro dia, estranhei. No segundo, passei a me acostumar com a ideia. No terceiro, e seguintes, tudo correu normalmente” (PRADE, 2009, p. 58). Como</p><p>que representando metonimicamente o todo social, a pequena sociedade de amantes transforma, pelo hábito, o que é desvio, em padrão, o que faz que a perversão seja aceita e</p><p>considerada algo absolutamente normal. Em “O Trapezista Grego”, o acrobata sente-se como “um deus, além do bem e do mal”, e seu espetáculo de onanismo público é visto</p><p>pelos espectadores como dentro dos padrões e não como uma perversão, um desvio, contrariando, no caso, prescrições bíblicas e/ou da moral e bons costumes. Conclui-se, a esse</p><p>respeito, que se o erotismo é um dado de cultura, a repressão, o interdito, a proibição, também dependem da cultura, dos costumes. No caso dos contos de Péricles Prade,</p><p>representa-se, pelo viés do fantástico, muitas vezes, a aceitação pura e simples, por parte das personagens, do que, em outras circunstâncias e latitudes, seria considerado um</p><p>desvio.</p><p>O culto do prazer, do erótico, uma manifestação profana, na realidade, tem toda uma gradação: no limite,</p><p>ao se intensificar, constitui-se numa perversão. Etimologicamente,</p><p>o termo, originário do latim – perversio, perversionis –, significava “transposição ou inversão (da construção no estilo), alteração de um texto” (HOUAISS, 2001, p. 2198); por</p><p>extensão, passou a designar os desvios de qualquer espécie, mormente os sexuais. Nesse âmbito, segundo Freud,</p><p>é determinada por um impulso auto-erótico e um retorno à “loucura original”. As relações entre auto-erotismo e eu primitivo a esclareceriam. [...] a perversão é,</p><p>pois, apresentada como uma regressão, ligada a uma interrupção do desenvolvimento do aparelho psíquico (1994, p. 18-19).</p><p>Contudo, é preciso ter em mente a questão do relativismo, pois</p><p>só se pode distinguir a perversão da normalidade porque a perversão se caracteriza por uma fixação prevalente, até mesmo total, do desvio quanto ao objeto, e pela</p><p>exclusividade da prática quanto ao desvio com relação ao objetivo (Ibidem, p. 28).</p><p>Desse modo, entende-se como perversão a atividade sexual, ligada à anomalia do comportamento, quando seu praticante não tem mira o coito em si – nessa condição, o</p><p>indivíduo, afeito a práticas que fogem ao “padrão” social, moral, religioso, sobrevaloriza tão somente a sua própria satisfação e, nesse caso, o parceiro acaba por se desumanizar,</p><p>tornando-se um meio para o fim onanista do pervertido: “a perversão como mania torna impossível uma parceira: qualquer ‘parceiro’ não passa dum objeto de satisfação dos</p><p>próprios desejos” (KNOLL; JAECKEL, 1977, p. 297). A perversão, por conseguinte, representa um desvio, a subversão de um princípio, o que remete o termo a seu sentido</p><p>etimológico original. O pervertido, regressando a um estádio infantil da personalidade, em que a criança costuma se autossatisfazer, sempre coloca em segundo plano o “objeto”,</p><p>entendido como o seu parceiro, ou, em outras palavras, torna-se parceiro de si mesmo ou vê o parceiro como extensão de si mesmo. Nas palavras de Todorov, “se quisermos</p><p>interpretar os temas do tu ao mesmo nível de generalidade, devemos dizer que se trata preferentemente da relação do homem com seu desejo e, por isso mesmo, com seu</p><p>inconsciente” (2008, p. 148). Quanto ao “objetivo”, a finalidade da atividade sexual – o coito visando ao prazer de si e do outro e, por extensão, o coito visando à procriação –</p><p>sofre também um desvio. De um lado, o prazer se ensimesma, para satisfazer apenas as pulsões do praticante; de outro, em determinadas circunstâncias, jamais se esgota, levando</p><p>ao paroxismo das sensações, a um moto-contínuo, ao prazer pelo prazer, que, em determinadas circunstâncias (nas práticas sadomasoquistas, por exemplo), confunde-se com a</p><p>dor. Isso porque “il est probable que le pervers, attentif à un plaisir déterminé, en vienne à confondre le désir avec la douleur ” (ROSOLATO, 1967, p. 19, grifos do autor). A dor,</p><p>quando levada a seu extremo, em determinadas circunstâncias da experiência erótica sádica, leva à morte que, em realidade, já estaria configurada metaforicamente na</p><p>representação do orgasmo: quando o homem atinge o paroxismo do prazer, que envolve intensa atividade física, logo após, é forçado a um relaxamento, muito similar àquele</p><p>propiciado pela morte.</p><p>As narrativas de Espelhos Gêmeos, no seu conjunto, compõem um verdadeiro tratado de perversões, ou seja, nelas, as personagens, via de regra, veem seus parceiros como</p><p>um meio para um fim, de maneira que a autossatisfação sexual seja a única motivação de seres desgarrados, que se entregam ao desenfreado jogo dos prazeres. Nesse caso,</p><p>assemelham-se ao amante de xadrez de “Marcel enquanto joga”, que proclama não ser “um desses jogadores tradicionais preocupados em vencer a partida a qualquer custo”. O</p><p>que o “comove, até o êxtase, é o movimento das peças nas casas, mesmo se a partida, imortal ou não, perdure dias e dias nesse reino de possibilidades quase infinitas” (PRADE,</p><p>2009, p. 53). O onanismo lúdico dessa personagem, que encontra paralelo nas atitudes francamente onanistas das demais personagens de todo o livro, na realidade, tem um viés</p><p>simbólico. Representa, ao cabo, o princípio estético que norteia a ficção de Péricles Prade. Antes, porém, de deslindar esse problema, crucial, no entendimento desta ficção tão</p><p>peculiar, creio que valeria a pena fazer um levantamento das diversas formas de perversão encontradas no livro e ver como se manifestam e se articulam, para não só compor um</p><p>verdadeiro catálogo de perversões, mas também para caracterizar uma determinada postura frente ao mundo, postura essa que se baseia num princípio francamente autista. Em</p><p>outras palavras, o objeto, entendido como parceiro do pervertido, serve apenas, como nos símbolos, para evocar um determinado estado físico e/ou de espírito, que não poderia ser</p><p>atingido de outro modo, senão por intermédio desse elemento objetivo.</p><p>As perversões apresentam-se em Espelhos Gêmeos em grande profusão e variedade. Algumas delas têm apenas uma leve referência, como a coprofília, que é o ato de</p><p>venerar sexualmente excrementos e secreções. Parente da urologania (prazer na urina) e da misofilia (amor pela sujeira), remonta “à fase anal da evolução sexual infantil: nesta</p><p>fase a criança sente prazer na defecção, e vê nos seus excrementos um produto de que se orgulha” (KNOLL; JAECKEL, 1977, p. 97). Comparece especificamente no conto</p><p>“Obituário”. Nele, a personagem possui uma compulsão que é a de “escrever, à noite, o próprio obituário, com a indicação do jornal onde deveria ser publicado”, cujo teor é o</p><p>seguinte:</p><p>Faleceu ontem, aos 69 anos, na capital do Estado, o cientista frustrado e conhecido coprófago Antonio Bellegante, com a boca ainda cheia de fezes, mas sorrindo de</p><p>prazer, como se estivesse numa câmera de nuvens (PRADE, 2009, p. 47-48).</p><p>As ideias de onanismo e compensação psíquica estão muito claras, pois, de um lado, o prazer é solitário, dispensando, inclusive, a presença do parceiro; de outro lado, o ato</p><p>da coprofagia serve para compensar a frustração da personagem que, em outras passagens da narrativa, enumera junto ao interlocutor tudo o que gostaria de ter feito em vida e não</p><p>fez, compondo uma extensa lista: “eu gostaria de ter participado da experiência do plano inclinado [...], investigado o arco-íris, batido em bola de tênis com raquete oblíqua,</p><p>medido a velocidade da luz no vácuo etc.”. São desejos, volições, impossíveis de realização, porque fogem aos limites do homem ou porque são fantasias elaboradas pelo</p><p>imaginário, configurando-se, às vezes, como verdadeiras metáforas de caráter poético, como: “Eu gostaria de ter [...] ajustado a equação da forma a que melhor se aplique a</p><p>objetos minúsculos de óleo” (Ibidem, p, 47). Explica-se, portanto, o estado regressivo da personagem, que compensa a frustração com o recolhimento à fase infantil. Inclusive, não</p><p>é difícil de perceber que o prazer atingido com o ato de devorar fezes é similar ao prazer experimentado pela criança quando protegida pelo ventre materno. A imagem com que a</p><p>personagem fecha seu obituário – “como se estivesse numa câmera de nuvens” – é uma clara representação metafórica do útero, paraíso, no qual o ser descansa e sonha. Assim</p><p>como a coprofília, tratada parcialmente no livro, também a ninfomania e a zoofilia comparecem de modo restritivo: a primeira em “Flop, Flop, Flop”, em que uma mulher</p><p>insaciável é atacada de subida impotência, provocada por um trauma de infância; a segunda, presente, em “Donzela”, “Sobre o perigo” e “Ave da Aurora” – nessas narrativas,</p><p>homens mantêm relações sexuais com uma abelha, uma lebre e um galo, respectivamente. À parte o grotesco dessas situações, penso que o bestialismo acentua o princípio da</p><p>regressão, no sentido de que o ser humano acentua o seu lado animalesco e, por conseguinte, retorna ao estado de natureza. Por outro lado, este retorno tem um valor simbólico: é</p><p>como se o homem voltasse a um tempo primitivo em que não houvesse distinção entre seres humanos e animais.</p><p>A masturbação ou onanismo comparece em “O Trapezista Grego”, cuja personagem, sintomaticamente, se chama Onam, que remete</p><p>à personagem Onan, do Velho</p><p>Testamento, condenada por ejacular fora da vagina da mulher, para evitar a procriação. “Artista supremo”, enquanto se balança nas alturas, comporta-se como um</p><p>voyeurista/fetichista, ao contemplar os seios, as tranças negras de uma espectadora e ao se concentrar no “cheiro doce e selvagem que ela exalava” (PRADE, 2009, p. 51). O</p><p>resultado é que ele se masturba em público. A masturbação, enquanto manifestação solitária de prazer, implica a regressão a um estado infantil, mas o curioso é que, ao acontecer</p><p>em público, está ligada ao exibicionismo. Contudo, pelo fato de Onam encontrar aceitação do público, aponto aí traços de uma perversão de caráter coletivo – “a multidão uivava</p><p>de prazer como se integrasse grande orquestra de gêmeos pervertidos” (Ibidem, p. 52). Outra perversão que aparece localizada especificamente numa determinada narrativa,</p><p>embora tenha relação com as demais, é o frotterismo. O termo origina-se do francês frotteur, que significa “esfregar-se”, “roçar-se”; por extensão, no mundo das perversões,</p><p>refere-se ao homem que sente o desejo incontrolável de apalpar, de roçar nas mulheres.</p><p>No conto “Escorpiões”, o sobrenome do protagonista, Ladislau Orion, tem um sentido bastante irônico, porque remete a uma figura mítica da Grécia antiga, o caçador</p><p>gigante, morto pela picada de um escorpião no calcanhar, por ter violado Ártemis. Transformado em constelação, “on dit em conséquence qu’Orion”, nos céus, “fui</p><p>constantemment le scorpion” 29(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1974, p. 163). Seguindo os passos do seu ilustre antepassado, o Oriom do conto também é um caçador de</p><p>mulheres, contudo, só se satisfaz apalpando-lhe as nádegas ou enfiando-lhes o dedo no ânus. Como um bom pervertido, seu fim último não é propriamente o coito, mas uma</p><p>prática que nunca se esgota, porque sempre repetida à exaustão. Isso acontece porque ele é impotente, fato revelado ao narrador por uma médica. A impotência opõe-se</p><p>evidentemente ao cânon do homem viril que se apoia no eterno tríptico: “dresser, entrer, mouiller” e depende de três condições, segundo o jurista Vincent Tagereau: “la</p><p>première, ut arrigat, c’est le érection; la deuxième, ut vas saemineum referet, c’est l’intromission; et la troisième et dernière, ut in vase seminet, c’est l’émission”30 (1979, p.</p><p>26-27, grifos do autor). A impotência de Ladislau supre as três condições do jurista, pois, em seu contato com as mulheres, não há referência à ereção e, muito menos, à penetração</p><p>do membro viril e à emissão do esperma. Este seu desvio, por isso mesmo, está ligado ao complexo sado-anal, no conto, simbolicamente representado pela tatuagem de um</p><p>escorpião branco, que ressalta em sua epiderme negra. Segundo André Barbault, este símbolo vive</p><p>sous la maîtrise planétaire de Mars, ainsi que de celle de Pluton, puissance mystérieuse et inexorable des ombres, de l’enfer, des ténèbres intérieures. Nous sommes</p><p>au coeur du complexe sado-anal du freudisme (CHEVALIER ; GHEERBRANT, 1974, p. 164, grifos do autor).31</p><p>Em função desta perversão, que tem como fundamento um estado regressivo e, por conseguinte, a sua incapacidade de se relacionar com o outro, a não ser para se autos</p><p>satisfazer, recebe como castigo um estupro ritualístico, quando o narrador, para vingar a honra da amante tocada por ele, insere-lhe no ânus um escorpião, “cuja ponta da cauda é</p><p>magnífico tumor, repositório de pura peçonha” (PRADE, 2009, p. 56). Não é difícil de se perceber que o animal tem um valor ambíguo – de um lado, aponta para a impotência da</p><p>personagem, torna-se sua representação; de outro, é um símbolo do pênis.</p><p>O exibicionismo está presente, de modo bem declarado, no conto “Em Família”. Nessa narrativa, toda uma família gosta de se exibir em público. A começar de Prudente</p><p>que, “na festa de noivado”, balança seu “membro avantajado”, levando o narrador a interpretar o gesto apenas como resultado de excesso de bebida. Mas é obrigado a mudar de</p><p>opinião, quando o jovem exibe o membro novamente em público, diante do Café Gomes. Mais tarde, a irmã de Prudente, num supermercado, tira a calcinha e mostra a vagina, em</p><p>público, e os pais deles fazem atos libidinosos na igreja de São Benedito. O exibicionismo de caráter coletivo leva o narrador a julgar que “esse comportamento coletivo foge dos</p><p>padrões normais”, contudo, é corrigido pelo psiquiatra Anatólio que desenvolve a teoria de um “exibicionismo genético”, cujo princípio baseia-se na ideia de que se cria uma</p><p>“família de exibicionista”32, quando o “avô, ou a avó, ou ambos, já nadaram [...] nessas águas de Narciso” (PRADE, 2009, p. 38 a 40). Conclui-se daí que o exibicionismo confina</p><p>com outra espécie de perversão, muito próxima, o narcisismo, assim conceituado por Freud:</p><p>(The narcissist) experiences sexual pleasure in gazing at, caressing and fondling his body, till complete gratification […]. Such patients, whom I propose to term</p><p>paraphrenic, display two fundamental characteristics: they suffer from megalomania and they withdraw their interest from the external world (people and</p><p>things) (1952, p. 399).33</p><p>O exibicionista, por conseguinte, é também um narcisista – não é à toa que Prudente e sua irmã se encantam com seus respectivos membros sexuais, o primeiro, insistindo</p><p>para as “pessoas comprarem a foto colorida de seu encantador documento”; a segunda, “vangloriando-se de ter o maior e o mais belo clitóris da região” (PRADE, 2009, p. 38 e</p><p>39). Onde, porém o narcisismo marca mais presença no livro é em “Espelhos Gêmeos”, em que a personagem não só despreza “the external world”, referido por Freud,</p><p>confinando-se no velho casarão da família, uma representação evidente do mundo infantil (ou mesmo do ventre materno) a que regressa, como também projeta, em espelhos,</p><p>duplos de si mesma. Nesse conto, aliás, Péricles Prade cria curiosos duplos, a começar dos espelhos gêmeos, que servem para quadruplicar as imagens, ou mesmo para criar uma</p><p>imagem do infinito, demonizando as relações humanas. Segundo Benjamin, “quando dois espelhos se refletem, Satanás prega sua peça preferida, abrindo aqui à sua maneira</p><p>(como seu parceiro o faz nos olhares dos amantes) a perspectiva do infinito” (2007, p. 580). Outros duplos são a avó que é, na realidade, irmã das irmãs confinadas, a neta que é a</p><p>avó, as irmãs que se tornam amantes. A confusão aparente só serve para ilustrar a ideia especular de círculo vicioso: o eu é o outro e, por isso, não consegue se desligar da esfera</p><p>familiar, o seu cárcere, que o impede de assumir a vida na totalidade e que o leva a viver num estágio regressivo.</p><p>A par do narcisismo, desenham-se outras perversões em Espelhos Gêmeos: o incesto, e o homossexualismo, por exemplo, o primeiro, reprimido pelo sistema social, devido a</p><p>seu caráter restritivo, porquanto limita a atividade sexual ao âmbito familiar; já o homossexualismo vem merecendo condenação, através dos tempos, porque privilegia o prazer em</p><p>si, independentemente da procriação. O incesto entre irmãs, que tem seu componente lésbico, comparece no conto “Espelhos Gêmeos”. Como tal, merece punição, que ocorre sob</p><p>a forma de aprisionamento simbólico em espelhos, quando o pai flagra as filhas praticando atos libidinosos. Quanto ao homossexualismo, está presente em “Dissimulado”, em que</p><p>se desenha uma relação amorosa oculta entre dois potros, em “Censura”, que trata do lesbianismo entre formigas, “expulsas de um circo”, pelo diretor, “Monsieur Vagin (sic)”,</p><p>devido a “atos libidinosos” e, em “Pequeno desastre”, em que a personagem se vê possuída por uma atração incontrolável pelo pênis dos homens no banheiro:</p><p>Ontem, sem razão plausível, ele me disse, no banheiro, com olhar indiscreto, que o seu pensamento tem, várias vezes, subido de garupa na faixa amarela da urina do</p><p>vizinho, no banheiro, estatelando-se no chão antes de confessar o inconfessável (PRADE, 2009, p. 44-45).</p><p>Como se vê, os títulos de todos esses contos remetem a algo que deve permanecer oculto, que é censurável ou desastroso, exatamente pelo fato de ser entendido como um</p><p>desvio em função da normalidade,</p><p>via de regra, lembrada pelo narrador. Isso nos permite afirmar que, muitas vezes, é pelo foco narrativo que se percebe a presença de uma</p><p>consciência censória ou o contrário disso, uma consciência libertária, em relação a proibições. O primeiro caso é bem evidente no conto “Em família”, em que o narrador, de certo</p><p>modo, censura o exibicionismo de uma família, ao dizer: “acho que esse comportamento coletivo foge dos padrões normais” (PRADE, 2009, P. 40); o segundo caso é patente em</p><p>“Censura”, quando o narrador, traduzindo a voz da coletividade, critica a postura do dono do circo que expulsa a formiga lésbica do espetáculo: “ninguém, até hoje, entendeu a</p><p>intolerância de Monsieur Vagin” (Ibidem, p. 44).</p><p>Das perversões exploradas no livro, chamo a atenção para o sadomasoquismo, o pigmaleonismo e o fetichismo, que merecem por parte de Péricles Prade um tratamento todo</p><p>especial, diferenciado. A primeira delas, segundo Freud, “não seria outra coisa além de um excessivo desenvolvimento agressivo da pulsão sexual” (Apud VALAS, 1994, p. 27),</p><p>em que o pervertido visa a causar sofrimento no parceiro, para se extrair daí o máximo prazer possível para si. Já o masoquismo, o oposto do sadismo, não é considerado uma</p><p>perversão primária, mas “apenas o retorno do sadismo sobre o sujeito, que toma então o lugar do objeto sexual na satisfação que experimenta com o sofrimento infligido pelo</p><p>parceiro amado” (Ibidem). A relação sadomasoquista é bem evidente em “Doce Compulsão”, em que um anão e uma mulher experimentam mórbida atração mútua, pelo fato de</p><p>aquele espiar pelo buraco da fechadura a mulher, Isolda, a exibir as partes pudendas. Se a perversão determinante explorada aí, a uma primeira vista, parece ser</p><p>o voyeurismo/narcisismo, numa segunda instância, percebe-se que é mesmo o sadismo que tem, por consequência, o masoquismo. Isto porque a mulher contemplada fura o olho</p><p>esquerdo do anão que confessa “que a cegueira parcial acabaria me excitando ainda mais” (PRADE, 2009, p. 20) e, na sequência, fura o olho direito do voyeur. O paradoxo do</p><p>prazer extraído da dor, prerrogativa do masoquismo, já explica em parte o título do conto, um oximoro, porquanto o tom intensivo da “compulsão” é atenuado pelo adjetivo</p><p>“doce”, ou seja, vê-se aí a fusão de pares opostos, que se manifestarão, evidentemente, nos pares Isolda/sádica e anão/masoquista, de maneira que ambos acabem compondo uma</p><p>unidade inseparável, como se fossem o ato-de-ver/o-ato-de-ser-visto, o contemplante/a contemplada, o-ser-que-castiga/o-ser-castigado etc. O curioso é que, apesar de pares, jamais</p><p>se encontram e nem ao menos se tocam – o prazer mútuo é feito à distância. A consumação final do ato ritualístico, o verdadeiro orgasmo, acontece quando Isolda fura o olho</p><p>direito do anão, o que representa, no caso, uma figuração da morte, que é parente do prazer, quando este atinge seu paroxismo:</p><p>Obedeci, movido pelo desejo. Com a outra agulha, maior do que a anterior, de prata nobre, Isolda fez doze precisos movimentos. Dor aguda intraduzível. Gritei por</p><p>dentro e por fora, a alma e o rosto lambuzados de sangue no auge do gozo prematuro (PRADE, 2009, p. 21).</p><p>Nesse consentimento mútuo de causar sofrimento, sofrer e gozar, há uma curiosa inversão de papéis entre o homem e a mulher, uma espécie de metatropismo, porquanto o</p><p>primeiro torna-se passivo, e a segunda, ativa. Aliás, o fato de a mulher possuir apenas um seio remete à imagem mítica das Amazonas, mulheres que assumiam o papel dos</p><p>homens em sua restritiva sociedade. Sendo assim, é possível ler a agulha perfurante como uma representação simbólica do pênis, que serve, como num estupro consentido, para</p><p>penetrar sadicamente o olho, um simulacro da vagina e/ou do ânus. Aliás, segundo Freud, “o olho corresponde a uma zona erótica” e, assim, ilustra-se, nesse conto, um “instinto</p><p>parcial, o da escopofilia, ou seja, uma sexualização do olhar” (Apud ROSEN, 1975, p. 360 e 358).</p><p>Ainda a respeito da palavra “compulsão”, presente no título do conto – um impulso irresistível de um indivíduo, que o leva a repetir sempre os mesmos atos,</p><p>independentemente dos resultados –, é preciso dizer que ela se identifica com o princípio da “pulsão”, explorado por Freud. Segundo o psicanalista austríaco, a pulsão tem, como</p><p>objetivo mais imediato, “apaziguar a excitação, bem como a satisfação obtida no nível mesmo da zona erógena” (Apud VALAS, 1994, p. 31). Ainda é possível dizer que</p><p>a pulsão se origina num órgão que é a sede de uma excitação especificamente sexual. Designado, por esse motivo, como a “zona erógena”, esse órgão de onde</p><p>provém a pulsão parcial se comporta como um aparelho sexual secundário, podendo usurpar as funções do próprio aparelho genital (Ibidem).</p><p>Em “Doce Compulsão”, o órgão que se “comporta como um aparelho sexual secundário” é o olho, por meio do qual o anão contempla a mulher, mas sem jamais atingir a</p><p>satisfação plena, o que implica que tenha uma “fidelidade ao olhar” e que se obrigue a repetir sempre o mesmo ritual de espiar obsessivamente a mulher, pois o tempo da pulsão “é</p><p>o da repetição e do eterno retorno”, na medida em que ela não conhece “nenhum verdadeiro objeto que a possa satisfazer” (DUMOULIÉ, 2005, p. 112). O intenso gozo do anão</p><p>leva-o a ser paradoxalmente um voyeurista cego, no sentido de que o ato imaginário de contemplar torna-se mais forte que o próprio ato de ver. Ou seja: como todo pervertido, ele</p><p>também oblitera a realidade e trabalha sobre construtos do imaginário. A perversão voyeurista da personagem acentua-se ainda mais como uma regressão, pelo fato de a</p><p>personagem ser o que é, um anão que, a par de representar “the personification of those forces witch remain virtually outside the orbit of consciousness”, possui “certain childish</p><p>characteristics befitting its small size”34 (CIRLOT, 1983, p. 91). Por outro lado, a mulher que dança para o prazer contemplativo do anão compraz-se perversamente, como já</p><p>demonstrei, com outra modalidade de prazer, o sadismo, ligado compensatoriamente à superação da castração, no plano feminino. Verifica-se, assim, que sadismo e masoquismo,</p><p>neste conto, constituem as faces de uma mesma moeda, um não existe sem o outro, pois o primeiro só se realiza com a mulher que inflige castigo ao anão, e o segundo, com o</p><p>anão que se submete a castigos da mulher. Além disso, ambas as personagens afirmam impulsos infantis: o anão, mostrando um processo de autossatisfação, só se satisfaz com a</p><p>prática voyeurista; a mulher, causando sofrimento ao parceiro, por meio do fetiche da agulha.</p><p>O pigmaleonismo, perversão que se caracteriza pelo amor sexual por bonecas, revela no homem o desejo regressivo de “encontrar uma parceira que não tenha vontade</p><p>própria” (KNOLL; JAECKEL, 1977, p. 301) e que, por isso mesmo, acaba sendo submetida a todas os desejos do amante egótico. O comportamento amoroso desse tipo de</p><p>pervertido é similar ao de uma de uma criança mimada, habituada a querer fazer do mundo uma extensão de si, para moldá-lo a seus desígnios. Em “Confissão de Rosália ou</p><p>Déruchette”35, essa perversão é explorada em toda sua intensidade e explica-se a partir da compreensão do perfil psicológico da personagem W. Conforme a descrição do</p><p>narrador – no caso, a própria boneca inflável – ele “era, ao mesmo tempo, jogador, flâneur e colecionador” (PRADE, 2009, p. 28), e isso o leva a ter um comportamento muito</p><p>peculiar frente ao mundo, pelo fato de ser um diletante. O jogador é a representação do homo ludens, por excelência. Conforme Huizinga, o jogo tem como característica formal o</p><p>fato de ele ser desinteressado, pois, por não pertencer à vida “comum”,</p><p>ele se situa fora do mecanismo de satisfação imediata das necessidades e dos desejos e, pelo contrário, interrompe este mecanismo. Ele se insinua como a atividade</p><p>temporária que tem uma finalidade autônoma e s realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização (1971, p. 11-12).</p><p>A ação de W., devido ao seu amor pelo jogo, foge aos mecanismos do cotidiano, da rotina e do útil, o que se acentua com sua assunção</p><p>da flannêrie, ou seja, a par de seu</p><p>vício de jogador, ele é a personagem que flana pela cidade, num ritmo só seu e que se opõe ao ritmo frenético dos cidadãos, entregues à azáfama do dia a dia. Walter Benjamin,</p><p>em “A Paris do Segundo Império em Baudelaire”, assim caracteriza o ritmo do chamado flâneur: “ocioso, caminhava como se fosse uma personalidade: assim era o seu protesto</p><p>contra a divisão do trabalho, que transforma as pessoas em especialistas. Assim ele também protestava contra a operosidade e eficiência” (1985, p. 81). Esse seu descompromisso</p><p>com a vida operosa é indicado duplamente no conto: de um lado, não trabalha, vive uma vida ociosa, de outro, tem uma atividade sexual variada – heterossexual e homossexual,</p><p>ao mesmo tempo –, embora seus relacionamentos sejam todos eles com bonecas, marionetes e manequins.</p><p>Além de jogador e flâneur, W. é também um colecionador, um tipo de pessoa que tem o condão de tirar dos objetos a sua utilidade a sua função (“retira os objetos de suas</p><p>relações funcionais”, segundo Benjamim (2007: p. 241), e de lhes dar um caráter fetichista. Nota-se, assim, na personagem, devido a seu modo de ser, um comportamento autista,</p><p>no sentido de que ele se distancia do mundo e dos seres, ao criar um paraíso artificial. Ainda é possível afirmar que o colecionador, de certa maneira, tem o desejo de possuir o</p><p>mundo, agindo metonimicamente sobre ele: ao dominar as partes, organizando-as meticulosamente, cria a ilusão de dominar o todo, com o intuito de superar a desordem, o caos</p><p>do real, pois “é tocado bem na origem pela confusão, pela dispersão em que se encontram as coisas do mundo” (BENJAMIM, 2007, p. 245). Nesse sentido, ele é um simulacro do</p><p>artista, do esteta, que vive uma vida vicária, pautada pelo ócio, pela gratuidade suprema e pela rejeição do utilitarismo. A sua perversão, o pigmaleonismo, representa um modo de</p><p>rejeitar a prática do amor de acordo com o natural, porquanto, em suas relações sexuais, cultua o prazer pelo prazer (ou o prazer onanista, porque solitário), que não visa ao ato</p><p>procriativo e nem ao menos à troca de satisfações com o Outro. O parceiro, em realidade, anula-se, é mero objeto de gozo e, portanto, é substituído a bel prazer do amante, que</p><p>acaba colecionando mulheres e homens – ainda que artificiais –, como coleciona os demais objetos. Não seria demais acrescentar que o colecionador, retendo objetos,</p><p>assemelha-se à criança que, vivendo a fase anal, sente prazer em reter as fezes. O seu assassinato no final da narrativa tem um valor simbólico. Esse fato acontece porque ele trai</p><p>um princípio, ao sair com uma mulher de carne osso – nesse caso, inverte as suas prerrogativas, ao substituir o artificial pelo natural. Ironicamente, é afogado pela vagina de</p><p>plástico da ex-amante, um arremedo artificioso da vagina da Mãe Terrível que, desse modo, se apodera da libido do filho, quando este, ao regredir ao estado de natureza, se</p><p>submete a suas leis.</p><p>O fetichismo é, talvez, das perversões de Espelhos Gêmeos, a mais constante, aparecendo na maioria dos contos com maior ou menor intensidade, ora como um detalhe no</p><p>enredo, ora se tornando o motivo central da narrativa. O fetiche, em princípio, é um objeto a que se atribui poder sobrenatural ou mágico. Ao ser apropriado pela psicanálise,</p><p>refere-se a algo que é colocado em lugar do objeto sexual, podendo ser uma parte do corpo, inapropriada para as finalidades sexuais, ou algum objeto inanimado que</p><p>tenha relação atribuível com a pessoa que ele substitui, como uma peça de roupa, um adereço ou até um brilho no nariz, tomando o exemplo com que Freud inicia o</p><p>texto Fetichismo, em 1927 (MELLO, 2007, p. 72, grifos do autor).</p><p>De acordo com Freud, o mecanismo do fetichismo fundamenta-se sobre um recalque infantil. A criança, incapaz de aceitar que as mulheres não tenham o órgão viril, ideia</p><p>que se lhe torna inquietante e insuportável, reconhece a ausência do pênis e a nega, substituindo-a por um símbolo, que pode ser uma parte do corpo feminino ou um objeto ligado</p><p>a ele. Como consequência disso, “os objetos feiticistas transformam-se em parceiros sexuais; o homem feiticista utiliza-os para a masturbação” (KNOLL; JAECKEL, 1977, p.</p><p>160), já que ele não se satisfaz com a totalidade do corpo do seu parceiro. Portanto, o fetichista, ao manipular objetos simbólicos, está sempre compensando uma falta traumática,</p><p>a do pênis na mãe, ou ainda:</p><p>chez le fétichiste [...] il y a une remarquable correspondance entre la question fondamentale que vise le désavu (la castration, la différence des sexes), en plein</p><p>centre de la cible, et un plaisir sexuel bien délimité, convergeant sur l’objet-fétiche36 (ROSOLATO, 1988, p. 18).</p><p>O fetichista é assim o protótipo do perverso, pois “pensa reduzir todas as coisas a um gozo fálico que domina, ainda que tenha que ocupar a posição do falo do Outro”</p><p>(DUMOULIÉ, 2005, p. 240), e isso talvez se deve a um problema de linguagem. Não é difícil de perceber o quanto a terminologia utilizada nos relatos pornográficos, obscenos,</p><p>eróticos, atinge o status de fetiche: “a ênfase no realismo transforma-se, paradoxalmente, em forma grotesca, os falos são sempre imensos, as vaginas multiplicam-se e o ato sexual</p><p>é uma espécie de frenesi improvável” (VÁRIOS AUTORES, 1999, p. 39). O fetiche da linguagem, na ficção de Péricles Prade, ocorre principalmente num conto como “Em</p><p>Família”: Prudente é descrito como tendo “um membro avantajado”; sua irmã vangloria-se de “ter o maior e o mais belo clitóris da região” (2009, p. 39).</p><p>O fetichismo costuma ser representado de dois modos fundamentais, levando-se em consideração um menor ou um maior distanciamento do objeto simbólico em relação à</p><p>totalidade desse Outro, que é objeto do ato fetichista. Num primeiro caso, a adoração do fetichista concentra-se numa parte do corpo da amante: pés, mãos, olhos, boca, cabelos</p><p>etc. – desse modo, a representação simbólica trabalhará sempre com a sinédoque, “figura de linguagem, não raro identificada com a metonímia, consiste em designar, numa</p><p>contiguidade quantitativa”, entre outras coisas, “a parte pelo todo” (MOISÉS, 2004, p. 429). Verifica-se aí uma integração entre o objeto de adoração, a representação da “parte”, e</p><p>o ser que se ama ou que se deseja, a representação do “todo”. No segundo caso, a fixação acontece em relação a um sapato, a um vestido, a uma luva, a um pente etc., o que</p><p>implica o uso da metonímia, pois não há relação íntima entre o objeto fetichizado e o ser que a ele está ligado. A distância do amante, em relação ao ser do desejo, tem como</p><p>consequência uma operação simbólica mais complexa, na medida em que o ser que deseja fecha-se mais em seu mundo autista, artificializando completamente as operações do</p><p>desejo.</p><p>Na maioria dos contos de Espelhos Gêmeos, predomina o fetichismo de primeiro grau, ou seja, aquele tipo em que o objeto que se manipula tem íntima relação com o ser que</p><p>se deseja. Lembro aqui os seios, coxas e tranças que excitam o acrobata de “O trapezista grego”, as nádegas apalpadas por Ladislau de “Escorpiões”, os pés que a mulher lava em</p><p>“Cobra-Rei” e que se identificam com o pênis-cobra, o nariz em “Desconforto Passageiro”, que provoca ereção na personagem, ao ser esfregado na tampa do caixão de defunto</p><p>etc.Mas é no conto “Diário de um Sapato Acima de Qualquer Suspeita”37 que se vê em toda sua intensidade a exploração do fetichismo em segundo grau (o fetiche metonímico,</p><p>em que o objeto de desejo distancia-se do Outro) e, de certo modo, uma explicação alegórico-simbólica de seu funcionamento. No conto em questão, o narrador é um sapato que</p><p>deixa um diário incongruente, cobrindo um período de sete séculos, nos quais, ele vai passando de mãos em mãos e exercendo o seu mister como fetiche. Devido ao fato de</p><p>o fetichismoexercer-se sobre um sapato, essa variante recebe o nome de retifismo. O termo, de si uma metonímia, origina-se do nome do escritor francês Rétiff de la Bretonne.</p><p>Nicolas-Edmée Rétiff (1734-1806), chamado de la Bretonne pelo pai, foi um dos mais prolíficos escritores do seu tempo e contemporâneo</p><p>de Sade. Escreveu mais de duzentos</p><p>livros de todos os gêneros e costumava tirar inspiração da vida na província, onde passou a juventude (Vila de Sacy próxima de Auxerre) e da vida agitada de libertino em Paris.</p><p>Entre suas obras de caráter fescenino, destacam-se Le Pied de Fanchette (1769) e Le Paysan Perverti (1775), sendo que, na primeira delas, é que vai mostrar, de maneira bem</p><p>declarada, essa fixação pelos pés e calçados femininos. Não é à toa que esse escritor vá servir de inspiração ao sapato narrador que, nas últimas linhas de seu diário, confessa que</p><p>reforçou “a opinião a respeito da necessidade do registro, seguindo o ensinamento do escritor Nicholas de la Brettone” (PRADE, 2009, p. 8).</p><p>O diário inicia-se em 1235, quando o dono do sapato, Ramon Llul, aos 75 anos, atormentado pela impotência, procura saná-la, recorrendo, em vão, a vários expedientes,</p><p>todos eles de caráter profano. Primeiramente, experimenta o ato sacrílego de colocar o pênis na página 666 (observe-se o caráter demoníaco do número) do livro da Cabala. Não</p><p>obtendo êxito, recorre a outro expediente profano, ao “pôr, após várias tentativas, na mesma página, o esboço daquilo que, em 1830, seria a ilustração anônima intitulada “Na Casa</p><p>de Banho”:</p><p>Figura 1 – “Casa de Banhos”</p><p>Fonte: KNOLL, Ludwig e JAECKEL, Gerhard. Léxico do Erótico.</p><p>A ilustração é francamente obscena e/ou pornográfica pela atmosfera lasciva que recria, visando à excitação: duas mulheres mostrando as nádegas, uma outra exibindo os</p><p>pelos pubianos e masturbando um homem dentro da banheira. Contudo, nem esse expediente é capaz de proporcionar uma ereção a Ramon, que só irá conseguir isso, ao introduzir</p><p>o salto do sapato entre as páginas do livro sagrado: “em poucos minutos, sentiu entre as pernas um volume considerável” (PRADE, 2009, p. 5). A profanação, neste trecho da</p><p>narrativa, atinge vários graus – no primeiro caso, há um contato físico entre Ramon e o livro sagrado, numa representação simbólica de um estupro, na penetração falhada da obra</p><p>sacra; no segundo caso, há a confrontação de duas obras – a sacra e a francamente profana; no terceiro, fundem-se os dois casos anteriores, porquanto o sapato é um substituto do</p><p>pênis e, ao mesmo tempo, um objeto profano, elevado à condição de objeto-fetiche, o que tem como resultado a satisfação onanista do sábio.</p><p>Um século depois, o sapato encontra-se de posse de uma Marquesa que o considera “mais atraente do que o conde”, seu marido, e por isso mesmo, serve-se do sapato,</p><p>sentando-se sobre ele, para se satisfazer, levando o calçado a concluir que “fico feliz ao saber que não possuo apenas uma única utilidade”. Apontamos aí dois aspectos</p><p>importantes que só servem pare reforçar o princípio do funcionamento do fetiche: há uma evidente ideia de desvio, pois a mulher, ao mesmo tempo em que dá uma utilidade fora</p><p>do comum ao sapato, ainda despreza o parceiro sexual e compraz-se com a masturbação com um objeto que a excita. É isso que a faz recusar definitivamente “o amor tradicional”</p><p>e a conceder ao sapato o status de “amante preferido”. Na simbólica fetichista da Marquesa, a função do sapato amplia-se, a tal ponto que, de simples peça de vestuário, passa a</p><p>representar, num primeiro estágio, em seu hermafroditismo, tanto a vagina quanto o pênis,38 e, num segundo estágio, o Outro. Em outras palavras, o significado simbólico do</p><p>sapato é aumentado: de simples complemento, transforma-se num ser. Quase duzentos anos mais tarde, o sapato está de posse de outra mulher, Gerda Wegener – nesse momento,</p><p>verifica-se um duplo movimento fetichista: enquanto a mulher se encanta com a própria vagina, espreitando-a por meio de um espelho, o sapato, enciumado, após fazer</p><p>considerações sobre a anatomia da amante, almeja satisfazê-la com o contato de seu “couro italiano”.</p><p>No último dos fragmentos do diário, há uma referência explícita ao filme Der blaue Engel, de 1930, dirigido por von Sternberg e estrelado por Marlene Dietrich, que conta a</p><p>história de um austero professor que, ao se envolver amorosamente com uma dançarina de cabaré, de nome Lola, sofre um processo de crescente degradação física e moral. Mas</p><p>não só isso, o narrador também descreve uma cena capital da película, na qual, a sedução da mulher atingirá seu ponto máximo: ela canta, assentada sobre um barril e,</p><p>sensualmente, exibe as belas pernas, apoiando o salto do sapato sobre um dos joelhos:</p><p>Figura 2 – O Anjo Azul</p><p>Fonte: .</p><p>A descrição da cena constitui uma ekphrasis, que se caracteriza como um “recurso expressivo” que “inicialmente designava a descrição em geral, mas logo passou a ser</p><p>empregado também no sentido específico de descrição de uma obra de arte” (MOISÉS, 2004, p. 114). Utilizando-se desse expediente retórico, o narrador como que congela a</p><p>narrativa, tirando dela todo e qualquer movimento, e esse expediente serve para que se manifeste aqui o sentido alegórico-simbólico do fetichismo-retifismo em Espelhos</p><p>Gêmeos. A começar que há um processo de desvio e/ou transferência, ou seja, como o narrador se dirige diretamente ao leitor – “olhem bem o sapato direito encostado no joelho</p><p>esquerdo” (PRADE, 2009, p. 8) –, este, malgré lui, acaba se transformando também num fetichista e, nessa condição, exerce o seu ofício de pervertido junto (ou no lugar) das</p><p>personagens. Porque, na realidade, o que se deduz da cena congelada é que o fetichismo de segundo grau – de caráter metonímico, portanto – tem, paradoxalmente, mais força que</p><p>o do primeiro grau, pois “ele (o sapato) é que representa o elemento primordial dessa eternidade. As pernas envelhecerão: ele, não” (Ibidem). Um objeto que representa o Outro,</p><p>ainda que distante do Outro, a quem pertenceu, paradoxalmente, tem mais força evocativa do Outro do que uma parte do próprio Outro. Evidentemente, o artificial supera o</p><p>natural, pois o sapato, enquanto elemento deflagrador do erótico, passa a ter mais valia que o corpo em sua totalidade. Ora, é por isso que o narrador-sapato dá ao leitor a condição</p><p>de fetichista, porque, desse modo, faz que seu diário, aparentemente inconcluso, permaneça ad aeternum, renovando-se a cada leitura e modificando-se, dependendo da óptica de</p><p>cada espectador privilegiado da cena sensual. Percebe-se, assim, que o fetichismo, mais do que uma perversão, configura-se, simbolicamente no livro como a atitude artística por</p><p>excelência, enquanto que o fetichista, por sua vez, configura-se como o artista. Nessa condição, o objeto de fetiche, o sapato, de certo modo, dispensa o Outro e instaura-se ele</p><p>próprio como uma realidade autônoma. Afinal, o sapato, personificado, é narrador e personagem e tem, por isso mesmo, uma crônica pessoal, que o eterniza. É desse modo que a</p><p>arte trabalha com a realidade – com simulacros, que a perpetuam; afinal, de acordo com o primeiro aforismo de Hipócrates, ars longa, vita brevis.</p><p>Estas reflexões acerca do fetichismo e sua relação com o artificial, com o mundo da arte, terão seu desdobramento no talvez mais emblemático conto de todo o livro,</p><p>intitulado “Marcel enquanto joga”. Nele, o personagem-narrador, já de início, aponta o seu “vício” a sua “obsessão”, que é o jogo de xadrez, mas seu desvio diz respeito ao fato de</p><p>ele se interessar menos pela vitória do que pelo jogo em si, pelo “movimento das peças nas casas, mesmo se a partida, imortal ou não, perdure dias e dias nesse reino de</p><p>possibilidades infinitas” (PRADE, 2009, p. 53). O personagem é, de certo modo, um voyeur, pois se desliga da vida e se compraz em observar Marcel Duchamp jogando xadrez,</p><p>numa foto de 1963, tirada por Julian Vassar:</p><p>Figura 3 – Foto: “Marcel enquanto joga”, de Vassar</p><p>Fonte: .</p><p>O artista plástico francês aparece jogando xadrez, numa das salas do Pasadena Art Museum, tendo diante si, como improvável antagonista, uma mulher completamente nua,</p><p>o que serve para dar o tom surrealista a toda a cena. Mais uma vez, Péricles Prade utiliza-se da figura da ekphrasis não só na referência explícita à fotografia</p><p>de Vasser, mas</p><p>também na descrição e interpretação da foto por parte do narrador-personagem. O leitor tem sua atenção chamada para o fato de Duchamp concentrar-se todo no jogo, “alheio ao</p><p>mundo”39, sem prestar a mínima atenção à mulher nua. Há, pois, um desvio, no sentido de que o homem se desliga do natural e se concentra no artificial, o que implica</p><p>necessariamente o absoluto controle das pulsões, da sexualidade. Essa atitude do artista contamina o voyeurista que confessa:</p><p>Se alguém, no entanto, colocou-a lá, com o propósito de seduzir os espectadores, desde já afirmo: não me excito com os fartos seios à mostra, a barriguinha</p><p>abaulada, os sombreados pentelhos aparecidos, a boceta escondida entre as coxas brancas, talvez tão pensativa quanto ela, que segura a cabeça de madeixas negras,</p><p>dando a impressão de cair a qualquer momento (PRADE, 2009, p. 53).</p><p>O fundamental nesta reflexão é que o narrador-personagem descreve minuciosamente a figura feminina, descendo ao escatológico, servindo-se de termos de baixo calão e</p><p>chegando mesmo a adivinhar algo que não comparece em cena e que é um produto de sua imaginação – a vagina “escondida entre as coxas brancas”. Retorno ao início deste</p><p>ensaio, para sublinhar que a questão da “excitação sexual” é essencial para distinguir a arte erótica do pornográfico e do obsceno. O apelo sexual anula-se, em Duchamp, que o</p><p>sublima pelo jogo – o mesmo se passa com o narrador, ao observar o artista jogando, e com o leitor que vem a perceber que a mulher nua é apenas um suporte para essa</p><p>confrontação entre o natural/animal e o artificial/humano, que é a base de toda a cultura. É por isso que, na conclusão da narrativa, o músico homossexual Bobby Byrne, “de mãos</p><p>dadas com o recente namorado”, observa que “a beleza não se encontra na nudez da desconhecida, mas em Marcel, enquanto joga” (PRADE, 2009, p. 55), o que leva o</p><p>narrador-personagem a fechar o conto, dizendo que rasgou a fotografia, pela metade, jogando “no lixo a parte que não tocou meu coração latino” (Ibidem, 56). Torna-se evidente</p><p>que descartou a metade da foto contendo a mulher nua, porque ela, segundo os padrões de normalidade, é que deveria ativar o mecanismo das emoções e pulsões, ainda mais em</p><p>se tratando de um “coração latino”. A parte conservada da foto privilegia o artista em atitude contemplativa, alheio ao mundo e alheio, sobretudo, à possível erotomania,</p><p>provocada pela mulher desnuda que se oferece a sua frente como verdadeira tentação.</p><p>Apoiando-me principalmente nos dois contos mais emblemáticos do livro – “Diário de um Sapato Acima de Qualquer Suspeita” e, principalmente, “Marcel enquanto joga”,</p><p>podemos afirmar que, se eles expressam de maneira bem evidente o princípio da sublimação, ousaria afirmar que as demais narrativas também são caudatárias dessa mesma</p><p>posição, ainda que de maneira sub-reptícia. De uma forma ou de outra, as personagens todas do livro, cada uma a seu modo, desprezam o Outro, enquanto complementação do</p><p>prazer, para se concentrarem numa perversão particular, ou fazem do Outro simplesmente o suporte para a manifestação de uma determinada perversão. Isso talvez sirva para</p><p>explicar as complexas relações que se estabelecem entre a natureza e o homem. Retomando Camile Paglia, lembro que o ser humano, durante o dia, é criatura social, mas à noite</p><p>mergulha “no mundo dos sonhos, onde reina a natureza, onde não existe lei, mas apenas sexo, crueldade e metamorfose” (1992, p. 15). O esforço do humano, pois, foi sempre o de</p><p>despregar-se da natureza e distinguir-se dos animais, para afirmar a sua humanidade, porquanto “uma mente que se abrisse inteiramente para a natureza, sem preconceito</p><p>sentimental, ficaria farta do grosseiro materialismo da natureza, sua incansável superfluidade” (Ibidem, p. 37). A natureza é o reino do ctônico, das forças primevas, animalescas</p><p>que, se atraem o sujeito, por sua magnificência, por sua força, por outro lado, o assustam por querer reduzi-lo ao instinto primário e submetê-lo aos desmandos da besta ancestral,</p><p>que está sempre a espreitá-lo nos escaninhos do inconsciente, como aconteceu ao pobre do doutor Jeckill, dominado por seu Outro, o bestial Mr. Hyde. E a sexualidade faz parte</p><p>dessa ordem ctônica, subterrânea e, no limite, quando o ser humano se deixa dominar por ela, acaba por igualar-se aos animais, que obedecem tão só ao primado dos instintos</p><p>básicos.</p><p>Vem daí que, para afirmar a supremacia do espírito, do intelecto sobre a natureza (e sobre a sexualidade bruta), o homem, desde o início dos tempos, vem encontrando dois</p><p>meios fundamentais para escapar do domínio da animalidade bruta: o religioso e o artístico. O primeiro simplesmente procura castrar o desejo, sob a forma de regras e</p><p>mandamentos, para controlar a libido e encarcerá-la, fazendo do homem um eunuco. O segundo, pelo contrário, afirma o desejo, entre outras coisas, por meio da arte erótica,</p><p>somente que, servindo-se de sua força, de sua importância fundamental na constituição e na afirmação do homem enquanto homem, faz dele um objeto da contemplação estética,</p><p>que é o que acontece, por exemplo, com Péricles Prade e sua ficção erótica. E isso, convenhamos, é muito mais saudável do que a triste emasculação, em nome da moral, dos bons</p><p>costumes, das instituições religiosas e profanas, criadas para impor as forças da coesão sobre as ameaçadoras forças da dissolução.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>ALEXANDRIAN. História da Literatura Erótica. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.</p><p>BATAILLE, Georges. Las Lágrimas de Eros. Barcelona: Tusquets Editores, 1981.</p><p>BENJAMIN, Walter. Sociologia. Organização de textos de Walter Benjamin por Flávio R. Kothe e Florestan Fernandes. São Paulo: Ática, 1985.</p><p>______. Passagens. Belo Horizonte: UFMG/IOESP, 2007.</p><p>CHEVALIER, Jean et GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire des Symboles, Paris : Seghers, 1974. 4 v.</p><p>CIRLOT, Juan-Eduardo. A Dictionary of Symbols. New York: Philosophical Library, 1983.</p><p>DARMON, Pierre. Le Tribunal de l’Impuissance: virilité et défaillances conjugales dans l’Ancienne France. Paris: Éditions du Seuil, 1979.</p><p>DUMOULIÉ, Camille. O Desejo. Petrópolis: Vozes, 2005.</p><p>FRAZER, James George. O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.</p><p>FREUD, Sigmund. The Major Works of Sigmund Freud, Encyclopaedia Britannica, Chicago: University of Chicago, 1952. v. 54.</p><p>______. Obras Completas. 3. Ed., Madrid: biblioteca Nueva, 1973. 3 v.</p><p>HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.</p><p>HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. 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E isso se deve à leitura de um índice, o “movimento estudado/do braço esquerdo”, o ato dissimulado da mulher que, apenas com um gesto,</p><p>indicia a sensualidade. Ou seja: é o olhar privilegiado do poeta que ativa, dá movimento à figura representada, de modo que se revele o que está oculto ou em latência na</p><p>escultura.</p><p>Ao fornecer esta chave de um suposto enigma, o poema encaminha-se de forma radical para a revelação de sua imagem mais poderosa da sexualidade, a “espiga do</p><p>sexo”, que “se abre”, “perfumada,/como uma rosa de sangue” e para onde convergem as serpentes. Mais uma vez, se nota a presença metafórica da Natureza, a representar o</p><p>instinto, o seu desabrochar que implicará a revitalização, como também acontece com a estátua de Apolo, dos instintos vitais da imagem feminina. É bem significativo, pois,</p><p>que Albano Martins indiscretamente revele o que o olhar comum não consegue devassar, aquilo tudo que constitui o signo de vitalidade no homem: a forte presença da</p><p>Natureza, a umidade da concha, os perfumes do amor, as sombras dionisíacas do mundo ctônico, dos instintos básicos, onde a serpente-pênis se insinua entre as rubras pétalas</p><p>da rosa.</p><p>Num poema como “Ostrakon da Bailarina”, o espetáculo da sexualidade latente, ativada pelo olhar poético, mais uma vez se manifesta:</p><p>O que sustenta o arco</p><p>desta ponte</p><p>são os braços e as pernas</p><p>da bailarina. A água</p><p>que ali corre derrama-se</p><p>da ânfora da cabeça e são</p><p>os seus cabelos. Se alguém</p><p>atravessar a ponte</p><p>e beber, encontra</p><p>a entrada aberta e a saída</p><p>fechada. O obstáculo</p><p>são os seios</p><p>grávidos</p><p>da bailarina. Para</p><p>além deles há apenas</p><p>o abismo. E, como alguém disse,</p><p>quando se ama o abismo,</p><p>é preciso ter asas (MARTINS, 1998, p. 55).</p><p>O poeta dá vazão ao processo imaginativo, explorando ao máximo a camada metafórica, o que faz que ele aproxime realidades distintas. Sob o efeito da magia do olhar,</p><p>a bailarina ganha o estatuto de ponte, em que braços e pernas são colunas, a cabeça é uma ânfora, e os cabelos, água. A imagem da ponte é bem significativa, no sentido de que</p><p>o poeta iconiza o próprio processo de criação artística, fundindo duas dimensões da realidade opostas. A bailarina é ponte apenas para seu olhar privilegiado e é ponte para</p><p>que isto e aquilo (cabeça = ânfora; cabelos = água), ao contrário do que dita o senso comum, sejam a mesma coisa. Mas, além disso, a motivação erótica também está presente</p><p>na imagem do abismo, escondido pela porta dos seios. Se se ousar a entrada no mistério da bailarina, com o ato de se lhe beber os cabelos-água, há a sugestão do perfume do</p><p>sexo, apenas franqueado pelos “seios grávidos”, montanhas que ocultam/revelam a garganta da sexualidade, a que se teria acesso, sem o perigo do abraço mortal do abismo,</p><p>apenas para quem tem asas. As asas são as asas do imaginário: só o homem possuído por visões extravagantes pode ousar ir além de sua limitação. A simbologia do sexo como</p><p>atração e repulsa, do enigma da mulher-ponte, que ao mesmo tempo se oferece, de maneira paradoxal, como signo de vida e morte, a sugerir o eterno embate entre Eros e</p><p>Tânatos, é realizada pela contemplação de uma simples e primitiva pintura de um desconhecido objeto artístico da Antiguidade, submetido a uma transformação poética.</p><p>Mas, no caso de “Sobre um Desenho de José Rodrigues”, o erotismo, já de si muito forte no objeto artístico original, a princípio, não necessitaria do poeta para ativá-lo, a</p><p>partir de algo que estivesse implícito ou que sua imaginação achasse que estava implícito e que, por isso mesmo, exigisse sua interferência radical por meio da poesia. Eis o</p><p>poema:</p><p>A luz desnuda-se</p><p>nos flancos, inflama-se</p><p>nas gárgulas</p><p>dos seios, é lâmpada</p><p>de orvalho</p><p>entre as coxas (MARTINS, 1998, p. 207).</p><p>Cremos que, no caso, valeria a pena uma descrição mais objetiva do desenho, para que se possa entender o processo criativo do poeta. Há nele um torso feminino</p><p>desnudo, deitado de costas e iluminado por uma lâmpada, que se permite lançar um foco paradoxalmente obscuro sobre o ventre da mulher e luzes desfocadas e firmes tanto</p><p>sobre os seios e o sexo dela. É esse desfoque que parece interessar ao poeta – a seus olhos, a luz é que se desnuda, como o corpo já desnudo, em contato com os flancos da</p><p>figura feminina. Todavia, ela se intensifica em contato com os seios, ao se inflamar, e, sobretudo, ganha uma dimensão metafórica, quando se transforma em “lâmpada/de</p><p>orvalho”, ao apontar para o intervalo entre as coxas. Nesse ponto, intensifica-se ainda mais o apelo sexual com essa intervenção “desmedida” do poeta, pois se observa aí um</p><p>ato de fecundação, com o orvalho aparecendo como metáfora explícita do esperma.</p><p>Em “O Jogo das Pedrinhas, ou os Ardis do Amor”, motivado por um bronze de Corinto do século IV a. C., Albano Martins, ao se referir outra vez à sexualidade, aponta,</p><p>porém, para um dado novo até agora: a malícia de que se serve a mulher para envolver os homens:</p><p>O que a cena</p><p>tem de imprevisto</p><p>não é sequer</p><p>o jogo das pedrinhas</p><p>com que um deus</p><p>e uma deusa se entretêm, mas o gesto</p><p>do indicador direito</p><p>apontado</p><p>ao olhar de Afrodite. E também</p><p>o movimento com que ela</p><p>devolve o sinal a Pã</p><p>e lhe censura</p><p>os pés de cabra. É assim</p><p>o amor no feminino: dos defeitos</p><p>se serve, com frequência,</p><p>para falsear o jogo. E há sempre</p><p>uma ave emplumada</p><p>que assiste ao lance e guarda</p><p>segredo. Que secretos são</p><p>os ardis do amor (MARTINS, 1998, p. 67).</p><p>O que há de explícito no objeto artístico é mesmo o jogo de pedrinhas, com o qual se entretêm os deuses Afrodite e Pã, contudo, como era de se prever, interessa mais ao</p><p>poeta o “imprevisto” que o poema, a seus olhos, pode oferecer. Assim, há um deslocamento do motivo principal – um simples jogo de pedrinhas – para um motivo talvez</p><p>secundário, que envolve a decifração semiótica de gestos, um do deus, que aponta para o alto, outro, da deusa, que aponta para baixo. O da divindade masculina é, até certo</p><p>ponto, neutro, enquanto o dela é carregado de significado, na medida em que o poeta vê nele uma censura de caráter estético. A deusa da Beleza não só insinua a feiura de Pã,</p><p>como também lhe lembra, por extensão, sua condição animalizada, que o diferencia sobremaneira dela e que impede qualquer aproximação entre ambos.</p><p>Vem daí que a palavra “jogo” ganhe dupla dimensão: atividade lúdica e prazerosa com um tabuleiro e atividade amorosa. Contudo, o que os aproxima é que, em ambos,</p><p>pode-se falsear, trapacear – no caso da deusa, a respeito disso, não é difícil fazer uma ilação mais ampla, ao lembramos que ela era casada com um deus disforme, Vulcano, a</p><p>quem enganava copulando com Marte. Daí vem que, ao se utilizar de um modelo arcaico, de valor arquetípico – a prática amorosa entre os deuses –, Albano Martins acabe por</p><p>generalizar, quando trata da atitude das mulheres frente ao amor, pois, segundo o poeta, elas se servem “dos defeitos [...] com frequência,/para falsear o jogo”. A afirmação</p><p>categórica a fechar o texto – “há sempre” – significa que, nos jogos de amor, uma testemunha se faz presente, assistindo ao lance e às trapaças, mas guardando segredo, o que</p><p>serve para acentuar a imprevisibilidade do comportamento feminino.</p><p>No poema “O Beijo, de Gustave Klimt”, inspirado na tela homônima (1907) do pintor austríaco, encontraremos elementos que nos propiciem tratar, de maneira mais</p><p>incisiva, da questão erótica:</p><p>O beijo é só uma palavra</p><p>escolhida</p><p>ao acaso. O que as tintas</p><p>encobrem e descobrem</p><p>e os pincéis revelam,</p><p>mas não nomeiam,</p><p>é a ordem</p><p>que se pressente</p><p>em todas</p><p>as nebulosas. Que sempre</p><p>a ordem precede</p><p>a desordem (MARTINS, 1998, p. 187).</p><p>A palavra “o beijo” constitui o título da tela, atribuído pelo pintor, contudo, de acordo com o poeta, ela foi “escolhida/ao acaso”. Mas, no desenvolvimento do poema, em</p><p>vez de justificar este seu juízo inicial, ele dá início a um processo de desvelamento daquilo que o</p><p>pela atividade jornalística, pelo ensino (foi</p><p>um dos fundadores da Universidade do Paraná). Como escritor, publicou importantes obras históricas, História da América (1900), História do Brasil</p><p>(1905-1917), História do Rio Grande do Norte (1922), e ficção: A Honra do Barão (1881), Visões, contos e poesia (1888), No Hospício (1905). Faleceu em</p><p>1933.</p><p>22 Emanuel Swedenborg (1688-1772), cientista, filósofo e teólogo sueco. Teve uma prolífica carreira como inventor e cientista. Em 1741, entrando numa fase</p><p>espiritual, começou a ter sonhos e visões que, segundo ele, lhe permitiram visitar o Céu e o Inferno e falar com anjos, demônios e outros espíritos. Sua obra</p><p>mais conhecida, De Coelo et de Inferno, onde registrou tais sonhos e visões, foi publicada em 1758.</p><p>23 Observe-se que apenas Fileto (do grego, Philetos, “digno de ser amado”, “amável”) e Alice (do grego Alethia, “a verdadeira, que não conhece a mentira”) têm</p><p>nomes com um sentido simbólico. Os outros nomes nada (ou pouco) acrescentam ao caráter simbólico do romance.</p><p>24 O personagem/narrador está se referindo, no caso, a Dante e a sua Divina Comédia.</p><p>25 Tradução nossa: “Eu quero dizer que é preciso ser vidente, fazer-se vidente. O Poeta se faz vidente através de um longo, imenso e racional desregramento</p><p>de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura a si próprio, extrai de si todos os venenos para guardar apenas as</p><p>quintessências. Inefável tortura, contra a qual necessita de toda a fé, de toda a força sobre-humana, através da qual se torna, dentre todos, o grande</p><p>enfermo, o grande criminoso, o grande maldito — e o supremo Sábio! — Pois atinge o desconhecido! Pois cultivou a alma, já rica, mais do que ninguém!</p><p>Atinge o incógnito e, quando, enlouquecido, acabar perdendo a inteligência das suas visões, já as terá visto!”.</p><p>26 Em seu soneto Correspondances, Baudelaire refere-se à floresta de símbolos, na qual, os vivos pilares, metáforas das árvores, lançam olhares familiares ao</p><p>homem que aí passa. Nessa floresta, ainda segundo o poeta, tudo se corresponde: “Comme de longs échos qui de loin se confondent/Dans une ténébreuse</p><p>et profonde unité,/Vaste comme la nuit et comme la clarté,/Les parfums, les couleurs et les sons se répondent” (1961, p. 13).</p><p>27 “O prazer é o meio mais certo de conhecimento que a Natureza nos oferece e... aquele que muito sofreu é menos sábio do que aquele que muito se alegrou”.</p><p>28 Um dos maiores representantes, no Brasil do quadrinho pornográfico foi o desenhista Carlos Zéfiro (Rio de Janeiro, 1921-1992). Pseudônimo do funcionário</p><p>público Alcides Aguiar Caminha, ilustrou mais de 500 trabalhos que eram vendidos em bancas. Usava pseudônimo devido à censura muito rigorosa da</p><p>época que podia comprometer o seu emprego.</p><p>29 Tradução nossa : « Diz-se em consequência que Orion [...] segue constantemente o escorpião”.</p><p>30 Tradução nossa: “o primeiro, ut arrigat, é a ereção; o segundo, ut va saemineum referet, é a penetração; e o terceiro e último, ut em vase seminet, é a</p><p>ejaculação”.</p><p>31 Tradução nossa” Sob o domínio planetário de Marte, bem como a de Plutão, o poder misterioso e inexorável das sombras, o inferno, a escuridão interior.</p><p>Estamos no coração do complexo sado-anal do freudismo”.</p><p>32 Ismond Rosen dá a entender que é possível o exibicionismo numa mesma família, por uma “predisposição constitucional” ou de base genética (1971, p. 344 e</p><p>349).</p><p>33 Tradução nossa : “(O narcisista) experimenta o prazer sexual ao olhar, acariciar e apalpar seu corpo até a gratificação completa [...]. Tais pacientes, que</p><p>proponho denominar parafrênicos, apresentam duas características fundamentais: sofrem de megalomania e extraem seu interesse do mundo externo</p><p>(pessoas e coisas).”</p><p>34 Tradução nossa: “A personificação dessas forças que permanecem virtualmente fora da órbita da consciência [...] “certas características infantis condizentes</p><p>com seu pequeno tamanho ””</p><p>35 O nome Déruchette é de um dos personagens de Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo. Segundo Walter Benjamin (2007, p. 735), o escritor francês,</p><p>enquanto escrevia seu livro, tinha diante de si uma boneca, que lhe serviu de modelo para o personagem.</p><p>36 Tradução nossa : “no fetichista [...] há uma correspondência notável entre a questão fundamental que visa à recusa (castração, a diferença dos sexos), no</p><p>centro do alvo, e um prazer sexual bem definido, convergindo para o objeto fetiche.“.</p><p>37 O título deste conto talvez seja uma paródia do título de um filme de Elio Petri – Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, produzido em</p><p>1970.</p><p>38 “O fetichismo do pé e do calçado feminino só parece se sustentar como um símbolo, um Ersatz do membro adorado do tempo da infância, e depois perdido”</p><p>(VALAS, 1994, p. 55).</p><p>39 A postura de Marcel Duchamp, enquanto jogador de xadrez na foto em pauta, é muito similar à dos jogadores de xadrez de um poema de Ricardo Reis, que</p><p>define esse jogo como o “dos grandes indif’rentes”, no sentido de que quando se entregam a esse artifício, alheiam-se completamente das fainas e dramas</p><p>da vida, (PESSOA, 1972, p. 267-269).</p><p>40 A respeito da grande contribuição de Yeats para a cultura, consultar a obra de Evans (1980, p. 141).</p><p>41 Tradução nossa: “Sob um dourado e fundo céu”.</p><p>42 Tradução nossa: “O grande e branco lírio do mundo”, “as pálidas estrelas”.</p><p>43 Tradução nossa: “Mas primeiro sente-se e descanse um pouco,/ Pois meus velhos pais serviram seus pais, senhora,/ Mais do que os livros podem dizer – e</p><p>foi estranho/ Se você e seus pais não fossem bem-vindos aqui”.</p><p>44 Tradução livre nossa: “Lembre-se do objeto que vimos, minha alma/Esta linda manhã de verão tão doce:/Na curva de um caminho, uma infame arniça/Em um</p><p>leito repleto de pedrinhas,//Pernas no ar, como uma mulher lasciva,/Queimando e suando os venenos,/Abria de maneira indiferente e cínica/Sua barriga</p><p>cheia de exalações.//O sol brilhou nessa podridão/Como se para cozinhá-la com perfeição,/E para fazer cem vezes a grande natureza/Tudo o que ela</p><p>juntou;//E o céu olhava para a soberba carcaça/Como uma flor florescendo./O fedor era tão forte na grama/Que você acreditava que ia desmaiar.//Moscas</p><p>zumbiam nessa barriga pútrida,/De onde vinham os batalhões negros/De larvas, que fluíam como um líquido espesso/Ao longo desses trapos vivos. [...] – E</p><p>então assim você será como esse lixo,/ Nesta infecção horrível,/Estrela dos meus olhos, sol da minha natureza/ Você, meu anjo e minha paixão!//Sim! você</p><p>irá, ó rainha das graças,/Depois dos últimos sacramentos/ Quando você repousar sob a grama e as florações gordurosas,/ Moldar entre os ossos.//Então, oh</p><p>minha bela! Diga aos vermes/Quem vai comer seus beijos,/De Que guardei a forma e a essência divina/Do meus amores descompostos!”</p><p>45 Conforme Ernst Bloch, em o Princípio Esperança (2005).</p><p>46 Segundo Zumthor: Ser “moderno” é julgar homens e coisas em virtude do que eles têm ou do que lhes falta; é conhecer seus atributos a fim de domar-lhes o</p><p>uso. Ser “antigo” [...] é conhecer e julgar em virtude do ser e do nada. Pelo que concerne à poesia, a escritura parece moderna; a voz, antiga. Mas a voz</p><p>“moderniza-se” pouco a pouco: ela atestará um dia, em plena “sociedade do ter”, a permanência de uma “sociedade do ser”. (1993. p. 26).</p><p>47 Imaterialidade significa uma outra materialidade, pois existe sob uma forma codificada realizada pela organização de estados eletromagnéticos dos sinais de</p><p>0 e 1, comporta uma matriz virtual e potencial em memória que pode ser atual, visualizável por meio de transcodificadores. As mensagens imateriais não se</p><p>confundem com seus suportes, elas circulam através de múltiplos dispositivos.</p><p>48 O que nem sempre significa qualidade e adequação das novas produções dedicadas à juventude.</p><p>49 A leitura da literatura, a formação do leitor literário passa por mediações organizadas por adultos.</p><p>50 CUNHA, Maria Zilda. As matrizes de linguagem e pensamento na literatura Infantil e Juvenil: a tessitura dos signos em Ângela Lago e Octaviano Correia.</p><p>USP, 2002.</p><p>51 Sabemos, a invenção da escrita, e sua</p><p>sofisticada maquinaria de combinatória alfabética, traz questões muito mais amplas, assunto que aqui não</p><p>discutiremos aqui, basta lembrar com Pierre Lévy (1996) que: “os modos de conhecimento teóricos e hermenêuticos passaram a prevalecer, impondo-se</p><p>“uma ecologia cognitiva largamente estruturada pela escrita (num suporte fixo)”,</p><p>52 Angela Lago – .</p><p>53 O termo é utilizado por Ítalo Calvino para designar o aspecto fragmentado do hiper-romance, que resulta no tema e no modelo.</p><p>54 Razoabilidade concreta é a denominação utilizada por Charles Sanders Pierce para uma razão em crescimento, uma razão criativa, que está sempre em</p><p>busca da verdade, uma verdade sempre movente.</p><p>55 Um processo cognitivo, que exige esforço de abstração e de interpretação, à medida que faz refletir sobre temas e situações da vida.</p><p>56 Macrossistema literário – cunhado por Abdala (2003) com base em Antonio Candido (1975) – deriva da compreensão de uma dinâmica que envolveu</p><p>historicamente constantes semelhantes da série ideológica. O macrossistema é marcado por um campo comum de contato entre sistemas literários</p><p>nacionais como os de língua portuguesa, que têm um passado comum e diferentes atualizações. Na atualização, engendra uma força dialética e, na</p><p>contramão, promove a convergência de tradição e ruptura. É um conceito operacional e estratégico politicamente (ABDALA, 2007).</p><p>57 “ Já nem sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do</p><p>corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia</p><p>escurecendo o resto do corpo. [...] Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agora é ver-me a não largar seja</p><p>quem for enquanto não me disser por que é que eles têm as palmas das mãos assim tão claras.[(...] Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os</p><p>pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgínia e demais não sei aonde. Já se vê que a</p><p>Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos desbotarem à força de tão lavadas” (HONWANA, 1972).</p><p>58 Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho. Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito</p><p>porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os</p><p>pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem</p><p>exatamente como as palmas das mãos dos outros homens.</p><p>E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem, é</p><p>apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem, é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem</p><p>qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão</p><p>graças a Deus por não serem pretos” (HONWANA, 1972).</p><p>59 Para Morin, um paradigma efetua a seleção e a determinação das operações lógicas, designa as categorias fundamentais da intelegibilidade e opera o</p><p>controle de seu emprego. Assim, os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles. (2003, p. 25).</p><p>O MILAGRE MEDIEVAL: Gil Vicente e Yeats</p><p>Eliane de Alcântara Teixeira</p><p>Gil Vicente, dramaturgo português, que teria vivido entre 1465 ou 1466 e 1536 ou 1540, produziu intensamente, escrevendo quarenta e seis peças, em diferentes estilos:</p><p>peças satíricas – comédias e farsas – e dramas místicos. O texto a ser analisado será o Auto da Alma, revisitação de um gênero medieval conhecido como “milagre”. O segundo</p><p>autor, William Butler Yeats, dramaturgo irlandês, viveu entre 1865 e 1939. Além de poeta, o escritor irlandês escreveu e dirigiu peças teatrais, é autor de ensaios e estudos</p><p>autobiográficos40. A peça escolhida foi The Countess Cathleen, escrita em 1892, e ela tem grande interesse, nessa comparação com Gil Vicente, por reproduzir, em certos</p><p>aspectos, o milagre medieval.</p><p>Afinal, por que William Butler Yeats resolve reproduzir a estrutura do milagre medieval nesta peça? Na tentativa de responder a essa pergunta, neste trabalho comparativo,</p><p>em primeiro lugar, vamos analisar esses dois textos para observarmos as analogias, as semelhanças e comprovarmos a tese de que se trata de uma utilização, por parte de Gil</p><p>Vicente, de um gênero tipicamente medieval para revitalizar o espírito religioso, já bastante abalado pelo materialismo crescente, dentro da era renascentista e, por parte de Yeats,</p><p>desse mesmo gênero também com intenções críticas. Em segundo lugar, iremos buscar, nas circunstâncias temporais de cada autor, a possível resposta para esse mergulho na</p><p>Idade Média, de certo modo anacrônico, de dramaturgos pertencentes a épocas, culturas e países diferentes.</p><p>1. O Milagre Medieval</p><p>Desde de sua origem, o teatro foi identificado com os ritos religiosos e ligado aos fenômenos naturais, como por exemplo, os cultos a Dioniso ou em louvor à Primavera e à</p><p>renovação da Natureza. O teatro na Antiguidade foi amplamente desenvolvido, porém, entre ele e o teatro medieval, parece existir uma grande lacuna e, até, uma total separação,</p><p>como se um não apresentasse nenhuma relação com o outro. Isso se deve naturalmente à inflexível posição da Igreja contra as práticas teatrais, antes comuns em Grécia e Roma.</p><p>Em verdade, os padres da Igreja Católica, por toda Europa, com seus ataques, muito contribuíram para a decadência da tradição clássica. No entanto, é irônico que esta mesma</p><p>Igreja, que tanto proibiu essas práticas, delas tenha se servido ao longo da Idade Média:</p><p>Do mesmo modo como o drama grego se desenvolveu a partir da adoração a Dioniso, a dramaturgia litúrgica medieval desenvolve-se da liturgia cristã,</p><p>particularmente das celebrações da Páscoa, desde a Ressurreição, ou mais, desde a Natividade, que era o foco principal do ano cristão. O processo foi lento e</p><p>desigual. Em alguns lugares, a Igreja era muito revolucionária, em outros, mais conservadora. Mas, em geral, um claro padrão emerge, mostrando um progresso</p><p>definitivo do simples ato de fé que se transforma numa cerimônia ritual para um espetáculo da vida de Cristo em escala natural, encenado sobre carroças de dois</p><p>andares (pageants), interpretado em Latim e utilizando todo o edifício da igreja. Com a introdução do vernáculo e a transferência da performance para o pátio do</p><p>lado de fora da igreja, o caminho estava aberto para o desenvolvimento de um teatro nacional em cada país (HARTNOLL, 1998, p. 35).</p><p>Essas obras de caráter religioso receberam o nome de “mistérios ou milagres”: os primeiros, representando episódios da Bíblia; os segundos, as encenações inspiradas nas</p><p>vidas dos santos.</p><p>Esse processo também ocorre na Inglaterra. Segundo o texto de introdução de O Teatro Inglês da Idade Média até Shakespeare, o teatro inglês na Idade Média inicia-se pela</p><p>necessidade do clero de transmitir seus ensinamentos:</p><p>Desde tempos bem antigos, o clero tentara transmitir os ensinamentos cristãos através do ritual e da música, pois a liturgia, em latim, não era compreendida pelo</p><p>povo em geral. Desse drama litúrgico, em voga até o século XII, originaram-se dos MISTÉRIOS ou MILAGRES. [...] Os mistérios ou milagres tiveram seu apogeu</p><p>entre 1300 e 1450. Derivados do drama litúrgico, dele diferem por serem falados em vernáculo, em vez de serem cantados em latim (STEVENS, 1988, p. 10-11).</p><p>Com o tempo, essas peças foram se afastando da Igreja, transformando-se em manifestações cada vez mais populares. As cidades haviam crescido e com elas o comércio,</p><p>portanto esse tipo de encenação tornava-se cada vez mais necessária para a vida desses burgos, que eram os únicos centros de desenvolvimento</p><p>de cultural da Idade Média. Vieram</p><p>os “ciclos de mistérios”, que eram, ainda segundo a mesma fonte, “o conjunto das peças apresentadas em uma festividade” (Ibidem). Entre os séculos XIII e XIV, essas</p><p>representações constituíram mais uma responsabilidade das comunidades do que da Igreja e, portanto, já se tinham secularizado. Esses ciclos só irão desaparecer durante o reinado</p><p>de Henrique VIII, com a reforma eclesiástica.</p><p>Em Portugal, o fenômeno dos dramas populares também aconteceu num processo muito parecido com o do teatro inglês, porém pouco ou quase nada restou dessas</p><p>encenações. Segundo Massaud Moisés:</p><p>Antes de Gil Vicente, houve teatro em Portugal? É possível que sim, em consonância com o que ia no resto da Europa, mas não subsistem provas documentais. Só</p><p>sabemos da existência de breves representações, de caráter cavaleiresco, religioso, satírico ou burlesco, que receberam o nome de momos, arremedilhos e</p><p>entremezes, cujo sentido originariamente diverso, acabou por se confundir. [...] O mais antigo documento referente ao assunto data de 1193, dando notícia do</p><p>pagamento que D. Sancho I efetuava a dois jograis, Bonamis e Acompanhado, por seus arremedilhos (MOISÉS, 1992, p. 40, grifos do autor).</p><p>Além desses festejos mais populares, ou sem ligação religiosa, havia as muito comuns romarias aos lugares santos. Durante as longas viagens, os romeiros, para amenizar o</p><p>cansaço e a saudade de suas famílias, organizavam, geralmente durante à noite ou comemorando datas religiosas, festejos que se compunham de danças, cantigas e momos</p><p>considerados práticas proibidas pela Igreja. Muitos documentos episcopais condenam essas práticas e daí que inferimos a existência desse teatro primitivo. O melhor exemplo</p><p>disso está relatado no concílio de Toledo de 1473 (cap. 19):</p><p>Reunido em Aranda, falava de festejos semelhantes aos da Inglaterra e mais países da Europa ocidental: “Tanto nas igrejas metropolitanas, como nas catedrais e</p><p>mais templos da nossa província, meteu-se um costume, a saber: pelas festas do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, de S. Estevão, S. João e na SS. Inocentes</p><p>e em certos outros dias festivos, mesmo quando se celebram as cerimônias divinas, nas solenidades das missas novas, introduzem-se na igreja representações</p><p>teatrais, mascaradas, espetáculos, figuras monstruosas” (MARTINS, 1950, p. 147).</p><p>Dois aspectos importantes podemos apreender do que foi dito acima, o primeiro, que Inglaterra e Portugal tiveram um desenvolvimento muito semelhante no que diz respeito</p><p>à arte e, principalmente, ao teatro, fato que podemos confirmar nos demais países europeus, e segundo, uma vez que um autor moderno resolve fazer uma incursão a esse período,</p><p>isso significa que a Idade Média ainda oferece muito material e caminhos para a interpretação do nosso tempo.</p><p>2. O Auto da Alma, de Gil Vicente</p><p>Pareceu-nos claro que, apesar da inexistência de documentação comprobatória, o teatro português medieval existiu efetivamente, e mais, que ele teria influenciado de modo</p><p>direto os chamados autos de devoção do mais importante dramaturgo português do período subsequente, Gil Vicente:</p><p>Outros testemunhos ainda existem de cerimônias litúrgicas do ciclo pascal que interferem com o teatro. Se apenas em um missal bracarense de 1558 se nos depara o</p><p>texto dialogado de um Depositio Christi, certo é que tal cerimônia há mais de um século era conhecida entre nós, como se depreende de uma alusão que o rei D.</p><p>Duarte lhe faz no Leal Conselheiro (capítulo 97) e permite confirmá-lo o remate do Auto da Alma vicentino, [...] E haverá também de retroceder à primeira metade</p><p>do século XV para encontrar vestígios diretos de uma das composições dramáticas mais freqüentes na liturgia medieval: o Pranctus, ou Pranto de Nossa Senhora,</p><p>que, dotado inicialmente de autonomia, passou mais tarde a integrar-se nos ‘mistérios’ sobre a Paixão de Cristo (REBELLO, 1968, p. 41).</p><p>Como vimos, o Auto da Alma é um bom exemplo de encenação religiosa que se aproxima muito dos milagres medievais. Esse auto foi um presente à rainha D. Leonor, que</p><p>dava à luz o futuro rei D. João III. Foi representado pela primeira vez na corte de D. Manuel, na cidade de Lisboa, em uma noite de Endoenças, ano de 1508. Dissemos que é uma</p><p>peça com estrutura de milagre medieval, pois Gil Vicente, apesar de humanista, ainda mantém fortes traços medievais em sua obra, principalmente nos autos. O teatro vicentino é</p><p>popular por excelência desde sua origem; e o aspecto litúrgico desses autos reflete uma das principais características do povo português – a religiosidade.</p><p>São personagens desse auto: a Alma, o Anjo Custódio, a Igreja, Santo Agostinho, Santo Ambrósio, S. Jerônimo, S. Tomás e dois Diabos. O enredo conta que do mesmo</p><p>modo que caminhantes cansados precisam parar em estalagens para se refazer, assim também as almas precisam de uma parada de repouso, quando jornadeiam rumo à eternal</p><p>morada de Deus. Essa estalagem é comandada por uma estalajadeira das almas, que é a Madre Santa Igreja e que, no início da peça, está reunida com seus quatro doutores: Santo</p><p>Tomás, São Jerônimo, Santo Ambrósio e Santo Agostinho. Eles discutem a necessidade de algo que proteja a almas da perdição, e esse algo seria a própria Igreja. Nesse momento,</p><p>entram o Anjo Custódio e a Alma. O anjo aconselha a Alma a não cair em tentações, pois estas são obstáculos criados pelo Demônio para tirá-la do caminho certo. Como</p><p>contraponto à intervenção angelical, o Diabo que tenta desviá-la do caminho, oferecendo-lhe bens supérfluos como um par de sapatos e um vestido de seda.</p><p>A Alma, persuadida de que ainda muito tempo tinha antes da morte, começa a achar razão no que diz o Diabo, e que mal não havia em se enfeitar um pouco e em gozar a</p><p>vida. Ciente da calamitosa situação, o Anjo aconselha a Alma a ir hospedar-se em abrigo seguro, a Madre Santa Igreja, e a Alma concorda. Os dois Diabos, praguejando, esperam</p><p>a Alma sair da Igreja para tentá-la novamente. Enquanto isso, dentro da igreja os quatro doutores, a Alma e o Anjo estão sentados, todos oram, e Santo Agostinho benze a mesa.</p><p>No decorrer da cerimônia, vão os doutores mostrando os martírios: as insígnias da Paixão, os açoites, a coroa de espinhos, cravos e o crucifixo. A Alma, agora despida das vestes</p><p>do pecado, pura, resignada e arrependida, caminha para o sepulcro e depois para a casa celestial, onde descansará eternamente.</p><p>Como se viu, o teor religioso nessa peça é muito alto, o que a faz muito próxima de um ensinamento cristão, como se constituísse ela um verdadeiro ato litúrgico, no qual</p><p>existe a ideia de que o maior proveito que se tira da vida terrena são as boas ações, a entrega total aos mandamentos bíblicos, abalizados pela Igreja Católica. Também não há</p><p>dúvida de que esta peça seja uma alegoria, ou seja, nela acontece a concretização de conceitos, ideias ou sentimentos que são representados por pessoas, seres reais, como é o caso</p><p>da Madre Santa Igreja, que aparece na forma de uma estalajadeira; a Igreja em si, como um lugar seguro, um abrigo para o caminhante cansado, onde são servidas refeições, as</p><p>insígnias da Paixão, sobre a mesa que é o altar. A vida terrena é representada por uma caminhada na qual o homem pode tomar o bom ou o mau caminho. O homem, representado</p><p>pela personagem Alma, é frágil e suscetível de ser tentado, de ser aliciado pelo Diabo, porém, em seu socorro e para que ele não desrespeite os princípios da Igreja Católica, surge</p><p>o Anjo Custódio auxiliando-o para que ele não caia em tentação e se deixe seduzir pelos bens materiais.</p><p>Logo no início da peça, Santo Agostinho, o mais importante doutor da Igreja, por ter escrito as bases da doutrina cristã, é quem fala. O lugar escolhido é uma mesa posta</p><p>com uma cadeira que naturalmente deve ser destinada à Alma, dentro do templo, o que representa a ideia de que a Igreja é o lugar onde as almas devem buscar o alimento divino.</p><p>Durante essa primeira fala, Santo Agostinho, num tom de muita austeridade, refere-se à necessidade de o homem procurar consolo para seus tormentos:</p><p>Porque a humana transitória</p><p>natureza vai cansada</p><p>em várias calmas,</p><p>nesta carreira da glória</p><p>meritória,</p><p>foi necessário pousada</p><p>para as almas.</p><p>Pousada com mantimentos,</p><p>mesa posta em clara luz,</p><p>sempre esperando,</p><p>com dobrados mantimentos</p><p>dos tormentos</p><p>que o Filho de Deus na Cruz</p><p>comprou, penando (VICENTE, 1970, p. 138).</p><p>Vemos aqui a própria celebração da missa, ou seja, a mesa é o altar, os mantimentos representados pelas insígnias do Paixão (açoites, coroa de espinhos, cravos, crucifixo)</p><p>são os ensinamentos transmitidos durante a missa por meio das palavras dos padres (Santo Agostinho foi apenas um deles), ou por meio da própria imagem de sofrimento de</p><p>Cristo na Cruz. Aliás, nessa mesma fala, aparece resumida toda a penosa trajetória de Cristo – Filho de Deus – que sofreu com dobrados tormentos – o ato da crucificação e os</p><p>demais martírios – para salvar o homem. Essa mesa está iluminada de sabedoria, a verdadeira luz, ou pela própria posição do púlpito que fica em posição privilegiada, isto é, bem</p><p>acima das cabeças dos fiéis, e iluminada pela luz das rosetas, imensas janelas estrategicamente colocadas para provocar, com uma luz intensa, essa sensação de êxtase e</p><p>purificação do ambiente.</p><p>Em seguida, aparece o Anjo que acompanha a Alma para ter certeza de que esta não entrará em algum caminho escuso. A Alma, porém, logo será abordada pelo Diabo, que</p><p>se aproveitara do fato de que o Anjo se afasta para cumprir outra missão. Essa cena apresenta os perigos que o homem corre ao se distanciar muito da Igreja, que figura como a</p><p>mais importante instituição da sociedade. Por mais que essa sociedade mude, ela permanecerá firme em seu propósito e em sua missão, nunca abalada, nunca descaracterizada. O</p><p>Diabo, em sua fala, acentua a brevidade da existência e a necessidade de se desfrutar das boas coisas da vida. Em seu discurso, também, notamos um certo tom coloquial.</p><p>Observe-se que ele chama a atenção para o que é prazeroso, efêmero:</p><p>Oh! Descansai neste mundo,</p><p>que todos fazem assi.</p><p>Não são embalde os haveres,</p><p>não são embalde os deleites</p><p>e fortunas;</p><p>não são debalde os prazeres e comeres:</p><p>tudo são puros afeites</p><p>das criaturas (Ibidem, p. 142)</p><p>O Diabo, em seu discurso, procura atrair a Alma com alguns dos pecados capitais: preguiça, gula, luxúria, com isso, opondo-se à austeridade imposta pela Igreja. Nota-se</p><p>que sua fala é bastante informal em relação ao discurso grave, circunspeto de Santo Agostinho.</p><p>Cria-se, assim, uma espécie de oposição dentro da peça: o poder da Igreja, representado pelos Santos, instaura-se também pela sabedoria e dom da palavra; a Igreja seria</p><p>então uma espécie de elite espiritual e cultural, enquanto que os Diabos, com seu linguajar menos rebuscado, sua banalidade e o apego aos bens materiais, ficariam numa posição</p><p>inferior na sociedade. A Igreja liga-se à ideia do sacrifício e da purgação dos pecados, com a projeção das benesses para um outro plano, o celestial; os agentes da tentação</p><p>ligam-se à ideia de que não se pode contar com algo além da vida, mas, sim, de que todos devem desfrutar dos prazeres da vida aqui mesmo na terra. A Alma sente-se tentada pela</p><p>oferta do Diabo – um brial (vestido de seda ou de fino brocado), uns chapins (sapatos), um colar de ouro, dez anéis e pendentes para as orelhas e até a solução para questões</p><p>jurídicas. Como a Alma é representada alegoricamente por uma mulher, logo, o Diabo apela para sua fraqueza, a vaidade. Nessa época, a figura feminina era considerada um ser</p><p>frágil, suscetível de ser facilmente tentada – como Eva –; daí o fato de a mulher ser uma metonímia do ser humano, que também é frágil e passível de ser seduzido pelo Demônio.</p><p>Enfim, o Anjo Custódio consegue levar, por meio de hábil discurso, a Alma para um abrigo seguro, isto é, a Igreja, que sem demora, apresenta os “manjares” servidos por</p><p>Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Jerônimo e São Tomás, alicerces ou “pilares” da Igreja Católica. Inicia-se, neste ponto do auto, cuidada preleção sobre a Igreja, sua função</p><p>e finalidades pelos já referidos santos, o que acentua o caráter pedagógico, didático do teatro vicentino. Essa preleção final apresenta os quatro santos (observe que são quatro</p><p>justamente para que formem, como numa figura geométrica, os quatro alicerces necessários para a construção de qualquer edifício, neste caso, a Igreja), e cada um será</p><p>responsável por uma parte da oração.</p><p>Gil Vicente, como já se disse, procura tornar o exemplo muito concreto, como acontece em toda alegoria, do mesmo modo que a Igreja, que se serve em suas práticas do</p><p>recurso de se utilizar do concreto para representar o abstrato, tornando a mensagem mais palatável ao fiel geralmente inculto, principalmente se pensarmos no público da Idade</p><p>Média. A força da Igreja fica evidente, uma vez que o autor não só defende os seus valores, como também se utiliza de recursos persuasivos similares aos dos sacerdotes. Sem</p><p>dúvida, ainda é o mundo medieval que predomina em Portugal ou, pelo menos, é o que acontece na obra do dramaturgo.</p><p>Não é sem propósito que a Alma acaba por retornar ao bom caminho representado pela Igreja. Esta, por ser o alicerce da vida feudal, simbolizaria a própria Idade Média. Gil</p><p>Vicente, com esse procedimento, vira, em parte, as costas à Renascença, que privilegia a cultura clássica, despreza o feudalismo e sucumbirá frente ao capitalismo comercial. Com</p><p>o Auto da Alma, Gil Vicente acaba por antecipar, segundo Segismundo Spina, muitas das resoluções do Concílio de Trento:</p><p>Antes que o Concílio de Trento, realizado pouco depois de sua morte (1545-1563), viesse tentar uma reposição do Homem nos quadros culturais da Idade Média, já</p><p>o bom do Gil Vicente procurava lembrar ao homem que possuía uma alma para salvar: se em 1517, com a representação do Auto da Embarcação do Inferno,</p><p>mostrou cruamente a crise moral em que estavam metida todas as classes sociais de seu tempo – desde o sapateiro ao fidalgo, desde o clérigo aos homens do foro –,</p><p>em 1518 propôs-lhes com o Auto da Alma o caminho para a salvação (1980, p. 12).</p><p>Essa postura só vai confirmar sua simpatia pelos ideais da Idade Média e pela Igreja, que já se preocupava com seu papel e influência na sociedade portuguesa.</p><p>3. The Countess Cathleen, de William Butler Yeats</p><p>A peça de William Butler Yeats, The Countess Cathleen, possui apenas um ato dividido em cinco cenas, sendo que a extensão delas é bastante variável. O número de</p><p>personagens não é muito grande. São elas: a Condessa Cathleen, Aleel, um poeta, Oona, mãe adotiva da condessa, Shemus Rua, um camponês, Mary, sua esposa, Teigue, o filho</p><p>do casal, dois demônios que se fazem passar por mercadores, camponeses, empregados e seres angelicais. A cena tem lugar numa pequena vila (numa casa, nos campos, num</p><p>castelo), na Irlanda dos velhos tempos. Nela, encontramos um motivo religioso semelhante à do auto de Gil Vicente: se isso não acontece quanto à forma como é tratado e quanto</p><p>às personagens, acontece quanto à representação da doutrina cristã. Camponeses famintos são tentados por mercadores, na verdade, demônios, que lhes oferecem fartura em troca</p><p>de suas almas. A condessa Cathleen, percebendo o engodo, promete a própria alma para livrar os pobres dessa desgraça. Por ser pura e desprendida, a personagem é cobiçada pelo</p><p>Demônio que aceita a troca. No final, uma interferência divina, representada por seres angelicais, impede que sua alma vá para o inferno.</p><p>Já a uma leitura inicial da peça, percebemos o trabalho de artesão executado por Yeats. A primeira cena é um bom indicativo dessa apurada lapidação, que se percebe na</p><p>descrição mais lírica que objetiva do cenário e no aprimoramento da linguagem, o que serve para tornar o texto extremamente poético. Como veremos, as outras artes,</p><p>principalmente as visuais, unir-se-ão à poesia na composição dessa peça tão original. O cenário, descrito como se fosse uma tela, compõe-se de uma sala, onde arde o fogo de uma</p><p>lareira, e uma porta de saída pela qual se vê um bosque e suas árvores “upon a gold or diapered sky”41 (YEATS, s/d, p. 3). Essa imagem do bosque junto à casa, em que</p><p>há um</p><p>perfeito equilíbrio, sem excesso de sombra ou de luz, as cores suaves e o dourado lembram uma ilustração de pintores Pré-rafaelitas, ou como afirma Liam Miller:</p><p>As indicações de palco de Yeats para The Countess Cathleen sugerem que a ação acontece num bosque, tal como pode ser visto em uma iluminura medieval [...]</p><p>porém a visão de Yeats desse mundo medieval está mesclada a uma visão Pré-rafaelita, e um paralelo pode ser traçado por meio das ilustrações de Sir Edward</p><p>Burne-Jones para Chaucer, cuja impressão William Morris terminou pela Editora Kelmscott em 1896 (1977, p. 44).</p><p>Na segunda cena, Mary e Teigue conversam, mas parecem agitados, os diálogos transcorrem paralelamente, como se as personagens falassem sozinhas – a mãe preocupa-se</p><p>com a demora do marido, o rapazinho, com fatos estranhos acontecidos na vizinhança: o aparecimento de um homem cujas orelhas se movimentavam como asas de morcego e de</p><p>um outro homem sem face. A referência a essas monstruosidades é uma sugestão de que a normalidade do mundo começa a ser perturbada pela intervenção do demoníaco. Nesse</p><p>sentido, cria-se uma atmosfera de mistério, na qual o elemento sobrenatural coexiste com o mundo real, dando a sensação ao leitor da existência de dois mundos paralelos que se</p><p>intercomunicam a todo momento, como nas lendas de qualquer lugar. Contudo, neste caso, as lendas são aquelas das tradições irlandesas dos tempos ancestrais, que Yeats faz</p><p>questão de relembrar:</p><p>Por meio de símbolos, presentes na mitologia e lendas irlandesas, como o poço e a aveleira, e também nas referências aos famosos heróis irlandeses como</p><p>Cuchulain, ele conseguia facilmente evocar o mundo sobrenatural e dar ao público uma visão intensa e mística da realidade. [...] Yeats empregava símbolos, em sua</p><p>maioria, retirados de mistérios celtas (SEPA,1999, p. 38).</p><p>Poderíamos apontar aqui as duas principais constantes do autor: a primeira, a sua paixão pelo Ocultismo, o que o torna um fascinado por lendas e pelo sobrenatural,</p><p>levando-o, até, a ser membro de sociedades secretas, característica também muito comum aos simbolistas; a segunda, seu patriotismo que o faz constantemente retornar às origens,</p><p>na tentativa de criar uma literatura genuinamente irlandesa. Segundo Fernanda Mendonça Sepa: “em The Countess Cathleen (1892), o mundo sobrenatural é evocado por dois</p><p>grupos distintos: o dos Demônios e o dos seres Angelicais” (1999, p. 29), e é dessa oposição entre o bem e o mal, desse jogo de forças que se compõe a peça. Mais do que</p><p>simplesmente trabalhar com elementos sobrenaturais, Yeats, assim como todo artista do Simbolismo, deseja criar uma atmosfera mística, propícia ao devaneio.</p><p>Voltando ao texto: no instante em que a mulher e o filho dialogam, Shemus chega à casa sem nada nas mãos, pois sua busca por trabalho ou comida fora em vão. Nesse</p><p>ambiente de fome e penúria, muitas manifestações de ânimo acontecem: a mulher roga a piedade divina, faz orações e tem pressentimentos negativos; o marido pragueja, pois se</p><p>diz abandonado por Deus; e o jovem simplesmente se desespera diante da situação de fome extrema.</p><p>Entram em cena uma dama, uma velha senhora e um poeta cansados de longa caminhada. A dama, representante da antiga nobreza, é a condessa Cathleen, no entanto, a</p><p>ideia de uma nobreza egoísta e mesquinha não se concretiza nessa personagem, pois ela é extremamente generosa, tendo distribuído todos os seus bens, tudo que trazia consigo</p><p>para os famintos. A melhor descrição de Cathleen aparece no final da peça, quando um dos camponeses a chama de “the great white lily of the world”42 e um outro a compara</p><p>com “the pale stars”. Essa aproximação com a cor branca sinaliza sua pureza de alma inigualável e absoluta. Seu destino é um velho castelo no interior do bosque, lugar de fartura</p><p>e alegria. A condessa, acima da ideia de classe social, representaria o povo de origem da Irlanda, ela é como que uma espécie de entidade celta retirada das lendas. Vemos aqui</p><p>uma das principais preocupações do dramaturgo, a de acordar no homem o poder de imaginar, de sonhar com um passado mítico. A figura da condessa remonta a um passado</p><p>imemorial, o mundo feudal, no qual os servos mantinham uma relação de positiva vassalagem em relação ao seu senhor. O melhor exemplo disso verifica-se no respeito, sem</p><p>traços de negativa submissão, que Mary tem pela condessa:</p><p>But first sit down and rest yourself awhile,</p><p>For my old fathers served your fathers, lady,</p><p>Longer than books can tell – and it were strange</p><p>If you and yours should not be welcome here43 (YEATS, s/d., p. 7).</p><p>Nessa primeira fase de produção dramática de Yeats, o esforço para conseguir compor seu próprio “livro sagrado” é perseguido incansavelmente.</p><p>Oona, a criada fiel, uma espécie de ama ou mãe adotiva, representa o plano real, pois, com seus comentários, tenta constantemente trazer Cathleen para a realidade. Não</p><p>bastasse isso, também repreende o poeta por ser tão sonhador e por ser absolutamente inútil, assim como a sua arte: “you were as helpless as a worm”. Oona opõe-se tanto ao</p><p>misticismo de Cathleen quanto ao lirismo de Aleel e, em seu pragmatismo, simboliza a figura arquetípica da Mãe, ligada à natureza, à terra. Não é à toa que, tendo criado a</p><p>condessa, acaba por ampará-la nos braços quando ela morre. Essa bela cena, por acaso, não lembraria a tocante escultura da Pietá?</p><p>Aleel é um aedo, ou seja, o poeta itinerante, típico do mundo arcaico, uma espécie de memória coletiva de um povo, pois está sempre contando velhas lendas pagãs,</p><p>mantendo com isso viva a tradição. É ele que canta as canções da peça, e concretiza a comunhão entre o teatro e a música. Esse artista vive, aparentemente, distante da realidade</p><p>de extrema pobreza, seus olhos estão voltados para a beleza e o amor. Além de cantar, Aleel também conta a Cathleen, na segunda cena, a história da Rainha Maeve. Essa lenda</p><p>teria acontecido há nove séculos e fala da paixão de um homem por Maeve, “the Queen of all the invisible host”, que terminaria em morte. Em realidade, há aqui uma visão</p><p>poética das fases da lua, como dos demais fenômenos da natureza. Ou seja, o poeta, ao invés de descrever objetivamente o mundo natural, carrega-o de subjetividade, ao</p><p>transformá-lo numa espécie de alegoria, como se houvesse um sentido em tudo o que existe. Para ele, a lembrar Baudelaire, tudo é hieroglífico, tudo é misterioso, a natureza,</p><p>como um templo de enigmas, fala. Nesse sentido, Aleel seria o alter ego de Yeats. Enquanto a condessa representa a transcendência, e por isso é a única cuja alma pode salvar seu</p><p>povo, Aleel representa o sentido estético da vida, “a condessa, que vende sua alma para aliviar o sofrimento de seus servos, pertence mais ao mundo de Oisin do que ao mundo de</p><p>Patrick e seu leal poeta, Aleel, parece pertencer também a uma antiga ordem” (MILLER, 1977, p. 43). Segundo C. M. Bowra,</p><p>A imagem do poeta itinerante tem seu próprio significado, contudo, para Yeats, tem uma importância simbólica, porque serve a suas próprias inclinações por forças</p><p>ocultas e misteriosas e pode ser aplicada a qualquer um que tenha tais inclinações. [...] O poeta individual torna-se um símbolo do universal anseio que é revelação,</p><p>por se apresentar numa vívida, concreta, particular circunstância (1962, p. 189).</p><p>Logo após a partida dos três caminhantes, chegam os demônios, vestidos de mercadores a fim de tentar os míseros camponeses. Eles são trazidos, principalmente, pela</p><p>invocação de Shemus. Vêm em nome do “Mestre dos mercadores” e seu único interesse é negociar almas. Cria-se, assim, uma oposição maior dentro da peça: o mundo de Deus,</p><p>que rege a vida aqui na Terra, com vistas a conquistar o homem para a pureza e o amor e o do demônio, que procura seduzir a alma com dinheiro. É, portanto, significativo que o</p><p>diabo apareça sob a forma de um mercador, o que serve para atestar a crítica de Yeats a um mundo em que os valores materiais superam os espirituais e estéticos. Tal como na</p><p>peça de Gil Vicente, o diabo usa de várias armas para seduzir o homem, todas que levam ao desfrute dos prazeres</p><p>da vida. Quem são esses homens cristãos, senão os ingleses, que</p><p>durante o processo de dominação, impuseram a língua e a religião ao povo nativo da Irlanda?</p><p>Quando a condessa descobre as artimanhas dos demônios mercadores, tenta de todas as maneiras impedir essa desgraça, vende todos os seus bens, demonstrando um total</p><p>desprendimento, com exceção do castelo que, como vimos, representa a integridade do ‘eu’, e luta desesperadamente pela salvação dessa gente inculta, iludida por promessas vãs,</p><p>gente que se esquece do mais precioso bem do homem – a alma. Essa alma, aparentemente cristã, nada mais é que a própria essência de um povo, ou seja, sua história, seus</p><p>valores, sua tradição. Neste ponto, além da crítica aos rumos que a Modernidade impõe ao homem, Yeats também visa a preservar a arte e, em especial o teatro, contra o</p><p>mercantilismo crescente. A condessa, com esse ato, define para si própria uma missão, a de doar em prol de uma nobre causa:</p><p>Na terceira cena, como comentamos acima, Aleel relata uma visão premonitória que teve enquanto dormia, porém Cathleen, que reza em seu oratório, recusa-se a mudar de</p><p>ideia, nem em nome das antigas entidades, os velhos deuses, nem por qualquer força natural ou sobrenatural. Ela está firme em seu propósito e nada poderá fazê-la mudar, sua</p><p>escolha fora feita. Mais tarde, ela recebe a visita dos dois mercadores astutos que tentam iludir a doce e pura dama que, por ser extremamente inocente, nem percebe que os</p><p>trapaceiros levam todo o seu ouro.</p><p>Após a breve quarta cena, em que camponeses conversam sobre o dinheiro, ou para sermos mais exatos, o ouro que esse metal precioso que poucos possuem e que tudo pode</p><p>comprar. Eles tentam imaginar como seria esse tesouro e a melhor associação é com o brilho do sol. Os dois mercadores observam escondidos e calados, e para fechar a cena,</p><p>aparece Aleel cantando mais uma canção.</p><p>Chegamos à quinta cena que chama a atenção pelo fato de jogar ao mesmo tempo com um tom jocoso e um tom grave, aquele criando um forte contraste com este. Se a peça</p><p>em quase toda sua totalidade caracteriza-se pela força poética, pelo tom elevado, pelo transcendente, as primeiras páginas da quinta cena surpreendem o leitor com a grotesca</p><p>imagem de um mercado, onde os demônios mercadores organizam um leilão das almas. Ao fundo, o corpo de Mary jaz solitário rodeado de velas, ninguém chora ou reza por ela.</p><p>O grotesco instaura-se com a vulgarização do sagrado, reduzido a profano, no instante em que o sublime é transformado em mercadoria. Os mercadores começam a fazer uma</p><p>espécie de leilão. Utilizando um livro, que contém um resumo das atividades lícitas ou ilícitas dos pretensos vendedores, os mercadores avaliam o que seria um bem eterno – a</p><p>alma. A cena transcorre como num mercado: ruído de vozes, protestos contra o baixo valor atribuída à alma de uma senhora, barganha e discussão, enfim, há uma total</p><p>banalização do que é considerado sagrado. Em Yeats, esses valores materialistas lembram, de maneira bem evidente, o Capitalismo inglês que ele tanto rejeitava.</p><p>No final da peça, a condessa Cathleen aparece para salvar os camponeses: em troca das pobres almas, oferece de livre vontade a sua, a mais pura, a mais valiosa – a alma de</p><p>uma santa. Sem titubear, os mercadores aceitam a barganha, porém mediante um documento assinado com a pena. Apesar dos apelos de Aleel, Cathleen, assim como Fausto,</p><p>assina e o negócio está fechado. Pouco depois, quando a Condessa está para morrer, algo extraordinário acontece: figuras angelicais vestidas como cavaleiros descem do céu. Essa</p><p>cena, como outras da peça, reproduz uma visão que se aproxima de um quadro. O próprio autor confessa ter criado as figuras dos Anjos a partir de uma gravura de um pintor</p><p>francês:</p><p>Quando eu tinha uns vinte anos, eu vi um desenho ou água-forte, feito por um artista francês, de um anjo de pé contra um céu à meia-noite. O anjo era velho, sem</p><p>asas e armado como um cavaleiro, tão impossivelmente alto quanto uma daquelas figuras da Catedral de Chartres, e seu rosto estava marcado pelo tempo e pelas</p><p>inumeráveis batalhas (YEATS, apud MILLER, 1977, p. 46).</p><p>O inesperado acontece e o anjo descreve a entrada de Cathleen no paraíso.</p><p>4. A homologia entre as peças de Gil Vicente e William Butler Yeats</p><p>Algumas situações se repetem nas duas peças, como as tentações do Demônio, as preces, o conflito das almas inseguras, no que diz respeito ao caminho que devem seguir,</p><p>mas há muitas diferenças também. Enquanto em Gil Vicente as alegorias são simples e as imagens acessíveis e universais, em Yeats, a metáfora é muito mais elaborada A</p><p>referência à Irlanda e ao seu contexto fazem que a obra, além do caráter universal, por ela se prender a motivos clássicos, acentue a cor local, a defesa dos valores nacionais (o que</p><p>não acontece no autor português). Nos dois autos, aparecem as questões terrenas, como as dificuldades e sofrimentos que se nos apresentam, pois a vida está repleta de provações</p><p>e as tentações são várias. No Auto da Alma, a tentação se traduz em bens materiais, que, em nosso ponto de vista, podem parecer insignificantes, como um vestido de seda ou um</p><p>par de sapatos. No entanto, levando-se em conta o contexto histórico, chegaremos à conclusão de que o mundo ainda no início do Mercantilismo, não tinha notícia de mercadorias</p><p>de outros lugares, pois o mundo medieval era muito pequeno e as relações internacionais quase inexistentes. Em The Countess Cathleen, o dinheiro é a maior arma de corrupção.</p><p>Já vivendo num mundo capitalista, Yeats condena a incessante busca por bens de consumo, hábito, aliás, introduzido desde a Revolução Industrial que teve início na Inglaterra.</p><p>As personagens de ambas as obras são divididas em grupos, aquelas que zelam pela alma ou pelo humano, aquelas que procuram atrapalhar o processo de elevação por que a</p><p>alma estaria passando, no meio delas pessoas que tentam descobrir respostas para suas dúvidas e alívio para seus sofrimentos. Observe-se que há uma similaridade evidente entre a</p><p>figura do Diabo vicentino com a do mercador de Yeats. Não é à toa, inclusive, que a figura demoníaca seja representada por um comerciante, o que atesta a sua ligação com os</p><p>valores materiais. Também há uma similaridade entre o mercantilismo renascentista, criticado por Gil Vicente, e o mercantilismo inglês, pós-industrial, criticado por Yeats.</p><p>Segundo Fernanda Mendonça Sepa: “em The Countess Cathleen (1892), os demônios que se tornam mercadores representam, em nossa opinião, o imperialismo e o materialismo</p><p>inglês” (1999, p. 26).</p><p>Apesar de viverem em épocas e países tão diferentes, Gil Vicente e Yeats tentam criar um teatro genuíno, o primeiro não tão conscientemente como o segundo. Ambos</p><p>passam por um período de transição, Gil Vicente encontra-se no período transitório entre a Idade Média, que durou dez séculos, e a Renascença que traz consigo muitas inovações</p><p>estéticas, científicas e sociais; Yeats vê um longo passado de submissão da Irlanda em relação à Inglaterra, ainda mais grave durante a era vitoriana, e deposita no novo século a</p><p>esperança de uma Irlanda livre e autônoma, principalmente em relação à arte. Em seu auto, Gil Vicente deixa muito clara sua costela pedagógica e dá uma perfeita lição de</p><p>respeito aos valores religiosos. Para ele, o mais importante é praticar boas ações, pois somente elas restarão no momento de acerto de contas. Para Yeats, existe um propósito ou</p><p>até uma missão para quem faz literatura. Em seu ensaio intitulado “An Irish National Theatre”, encontramos o seguinte comentário a respeito desse tópico:</p><p>Literatura é, na minha mente, o grande poder educativo do mundo, o supremo criador de todos os valores, e ela é isso, não somente nos livros sagrados cujos poder</p><p>todos conhecem, mas por meio de cada movimento da imaginação em uma canção, ou enredo ou no drama que dá a dimensão da intensidade e sinceridade que faz</p><p>dela literatura afinal. A literatura deve se responsabilizar por seu poder, e manter sua liberdade (YEATS, apud HARRINGTON, 1991, p. 390).</p><p>Os dois dramaturgos estão presos</p><p>à tradição popular: Gil Vicente liga-se ao teatro popular medieval, inclusive na concepção que tem da vida social hierarquizada; Yeats, por</p><p>sua vez, liga-se às lendas e à Mitologia irlandesas na procura ou afirmação de suas raízes. Devemos lembrar também que, enquanto o teatro vicentino apontava para o universal, o</p><p>do escritor irlandês fincava os pés no solo de sua pátria. As personagens do teatro de Gil Vicente são tipos bem marcados, e a força de seu teatro está nos diálogos bem</p><p>construídos, uma vez que em suas encenações não se valia de cenários ou quaisquer outros recursos cênicos, suas peças são constituídas de uma série de quadros, similarmente às</p><p>pinturas medievais e às novelas de cavalaria. As personagens de Yeats são simbólicas, a palavra é poética criando assim, em certos momentos, imagens penumbrosas e oníricas. O</p><p>dramaturgo português faz um teatro de reflexão, porém Yeats, ao negar o intelecto, privilegia o místico e o sobrenatural, mesmo em se tratando de suas ideias políticas,</p><p>entranhadas no texto. Desse modo, é importante afirmar que essas ideias são refinadas e amortecidas pelo seu lirismo. Gil Vicente, indo na direção contrária, faz um texto repleto</p><p>de vocábulos populares, muito coloquiais, facilitando ao máximo nos exemplos e tornando as ideias bem acessíveis.</p><p>No que diz respeito ao modo como cada um representa a sociedade, devemos observar que ambos são muitos críticos em relação aos costumes e à estrutura social. Gil</p><p>Vicente, por exemplo, critica a luxúria na figura do Frade, mas não a Igreja como instituição, ou o onzeneiro, pela sua ganância. Entretanto, não perde de vista a sociedade que cria</p><p>esses monstros, o sistema social que corrompe e dá privilégios a poucos. Naturalmente, Yeats tem uma visão bem mais profunda dos problemas de seu país. Sua própria</p><p>experiência política levou-o a uma postura mais crítica da situação de povo dominado, subjugado nos rumos da História. A diferença está no fato de que a solução proposta pelo</p><p>poeta e dramaturgo está na Arte, na sensibilização do homem, pelo transcendental. A revolução deve começar pelo interior e não nas questões externas, como pensavam seus</p><p>companheiros anarquistas.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>BOWRA, C. M. The Heritage of Symbolism, London: Macmillan, 1962.</p><p>EVANS, Ifor. História da Literatura Inglesa, Lisboa: Ed. 70, 1980.</p><p>HARRINGTON, John. Modern Drama, New York: Norton, 1991.</p><p>HARTNOLL, Phyllis. The Theatre: a concise history, 3. ed., London: Thames and Hudson, 1998.</p><p>MARTINS, Mário. “Teatro Sagrado na nossa Idade Média” in Brotéria, Lisboa, fev. 1950. v. L ed. II.</p><p>MILLER, Liam. The Noble Drama of W. B. Yeats, Dublin: The Dolmen Press, 1977.</p><p>MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa, 27. ed., São Paulo: Cultrix, 1992.</p><p>REBELLO, Luiz Francisco. História do Teatro Português, Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa/Secretaria de Estado da Investigação Científica, 1968.</p><p>SEPA, Fernanda Mendonça, O Teatro de William Butler Yeats: teoria e prática, São Paulo: Ollavobrás/Abey, 1999.</p><p>SPINA, Segismundo. Introdução. Obras Primas do Teatro Vicentino, São Paulo: Difusão Europeia do Livro/ Edusp, 1970.</p><p>STEVENS, Kera. O Teatro Inglês da Idade Média até Shakespeare, org. da antologia Kera Stevens e Munira H. Mutran, São Paulo: Global, 1988.</p><p>VICENTE, Gil. Obras Primas do Teatro Vicentino, São Paulo: Difusão Europeia do Livro/ Edusp, 1970.</p><p>YEATS, William Butler. The Collected Plays, Dublin: Gill and Macmillan, s/d.</p><p>Notas de Rodapé</p><p>20 Tradução nossa: “Em tradições esotéricas, o pavão é um símbolo de totalidade, em que une todas as cores sobre o leque de sua cauda aberta”.</p><p>21 José Francisco da Rocha Pombo nasceu na cidade de Morretes, Paraná, em 4 de dezembro de 1857. Distinguiu-se pela atividade jornalística, pelo ensino (foi</p><p>um dos fundadores da Universidade do Paraná). Como escritor, publicou importantes obras históricas, História da América (1900), História do Brasil</p><p>(1905-1917), História do Rio Grande do Norte (1922), e ficção: A Honra do Barão (1881), Visões, contos e poesia (1888), No Hospício (1905). Faleceu em</p><p>1933.</p><p>22 Emanuel Swedenborg (1688-1772), cientista, filósofo e teólogo sueco. Teve uma prolífica carreira como inventor e cientista. Em 1741, entrando numa fase</p><p>espiritual, começou a ter sonhos e visões que, segundo ele, lhe permitiram visitar o Céu e o Inferno e falar com anjos, demônios e outros espíritos. Sua obra</p><p>mais conhecida, De Coelo et de Inferno, onde registrou tais sonhos e visões, foi publicada em 1758.</p><p>23 Observe-se que apenas Fileto (do grego, Philetos, “digno de ser amado”, “amável”) e Alice (do grego Alethia, “a verdadeira, que não conhece a mentira”) têm</p><p>nomes com um sentido simbólico. Os outros nomes nada (ou pouco) acrescentam ao caráter simbólico do romance.</p><p>24 O personagem/narrador está se referindo, no caso, a Dante e a sua Divina Comédia.</p><p>25 Tradução nossa: “Eu quero dizer que é preciso ser vidente, fazer-se vidente. O Poeta se faz vidente através de um longo, imenso e racional desregramento</p><p>de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura a si próprio, extrai de si todos os venenos para guardar apenas as</p><p>quintessências. Inefável tortura, contra a qual necessita de toda a fé, de toda a força sobre-humana, através da qual se torna, dentre todos, o grande</p><p>enfermo, o grande criminoso, o grande maldito — e o supremo Sábio! — Pois atinge o desconhecido! Pois cultivou a alma, já rica, mais do que ninguém!</p><p>Atinge o incógnito e, quando, enlouquecido, acabar perdendo a inteligência das suas visões, já as terá visto!”.</p><p>26 Em seu soneto Correspondances, Baudelaire refere-se à floresta de símbolos, na qual, os vivos pilares, metáforas das árvores, lançam olhares familiares ao</p><p>homem que aí passa. Nessa floresta, ainda segundo o poeta, tudo se corresponde: “Comme de longs échos qui de loin se confondent/Dans une ténébreuse</p><p>et profonde unité,/Vaste comme la nuit et comme la clarté,/Les parfums, les couleurs et les sons se répondent” (1961, p. 13).</p><p>27 “O prazer é o meio mais certo de conhecimento que a Natureza nos oferece e... aquele que muito sofreu é menos sábio do que aquele que muito se alegrou”.</p><p>28 Um dos maiores representantes, no Brasil do quadrinho pornográfico foi o desenhista Carlos Zéfiro (Rio de Janeiro, 1921-1992). Pseudônimo do funcionário</p><p>público Alcides Aguiar Caminha, ilustrou mais de 500 trabalhos que eram vendidos em bancas. Usava pseudônimo devido à censura muito rigorosa da</p><p>época que podia comprometer o seu emprego.</p><p>29 Tradução nossa : « Diz-se em consequência que Orion [...] segue constantemente o escorpião”.</p><p>30 Tradução nossa: “o primeiro, ut arrigat, é a ereção; o segundo, ut va saemineum referet, é a penetração; e o terceiro e último, ut em vase seminet, é a</p><p>ejaculação”.</p><p>31 Tradução nossa” Sob o domínio planetário de Marte, bem como a de Plutão, o poder misterioso e inexorável das sombras, o inferno, a escuridão interior.</p><p>Estamos no coração do complexo sado-anal do freudismo”.</p><p>32 Ismond Rosen dá a entender que é possível o exibicionismo numa mesma família, por uma “predisposição constitucional” ou de base genética (1971, p. 344 e</p><p>349).</p><p>33 Tradução nossa : “(O narcisista) experimenta o prazer sexual ao olhar, acariciar e apalpar seu corpo até a gratificação completa [...]. Tais pacientes, que</p><p>proponho denominar parafrênicos, apresentam duas características fundamentais: sofrem de megalomania e extraem seu interesse do mundo externo</p><p>(pessoas e coisas).”</p><p>34 Tradução nossa: “A personificação dessas forças que permanecem virtualmente fora da órbita da consciência [...] “certas características infantis condizentes</p><p>com seu pequeno tamanho ””</p><p>35 O nome Déruchette é de um dos personagens de Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo. Segundo Walter Benjamin (2007, p. 735), o escritor francês,</p><p>enquanto escrevia seu livro, tinha diante de si uma boneca, que lhe serviu de modelo para o personagem.</p><p>36 Tradução nossa : “no fetichista [...] há uma correspondência notável entre a questão fundamental que visa à recusa (castração, a diferença dos sexos),</p><p>no</p><p>centro do alvo, e um prazer sexual bem definido, convergindo para o objeto fetiche.“.</p><p>37 O título deste conto talvez seja uma paródia do título de um filme de Elio Petri – Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, produzido em</p><p>1970.</p><p>38 “O fetichismo do pé e do calçado feminino só parece se sustentar como um símbolo, um Ersatz do membro adorado do tempo da infância, e depois perdido”</p><p>(VALAS, 1994, p. 55).</p><p>39 A postura de Marcel Duchamp, enquanto jogador de xadrez na foto em pauta, é muito similar à dos jogadores de xadrez de um poema de Ricardo Reis, que</p><p>define esse jogo como o “dos grandes indif’rentes”, no sentido de que quando se entregam a esse artifício, alheiam-se completamente das fainas e dramas</p><p>da vida, (PESSOA, 1972, p. 267-269).</p><p>40 A respeito da grande contribuição de Yeats para a cultura, consultar a obra de Evans (1980, p. 141).</p><p>41 Tradução nossa: “Sob um dourado e fundo céu”.</p><p>42 Tradução nossa: “O grande e branco lírio do mundo”, “as pálidas estrelas”.</p><p>43 Tradução nossa: “Mas primeiro sente-se e descanse um pouco,/ Pois meus velhos pais serviram seus pais, senhora,/ Mais do que os livros podem dizer – e</p><p>foi estranho/ Se você e seus pais não fossem bem-vindos aqui”.</p><p>44 Tradução livre nossa: “Lembre-se do objeto que vimos, minha alma/Esta linda manhã de verão tão doce:/Na curva de um caminho, uma infame arniça/Em um</p><p>leito repleto de pedrinhas,//Pernas no ar, como uma mulher lasciva,/Queimando e suando os venenos,/Abria de maneira indiferente e cínica/Sua barriga</p><p>cheia de exalações.//O sol brilhou nessa podridão/Como se para cozinhá-la com perfeição,/E para fazer cem vezes a grande natureza/Tudo o que ela</p><p>juntou;//E o céu olhava para a soberba carcaça/Como uma flor florescendo./O fedor era tão forte na grama/Que você acreditava que ia desmaiar.//Moscas</p><p>zumbiam nessa barriga pútrida,/De onde vinham os batalhões negros/De larvas, que fluíam como um líquido espesso/Ao longo desses trapos vivos. [...] – E</p><p>então assim você será como esse lixo,/ Nesta infecção horrível,/Estrela dos meus olhos, sol da minha natureza/ Você, meu anjo e minha paixão!//Sim! você</p><p>irá, ó rainha das graças,/Depois dos últimos sacramentos/ Quando você repousar sob a grama e as florações gordurosas,/ Moldar entre os ossos.//Então, oh</p><p>minha bela! Diga aos vermes/Quem vai comer seus beijos,/De Que guardei a forma e a essência divina/Do meus amores descompostos!”</p><p>45 Conforme Ernst Bloch, em o Princípio Esperança (2005).</p><p>46 Segundo Zumthor: Ser “moderno” é julgar homens e coisas em virtude do que eles têm ou do que lhes falta; é conhecer seus atributos a fim de domar-lhes o</p><p>uso. Ser “antigo” [...] é conhecer e julgar em virtude do ser e do nada. Pelo que concerne à poesia, a escritura parece moderna; a voz, antiga. Mas a voz</p><p>“moderniza-se” pouco a pouco: ela atestará um dia, em plena “sociedade do ter”, a permanência de uma “sociedade do ser”. (1993. p. 26).</p><p>47 Imaterialidade significa uma outra materialidade, pois existe sob uma forma codificada realizada pela organização de estados eletromagnéticos dos sinais de</p><p>0 e 1, comporta uma matriz virtual e potencial em memória que pode ser atual, visualizável por meio de transcodificadores. As mensagens imateriais não se</p><p>confundem com seus suportes, elas circulam através de múltiplos dispositivos.</p><p>48 O que nem sempre significa qualidade e adequação das novas produções dedicadas à juventude.</p><p>49 A leitura da literatura, a formação do leitor literário passa por mediações organizadas por adultos.</p><p>50 CUNHA, Maria Zilda. As matrizes de linguagem e pensamento na literatura Infantil e Juvenil: a tessitura dos signos em Ângela Lago e Octaviano Correia.</p><p>USP, 2002.</p><p>51 Sabemos, a invenção da escrita, e sua sofisticada maquinaria de combinatória alfabética, traz questões muito mais amplas, assunto que aqui não</p><p>discutiremos aqui, basta lembrar com Pierre Lévy (1996) que: “os modos de conhecimento teóricos e hermenêuticos passaram a prevalecer, impondo-se</p><p>“uma ecologia cognitiva largamente estruturada pela escrita (num suporte fixo)”,</p><p>52 Angela Lago – .</p><p>53 O termo é utilizado por Ítalo Calvino para designar o aspecto fragmentado do hiper-romance, que resulta no tema e no modelo.</p><p>54 Razoabilidade concreta é a denominação utilizada por Charles Sanders Pierce para uma razão em crescimento, uma razão criativa, que está sempre em</p><p>busca da verdade, uma verdade sempre movente.</p><p>55 Um processo cognitivo, que exige esforço de abstração e de interpretação, à medida que faz refletir sobre temas e situações da vida.</p><p>56 Macrossistema literário – cunhado por Abdala (2003) com base em Antonio Candido (1975) – deriva da compreensão de uma dinâmica que envolveu</p><p>historicamente constantes semelhantes da série ideológica. O macrossistema é marcado por um campo comum de contato entre sistemas literários</p><p>nacionais como os de língua portuguesa, que têm um passado comum e diferentes atualizações. Na atualização, engendra uma força dialética e, na</p><p>contramão, promove a convergência de tradição e ruptura. É um conceito operacional e estratégico politicamente (ABDALA, 2007).</p><p>57 “ Já nem sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do</p><p>corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia</p><p>escurecendo o resto do corpo. [...] Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agora é ver-me a não largar seja</p><p>quem for enquanto não me disser por que é que eles têm as palmas das mãos assim tão claras.[(...] Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os</p><p>pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgínia e demais não sei aonde. Já se vê que a</p><p>Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos desbotarem à força de tão lavadas” (HONWANA, 1972).</p><p>58 Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho. Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito</p><p>porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os</p><p>pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem</p><p>exatamente como as palmas das mãos dos outros homens.</p><p>E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem, é</p><p>apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem, é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem</p><p>qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão</p><p>graças a Deus por não serem pretos” (HONWANA, 1972).</p><p>59 Para Morin, um paradigma efetua a seleção e a determinação das operações lógicas, designa as categorias fundamentais da intelegibilidade e opera o</p><p>controle de seu emprego. Assim, os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles. (2003, p. 25).</p><p>D. SEBASTIÃO: um rei, um mito</p><p>Eliane de Alcântara Teixeira</p><p>O fenômeno messiânico que deu ensejo ao surgimento do sebastianismo teve início antes mesmo do reinado de D. Sebastião. Além de historiadores, muitos pensadores o</p><p>têm estudado e, na literatura, a sua revisitação é frequente, desde Vieira, passando por Eça de Queirós, António Nobre e chegando até a modernidade, com Natália Correia,</p><p>António Lobo Antunes e Almeida Faria. Antes, porém, de se tornar um topus literário muito caro à Literatura Portuguesa, D. Sebastião foi uma figura histórica, dentro de um</p><p>período histórico muito específico. Por isso mesmo, alguns historiadores afirmam que a história portuguesa atinge o seu auge nesse momento histórico, ou seja, no fim do século</p><p>XVI, quando D. Sebastião desaparece</p><p>em Marrocos. António Cândido Franco acredita ser o período mais importante da formação e do apogeu português, delimitado entre a época</p><p>de Inês de Castro e D. Sebastião (FRANCO, 1991, p. 45).</p><p>D. Sebastião nasceu em Lisboa em 1554 e faleceu em Alcácer-Quibir em 1578, filho de D. João e de D. Joana de Áustria. Não chegou a conhecer o pai, homem de saúde</p><p>muito frágil, que morre poucos dias antes de seu nascimento. Sucedeu D. João III, seu avô, aos três anos de idade. Por ser muito jovem, sua avó D. Catarina é nomeada regente do</p><p>reino. No entanto, D. Catarina, por questões políticas, deixa a regência que vai ser ocupada pelo cardeal D. Henrique. Somente em 1568 será coroado rei. Seu reinado durará até</p><p>1578, quando desaparecerá na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, vítima do sultão Mulei Almelique, de sucessivos erros próprios e do desgoverno geral. Seus 1800 homens</p><p>morreram ou foram feitos prisioneiros pelos árabes, um desastre total, deixando Portugal praticamente sem grande parte da elite governamental e sem homens de armas. Foi</p><p>sucedido por D. Henrique e posteriormente por Felipe II, da Espanha, o que ocasionou a perda de independência de Portugal que passa às mãos dos espanhóis.</p><p>Esta seria uma dentre as várias histórias de reinados perdidos e de reis mortos em batalhas não fossem certas circunstâncias que viriam, mais tarde, a fazer desse rei um mito</p><p>e desse mito um modo tipicamente português de encarar a realidade.</p><p>D. Sebastião ficou praticamente órfão ao nascer. João, seu pai, morre aos 16 anos de idade, vinte dias antes de seu nascimento, em primeiro de janeiro de 1554. Após três</p><p>meses do nascimento do filho, Joana, sua mãe, volta à Espanha, para substituí-lo e nunca mais verá o filho novamente. Como se poderá constatar, João e Joana são quase irmãos,</p><p>tal a proximidade de parentesco. Talvez por esse motivo tenha Sebastião nascido com certas deformações genéticas, tais como marcas no corpo e com um dedo a mais no pé</p><p>direito. Alguns historiadores afirmam que a criança tinha saúde muito fraca. Segundo Oliveira Marques: “D. João III deixou, pois, como sucessor, uma criança débil de três anos</p><p>de idade, cujas esperanças de vida não eram grandes. D. Sebastião revelou-se um doente, tanto física como mentalmente” (MARQUES, 2001, p. 280). Quanto aos defeitos físicos</p><p>da criança, provavelmente provocados pela franca consanguinidade dos pais, muitas são as histórias a respeito deles, verídicas ou não. Há também histórias surpreendentes, que se</p><p>tornaram lendárias, sobre o seu nascimento. Segundo um manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa (BESSELAAR, 1987, p. 76), uma cobra ter-se-ia enrolado ao pé do berço</p><p>de Sebastião, justamente após seu nascimento à meia-noite. O mais estranho, no entanto, é o fato de que depois de morta e arremessada pela janela do palácio, no terreiro do Paço,</p><p>a serpente jamais foi encontrada, mesmo após terem revistado minuciosamente o local ao amanhecer.</p><p>Sebastião passa para os braços da ama de leite e para os cuidados da avó Catarina, nomeada regente do reino até o menino atingir a maioridade. A criação de D. Catarina</p><p>além de austera, com respeito à educação do menino, é distante. O menino passa horas solitário, apenas acompanhado por eventuais professores e quase sempre dentro dos</p><p>aposentos reais. É uma infância de solidão, estudos e passeios pelos jardins do castelo ou na casa de campo real em Sintra. Sua avó estaria mais preocupada com questões ligadas à</p><p>Inquisição, com sua própria aparência e com reuniões sociais, quando recebia as damas da corte; talvez por isso, sua regência, iniciada em 1557, terminou, a seu pedido, cinco</p><p>anos depois.</p><p>Tio-avô de Sebastião e cunhado de D. Catarina, o cardeal-arcebispo de Lisboa e inquisidor-mor Henrique, a substituirá até que o rei tenha condições de governos, isto é, aos</p><p>14 anos, em 1568. Enquanto permaneceu sob a tutoria de sua avó e depois sob a tutoria do cardeal Henrique, o jovem rei obtém uma formação extremamente religiosa. Seus</p><p>tutores escolhem para ele, aos cinco anos de idade, os mestres jesuítas Luís Gonçalves da Câmara, que regressa de Roma, e seu irmão. Luís Câmara será mestre de História,</p><p>Filosofia e Gramática. Nessa mesma ocasião, são escolhidos também Amador Rebelo, professor de caligrafia e escrita, e Gaspar Maurício, que se ocupará dos filhos dos fidalgos.</p><p>Aos oito anos de idade, o rapaz já é bastante desenvolto no falar e no pensar, os cronistas da época afirmam que ele parecia mesmo um prodígio. No entanto, mais uma vez, o</p><p>pequeno rei parece um menino órfão. Sua avó, depois de deixar a regência, interna-se num convento, junto às monjas da Madre de Deus de Xabregas. O neto visita algumas vezes</p><p>a avó que, no entanto, ainda se mantém distante dele.</p><p>Na pré-adolescência, por volta dos nove ou dez anos de idade, consequência dos exercícios que pratica, Sebastião desenvolve muito o físico. António Cândido Franco afirma</p><p>que o jovem aparentava ter dezessete ou dezoito anos, pois praticava o remo, as touradas, nadava em mar aberto por várias horas, treinava cães para a caça, fazia muitos exercícios</p><p>e longas caminhadas. O rapaz continua solitário como o fora na infância. Seus passeios agora são no Ribatejo, em Almeirim e Salvaterra de Magos. É por esses tempos que</p><p>começam a correr em Lisboa e arredores histórias sobre as esquisitices do jovem rei. Também é por esses tempos que algumas histórias e lendas populares, que habitavam o</p><p>imaginário português, começaram a ressurgir. Lendas, travestidas em histórias sobre a força do jovem, como cita Franco:</p><p>Começam a correr em Lisboa as histórias mais inquietantes sobre a sua força física. Um dia dizem que uma lança que estava em Santarém desde o tempo da</p><p>conquista da cidade aos Mouros e que ninguém conseguira mover sequer um centímetro foi levantada por ele com a mão direita e meneada com toda a facilidade</p><p>(1991, p. 67).</p><p>É clara a referência à célebre história de rei Artur que, quando jovem, consegue retirar a espada fincada em uma pedra, coisa que nenhum outro cavaleiro por mais forte e</p><p>poderoso que fosse conseguira fazer até então. Desse episódio da lenda arturiana, é que mais tarde se soube que aquele jovem é predestinado a tomar as terras inglesas das mãos de</p><p>intrusos indesejáveis e de conseguir a unificação dos feudos. Do mesmo modo como fez Artur, o rei mítico das novelas de cavalaria, assim também faria D. Sebastião,</p><p>conquistando as terras africanas das mãos dos infiéis e as devolvendo aos cristãos. Em consequência da massificante educação jesuítica, o jovem rei acreditava-se predestinado,</p><p>como Cristo o foi, a grandes conquistas para defender o império cristão. Segundo um historiador:</p><p>Na adolescência, enquanto os outros meninos apareceram dispostos a render-se cada vez mais às conveniências e aos hábitos sociais, ele mostra-se cada vez mais</p><p>interessado pelos princípios que os mestres lhe ensinaram em criança: conquistar a África conforme a exaltação das Cortes de 1562, imitar Jesus Cristo, ser justo e</p><p>pai dos pobres (MARQUES, 1978 p. 70).</p><p>Como fora decidido em 1562, em 1568, quando o rei completou 14 anos, o governo lhe foi passado em cerimônia realizada no palácio de Estaus, no Rossio. Durante os dez</p><p>anos que antecederam Alcácer-Quibir, o rei fez muitas viagens pelo país, sempre acompanhado de nobres seus contemporâneos. Sua preferência era pelo Alentejo, e a cidade mais</p><p>visitada fora Évora, cuja universidade frequentou em várias ocasiões. O sul do país também o fascinava, a região de Algarve, cheia de sol e de mestiços vendendo todo tipo de</p><p>objetos, era-lhe sumamente interessante. A semelhança que existe entre as terras do sul de Portugal e o norte de África, acrescidas de exotismo da paisagem e estranheza de</p><p>costumes, acentua esse desejo de possuir as terras dominadas pelos árabes a qualquer custo. Ao mesmo tempo em que faz essas longas viagens pelo país, Sebastião exercita-se e</p><p>pratica touradas com muita frequência.</p><p>O desejo pela conquista de África começa a ser demonstrado pelas viagens que faz a Ceuta e Tânger no Marrocos. Em 24 de agosto de 1574, chega</p><p>Sebastião a Ceuta, onde</p><p>fica por um mês aproximadamente. Em setembro, a esquadra do rei parte para Tânger onde o rei permanece por algum tempo. Quando retorna a Portugal, já começa a arquitetar</p><p>um plano para tomar Marrocos com ou sem a concordância do tio e da avó. Assim como ocorrera com outros reis pretéritos portugueses, Sebastião possui uma vontade</p><p>incontrolável, um desejo de pedra. É com vista a essa empresa que Sebastião envia Pedro de Alcáçova Carneiro a Madri com duas missões. A primeira, propor uma intervenção</p><p>conjunta em Marrocos e a segunda, tratar o casamento de Sebastião com Isabel Clara Eugênia, filha de Filipe II da Espanha. A expedição foi também financiada pelos</p><p>cristãos-novos, fato que justifica, enfim, a simpatia que Sebastião tinha por eles, algo que seu tio e sua avó nunca entenderam. Segundo António Cândido Franco, o financiamento</p><p>da expedição levou o inquisidor-mor de Castela a escrever uma carta ao embaixador de Espanha em Portugal, João da Silva, recriminando severamente D. Sebastião</p><p>(BESSELAAR, 1987, p. 148).</p><p>A expedição de Sebastião parte para a África, depois de longo recrutamento de soldados pelo país. Não houve nenhum treinamento com esses jovens que pouco sabiam</p><p>sobre armas e guerras. Cerca de 15 mil soldados, na sua maioria portugueses, uniram-se a Sebastião nessa audaciosa empreitada. Alguns aventureiros provenientes de outras</p><p>nações também se uniram ao rei, principalmente vindos da Andaluzia e de Castela; outros, em menor número, da Itália, da Alemanha, da Holanda e até mesmo de Marrocos,</p><p>chefiados por Mulei Mohamed, aliado de Sebastião. Além do exército propriamente dito, acompanham a expedição mulheres, crianças, serviçais, abridores de valas, raspadores,</p><p>frades, pajens, músicos, meirinhos, carregadores, alcaides e o poeta Diogo Bernardes. A maior parte dos jovens nobres de Portugal partiu com essa expedição para o Norte de</p><p>África, confiantes na vitória e devotos ao rei. A partida deu-se em 24 de junho de 1578. Essa confiança no rei Sebastião, porém, vai sofrer dois abalos já em solo africano. O</p><p>primeiro, por parte de Fernando de Noronha, que sugeriu a prisão do rei antes da derrota inevitável. O segundo, por parte de Rodrigo Lobo, barão de Alvito, que, ao tomar</p><p>conhecimento do tamanho do exército inimigo, pediu a prisão do rei para que uma tragédia fosse evitada. Ambos foram ignorados.</p><p>Pelo que se sabe, o corpo sem vida de D. Sebastião foi entregue ao rei Filipe de Espanha, que o mandou enterrar nos Jerônimos, onde permanece até hoje. Ninguém o viu</p><p>antes de ser enterrado, ninguém reconheceu o cadáver. A atmosfera de mistério, propositada ou não, acabou criando um mito, ou melhor, a partir da ideia messiânica, muito</p><p>comum em culturas secularizadas, revestiu-se D. Sebastião e sua história de uma aura mítica. Com o reforço daqueles que, desde o episódio das trovas de Bandarra, queriam</p><p>ardorosamente um herói nacional, o mito perpetuou-se e deixou rastros em toda a cultura portuguesa, principalmente, na literatura. Após um breve interregno, no qual o cardeal D.</p><p>Henrique, tio de Sebastião, tenta governar um país sem rumo, a coroa portuguesa passa para as mãos de Filipe II, da Espanha. O rei espanhol nomeia Cristóvão de Moura para</p><p>representá-lo em Portugal. Cristóvão de Moura é um nobre português que, como parte da nobreza do país, prefere ficar do lado castelhano.</p><p>Uma figura deve ser lembrada, a de D. João de Castro. Ferrenho sebastianista até a morte, com 73 anos, ele foi grande defensor da ideia de que D. Sebastião não morrera na</p><p>batalha de Alcácer-Quibir. No período subsequente à morte do rei, pseudo Sebastiães surgiram em Portugal, passando a reivindicar a coroa: o primeiro, conhecido como Rei de</p><p>Penamacor, surgiu em Alcobaça em 1584; o segundo, Mateus Álvares, o Rei da Ericeira; o terceiro foi Gabriel de Espinosa, um pasteleiro de Castela e o quarto, Marco Túllio</p><p>Catizone aparece em Veneza em 1598, então, bastante defendido por D. João de Castro. Uns foram condenados à morte e outros, trancafiados ou enviados para as galés. Vale à</p><p>pena lembrar também a figura de D. Antônio, o prior do Crato que, sem se apresentar como D. Sebastião, assim mesmo reivindicava a coroa, dizendo-se descendente da família</p><p>real.</p><p>O sebastianismo, circunstanciado pela morte do rei, foi fomentado, muito antes, pelas profecias de um sapateiro chamado Gonçalo Annes, porém conhecido como Bandarra.</p><p>Suas trovas, que datam de 1510 a 1540, cantam a vinda de um rei-salvador que resgatará seu povo do sofrimento e do desespero. Esse rei-salvador fundará o Quinto Império que</p><p>dominará o mundo. Conhecemos muito pouco da história de Bandarra, que, aliás, consta dos autos de um processo da Inquisição, ainda no governo de D. João III. Hoje se sabe</p><p>que ele não era um homem humilde e semianalfabeto, como naquela época se pensou. Ao contrário, sabia ler e escrever; conhecia, igualmente, o Velho e o Novo Testamentos</p><p>quase de cor. E era um homem de posses, segundo revelaram pesquisas mais recentes. Suas trovas proféticas, sem nenhum valor literário, são carregadas de influência bíblica</p><p>proveniente de seus conhecimentos e de um colaborador e amigo: Álvaro Cardoso.</p><p>O sebastianismo pode ser considerado um tipo de messianismo que costuma se desenvolver em sociedades sacrais, religiosas. Do ponto de vista de Eduardo Lourenço, “o</p><p>sebastianismo, aquilo que nele se encarna, tem uma estrutura mais ampla e reiterada em tempos e lugares diversos que a do nosso sebastianismo histórico” (LOURENÇO, 2001, p.</p><p>134). Geralmente, manifesta-se como a crença de um povo em um Deus ou enviado de Deus que o livrará de uma situação de opressão. Comum a nós ocidentais, o messianismo</p><p>cristão tem origem na Bíblia, uma vez que a palavra Messias é oriunda do Velho Testamento e significa “ungido”. A partir do século I a.C., passou a designar o salvador, aquele</p><p>esperado e prometido a um povo eleito. Durante a Idade Média, o messianismo foi associado ao termo joaquimismo, de Joaquim de Fiore (1135-1202). O abade calabrês dividia a</p><p>história em três fases ou estados: o do Pai, o do Filho e o do Espírito Santo. A divisão da história nos três estados e, destes, em sete idades cada um, marca a doutrina joaquimina.</p><p>Para Joaquim de Fiore a história escatologicamente teria dois fins – um situado no além e outro, dentro do tempo histórico; portanto, para ele, a História adquire importância ainda</p><p>na Idade Média. Despida de caráter científico, a História admitia previsões e os profetas tinham papel de peso no seu contexto. E, no final de Idade Média, vaticínios e profecias</p><p>existiam em profusão: “vários destes vaticínios, não raro, entraram bastante deformados nas profecias sebásticas” (BESSELAAR, 1987, p. 24).</p><p>As profecias medievais encontram solo fértil em Portugal que, após a morte de um rei sem descendentes, e por força de um movimento inconsciente das massas populares –</p><p>de certo modo, desorientadas – as adota incondicionalmente. Já no reinado de D. Sebastião, tais profecias tinham muito vigor, a ponto de influenciar fortemente o jovem rei. São</p><p>dois os principais fatores, na evolução da sociedade portuguesa no crepúsculo da Idade Média, que talvez expliquem a influência do messianismo sobre D. Sebastião: em primeiro</p><p>lugar, a sua rigorosa educação jesuítica que o fez crer-se um ser predestinado, um enviado de Deus, o que podemos comprovar por meio de seus atos, ou seja, a total submissão</p><p>aos ditames da Igreja e sua propalada humildade diante dos pobres, principalmente demonstrada em dias santos, por exemplo, ou mesmo, a vontade férrea de libertar os “infiéis”</p><p>do pecado e convertê-los à fé cristã. Em segundo, os ideais medievais que lhe foram inculcados desde criança. D. Sebastião tem como modelo a figura do cavaleiro andante</p><p>medieval trajando a armadura e lutando, como um Quixote, contra o demônio árabe.</p><p>Para Oliveira Martins, o sebastianismo seria fruto da miscigenação de três raças que resultariam no povo português: o celta, o galego e o turdetano (MARTINS, 1978, p. 63).</p><p>Da raça celta se originaria o ideal messiânico e daí o sebastianismo.</p><p>quadro oferece a mais do que o simples ato de beijar. Como costuma</p><p>acontecer com as legendas que acompanham os objetos das artes gráficas, estas, por sua limitação, nomeiam apenas um aspecto ou alguns poucos aspectos do objeto artístico.</p><p>Devido à especificidade da pintura e/ou da escultura – o fato de elas serem compostas por linhas, cores e formas1 –, há sugestões na tela e/ou na peça escultórica de que as</p><p>simples palavras do título não conseguem traduzir o sentido em sua maior extensão. Daí que o pintor mostre tão-só o aparente, mas sem nomear o que deveria ser nomeado,</p><p>porque é pintor, lidando, de maneira primordial, apenas com formas, cores, e o que não nomeia é o que, do ponto de vista do poeta, há de mais importante na tela, além daquilo</p><p>que só se vê. Por conseguinte, é o olhar do poeta que vai devassar os sentidos ocultos, no caso, uma reflexão poética sobre a ordem e a desordem, ou, se se quiser, sobre o</p><p>fenômeno entrópico.</p><p>A entropia é entendida por Fritjof Capra, em O Ponto de Mutação, como “medida de desordem” (1988, p. 68). Em Física, a 2a Lei da Termodinâmica, ao tratar da</p><p>questão da perda de energia, estipula que, num determinado sistema, quando a quantidade de energia útil diminui, ela se dissipa em calor, fricção. A energia não pode ser</p><p>completamente recuperada, o que provoca a caminhada da “ordem para a desordem”. Nesse sentido, conclui-se, de acordo com a 2a lei da Termodinâmica, que qualquer</p><p>sistema físico isolado avançará de maneira espontânea na direção de uma desordem sempre crescente. No poema, a ordem é pressentida “em todas/as nebulosas”, que, de</p><p>acordo com a astronomia, referem-se a uma espécie de nuvem, formada por matéria interestelar, gás e poeira em suspensão, cujos elementos convivem de modo harmônico e</p><p>mantêm-se em perfeito equilíbrio graças a determinadas leis físicas que o poeta desconhece. Daí ele ter utilizado o verbo “pressentir”, que implica não uma certeza científica,</p><p>mas uma certeza dada pela intuição, pelo imaginar poético. Isso porque a nebulosa, devido à sua constituição, também se oferece, em seu sentido figurado, como algo confuso,</p><p>difícil de se desvendar e entender e cuja organização interna só possa ser pressentida.</p><p>Algo similar acontece com o amor, que é metaforizado pela nebulosa: é entendido como uma massa cheia de energia, ou seja, compreende a integração plena dos</p><p>amantes, que se completam. E, sendo assim, voltando-se ao princípio do poema, percebe-se que, nele, o beijo da legenda não passa de uma de suas manifestações mínimas,</p><p>superficiais, um detalhe, afinal. Análogo à nebulosa, o amor tem uma regra, indeclinável, como diz o poeta, que é de “ouro”, e que, por ser feita desse material nobre, “não</p><p>admite/excepções” – é “ordem” que “precede a desordem”. Ou seja, a prática amorosa ordena o caos, dá sentido pleno à existência, fazendo que ela atinja a sua plenitude,</p><p>antes que possa se esgotar dissipando energia, como acontece no fenômeno entrópico.</p><p>Em outros poemas, a revelação da sexualidade latente é apresentada de maneira muito mais radical, pelo fato de a leitura do poeta contemplar telas que, na aparência,</p><p>nada têm de sensual; muito pelo contrário, serviriam para ostentar o recato, a espiritualidade.</p><p>São os casos de “A Virgem, de Filippo Lippi” e “Magdalena Strozzi, de Rafael”, ambas as obras pertencentes ao século XVI. O primeiro poema é o que se segue:</p><p>De virgem, só o véu,</p><p>que nem sequer encobre</p><p>o arrepio breve das madeixas</p><p>no declive</p><p>do gesto com que pousa</p><p>a cabeça</p><p>nas almofadas</p><p>do vento. O que os olhos</p><p>e os lábios celebram</p><p>é um rito cujos</p><p>ofícios</p><p>são terra. E o sáurio</p><p>invisível debruçado</p><p>à varanda dos seios apenas</p><p>aguarda que da gruta</p><p>mais húmida</p><p>do seu corpo a água</p><p>escorra e possa</p><p>dessedentar-se.</p><p>Virgens</p><p>são os batráquios, os manequins</p><p>e as estátuas. Mas estes</p><p>têm a boca selada</p><p>e o sexo vidrado (MARTINS, 1998, p. 109).</p><p>O poeta, já nos primeiros versos, de modo sacrílego, contesta o caráter virginal da figura da Madona representada. Na imagem do véu, que, em princípio, serviria para</p><p>velar, mas que “nem sequer encobre”, nota-se o princípio de um desvelamento, que começa a se acentuar com a referência à rebeldia do cabelo e, sobremaneira, ao movimento</p><p>dos olhos e lábios que celebram um “rito” ligado à terra. A sensualidade torna-se mais evidente ainda, quando ele se refere à presença de um animal subterrâneo, ligado ao</p><p>instinto primário, o “sáurio”, que, invisível aos olhos dos espectadores comuns do quadro, é uma presença latente, que palpita, sedento, junto aos seios da mulher. E há aqui</p><p>uma clara alusão à cópula: a “gruta mais húmida” é uma referência metafórica à vulva, enquanto o ato de dessentar-se da figura demoníaca nada mais é que a posse sexual. No</p><p>final do texto, o poeta, com toda ironia, contesta o conceito de virgindade, ao dizer que ela só existe entre “os batráquios, os manequins/e as estátuas”, pelo fato de eles terem a</p><p>“boca selada/e o sexo vidrado”, ou seja, como seres simbolicamente castrados, são por natureza impedidos de beijar e, por consequência, de copular.</p><p>O que ocorre neste poema perturbador é um processo de desmonte por parte do poeta de uma espécie de hipocrisia, presente numa época de grande repressão sexual.</p><p>Como a sexualidade e a vida instintiva eram consideradas, do ponto de vista religioso, nefastas, pecaminosas, deviam ser reprimidas ou sublimadas. Na arte pictórica da Idade</p><p>Média e mesmo da Renascença, em muitos casos, este efeito de sublimação acontecia, de modo geral, por meio da representação das mulheres, nas telas e murais, como</p><p>figuras recatadas de santas, Virgens e Madonas. O que Albano Martins faz, ao afastar o véu de espiritualidade, que encobria essas figuras estereotipadas, é revelar, nelas, a</p><p>sexualidade mascarada. A Virgem, de seu ponto de vista, é, antes de tudo, mulher e mulher com desejos, frise-se bem. Com esse modo de ver a figura feminina, Albano</p><p>Martins nega, rechaça, na figura arquetípica da Virgem Maria, algo muito caro à teologia cristã: a quase divinização da figura feminina, que chega, segundo reza a Bíblia, ao</p><p>ponto de conceber sem a cópula e, por extensão, sem o pecado, como é praxe entre o comum dos mortais.</p><p>É o que acontece também no poema “Magdalena Strozzi”, inspirado numa tela de Rafael, em que o poeta, de certo modo, descreve a tela às avessas, para investir sobre</p><p>os interstícios da sensualidade latente. Em realidade, o pintor italiano teria sido motivado por uma concepção platônica da mulher, pois pintou o quadro “num tempo,/diz-se,</p><p>em que a única/riqueza apetecível/não vinha da matéria”, contudo, ele se trai no ato da prática pictórica:</p><p>Na opulência</p><p>das formas, no volume</p><p>dos seios e nos bolbos</p><p>das maçãs do rosto colhe</p><p>o pintor o feitiço</p><p>da abastança.</p><p>A sensualidade salta aos olhos na descrição do corpo da mulher, no qual se destacam o volume, a opulência dos seios e das maçãs do rosto. A pergunta que fecha o</p><p>poema atenta de novo para uma contradição interna de uma época que celebrava a alma, em detrimento do corpo, mas que, contudo, revelava em suas frinchas a sensualidade</p><p>presente:</p><p>[...] que outra</p><p>contradição maior</p><p>senão esta: vestir</p><p>o corpo</p><p>com os ouros</p><p>da alma e deixar</p><p>que a vida se cumpra</p><p>por si mesma? (MARTINS, 1998, p. 113)</p><p>Mais uma vez se percebe a intervenção personalíssima do poeta num objeto das artes gráficas – a sua leitura, muito subjetiva, menos descreve o objeto que tem diante de</p><p>si do que desenvolve, por meio dele, uma reflexão própria. Ao afirmar a sexualidade nos dois últimos poemas, tem como escopo uma reflexão crítica sobre uma determinada</p><p>concepção da figura feminina – neste sentido, os versos atestam a soberania dos impulsos carnais sobre os espirituais, ainda que estes, na aparência, tivessem privilégio sobre</p><p>aqueles.</p><p>Em grande parte erótica, a poesia de Albano Martins não só retoma um saudável neopaganismo, como também procura afirmar as pulsões instintivas que, de maneira</p><p>geral, o sistema social, ao longo dos tempos, vem tentando reprimir. Por uma questão de sobrevivência da espécie, a sociedade legitima sempre o “dever”, em detrimento</p><p>Por outro lado, essa ideia é ferozmente combatida por António Sérgio em seu texto “Interpretação não</p><p>romântica do sebastianismo”. Para ele, o ideal sebástico teria sido herdado do convívio com cristãos-novos e da confluência de fatos, de uma coincidência histórica e, de certo</p><p>modo, de uma identificação fortuita entre as condições psíquicas do povo judeu e do povo português: “O ambiente psíquico do Português tornou-se idêntico ao dos Judeus, e dessa</p><p>semelhança social-mental sai a reprodução, entre nós, do messianismo israelita” (Ibidem, p. 93).</p><p>Também para António Sérgio, o sebastianismo serviria como desculpa, ou muleta, a um povo sem iniciativa e carente de “self-government”, uma vez que essas ideias</p><p>retornam ao contexto a cada crise, em momentos de decadência (1978, p. 68). Na verdade, envolvidos com essas ideias messiânicas, falta ao rei e a seus conselheiros a visão extra</p><p>da realidade de seu tempo, ao não perceberem transformações econômicas que ocorrem na Europa e não acompanharem os rumos das importações e exportações, enfim, em outras</p><p>palavras, as necessidades do mercado. Portanto, Portugal, nos anos de governo sebastianista, vira as costas ao mundo, como se fosse uma nação soberana e absoluta, não</p><p>admitindo rivais ou concorrentes, o que na área econômica significa um suicídio.</p><p>O surgimento do sebastianismo seria explicado, portanto, por três fatores, segundo Besselaar: o primeiro, o fato de Portugal ser uma sociedade sacral, impregnada de</p><p>religiosidade em todos os setores da vida; em segundo, seria o chamado por Oliveira Martins de substrato celta, que parece associar rei Arthur a D. Sebastião, e o terceiro,</p><p>proporcionado pela história portuguesa frustrada, na qual as esperanças de um futuro de pujança são alimentadas por um passado de glória, ficando o presente representado por um</p><p>momento expectante e inerte, próprio de culturas messiânicas.</p><p>O evangelho sebastianista compõe-se de cartapácios, ou seja, de coleções de profecias algumas bíblicas, outras não canônicas, que eram agrupadas em grossos volumes,</p><p>como no Jardim Ameno e no Catálogo das Profecias e outros volumes menores, na maioria apócrifos. Naturalmente, a interpretação dada pelos sebastianistas tenderá à mudança</p><p>do caráter originário do texto.</p><p>Alterações interpretativas ou do conteúdo dos textos, tanto das profecias como das trovas de Bandarra, foram comuns durante a evolução do sebastianismo. Aliás, a começar</p><p>de D. João de Castro e passando por todos os sebastianistas conhecidos até o século XIX, todos eles utilizaram-se do evangelho sebástico para fins políticos e ideológicos,</p><p>moldando-os de acordo com as necessidades vigentes. Como aconteceu na época da Restauração. No final de 1640, o que se lia nas estrofes 87 e 88 das trovas de Bandarra era que</p><p>um jovem infante tomaria o poder, vencida a luta contra a “Grifa parideira, lagomeira, que tais prados têm gostado”, ou seja, a Espanha, vista como um monstro desmedido que</p><p>não se satisfazia em pastos próprios, ficando sempre a desejar o pasto alheio – Portugal. O jovem infante, não mais Sebastião, teria como nome D. João, resultante da troca da</p><p>palavra Foão, do texto editado por D. João de Castro, para João, na nova versão. Realmente é D. João, filho do Duque de Bragança, que garantirá a independência de Portugal. A</p><p>História vai mostrar os altos e baixos da onda messiânica, de acordo com os altos e baixos da sociedade portuguesa, de maneira que, nos momentos de depressão e desencanto, D.</p><p>Sebastião ressuscita miraculosamente, seja no imaginário do povo português, seja, ficcionalmente, em obras literárias.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>BESSELAAR, José van den. Sebastianismo: história sumária, Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987.</p><p>FRANCO, António Cândido. Vida de Sebastião, Rei de Portugal. Mira-Sintra: Europa-América 1991.</p><p>LOURENÇO, Eduardo. Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade, 3. ed., Lisboa: Gradiva, 2001.</p><p>MARQUES, A. H. Breve História de Portugal, 4. ed., Lisboa: Terra Livre.</p><p>MARTINS, Oliveira. O Sebastianismo, Lisboa: Terra Livre, 1978.</p><p>SÉRGIO, António. Breve Interpretação da História de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, 1978.</p><p>Notas de Rodapé</p><p>20 Tradução nossa: “Em tradições esotéricas, o pavão é um símbolo de totalidade, em que une todas as cores sobre o leque de sua cauda aberta”.</p><p>21 José Francisco da Rocha Pombo nasceu na cidade de Morretes, Paraná, em 4 de dezembro de 1857. Distinguiu-se pela atividade jornalística, pelo ensino (foi</p><p>um dos fundadores da Universidade do Paraná). Como escritor, publicou importantes obras históricas, História da América (1900), História do Brasil</p><p>(1905-1917), História do Rio Grande do Norte (1922), e ficção: A Honra do Barão (1881), Visões, contos e poesia (1888), No Hospício (1905). Faleceu em</p><p>1933.</p><p>22 Emanuel Swedenborg (1688-1772), cientista, filósofo e teólogo sueco. Teve uma prolífica carreira como inventor e cientista. Em 1741, entrando numa fase</p><p>espiritual, começou a ter sonhos e visões que, segundo ele, lhe permitiram visitar o Céu e o Inferno e falar com anjos, demônios e outros espíritos. Sua obra</p><p>mais conhecida, De Coelo et de Inferno, onde registrou tais sonhos e visões, foi publicada em 1758.</p><p>23 Observe-se que apenas Fileto (do grego, Philetos, “digno de ser amado”, “amável”) e Alice (do grego Alethia, “a verdadeira, que não conhece a mentira”) têm</p><p>nomes com um sentido simbólico. Os outros nomes nada (ou pouco) acrescentam ao caráter simbólico do romance.</p><p>24 O personagem/narrador está se referindo, no caso, a Dante e a sua Divina Comédia.</p><p>25 Tradução nossa: “Eu quero dizer que é preciso ser vidente, fazer-se vidente. O Poeta se faz vidente através de um longo, imenso e racional desregramento</p><p>de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura a si próprio, extrai de si todos os venenos para guardar apenas as</p><p>quintessências. Inefável tortura, contra a qual necessita de toda a fé, de toda a força sobre-humana, através da qual se torna, dentre todos, o grande</p><p>enfermo, o grande criminoso, o grande maldito — e o supremo Sábio! — Pois atinge o desconhecido! Pois cultivou a alma, já rica, mais do que ninguém!</p><p>Atinge o incógnito e, quando, enlouquecido, acabar perdendo a inteligência das suas visões, já as terá visto!”.</p><p>26 Em seu soneto Correspondances, Baudelaire refere-se à floresta de símbolos, na qual, os vivos pilares, metáforas das árvores, lançam olhares familiares ao</p><p>homem que aí passa. Nessa floresta, ainda segundo o poeta, tudo se corresponde: “Comme de longs échos qui de loin se confondent/Dans une ténébreuse</p><p>et profonde unité,/Vaste comme la nuit et comme la clarté,/Les parfums, les couleurs et les sons se répondent” (1961, p. 13).</p><p>27 “O prazer é o meio mais certo de conhecimento que a Natureza nos oferece e... aquele que muito sofreu é menos sábio do que aquele que muito se alegrou”.</p><p>28 Um dos maiores representantes, no Brasil do quadrinho pornográfico foi o desenhista Carlos Zéfiro (Rio de Janeiro, 1921-1992). Pseudônimo do funcionário</p><p>público Alcides Aguiar Caminha, ilustrou mais de 500 trabalhos que eram vendidos em bancas. Usava pseudônimo devido à censura muito rigorosa da</p><p>época que podia comprometer o seu emprego.</p><p>29 Tradução nossa : « Diz-se em consequência que Orion [...] segue constantemente o escorpião”.</p><p>30 Tradução nossa: “o primeiro, ut arrigat, é a ereção; o segundo, ut va saemineum referet, é a penetração; e o terceiro e último, ut em vase seminet, é a</p><p>ejaculação”.</p><p>31 Tradução nossa” Sob o domínio planetário de Marte, bem como a de Plutão, o poder misterioso e inexorável das sombras, o inferno, a escuridão interior.</p><p>Estamos no coração do complexo sado-anal do freudismo”.</p><p>32 Ismond Rosen dá a entender que é possível o exibicionismo numa mesma família, por uma “predisposição constitucional” ou de base genética (1971, p. 344 e</p><p>349).</p><p>33 Tradução nossa : “(O narcisista) experimenta o prazer sexual ao olhar, acariciar e apalpar seu corpo até a gratificação completa [...]. Tais pacientes, que</p><p>proponho denominar parafrênicos, apresentam</p><p>duas características fundamentais: sofrem de megalomania e extraem seu interesse do mundo externo</p><p>(pessoas e coisas).”</p><p>34 Tradução nossa: “A personificação dessas forças que permanecem virtualmente fora da órbita da consciência [...] “certas características infantis condizentes</p><p>com seu pequeno tamanho ””</p><p>35 O nome Déruchette é de um dos personagens de Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo. Segundo Walter Benjamin (2007, p. 735), o escritor francês,</p><p>enquanto escrevia seu livro, tinha diante de si uma boneca, que lhe serviu de modelo para o personagem.</p><p>36 Tradução nossa : “no fetichista [...] há uma correspondência notável entre a questão fundamental que visa à recusa (castração, a diferença dos sexos), no</p><p>centro do alvo, e um prazer sexual bem definido, convergindo para o objeto fetiche.“.</p><p>37 O título deste conto talvez seja uma paródia do título de um filme de Elio Petri – Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, produzido em</p><p>1970.</p><p>38 “O fetichismo do pé e do calçado feminino só parece se sustentar como um símbolo, um Ersatz do membro adorado do tempo da infância, e depois perdido”</p><p>(VALAS, 1994, p. 55).</p><p>39 A postura de Marcel Duchamp, enquanto jogador de xadrez na foto em pauta, é muito similar à dos jogadores de xadrez de um poema de Ricardo Reis, que</p><p>define esse jogo como o “dos grandes indif’rentes”, no sentido de que quando se entregam a esse artifício, alheiam-se completamente das fainas e dramas</p><p>da vida, (PESSOA, 1972, p. 267-269).</p><p>40 A respeito da grande contribuição de Yeats para a cultura, consultar a obra de Evans (1980, p. 141).</p><p>41 Tradução nossa: “Sob um dourado e fundo céu”.</p><p>42 Tradução nossa: “O grande e branco lírio do mundo”, “as pálidas estrelas”.</p><p>43 Tradução nossa: “Mas primeiro sente-se e descanse um pouco,/ Pois meus velhos pais serviram seus pais, senhora,/ Mais do que os livros podem dizer – e</p><p>foi estranho/ Se você e seus pais não fossem bem-vindos aqui”.</p><p>44 Tradução livre nossa: “Lembre-se do objeto que vimos, minha alma/Esta linda manhã de verão tão doce:/Na curva de um caminho, uma infame arniça/Em um</p><p>leito repleto de pedrinhas,//Pernas no ar, como uma mulher lasciva,/Queimando e suando os venenos,/Abria de maneira indiferente e cínica/Sua barriga</p><p>cheia de exalações.//O sol brilhou nessa podridão/Como se para cozinhá-la com perfeição,/E para fazer cem vezes a grande natureza/Tudo o que ela</p><p>juntou;//E o céu olhava para a soberba carcaça/Como uma flor florescendo./O fedor era tão forte na grama/Que você acreditava que ia desmaiar.//Moscas</p><p>zumbiam nessa barriga pútrida,/De onde vinham os batalhões negros/De larvas, que fluíam como um líquido espesso/Ao longo desses trapos vivos. [...] – E</p><p>então assim você será como esse lixo,/ Nesta infecção horrível,/Estrela dos meus olhos, sol da minha natureza/ Você, meu anjo e minha paixão!//Sim! você</p><p>irá, ó rainha das graças,/Depois dos últimos sacramentos/ Quando você repousar sob a grama e as florações gordurosas,/ Moldar entre os ossos.//Então, oh</p><p>minha bela! Diga aos vermes/Quem vai comer seus beijos,/De Que guardei a forma e a essência divina/Do meus amores descompostos!”</p><p>45 Conforme Ernst Bloch, em o Princípio Esperança (2005).</p><p>46 Segundo Zumthor: Ser “moderno” é julgar homens e coisas em virtude do que eles têm ou do que lhes falta; é conhecer seus atributos a fim de domar-lhes o</p><p>uso. Ser “antigo” [...] é conhecer e julgar em virtude do ser e do nada. Pelo que concerne à poesia, a escritura parece moderna; a voz, antiga. Mas a voz</p><p>“moderniza-se” pouco a pouco: ela atestará um dia, em plena “sociedade do ter”, a permanência de uma “sociedade do ser”. (1993. p. 26).</p><p>47 Imaterialidade significa uma outra materialidade, pois existe sob uma forma codificada realizada pela organização de estados eletromagnéticos dos sinais de</p><p>0 e 1, comporta uma matriz virtual e potencial em memória que pode ser atual, visualizável por meio de transcodificadores. As mensagens imateriais não se</p><p>confundem com seus suportes, elas circulam através de múltiplos dispositivos.</p><p>48 O que nem sempre significa qualidade e adequação das novas produções dedicadas à juventude.</p><p>49 A leitura da literatura, a formação do leitor literário passa por mediações organizadas por adultos.</p><p>50 CUNHA, Maria Zilda. As matrizes de linguagem e pensamento na literatura Infantil e Juvenil: a tessitura dos signos em Ângela Lago e Octaviano Correia.</p><p>USP, 2002.</p><p>51 Sabemos, a invenção da escrita, e sua sofisticada maquinaria de combinatória alfabética, traz questões muito mais amplas, assunto que aqui não</p><p>discutiremos aqui, basta lembrar com Pierre Lévy (1996) que: “os modos de conhecimento teóricos e hermenêuticos passaram a prevalecer, impondo-se</p><p>“uma ecologia cognitiva largamente estruturada pela escrita (num suporte fixo)”,</p><p>52 Angela Lago – .</p><p>53 O termo é utilizado por Ítalo Calvino para designar o aspecto fragmentado do hiper-romance, que resulta no tema e no modelo.</p><p>54 Razoabilidade concreta é a denominação utilizada por Charles Sanders Pierce para uma razão em crescimento, uma razão criativa, que está sempre em</p><p>busca da verdade, uma verdade sempre movente.</p><p>55 Um processo cognitivo, que exige esforço de abstração e de interpretação, à medida que faz refletir sobre temas e situações da vida.</p><p>56 Macrossistema literário – cunhado por Abdala (2003) com base em Antonio Candido (1975) – deriva da compreensão de uma dinâmica que envolveu</p><p>historicamente constantes semelhantes da série ideológica. O macrossistema é marcado por um campo comum de contato entre sistemas literários</p><p>nacionais como os de língua portuguesa, que têm um passado comum e diferentes atualizações. Na atualização, engendra uma força dialética e, na</p><p>contramão, promove a convergência de tradição e ruptura. É um conceito operacional e estratégico politicamente (ABDALA, 2007).</p><p>57 “ Já nem sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do</p><p>corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia</p><p>escurecendo o resto do corpo. [...] Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agora é ver-me a não largar seja</p><p>quem for enquanto não me disser por que é que eles têm as palmas das mãos assim tão claras.[(...] Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os</p><p>pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgínia e demais não sei aonde. Já se vê que a</p><p>Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos desbotarem à força de tão lavadas” (HONWANA, 1972).</p><p>58 Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho. Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito</p><p>porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os</p><p>pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem</p><p>exatamente como as palmas das mãos dos outros homens.</p><p>E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem, é</p><p>apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem, é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem</p><p>qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão</p><p>graças a Deus por não serem pretos” (HONWANA, 1972).</p><p>59 Para Morin, um paradigma efetua a seleção e a determinação das operações lógicas, designa as categorias fundamentais da intelegibilidade e opera o</p><p>controle de seu emprego. Assim, os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles. (2003, p. 25).</p><p>A ESTÉTICA DO FEIO EM CRUZ E SOUSA</p><p>Eliane de Alcântara Teixeira</p><p>Missal, composto de 43 textos em prosa, surgiu pela primeira vez em 1893, juntamente com Broquéis, livro de poesias, publicado pelo editor Fernando Magalhães, no Rio de</p><p>Janeiro. Já antes em Tropos e Fantasias (1885), e em textos dispersos, Cruz e Sousa experimenta, ainda que de modo muito tímido, uma tendência que vai se cristalizar em Missal,</p><p>livro organizado pelo autor em vida e cuja pecualiaridade advém de uma tendência bastante comum dentro do movimento simbolista, que era a do experimentalismo em prosa.</p><p>Essa tendência já havia se manifestado na obra de autores por quem Cruz e Sousa tinha muita admiração: lembramos aqui Baudelaire, com seu livro Petits Poèmes en Prose, (que</p><p>depois seria intitulado Le Spleen de Paris), publicado em revistas desde 1861 e João Barreira, autor de Gouaches (1892). Tanto no autor catarinense quanto no poeta francês e no</p><p>prosador português, verifica-se a feliz simbiose entre a prosa e a poesia, de maneira que o fluxo das palavras e as notações realísticas sirvam de suporte para evocar estados de</p><p>alma diferenciados ou mesmo para reflexões de caráter filosófico e estético.</p><p>Neste artigo, vamos tratar da questão da prosa poética de Cruz e Sousa, mas nos concentrando num tópico que parece se constituir numa espécie de ponto nevrálgico de</p><p>grande parte da obra do autor catarinense. É a questão do feio, tratado de maneira mais específica no texto intitulado “Psicologia do Feio”. Contudo, antes de fazer a leitura crítica</p><p>desse poema, cremos que valeria a pena tecer algumas considerações sobre o que se entende pelo gênero conhecido por “prosa poética”, das quais Cruz e Sousa se serve para</p><p>compor o livro Missal e deixar sua marca profunda de poeta. A prosa poética, segundo Massaud Moisés,</p><p>se definiria como o texto literário em que se realizasse o nexo íntimo entre as duas formas de expressão, a do “eu” e a do “não-eu”. Longe de ser pacífico, o encontro</p><p>é marcado por uma tensão, de que o texto extrai toda a sua força comunicativa. No binômio, o substantivo é representado pela prosa, ou a expressão do “não-eu”, ao</p><p>passo que a poesia funciona como um qualificativo (1997, p. 26).</p><p>Chamamos a atenção para dois aspectos: a fusão dos gêneros poesia e prosa, de maneira tão íntima, que provoca uma “tensão” no interior do texto, de onde vem a força</p><p>expressiva e dramática. O prosaico mostra-se no caráter narrativo, descritivo e dissertativo do texto, contudo, verifica-se que, nas três manifestações do gênero, há uma forte</p><p>presença do subjetivo.</p><p>A prosa poética, enquanto texto narrativo, entre muitíssimos exemplos, tem seu caso mais notório no romance Às avessas, de Huysmans. Nesse romance, a história narrada,</p><p>o enredo, serve apenas de suporte para a evocação dos estados de espírito, da estesia da neurótica personagem central, o nobre Des Esseintes, que se fecha em seu mundo de ficção</p><p>e beleza artística, para fazer do mundo sua representação. Os fatos servem de suporte para que o anti-herói desenvolva uma espécie de ioga dos sentidos, aguçando ao máximo as</p><p>sensações. Quanto à descrição, impregnada pela subjetividade poética, também tem presença marcante em Às Avessas, mas a objetividade dela é contaminada pelas idiossincrasias</p><p>do sujeito que faz dos objetos mera extensão de si. É o que acontece nesta descrição de flores feita pela personagem, cuja objetividade cede terreno para a expressão da</p><p>subjetividade mórbida:</p><p>Os jardineiros trouxeram ainda novas variedades; ostentavam, desta vez, a aparência de pele artificial sulcada de veias falsas; em sua maioria, como que roídas de</p><p>sífilis e lepras, mostravam carnes lívidas, marmoreadas de roséolas, adamascadas de dartros; umas afetavam o tom rosa vivo das cicatrizes que se fecham ou o</p><p>acastanhado das crostas que se formam; outras estavam inflamadas por cautérios, soerguidas por queimaduras; outras, ainda, mostravam epidermes pilosas, cavadas</p><p>de úlceras e repuxadas por cancros; algumas, por fim, pareciam cobertas de curativos, untadas de banha negra mercurial, de unguentos verdes de beladona, picadas</p><p>de grãos de poeira, de micas jaldes de iodofórmio em pó (HUYSMANS, 1987, p. 122).</p><p>Em Missal, de Cruz e Sousa, não se pode falar de narração, mas a descrição é abundante, como, por exemplo, em “Paisagem de Luar”:</p><p>Na nitidez do ar fio, de finas vibrações de cristal, as estrelas crepitam... Há um rendilhamento, uma lavoragem de pedrarias claras, em fios sutis de cintilações</p><p>palpitantes, na alva estrada esmaltada da ViaLáctea. Uma serenidade de maio adormecido entre frouxéis de verdura cai do veludo do firmamento, torna a noite mais</p><p>solitária e profunda. O Mar, pontilhado dos astros, faísca, fosforece e rutila, agitando o dorso glauco. E, de leve, de manso, um clarão branco, lânguido, lívido, vem</p><p>subindo dos montes, escorrendo fluido nas folhagens, que prateiam-se logo, como se fabuloso artista invisível as prateasse e as polisse. A lua cheia transborda em</p><p>rio de neve na paisagem, e, no mar, há pouco apenas fagulhante da inação das estrelas, a lua jorra do alto (2008, p. 341).</p><p>Pode-se dizer, como Massaud Moisés, que “as marcas identificadoras” da aproximação entre prosa e poesia “encontram-se na musicalidade da frase” (1997, p. 26), o que é</p><p>bem patente no texto em pauta. Observe-se a presença das aliterações na primeira frase, formadas pelos encontros consonantais “tr”, “br”, “cr” que mimetizam o som das</p><p>“vibrações dos cristais” e, ao mesmo tempo, sugerem a imagem de renda que vem adiante. O mesmo se pode dizer das aliterações formadas pelas dentais na frase seguinte. Mas</p><p>chamaríamos a atenção também para o imagismo a marcar as frases: em “rendilhamentos”, “lavoragem de pedrarias claras”, “veludo do firmamento” e na figura do artista que</p><p>pinta a paisagem de prata.</p><p>Como se verifica pelo fragmento, a descrição serve apenas de suporte para a estesia do sujeito, que só se enuncia indiretamente por meio do acúmulo de aliterações, do</p><p>acúmulo de sensações visuais e do intenso metaforismo, que faz da paisagem como que uma extensão de sua alma. A objetividade, que, de modo geral, é marca registrada da</p><p>descrição, é bastante atenuada. Já a dissertação aparece de maneira evidente em “Psicologia do Feio”, em que o poeta, por meio da prosa poética, trata de questões de estética.</p><p>Contudo, como não poderia deixar de ser, os filosofemas ou as disquisições reflexivas comparecem contaminadas pela emoção do sujeito. Desse modo, em vez de as palavras</p><p>serem transparentes, tornam-se opacas. Via de regra, num texto de Estética ou de Filosofia, a exemplo dos de um Platão, de um Aristóteles, de um Kant, a linguagem é apenas um</p><p>meio para elaborar conceitos. Já em “Psicologia do Feio”, a linguagem tem um fim em si mesma, e o que acontece é que as abundantes aliterações, assonâncias, redundâncias</p><p>sonoras, o forte imagismo, fazem que as palavras não sirvam apenas para traduzir conceitos, pois elas acabam tendo peso, densidade e forma. Sendo assim, a abstração que, em</p><p>geral, é a base dos textos filosóficos ou estéticos, cede lugar uma concretização. A começar que em Cruz e Sousa o texto concretiza uma categoria abstrata, o feio em si.</p><p>Personificado, comparece como verdadeira entidade:</p><p>As tuas feições, duras, secas, quase imobilizadas em pedra, puxadas, arrepanhadas num momo, como a confluência interior dos desesperos e das torturas, abrem-se</p><p>rebeladamente num sarcasmo, ao qual às vezes uma gesticulação epilética, nevrótica, clownesca, faz impetuosa brotar a gargalhada das turbas, enquanto tua voz</p><p>coaxa, grasna, numa deprecação da morte, com ásperas e surdas variabilidades ventríloquas de tons (2008, p. 314).</p><p>A teoria estética que se depreende do texto, em vez, portanto, de comparecer ao longo de uma reflexão, comparece, pelo contrário, por meio da metaforização, da</p><p>alegorização, de uma linguagem essencialmente musical. Assim, por exemplo, chamamos a atenção para um trecho em que, ao tentar caracterizar as estranhas vestes da entidade</p><p>do Feio, o poeta recorre à sobreposição de imagens. Numa primeira instância, lembram uma mortalha: “as abas compridas e esfrangalhadas duma</p><p>veste que te fica em rugas, em</p><p>pregas encolhidas de largura nesse teu corpo esquelético, e que parece a mortalha dalgum hirto cadáver que houvesse desenterrado” (Ibidem). Numa segunda instância, o mover da</p><p>mortalha “sob o chicote elétrico do vento”, transmuda-se em criaturas mitologias, as “fúrias”. E, mais adiante, “Lembram as asas de um grande morcego, monstro, imensas e</p><p>membranosas, causando asco nauseante e enchendo tudo duma sinistra treva lugubremente cortada de arrepios e esvoaçamentos medonhos” (Ibidem, p. 314-315).</p><p>Sonoramente, vale a pena acentuar a presença maciça das nasais, consoantes mais “macias”, a mimetizar o veludo das asas de um morcego, que contrastam com as vibrantes,</p><p>mais duras, em “lembram”, “membranosas”, “sinistra treva lugubremente”. Assim se nota que Cruz e Sousa, ao tentar compor um retrato concreto do Feio, elevado à sua</p><p>quintessência e, por isso mesmo, causador do “horror”, apela tanto para o visual quanto para o sonoro. Contudo, como o Feio é evocado e só existe enquanto especulação, o poeta</p><p>é obrigado a fazer aproximações dessa entidade por meio do acúmulo de imagens. Assim, o Feio não redunda num conceito claro, objetivo, mas é atraído para a esfera do sujeito,</p><p>constituindo-se mais propriamente numa extensão dele. É sua representação e, como tal, padece de objetividade. Depois do esforço em tentar caracterizar o Feio em cinco</p><p>parágrafos, o narrador esboça descritivamente duas paisagens, uma, sob o sol, e outra sob os gelos. Na primeira delas, há referência a tudo que é primaveril e belo:</p><p>Árvores frondentes e undiflavadas de sol, onde os pássaros cantem; rios gorgolejantes de cristais sonoros; vivos e iluminados vergéis em flor; campos verdes,</p><p>afogados na verdura tenra, como estofos de veludos e sedas rutilosas e orientais [...] (CRUZ E SOUSA, 2008, p. 315).</p><p>O parágrafo é marcado pelo brilho e pela intensa sonoridade, que entra em contraste com o caráter sombrio do Feio, pertencente ao mundo ctônico (referente aos deuses</p><p>subterrâneos). Isso se torna visível no neologismo “undiflavadas” (de flava, referente à cor dourada das espigas de milho, mais “undi” de onda), nos “iluminados vergéis”, nas</p><p>“sedas rutilosas”, em que o adjetivo, também um neologismo, derivado de “rútilo” e/ou “rutilante”, ou vermelho brilhante, serve para acentuar o colorido da paisagem. Ao lado do</p><p>cromatismo, o narrador também investe no aspecto sonoro, na referência ao canto dos pássaros, ao ruído dos rios, cujo som é mimetizado, na linguagem, por meio da aliteração,</p><p>construída com o auxílio da palatal “gê”, das alveolares “s” e “r”, das nasais e da alternância entre vogais abertas e fechadas. Contudo, tal beleza é vedada ao Feio, pois “não são já</p><p>para a tua alegria”. E isso decorre do fato de que o Feio representa a antivida, apresentada, no parágrafo seguinte, como uma paisagem árida e gelada: “os perpétuos gelos do</p><p>Volga do Neva para sempre rolam, em densas camadas, sobre o teu coração”, o que implica que ele provoque um resfriamento, um congelamento da matéria vital, devido à sua</p><p>fealdade.</p><p>A partir daí, instaura-se um terceiro movimento do texto, quando, pela primeira vez, o sujeito se enuncia, não de forma indireta, por intermédio do imagismo, da emoção que</p><p>impregna a linguagem, mas de forma direta: “Só eu, numa suprema hora de spleen, de esgotamento de forças psíquicas, em que me falte extensamente o humor – essa radiosa</p><p>bondade hilariante do Espírito – te idolatro e procuro, ó lascivo Feio!” (Ibidem, p. 315). Essa categoria estética é idolatrada pelo sujeito somente quando ele é presa do spleen, e,</p><p>portanto, se irmana a um grupo muito seleto de almas que cultuam o que é subterrâneo, o que emana de forças primárias, em tudo, opostas ao apelo dionisíaco da vida sob o sol:</p><p>Só as artísticas sensibilidades nervosas, vibráteis, quase feminis podem amar-te; enquanto que as individualidades ocas, estéreis, áridas duras, sem vibração</p><p>sensacional, sem cor, sem luz, sem som e sem aroma, fugirão para sempre de ti como à repelência asquerosa de um putrefato (Ibidem, p. 315).</p><p>Nesse ponto, Cruz e Sousa traça o perfil do artista decadente, cuja sensibilidade é nervosa, quase feminina e que, desse modo, se opõe aos espíritos despojados da capacidade</p><p>de despertar sensações visuais, auditivas e aromáticas. O esforço anterior em caracterizar o ser do Feio, por parte do sujeito, é a demonstração mais eloquente de tal sensibilidade,</p><p>porquanto ele só conseguiu isso, apelando para o imagismo, ao poetizar a linguagem, ao dar peso e densidade às palavras. Como num ritual encantatório, procurou evocar o Feio e</p><p>não propriamente caracterizá-lo de maneira objetiva.</p><p>Daí vem que, mais uma vez, acentuamos aqui a diluição da categoria dissertativa do discurso, em prol do poético, o que serve para caracterizar mais uma vez a essência da</p><p>prosa poética. Assim, o Feio transforma-se, ao longo do texto, e ainda que de modo paradoxal, numa categoria estética, que deve ser evocado pelo sujeito e que o inspira em suas</p><p>criações. Mas qual seria o quid do Feio, sua essencialidade? Para determinar isso, Cruz e Sousa apela para uma imagem construída por meio de um neologismo: “[...] outros</p><p>corações que te buscam, outros afetos que te procuram, perdem todo o calor, resfriam logo, inteiramente ficam gelados já diante da tangibilidade gwimplainesca da tua fealdade”</p><p>(2008, p. 315).</p><p>O substantivo abstrato “tangibilidade”, no seu aspecto mais simples, significa aquilo que tem “qualidade de tangível” e, no mais complexo, de acordo com o Dicionário</p><p>Michaelis, “grau de condensação do fluido perispiritual nas aparições, materializando-as e tornando-as palpáveis e tangíveis”. Esse significado mais amplo está ligado às teorias</p><p>espirituais do Espiritismo e implica, em seu sentido, a materialização dos espíritos. Cruz e Sousa, no caso, quer se referir à materialização da fealdade do feio, que se torna, como</p><p>os espíritos, tangível. Contudo, a manifestação da “tangibilidade” ocorre com o auxílio do adjetivo “gwimplainesca”. Este termo resulta, em seu radical, da transformação de um</p><p>substantivo próprio – “Gwynplain” – em comum, a que se acresce o sufixo “esco(a)”, que indica semelhança, qualidade. A composição do neologismo, obedece, pois, a um</p><p>princípio muito comum em língua portuguesa. Mas o importante é decifrar o sentido do radical para se entender a materialização de uma das manifestações do Feio, enquanto</p><p>categoria ontológica. Gwynplain é o nome da personagem principal do romance de Victor Hugo, O homem que ri, um jovem lorde, desfigurado no nascimento</p><p>pelos comprachicos, ciganos que mutilam crianças, para expô-las nos circos. Ele leva uma cicatriz que lhe atravessa toda a face e daí vem seu apelido de “o homem que ri”.</p><p>Tornado feio para que seja explorado como atração, o personagem, contudo, tem a alma pura e o coração generoso. Paradoxal em si, contraditório na sua essência, constitui o que</p><p>se poderia chamar de “bela feiura”.</p><p>Em consequência, o adjetivo derivado de seu nome caracteriza aquilo que é essencial ao Feio, enquanto categoria estética; algo que causa rejeição pela aparência, mas que</p><p>atrai por algo que possui interna e idealmente. Essa atração pelo feio por parte de Cruz e Sousa, todavia, não é novidade, porque, de certo modo, já comparecera no Barroco, sob a</p><p>forma do que se convencionou chamar de grotesco e é levado às últimas consequências com Baudelaire. No ensaio “Théophile Gautier”, o crítico e poeta francês escreveu o</p><p>seguinte: “É um dos privilégios prodigiosos da Arte que o horrível, artisticamente expresso, se transforma em beleza e que a dor ritmada e cadenciada preenche o espírito de uma</p><p>alegria calma” (1962, p. 682). Expressar o horrível pela arte conduz, paradoxalmente, ao Belo, de acordo com o autor de Les Fleurs du Mal, e isso está bem patente em sua obra.</p><p>Lembramos aqui, por exemplo, o poema “Une Charogne”, em que o sujeito descreve a carcaça de um animal, para que sirva de contraponto à imagem de vida, representada pela</p><p>amada que anda a seu lado:</p><p>Une Charogne</p><p>Rappelez-vous l’objet que nous vîmes, mon âme,</p><p>Ce</p><p>beau matin d’été si doux:</p><p>Au détour d’un sentier une charogne infâme</p><p>Sur un lit semé de cailloux,</p><p>Les jambes en l’air, comme une femme lubrique,</p><p>Brûlante et suant les poisons,</p><p>Ouvrait d’une façon nonchalante et cynique</p><p>Son ventre plein d’exhalaisons.</p><p>Le soleil rayonnait sur cette pourriture,</p><p>Comme afin de la cuire à point,</p><p>Et de rendre au centuple à la grande Nature</p><p>Tout ce qu’ensemble elle avait joint;</p><p>Et le ciel regardait la carcasse superbe</p><p>Comme une fleur s’épanouir.</p><p>La puanteur était si forte, que sur l’herbe</p><p>Vous crûtes vous évanouir.</p><p>Les mouches bourdonnaient sur ce ventre putride,</p><p>D’où sortaient de noirs bataillons</p><p>De larves, qui coulaient comme un épais liquide</p><p>Le long de ces vivants haillons.</p><p>[......................................................................]</p><p>- Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,</p><p>A cette horrible infection,</p><p>Etoile de mes yeux, soleil de ma nature,</p><p>Vous, mon ange et ma passion!</p><p>Oui! telle vous serez, ô la reine des grâces,</p><p>Après les derniers sacrements,</p><p>Quand vous irez sous l’herbe et les floraisons grasses,</p><p>Moisir parmi les ossements.</p><p>Alors, ô ma beauté, dites à la vermine</p><p>Qui vous mangera de baisers,</p><p>Que j’ai gardé la forme et l’essence divine</p><p>De mes amours décomposés!44 (BAUDELAIRE, 1961, p. 34-36).</p><p>Ao eleger como tema do poema a carcaça de um animal, além de querer fazer um contraponto com a imagem da amada, Baudelaire também eleva o objeto hediondo,</p><p>grotesco à condição de um motivo poético como outro qualquer, dando-lhe, portanto, a categoria de Belo.</p><p>Na tela de Rembrandt, mais abaixo, o grotesco barroco se torna explícito na carcaça do animal, tal como a carniça de Baudelaire, aberta, a mostrar ao observador aquilo que</p><p>ele não deseja ver, mas que é verdadeiro, real e que provoca algum tipo de comoção para poder ser um objeto de arte. Observe que, como é típico da estética barroca, o fundo</p><p>permanece na penumbra quase que absoluta, um foco de luz, mesmo que tênue, ilumina a carcaça aberta, presa numa espécie de trave, fazendo-a o centro das atenções, mesmo que</p><p>o espectador fuja a tal espetáculo de horror. O ambiente é lúgubre, um matadouro ou açougue:</p><p>Figura 1 – O Boi Esfolado, de Rembrandt (1655)</p><p>Fonte: .</p><p>Em sua época, a tela causou espanto e depois repúdio, à medida que o Neoclassicismo se aproximava, e os padrões de representação da beleza se iam modificando.</p><p>Modernamente, o assunto volta ao interesse, de maneira paródica, por pintores como Soutine, no movimento expressionista. Nesta tela, o Feio ganha ainda maior relevância pela</p><p>forte e expressiva pincelada e da cor alaranjada, que dão à cena sua máxima expressão do horror.</p><p>Figura 2 – A Carne de Vaca Esfolada, de Chaim Soutine (1925)</p><p>Fonte:</p><p>.</p><p>Mas por que artistas dos mais diversos elegem o Feio? A razão está no efeito que ele causa, bem diferente daquele causado pelo Belo, concebido pela tradição, que visava à</p><p>harmonia de formas, ao apolíneo, ao mundo luminoso e colorido. Em seu Escritos Íntimos, Baudelaire ainda acrescentou, a respeito do assunto: “Donde se segue que a</p><p>irregularidade, quer dizer, o inesperado, a surpresa, o espanto são uma parte essencial e a característica da beleza” (1982, p. 55). Em suma: o Belo convencional teria o poder de</p><p>anestesiar o ser humano, de provocar nele uma espécie de obnubilação mental, obscurecimento do espírito, do pensamento, impedindo-o de criar, de sentir em profundidade, de</p><p>alongar ao máximo as sensações.</p><p>Os decadentistas – os poetas e prosadores do final do século XIX – adotaram duas posturas paradoxais para combater a desumanização, provocada pela industrialização, pela</p><p>degradação das grandes cidades: o culto da Beleza refinada ou o irresistível prazer pela aristocracia da Feiura. De acordo com Umberto Eco, em História da Feiura,</p><p>a religiosidade à rebours dos decadentes toma o caminho do satanismo, com adesão a práticas de magia e evocação diabólica, [...] Corbière identifica-se na feiura</p><p>melancólica do sapo, Dostoievski fala do horror do rato, Baudelaire descreve o modelo de exaltação do repulsivo que é “Uma carniça”, Tarchetti escreve um elogio</p><p>da dentadura estragada, assim como Rimbaud experimenta frêmitos de prazer ao descrever as catadoras de piolhos. E, com Proust, podemos ler enfim sobre o</p><p>fascínio pela sublime aristocracia da feiura (2007, p. 352).</p><p>Algo equivalente acontece em Cruz e Sousa, pois o Feio que concebe atrai pela feiura em si, pelo desproporcional que, com seu horror, desperta o ser do letargo,</p><p>comovendo-o, mesmo que seja por meio dessa mesma fealdade:</p><p>Entretanto, eu gosto de ti, ó Feio! Porque és a escalpelante ironia da Formosura, a sombra da aurora da Carne, o luto da matéria dourada do sol, a cal fulgurante da</p><p>sátira sobre a ostentosa podridão da beleza pintada. Gosto de ti porque negas a infalível, a absoluta correção das Formas perfeitas e consagradas (2008, p. 315, grifos</p><p>nossos).</p><p>O Feio impõe-se por meio do contraste, criando oposição com o mundo luminoso em “escapelante ironia”, “sombra da aurora”, “o luto da matéria dourada do sol” e,</p><p>sobretudo, a pá de cal sobre a “ostentosa podridão da beleza pintada”. E mais ainda porque nega “a absoluta correção das Formas perfeitas”. Ora, são as “Formas perfeitas e</p><p>consagradas” as responsáveis pela anestesia do ser e pela limitação criativa.</p><p>A propósito da correção das formas, lembramos aqui um fragmento do romance O Quarto de Jacob, de Virginia Woolf:</p><p>- E os gregos, como homens sensatos, jamais se importaram em concluir a parte de trás das estátuas – disse Jacob, protegendo os olhos com a mão e observando que</p><p>o lado que não se enxerga era deixado em estado bruto. Notou a leve irregularidade das linhas dos degraus, que “o senso artístico dos gregos preferia a uma precisão</p><p>matemática”, dizia o livro-guia (1980, p. 172).</p><p>Já entre os gregos, deduz-se pelo fragmento, notava-se essa tendência em provocar o espectador pelo irregular e pelo repúdio da absoluta correção das formas.</p><p>Em Cruz Sousa, tal se dá pelo culto do disforme e do feio, agora, entendido, como a nova categoria estética. Só para finalizar este ensaio, trouxemos à luz duas telas, uma de</p><p>Alexandre Cabanel (1823-1889), em que há absoluta correção de formas, bem ao gosto da pintura acadêmica, e outra, de Edward Munch (1863-1944), em que o feio, o horrível</p><p>visa a provocar intensa comoção no contemplador. A tela do primeiro:</p><p>Figura 3 – Nascimento de Vênus, de Cabanel (1863)</p><p>Fonte: .</p><p>Vemos o esforço do artista em compor sua tela, apenas para proporcionar ao espectador o deleite do Belo. As formas arredondadas, a ausência de pelos pubianos e o tom</p><p>rosa suave da pele da Vênus, que paira sobre o oceano, e o movimento das ondas, harmoniosamente provocam uma sensação de calma. Cabanel causa um sentimento de pura</p><p>estesia, graças ao equilíbrio, à perfeição das formas, à beleza clássica da deusa, que se posiciona rente à água, cercada por anjinhos róseos, tendo ao fundo imagens de um céu</p><p>cristalino, a prometer as alegrias do Olimpo. Não é à toa que esta tela tenha provocado tanto frisson entre a burguesia e a nobreza dos meados do século XIX, a ponto de o</p><p>Imperador Napoleão III, que, se metendo a crítico de arte, tanto condenara os impressionistas, tê-la adquirida no Salão onde a tela havia sido exposta... Já Munch é aqui</p><p>representado pela seguinte tela:</p><p>Figura 4 – O Grito, de Munch (1893)</p><p>Fonte: .</p><p>A placidez das cores é substituída pelos tons escuros, sombrios, pela propositada deformação da paisagem, reduzida a alguns poucos elementos. Em vez de expressar deleite,</p><p>serenidade, a tela expressa a dor do personagem que é também deformado, fugindo, assim, aos padrões da mimese, tão cara aos</p><p>pintores tradicionais. Mais ainda, o sentimento de</p><p>dor acaba por se projetar para além da figura, contaminando todo o espaço circundante, que se torna igualmente doloroso, a lembrar Schopenhauer, para quem “viver é sofrer”. Em</p><p>suma, se se considerarem os padrões de mimese, de correção de formas, a tela de Munch seria considerada feia, enquanto a de Cabanel, bela, mas, se considerarmos os efeitos</p><p>sobre o espectador, estes valores se invertem. A primeira se dirige tão só ao prazer dos olhos, a segunda tem, além do apelo visual, um apelo musical, devido à imagem das ondas</p><p>coloridas que se propagam, em linhas concêntricas, a partir da boca da figura sofrida. Sendo assim, enquanto o pintor francês anestesia, não provocando nada em nosso ser</p><p>profundo, o pintor norueguês como que nos tira da letargia, com a imagem dessa dor que parece contaminar todo o universo. E isso não é pouco, se considerarmos que uma das</p><p>funções da arte é a de libertar o homem do marasmo, da mesmice, da letargia, causando-lhe forte comoção. Mesmo que seja por meio da deformação propositada do real, com a</p><p>assunção do Feio.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du Mal. Paris: Garnier, 1961.</p><p>______. Curiosithés Esthétiques, l’Art Romantique e Autres Oeuvres Critiques. Paris: Garnier, 1962.</p><p>______ . Escritos Íntimos. Lisboa: Editorial Estampa, 1982.</p><p>CRUZ E SOUSA, João da. Prosa, Obra Completa. Jaraguá do Sul: Avenida, 2008. 2.v.</p><p>Dicionário Michaelis. Disponível em: .</p><p>ECO, Umberto. História da Feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.</p><p>HUYSMANS, Joris Karl. Às Avessas. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1987.</p><p>MOISÉS, Massaud. A Criação Literária (Prosa II, 15. ed., rev. e aum.) São Paulo: Cultrix, 1997.</p><p>WOOLF, Virginia. O Quarto de Jacob. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.</p><p>Notas de Rodapé</p><p>20 Tradução nossa: “Em tradições esotéricas, o pavão é um símbolo de totalidade, em que une todas as cores sobre o leque de sua cauda aberta”.</p><p>21 José Francisco da Rocha Pombo nasceu na cidade de Morretes, Paraná, em 4 de dezembro de 1857. Distinguiu-se pela atividade jornalística, pelo ensino (foi</p><p>um dos fundadores da Universidade do Paraná). Como escritor, publicou importantes obras históricas, História da América (1900), História do Brasil</p><p>(1905-1917), História do Rio Grande do Norte (1922), e ficção: A Honra do Barão (1881), Visões, contos e poesia (1888), No Hospício (1905). Faleceu em</p><p>1933.</p><p>22 Emanuel Swedenborg (1688-1772), cientista, filósofo e teólogo sueco. Teve uma prolífica carreira como inventor e cientista. Em 1741, entrando numa fase</p><p>espiritual, começou a ter sonhos e visões que, segundo ele, lhe permitiram visitar o Céu e o Inferno e falar com anjos, demônios e outros espíritos. Sua obra</p><p>mais conhecida, De Coelo et de Inferno, onde registrou tais sonhos e visões, foi publicada em 1758.</p><p>23 Observe-se que apenas Fileto (do grego, Philetos, “digno de ser amado”, “amável”) e Alice (do grego Alethia, “a verdadeira, que não conhece a mentira”) têm</p><p>nomes com um sentido simbólico. Os outros nomes nada (ou pouco) acrescentam ao caráter simbólico do romance.</p><p>24 O personagem/narrador está se referindo, no caso, a Dante e a sua Divina Comédia.</p><p>25 Tradução nossa: “Eu quero dizer que é preciso ser vidente, fazer-se vidente. O Poeta se faz vidente através de um longo, imenso e racional desregramento</p><p>de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura a si próprio, extrai de si todos os venenos para guardar apenas as</p><p>quintessências. Inefável tortura, contra a qual necessita de toda a fé, de toda a força sobre-humana, através da qual se torna, dentre todos, o grande</p><p>enfermo, o grande criminoso, o grande maldito — e o supremo Sábio! — Pois atinge o desconhecido! Pois cultivou a alma, já rica, mais do que ninguém!</p><p>Atinge o incógnito e, quando, enlouquecido, acabar perdendo a inteligência das suas visões, já as terá visto!”.</p><p>26 Em seu soneto Correspondances, Baudelaire refere-se à floresta de símbolos, na qual, os vivos pilares, metáforas das árvores, lançam olhares familiares ao</p><p>homem que aí passa. Nessa floresta, ainda segundo o poeta, tudo se corresponde: “Comme de longs échos qui de loin se confondent/Dans une ténébreuse</p><p>et profonde unité,/Vaste comme la nuit et comme la clarté,/Les parfums, les couleurs et les sons se répondent” (1961, p. 13).</p><p>27 “O prazer é o meio mais certo de conhecimento que a Natureza nos oferece e... aquele que muito sofreu é menos sábio do que aquele que muito se alegrou”.</p><p>28 Um dos maiores representantes, no Brasil do quadrinho pornográfico foi o desenhista Carlos Zéfiro (Rio de Janeiro, 1921-1992). Pseudônimo do funcionário</p><p>público Alcides Aguiar Caminha, ilustrou mais de 500 trabalhos que eram vendidos em bancas. Usava pseudônimo devido à censura muito rigorosa da</p><p>época que podia comprometer o seu emprego.</p><p>29 Tradução nossa : « Diz-se em consequência que Orion [...] segue constantemente o escorpião”.</p><p>30 Tradução nossa: “o primeiro, ut arrigat, é a ereção; o segundo, ut va saemineum referet, é a penetração; e o terceiro e último, ut em vase seminet, é a</p><p>ejaculação”.</p><p>31 Tradução nossa” Sob o domínio planetário de Marte, bem como a de Plutão, o poder misterioso e inexorável das sombras, o inferno, a escuridão interior.</p><p>Estamos no coração do complexo sado-anal do freudismo”.</p><p>32 Ismond Rosen dá a entender que é possível o exibicionismo numa mesma família, por uma “predisposição constitucional” ou de base genética (1971, p. 344 e</p><p>349).</p><p>33 Tradução nossa : “(O narcisista) experimenta o prazer sexual ao olhar, acariciar e apalpar seu corpo até a gratificação completa [...]. Tais pacientes, que</p><p>proponho denominar parafrênicos, apresentam duas características fundamentais: sofrem de megalomania e extraem seu interesse do mundo externo</p><p>(pessoas e coisas).”</p><p>34 Tradução nossa: “A personificação dessas forças que permanecem virtualmente fora da órbita da consciência [...] “certas características infantis condizentes</p><p>com seu pequeno tamanho ””</p><p>35 O nome Déruchette é de um dos personagens de Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo. Segundo Walter Benjamin (2007, p. 735), o escritor francês,</p><p>enquanto escrevia seu livro, tinha diante de si uma boneca, que lhe serviu de modelo para o personagem.</p><p>36 Tradução nossa : “no fetichista [...] há uma correspondência notável entre a questão fundamental que visa à recusa (castração, a diferença dos sexos), no</p><p>centro do alvo, e um prazer sexual bem definido, convergindo para o objeto fetiche.“.</p><p>37 O título deste conto talvez seja uma paródia do título de um filme de Elio Petri – Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, produzido em</p><p>1970.</p><p>38 “O fetichismo do pé e do calçado feminino só parece se sustentar como um símbolo, um Ersatz do membro adorado do tempo da infância, e depois perdido”</p><p>(VALAS, 1994, p. 55).</p><p>39 A postura de Marcel Duchamp, enquanto jogador de xadrez na foto em pauta, é muito similar à dos jogadores de xadrez de um poema de Ricardo Reis, que</p><p>define esse jogo como o “dos grandes indif’rentes”, no sentido de que quando se entregam a esse artifício, alheiam-se completamente das fainas e dramas</p><p>da vida, (PESSOA, 1972, p. 267-269).</p><p>40 A respeito da grande contribuição de Yeats para a cultura, consultar a obra de Evans (1980, p. 141).</p><p>41 Tradução nossa: “Sob um dourado e fundo céu”.</p><p>42 Tradução nossa: “O grande e branco lírio do mundo”, “as pálidas estrelas”.</p><p>43 Tradução nossa: “Mas primeiro sente-se e descanse um pouco,/ Pois meus velhos pais serviram seus pais, senhora,/ Mais do que os livros podem dizer – e</p><p>foi estranho/ Se você e seus pais não fossem bem-vindos aqui”.</p><p>44 Tradução livre nossa: “Lembre-se do objeto que vimos, minha alma/Esta linda manhã de verão tão doce:/Na curva de um caminho, uma infame arniça/Em um</p><p>leito repleto de pedrinhas,//Pernas no ar, como uma mulher lasciva,/Queimando e suando os venenos,/Abria de maneira indiferente e cínica/Sua barriga</p><p>cheia de exalações.//O sol brilhou</p><p>nessa podridão/Como se para cozinhá-la com perfeição,/E para fazer cem vezes a grande natureza/Tudo o que ela</p><p>juntou;//E o céu olhava para a soberba carcaça/Como uma flor florescendo./O fedor era tão forte na grama/Que você acreditava que ia desmaiar.//Moscas</p><p>zumbiam nessa barriga pútrida,/De onde vinham os batalhões negros/De larvas, que fluíam como um líquido espesso/Ao longo desses trapos vivos. [...] – E</p><p>então assim você será como esse lixo,/ Nesta infecção horrível,/Estrela dos meus olhos, sol da minha natureza/ Você, meu anjo e minha paixão!//Sim! você</p><p>irá, ó rainha das graças,/Depois dos últimos sacramentos/ Quando você repousar sob a grama e as florações gordurosas,/ Moldar entre os ossos.//Então, oh</p><p>minha bela! Diga aos vermes/Quem vai comer seus beijos,/De Que guardei a forma e a essência divina/Do meus amores descompostos!”</p><p>45 Conforme Ernst Bloch, em o Princípio Esperança (2005).</p><p>46 Segundo Zumthor: Ser “moderno” é julgar homens e coisas em virtude do que eles têm ou do que lhes falta; é conhecer seus atributos a fim de domar-lhes o</p><p>uso. Ser “antigo” [...] é conhecer e julgar em virtude do ser e do nada. Pelo que concerne à poesia, a escritura parece moderna; a voz, antiga. Mas a voz</p><p>“moderniza-se” pouco a pouco: ela atestará um dia, em plena “sociedade do ter”, a permanência de uma “sociedade do ser”. (1993. p. 26).</p><p>47 Imaterialidade significa uma outra materialidade, pois existe sob uma forma codificada realizada pela organização de estados eletromagnéticos dos sinais de</p><p>0 e 1, comporta uma matriz virtual e potencial em memória que pode ser atual, visualizável por meio de transcodificadores. As mensagens imateriais não se</p><p>confundem com seus suportes, elas circulam através de múltiplos dispositivos.</p><p>48 O que nem sempre significa qualidade e adequação das novas produções dedicadas à juventude.</p><p>49 A leitura da literatura, a formação do leitor literário passa por mediações organizadas por adultos.</p><p>50 CUNHA, Maria Zilda. As matrizes de linguagem e pensamento na literatura Infantil e Juvenil: a tessitura dos signos em Ângela Lago e Octaviano Correia.</p><p>USP, 2002.</p><p>51 Sabemos, a invenção da escrita, e sua sofisticada maquinaria de combinatória alfabética, traz questões muito mais amplas, assunto que aqui não</p><p>discutiremos aqui, basta lembrar com Pierre Lévy (1996) que: “os modos de conhecimento teóricos e hermenêuticos passaram a prevalecer, impondo-se</p><p>“uma ecologia cognitiva largamente estruturada pela escrita (num suporte fixo)”,</p><p>52 Angela Lago – .</p><p>53 O termo é utilizado por Ítalo Calvino para designar o aspecto fragmentado do hiper-romance, que resulta no tema e no modelo.</p><p>54 Razoabilidade concreta é a denominação utilizada por Charles Sanders Pierce para uma razão em crescimento, uma razão criativa, que está sempre em</p><p>busca da verdade, uma verdade sempre movente.</p><p>55 Um processo cognitivo, que exige esforço de abstração e de interpretação, à medida que faz refletir sobre temas e situações da vida.</p><p>56 Macrossistema literário – cunhado por Abdala (2003) com base em Antonio Candido (1975) – deriva da compreensão de uma dinâmica que envolveu</p><p>historicamente constantes semelhantes da série ideológica. O macrossistema é marcado por um campo comum de contato entre sistemas literários</p><p>nacionais como os de língua portuguesa, que têm um passado comum e diferentes atualizações. Na atualização, engendra uma força dialética e, na</p><p>contramão, promove a convergência de tradição e ruptura. É um conceito operacional e estratégico politicamente (ABDALA, 2007).</p><p>57 “ Já nem sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do</p><p>corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia</p><p>escurecendo o resto do corpo. [...] Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agora é ver-me a não largar seja</p><p>quem for enquanto não me disser por que é que eles têm as palmas das mãos assim tão claras.[(...] Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os</p><p>pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgínia e demais não sei aonde. Já se vê que a</p><p>Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos desbotarem à força de tão lavadas” (HONWANA, 1972).</p><p>58 Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho. Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito</p><p>porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os</p><p>pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem</p><p>exatamente como as palmas das mãos dos outros homens.</p><p>E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem, é</p><p>apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem, é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem</p><p>qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão</p><p>graças a Deus por não serem pretos” (HONWANA, 1972).</p><p>59 Para Morin, um paradigma efetua a seleção e a determinação das operações lógicas, designa as categorias fundamentais da intelegibilidade e opera o</p><p>controle de seu emprego. Assim, os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles. (2003, p. 25).</p><p>O FANTÁSTICO E O DIALOGISMO EM ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, DE JOSÉ SARAMAGO</p><p>Eliane de Alcântara Teixeira</p><p>Um escritor contemporâneo como Saramago não se preocupa em realizar uma mimese do mundo, o que faz com que sua obra se aproxime da arte pictórica surrealista que</p><p>privilegiava contextos insólitos, “para apresentar a imagem onírica de um mundo dissociado e absurdo” (ROSENFELD, 1973, p. 76). O autor de Ensaio sobre a</p><p>Cegueira preocupa-se em criar mundos concebíveis apenas no nível da imaginação, mas impossíveis de existir empiricamente de acordo com nosso conhecimento de mundo. Isto</p><p>porque o escritor da modernidade prefere “a imaginação à experiência, o texto verbal ao contexto empírico” (FOKKEMA, s.d., p. 83), ao invés de criar uma literatura limitada</p><p>geográfica e socialmente. Se em Ensaio sobre a Cegueira notamos que de fato há uma “ênfase antiempírica na imaginação”, que caracteriza a literatura contemporânea, por outro</p><p>lado, o romance não pode ser considerado limitado nem geográfica, nem socialmente, porquanto pode ser interpretado genericamente como uma metáfora do mundo atual.</p><p>A nosso ver, Ensaio sobre a Cegueira é um romance que se utiliza do expediente da literatura fantástica, pelo inexplicável da situação que sustenta o enredo e pela forte</p><p>sensação de emparedamento que vai tomando conta de tudo. Num clima de absurdo, Saramago cria um romance que, de certo modo, se aproxima de experiências romanescas</p><p>visionárias, como 1984 e Revolução dos Bichos, de Orwell e Admirável Mundo Novo, de Huxley. Somente que, em vez de pintar o futuro apocalíptico, o escritor português situa a</p><p>ação no presente, numa época indeterminada, além de acenar com a esperança, redimindo parte de suas personagens. O enredo de Ensaio sobre a Cegueira é, portanto, constituído</p><p>a partir de uma situação insólita que, por sua vez, foi inspirada pelo checo Franz Kafka, como prova a fala de uma das personagens, o médico que diz a sua mulher: “Temo que</p><p>sejas como a testemunha que anda à procura do tribunal aonde a convocou não sabe quem e onde terá de declarar não sabe quê” (SARAMAGO, 1995, p. 283). O texto é uma</p><p>referência explícita ao romance kafkiano O Processo, ao acentuar o clima de absurdo que se instaura quando os cegos são confinados no hospício. Contudo, ainda que possamos</p><p>identificar um evidente diálogo entre Ensaio</p><p>uma resposta na ciência,</p><p>uma “causalidade satisfatória” para o enigma:</p><p>À noite, depois do jantar, disse à mulher, Apareceu-me no consultório um estranho caso, poderia tratar-se de uma variante da cegueira psíquica ou da amaurose, mas</p><p>não consta que tal coisa se tivesse verificado alguma vez, Que doenças são essas, a amaurose e a outra, perguntou a mulher. O médico deu uma explicação acessível</p><p>a um entendimento normal, que satisfez a curiosidade dela, depois foi buscar à estante os livros da especialidade, uns antigos, do tempo da faculdade, outros</p><p>recentes, alguns de publicação recentíssima, que ainda mal tivera tempo de estudar. Procurou nos índices, a seguir, metodicamente, pôs-se a 1er tudo o que ia</p><p>encontrando sobre a agnosia e a amaurose, com a impressão incômoda de saber-se intruso num domínio que não era o seu, o misterioso território da neurocirurgia,</p><p>acerca do qual não possuía mais do que umas luzes escassas (1995, p. 29).</p><p>O fragmento tem um caráter evidentemente irônico, na medida em que desmistifica o poder da ciência, impotente diante daquilo que não alcança o sentido. Mas não só isto,</p><p>o fragmento também ilustra a base da literatura fantástica, que, segundo José Paulo Paes, “sempre se preocupou mais em pôr em xeque o racional do que o real propriamente dito”</p><p>(1985, p. 189). Por outro lado, retomando Rabkin, sabemos que o fantástico, na realidade, implica não apenas um jogo com o medo, mas sobretudo “um jogo com a verdade”. Ou</p><p>seja, ao subverter a ordem do mundo natural, submisso às leis da lógica, do racional, procura revelar a “verdade”, oculta ao olhar desarmado. A esse respeito, Saramago,</p><p>em Ensaio sobre a Cegueira, ao se utilizar do insólito, deseja criar um momento de transição, representando o caos, mas aponta para a chegada de um novo mundo, simbolizado</p><p>pela saída dos cegos das trevas da cegueira. A situação caótica, absurda serve para revelar a autêntica cegueira das personagens: a alienação. Dessa maneira, o caos instalado é</p><p>instrumento de revelação e de depuração. Segundo o Dicionário de Símbolos, o</p><p>caos simboliza, originariamente, uma situação absolutamente anárquica, que precede a manifestação das formas e, no final, a decomposição de toda forma: uma</p><p>regressão no caminho da individualização (CHEVALIER ET GHEERBRANT, 1988, p. 183).</p><p>No romance, o caos representa o fim de uma idade sombria que será substituída por uma nova era luminosa e regenerada. Mas, para que o novo mundo seja possível, é</p><p>preciso que aconteçam coisas terríveis, hediondas – que reproduzem o começo do mundo e o eterno retorno, como mostra a seguinte passagem:</p><p>Regressamos à horda primitiva, disse o velho da venda preta, com a diferença de que não somos uns quantos milhares de homens e mulheres numa natureza imensa</p><p>e intacta, mas milhares de milhões num mundo descarnado e exaurido (SARAMAGO, 1985, p. 245).</p><p>Quando as mulheres têm que se entregar aos cegos malvados, o narrador sugere que vexames desse tipo não tinham “nada de novo”, pois “o mais certo é que o mundo”20</p><p>tivesse começado assim. Apesar das restrições que temos a Todorov, concordamos com este teórico quando ele diz que “o sobrenatural nasce frequentemente do fato de se tomar o</p><p>sentido figurado ao pé da letra” (1992, p. 85), pois é o exagero que leva ao sobrenatural. A narrativa fantástica toma ao pé da letra as expressões figuradas e correntes na</p><p>linguagem comum, mas que, desse modo, passam a designar um acontecimento sobrenatural, porque o sobrenatural nasce da linguagem. E como se Saramago tivesse tomado ao</p><p>pé da letra o adágio “pior cego é aquele que não quer ver” ou a afirmação de Alberto Caeiro de que “pensar é estar doente dos olhos”, para transformá-los no mote de seu romance.</p><p>Devido a isso, julgamos significativas as seguintes passagens:</p><p>Parece-me que estou a ver, era melhor ser prudente, nem todos os casos são iguais, costuma-se dizer que não há cegueira, mas cegos, quando a experiência dos</p><p>tempos não tem feito outra coisa que dizer-nos que não há cegos, mas cegueiras.</p><p>Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem (1985, p. 308 e 310).</p><p>Ao transformar grande parte dos personagens do romance em cegos, o autor também parece tomar ao pé da letra as duas definições do vocábulo, de acordo com o Dicionário</p><p>Aurélio: “1. privado da vista; 2. que impede a reflexão, o raciocínio; que perturba o julgamento, oblitera a razão” (1986, p. 377). Este vocábulo, contudo, de uma perspectiva</p><p>simbólica, pode significar “aquele que ignora as aparências enganadoras do mundo e, graças a isso, tem o privilégio de conhecer sua realidade secreta [...] proibida ao comum dos</p><p>mortais” (CHEVALIER ET GHEERBRANT, 1988, p. 217), ou aquele que ignora a realidade das coisas. Saramago constrói a maioria das personagens com base na segunda</p><p>definição, mas reserva ao velho da venda preta e à mulher do médico a primeira definição, como prova a seguinte passagem: “Cada vez irei vendo menos, mesmo que não perca a</p><p>vista torna-me-ei mais e mais cega cada dia porque não terei quem me veja” (1995, p. 302).</p><p>Cabe acrescentar ainda que a cegueira nos velhos também simboliza a sabedoria do ancião que consegue, ao renunciar à visão das coisas exteriores, penetrar no interior do</p><p>ser, à semelhança da figura do cego para a cultura oriental. É o caso da personagem do velho da venda preta, cuja experiência é fundamental para orientar os cegos com seus</p><p>conselhos. Outra característica do texto fantástico presente em Ensaio sobre a Cegueira está ligada à redução da onisciência do narrador. Limitando o campo de visão do narrador,</p><p>Saramago acaba por “emprestar a mesma inconsistência ao real e ao sobrenatural para justamente desenhar o que não é” (BESSIÈRE, 1974, p. 58), aumentando com isso a</p><p>perplexidade do leitor. Essa humanização do narrador faz que aconteça uma identificação entre ele e o leitor, de maneira que ambos sejam levados a procurar uma explicação</p><p>racional para os fatos insólitos. Percebemos que não há nenhuma lógica nos acontecimentos e ficamos mais preocupados com a estranheza do que está sendo narrado do que com o</p><p>seu significado. Instaura-se um jogo entre o autor, o narrador e o leitor, que contribui para a dinamização do texto. Ainda conforme Todorov, experimentamos essa sensação</p><p>porque “a percepção do sobrenatural lança uma sombra espessa sobre o próprio sobrenatural e nos dificulta o acesso a ele” (1992, p. 86), ou seja, a percepção encobre mais do que</p><p>revela.</p><p>O fantástico também se apresenta em Ensaio sobre a Cegueira através do recurso do dialogismo, o que explica o desejo de Saramago de expandir “o passado no presente”</p><p>(HASSAN, 1990, p. 21). Voltando os olhos para o passado, o autor português revisita autores que, como ele, se utilizaram do insólito e revisita artistas clássicos, promovendo uma</p><p>subversão de seus códigos, visando a causar o efeito do estranhamento. Em suma, o romancista vai ao passado, para dialogar com o “mundo dos textos e intertextos”, conforme</p><p>observa Linda Hutcheon:</p><p>Não se trata de um retorno ao mundo da “realidade ordinária”, como afirmaram alguns; o “mundo” em- que esses textos se situam é o “mundo” do discurso, o</p><p>“mundo” dos textos e dos intertextos. Esse “mundo” tem um vínculo direto com o mundo da realidade empírica, mas não é, em si, essa realidade empírica</p><p>(HUTCHEON, 1991, p. 164-165).</p><p>A visita aos textos ou autores do passado dá-se principalmente através de dois procedimentos estilísticos aparentados entre si, mas distintos no modo de operar a relação com</p><p>um modelo a ser retomado. Esses procedimentos são a paráfrase e a paródia. A paráfrase respeita o sentido do texto no qual se procura inspiração, ou seja, diz com palavras</p><p>diferentes as mesmas coisas ditas pelo seu modelo. A paródia vai além; subvertendo o texto-mãe, vira-o de cabeça para baixo e geralmente lhe acrescenta uma boa pitada de</p><p>humor, que serve para acentuar o distanciamento crítico. A paródia é um estágio amadurecido da paráfrase, é o estágio final de intertextualidade, um grau em que o autor cria um</p><p>universo novo a partir do</p><p>velho, com normas e padrões próprios, ou seja, a paródia é “repetição com distância crítica que marca a diferença em vez da semelhança” (HUTCHEON,</p><p>1989, p. 17). Acentuando a diferença entre paráfrase e paródia, Affonso Romano de Sant’Anna afirma o seguinte:</p><p>Do lado da ideologia dominante, a paráfrase é uma continuidade. Do lado da contra-ideologia, a paródia é uma descontinuidade. [...] Falar da paródia é falar de</p><p>intertextualidade das diferenças. Falar da paráfrase é falar de intertextualidade das semelhanças (SANT’ANNA, 1991, p. 28).</p><p>Como se verifica, a diferença entre ambas está no grau de deformação da ideia do texto original que o autor quer alcançar. E isso nos permite dizer, recorrendo mais uma vez</p><p>a Affonso Romano de Sant’Anna, que “a paráfrase surge como um desvio mínimo [...] e a paródia como um desvio total” (Ibidem, p. 38), isto é, a diferença entre ambos os</p><p>procedimentos se fundamenta numa questão de intensidade.</p><p>Ensaio sobre a Cegueira dialoga com a tradição, usando os dois procedimentos acima e estabelecendo a relação de intertextualidade com autores consagrados da literatura,</p><p>como veremos a seguir. A fonte de inspiração de Ensaio sobre a Cegueira talvez seja o conto fantástico de H. G. Wells “The Country of the Blind”, embora as narrativas sigam</p><p>por caminhos diversos, no que diz respeito à cosmovisão de cada escritor. O ponto em comum entre os textos é a ideia de um mundo em que as pessoas são afligidas pela cegueira,</p><p>e a cegueira parece constituir-se numa norma. Além disso, em ambas as obras há uma única personagem que se distingue das demais por não estar cega: a mulher do médico</p><p>oftalmologista e Nunez, que confirmam aparentemente o ditado “em terra de cegos quem tem um olho é rei”. A personagem de Wells, em sua soberba, lembrando-se do provérbio,</p><p>pensa em autoproclamar-se monarca, devido à superioridade sobre o povo cego. A personagem de Saramago, devido a sua consciência e solidariedade com o próximo, rejeita o</p><p>ideal de rainha: “Vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos, não sou rainha, não, sou simplesmente a que nasceu para ver o horror, vocês</p><p>sentem-no, eu sinto-o e vejo-o (1995, p. 262). Uma outra ideia que parece ser comum a ambos os escritores é a tentação que as duas personagens sentem de participar do mundo</p><p>dos cegos: Nunez, devido ao amor que sente por Medina-saroté; a mulher do médico por querer livrar-se do fardo da responsabilidade: “Aguentarei enquanto puder, mas é verdade</p><p>que as forças já me estão a faltar, às vezes dou por mim a querer ser cega para tornar-me igual aos outros, para não ter mais obrigações do que eles” (Ibidem, p. 293). Por fim,</p><p>tanto Wells quanto Saramago defendem a ideia de que a sabedoria resulta de um desenvolvimento de um sexto sentido. Nunez vem a saber que os cegos, mesmo desprovidos de</p><p>visão, “enxergam”:</p><p>Seus sentidos tornaram-se maravilhosamente acurados; eles poderiam ouvir e julgar o mais leve gesto de um homem a uma distância de doze passos – poderiam</p><p>ouvir até a batida do seu coração (WELLS, 1967, p. 116).</p><p>O médico oftalmologista, por sua vez, reflete que a visão provém verdadeiramente do interior: “Quem sabe, o médico sorriu sem querer, na verdade os olhos não são mais do</p><p>que umas lentes, umas objectivas, o cérebro é que realmente vê, tal como na película a imagem aparece” (SARAMAGO, 1995, p. 70). Nesse paralelo, entre o escritor inglês e o</p><p>português, contudo, verifica-se que há diferenças fundamentais. Wells cria uma parábola irônica, pois a perfeição está com os cegos e não com os que veem, ou ainda, o problema</p><p>da cegueira é uma questão complexa, porque relativa: quem se acostumou a não ver, considera como normal não ter olhos e, anormal, ser provido de tais órgãos; já, em Saramago,</p><p>a cegueira é sinônimo de alienação, de purgação dos pecados. Portanto, a paródia nasce desse desvio promovido pelo autor de Memorial do Convento sobre o modelo concebido</p><p>por H. G. Wells.</p><p>Também se pode traçar um paralelo entre o Ensaio sobre a Cegueira e três outras obras (as duas primeiras pertencentes ao gênero fantástico e a última, ao do maravilhoso e</p><p>do sobrenatural), através do procedimento da paráfrase ou da paródia: O Processo, de Franz Kafka, A Revolução dos Bichos, de George Orwell e A Divina Comédia, de Dante</p><p>Alighieri. Kafka é visitado numa paráfrase (já citada anteriormente em nosso trabalho e retomada aqui para se estudar o fenômeno do dialogismo) que remete obviamente ao clima</p><p>de absurdo que se instaura em toda a obra: “Temo que sejas como a testemunha que anda à procura do tribunal aonde a convocou não sabe quem e onde terá de declarar não sabe</p><p>quê, disse o médico” (SARAMAGO, 1995, p. 283). E possível verificar que o desvio em relação à obra original é mínimo, pois Saramago resume o conteúdo da obra de Kafka,</p><p>mais especificamente o ponto que serve de motivo para todo o drama de K, ou seja, a instância de absurdo que passa a viver.</p><p>Conforme Hauser, a peculiaridade de Kafka reside cm retratar a existência real de uma maneira cruel para mostrar o homem esmagado pelo sistema: “Kafka não descreve</p><p>fantasmagorías nem relata recordações de sonhos. O que descreve é a existência real, vivida desperta e de maneira imediata, por mais impenetrável, inexplicável e absurda que</p><p>esta existência seja” (1969, p. 248). Saramago, de modo semelhante, recria a mesma atmosfera claustrofóbica, em que as personagens são inseridas, também vítimas de um</p><p>sistema burocrático idêntico ao de K. As personagens de ambos os romances veem-se envolvidas numa situação sem saída e sem explicação, que lhes determina de modo</p><p>inexorável a vida.</p><p>O procedimento adotado em relação às outras obras é diferente, já que, ao invés da paráfrase, impera a paródia. Assim, é possível estabelecer uma analogia entre o livro e</p><p>a Revolução dos Bichos de George Orwell, analogia esta que nos ocorreu em função do comportamento dos cegos malvados, que parece reproduzir parodicamente o</p><p>comportamento tirânico dos porcos sobre os demais animais da Granja dos Bichos de Orwell, ao afirmarem que “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais</p><p>do que outros” (s.d., p. 57). As quinze instruções governamentais, que são pronunciadas diariamente pelo alto-falante do manicômio, assemelham-se aos sete mandamentos que</p><p>resumiam os princípios do Animalismo, pois tanto estes como aqueles constituiriam a lei inalterável pela qual os cegos e os bichos, sem questionar, deveriam reger para sempre</p><p>suas vidas, a partir daquele instante. Essas regras mostram a distância que há entre dominadores e dominados. Se na obra de Orwell o exercício da tirania leva à antropomorfização</p><p>dos porcos, em Ensaio sobre a Cegueira ocorre justamente o contrário (o que serve para lhe acentuar o caráter paródico): a tirania leva à zoomorfização dos cegos, que são</p><p>descritos com palavras e expressões usadas para caracterizar os animais (“uns quantos cegos a avançarem de gatas, de cara rente ao chão como suínos”; “o cego desgarrado não se</p><p>atrevia a mover-se donde estava”; “os cegos puseram-se à espera de que regressassem ao rebanho as cabras tresmalhadas”; “vão ali como carneiros ao matadouro, balindo como de</p><p>costume, um pouco apertados, é certo, mas essa sempre foi a sua maneira de viver, pelo com pelo, bafo com bafo, cheiro com cheiro”; “tentavam proteger-se escoicinhando”;</p><p>“toparam-se no meio do caminho, os dedos com os dedos, como duas formigas que deveriam reconhecer-se pelos manejos das antenas”). A atitude das autoridades</p><p>governamentais que desprezam o princípio de que “a lei quando nasce é para todos e que a democracia é incompatível com tratamentos de favor” (SARAMAGO, 1995, p. 105,</p><p>106, 109, 112, 113, 120, 160 também se aproxima da atitude de Napoleão, o porco que chefiava a Granja dos Bichos.</p><p>Fora essa remissão paródica a uma obra de caráter eminentemente político, Animal Farm, Saramago visita Dante, cujo poema, A Divina Comédia, pertence ao gênero do</p><p>fantástico, em sua vertente mais acentuada, compondo o que Todorov denomina de “maravilhoso puro” (1970, p. 156). Segundo Rabkin,</p><p>do</p><p>“prazer”, ainda mais quando o prazer não visa ao fim procriador e tem um fim em si mesmo, como costumava acontecer entre os poetas licenciosos da Grécia e Roma antigas e</p><p>os licenciosos do século XVIII. Retomar a prática da poesia erótica, sensual, libertina tem como escopo investir na liberdade do homem e na sua contestação dos</p><p>procedimentos comportamentais que sempre visaram, de certo modo, à sua castração, à sua emasculação.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>BATAILLE, Georges. Las Lágrimas de Eros. Barcelona: Tusquets Editores, 1981.</p><p>CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. 7. ed., São Paulo: Cultrix, 1988.</p><p>DUMOULIÉ, Camille. O Desejo. Petrópolis: Vozes, 2005.</p><p>JUNG, C. G. Métamorphoses de l’Âme et Ses Symboles. Genêve: Librairie de l’Université, 1967.</p><p>PAES, José Paulo. “Erotismo e Poesia”. Poesia Erótica em Tradução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.</p><p>PAGLIA, Camile. Personas Sexuais. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.</p><p>TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. 3. ed., São Paulo: Perspectiva, 2008.</p><p>A LÓGICA DO DELÍRIO</p><p>Álvaro Cardoso Gomes</p><p>É verdade sem mentira, certo e muito verdadeiro. O que está embaixo é como o que está em cima; e o que está em cima é como o que está embaixo, para realizar os</p><p>milagres de uma coisa única.</p><p>Hermes Trismegisto, Tabula Smaragdina.</p><p>Correspondências, do escritor catarinense Péricles Prade, é um livro conciso, econômico, mas rico em sugestões, acentuando as mais incisivas características da ficção</p><p>poético-onírica do autor catarinense, na medida em que mergulha de maneira categórica no mundo do fantástico, do pleno desvairo, da magia. Imagens nascidas do delírio</p><p>articulam-se em textos, via de regra, marcados pelo poético e que, por isso mesmo, desembocam em mistérios desafiadores, que podem ser decodificados, ou, ao contrário, podem</p><p>permanecer em sua condição de código indecifrável, como se o mistério valesse como uma iluminação oculta por detrás de um véu, cuja função seria a de entreabrir, aos olhos dos</p><p>curiosos, a porta de um universo fora do comum, só acessível a iniciados. Péricles Prade cria narrativas, cujos nexos são fundados em sutis analogias, e os enigmas que nascem</p><p>disso implicam, para o seu entendimento, a utilização de uma lógica que, longe de ser a cartesiana ou científica, configura-se como próxima daquela utilizada pelo homem</p><p>primitivo e, de maneira geral, pelos místicos, ocultistas e poetas. Tal modo de pensar,</p><p>cargado de una fuerte suma de elementos emocionales, razona la mayor parte de las veces, al margen de la contradicción, la comparación, la clasificación y los</p><p>análisis previos. Se halla aprisionado en lo que Ribot denomina “lógica de la vida afectiva” o “lógica de los sentimientos” en contraposición a la lógica clásica o</p><p>racional (AZCUY, 1966, p. 34).2</p><p>Pensamos aqui, nos apropriando, em parte, da feliz expressão-título do livro de Remo Bodei3, numa “lógica do delírio”, que é usada para compor narrativas cerradas,</p><p>sibilinas, com múltiplas articulações e analogias, remetendo a textos de outros autores, as mais das vezes, tão sibilinos quanto os que inspiraram.</p><p>Mais adiante, retornamos a essa questão crucial, que explica o modus operandi desta ficção tão peculiar que, não raro, perde suas prerrogativas de narrativa e ganha sua</p><p>condição de poema em prosa, ao abolir o enredo e investir de maneira maciça na imagem e no mundo inefável da magia.</p><p>1. Intertextos: referências, paráfrases, paródias</p><p>Como é de praxe na ficção de Péricles Prade, algumas de suas narrativas podem ser consideradas como intertextos, no sentido de que dialogam com outros textos. Isso</p><p>acontece pelo fato de o autor tentar extrair de obras de outrem – sejam ficcionais ou não –, um motivo, inspiração para a criação de um novo texto ou um parâmetro para ser</p><p>contestado, comentado de maneira crítica e/ou parodiado num texto iluminador. Nos casos mais simples, acontecem apenas referências, citações, mas, em casos mais complexos,</p><p>acontece a exploração de fragmentos de textos, de imagens, que acabam por serem glosados, parafraseados, parodiados. Quanto às referências e citações, elas são muitas e</p><p>pontuam a maioria das narrativas. Lembramos, de passagem, as lições de Edson Ubaldo, autor de Vinho: um presente dos deuses, em “Esconderijo”, a menção de uma passagem</p><p>sobre uma mulher vendedora de ventos colhida em Historia de la Magia de François Ribadeau Dumas. Mas é nos contos “Hipnotizador”, “Vocação” e “Bicicletas” que essa</p><p>técnica atinge seu ponto máximo. No primeiro deles, Péricles Prade, concentrando-se na temática do relógio, remete o leitor a um grande número de nomes de figuras históricas,</p><p>como Georges Schneeberger, famoso relojoeiro, Jobst Burgi (1552-1632), inventor do pêndulo, Mestre Pontormo (1494-1557), pintor maneirista, a quem se imputou a criação do</p><p>relógio de bolso, Peter Henlein (1480-1542), serralheiro, o verdadeiro criador do relógio de bolso e, sobretudo, o famoso polímata, Athanasius Kircher4, responsável por um sem</p><p>número de invenções, entre elas, um misto de clepsidra e relógio solar. Esse referencial todo de caráter histórico está a serviço do fantástico, que intervém no corpo da narrativa,</p><p>no instante em que um velho de aspecto tenebroso e descendente do polígrafo citado acima, irrompe na loja do protagonista, em busca de um relógio maléfico, capaz de hipnotizar</p><p>as pessoas e induzi-las ao assassinato. Para evitar maiores acidentes, o estranho visitante “assassina” a marteladas o aparelho e carrega consigo suas engrenagens.</p><p>Em “Vocação”, o acúmulo de referências está a serviço da ilustração da caminhada de um jovem – pontuada por várias opções – até atingir a sua totalidade. A vocação é</p><p>uma disposição natural e espontânea que orienta uma pessoa em suas escolhas na vida; difere, portanto, da eleição de um caminho, feita a partir de uma vontade expressa. Numa</p><p>primeira instância, a personagem deseja ser apenas um “adestrador de porcos”, mas, chamado às falas pelo pai furioso, sai à procura de outro trabalho que o distinguisse.</p><p>Interessa-se, então, pelas virtudes de uma varinha mágica, capaz de detectar, debaixo da terra, água pura, metais e carvão. O fracasso no uso desse instrumento de magia se dá</p><p>porque “talvez o prodígio seja de seu manipulador, só dela, ou de ambos, ligados por inexplicável cumplicidade” (PRADE, 2009, p. 47). A outra tentativa de encontrar seu próprio</p><p>caminho está no desejo de se tornar um tatuador, mas, ao tatuar o ventre de uma mulher com a imagem do “anel de Salomão”, para que o filho dela frutifique, acaba por falhar,</p><p>porque, “em vez de desenhar o anel de Salomão de forma abreviada”, faz isso por inteiro. Sua próxima escolha está em se tornar um tarólogo, mas falha de novo, por ser incapaz</p><p>de interpretar os arcanos menores. A personagem só encontrará seu caminho, ao ser orientado por uma cigana, “discípula predileta do bonzo Pho Satu”, e ao ser “inspirado pelo</p><p>instinto”. Torna-se então um encantador de serpentes e assim atinge seu sucesso e fama.</p><p>O que chama, pois, a atenção nessa narrativa é a ideia de que não é o indivíduo que escolhe seu destino, mas, sim, o destino que lhe determina o caminho a seguir. O homem</p><p>transforma-se, desse modo, num médium de si mesmo, só se realizando de maneira plena quando, em vez de tentar fazer escolhas, que traiam seu modo de ser, deixa-se dominar</p><p>por forças que o ultrapassam e que explicam seu lugar no mundo, não por uma lógica causal, mas por uma lógica fundada no instinto, na intuição. Sendo assim, o homem age do</p><p>mesmo modo que a “vírgula divina”, como era conhecida a varinha mágica, que se movimenta, levada por algo inexplicável por vias racionais. É isso que faz que o narrador feche</p><p>o conto dizendo que “procurei e encontrei a verdadeira vocação. Meu pai intuiu, e não sabia que ele e eu somos descendentes do Xeique Mussa, integrante de uma célebre família</p><p>de encantadores de serpentes” (PRADE, 2009, p. 50).</p><p>Quanto ao método de composição, “Vocação” acentua sua vocação intertextual, ao realizar pequenas incisões em diferentes obras dedicadas à magia e que fazem parte do</p><p>acervo do autor, como</p><p>O maravilhoso não se confunde com o fantástico porquanto pertence a um mundo imaginário que, por convencional, já não causa surpresa ao leitor, o qual lhe aceita</p><p>naturalmente os prodígios, ao passo que o fantástico, por ocorrer no seio do próprio cotidiano, afeta-o e põe em dúvida o nosso mesmo conceito de realidade (Apud</p><p>PAES, 1985, p. 186-186).</p><p>A Divina Comédia é um poema alegórico que tem por base a doutrina cristã; como tal, se serve de figuras, situações e imagens do mundo mítico cristão, que são de caráter</p><p>prodigioso: demônios, anjos, o Inferno, o Limbo, os mortos que penam nos círculos do Inferno etc. Sem contar que Dante realiza uma viagem pelo mundo maravilhoso,</p><p>percorrendo o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, na companhia de Virgílio e Beatriz. Esse poema, portanto, constitui uma obra simbólica que condena os homens que perderam a</p><p>Fé; ao mesmo tempo, contudo, como não poderia deixar de ser, a obra aponta para uma rota da redenção, através da Graça Divina, alcançada através de uma religião renovada.</p><p>Segundo Erich Auerbach:</p><p>A lição dessa alegoria está exposta com clareza e paixão em muitas paisagens do poema, que dá exemplos de corrupção na terra. O mundo está desconjuntado, o</p><p>equilíbrio ordenado por Deus foi violado. [...] As paixões do homem estão desencadeadas, e o resultado é a guerra e a confusão. [...] A anarquia e a corrupção</p><p>rivalizam uma com a outra, e a Itália, mestra das nações, se tornou um bordello, um navio à deriva, sem timoneiro (1997, p. 154-155).</p><p>Esse mundo caótico e desordenado em que Dante viveu e do qual se utiliza para fazer sua crítica é um mundo muito similar ao da atualidade. Tal qual naquela época, no</p><p>mundo moderno, vive-se a mesma corrupção, ganância e uma total inversão de valores. Sendo assim, Saramago, de certa maneira, parodia A divina comédia para fazer sua crítica,</p><p>mas sua intenção, ao contrário da do poeta italiano, não é atacar a Igreja corrupta, nem sobrevalorizar a doutrina cristã. Seu romance, de caráter eminentemente profano, está</p><p>centrado no homem e na sua desumanização, no “tempo presente, nos homens presentes, a vida presente” drummondiano. Todavia, não podemos esquecer que o romancista cria a</p><p>mesma atmosfera de angústia e provação, com cenas tão ou mais horripilantes que as de A Divina Comédia, para que, através da pena e do castigo, suas personagens cheguem a</p><p>um estágio de purificação capaz de transformá-las em novos homens e, dessa maneira, comecem um novo mundo, livre dos vícios e chagas do anterior. E mais especificamente na</p><p>parte que diz respeito ao Inferno e suas imagens que Saramago cria sua paródia da obra de Dante. Na obra do poeta italiano, temos a organização do mundo infernal em vários</p><p>círculos, onde os pecadores se dividiam em categorias e onde as penas variavam de acordo com a gravidade do delito. Guiado por Virgílio, que assim o fazia a pedido de Beatriz,</p><p>Dante assiste aos terrores do Inferno com medo e asco, e, no sexto círculo, confessa sentir a maior náusea, devido ao odor pestilento que vem das profundezas:</p><p>À borda de vastíssimo talude, por grãos blocos de pedra conformado, chegamos a cenário inda mais rude:</p><p>E ali, pelo ar tolhidos, empestado, que da profundidade se exalava, paramos junto ao esquife desolado (1979, p. 193).</p><p>Esses círculos assemelham-se bastante às camaratas do hospício dos cegos, que Saramago descreveu no livro: seres que se arrastam, a atmosfera pestilenta, os mortos em</p><p>decomposição, os choros e gemidos de homens e mulheres desesperados na “treva branca”. A disposição labiríntica dos cômodos no manicômio parece-se com a das camadas do</p><p>inferno dantesco:</p><p>Ao mesmo tempo que ia arrastando a mala, a mulher guiava o marido para a camarata que se encontrava mais perto da entrada. Era comprida como uma enfermaria</p><p>antiga, com duas filas de camas que tinham sido pintadas de cinzento, mas donde a tinta já há muito começara a cair. As cobertas, os lençóis e as mantas eram da</p><p>mesma cor. A mulher levou o marido para o fundo da camarata, fê-lo sentar-se em uma das camas, e disse-lhe, Não saias daqui, vou ver como é isto. Havia mais</p><p>camaratas, corredores longos e estreitos, gabinetes que deviam ter sido de médicos, sentinas encardidas, uma cozinha que ainda não perdera o cheiro de má comida,</p><p>um grande refeitório com mesas de tampos forrados de zinco, três celas acolchoadas até à altura de dois metros e forradas de cortiça daí para cima. Por trás do</p><p>edifício havia uma cerca abandonada, com árvores mal cuidadas, os troncos davam a ideia de terem sido esfolados. Por toda a parte, se via lixo (1995, p. 47).</p><p>Com o passar do tempo, as camaratas e demais dependências do prédio vão ficando cada vez mais sujas, uma vez que os cegos não as podem limpar, pois não veem a</p><p>sujeira, apenas sentem o mau cheiro. O espaço determina as personagens e não o contrário; presas ao determinismo do cenário, elas se sentem impotentes, enlouquecidas e se</p><p>desumanizam cada vez mais. Há, portanto, uma homologia entre o caos do espaço e a loucura das personagens, nesse particular, lembrando em tudo os círculos do Inferno de</p><p>Dante, onde cada pecador é confinado, de acordo com a gravidade de seus pecados:</p><p>São três camaratas de cada lado, há que ver é como é isto cá dentro, uns vãos de portas tão estreitos que mais parecem gargalos, uns corredores tão loucos como os</p><p>outros ocupantes da casa, começam não se sabe porquê, acabam não se sabe onde, e não chega a saber-se o que querem (Ibidem, p. 112).</p><p>A atmosfera de gemidos de dor e desconforto do romance é em tudo semelhante à da atmosfera de danação do Inferno de A Divina Comédia:</p><p>Em Saramago:</p><p>Aqui vão uns que choram, outros que gritam de medo ou de raiva, outros que praguejam, algum soltou uma ameaça terrível e inútil (Ibidem).</p><p>Em Dante,</p><p>Ali, suspiros, queixas e lamentos cruzavam-se pelo ar, na escuridão, fazendo-me tremer por uns momentos.</p><p>Línguas estranhas, gíria em profusão, exclamações de dor, acentos de ira, gritos, rangidos e bater de mão (1979, p. 121).</p><p>Em ambas as obras, é possível observar também que a situação de desespero e sofrimento vai se agravando com o passar da ação: n’A Divina Comédia, no nono e último</p><p>círculo, alguns condenados fervem em sangue, outros, transformados em árvores, são destroçados por cães. Em Ensaio sobre a Cegueira, acontece algo similar, pois os cegos</p><p>malvados (que equivaleriam aos demônios do inferno) exploram os mais fracos, retêm a comida e estupram as mulheres em cenas horrendas (e por que não dantescas?), além de</p><p>que, no final, o manicômio desaparece engolido por um grande incêndio.</p><p>Se Saramago parodia o Inferno e seus horrores, para representar uma espécie de danação e purgação de uma espécie de “pecado” das personagens, similarmente a Dante,</p><p>também aponta para uma espécie de redenção, em virtude do fato de que ainda acredita no homem. Assim, por exemplo, a mulher do médico, que guia seu grupo dentro e fora do</p><p>manicômio, faz lembrar em tudo a figura virtuosa de Beatriz. Não bastasse isso, no final do romance, Saramago recria parodicamente a chegada ao Paraíso:</p><p>Foi portanto a uma espécie de paraíso que chegaram os sete peregrinos, e tão forte foi esta impressão, a que, sem demasiada ofensa do rigor do termo, poderíamos</p><p>chamar transcendental, que se detiveram à entrada, como tolhidos pelo inesperado cheiro da casa (1995, p. 257).</p><p>Ironicamente, o paraíso não passa de uma simples casa, como se, no mundo moderno, as pessoas perdessem qualquer tipo de transcendência ou de redenção celeste (ao</p><p>contrário do que acontece em Dante). Depois de passar pelos horrores infernais, os pobres cegos sonham apenas com a imagem de um lar, onde possam encontrar conforto, abrigo.</p><p>Desse modo, a transcendência, referida pelo narrador, reduz-se, torna-se relativa, como paródia que é da verdadeira e absoluta transcendência atingida por Dante no último canto</p><p>de sua “comédia”:</p><p>Ó suma luz, que ali me transcendias o conceito mortal, dá-me somente um sinal do esplendor em que fulgias, e torna a minha voz ora potente por que um vislumbre</p><p>ao menos de tal gloria possa eu deixar à porvindoura</p><p>podemos apontar: as referências à varinha mágica advêm de História da Magia II, de autoria de Kurt Seligmann; as referências à tatuagem, às artes do</p><p>Tarô, ao encantamento de serpentes e às figuras do bonzo Pho Satu e do Xeique Mussa provieram de A Magia, de Maurice Bouisson. Isso implica que, neste ponto da análise, se</p><p>deva discutir a questão da originalidade, herança romântica, abalada pela arte iconoclasta dos modernistas. Lembramos de Picasso e Bracque que, propositada e ironicamente,</p><p>procuravam tornar indiferenciados os próprios estilos, em algumas de suas telas cubistas, levando os críticos a lhe confundirem as telas. Os autores pós-modernos não se</p><p>envergonham de se apropriar do material alheio, para criar um novo objeto artístico, como fizeram os dadaístas, por exemplo, que montavam suas telas e esculturas, reciclando</p><p>material já preexistente e compondo colagens. Essa técnica de composição é conhecida como “técnica de apropriação”. De acordo com Affonso Romano de Sant’Anna:</p><p>A técnica da apropriação, modernamente, chegou à literatura através das artes plásticas. Principalmente pelas experiências dadaístas, a partir de 1916. Identifica-se</p><p>com a colagem: a reunião de materiais diversos encontráveis no cotidiano para a confecção de um objeto artístico (1991, p. 43).</p><p>Prade, ao reunir material proveniente de várias fontes, acentua este seu lado pós-moderno, pois se verifica, em sua ficção, a alteração do conceito de originalidade que não se</p><p>encontra na recriação parafrástica de cada citação isolada, mas na conjugação delas para a criação de nova realidade ficcional. O que dá liga a tão distintas referências seria o que</p><p>podemos chamar de afetividade e/ou identificação anímica entre o autor e as referências. Essa ligação afetiva de Péricles Prade com textos eruditos sobre a magia, sobre o vinho,</p><p>sobre a invenção do relógio, que se deve a sua capacidade intelectual de coser citações, lembra, em parte, a dos enciclopedistas do século XVIII, contudo, o autor, em vez de</p><p>acumular referências, visando a organizar lúcida e orgânicamente o mundo, funde-as e interfere nelas, para criar um mundo imaginário, em que os elementos se ligam por</p><p>analogia.</p><p>Mas o princípio de acúmulo de fontes é similar, o que me permite relacionar Prade à figura do “curioso”, esboçada por Baudelaire, emCuriosités Esthétiques, l’Art</p><p>Romantique et Autres Oeuvres Critiques. Para o poeta de Les Fleurs du Mal, o homem moderno, atraído pelos vários aspectos do mundo contemporâneo, que lhe oferece o</p><p>alimento necessário para a sua alma sedenta do novo, é um “eu insaciável do não-eu que, a cada instante, o exprime em imagens mais vivas que a própria vida, sempre instável e</p><p>fugidia”. Nesse homem, a “curiosidade pode ser considerada como o ponto de partida de seu gênio” (grifo do autor), tornando-se assim “uma paixão fatal, irresistível”. Ainda:</p><p>esse homem, devido à curiosidade, volta a ser criança, pois recupera, “sem que o queira, a infância dotada agora, para se expressar de órgãos viris e do espírito analítico que lhe</p><p>permite ordenar a soma de materiais involuntariamente amontoada” (BAUDELAIRE, 1962, p. 464, 461 e 462). É o que ocorre nesse conto tão recheado de referências, somente</p><p>que Prade, em vez de agir sobre a realidade em si, com a atenção chamada para os múltiplos aspectos do mundo, tem sua atenção chamada para os múltiplos aspectos de textos,</p><p>que compõem uma espécie de cânon muito particular seu – o da magia, o do ocultismo. A curiosidade infantil faz com que ele se torne um autêntico coletor e colecionador de</p><p>imagens que, organizadas dentro de um contexto especial, servem para extrair uma compreensão diferente, inquietante, do mundo.</p><p>Em “Bicicletas”, as referências comparecem sob a forma do diálogo do autor com imagens, de modo mais especifico, as das artes plásticas e da fotografia, o que serve para</p><p>ilustrar aqui o uso da técnica da ekphrasis. Esse recurso, de origem remota, “inicialmente designava a descrição em geral, mas logo passou a ser empregado também no sentido</p><p>específico de descrição de uma obra de arte” (MOISÉS, 2004, p. 214), sendo, assim, considerado “mais como uma mimese da cultura do que uma mimese da natureza” (CASSIN</p><p>apud MOISÉS, 2004, p. 136). É o que acontece em “Bicicletas”, narrativa que, a par do fictício do enredo, viaja por obras reais, criadas por artistas plásticos e um fotógrafo do</p><p>início do século XIX. O conto trata da obsessão de um homem por bicicletas – “coisa mental, única, sem possibilidade de mudança de foco” (PRADE, 2009, p. 47) – e da crítica</p><p>aos que tentam explicar sua “paranoia” apenas como resultado de influências estéticas. Num primeiro momento, a personagem investe contra a ideia de que sua moléstia havia</p><p>sido suscitada pela Roda de Bicicleta (1913), de autoria de Marcel Duchamp (1887-1968).</p><p>Antes de entender a razão da crítica a esta interpretação distorcida de sua paranoia, valeria a pena discorrer sobre a arte peculiar de Duchamp. Um dos mentores do</p><p>Dadaísmo, movimento vanguardista europeu do início do século XX, o artista francês foi o criador daquilo que se convencionou chamar de ready-made, que consistia em</p><p>promover “o objeto ordinário, produzido em massa, à obra de arte” (ADES, 1976, p. 7). Os dadaístas investiam contra um conceito de Belo estratificado, a priori concebido, cuja</p><p>beleza provinha, entre outras coisas, do material utilizado, diferente, pela qualidade e nobreza, dos objetos do cotidiano banal. Partindo do princípio de que era preciso voltar às</p><p>costas a um conceito de arte ultrapassado, que levava à acomodação, à mesmice e, assim, romper com o hábito, os adeptos de Dadá utilizavam-se de materiais nada nobres –</p><p>pedaços velhos de madeira, recortes de jornal, ferro, papel –, colhidos ao acaso nas ruas ou abandonados nos sótãos e porões, para compor suas obras. Duchamp foi além desse</p><p>procedimento, pois chegou ao ponto de exibir, em exposições, um vaso sanitário e também prosaicos cabides. Seu intento era o de promover os objetos comuns a obras de arte, no</p><p>instante em que lhes tirava a utilidade. É o que acontece com Roda de Bicicleta: prendendo a roda de ponta-cabeça num banquinho, Duchamp altera o modo de ser da peça do</p><p>veículo, ao lhe anular o movimento. Em consequência, a roda de bicicleta perde sua prerrogativa de roda de veículo e torna-se uma outra coisa, a ser observada numa exposição ou</p><p>num museu com olhos diferentes do que seria observada no cotidiano.</p><p>Na sequência, a personagem investe contra outros produtos artísticos – tendo sempre como motivo a bicicleta – que seriam imputados como responsáveis por sua obsessão: a</p><p>escultura Cabeça de Touro (1942), de Picasso (1881-1973), e a Bicicleta de Beuys (1984), de autoria do artista performático Joseph Beuys (1921-1986). A escultura do artista</p><p>catalão, que “satisfez apenas aos amantes da tauromaquia” (PRADE, 2009, p. 27), não só condena de novo o veículo à imobilidade, ao prender parte dele numa parede, como</p><p>também lhe desvirtua a função, ao transformá-lo em outra coisa, uma cabeça de touro. O princípio dadaísta é o mesmo: acolher um material ordinário, sem nobreza, uma simples</p><p>sucata, mas o resultado é diferenciado, porque Picasso imprime um caráter mimético ao seu objeto, mostrando que, um simples selim e um guidão, de acordo com nova</p><p>arrumação, podem ter semelhança com um touro, aliás, um de seus motivos artísticos prediletos. Por essas razões – o efeito da imobilidade e a transformação de partes da bicicleta</p><p>–, é que a personagem afasta a possibilidade de a obra de Picasso ter determinado sua suposta paranoia. Quanto a Beuys, seu objeto estético compõe-se de uma bicicleta,</p><p>representada em sua totalidade, que conta, atrás de si, com uma série de círculos e traços, pintados sobre uma superfície plana, representando hipotéticos caminhos. Beuys investiu</p><p>no que se convencionou chamar de vehicle-art, no sentido de que “parte para a ação, dinamiza o objeto, libera sua energia térmica” (BORER, 2001, p. 22, grifos do autor). Essa</p><p>bicicleta mental igualmente será rejeitada como fonte propiciadora da obsessão da</p><p>personagem, devido a “sua pedagógica, lendária e messiânica pretensão” (PRADE, 2009, p. 28).</p><p>Ao cabo, não aceita conceber nenhuma dessas obras de arte como geratriz de sua obsessão, porque desvirtuam as funções da bicicleta, motivo de sua paixão, que, aliás, vem</p><p>descrita no seguinte fragmento:</p><p>A verdadeira paixão é a própria bicicleta, inteira, de uso diário, objeto útil e estético. Acho intolerável que alguém, mesmo sendo artista famoso, se aproprie de sua</p><p>forma, tanto na totalidade, quanto em parte. Ela vale, pouco importa o modelo, pela beleza dos componentes e pelos diastólicos impulsos do movimento. Enfim, por</p><p>si só, como deslumbrante ser físico (Ibidem, grifos nossos).</p><p>O que obsessivamente ama, portanto, é a ideia da bicicleta em si, ou ainda, a bicicleticidade desse objeto móbil, presente em sua utilidade como veículo e alterada pela arte</p><p>iconoclasta que, ao lhe tirar o caráter útil, tira-lhe também o movimento ou apenas lhe dá um movimento metafísico, como acontece com a de Beuys. Vem daí que a personagem –</p><p>um apaixonado colecionador de bicicletas –, ao não ser contemplado com uma bicicleta em seu aniversário dos 25 anos, resolve furtar uma, a fim de não se tornar “violento”. Para</p><p>se acalmar ou para canalizar a obsessão psíquica, interfere numa fotografia do fotógrafo Harlingue-Viollet, que registra uma pessoa andando de bicicleta. O que chama a atenção é</p><p>o fato de o autor de novo usar de um recurso que lhe é muito caro, a ekphrasis, mas se concentrando agora numa foto, que constitui, devido a sua especificidade artística, uma</p><p>reprodução mimética do real:</p><p>Ele andava com o olhar fixo no provável horizonte, sem revelar distração, movimentando os pés com segurança, o esquerdo embaixo e o direito em cima, cuja</p><p>cabeça, enfeitada por um bigode ralo, emoldurada pela postura heráldica, cobria a metade do portão de uma casa antiga com a janela maior de asas abertas (PRADE,</p><p>2009, p. 28-29).</p><p>A pessoa assim descrita é Alfred Jarry que, em 1896, comprou uma bicicleta, mas não a pagou. A foto registra o momento em que o escritor seguia pela rua Laval, em Paris.</p><p>A revelação de sua identidade acontece por meio do Dr. Faustroll, personagem da obra Gestes e Opinions du Docteur Faustroll, Pataphysicien, de autoria do próprio Jarry:</p><p>“semana passada, ao compulsar o álbum fotográfico de Harlingue-Viollet, no consultório do Dr. Faustroll, o sábio cientista me informou, soluçando, que a bicicleta furtada era de</p><p>um tal de Alfred Jarry, seu protetor, abatido pela tuberculose parisiense em 1909” (PRADE, 2009, p. 29). A personagem, saindo à procura de uma bicicleta, para satisfazer o seu</p><p>desejo doentio, entra foto adentro e acaba por seguir Jarry pela rua e, quando este a estaciona, aproveita para furtá-la. O poeta do absurdo é invocado porque toda a situação é</p><p>absurda: a intromissão física da personagem numa fotografia, a subversão do tempo, a criatura criada falando do seu criador, a menção indireta do provérbio “ladrão que rouba</p><p>ladrão”, para justificar uma obsessão. É só no momento em que a personagem, desprezando as explicações artísticas de sua moléstia mental, faz esse recorte no tempo e furta a</p><p>bicicleta real, é que poderá dar vazão a seu desejo: o de pedalar, até a exaustão, numa bicicleta real.</p><p>Mas, nesta altura, uma questão fundamental se coloca: por que a bicicleta? Por que não um veículo como um carro, também desvirtuado esteticamente por artistas, entre eles,</p><p>o próprio Beuys? Pelo fato de a bicicleta implicar uma relação harmoniosa entre ela e seu condutor, implicar verdadeira correspondência entre ambos, já que o movimento de um</p><p>está atrelado ao de outro e que a noção de equilíbrio só se dá pela sinergia que se opera entre quem conduz e quem é conduzido, a ponto de não se saber quem é ativo ou passivo</p><p>na ação. Esse princípio de integração perfeita entre um homem e um sistema também é visto no conto “Engrenagem”, cujo personagem, entrando num relógio suíço, registra,</p><p>“afora a matemática nitidez dos sons emitidos [...], a agradável sensação de fazer parte desta extraordinária engrenagem musical” (PRADE, 2009, p. 22). É possível, portanto, ver,</p><p>nessa integração uma analogia com a integração cósmica que o homem sempre almejou. Não é à toa que, de posse da bicicleta que furtou, a personagem pedala num local que se</p><p>lhe assemelha a uma “Catedral de muros fechados” –, ou seja, pedalar uma bicicleta, mais do que um ato mecânico, é um ato religioso, porque integrar o homem a um sistema</p><p>mecânico, uma bicicleta, no caso, seria equivalente a (re)ligá-lo ao Cosmo.</p><p>Mas há momentos em que Péricles Prade, em vez de se utilizar da referência e/ou citação ou do diálogo distanciado com outros textos, deixa de ser um simples coletor, ao se</p><p>utilizar do recurso mais criativo da paráfrase e da paródia. Chamamos a atenção para duas narrativas bastante emblemáticas, em que ele dialoga com textos de outros autores de</p><p>uma maneira mais incisiva: “Esconderijo” e “Arapongas”. No primeiro, Péricles Prade toma como ponto de partida as vicissitudes de Martinho Lutero, quando tentado pelo</p><p>demônio, vicissitudes essas registradas no já citado livro de François Ribadeau Dumas. O método de Prade para realizar essa operação transfiguradora é determinado pela paródia</p><p>de determinadas passagens de caráter histórico, com o fito de lhes dar um matiz ficcional. A paródia representa a intensificação de um processo de estilização em relação à</p><p>paráfrase, que é simples glosa, imitação de um modelo. Portanto, enquanto esta se apoia no efeito da continuidade ou “intertextualidade das semelhanças”, aquela se apoia no</p><p>efeito da descontinuidade ou na “intertextualidade das diferenças” (SANT’ANNA, 1991, p. 10), ou ainda na “repetição com distância crítica, que marca a diferença em vez da</p><p>semelhança” (HUTCHEON, 1989, p. 17). Neste caso, não é difícil verificar que Péricles Prade interfere no texto original, de maneira a transformar o que seria verdadeiro, ou</p><p>presumivelmente verdadeiro, em verossímil. Em suma: o autor substitui o que é, prerrogativa do texto histórico, pelo que poderia ser, prerrogativa do texto ficcional. Resulta disso</p><p>que, enquanto aquele visa ao geral, este, ao particular, conforme as palavras de Aristóteles:</p><p>É claro, também, pelo que atrás ficou dito, que a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam acontecer, possíveis no ponto</p><p>de vista da verossimilhança ou da necessidade.</p><p>Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a obra de Heródoto podia ser metrificada; não seria menos uma história com o metro do que sem</p><p>ele; a diferença está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos os quais podiam acontecer. Por isso, a Poesia encerra mais filosofia e elevação do que a</p><p>História; aquela enuncia verdades gerais; esta relata fatos particulares (ARISTÓTELES, 1981, p. 28).</p><p>É o que se nota, ao se cotejarem os fragmentos de texto de Ribadeau Dumas com os do conto “Esconderijo” de Prade:</p><p>1) Ribadeau Dumas:</p><p>Lutero acreditava no Diabo. Conhecia-o, recebia suas visitas. Falava constantemente com ele.</p><p>Com efeito, o Reformador, em sua cela do convento de Wittemberg, era presa de visões, de êxtases, , e amiúde se queixava dos ataques do Demônio [...].</p><p>[............................................................................................................]</p><p>Lutero contou que uma noite veio o Demônio remover o saco de nozes que lhe haviam dado e que, muito impaciente, gritou: ¡Vai embora já! O Diabo não soltou a</p><p>presa. Então, o Diaboa se transformou em mosca e zumbiu ao redor da cabeça de Lutero. Exasperado, este pegou o tinteiro e o jogou contra o inseto (DUMAS,</p><p>1989, p. 229).</p><p>2) Péricles Prade, “Esconderijo”:</p><p>Após atormentar Martinho Lutero, horas a fio, no Convento de Wittemberg, ora travestido de mulher, ora transformado em mosca, carregando bolsa cheia de nozes,</p><p>o diabo, ainda com manchas de tinta nos chifres, causadas pelo tinteiro do sacerdote, jogado contra ele e que se espatifou na parede, abandonou a cela, às</p><p>gargalhadas, rumo ao clube dos degustadores de vinhos Bourgogne</p><p>(PRADE, 2009, p. 4).</p><p>O texto do historiador compreende dois momentos, relatados por um narrador onisciente em terceira pessoa, que se mantém distanciado, interferindo o mínimo possível no</p><p>que conta. A primeira parte, dissertativa, presente nos dois primeiros parágrafos, explica um fenômeno fora do natural; a segunda, presente no terceiro parágrafo, tem um caráter</p><p>mais narrativo; por isso mesmo, constitui uma cena, ao registrar incidentes protagonizados por Lutero e pelo demônio. Para tanto, o historiador filtra o testemunho de outrem, que</p><p>é o próprio sujeito da tentação. Esse fenômeno místico não é desmentido, pois Dumas, com seu narrador distanciado, atribui o fato a uma questão de crença – “Lutero</p><p>acreditava...” – e, mais ainda, procura levar o leitor a acreditar que isso seja o resultado de “visões” e “êxtases” de Lutero.</p><p>Já em “Esconderijo”, o narrador, também em terceira pessoa, vê a tentação como um fato consumado, dispensando, portanto, ao contrário de Dumas, o testemunho do</p><p>Reformador ou quaisquer explicações lógicas e/ou analíticas do fenômeno. Devido a isso, o tom dissertativo ausenta-se, e a cena é estruturada para tratar do particular, ou seja, das</p><p>relações muito próximas entre duas personagens, que digladiam entre si – Lutero e o diabo. Ao parodiar o texto de Dumas, Prade ao mesmo tempo em que funde várias</p><p>informações retiradas de Historia de la Magia, acrescenta detalhes imaginativos e mesmo cômicos, como “travestido de mulher”, “manchas de tinta nos chifres”, o tinteiro</p><p>espatifado na parede, as “gargalhadas”. Cria-se assim um efeito de intimidade, de proximidade entre as personagens e o leitor. Por outro lado, o relato feito por Lutero, que é</p><p>verdadeiro, pois tem o apoio documental, transmuda-se num relato fantástico, mas verossímil. O verdadeiro impõe-se, no texto do historiador, não no plano do ocorrido, mas no</p><p>plano das palavras, que procuram registrar o testemunho de Lutero tal qual ele nos legou. Já em Prade, não interessa o testemunho de Lutero e nem mesmo a interpretação que se</p><p>faz dele, interessa o acontecimento em si – a luta entre um homem e o demônio.</p><p>Mas vale também referir que acontece aqui um deslocamento, ou seja: Lutero, de personagem principal no texto de Dumas, torna-se personagem secundária no texto de</p><p>Prade. A personagem principal, na narrativa, agora é o diabo. Ocorre, assim, um desvirtuamento, próprio da paródia, porquanto interessam menos as lutas do Reformador contra as</p><p>tentações e sua instauração da Reforma do que as aventuras de um diabo irreverente. É isso que leva o narrador, na sequência, a interferir na narrativa, dizendo: “o diabo, pelo</p><p>menos o desta história, é um apaixonado pelas excelsas virtudes da uva” (PRADE, 2009, p. 4, grifos nossos). Com esse comentário, não só se torna cúmplice do leitor, como</p><p>também dará um tom bem pessoal à narrativa, que, abandonando qualquer traço de historicismo, adentra o campo específico da literatura fantástica. É como se, na realidade,</p><p>Péricles Prade procedesse a um recorte no próprio título da obra de Dumas – Historia de la Magia –, interessando-se e fixando-se tão-só na parte final do sintagma – Magia. E é</p><p>de magia que esta narrativa trata, pois o diabo, deixando Lutero, irá frequentar um clube de enólogos e, depois, se esconder dentro da rolha de uma garrafa de um vinho muito</p><p>especial. Devido a sua intensa ligação com a bebida – não só “é um apaixonado pelas excelsas virtudes da uva”, como também foi o responsável pela “colocação de 36 jarras de</p><p>vinho” junto à múmia de Tutankâmon –, não seria difícil ligá-lo ao deus grego Dionisos, cuja relação com a bebida e o mundo infernal é conhecida desde a Antiguidade:</p><p>Pour avoir retiré des Enfers sa mère Sémélé, foudroyée par Zeus, et l’avoir introduire au séjour des Immortels, Dionysos était aussi consideré comme un libérateur</p><p>de Enfers, dieu cthonien [...]. Au sens le plus profondément religieux, le culte dionysiaque, en dépit de ses pervertions et même à travers elles, témoigne du violent</p><p>effort de l’humanité pour rompre la barrière qui la sépare du divin (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1973, p. 199, grifos do autor).5</p><p>Mas, a essa altura, uma questão já deve estar inquietando o leitor, que se perguntaria: qual seria o nexo entre a primeira e a segunda parte do conto? Ainda: o que há de</p><p>comum entre a tentação de Lutero e a participação do demônio na confraria dos enólogos? A perplexidade tem sua razão de ser porque ocorre neste conto um fenômeno muito</p><p>similar ao que ocorre nos sonhos, nos delírios, ou seja, um salto brusco entre o fato de o demônio divertir-se com a tentação imposta a Lutero e, na sequência, deixá-lo, para se</p><p>entregar a uma prática profana predileta – a degustação dionisíaca de vinho. Como a acentuar este salto, na segunda parte da narrativa, faz-se apenas uma pequena referência</p><p>àquilo que serviu de ponto de partida para toda a narrativa: a tentação do Reformador. Impõe-se, pois, ao exegeta, desafiado pelo enigma criado por Prade, uma interpretação</p><p>analógica do conto, já que uma interpretação lógica do nexo entre o fenômeno da tentação e a história da confraria não conduz a parte alguma. A ligação entre o diabo e Dionisos,</p><p>referida antes, talvez pudesse fornecer uma pista para a interpretação de “Esconderijo”, na medida em que o conto trata tanto da questão das tentações, das perversões, quanto da</p><p>arte de degustar o vinho.</p><p>Neste sentido, é possível afirmar que, devido a seus excessos, a sua perversão – a tentação de Lutero servindo de exemplo –, o demônio estimula em si as virtudes criativas,</p><p>ao participar de uma confraria de enólogos, ao se mostrar um experto no assunto, pois sabe “tudo sobre a vinha, sua origem, cultivo, história, evolução, elaboração, classificação e</p><p>apresentação do vinho, mormente quanto aos procedimentos da garrafa à mesa”. Sem contar que “ninguém, melhor do que ele, manuseia os utensílios indispensáveis à arte de bem</p><p>servir e beber”. Mas não só isso: ao se esconder dentro da rolha, para não ser flagrado, por ter chegado com três horas de antecedência à reunião, será morto pelo Presidente da</p><p>confraria, quando este abre a garrafa, transfixando-lhe o corpo. O resultado dessa manobra infeliz: “minúsculos filamentos de miolos” do diabo flutuarão no copo e, com certeza,</p><p>serão degustados pelos membros da confraria. A imagem final é muito clara: o diabo transformar-se-á, por ironia do destino, no espírito do vinho, isto é, torna-se o responsável</p><p>pelos efeitos embriagadores da bebida. Em suma: o enredo trata não só de um incidente numa confraria, mas também de uma dissertação sobre as artes de degustar a bebida criada</p><p>por Dionisos.</p><p>“Arapongas” é outra narrativa de Prade que dialoga intertextualmente com um texto da tradição – um poema de Edward Lear (1812-1888), autor de, entre outros livros, A</p><p>Book of Nonsense (1846):</p><p>There was an Old Man on whose nose,</p><p>Most birds of the air could repose;</p><p>But they all flew away</p><p>At the closing of day,</p><p>Which relieved that Old Man and his nose (2003, p. 45).6</p><p>O texto em questão é um limerick, cuja forma, de origem folclórica, compreende cinco versos rimados entre si. De maneira geral de caráter obsceno, esse tipo de composição</p><p>visava à transgressão, à violação de tabus. Quando não pornográfico, prestava-se ao puro nonsense, devido a seu caráter absurdo, como é o caso do poema de Lear. Segundo</p><p>Myriam Ávila, “é importante saber que esse tipo de versinho muito popular, de características marcadamente subliterárias, é, em sua origem, uma forma de poesia convivível,</p><p>provavelmente acompanhada de uma melodia” e “considerado pelos aficionados uma piada ritmada, é imprescindível que o limerick apresente uma ponte no último verso,</p><p>provocando o riso” (1996, p. 65). O limerick de Edward Lear insere-se numa longa série de poemas que têm por personagem sempre um tipo identificado pela metonímia “Old</p><p>Man”. A menção à idade provecta do sujeito talvez sirva para lhe acentuar a paciência, a resignação. Sendo assim, o nonsenseestá presente não só na dimensão do nariz do</p><p>indivíduo, que lhe permite servir de poleiro de pássaros,</p><p>como também em sua passividade e aceitação do inexorável.</p><p>Parodiando Lear, Prade escreve uma narrativa em vez de um poema, investindo no absurdo da situação – o nariz como poleiro do pássaro. Acentua esse absurdo, pois os</p><p>indefinidos “pássaros do ar” do limerick tornam-se mais específicos, ao serem identificados com “sete arapongas, em aérea fila indiana”, que pousam no nariz da personagem. Esta</p><p>ave, própria de países tropicais, impressiona pelo extravagante colorido da plumagem, pela estridência do grasnido (“as vozes metálicas”) e pelo tamanho, o que serve para</p><p>acentuar ainda mais o grotesco da situação. Também chama a atenção na paródia de Prade o fato de a personagem, ao contrário da do poema de Lear, tentar reagir ao</p><p>acontecimento insólito, inventariando possíveis soluções para o incômodo, pois ora pensa em matar as aves, por meio de atiradores e de afogamento, ora em apelar para uma</p><p>solução religiosa, evocando São Francisco de Assis. Outra diferença fundamental entre o texto parodiado e a paródia reside na “explicação” do fenômeno, ausente no limerick e</p><p>presente na narrativa de Prade, embora a decifração do enigma do contista implique outra cifra, porquanto envereda pelo misticismo adentro. Como em “Vocação”, a revelação do</p><p>fenômeno não se dá por vias lógicas e nem mesmo se opera na esfera do próprio sujeito, pois acontece a intervenção de uma pessoa muito especial, no caso, “Lázara Dodgson,</p><p>prima ilegítima de Edward Lear”.7 O adjetivo “ilegítima” é uma ironia, no sentido de ela ser uma parenta do autor do limerick, inventada pela imaginação criadora de Prade. Sua</p><p>importância aqui é fundamental: sendo uma vidente, interpreta o fenômeno das arapongas de uma perspectiva mística e, ao mesmo tempo, faz que a personagem possa se sentir</p><p>feliz com seu aparente infortúnio; segundo ela, as aves são, “nada mais nada menos, do que reencarnações seculares do alquimista Jakob Boehme, morto no século XVII aos 49</p><p>anos de idade” (PRADE, 2009, p. 19).</p><p>Essa figura quase mítica, que viveu nos fins do século XVI e início do XVII (1575-1624), devido a suas visões, a sua dialética religiosa, exerceu forte influência nos</p><p>românticos, entre eles, Schelling, Novalis, Tieck, Coleridge, Shelley. Vítima de perseguição implacável dos luteranos, afinal, seus livros foram considerados heréticos, Boehme</p><p>insistia no princípio de uma nova revelação, desse modo, inferindo que as explicações dos principais arcanos das relações entre o mundo visível e invisível, feitas por várias obras</p><p>reveladoras, eram insuficientes:</p><p>A razão irá falhar, quando vir termos pagãos e palavras usadas na explicação das Coisas Naturais; supostamente deveríamos usar somente Frases das Escrituras (ou</p><p>palavras emprestadas da Bíblia); mas tais Palavras não irão se aplicar ou se ajustar sempre à fundamental Explicação das Propriedades da Natureza, nem o Homem</p><p>pode expressar o Plano da natureza com elas; além disso, os Sábios Pagãos e Judeus esconderam o profundo Plano da Natureza sob tais Palavras por terem</p><p>compreendido bem que este Conhecimento não é para todos, mas pertence somente àqueles que Deus, pela natureza, escolheu para</p><p>isso (, p. 6 e 7, grifos nossos).</p><p>http://ebook/ChaveBoehme 1.htm</p><p>Como se pode notar, Boehme desmistifica as palavras do Evangelho e institui em seu lugar outra palavra, esta ditada pela divindade a um eleito que é ele próprio. A</p><p>revelação do místico tem como base a concepção de algo que denomina de Mysterium Magnum ou Caos, espaço onde convivem</p><p>o bem e o mal [...], a Luz e as Trevas, Vida e Morte, Alegria e Tristeza, Salvação e Condenação [...], a região das almas, Anjos e de toda a Criatura Eterna, tanto boa</p><p>quanto má; é a região do céu e do inferno, também do mundo visível e de tudo que nele se encontra (, p. 10 e 11).</p><p>Esse material informe será trabalhado pela vontade de Deus, do mesmo modo que um artesão esculpe e modela um pedaço de madeira, dentro do qual já se encontra</p><p>repousando, escondida, uma imagem. A Natureza nada mais é, portanto, que uma ferramenta ou instrumento de Deus que, nela, habita, para operar suas transformações. Ainda:</p><p>devido a isso é que o místico compreenderá que o mundo natural está em constante evolução criativa e, ao ser animado pelo sopro divino, forma, junto com suas sete propriedades,</p><p>um todo harmonioso, cujas partes sempre estão dialogando entre si, como coisa viva. Se o conto de Prade termina com a reverência da personagem às aves, que são a reencarnação</p><p>de Boehme, não explorando aspectos de sua doutrina mística, isso não impede que se considerem as reflexões acima de suma importância, porque elas têm íntima relação com a</p><p>teoria das correspondências, a serem examinadas logo adiante neste ensaio e que constituem o núcleo da cosmovisão de Prade, explicando assim as analogias, os nexos causais de</p><p>todo o livro.</p><p>2. As analogias, as correspondências</p><p>Essa relação intertextual entre as narrativas de Prade e outros textos insere-se dentro de uma concepção de mundo muito complexa que explica o diálogo do autor com outros</p><p>autores e, sobretudo, a tentativa de ele manter um fecundo diálogo com tudo que existe, de modo a estabelecer uma ponte de significância entre as coisas existentes. É assim que</p><p>chamo a atenção aqui para outra faceta fundamental de sua ficção – a das analogias, a das correspondências. De início, para ilustrar esse ponto, trazemos à cena uma de suas</p><p>narrativas, intitulada “Correspondência”, na qual, se ilustra como é que o autor vê o mundo e as relações ocultas por detrás do véu da incompreensão ou do primado da razão</p><p>cartesiana:</p><p>Sendo físico nuclear, convenceu-se de que nada adiantaria resolver o problema científico, sem, antes, declinar todos os verbos latinos (sem exceção, portanto), a</p><p>pedido do ex-mestre Eliphas Flamel de Souza.8</p><p>Assim, o fez, passando anos e anos a conjugá-los. Terminado o trabalho, quis estabelecer alguma correspondência, mudando a ordem dos verbos para facilitar o</p><p>exercício de natureza linguística.</p><p>Afinal, era físico. E um físico nuclear jamais abandona a esperança (PRADE, 2009, p. 30).</p><p>Uma primeira leitura da narrativa aponta para o eterno problema da formação educacional, na modernidade, em que acontece a separação abissal entre as áreas das Ciências</p><p>e das Humanidades. De maneira geral, os que optam pela primeira deixam de lado as prerrogativas da segunda e vice-versa. O resultado: cria-se o especialista, que é um ser</p><p>mutilado, ao contrário dos polímatas e/ou polígrafos do passado – como Leonardo da Vinci e Athanasius Kircher, entre outros –, capazes de trabalhar com desenvoltura em vários</p><p>campos: as ciências exatas, as ciências ocultas, a magia, a filosofia, as artes, a mecânica etc. Como muito bem observa Morin,</p><p>efetivou-se a separação entre a cultura humanística que nutria a inteligência geral e a cultura científica que, por vezes de modo hermético, encontra-se</p><p>compartimentalizada entre as disciplinas. A falta de comunicação entre as duas culturas acarreta graves consequências para ambas. A cultura humanista revitaliza as</p><p>obras do passado, a cultura científica valoriza apenas aquelas adquiridas no presente (MORIN, 2005, p. 19).</p><p>É preciso, pois, ainda segundo o pensador francês, “substituir um pensamento que está separado por outro que está ligado” (Ibidem, p. 20), para que o homem possa</p><p>compreender a extrema complexidade do Cosmo. Em realidade, o nascimento do especialista aconteceu devido a necessidades imediatistas das Ciências Exatas, de modo especial</p><p>a partir do século XIX, com a eclosão do Positivismo: como a realidade é móbil e, por consequência, apresenta infinitas facetas, o que torna muito difícil a sua apreensão e</p><p>compreensão, foi preciso estratificá-la e dividi-la em segmentos, para que se tentasse a análise de suas partes isoladas. Contudo, se isso facilita a tarefa cognitiva, por outro lado,</p><p>serve para fornecer uma imagem simplificada do real e para separar o que está intimamente ligado, provocando a não compreensão do Todo. Ou conforme Azcuy,</p><p>nuestra inteligencia individual</p>O maravilhoso não se confunde com o fantástico porquanto pertence a um mundo imaginário que, por convencional, já não causa surpresa ao leitor, o qual lhe aceita naturalmente os prodígios, ao passo que o fantástico, por ocorrer no seio do próprio cotidiano, afeta-o e põe em dúvida o nosso mesmo conceito de realidade (Apud PAES, 1985, p. 186-186). A Divina Comédia é um poema alegórico que tem por base a doutrina cristã; como tal, se serve de figuras, situações e imagens do mundo mítico cristão, que são de caráter prodigioso: demônios, anjos, o Inferno, o Limbo, os mortos que penam nos círculos do Inferno etc. Sem contar que Dante realiza uma viagem pelo mundo maravilhoso, percorrendo o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, na companhia de Virgílio e Beatriz. Esse poema, portanto, constitui uma obra simbólica que condena os homens que perderam a Fé; ao mesmo tempo, contudo, como não poderia deixar de ser, a obra aponta para uma rota da redenção, através da Graça Divina, alcançada através de uma religião renovada. Segundo Erich Auerbach: A lição dessa alegoria está exposta com clareza e paixão em muitas paisagens do poema, que dá exemplos de corrupção na terra. O mundo está desconjuntado, o equilíbrio ordenado por Deus foi violado. [...] As paixões do homem estão desencadeadas, e o resultado é a guerra e a confusão. [...] A anarquia e a corrupção rivalizam uma com a outra, e a Itália, mestra das nações, se tornou um bordello, um navio à deriva, sem timoneiro (1997, p. 154-155). Esse mundo caótico e desordenado em que Dante viveu e do qual se utiliza para fazer sua crítica é um mundo muito similar ao da atualidade. Tal qual naquela época, no mundo moderno, vive-se a mesma corrupção, ganância e uma total inversão de valores. Sendo assim, Saramago, de certa maneira, parodia A divina comédia para fazer sua crítica, mas sua intenção, ao contrário da do poeta italiano, não é atacar a Igreja corrupta, nem sobrevalorizar a doutrina cristã. Seu romance, de caráter eminentemente profano, está centrado no homem e na sua desumanização, no “tempo presente, nos homens presentes, a vida presente” drummondiano. Todavia, não podemos esquecer que o romancista cria a mesma atmosfera de angústia e provação, com cenas tão ou mais horripilantes que as de A Divina Comédia, para que, através da pena e do castigo, suas personagens cheguem a um estágio de purificação capaz de transformá-las em novos homens e, dessa maneira, comecem um novo mundo, livre dos vícios e chagas do anterior. E mais especificamente na parte que diz respeito ao Inferno e suas imagens que Saramago cria sua paródia da obra de Dante. Na obra do poeta italiano, temos a organização do mundo infernal em vários círculos, onde os pecadores se dividiam em categorias e onde as penas variavam de acordo com a gravidade do delito. Guiado por Virgílio, que assim o fazia a pedido de Beatriz, Dante assiste aos terrores do Inferno com medo e asco, e, no sexto círculo, confessa sentir a maior náusea, devido ao odor pestilento que vem das profundezas: À borda de vastíssimo talude, por grãos blocos de pedra conformado, chegamos a cenário inda mais rude: E ali, pelo ar tolhidos, empestado, que da profundidade se exalava, paramos junto ao esquife desolado (1979, p. 193). Esses círculos assemelham-se bastante às camaratas do hospício dos cegos, que Saramago descreveu no livro: seres que se arrastam, a atmosfera pestilenta, os mortos em decomposição, os choros e gemidos de homens e mulheres desesperados na “treva branca”. A disposição labiríntica dos cômodos no manicômio parece-se com a das camadas do inferno dantesco: Ao mesmo tempo que ia arrastando a mala, a mulher guiava o marido para a camarata que se encontrava mais perto da entrada. Era comprida como uma enfermaria antiga, com duas filas de camas que tinham sido pintadas de cinzento, mas donde a tinta já há muito começara a cair. As cobertas, os lençóis e as mantas eram da mesma cor. A mulher levou o marido para o fundo da camarata, fê-lo sentar-se em uma das camas, e disse-lhe, Não saias daqui, vou ver como é isto. Havia mais camaratas, corredores longos e estreitos, gabinetes que deviam ter sido de médicos, sentinas encardidas, uma cozinha que ainda não perdera o cheiro de má comida, um grande refeitório com mesas de tampos forrados de zinco, três celas acolchoadas até à altura de dois metros e forradas de cortiça daí para cima. Por trás do edifício havia uma cerca abandonada, com árvores mal cuidadas, os troncos davam a ideia de terem sido esfolados. Por toda a parte, se via lixo (1995, p. 47). Com o passar do tempo, as camaratas e demais dependências do prédio vão ficando cada vez mais sujas, uma vez que os cegos não as podem limpar, pois não veem a sujeira, apenas sentem o mau cheiro. O espaço determina as personagens e não o contrário; presas ao determinismo do cenário, elas se sentem impotentes, enlouquecidas e se desumanizam cada vez mais. Há, portanto, uma homologia entre o caos do espaço e a loucura das personagens, nesse particular, lembrando em tudo os círculos do Inferno de Dante, onde cada pecador é confinado, de acordo com a gravidade de seus pecados: São três camaratas de cada lado, há que ver é como é isto cá dentro, uns vãos de portas tão estreitos que mais parecem gargalos, uns corredores tão loucos como os outros ocupantes da casa, começam não se sabe porquê, acabam não se sabe onde, e não chega a saber-se o que querem (Ibidem, p. 112). A atmosfera de gemidos de dor e desconforto do romance é em tudo semelhante à da atmosfera de danação do Inferno de A Divina Comédia: Em Saramago: Aqui vão uns que choram, outros que gritam de medo ou de raiva, outros que praguejam, algum soltou uma ameaça terrível e inútil (Ibidem). Em Dante, Ali, suspiros, queixas e lamentos cruzavam-se pelo ar, na escuridão, fazendo-me tremer por uns momentos. Línguas estranhas, gíria em profusão, exclamações de dor, acentos de ira, gritos, rangidos e bater de mão (1979, p. 121). Em ambas as obras, é possível observar também que a situação de desespero e sofrimento vai se agravando com o passar da ação: n’A Divina Comédia, no nono e último círculo, alguns condenados fervem em sangue, outros, transformados em árvores, são destroçados por cães. Em Ensaio sobre a Cegueira, acontece algo similar, pois os cegos malvados (que equivaleriam aos demônios do inferno) exploram os mais fracos, retêm a comida e estupram as mulheres em cenas horrendas (e por que não dantescas?), além de que, no final, o manicômio desaparece engolido por um grande incêndio. Se Saramago parodia o Inferno e seus horrores, para representar uma espécie de danação e purgação de uma espécie de “pecado” das personagens, similarmente a Dante, também aponta para uma espécie de redenção, em virtude do fato de que ainda acredita no homem. Assim, por exemplo, a mulher do médico, que guia seu grupo dentro e fora do manicômio, faz lembrar em tudo a figura virtuosa de Beatriz. Não bastasse isso, no final do romance, Saramago recria parodicamente a chegada ao Paraíso: Foi portanto a uma espécie de paraíso que chegaram os sete peregrinos, e tão forte foi esta impressão, a que, sem demasiada ofensa do rigor do termo, poderíamos chamar transcendental, que se detiveram à entrada, como tolhidos pelo inesperado cheiro da casa (1995, p. 257). Ironicamente, o paraíso não passa de uma simples casa, como se, no mundo moderno, as pessoas perdessem qualquer tipo de transcendência ou de redenção celeste (ao contrário do que acontece em Dante). Depois de passar pelos horrores infernais, os pobres cegos sonham apenas com a imagem de um lar, onde possam encontrar conforto, abrigo. Desse modo, a transcendência, referida pelo narrador, reduz-se, torna-se relativa, como paródia que é da verdadeira e absoluta transcendência atingida por Dante no último canto de sua “comédia”: Ó suma luz, que ali me transcendias o conceito mortal, dá-me somente um sinal do esplendor em que fulgias, e torna a minha voz ora potente por que um vislumbre ao menos de tal gloria possa eu deixar à porvindoura