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<p>DADOS DE ODINRIGHT</p><p>Sobre a obra:</p><p>A presente obra é disponibilizada pela equipe eLivros e</p><p>seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer</p><p>conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos</p><p>acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da</p><p>obra, com o fim exclusivo de compra futura.</p><p>É expressamente proibida e totalmente repudíavel a</p><p>venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente</p><p>conteúdo.</p><p>Sobre nós:</p><p>O eLivros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de</p><p>dominio publico e propriedade intelectual de forma</p><p>totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e</p><p>a educação devem ser acessíveis e livres a toda e</p><p>qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em</p><p>nosso site: eLivros.</p><p>Como posso contribuir?</p><p>Você pode ajudar contribuindo de várias maneiras,</p><p>enviando livros para gente postar Envie um livro ;)</p><p>Ou ainda podendo ajudar financeiramente a pagar custo</p><p>de servidores e obras que compramos para postar, faça</p><p>uma doação aqui :)</p><p>"Quando o mundo estiver unido na busca do</p><p>conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e</p><p>https://elivros.love/</p><p>https://elivros.love/</p><p>https://elivros.love/</p><p>https://elivros.love/page/EnviarLivros</p><p>https://elivros.love/page/Doar</p><p>poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir</p><p>a um novo nível."</p><p>eLivroseLivros.love.love</p><p>Converted by convertEPub</p><p>https://elivros.love/</p><p>https://convertepub.com/</p><p>Tradução de</p><p>Joel Silveira</p><p>1ª edição</p><p>2019</p><p>G21t</p><p>19-55627</p><p>CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE</p><p>SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ</p><p>García Márquez, Gabriel, 1927-2014</p><p>Textos caribenhos [recurso eletrônico]: (1948-1952) / Gabriel García Márquez;</p><p>tradução Joel Silveira. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2019.</p><p>recurso digital (Obra jornalística; 1)</p><p>Tradução de: Textos costeños</p><p>Formato: epub</p><p>Requisitos do sistema: adobe digital editions</p><p>Modo de acesso: world wide web</p><p>Inclui apêndice</p><p>ISBN 978-85-01-11673-4 (recurso eletrônico)</p><p>1. Ensaios colombianos. 2. Livros eletrônicos. I. Silveira, Joel. II. Título. III. Série.</p><p>CDD: 868.993864</p><p>CDU: 82-4(862.1)</p><p>Meri Gleice Rodrigues de Souza – Bibliotecária CRB-7/6439</p><p>Título original</p><p>TEXTOS COSTEÑOS</p><p>Copyright © 1981 by Gabriel García Márquez</p><p>Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográ�co da Língua Portuguesa.</p><p>Direitos de publicação exclusivos em todos os países de língua portuguesa com exceção de</p><p>Portugal adquiridos pela</p><p>EDITORA RECORD LTDA.</p><p>Rua Argentina 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: 2585-2000, que se reserva a</p><p>propriedade literária desta tradução.</p><p>Produzido no Brasil</p><p>ISBN 978-85-01-11673-4</p><p>Seja um leitor preferencial Record.</p><p>Cadastre-se e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas</p><p>promoções.</p><p>Atendimento e venda direta ao leitor:</p><p>mdireto@record.com.br ou (21) 2585-2002.</p><p>mailto:mdireto@record.com.br</p><p>SUMÁRIO</p><p>Prólogo, por Jacques Gilard</p><p>TEXTOS CARIBENHOS (1948-1952)</p><p>Maio de 1948</p><p>“Habitantes da cidade...”. — “A madrugada. — em seu sentido poético...”. — “Não sei o que o</p><p>acordeão tem...”. — “Enquanto o Conselho de Segurança discute...”. — “Eu poderia dizer...”. —</p><p>“Cruci�cado na metade da tarde...”. — “Um novo, inteligente e estranho personagem...”. —</p><p>“Frances Drake é uma respeitável dama...”.</p><p>Junho de 1948</p><p>“O fato de que um museu...”. — “Anteontem Paris pôs em vigor...”. — “Vamos passear, amiga</p><p>minha...”. — “Não é verdade que você...”. — “Maio foi um mês próspero...”. — “Nada mais difícil</p><p>que a originalidade...”. — “À sombra do parque está o macaco...”. — “Do lado oposto ao meu...”. —</p><p>“Numa poltrona de ônibus...”. — “Sob o céu da tarde...”. — “Conheci nesta viagem...”. —</p><p>“Anteontem se completaram...”. — “Estamos de acordo, amigo e companheiro...”. — “Reto,</p><p>empinado e magní�co...”. — “Quinta-feira é um dia híbrido...”. — “Joe Louis continua...”. —</p><p>“George Bernard Shaw está cumprindo...”. — “Alto, com estilo e distante...”. — “Parece que a</p><p>complicada novela...”.</p><p>Julho de 1948</p><p>“E pensar que tudo isto...”. — “Quando a primavera chegar...”. — “O amor é uma enfermidade...”.</p><p>Setembro de 1948</p><p>Um Jorge Artel continental. — O domador da morte. — Um triunfo de Ñito Ortega. — O cinema</p><p>norte-americano. — Otimismos de Aldous Huxley.</p><p>Outubro de 1948</p><p>A verdadeira Policarpa. Una heroína de papel.</p><p>Dezembro de 1948</p><p>Um profundo Eduardo Carranza.</p><p>Julho de 1949</p><p>A viagem de Ramiro de la Espriella.</p><p>Outubro de 1949</p><p>Vida e romance de Poe.</p><p>Janeiro de 1950</p><p>O santo do meio século. — Em busca do tempo perdido. — Por se tratar de Hernando Téllez. —</p><p>Uma mulher com importância. — Elegia para um bandoleiro. — A personalidade de “Avivato”. —</p><p>Aqui ia-se falar de Ricaurte. — Banheira para o troglodita. — O inglês do conto. — O direito de</p><p>se tornar louco. — Dona Bárbara ao volante. — Certas lagostas!. — Só para cavalheiros. — O</p><p>homenzinho que veio ontem.</p><p>Fevereiro de 1950</p><p>Amor: uma afecção hepática. — Enquanto dorme Ingrid Bergman. — Sobre o �m do mundo. —</p><p>Chateação do domingo. — Nova anedota de papagaios. — Diatribe da sobriedade. — Um chapéu</p><p>para Eduardo. — Biogra�a do meio-peso. — Oradores enjaulados. — Um Rafael Sabattini. —</p><p>Para a morte de Albaninha. — Música formulada. — Palavras a uma rainha. — No velório de</p><p>Joselito.</p><p>Março de 1950</p><p>Visita a Santa Marta. — As estátuas de Santa Marta. — Metafísica da cozinha. — O livro de</p><p>Castro Saavedra. — Da santa ignorância esportiva. — Ricardo González Ripoll. — A consciência</p><p>de Pafúncio. — Defesa dos ataúdes. — A exposição de Neva Lállemand. — Surrealismo suicida.</p><p>— Cidades com barcos. — Héctor Rojas Herazo. — Abelito Villa, Escalona & Cia.. — Massagens</p><p>na Bela Adormecida. — O barbeiro presidencial. — Uma garrafa de �loso�a. — Glosa com</p><p>estrambote. — Motivos para ser cão. — A orfandade de Tarzan. — Cidadãos do outro mundo. —</p><p>Rafael Escalona. — A hora da verdade. — Os jejuns do padre Walterson. — Sobre Rimbaud e</p><p>outros. — A sombra das cinco. — Os pobres discos voadores. — Na Idade da Pedra.</p><p>Abril de 1950</p><p>Abril de verdade. — Balanço tardio. — A outra �lha de Adão. — Um conto de mistério. — Outra</p><p>vez o Prêmio Nobel. — Herança de sangue no cinema. — Tema para um tema. — O elefante da</p><p>marquesa. — Meu cartão para dom Ramón. — Estritamente oriental. — O reverendo Henry</p><p>Armstrong. — A respeito de qualquer coisa. — O doutor De Freitas. — A marquesa e a cadeira</p><p>maravilhosa. — Um equívoco explicável. — Con�itos a respeito de uma mulher feia. — A</p><p>descortesia de Mr. Kinkop. — Problemas do romance?. — Nudismo íntimo. — As reti�cações da</p><p>marquesa. — Outra vez Arturo Laguado. — Diálogo a respeito de gaiolas. — O alcaravão na</p><p>gaiola.</p><p>Maio de 1950</p><p>“As chuvas chegaram”. — Carta aberta à marquesa. — Um conto de Truman Capote. — A</p><p>importância da letra X. — O muro. — Enquanto os capitalistas dormem. — Dia vazio. —</p><p>Primeira resposta da marquesa. — Será realmente de Boris?. — A droga de dois gumes. — O</p><p>homem da rua. — O teatro de Arturo Laguado. — O homem que não ri. — Diez poetas del</p><p>Atlántico. — Inexplicável ubiqüidade de Boris. — Ensaio sobre o guarda-chuva. — O hóspede. —</p><p>O desconhecido. — O congresso dos fantasmas. Drama em três atos: I. — O congresso dos</p><p>fantasmas. Drama em três atos: II. — O congresso dos fantasmas. Drama em três atos: III. —</p><p>“Sinceramente hipócrita”. — “Ja!”. — José Félix Fuenmayor, contista. — A triste história do</p><p>trompetista. — A peregrinação da “jirafa”. — O hindu e o desconcerto da marquesa.</p><p>Junho de 1950</p><p>Um concurso de oratória. — Conversa �ada. — Romarias com divisas. — O juramento. — O</p><p>�nal necessário. — O embaixador encasacado. — Elegia a Cleobulina Sarmiento. — Continho</p><p>policial. — Fantasia dos ursos rítmicos. — Um pro�ssional do horóscopo. — Tribunal a passo de</p><p>conga. — O pesadelo. — A opinião pública. — Álvaro Cepeda Samudio. — Do outro lado do rio,</p><p>entre as árvores. — A gênese das bicicletas. — O �lho do coronel (Anotações para um romance).</p><p>— …?. — O retrato de Jennie. — Ny.</p><p>Julho de 1950</p><p>O galo que ladra. — Epílogo para Giuliano. — Salvador Mesa Nicolls. — Mestre Faulkner no</p><p>cinema. — Pesadelos. — Da ópera e outros misteres. — As duas cadeiras. — Você.... — Assim</p><p>do que em outras regiões da Colômbia; existia na cidade</p><p>uma tradição de tolerância política, e El Heraldo tinha toda razão em dar</p><p>a seu editorial de 3 de julho de 1951 o título de “Barranquilla es un islote</p><p>de paz”. Os mais destacados conservadores da cidade, os que ocupavam</p><p>os cargos de governador ou secretário do governo departamental, eram</p><p>com freqüência amigos e até membros do grupo, como era o caso dos</p><p>Carbonell.68 Nessa época de terríveis tensões, nenhum governador do</p><p>Atlântico permitiu que o Governo Central enviasse a polícia “chulavita” a</p><p>Barranquilla. Os membros do grupo lembram inclusive que um dos</p><p>redatores de Crónica foi censor o�cial do departamento. Com certa</p><p>prudência,69 El Heraldo podia informar sobre o que se passava no resto</p><p>da Colômbia. É verdade que Cartagena, como mostram duas crônicas de</p><p>García Márquez, não esteve a salvo dos estragos da Violência, e ainda</p><p>menos as zonas agropecuárias, de estrutura feudal, da Costa.</p><p>A existência de uma censura, mesmo que por vezes leve, e o gênero</p><p>humorístico que devia praticar explicam o fato de García Márquez tratar</p><p>com tanta freqüência dos mais elementares acontecimentos que lhe</p><p>chegavam pelo telégrafo. A crônica inaugural de sua carreira de</p><p>jornalista — que já revelava também sua problemática temporal de</p><p>escritor — é uma notícia dos sangrentos excessos do sectarismo político</p><p>que ainda estava muito longe de alcançar seu clímax e uma clara</p><p>assimilação entre a ideologia do poder colombiano de então e as</p><p>potências do Eixo (tampouco é inocente, vivendo em Cartagena, a</p><p>alusão a Francis Drake). Pouco depois, o assassinato do líder liberal</p><p>cartagenero Braulio Henao Blanco por um tenente de polícia de</p><p>conhecida militância conservadora70 lhe daria oportunidade de expressar</p><p>suas opiniões e mais uma vez denunciar os danos da Violência.</p><p>De vez em quando, em Barranquilla, também se entremostra seu</p><p>ideário político, com a clareza que permitiam as circunstâncias. Por</p><p>exemplo, quando então a�rmava que: “...nenhuma doutrina repugna-me</p><p>mais do que o falangismo” (9 de fevereiro de 1951), não era, de forma</p><p>alguma, um ato gratuito. Uma “jirafa” aparentemente tão frívola como</p><p>“O barbeiro presidencial” (16 de março de 1950) tampouco é inocente: o</p><p>último parágrafo não se contenta em sugerir que o poder não expressa a</p><p>maioria política do país; insinua, sobretudo, que o barbeiro do</p><p>presidente Ospina Pérez tem diariamente sob o �o de sua navalha a</p><p>possibilidade de mudar o curso da política nacional; noutras palavras,</p><p>sugere que o melhor seria que o barbeiro degolasse o presidente.</p><p>Bastante signi�cativa é a “jirafa”, já mencionada, “Algo que parece um</p><p>milagre”. Ao contrário do que diz, a imprensa não havia publicado nada</p><p>a propósito dos acontecimentos de La Paz, o que signi�ca dizer que essa</p><p>alusão a inexistentes informações da imprensa era uma forma hábil de</p><p>burlar a censura e denunciar um fato da Violência. Deve-se ter em conta,</p><p>além disso, a exemplaridade do relato que fala de rebeldia e esperança.</p><p>O compromisso político de García Márquez se tornaria mais</p><p>evidente, e alcançaria inclusive um grau espetacular, nas suas</p><p>reportagens de El Espectador. Mas tal se dera nos tempos de Cartagena e</p><p>teve de ir se fortalecendo em Barranquilla, em que pese o fato de não ter</p><p>deixado então, em sua produção jornalística, pegadas abundantes e</p><p>identi�cáveis.71</p><p>*</p><p>Elemento-chave nessa produção jornalística é a manifestação de um</p><p>ideário político e cultural de García Márquez, manifestação que somente</p><p>em parte é simultaneamente elaboração, porque se deve supor que, ao</p><p>chegar a Cartagena com três contos já publicados, com — muito</p><p>provavelmente — outro em processo de edição e pelo menos mais um</p><p>em processo de maturação ou de redação, García Márquez já tinha idéias</p><p>claras e fundamentais.</p><p>Esses três primeiros contos publicados, num país onde a narrativa</p><p>ainda era, por antonomásia, um gênero que se nutria de temática rural,72</p><p>revelavam um repúdio ao ruralismo, ao costumeiro, ao folclórico, na</p><p>mesma medida em que apresentavam o aniquilamento de toda relação</p><p>social bastante concreta: não subsistiam senão a morte, a família e a casa.</p><p>Nesses relatos, era evidente a in�uência kaiana, e na escolha desse</p><p>mundo quase desprovido de circunstâncias,73 e inspirado em exemplos</p><p>estrangeiros, aparecia — ainda que de forma disfarçada — um repúdio</p><p>às normas da narrativa então predominantes na Colômbia. Tal não é</p><p>expresso por García Márquez no princípio — só empregaria a palavra</p><p>em suas “jirafas”, de El Heraldo, depois dos seus amigos do grupo —, mas</p><p>é uma reação à estética, à ideologia e aos preciosismos dos escritores</p><p>“greco-caldenses”.74 Tratava-se, em linhas gerais, de uma recusa em</p><p>seguir as diretrizes costumeiras que pareciam ser a característica</p><p>principal da narrativa colombiana, sobretudo a que se refere ao conto. O</p><p>pretexto da atitude de García Márquez devia bastante ao exemplo dos</p><p>“piedracielistas”: havia uma intenção de universalidade. A formulação do</p><p>já velho porém sempre fecundo preceito unamuniano viria depois (na</p><p>“jirafa” dedicada a José Félix Fuenmayor);75 surgiria após re�exão — e</p><p>posta em prática — sobre as relações do regional e o universal. Mas</p><p>desde o princípio, desde o primeiro conto, existia a ambição de escrever</p><p>para algo que em muito excedera “o brevíssimo marco paroquial”.76</p><p>Mas geralmente a atitude de García Márquez — cada vez mais nítida</p><p>com o passar do tempo — é de repúdio aos valores estabelecidos e</p><p>imerecidamente consagrados, ao academicismo, ao que se pode chamar,</p><p>de maneira algo imprecisa e injusta, a mentalidade bogotana: García</p><p>Márquez combate o mito de Bogotá como “Atenas sul-americana” e as</p><p>proposições culturais que suscita. Sua hostilidade à mentalidade</p><p>“cachaca” de algum modo era dirigida contra certa forma de seriedade</p><p>peremptória e mumi�cada, cuja base era principalmente uma falta de</p><p>curiosidade, de �exibilidade e de informação.77 Em “La Jirafa”, ele se</p><p>referirá com ironia aos “opinadores pro�ssionais”, aos “descobridores</p><p>pro�ssionais” que então havia em Bogotá. A 27 de abril de 1950 escreve</p><p>em El Heraldo: “...um amigo inteligente me advertia que minha posição</p><p>em relação a algumas congregações literárias de Bogotá era tipicamente</p><p>provinciana. No entanto, minha reconhecida e mui provinciana</p><p>modéstia me permite, creio, a�rmar que neste aspecto os</p><p>verdadeiramente universais são aqueles que pensam de acordo com este</p><p>jornalista a respeito do exclusivismo provinciano dos porta-estandartes</p><p>da capital. O provincianismo literário na Colômbia começa a 2.500</p><p>metros acima do nível do mar.” Desde antes de Cartagena, foi García</p><p>Márquez um iconoclasta, tais quais os membros do grupo de</p><p>Barranquilla (nessa comunidade de pontos de vista tem raízes o motivo</p><p>que iria tornar inevitáveis, tarde ou cedo, o encontro e a fusão). Isso</p><p>também se aplicava, excluídos os conceitos culturais e estéticos, à</p><p>política e ao setor histórico: García Márquez, em 1948, não quer que a</p><p>história do continente se reduza a “um monótono cambalacho de heróis”,</p><p>e por isso se entusiasma com o livro de Marriaga, que pretendia restituir</p><p>uma imagem mais autêntica de Policarpa Salavarrieta. Ao combater</p><p>valores estabelecidos, aparentemente monolíticos e irremovíveis, corre-</p><p>se sempre o risco de simpli�car e exagerar, mas a verdade é que García</p><p>Márquez não combatia de maneira tão indiscriminada: ele tinha seus</p><p>bons “cachacos”, como também sabiam tê-los membros do grupo.78 A</p><p>única norma que reconheciam para basear seus julgamentos era a</p><p>inclinação para a universalidade.</p><p>Com alguma agressividade mas sem chauvinismo, é assim que</p><p>García Márquez promove valores populares e locais. É por isso que fala</p><p>tanto, por exemplo, das histórias em quadrinhos, que também deviam</p><p>interessá-lo por serem uma arte da narrativa em que se podiam buscar</p><p>proveitosas inspirações. Por isso fala tanto, e igualmente, da música em</p><p>voga, defendendo-a em nome da vulgaridade e do soberano gosto “do</p><p>rapaz da esquina”. E fala muito</p><p>do folclore caribenho, particularmente do</p><p>acordeão e da música vallenata, e do que iam revelando ao país as</p><p>pacientes pesquisas e as andanças de Manuel Zapata Olivella. Hoje,</p><p>porém, torna-se necessário ver de que maneira ele o fazia: fala do</p><p>folclore sem visão folclorística. De certo modo, já em 1948, e mais</p><p>claramente depois, García Márquez fala do folclore caribenho da mesma</p><p>forma que o trataria depois — anos depois — Alejo Carpentier em um</p><p>ensaio famoso: remontando-se aos contextos. Os músicos da região do</p><p>vale são trovadores, escreve ele no dia 22 de maio de 1948; a essência de</p><p>sua música é de estirpe medieval, dirá mais tarde em Barranquilla. Os</p><p>ritmos populares se relacionam com o imenso complexo cultural da</p><p>negritude, abarcando não somente a Costa Atlântica, mas também todas</p><p>as Antilhas, o Sul dos Estados Unidos e até os guetos das grandes cidades</p><p>do Norte.</p><p>É certo que a exaltação da “cultura caribenha” permitia, com notável</p><p>facilidade, ver que a região é mais do que uma região. Não se tratava</p><p>somente de opor valores locais ao resto do país: a Costa pertence a um</p><p>amplo conjunto que exclui a maior parte da Colômbia e abarca regiões</p><p>de outros países e até países inteiros, o Caribe, a Afro-América Latina.</p><p>Esse regionalismo caribenho e “anticachaco” tem indiscutivelmente o</p><p>sentido da universalidade. Mas embora nunca o tivesse praticado de</p><p>maneira estreita em sua literatura (o trópico assoma em seus contos</p><p>quando ele já havia alcançado um excelente nível estético, em “Amargura</p><p>para três sonâmbulos”), García Márquez foi conseqüente com esse</p><p>regionalismo nas buscas pessoais que apareciam tão freqüentemente em</p><p>seu jornalismo. É claro que ele fez o possível para conhecer a fundo as</p><p>realidades de sua terra, para estudar seu folclore, não como um rigoroso</p><p>investigador cientí�co, mas, sim, como um a�cionado de grande lucidez,</p><p>como também fez o possível para torná-lo conhecido através de suas</p><p>crônicas. São muitas as suas alusões às viagens que fez a diferentes zonas</p><p>da Costa, descritas em El Universal e em El Heraldo. Algumas dessas</p><p>alusões mostram que Manuel Zapata Olivella deve ter sido, mais de uma</p><p>vez, seu companheiro e seu guia.79 Com penetrante observação e elevado</p><p>ponto de vista (demonstra isso a alusão aos arquétipos femininos</p><p>lorquianos, na “jirafa” do dia 2 de março de 1951), García Márquez foi</p><p>realizando um inventário ou repertório das realidades regionais que só</p><p>muito parcialmente chegou a re�etir-se em sua produção jornalística. Na</p><p>evocação desse universo sofre ele, no princípio, alguma tendência</p><p>folclorística (crônicas de 16 e 17 de junho de 1948), mas logo a superou</p><p>em seu jornalismo; e em nada isso afetou sua produção literária.</p><p>Ajudado por sua exigência estética e ideológica, e por uma cultura que ia</p><p>sistematicamente ampliando, alcançou sem demora o nível das essências,</p><p>sem sucumbir ao atrativo do periférico e do particular.</p><p>São reveladoras as crônicas que em 1948 escreve sobre o inexistente</p><p>poeta César Guerra Valdés80 e sobre o cartagenero Jorge Artel. A crônica</p><p>sobre este teria tido mais interesse se García Márquez houvesse</p><p>expressado nela o que realmente pensava de sua poesia negra. Seu</p><p>interesse é limitado pelo aspecto de crônica social, na qual o elogio</p><p>obrigatório não permite que se expressem restrições e críticas. Nessa</p><p>crônica de título revelador81 García Márquez diz não o que é a obra de</p><p>Artel, mas o que quisera que fosse, o que na sua opinião teria desejado</p><p>que fosse ou podido ser. E assim sugere o que ele próprio deseja realizar:</p><p>uma literatura regional e continental, onde se encontrem “as raízes</p><p>nutrizes da Costa Atlântica”, que dê a esta “nome próprio”. Mais</p><p>signi�cativa ainda, por ser uma crônica fantasiosa, era a que saudava a</p><p>nunca realizada passagem por Cartagena de um poeta que nunca existiu.</p><p>A fantasia de García Márquez — sua verdade — pode estender-se sem</p><p>entraves. O inventado Guerra Valdés poderia ser o retrato exato e</p><p>poético de Pablo Neruda, do Neruda do Canto geral, assombrosamente</p><p>bem de�nido quando ainda não havia saído esse conjunto de poemas.82</p><p>Esta brilhante intuição nos dá a medida do que já podiam ser as</p><p>dimensões do regionalismo de García Márquez. Devemos lembrar que</p><p>não somente estava, então, para aparecer o Canto geral, mas que também</p><p>ainda iriam ser publicados Hombres de maíz, de Miguel Angel Asturias, e</p><p>O reino deste mundo, de Alejo Carpentier. Embora García Márquez</p><p>ainda se mostrasse limitado em sua capacidade literária, e seus contos se</p><p>apresentassem inferiores em comparação ao que outros estavam então</p><p>criando, ele já tinha consciência do que lhe correspondia fazer e estava</p><p>perfeitamente à altura de seu tempo, ou seja, à altura do futuro.</p><p>De certo modo ele estava inventando à maneira de Faulkner,</p><p>sentindo a necessidade de encontrar-se com esse modelo de tipo</p><p>faulkneriano que o ajudara a resolver seu problema de expressão. Mais</p><p>cedo ou mais tarde o teria conhecido, mas é evidente que tem uma</p><p>grande dívida para com seus amigos de Barranquilla, que o �zeram</p><p>ganhar tempo revelando-lhe a obra do norte-americano e a de Virginia</p><p>Woolf, o que tornou possível um rápido progresso, não tanto em termos</p><p>de conceitos — ainda que as coisas se tornassem mais claras, como</p><p>demonstram as crônicas de Barranquilla83 —, mas em termos de e�cácia</p><p>literária: A revoada estaria em pleno processo de redação menos de um</p><p>ano depois de aparecer o conto “Amargura para três sonâmbulos”,</p><p>segundo indica a publicação do fragmento provisório “El regreso de</p><p>Meme” em El Heraldo, em novembro de 1950.</p><p>*</p><p>Se os textos de “La Jirafa” possuem a vantagem de ir detalhando, mais do</p><p>que o faziam os de El Universal, o de�nitivo ideário estético e cultural de</p><p>García Márquez — que era o ideário do grupo, embora García Márquez</p><p>fosse antes de tudo um escritor, e escritor de grandes ambições —, não</p><p>nos falam de uma evolução, porque esta, então, já se havia cumprido e</p><p>produzido certezas.84 Em compensação, “La Jirafa” tem uma outra</p><p>vantagem: a de informar de maneira muito melhor a respeito do aspecto</p><p>criativo das atividades de García Márquez. Dá as pistas de um processo</p><p>literário que havia de levar até Cem anos de solidão e O outono do</p><p>patriarca. Seria exagero dizer que tudo está em “La Jirafa”. As pistas</p><p>existentes passam também pelos primeiros contos e pelas crônicas de</p><p>Cartagena, mas é verdade que em “La Jirafa” da primeira etapa (janeiro</p><p>de 1950 a fevereiro de 1951) encontra-se o principal dos dados que</p><p>servem para esclarecer o processo geral de sua obra literária.</p><p>Uma revisão do que saiu na imprensa, nos tempos de Barranquilla,</p><p>permite saber quando o coronel Buendía faz sua aparição, quando pela</p><p>primeira vez se manifestam (num personagem que irá se diferenciando)</p><p>Amaranta e a Mamãe Grande, quando é apresentado a García Márquez</p><p>(ou quando inventa) o título “Vendem-se coroas fúnebres”, bem como</p><p>ver que em 1950 rondava com insistência o tema dos sonhos</p><p>ressurgentes. Começam a se entrever no personagem de Ny traços que</p><p>mais tarde serão os mesmos de Remedios la Bella. Também aparece o</p><p>enigma policial que lembra o secretário e o juiz de O veneno da</p><p>madrugada. Estes, porém, são elementos bastante ou muito anedóticos,</p><p>cujo conhecimento não acrescenta nada de fundamental à gênese de sua</p><p>obra.</p><p>Mais decisivo é o que o aspecto mais literário desse trabalho</p><p>jornalístico revela sobre a forma com a qual García Márquez foi, então,</p><p>explorando as grandes obsessões que alimentam seus livros. Uma delas é</p><p>a temática da casa, que seria o eixo de Cem anos de solidão, porém mais</p><p>importante ainda deve ser essa obsessiva interrogação sobre o tempo e a</p><p>história que se revela em toda a sua obra de �cção.</p><p>Há nos primeiros contos, assim como em vários textos jornalísticos</p><p>das semanas iniciais em Cartagena, um motivo que se repete com certa</p><p>insistência; é o do morto sobre o qual cresce uma árvore cuja seiva,</p><p>sugada do cadáver, sobe até as frutas que servirão de alimento aos vivos.</p><p>Ao lado do horror da morte,</p><p>trata-se da comprovação de que tudo</p><p>prossegue, num grande círculo que abrange todas as formas de vida.85</p><p>Equivale a dizer que tudo dá no mesmo e nada tem importância, se se</p><p>toma como parâmetro o tempo do vegetal, o da zoologia e o da geologia.</p><p>Que à morte deva suceder uma renovação não signi�ca nenhum consolo</p><p>para quem sabe ter uma só vida: importa apenas a consistência de que o</p><p>tempo passa e, ao passar, mata. O universo afetivo dos indivíduos</p><p>ameaçados e destruídos pelo �uir do tempo vê-se sempre �nalmente</p><p>aniquilado, enviado ao nada do esquecimento, perdendo-se nas trevas</p><p>do passado. Isso é o que começam a dizer contos como “A terceira</p><p>renúncia” e “Eva está dentro do seu gato”, os dois primeiros, e o que irão</p><p>acentuando narrativas posteriores, como a “jirafa” “O pesadelo” ou o</p><p>conto “Alguém desarruma estas rosas”. O tempo que vivem os</p><p>personagens de García Márquez é o do desgaste e da morte.</p><p>Sem dúvida desempenharam algum papel os dramas políticos em</p><p>que vivia a Colômbia quando García Márquez acabava de dar os seus</p><p>primeiros passos como contista e os estava dando também no</p><p>jornalismo. A explosão do 9 de abril e os crimes cada vez menos</p><p>discretos da Violência partidária revelavam a existência de uma</p><p>Colômbia da qual não se suspeitava, uma Colômbia que nada tinha a ver</p><p>com a fachada democrática e tranqüila que havia mostrado o país</p><p>durante um largo período. A história nacional, em 1948, parecia dar um</p><p>gigantesco passo para trás. A primeira crônica publicada em El Universal</p><p>comprova um retrocesso até a barbárie, e as duas crônicas dedicadas ao</p><p>atentado contra Braulio Henao Blanco e à morte deste admitem que o</p><p>país voltara a viver o tempo das guerras civis. Era como comprovar que a</p><p>vida humana não passara em vão, e que a história, esse tempo redentor,</p><p>não existia. Ao iniciar-se como tal, o escritor García Márquez acredita</p><p>presenciar a morte do mito moderno por antonomásia, que é o</p><p>progresso.86</p><p>Perdida a ilusão de um tempo redentor — pelo menos dentro da</p><p>obra de �cção da primeira época —, resta somente a convicção de que</p><p>sofrerá uma iniludível destruição tudo o que existe em determinado</p><p>momento: os universos afetivos — os que importam, os que conheceram</p><p>a felicidade — desmoronam-se e se perdem. É o grande tema das</p><p>famílias condenadas por sua própria incapacidade de viver o tempo, o</p><p>mesmo que encontramos em “Eva está dentro do seu gato” e em Cem</p><p>anos de solidão. São numerosos os textos que nesses primeiros anos</p><p>giram em torno desse eixo — contos ou “jirafas”.87</p><p>A mesma importância histórica de que padecem as famílias se revela</p><p>em alguns textos que se referem à sociedade, e mais precisamente ao</p><p>povo, que representa o nível mais elementar e acessível de uma complexa</p><p>organização social. É a nota constante do “não acontece nada”,</p><p>perceptível em algumas “jirafas” de �cção, como “Assim começaram as</p><p>coisas” (21 de julho de 1950) e “A verdadeira história de Nus” (6 de</p><p>setembro de 1950), e em algumas das que oscilam entre a �cção e a</p><p>reportagem: a “cabra-faquiriza” de “Sétimo relato do viajante imaginário”</p><p>(22 de fevereiro de 1951), a mulher sem alimentos e o comerciante sem</p><p>fregueses de “Aquele que dirige sua loja” (3 de março de 1951). Um fator</p><p>de desbloqueio poderia ser a chegada a esse mundo estagnado de um</p><p>indivíduo procedente do exterior, bastante próximo do tipo de “enviado”</p><p>da mitologia popular da Costa: o visitante providencial como portador</p><p>de um fermento histórico, que viria com a missão de redimir a</p><p>comunidade estagnada. Pode tratar-se do regresso de alguém do lugar,</p><p>momentaneamente expatriado, como na já citada “jirafa” de “Assim</p><p>começaram as coisas” ou em “Nus, o que palitava os dentes”(28 de julho</p><p>de 1950), ou da chegada de um estranho: o visitante de “O hóspede” (19</p><p>de maio de 1950), o viajante de “Para um primeiro capítulo” (8 de</p><p>novembro de 1950) — tão semelhante ao histórico general Rafael Uribe</p><p>Uribe, líder liberal da Guerra dos Mil Dias —, o falso Uribe Uribe de</p><p>“Oitavo relato do viajante imaginário” (26 de fevereiro de 1951). A essa</p><p>mesma temática do visitante pertence o conto “De cómo Natanael hace</p><p>una visita”, publicado em maio de 1950.88 Esses textos relativos à venda</p><p>de um estranho sugerem que García Márquez — tratar-se-ia de um</p><p>vestígio da tradição caudilhesca latino-americana? — acredita nas</p><p>virtudes do visitante, o qual, então, seria realmente esse homem</p><p>providencial de que necessitam as comunidades sitiadas. Em 1950, pelo</p><p>menos; porque um conto, que retoma �elmente a anedota da “jirafa” “O</p><p>hóspede”, mostra que o visitante é, no �nal das contas, um homem</p><p>comum incapaz de trazer a redenção que dele os outros esperam.89</p><p>Nessa estagnação das aldeias, nesse desgaste das famílias, nessas</p><p>progressivas dúvidas sobre as virtudes históricas dos estrangeiros,</p><p>reconhecemos traços básicos de Cem anos de solidão e de O outono do</p><p>patriarca. Nesses textos dispersos dos anos 1948-1952, autêntico viveiro</p><p>de temas, motivos e anedotas, comprova-se de passagem que ambos os</p><p>romances brotaram de uma só fonte, apesar de suas diferenças.</p><p>Outro elemento da aspiração histórica que se manifesta nesses</p><p>relatos é a tentação pela passagem do rural ao urbano. Da mesma forma</p><p>que a imobilidade do agrário pode signi�car um irremediável bloqueio</p><p>temporal, a atividade urbana pode permitir o acesso à história. Tal</p><p>mutação é evocada em alguns textos de García Márquez da série “La</p><p>Jirafa”: “O muro” (6 de maio de 1950), as duas “jirafas” intituladas “Ny”</p><p>(29 de junho e 17 de novembro de 1950), “O colete estampado” (28 de</p><p>novembro de 1950) e, entre as do “viajante imaginário”, mais</p><p>particularmente o “Sétimo relato...”. Mas é evidente que García Márquez</p><p>sente que esse caminho não é mais do que um beco sem saída: Ny, ao</p><p>trocar o povoado pela cidade, troca a imobilidade pelo apocalipse —</p><p>anúncio distante da ruína �nal de Macondo — em Cem anos de solidão.</p><p>É particularmente interessante a forma em que se evoca a mutação em</p><p>“O colete estampado”: o progresso em que parecia viver o pequeno</p><p>povoado às margens do rio (seria uma interpretação da história de</p><p>Barranquilla?) é um progresso enganador, já que traz consigo todos os</p><p>sinais da dependência econômica e cultural; trata-se apenas de</p><p>engrenagem do subdesenvolvimento, e é uma negação da história. Não</p><p>muito mais clara a esse respeito seria a evocação do processo urbano de</p><p>Macondo sob a in�uência da companhia bananeira em Cem anos de</p><p>solidão.</p><p>Eram já muitas as chaves e abundante e de�nido o material de que</p><p>dispunha García Márquez para dar início à elaboração de suas grandes</p><p>obras. Em numerosas e bastante conhecidas entrevistas, ele declararia,</p><p>anos depois, que carecia então da maestria técnica que lhe teria sido</p><p>necessária para levar a cabo a redação de um romance complexo e de</p><p>amplas dimensões. A explicação, além de sincera, provavelmente é �el à</p><p>realidade da época, mas é possível assinalar um ponto preciso que talvez</p><p>tenha tido sua responsabilidade nesse bloqueio formal e técnico. Esse</p><p>ponto tem a ver, justamente, com o problema do tempo.</p><p>García Márquez, em suas �cções de “La Jirafa”, e também num texto-</p><p>programa como “A casa dos Buendía” (publicado em 3 de junho de 1950</p><p>com o subtítulo “Anotações para um romance”), sente a necessidade de</p><p>recorrer a datas que sirvam para situar, de maneira inequívoca, a ação de</p><p>seus relatos, e isso inclusive quando essas datas nada trazem à</p><p>interpretação da história narrada, como acontece, por exemplo, numa</p><p>“jirafa” como aquela primeira das duas que levam o título de “Anotações”</p><p>(9 de janeiro de 1951). A referência mais constante é a da Guerra dos Mil</p><p>Dias, que encontramos nas “Anotações para um romance” de “A casa dos</p><p>Buendía” ou em “A �lha do coronel” (13 de junho de 1950), e em</p><p>“jirafas” como “Para um primeiro capítulo”. Até em uma “jirafa” tardia e</p><p>relativa a um núcleo anedótico que teria que ser bastante secundário</p><p>num romance, como é “Kaiser” (26 de junho de 1951), García Márquez</p><p>imprime a referência histórica precisa</p><p>à cronologia e ao calendário do</p><p>mundo ocidental. Com isso, impunham-se certas limitações que</p><p>perturbavam o livre desenvolvimento de suas narrativas, uma escala</p><p>temporal de acordo com sua própria concepção de tempo. Uma idade de</p><p>ouro familiar, progressivamente arruinada, não se evoca com datas. A</p><p>solução que o romancista usaria em Cem anos de solidão — que o tempo</p><p>fora o tempo verídico e irracional da fábula, e não o arbitrário dos</p><p>calendários90 — parece que lhe veio ao escrever a “jirafa” “O colete</p><p>estampado”, na qual propunha uma cronologia distinta, de essência</p><p>mítica, ao falar do nascimento das cidades e ao empregar o termo</p><p>“fundação”, o qual, embora de sentido bem concreto na Colômbia e na</p><p>Venezuela, tem também, e sobretudo evidentes ressonâncias</p><p>cosmogônicas. Mesmo que no texto haja alusões à música de dança que</p><p>permitem datar aproximadamente a anedota, no mínimo o texto nasceu</p><p>no âmbito de um tempo que era o seu próprio e o de todos os relatos em</p><p>que se cria um mundo. Os estudiosos da mitologia nos ensinaram que a</p><p>fundação de uma comunidade leva sempre à criação do mundo. O</p><p>tempo de “O colete estampado” é o mesmo de Cem anos de solidão; é,</p><p>antes de tudo, o tempo do mito. García Márquez não explorou, de</p><p>pronto, esse achado sem dúvida decisivo, mas é interessante comprovar</p><p>que já em 1950 dispunha da solução para os seus principais problemas</p><p>técnicos.</p><p>*</p><p>Talvez não se aplique com muita propriedade a García Márquez a</p><p>a�rmação de que todo escritor é um incansável experimentador; ele</p><p>concentrou em muitas de suas obras seu trabalho e suas variações em</p><p>torno de temas fundamentais. Mas não resta dúvida de que foi um</p><p>experimentador nos anos iniciais, e isso pode ser provado com uma</p><p>leitura super�cial dos textos da juventude. E o foi, então, duplamente, já</p><p>que compartilhou esses labores com Septimus, seu dublê jornalístico.</p><p>Este assumiu uma parte das tentativas literárias que o escritor não queria</p><p>mostrar publicamente, refazendo e aprofundando textos já escritos (a</p><p>“jirafa” “O pesadelo”, em relação ao conto “A terceira renúncia”), ou</p><p>preparando o terreno que o escritor exploraria pouco ou muito tempo</p><p>depois. O fato é que Septimus, em 1950, foi quase mais �el do que García</p><p>Márquez em relação ao tema da casa, relacionado intimamente com o da</p><p>família e os do tempo e da história. Então, o escritor publica os contos</p><p>“Olhos de cão azul”, “A mulher que chegava às seis” e “A noite dos</p><p>alcaravões”, que resultam marginais dentro do conjunto de sua obra. E</p><p>entre maio e junho de 1950 e novembro desse ano, García Márquez</p><p>passa das “Anotações para um romance” às “Anotações de um romance”.</p><p>“A casa dos Buendía”, “A �lha do coronel” e “O �lho do coronel” (23 de</p><p>junho de 1950) têm a ver com o tema da casa — com o romance que</p><p>assim fora intitulado, La casa — enquanto, em novembro, “El regreso de</p><p>Meme” prova que já ia nascendo A revoada, em detrimento de outros</p><p>projetos. Num dado momento, em junho ou julho de 1950, García</p><p>Márquez teria deixado de lado seu ambicioso projeto de La casa (família,</p><p>casa, tempo, história frustrada) para dedicar-se ao que era apenas um</p><p>momento de crise dentro de um amplo �uir vital de várias gerações, ou</p><p>seja, para elaborar a limitada anedota de A revoada.91 Há como que uma</p><p>renúncia, quando Septimus permanece ao mesmo tempo �el a suas</p><p>colaborações de tipo narrativo e à ambiciosa temática. Mas é preciso</p><p>admitir que o escritor não renunciou inteiramente, embora o �zesse por</p><p>um período. Ao mesmo tempo que ia escrevendo A revoada trabalhava</p><p>em fragmentos de La casa. Demonstram isso contos como “Alguém</p><p>desarruma estas rosas” e “Nabo, o negro que fez esperar os anjos”, que</p><p>aprofundam a temática de La casa, com um ambiente de poeira e calor</p><p>que já é claramente macondiano.</p><p>Para quem não dê muita atenção ao aspecto propriamente</p><p>jornalístico da produção garciamarquiana dos anos 1948-1952, os</p><p>trechos então publicados na imprensa têm o grande interesse de</p><p>informar, com notável clareza, sobre os processos da obra literária do</p><p>escritor e sua bastante complexa cronologia. Não trazem apenas dados a</p><p>longo prazo, como poderia parecer, sobre a linha mítica e macondiana</p><p>da obra. Não se anuncia apenas a Mamãe Grande, na crônica sobre “La</p><p>Sierpe”. Também se anunciam as opções que provisoriamente haviam de</p><p>predominar na época intermediária dos anos 1955-1959. A “jirafa” “Algo</p><p>que parece um milagre” traz à cena a manifestação de um</p><p>inconformismo coletivo, a rebeldia de um povo que não perde o alento</p><p>diante da Violência; o acordeão da região do vale e sua música são um</p><p>pouco o que serão o galo de Ninguém escreve ao coronel e os pasquins de</p><p>O veneno da madrugada. Se um povo pode passar da resignação ao</p><p>otimismo, signi�ca que uma redenção é possível graças à própria</p><p>vontade dos homens, e a história tem que existir. Não é mais do que um</p><p>texto, além disso curto, mas ao mesmo tempo que nos lembra que a</p><p>atitude pessoal de García Márquez é de repulsa à realidade dominante na</p><p>Colômbia, também nos mostra que outro momento de sua obra de</p><p>�cção começara a germinar.</p><p>Durante muito tempo não se esgotarão — se é que isso um dia será</p><p>alcançado — as riquezas que contêm estas centenas de textos que García</p><p>Márquez foi publicando na imprensa caribenha durante sua</p><p>aprendizagem de escritor e jornalista.</p><p>*</p><p>Os textos de El Universal, de Cartagena, �guram na coleção conservada</p><p>na sede do jornal.</p><p>Os textos de El Heraldo �guram na coleção conservada na redação</p><p>do jornal, em Barranquilla, com as seguintes exceções, em razão de</p><p>roubos:92</p><p>1) A “jirafa” de 3 abril de 1951 encontra-se num volume de El</p><p>Heraldo conservado na Biblioteca Departamental do Atlântico, em</p><p>Barranquilla.</p><p>2) Das “jirafas” dos dias 16 de março de 1951, 16 de maio, 20 de</p><p>maio, 15 de julho, 19 de julho, 24 de julho e 27 de agosto de 1952, só</p><p>subsistem os títulos graças a um inventário realizado pela sra. Teresa</p><p>Manotas de Cepeda Samudio, antes que os textos fossem roubados. Os</p><p>títulos �guram na cronologia.</p><p>3) Das “jirafas” de 10 e de 17 de maio de 1952, ainda conforme o</p><p>referido inventário, a sra. Samudio possui fotocópias tiradas antes que os</p><p>referidos textos fossem roubados. Usam-se aqui as fotocópias, mas é</p><p>incompleta a correspondente ao dia 17 de maio.</p><p>4) Da época em que García Márquez colaborou em El Heraldo, falta</p><p>em certo número de edições fragmentos ou a totalidade da terceira</p><p>página, que era a página editorial onde aparecia “La Jirafa”. Além dos</p><p>dias que correspondem aos textos citados em 1), 2) e 3), as datas são as</p><p>seguintes: 19 de dezembro de 1949; 6 de janeiro, 20 e 21 de fevereiro, 21</p><p>e 22 de dezembro de 1950; 15 de abril, 29 de agosto, 4 de outubro de</p><p>1952.</p><p>5) A “jirafa” “Acabaram-se os barbeiros” é uma das “jirafas”</p><p>roubadas da coleção de El Heraldo, mas foi reproduzida na edição de 17</p><p>de outubro de 1967 (p. 7), da mesma forma que “Nosso futuro fantasma”,</p><p>texto primitivamente aparecido no dia 17 de abril de 1952. Como o texto</p><p>de apresentação dessas reedições a�rmava que ambos eram de 1951 — o</p><p>que não é o caso do segundo que citamos —, e como, além disso, o único</p><p>texto roubado em 1951 é o referente ao dia 3 de abril, que encontrei na</p><p>Biblioteca Departamental do Atlântico, deve-se admitir que “Acabaram-</p><p>se os barbeiros” é um dos textos roubados anteriormente a toda</p><p>investigação ou enquanto trabalhava um pesquisador apressado, pelo</p><p>que é impossível saber em que data foi publicado. É de 1950 ou 1952, de</p><p>uma das datas citadas em 4).</p><p>O que apareceu em Crónica �gurava em minha pequeníssima</p><p>coleção pessoal da revista, que pertenceu ao Sábio Catalão.</p><p>O texto “Autocrítica”, de El Espectador, encontra-se pelo menos em</p><p>três bibliotecas de Bogotá: a do jornal, a Biblioteca Nacional e a</p><p>Biblioteca Luis Ángel Arango, do Banco de la República.</p><p>“Um país na Costa Atlântica” �gura na coleção de Lámpara,</p><p>conservada na Biblioteca Nacional de Bogotá.</p><p>Jacques Gilard</p><p>Notas</p><p>1. Depois de diplomar-se no Liceo Nacional, de Zipaquirá, em 12 de dezembro de</p><p>1946</p><p>(conforme o registro que se encontra à folha 345 do Livro 18 do Ministério da Educação), García</p><p>Márquez matriculou-se na Universidade Nacional, no dia 25 de fevereiro de 1947. Foi aprovado</p><p>em todas as matérias do primeiro ano, com exceção de estatística e demogra�a. Não tem data sua</p><p>matrícula no segundo ano: o documento conservado na Universidade Nacional — uma só folha</p><p>referente ao primeiro e segundo anos — indica na linha destinada à assinatura de</p><p>comparecimento dos alunos referente ao segundo ano indicações como “ausente” ou “não se</p><p>apresentou”. Mais tarde foi acrescentada uma ilegível nota a lápis, na parte inferior do lado</p><p>direito da folha, onde se lê: “matriculou-se na Univ. Cartagena”. Devo o conhecimento deste</p><p>documento a uma e�caz diligência do escritor Alonso Aristizábal.</p><p>2. Segundo o testemunho de Ligia García Márquez, recolhido em Cartagena, em agosto de 1975,</p><p>os pais e irmãos do escritor residiram em Barranquilla entre 1927 e 1937 e 1939 e 1940. Parte</p><p>desses anos García Márquez viveu com seus avós em Aracataca.</p><p>3. García Márquez cursou o primeiro ano secundário no Colegio San José, em 1940;</p><p>interrompeu seus estudos em 1941, voltando a cursar o segundo ano em 1942, sempre no</p><p>Colegio San José. Dados extraídos da revista Juventud, então editada no colégio: ano I, nº 1, julho</p><p>de 1940, p. 55; ano I, nº 2, setembro de 1940, p. 57; ano I, nº 3, novembro de 1940, p. 83-84; ano</p><p>II, nº 4, fevereiro de 1941, p. 37; ano III, nº 6, novembro de 1942, p. 63 e 72. Em Juventud, García</p><p>Márquez publicou seus primeiros textos, que assinava como Gabriel García ou como Gabito.</p><p>4. Em certos casos, por não dispor de documentos concretos, irei referir-me a diversas conversas</p><p>mantidas com García Márquez, como as que tive com ele em Paris, junho de 1975; novamente</p><p>em Paris, novembro de 1977; em Bogotá, setembro de 1978; e em Barcelona, janeiro de 1979.</p><p>5. El Universal foi fundado em março de 1948 por Domingo López Escauriaza. Até hoje mantém</p><p>sua tendência liberal, como os outros diários colombianos dos quais García Márquez foi</p><p>colaborador.</p><p>6. Na realidade, a situação universitária de García Márquez só se de�niu em junho. Ele se</p><p>matriculou no dia 17 de junho, sob o nº 129, conforme decisão do decano da Faculdade de</p><p>Direito, assinalada no livro nº 7, folhas 58 e 59. No dia 5 de fevereiro de 1949, matriculou-se, sob</p><p>o nº 111, no terceiro ano de direito. Os comprovantes de matrícula de García Márquez, suas</p><p>quali�cações e a decisão do decano encontram-se nos arquivos da Universidade de Cartagena.</p><p>7. São constantes as faltas do estudante García Márquez. No segundo ano, ele faltou nove vezes à</p><p>aula de Direito Internacional Público e teve seis ausências em Direito Romano. No terceiro ano,</p><p>teve 37 faltas em Direito Civil, seis no Seminário de Direito Civil e 21 em Direito Espanhol e dos</p><p>Índios. Por ter perdido três matérias no terceiro ano, García Márquez foi reprovado, mas parece</p><p>que só tomou conhecimento desse fracasso 14 meses depois, em fevereiro de 1951, quando</p><p>pretendia matricular-se no quarto ano.</p><p>8. Isso parece su�cientemente explícito numa crônica, como a escrita em 4 de junho de 1948, e</p><p>que foi evidentemente inspirada num acontecimento de pouca importância divulgado por um</p><p>despacho da agência de informações. Uma recordação importante de García Márquez, a respeito</p><p>de suas atividades como redator anônimo de El Universal, traz uma conotação política, o que</p><p>nem sempre acontecia em seus anos de jornalista, na juventude. A propósito de um massacre</p><p>perpetrado pela polícia contra os participantes de uma pací�ca procissão religiosa, em El</p><p>Carmen de Bolívar (região de Cartagena), García Márquez foi produzindo comentários sem</p><p>assinatura, na seção “Comentarios”, da página 4, nos quais exigia explicações o�ciais a respeito</p><p>do drama, até que um o�cial foi avisar ao diretor e fundador do jornal, Domingo López</p><p>Escauriaza, que coisas graves poderiam acontecer ao redator dos comentários, se ele continuasse</p><p>a insistir em escrever sobre o assunto. López Escauriaza (“que, no entanto, tinha uns colhões bem</p><p>grandes”, segundo García Márquez) recomendou a seu jovem redator que deixasse de lado os</p><p>acontecimentos de El Carmen.</p><p>9. A crônica “A viagem de Ramiro de la Espriella” permite completar as recordações de García</p><p>Márquez, que somente menciona as leituras de A revoada (O enterro do diabo) que fazia a seu</p><p>amigo em 1951. Ligia García Márquez também se lembra dessas leituras.</p><p>10. Além de García Márquez, Alfonso Fuenmayor e Juan B. Fernández Renowitzky.</p><p>11. Dessa in�uência e orientação de Gustavo Merlano Ibarra encontra-se um eco e uma</p><p>con�rmação na última crônica assinada por García Márquez em El Universal. Merlano Ibarra foi</p><p>igualmente um dos primeiros leitores de A revoada, segundo lembra García Márquez, quando ele</p><p>esteve rapidamente em Cartagena, em 1951.</p><p>12. Na verdade, esse romance não devia existir (quando muito, fragmentos dele) e menos ainda</p><p>com esse título, bastante exótico para um escritor tropical. O redator da matéria, se não inventou</p><p>tudo, no mínimo muito imaginou. Inclino-me a pensar, como García Márquez, que o referido</p><p>redator tinha de ser Rojas Herazo, porque o mesmo, noutra oportunidade, atribuiu a García</p><p>Márquez a autoria de contos inexistentes. Certa vez Rojas Herazo escreveu que “os títulos mais</p><p>destacados dos seus contos (de GGM) eram ‘A outra costela da morte’, ‘Los cerezos de Yosanaf ’,</p><p>‘Eva está dentro do seu gato’, e ‘El árbol que creció sobre un cadáver’” (coluna “Re�ector”, na</p><p>revista Semana, de Bogotá, vol. XII, nº 273, de 12 de janeiro de 1951, p. 11). O primeiro e o</p><p>terceiro títulos correspondem efetivamente a contos de García Márquez. O segundo, porém, é</p><p>pura invenção. O quarto tem apenas um ponto de contato com a realidade: o assunto da árvore</p><p>que cresce sobre um cadáver é um elemento comum na primeira fase da prosa e no jornalismo</p><p>de García Márquez. Com informações desse tipo, freqüentes no jornalismo caribenho, poder-se-</p><p>ia catalogar uma rica bibliogra�a — infelizmente irreal — forjada em conversas de bar.</p><p>13. Fala-se também, e com freqüência, do “Grupo de la Cueva”. O bar de la Cueva, em</p><p>Barranquilla (porque existia outra Cueva em Cartagena, que García Márquez efetivamente</p><p>freqüentou), só iria funcionar anos depois. O sábio catalão, Ramón Vinyes, por exemplo, jamais</p><p>conheceu a “Cueva”, e García Márquez deve tê-la freqüentado apenas esporadicamente, quando</p><p>de suas poucas viagens a Barranquilla a partir de 1958, após seu regresso da Europa. “La Cueva”</p><p>corresponde a uma época remota, e muito diferente, do grupo. A alusão aos “gozadores de La</p><p>Cueva” (no conto “Os funerais da Mamãe Grande”) era uma divertida saudação que García</p><p>Márquez enviava de longe aos amigos que permaneceram em Barranquilla.</p><p>14. Escreve, particularmente, Alfonso Fuenmayor: “Tendo-se emancipado da confusa e equívoca</p><p>nebulosa das promessas para construir uma sólida realidade, García Márquez logrou decifrar,</p><p>com desconcertante e prematura clareza, uma parte do perpétuo enigma da alma humana.</p><p>Gabriel García Márquez, ou, mais intimamente, Gabito, parece ser o grande contista que o país</p><p>vem esperando com tanta paciência e tanto ceticismo” (“Gabriel García Márquez, coluna “Aire</p><p>del día”, de Puck, El Heraldo, 17 de dezembro de 1949, p. 3).</p><p>15. Diz assim um depoimento de Alfonso Fuenmayor: “Em 1949, para o Natal, chegou Gabito</p><p>de Cartagena, para uma visita de dois dias. Eu o conheci numa festa que lhe ofereceram no</p><p>Barrio Abajo” (trecho da entrevista de Alfonso Fuenmayor, na enquete “Del Café Colombia al</p><p>Bar La Cueva” de Álvaro Medina, com a colaboração de Alfredo Gómez Zurek e Margarita</p><p>Abello, no Suplemento del Caribe, Barranquilla, 14 de outubro de 1973, p. 12). Mesmo que uma</p><p>informação dessa procedência deva ser levada em conta, não parece digna de fé a a�rmação de</p><p>que Alfonso Fuenmayor “conheceu” García Márquez nessa oportunidade. Merece mais</p><p>credibilidade a alusão à festa, que demonstra que já então García Márquez tinha muitos amigos</p><p>em Barranquilla.</p><p>16. Os cadernos do sábio catalão (que García</p><p>Márquez menciona em Cem anos de solidão, e que</p><p>realmente existem, conservados em Barcelona por seu irmão Josep Vinyes Sabatés, e que</p><p>representam uma formidável fonte documental) con�rmam que havia muito Faulkner e Virginia</p><p>Woolf eram autores conhecidos de Vinyes. Ele leu Faulkner (mas talvez o tivesse descoberto</p><p>antes) em 1939, na França, enquanto esperava passagem para a Colômbia, após fugir de</p><p>Barcelona, pouco antes da entrada das tropas franquistas, segundo consta em seu diário íntimo.</p><p>Voltou a ler Faulkner, de forma sistemática, logo que se instalou em Barranquilla, como pode ser</p><p>comprovado em suas observações de leitura. Em tais notas consta que já em 1940 ele lia Virginia</p><p>Woolf. Embora não tenham sido feitas muitas alusões a Faulkner na imprensa de Barranquilla,</p><p>na qual se expressavam os membros do grupo, deve-se destacar uma crônica em sua coluna</p><p>“Reloj de torre”, que Vinyes publicava em El Heraldo. No dia 26 de abril de 1949, sob o título</p><p>“Sartre versus Faulkner”, Vinyes referia-se “aos contatos faulknerianos que conheço em</p><p>Barranquilla”: Germán Vargas, Álvaro Cepeda Samudio e Alfonso Fuenmayor, uma escola</p><p>reduzida, mas altamente signi�cativa.</p><p>17. Germán Vargas, “El Ramón Vinyes que yo conocí”, no Suplemento del Caribe, Barranquilla,</p><p>30 de março de 1975, p. 1.</p><p>18. A quase diária coluna “Aire del día”, que Alfonso Fuenmayor mantinha na página editorial de</p><p>El Heraldo, foi interrompida entre janeiro e setembro de 1949. No dia 22 de janeiro, o jornalista</p><p>Armando Barrameda Morán noticiava em El Heraldo a partida de Fuenmayor para Bogotá, onde</p><p>assumiria a che�a da redação do semanário Estampa. Em sua mencionada crônica de 26 de abril</p><p>desse ano, ao referir-se a Fuenmayor, Vinyes deixava claro que estava então radicado em Bogotá.</p><p>19. A evocação de “O bebedor de Coca-Cola”, em El Heraldo, 24 de maio de 1952.</p><p>20. Crônica anônima, com a foto de Vinyes, na primeira página de El Heraldo desse dia.</p><p>21. Fragmento de entrevista já citada. É interessante a menção que faz Germán Vargas, a</p><p>propósito de uma crônica que dedicou a um conto de García Márquez. Consultado verbalmente,</p><p>Germán Vargas, em agosto de 1978, disse que parecia lembrar que a crônica se referia a “A</p><p>terceira renúncia”. Uma pesquisa nos arquivos referentes a setembro e outubro de 1947 do El</p><p>Nacional, de Barranquilla, do qual então Vargas era redator, não con�rma a suposição. Embora a</p><p>perda de vários exemplares de El Nacional impeça que isso seja averiguado, é possível imaginar</p><p>que Germán Vargas devia estar comentando um conto posterior de García Márquez, quando este</p><p>vivia em Cartagena, o que torna possível e factível que ele, vivendo em Bogotá, tivesse se</p><p>inteirado dessa crônica aparecida na imprensa regional.</p><p>22. García Márquez acredita lembrar que nessa viagem o acompanhava seu amigo de Cartagena</p><p>Gustavo Merlano Ibarra, e que este manteve uma intensa polêmica sobre �loso�a com Alfonso</p><p>Fuenmayor.</p><p>23. No dia 17 de setembro de 1948, a imprensa colombiana anunciava em grandes manchetes de</p><p>primeira página que o naufrágio era a única explicação possível para o silêncio e a perda do</p><p>navio Euskera.</p><p>24. Mas é igualmente certo que esta fase apresenta uma característica que se tornaria corrente no</p><p>jornalismo de García Márquez, sobretudo na sua etapa posterior como repórter: o detalhe</p><p>narrativo fantasioso; verossímil e provável, porém fantasioso.</p><p>25. Texto sem assinatura em El Heraldo, 8 de setembro de 1948, p. 3.</p><p>26. Não seria o único caso de García Márquez ter-se inspirado em crônicas de Alfonso</p><p>Fuenmayor. Pelo menos duas das “jirafas” que escreveria mais tarde em Barranquilla (“Sobre</p><p>Rimbaud e outros” e “Tribunal a passo de conga”) endossavam os mesmos conceitos emitidos</p><p>um ou dois dias antes em crônicas de Alfonso Fuenmayor. Além disso, deve-se lembrar que uma</p><p>das frases de Cem anos de solidão, relativas à morte do sábio catalão, reproduz um trecho da</p><p>crônica que Alfonso Fuenmayor dedicou à memória de Vinyes, quando em Barranquilla se teve</p><p>notícia de sua morte (Alfonso Fuenmayor, “Hasta la tinta violeta”, em El Heraldo, de 24 de maio</p><p>de 1952, p. 11). Em nenhum dos casos citados trata-se de plágio, evidentemente. A crônica de</p><p>1948 sobre o livro de Marriaga segue marcadamente o caminho indicado pelo comentário de</p><p>Fuenmayor — o que indica o respeito que García Márquez devia sentir pelo experiente jornalista</p><p>que era seu amigo —, mas também discorda dele em alguns pontos essenciais.</p><p>27. Os pontos de vista do grupo — nada sistemáticos, outrossim coerentes — expressavam-se</p><p>nos diários de Barranquilla, El Nacional e El Heraldo (particularmente neste), e em La Prensa,</p><p>que era então o decano da imprensa local. Estavam expressos também, com notável vigor, em El</p><p>Mundo, um diário que circulou durante uns cinco meses, em 1946 (seu chefe de redação era</p><p>Germán Vargas, e Ramón Vinyes foi um assíduo colaborador).</p><p>28. Embora se tenha perdido a nota crítica citada por Germán Vargas em seu depoimento, existe</p><p>outra na qual ele se refere elogiosamente aos contos de García Márquez (“Sobre el cuento</p><p>colombiano”, El Heraldo, 5 de maio de 1949, páginas 3 e 5). Por outro lado, é particularmente</p><p>ilustrativa uma breve anotação encontrada num dos cadernos de Vinyes, redigida a propósito da</p><p>publicação do conto “A outra costela da morte”, o quarto dos contos de García Márquez. O título</p><p>que Vinyes deu à sua anotação (“Un bon contiste colombià: Gabriel García Márquez”) é mais do</p><p>que eloqüente, levando-se em conta que em suas anotações literárias íntimas ele não costumava</p><p>incluir elogios.</p><p>29. O editorial é um gênero anônimo por de�nição. Pode ser escrito pelo próprio diretor do</p><p>jornal ou por qualquer redator, mantendo sempre um tom e um estilo em que desaparece a</p><p>personalidade do autor. O tom e o estilo são do jornal, e não os de um determinado jornalista.</p><p>Quanto ao conteúdo e à orientação ideológica, torna-se ainda mais claro que o modesto redator</p><p>chamado a escrever o editorial tem de deixar de lado sua própria maneira de pensar para</p><p>expressar apenas as dos donos do jornal. Tudo isso implica que são impossíveis de ser</p><p>identi�cados os editoriais que García Márquez escreveu em El Heraldo (principalmente no início</p><p>de sua colaboração, quando recém-a�rmava o estilo jornalístico).</p><p>30. Particularmente Alfonso Fuenmayor (colóquios em Barranquilla, agosto de 1975).</p><p>31. É preciso deixar claro que, quando García Márquez o conheceu, Vinyes não era livreiro. A</p><p>evocação da livraria em Cem anos de solidão, que alguns estudiosos tomaram ao pé da letra,</p><p>refere-se a uma época bem anterior. Dos membros do grupo, apenas José Félix Fuenmayor — o</p><p>qual em 1950 já passava dos sessenta anos — havia freqüentado essa mistura de livraria e tertúlia,</p><p>de tanta importância na Barranquilla dos anos 1910 e 1920. A livraria foi destruída por um</p><p>incêndio no dia 24 de junho de 1923 (Cf. Pere Elies i Busqueta, Un literat de gran volada: Ramón</p><p>Vinyes i Cluet, Barcelona, Rafael Dalmau editor, 1972, p. 81); em seu diário de eLivros, nos anos</p><p>40, Vinyes nunca deixava de recordar, a cada 24 de junho, essa perda de�nitiva.</p><p>32. Recorda García Márquez que em seus escritos de então costumava referir-se a cidades e</p><p>lugares reais, com seus nomes reais, e que Vinyes o advertiu de que deveria procurar nomes</p><p>diferentes, que pudessem dar uma dimensão mítica a esse universo.</p><p>33. Dom Josep Vinyes Sabatés guarda oito cartas de Ramón Vinyes a Germán Vargas, que este</p><p>mais tarde devolveu à família do sábio catalão. É divertido pinçar de uma carta do dia 31 de</p><p>março de 1951 esta alusão a García Márquez: “Gabito continua em Barranquilla?... A respeito de</p><p>Gabito, suponho que continua exagerado como sempre. Ele ainda colabora em El Heraldo?”</p><p>34. No dia 17 de julho de 1950, escrevia Germán Vargas a Ramón Vinyes: “Álvaro começa a</p><p>readaptar-se ao ambiente, e tem uma vantagem extraordinária: voltou o mesmo de quando foi.</p><p>Disseram-me em sua casa que ‘os Estados Unidos não haviam moldado (?) o rapaz’, que ‘voltara o</p><p>mesmo’. A mim me parece, e isso lhes disse, que tal era a melhor qualidade de Álvaro, que</p><p>demonstrava ter personalidade. Creio que você concordará comigo.” As cartas de Vargas e</p><p>Ramón Vinyes encontram-se em Barcelona.</p><p>35. Conheço alguns exemplares, todos incompletos, que me foram emprestados em 1975 por</p><p>Alfonso Fuenmayor (nº 1, nº 6, nº 30, nº 38, nº 43, nº 46), e em 1978 por Juan B. Fernández</p><p>Renowitzky (nº 11). Além disso, possuo, desde julho de 1979, os seis primeiros números</p><p>completos e um recorte do nº 8, que Germán Vargas tinha enviado a Ramón Vinyes, e que me foi</p><p>presenteado pelo irmão deste.</p><p>36. Diz Alfonso Fuenmayor num editorial: “Outros [detratores], indiscutivelmente mais</p><p>românticos, dizem: ‘Vejam só, vocês, uns literatos, fazendo um semanário no qual até agora não</p><p>apareceu um só verso. Parece mentira... Nos meus tempos, literatura e versos eram uma mesma</p><p>coisa.’ Não que não nos lisonjeie o mote de literatos, mas nós nos propusemos aqui a fazer algo</p><p>de certa forma diferente de literatura: queremos fazer jornalismo.” (“Carta al lector”, em Crónica,</p><p>nº 5, 27 de maio de 1950, Barranquilla, p. 2.)</p><p>37. Esses desenhos são interessantes. García Márquez, embora admitindo a autoria dos mesmos,</p><p>não lhes dá a menor importância, a�rmando serem desenhos copiados das revistas estrangeiras</p><p>que Crónica pirateava — o que é difícil de averiguar. A direção artística da revista era integrada</p><p>por Alejandro Obrigón, Orlando Rivera “Figuritas” e Orlando Melo. Obrigón, na época, vivia na</p><p>Europa e, à exceção da ilustração do conto “Divertimento”, de Julio Mario Santodomingo, nº 4, é</p><p>provável que não tenha colaborado em Crónica. Melo é o autor de todas as capas que conheço.</p><p>“Figuritas”, pelo que sei da revista, era autor de pelo menos 80% das ilustrações.</p><p>38. Ainda que não exista coleção da revista, é possível conhecer seus sumários, já que do nº 1 ao</p><p>nº 47, quer dizer, durante quase um ano, os mesmos eram publicados em El Heraldo, num</p><p>pequeno anúncio que toda sexta-feira saía na primeira página. Do nº 48 em diante, o diário</p><p>limitou-se a anunciar “amanhã circula Crónica, seu melhor weekend”.</p><p>39. Os números 43 e 46, ambos de março de 1951, não o mencionam como chefe de redação, o</p><p>que se explica pelo fato de García Márquez encontrar-se em Cartagena, mas o nº 43 traz alguns</p><p>desenhos inconfundivelmente seus. Alfonso Fuenmayor se lembra de que García Márquez</p><p>renunciou sem informá-lo disso — o que deve ter acontecido semanas antes do regresso a</p><p>Cartagena —, mas que continuou colaborando. Esses desenhos podem ter sido feitos meses</p><p>antes, para acompanhar um material que permaneceu engavetado bastante tempo. No dia 5 de</p><p>janeiro de 1951, numa carta de Ramón Vinyes a Germán Vargas, diz o sábio catalão: “Sinto a</p><p>ruína de Crónica, que você anuncia. Raramente a encontro... Parecia-me que Crónica existia em</p><p>razão dos contos de Álvaro e Gabito, mas não é assim. Que se há de fazer?”</p><p>40. Dado fornecido por Ligia García Márquez.</p><p>41. Em 13 de março de 1951, escreve Germán Vargas a Vinyes: “Reunimo-nos durante algumas</p><p>noites em Salgar para festejar Marriaga; éramos os mesmos de sempre e logo Bob pôs-se a recitar</p><p>os fáceis versos sobre El Castillo Viejo, enquanto eu cantei coisas da região do vale, visto que</p><p>Gabito, que no momento anda por Cartagena, ao que se diz concluindo seus estudos, não pôde</p><p>fazê-lo.” (Bob: o pianista Roberto Prieto Sánchez, membro do grupo.)</p><p>42. Uma carta de Germán Vargas a Ramón Vinyes, datada de 18 de junho de 1951, não se refere</p><p>aos editoriais: “Gabito em Cartagena; segundo carta recente que recebi dele, pensa em voltar a</p><p>Barranquilla e continua escrevendo ‘jirafas’ um tanto repetitivas, por serem diárias.” Mas tanto</p><p>Alfonso Fuenmayor como García Márquez lembram que o último também escrevia editoriais.</p><p>Alguns, nesse período que vai de fevereiro a julho de 1951, apresentam traços que podem ser de</p><p>García Márquez, mas nunca com su�ciente abundância (já que são variáveis as regras do gênero)</p><p>para que se possa atribuir-lhe um só com alguma certeza.</p><p>43. Agradeço as informações do pesquisador norte-americano Harley D. Oberhelman, do</p><p>engenheiro Raimundo Pinaud, residente em Cartagena, e de dom Antonio J. Olier. Além dos</p><p>elementos que serão citados adiante, Antonio J. Olier possui cópia da autorização de edição</p><p>remetida a García Márquez e a Guillermo Dávila, gerente e �nanciador de Comprimido, com o</p><p>timbre do governo de Bolívar, sob o nº 2.486. Olier também possui cópia do recibo (pela soma de</p><p>28 pesos, “valor da edição do primeiro número de Comprimido”), entregue a Guillermo Dávila</p><p>por Gastón Valencia, dono da grá�ca editorial ABC, de Cartagena.</p><p>44. Em carta de 6 de fevereiro de 1952, a Ramón Vinyes, escreve Germán Vargas ao referir-se a</p><p>Gabito: “...pois o temos novamente aqui escrevendo ‘jirafas’...”</p><p>45. “En la muerte de Ramón Vinyes” é o título coletivo das crônicas de homenagem que</p><p>apareceram, no dia 24 de maio de 1952, nas páginas 11 e 15 de El Heraldo. Colaboraram nesse</p><p>dia García Márquez, Alfonso Fuenmayor, Germán Vargas, Rafael Marriaga e Armando</p><p>Marrameda Morán. Outras seriam publicadas, em edições posteriores, em particular uma do</p><p>�lósofo Julio Enrique Blanco.</p><p>46. “El invierno”, primitivamente um fragmento de A revoada que se transformou em conto,</p><p>converteu-se em “Isabel vendo chover...” quando García Márquez se preparava para viajar pela</p><p>Europa, em 1955. Ele se lembra que estava mexendo em papéis velhos quando recebeu a visita de</p><p>Jorge Gaitán Durán. Este apanhou no chão algumas folhas que García Márquez acabara de rasgar</p><p>pela metade, perguntando do que se tratava. Pouco depois, publicou o conto na revista Mito,</p><p>dando-lhe título próximo àquele que então lhe dera García Márquez ao responder à sua</p><p>pergunta.</p><p>47. García Márquez recorda que no dia 9 de julho de 1954, quando já residia em Bogotá e era</p><p>redator de plantão em El Espectador, voltara da visita que �zera a Villegas no Cárcere Modelo</p><p>quando, ao passar pela avenida Jiménez, presenciou o violento tiroteio com que a tropa reprimia</p><p>uma manifestação estudantil. Essa data marca outro dramático vazio no curso da política</p><p>colombiana.</p><p>48. Segundo lembra Alfonso Fuenmayor, Cepeda Samudio sonhava acabar com a liderança de El</p><p>Heraldo. Repetiria o intento anos mais tarde, ao assumir a direção do Diário del Caribe, também</p><p>em Barranquilla.</p><p>49. Além das lembranças de García Márquez, depoimentos de Teresa de Cepeda, Alfonso</p><p>Fuenmayor e Jaime Devis Pereira, diretor de El Nacional.</p><p>50. Segundo lembra Germán Vargas — nisso corroborado por García Márquez —, as ruidosas</p><p>ambições de Cepeda causaram mal-estar entre alguns colaboradores de El Nacional, criando para</p><p>o jornal sérias di�culdades. Depois de sonhar por vários anos em dirigir um jornal, Cepeda</p><p>defrontou-se com uma realidade nada fácil.</p><p>51. Contudo, existe outro texto, provavelmente escrito nos últimos meses de 1949, já que �gura</p><p>em um livro supostamente publicado em 22 de dezembro desse ano. É “Cerimônia inicial”, o</p><p>prólogo que García Márquez escreve para o romance Neblina azul, de um jovem amigo de</p><p>Cartagena, George Lee Bisswell Cotes. O texto não está incluído na obra jornalística, mas</p><p>apresenta traços próprios desta e característicos da evolução estilística perceptível na crônica de</p><p>28 de julho. Contém, além disso, valiosas informações sobre o que então pensava García</p><p>Márquez a respeito dos deveres do escritor.</p><p>52. Entretanto, a crônica sobre Poe, de 7 de outubro, ainda que não signi�que propriamente um</p><p>retrocesso, ao menos demonstra que ainda não existia esse desembaraço com o qual em</p><p>Barranquilla García Márquez escreveria sobre literatura.</p><p>53. Exatamente o mesmo acontece com as crônicas que Álvaro Cepeda então escrevia em El</p><p>Nacional, de Barranquilla.</p><p>54. É uma crônica dominada pelo emprego do modo condicional, com o que proclama formal e</p><p>constantemente a intrínseca arbitrariedade do gênero.</p><p>55. Algo semelhante encontra-se igualmente nos quatro contos publicados por García Márquez</p><p>no suplemento de El Espectador, de setembro de 1947 a julho de 1948. São preciosismos de</p><p>expressão, contraproducentes também sob um estrito ponto de vista literário.</p><p>56. Do ponto de vista da divulgação da música folclórica do acordeão (fosse ela propriamente</p><p>uma música do vale, “bajera” ou da savana), este texto de García Márquez muito provavelmente</p><p>tem um valor histórico. Faria falta uma investigação especí�ca sobre o tema, mas é indubitável</p><p>que, se a crônica de 22 de maio de 1948 não é exatamente a primeira, pelo menos é uma das</p><p>primeiras a falar do acordeão caribenho na imprensa colombiana. García Márquez</p><p>desempenhou, portanto, um papel de pioneiro em sua divulgação, embora seja impossível</p><p>a�rmar que esse papel tivesse sido exclusivamente seu. Deve-se lembrar, todavia, que o primeiro</p><p>“festival vallenato”, na realidade modestíssimo, aconteceu no Teatro La Bamba, de Barranquilla,</p><p>em novembro desse ano — ou seja, seis meses depois —, e que causou sensação pela novidade</p><p>que apresentava, segundo se pode veri�car na imprensa local.</p><p>57. Este belo embora elementar relato apresenta uma estranha semelhança com um poema em</p><p>prosa de Hipólito Pereyra, “Las guacamayas en el crepúsculo”, publicado no volume 1, nº 3, da</p><p>revista Voces, de Barranquilla, no dia 30 de agosto de 1917 (p. 86-87). Voces era uma revista</p><p>muito brilhante, fundada por Ramón Vinyes durante sua primeira estada em Barranquilla. “Las</p><p>guacamayas en el crepúsculo” não �gura na seleção de Voces, realizada por Germán Vargas</p><p>(Germán Vargas editor, Voces, 1917-1920, Bogotá, Instituto Colombiano de Cultura, 1977, 434 p.</p><p>[Coleção Autores Nacionais, nº 25]).</p><p>58. Numa carta a Germán Vargas, de 25 de maio de 1950, escreve Vinyes: “Li as ‘jirafas’ que você</p><p>me mandou. Trata-se de ‘jirafas’ que têm o pescoço mais comprido e o pêlo mais lustroso.”</p><p>59. Lembremos a frase, exata, de Germán Vargas sobre “jirafas um pouco repetitivas, por serem</p><p>diárias”.</p><p>60. A partir de então manifesta-se o que será uma constante no jornalismo de García Márquez, o</p><p>qual, freqüentemente, escreveu textos humorísticos — mais tarde disfarçados de reportagens —</p><p>sobre as grandes �guras da atualidade internacional, inclusive as mais frívolas.</p><p>61. Há que assinalar de imediato que a crônica em homenagem a César Guerra Valdés é uma</p><p>falsa crônica social: o personagem que ele saúda com tanta ênfase nunca existiu.</p><p>62. E não somente, com o correr do tempo, o modelo formal de García Márquez. Até o �nal dos</p><p>anos 1970, toda reportagem colombiana sofre uma in�uência garciamarquiana, copiada tanto de</p><p>sua obra jornalística como da literária. Essa por vezes sufocante onipresença de seu exemplo no</p><p>âmbito nacional não se manifesta apenas na narrativa; é muito real e talvez mais forte no setor</p><p>jornalístico, no qual não parece ter-se renovado muito a maneira de escrever por ele utilizada.</p><p>63. A carta vem dirigida a “Meu querido Gonzalo”. Trata-se de Gonzalo González “GOG”,</p><p>importante jornalista da Costa que durante anos colaborou em El Espectador, de Bogotá, amigo</p><p>de García Márquez e muito ligado ao grupo de Barranquilla (a partir do nº 4, �gurou como</p><p>membro do corpo de redatores de Crónica).</p><p>64. Fundada nesse ano de 1952, Lámpara era a revista da International Petroleum Company, ou</p><p>seja, da Esso. O poeta Álvaro Mutis era membro do corpo de redatores da revista. Só mais tarde</p><p>seria chefe de redação. Aparentemente, a revista devia ser bimestral, já que teve quatro edições,</p><p>de janeiro a agosto de 1952, mas nesse ano saiu apenas mais um número, aquele que inclui o</p><p>texto de García Márquez (vol. 1, nº 5), sem indicação de meses. Corresponde, pois, aos últimos</p><p>quatro meses do ano. Da crônica sobre La Sierpe, inexplicavelmente não apareceu senão a</p><p>primeira parte. Em 1954, os direitos foram cedidos ao Magazín Dominical de El Espectador, onde</p><p>foi publicada a série completa. García Márquez, então, modi�cou levemente o texto da primeira</p><p>parte.</p><p>65. García Márquez recorda-se de ter entrevistado “um jogador de futebol do Junior, que tinha</p><p>um sobrenome basco”. Deve ser a reportagem “Berascochea, el half del Junior”, publicada no nº 8</p><p>de Crónica, de 17 de junho de 1950. Parece que desse nº 8 só existem exemplares incompletos.</p><p>66. A imobilidade do gênero cronístico parece ter-se re�etido em A revoada, e no conto “Alguém</p><p>desarruma estas rosas”, onde se repete o episódio do menino sentado.</p><p>67. Cabe aqui recordar a anedota contada por García Márquez a respeito da matança de El</p><p>Carmen de Bolívar.</p><p>68. Na família Carbonell, cujos membros assumiram por mais de uma vez o governo do</p><p>Departamento do Atlântico, particularmente em 1949, sempre houve intelectuais ativos. Alfonso</p><p>Carbonell permaneceu no corpo de redatores de Crónica. Rafael Marriaga, que em 1946 escrevia</p><p>uma “Columna goda” em El Mundo, de Barranquilla, foi, em 1950, secretário de governo. Numa</p><p>carta de 27 de dezembro de 1951, Vinyes escrevia a García Márquez: “Falemos de você. Como vai</p><p>no mar revolto da política colombiana? Suponho que nossos bons amigos que agora se</p><p>encontram no pináculo não tenham se metido com os membros do grupo. São su�cientemente</p><p>amigos e su�cientemente inteligentes para conhecer seus limites. A verdade é que eu, se fosse</p><p>governo, os teria mil vezes preferido como colaboradores do que como ‘correligionários’. Dou um</p><p>exemplo: o de Fernando Cepeda. E nem falo de Alfonso e Eduardo Carbonell e do grande</p><p>privilégio de tê-los perto de mim.”</p><p>69. A instauração da censura, em novembro de 1949, teve consideráveis efeitos na primeira</p><p>página de El Heraldo, o qual, do dia 11 em diante, passou a dar mais importância às misses que</p><p>aos políticos. Mas a terceira página, salvo num primeiro período muito breve, nunca deixou de</p><p>informar e criticar de maneira clara.</p><p>70. A melhor informação foi então dada pela imprensa liberal de Bogotá (há, inclusive, um dado</p><p>— bastante esclarecedor sobre os ânimos em Cartagena — que revela terem os amigos do</p><p>homicida fardado pretendido homenageá-lo com um banquete).</p><p>71. É nesse instante que se expande através da sociedade colombiana uma forma particular de</p><p>humor, a “mamadera de gallo”. A expressão deve ser de origem venezuelana, como atestam</p><p>passagens dos romances de Rómulo Gallegos. Já foi dito que a “mamadera de gallo” foi uma</p><p>criação de García Márquez e/ou do grupo. Trata-se de uma interpretação provavelmente</p><p>exagerada. Mas pode-se supor que a situação do grupo lhe permitiu decantar algo que fazia parte</p><p>do seu ambiente político e moral do momento: eram intelectuais vinculados ao partido liberal ou</p><p>de tendência marxista que viviam numa cidade aprazível, enquanto o resto da Colômbia — eles o</p><p>sabiam — sofria os agravos da Violência, sem que surgissem possibilidades de mudança da</p><p>situação. Em tais condições podiam dar a seu sentimento de impotência política uma saída</p><p>humorística, de tom amargo, que lhes permitia ladear os problemas do momento. Teria de ser</p><p>determinante o contraste entre o ambiente da cidade e o resto do país. Em todo caso, o posterior</p><p>sucesso da expressão, e da �loso�a “mamagallística”, em toda a Colômbia, coincide com o</p><p>período de estagnação política que foi a Frente Nacional, inaugurada em 1958.</p><p>72. Com notáveis exceções, como no caso do romancista Osorio Lizarazo. Até datas mais</p><p>recentes, porém, perdurou o conceito de que a Colômbia é um país rural e sua narrativa devia ser</p><p>de temática predominantemente rural. Cf. o ensaio “La ciudad sin palomas”, de Helena Araújo,</p><p>Signos y Mensajes, Bogotá, Instituto Colombiano de Cultura, 1976, 242 p. (Coleção Autores</p><p>Nacionais, nº 13.)</p><p>73. Com a exceção do conto “Eva está dentro do seu gato”, no qual não faltam alusões à</p><p>aristocrática condição, historicamente condenada, do personagem central e de sua família.</p><p>74. Os “greco-caldenses” eram escritores oriundos do departamento andino de Caldas, que</p><p>merecem uma reavaliação mais serena e menos indiscriminada do que as antigas opiniões</p><p>polêmicas de García Márquez e do grupo. O certo é que essa “escola”, entre o classicismo e o</p><p>regionalismo, ambos mal compreendidos, não podia então contribuir em nada aos elementos</p><p>renovadores de que dispunham os intelectuais caribenhos.</p><p>75. Algumas crônicas de Cartagena já abordavam o tema da universalidade. Curiosamente,</p><p>esse</p><p>conceito somente aparece na crônica, positiva mas “antipiedracielista”, que García Márquez</p><p>dedica a Eduardo Carranza, em 15 de dezembro de 1948.</p><p>76. A fórmula é de Germán Vargas, em sua já citada crônica “Sobre el cuento colombiano”.</p><p>77. É indiscutível que, então, a Costa, muito injustamente, não gozava senão de um escasso</p><p>reconhecimento no panorama cultural do país. Uma comparação entre o nível promissor das</p><p>crônicas literárias que apareciam na página editorial de El Heraldo e as dos diários de Bogotá</p><p>demonstra que os intelectuais caribenhos tinham conceitos e conhecimentos mais avançados.</p><p>Falamos de um nível médio, já que, deixe-se claro, nem tudo era vanguarda na imprensa</p><p>caribenha, e por outro lado a imprensa de Bogotá tinha colunas de grande qualidade, como era,</p><p>por exemplo, “La ciudad y el mundo”, de Ulises (Eduardo Zalamea Borda), em El Espectador.</p><p>78. Com a exceção, talvez momentânea (só dispomos de suas crônicas publicadas nos jornais de</p><p>1947-1948), de Álvaro Cepeda Samudio.</p><p>79. A propósito de sua viagem de La Paz, nas proximidades de Valledupar, que evocou em sua</p><p>“jirafa” “Algo que parece um milagre”, García Márquez lembra que a fez a convite de Manuel</p><p>Zapata Olivella.</p><p>80. César Guerra Valdés — cuja inexistência é provada por uma paciente revisão de antologias e</p><p>bibliogra�as — saiu, segundo García Márquez, da fértil imaginação de Héctor Rojas Herazo.</p><p>García Márquez continuou com a brincadeira ao redigir a crônica de saudação de 29 de junho de</p><p>1948.</p><p>81. A preocupação americana de García Márquez, sugerida no título da crônica sobre Artel, já</p><p>aparecia na crônica sobre Guerra Valdés. Acha-se também notavelmente expressa (em relação ao</p><p>fundamental problema da identidade) no poema em prosa do dia 13 de junho de 1948.</p><p>82. Claro está que já circulavam poemas que seriam parte do livro de Neruda. García Márquez</p><p>devia conhecê-los, mesmo porque já havia lido, em seus tempos de estudante secundário, Veinte</p><p>poemas de amor y una canción desesperada.</p><p>83. Pode-se notar, contudo, certa timidez de García Márquez nos primeiros meses de “La Jirafa”.</p><p>Escreve muito pouco sobre questões literárias em janeiro, fevereiro e março de 1950. É como se</p><p>aparentemente a presença de Vinyes o tivesse inibido, e só se tivesse arriscado após o regresso do</p><p>sábio catalão a Barcelona.</p><p>84. Talvez seja necessário realçar esta a�rmação: no segundo trimestre de 1950 são ecléticas as</p><p>alusões de García Márquez a propósito de autores norte-americanos. Pode ser conseqüência do</p><p>ceticismo e da abertura de José Félix Fuenmayor (cf. “jirafa” de 27 de maio de 1950), num</p><p>momento em que já não se exercia a in�uência diária de Vinyes. Além disso, parece que, em</p><p>abril, maio e junho, quando ia iniciar a redação de A revoada, García Márquez procurou ver se</p><p>algum modelo diferente do faulkneriano lhe poderia trazer exemplos mais proveitosos para o</p><p>que pretendia escrever. De qualquer maneira, essa dúvida metódica que se percebe em “La Jirafa”</p><p>— se realmente existiu — logo se resolve em favor de Faulkner.</p><p>85. O motivo aparece de forma incompleta na crônica inicial, de 21 de maio de 1948 (“escutava-</p><p>se o rumor que fazia o açúcar quando subia até as laranjas”) e na de 27 de maio (“...para que sua</p><p>armadura tenha a oportunidade de voltar a ser árvore”).</p><p>86. A mesma convicção pessoal de uma estagnação ou de um retrocesso histórico bem podia</p><p>gerar uma atitude individual distinta, ou militância política.</p><p>87. “Jirafas” como “O hóspede” (19 de maio de 1950), “Anotações” (9 de janeiro de 1951),</p><p>“Outras anotações” (10 de janeiro de 1951), “Anotações” (29 de janeiro de 1951). Algumas</p><p>crônicas de Cartagena já abordavam o tema. Como é o caso de “Punto y aparte”, de 8 de junho de</p><p>1948, sobre o macaco do parque (termos como “dinastias”, “antepassados”, “genealogias” etc.), e</p><p>mais ainda o �nal do “Punto y aparte” de 17 de junho: a negra estremece “como se sentisse no</p><p>ventre as a�adas dentadas que vão cicatrizando sua dinastia”.</p><p>88. “De cómo Natanael hace una visita” (em Crónica, nº 2, 6 de maio de 1950) baseia-se num</p><p>núcleo anedótico que é o mesmo da “jirafa” “O hóspede”: um homem chega a uma casa onde</p><p>vivem duas mulheres. A particularidade de “De cómo Natanael...” tem suas raízes no fato de que</p><p>a narração assume o ponto de vista do visitante, caso único nesse período (ele só se repetirá, e</p><p>muito mais tarde, em O outono do patriarca: o personagem do patriarca tem muito a ver com</p><p>esses visitantes e redentores dos relatos de 1950.</p><p>89. Cf. meu artigo “García Márquez o el deterioro de los mitos”, publicado na Gaceta Colcultura,</p><p>nº 8, dezembro de 1976, Bogotá, p. 5-8. O conto “Un hombre viene bajo la lluvia” foi publicado</p><p>no Magazín Dominical de El Espectador de 9 de maio de 1954 (p. 16 e 31). Aparentemente, trata-</p><p>se de uma primeira publicação e não de uma reedição. De qualquer maneira, o conto apresenta</p><p>todas as características dos relatos garciamarquianos de 1950 e 1951 (com a marca suplementar</p><p>de seu histórico pessimismo), e de fato seu autor dele se lembra como “uma coisa das que</p><p>escrevia quando fazia Crónica”. Não se pode descartar a possibilidade de que tivesse sido</p><p>publicado no semanário de Barranquilla e omitido no sumário por El Heraldo. Por outro lado,</p><p>existe uma grande distância em relação a “Um dia depois do sábado”, que seria premiado num</p><p>concurso nacional de contos dois meses depois da publicação de “Un hombre viene bajo la</p><p>lluvia”.</p><p>90. Justamente sobre a arbitrariedade dos calendários escreveu García Márquez uma de suas</p><p>primeiras “jirafas” (“Em busca do tempo perdido”, 7 de janeiro de 1950).</p><p>91. A respeito do momentâneo abandono de La casa e a redação de A revoada, fornece-nos</p><p>dados su�cientes, inclusive com datas �dedignas, uma leitura atenta das narrativas aparecidas em</p><p>1950 e 1951. Torna-se evidente que a narração de A revoada tomou todo o período a partir de</p><p>junho ou julho de 1950 até, no mais tardar, junho de 1951 (cf. meu trabalho “García Márquez en</p><p>1950 et 1951: quelques données sur la genèse d’une oeuvre”, em Caravelle, nº 26, junho de 1976,</p><p>Toulouse, p. 123-146). García Márquez con�rma a data inicial, e tem certeza de que já havia</p><p>terminado o romance quando regressou a Cartagena, em fevereiro de 1951. A respeito do projeto</p><p>de La casa, o primeiro testemunho de García Márquez é tardio (o texto “Autocrítica”, de março de</p><p>1952). Mas tem de ser La casa o projeto de romance — projeto embrionário, fragmentos e não</p><p>livro acabado — ao qual Héctor Rojas Herazo dava o arbitrário título de Ya cortamos el heno, em</p><p>1949. Qualquer dúvida a respeito da existência do projeto, e sobre seu título, é desfeita por uma</p><p>carta de Germán Vargas a Ramón Vinyes, de 30 de setembro de 1950: “Gabito abandonou La</p><p>casa e parece estar às voltas com outro romance.”</p><p>92. A bastante desfalcada coleção de El Heraldo conservada na Biblioteca Nacional de Bogotá</p><p>não permite resgatar nenhum dos textos perdidos em Barranquilla; em Bogotá, conservam-se</p><p>séries que coincidem com as séries intactas de Barranquilla. Por erros de impressão, em algumas</p><p>“jirafas” há fragmentos total ou parcialmente ilegíveis. Reconstitui-se texto sempre que possível.</p><p>MAIO DE 1948</p><p>Habitantes da cidade, havíamo-nos acostumado à garganta metálica que</p><p>anunciava o toque de recolher. O relógio da Boca del Puente, outra vez</p><p>empinado sobre a cidade, com sua limpa, com sua esbranquiçada</p><p>convalescença, perdera o status de coisa familiar, o insubstituível lugar</p><p>de animal doméstico. Nas últimas noites já os nossos olhares não iam</p><p>perguntar-lhe pelo retorno apaixonado daquela voz que nos �cou</p><p>soando no ouvido como um pássaro eterno; ou pelo espaço temporal em</p><p>que cortamos o tenso �o da aventura, mas então tratávamos de impedir,</p><p>de deter com um gesto último e desesperado aquela lenta marcha,</p><p>angustiante que ia precipitando as horas contra uma fronteira conhecida</p><p>que era, por sua vez, a formidável margem onde nossa liberdade se</p><p>curvava. Diariamente, à meia-noite, ouvíamos lá fora a clarinada</p><p>cortante que se antecipava ao novo dia como outro galo grande, errado</p><p>e</p><p>absurdo, que perdera a noção do seu tempo. Caía então sobre a cidade</p><p>amuralhada um silêncio grande, pesado, inexpressivo. Um longo silêncio</p><p>duro, concreto, que penetrava em cada vértebra, em cada osso do</p><p>organismo humano, consumindo suas células vitais, solapando sua ereta</p><p>anatomia. Poderia ter sido aquele bom silêncio elementar das coisas</p><p>menores, descomplicado; esse silêncio natural e espontâneo, carregado</p><p>de segredos que passeia pelos balcões anônimos. Este, porém, era</p><p>diferente. Parecido em alguma coisa a esse silêncio profundo,</p><p>imperturbável, que antecede às grandes catástrofes. Afundados nele, só</p><p>ouvíamos o ruído rebelde, impotente, da nossa respiração, como se ali</p><p>adiante, na baía, ainda estivesse Francis Drake com seus barcos de</p><p>abordagem.</p><p>*</p><p>A madrugada — em seu sentido poético — é uma hora quase lendária</p><p>para a nossa geração. Tínhamos ouvido nossas avós dizerem não sei que</p><p>coisas fantásticas daquele esquecido pedaço do tempo. Seis horas</p><p>construídas com uma arquitetura diferente, talhadas na mesma</p><p>substância das histórias. Falavam-nos do bafo quente dos gerânios</p><p>in�amados sob um balcão por onde subia o amor até o sono dos jovens.</p><p>Disseram-nos que antes, quando a madrugada era verdade, ouvia-se no</p><p>pátio o rumor que se desprendia do açúcar quando subia às laranjas. E o</p><p>grilo, o grilo exato, invariável, que desa�nava seus violinos para que</p><p>coubesse em seu ar a rosa musical da serenata.</p><p>Nada disso encontramos no desolado patrimônio dos nossos</p><p>antepassados. Nós recebemos o nosso tempo desprovido desses</p><p>elementos que faziam da vida uma jornada poética. Entregaram-nos um</p><p>mundo mecânico, arti�cial, no qual a técnica inaugura uma nova</p><p>política da vida. O toque de recolher é — nesta ordem de coisas — o</p><p>símbolo de uma decadência. Há uma grande distância histórica entre</p><p>esta clarinada proibida e a voz amável do guarda-noturno colonial. Este</p><p>de agora é irmão daquele que os ingleses ouviram depois do primeiro</p><p>bombardeio de Londres. Igual ao de Varsóvia. O mesmo que levantou</p><p>sua trincheira de terror ante os olhos assombrados das crianças alemãs</p><p>que trocaram seus piões por metralhadoras. Com igual angústia todos os</p><p>ouvidos da Europa o ouviram; com esta mesma sensação surpreendente</p><p>de que algo está desabando às nossas costas. Com este mundo</p><p>materializado, onde os peixes têm de abrir água aos submarinos, com</p><p>esta civilização de pólvora e clarins, como nos podem pedir que sejamos</p><p>homens de boa vontade?</p><p>Desde ontem, felizmente, não ouvimos o toque de recolher. Foi</p><p>suspenso precisamente quando já se havia incorporado aos costumes da</p><p>cidade. Muitos sentiam saudade dessa destemperada e obrigatória</p><p>serenata. Outros voltarão — voltaremos? — às visitas, recuperaremos</p><p>nossa agradável disciplina para esperar a madrugada cheirando a</p><p>bosque, a terra umedecida, que virá como uma nova Bela Adormecida</p><p>esportiva e moderna. Ou talvez, certos de que nada já nos impedirá de</p><p>madrugar, iremos dormir mansamente — estranhos animais</p><p>contraditórios — antes que os relógios dobrem a esquina da meia-noite.</p><p>*</p><p>Não sei o que o acordeão tem de tão comunicativo que quando o</p><p>ouvimos encolhe-se o nosso sentimento. Perdoe, senhor leitor, este</p><p>princípio estapafúrdio. Não me era possível começar de outra forma</p><p>uma crônica que pudesse levar o degastado título de “Vida e paixão de</p><p>um instrumento musical”. Eu, pessoalmente, faria levantar uma estátua a</p><p>esse fole nostálgico amargamente humano, que tem tanto de animal</p><p>triste. Nada sei de concreto acerca de sua origem, de sua longa trajetória</p><p>boêmia, de sua irrevogável vocação de vagabundo. Provavelmente deve</p><p>haver quem tencione subir pela árvore inútil de uma complicada</p><p>genealogia musical até encontrar, em não sei qual ignorado lugar da</p><p>história, o primeiro homem que acordou certa manhã com a necessidade</p><p>imediata de inventar o acordeão. A nós, senhor leitor, nada disso nos</p><p>interessa. Devemos nos conformar em crer que — como todos os</p><p>vagabundos decentes — esse instrumento apresentou-se ante nossos</p><p>olhos surpreendidos sem certidão de nascimento e sem folha corrida.</p><p>Teve — isto, sim, é inquestionável — uma adolescência dissipada,</p><p>obscura, raiada de turbulentos amanheceres. Seus melhores anos</p><p>transcorreram em um canto anônimo, coberto de fumaça, de uma</p><p>taberna alemã. Lá, enquanto a cerveja subia pelo sangue dos homens,</p><p>buscando o clímax das brigas, ele aprendeu a dizer sua musiquinha</p><p>nostálgica, intranscendente, ao ouvido das mulheres decaídas. Ele fez de</p><p>linho cru, de cânhamo indômito, o sonho da fêmea por quem sentia</p><p>arder a ânsia no coração e tinha, apesar de tudo, a dolorosa certeza de</p><p>que nunca desceria até sua cintura.</p><p>Assim, com essa implacável lição de humanidade, continuou</p><p>embalando a exaltação dos subúrbios, desdobrando seu ventre em todos</p><p>os portos como qualquer marinheiro irremediável. A valsa francesa</p><p>passou por seus pulmões manifestando essa carga de tristeza, essa</p><p>irreparável melancolia que fazia desabar fulgores nos olhos das Mignon e</p><p>das Margot.</p><p>O acordeão sempre foi, como a nossa gaita, um instrumento</p><p>proletário. Os argentinos quiseram dar-lhe categoria de salão, mas ele,</p><p>boêmio empedernido, mudou de nome e fez os �lhos bastardos. O</p><p>fraque não sentava bem à sua dignidade de vagabundo convicto. E assim</p><p>é. O acordeão legítimo, verdadeiro, é este que se nacionalizou entre nós,</p><p>no vale de Madalena. Incorporou-se aos elementos do folclore nacional</p><p>ao lado das gaitas, dos “millos” e dos bombos costeiros. Ao lado das</p><p>guitarras de Boyacá, Tolima, Antióquia. Aqui o vemos em mãos dos</p><p>jograis que vão de ribeira em ribeira levando sua quente mensagem de</p><p>poesia. Aqui está com a sua velha vestimenta de marinheiro sem norte.</p><p>Como sei que não lhe faltam inimigos, quis escrever esta crônica que</p><p>tem um princípio e terá um �nal estapafúrdios.</p><p>Ouça o acordeão, leitor amigo, e verá com que dolorida saudade</p><p>encolhe-se o seu sentimento.</p><p>*</p><p>Enquanto o Conselho de Segurança discute o intrincado problema da</p><p>Palestina, as mulheres, �éis à eterna política da coqueteria, discutem se é</p><p>ou não conveniente encompridar dez centímetros às suas saias. A</p><p>polêmica tomou de um dia para o outro os quatro pontos cardeais desse</p><p>universo independente, autônomo, que não se preocupa com doutrinas</p><p>Monroe nem atas de Chapultepec. A jurisdição do sexo feio termina ali.</p><p>Nessa fronteira imprecisa, sem delimitações geográ�cas, onde</p><p>irremediavelmente se rompem, começa o caprichoso, o pitoresco e</p><p>volúvel país da moda. Nós — os deste lado do sexo —, ante a</p><p>impossibilidade de conhecê-lo, limitamo-nos a acreditar que é um</p><p>mundo diferente, descomplicado, sem fenômenos atmosféricos e sem</p><p>forças de gravidade, onde os habitantes têm uma digestão perfeita e uma</p><p>consciência limpa. Um país ideal de onde um dia — sem cartões de</p><p>visita — nos chegou a maxissaia.</p><p>No princípio precisou lutar duramente, enfrentar a resistência civil</p><p>dos maridos que sabiam que dez centímetros de saia eram su�cientes</p><p>para desequilibrar o orçamento nacional. Precisou argumentar contra</p><p>uma geração que tinha os sentidos acostumados a uma moda mais</p><p>franca, mais elementar, e que não podia permitir que joelhos e</p><p>tornozelos passassem a ser um espetáculo de lenda. Mas a maxissaia era</p><p>irrevogável vontade ancestral, o retomo ao puritanismo ou à recatada</p><p>vaidade de nossas avós. E precisou ainda prosperar.</p><p>Por isso, por ser esta moda um inesperado retorno ao pretérito,</p><p>acredito que esteja submetida a leis cronológicas especiais. A um tempo</p><p>que poderia ser o inventado pelos desenhistas da “saia com folhinhas”.</p><p>A frase entre aspas, que poderia apresentar-se em qualquer baile</p><p>como um verso modernista, eu a deixo para signi�car essa ampla</p><p>campanha jovial e serena que as nossas mulheres encetaram há alguns</p><p>dias. O elemento decorativo são as folhas dos calendários, jogadas ali,</p><p>sem premeditação, como se fossem atiradas à cesta de papéis. Mas o</p><p>resultado — e isto deve ter sido imaginado por alguma aborrecida</p><p>secretária — é simplesmente maravilhoso. Vêm</p><p>começaram as coisas. — Juanchito Fernández. — Como de costume. — Orquídeas para Chicago.</p><p>— Nus, o que palitava os dentes. — Ilia em Londres. — A moda no Parlamento.</p><p>Agosto de 1950</p><p>O alemão do machado. — Qualquer coisa. — Vinte e quatro!. — Piadinhas bobas. — Margareth</p><p>se casa por vontade própria. — Ritornello. — A loura e o ladrão. — Morte por humildade. —</p><p>Caricatura de Kaa. — O homenzinho da aveia. — Margarita. — Tesouras providenciais.</p><p>Setembro de 1950</p><p>Defesa da guaracha. — O romance de Creta. — O �nal de Tassuola. — O espetáculo continua. —</p><p>A verdadeira história de Nus. — O inferno olfativo. — Despropósitos. — As coisas de Cândido.</p><p>— A primeira queda de G.B.S.. — O clube de La Jirafa. — Contradições hindus. — John, o</p><p>Horrível. — A ceia dos ilusionistas. — O gladiador e as “jirafas”. — Uma família ideal. — A</p><p>verdadeira história do sr. Harriman. — O assassino dos corações solitários. — A fôrma de seus</p><p>sapatos. — Levarás a marca.</p><p>Outubro de 1950</p><p>O bom barbeiro de Lincoln. — Instante. — O pessimista. — O homem da torre Eiffel. — Um</p><p>pro�ssional do pesadelo. — Final de Natanael. — O casamento inacabado. — Ladrões de</p><p>bicicletas. — Onde estão os bêbados?. — Coisas de vegetarianos. — O beijo: uma reação química.</p><p>— Fantasma diagnosticado. — A triste história do dromedário. — Salvador, o místico. — Amor</p><p>entre tartarugas. — A anedota da vaca. — A sereia escamada.</p><p>Novembro de 1950</p><p>A Luis Carlos López, nos vinte anos de sua morte. — A maneira de ser nudista. — A última</p><p>anedota de G.B.S.. — O Tibete não existe. — Para um primeiro capítulo. — O grande velho</p><p>“Figurita”. — Agora Bartolo não está em seu posto. — Faulkner, Prêmio Nobel. — Um continho</p><p>triste. — Um problema de aritmética. — Possibilidades da antropofagia. — Ny. — O falso</p><p>soldado desconhecido. — Se eu fosse você. — Aspirações da calvície. — Diezpesos. — O piano de</p><p>cauda. — Gondoleiros. — O colete estampado.</p><p>Dezembro de 1950</p><p>Joe Louis. — Dezembro. — Decadência do diabo. — O menino das serpentes. — O quarto para</p><p>meditar. — A rainha em Cartago. — Vicentico Martínez. — Uma viagem à Lua. Entretanto.... —</p><p>Um presente para a esposa. — Futebol das grandes potências. — O segredo. — A reportagem de</p><p>Yolanda. — A amiga. — Temporada teatral. — Um anúncio na porta. — Carta com</p><p>acompanhamento de violino. — A pobre Margareth Truman. — Brinquedos para adultos. —</p><p>Pascoal!. — O urso. — Todos os que estão. — O discurso do peru.</p><p>Janeiro de 1951</p><p>Um cadáver no armário. — Naturezas mortas. — Xadrez para valer. — O homem mais</p><p>malvestido do mundo. — Anotações. — Outras anotações. — Meus interesses criados. — O</p><p>mambo. — Um bom dia para retratar-se. — A entrevista de Faulkner. — Noivas em trajes de rua.</p><p>— Uma viagem frustrada. — Anotações. — Jorge Álvaro. — O menor circo do mundo.</p><p>Fevereiro de 1951</p><p>Um fevereiro indigesto. — Canibais e antropófagos. — História dos noivos patetas que leram</p><p>versos de Bernárdez. — O homem que cantou no banheiro. — A ceia do disparate. — Memórias</p><p>de um aprendiz de antropófago. — O homenzinho do guarda-chuva. — Primeiro relato do</p><p>viajante imaginário. — Segundo relato do viajante imaginário. — Terceiro relato do viajante</p><p>imaginário. — Quarto relato do viajante imaginário. — Quinto relato do viajante imaginário. —</p><p>Sexto relato do viajante imaginário. — Sétimo relato do viajante imaginário. — Oitavo relato do</p><p>viajante imaginário. — Nono relato do viajante imaginário.</p><p>Março de 1951</p><p>Décimo relato: teatro provinciano. — Aquele que dirige sua loja. — Relato do viajante</p><p>imaginário. — Os aviões saem ao amanhecer. — O menor conto do mundo. — Os lagartos do</p><p>amor. — Ladrões de mecanogra�a. — Os fantasmas andam de bicicleta. — Escalona plagiado. —</p><p>Um segredo da frivolidade.</p><p>Abril de 1951</p><p>Não era uma vaca qualquer. — Indiscrições da alta costura. — Re�exões sobre a lua-de-mel. — O</p><p>complexo dos sapatos que rangem. — O tédio dos chinelos. — Tony, o amigo das andorinhas. —</p><p>Velhas canções de Escalona. — Mambo em Nova York. — O direito de cometer. — O mistério da</p><p>pianola. — Uma maneira de morrer na véspera.</p><p>Maio de 1951</p><p>Pelo caminho da cozinha. — A sereia de Nápoles. — Um cachimbo contra Truman. — Os</p><p>móveis da morte. — Parlamentos de todo o mundo. — A crônica anual. — O barbeiro da</p><p>história. — Maridos a curto prazo. — Uma oração em memória do chapéu de palhinha.</p><p>Junho de 1951</p><p>O direito dos outros. — A controvérsia dos pares. — De ontem até hoje. — A prefeita. — Um</p><p>autor e um livro. — Os funerais de Jim Gersnhart. — A alta fofocagem. — H.F.A.. — O diabo de</p><p>Pérez Prado. — Secreta isla. — Heleno de ponta a ponta. — Audiência com música. —</p><p>Otorrinolaringologia. — Negro. — Kaiser. — A verdade da história. — Perdas e ganhos.</p><p>Julho de 1951</p><p>Breve despropósito.</p><p>Fevereiro de 1952</p><p>Um esclarecimento de dois gumes. — Como se tivesse 11 varas. — A propósito de</p><p>colecionadores. — O pobre Brucutu. — Alfonso Carbonell. — O amor pelo telefone. — Nostalgia</p><p>da cauda. — O festival da feiúra.</p><p>Março de 1952</p><p>Uma pequena história rural. — Mais uma vez “Figuritas”. — Algo que parece um milagre. — O</p><p>bom Willie. — É preciso parecer com o nome. — O homem que será um gorila. — Uma tragédia</p><p>antiga. — Rita resolve envelhecer. — Se ela fosse Leopoldo. — Autocrítica.</p><p>Abril de 1952</p><p>Um senhor que muda de casa. — Melhor seria que estivéssemos mortos. — Então vieram os</p><p>palhaços. — Nosso futuro fantasma. — Até a natureza comete seus erros. — A casa ao lado. —</p><p>Ratos e homens.</p><p>Maio de 1952</p><p>Um dia destes.... — Estranha competência. — Viajando incógnito. — A arte do desjejum. —</p><p>Nossa música em Bogotá. — Aqueles bichinhos de caramelo. — Os primeiros serão os últimos.</p><p>— O bebedor de Coca-Cola. — Água e nada mais. — A lenda que se tornou verdade.</p><p>Junho de 1952</p><p>Rostro en la soledad. — Enigma para depois do desjejum. — Primeira solução do enigma. —</p><p>Mais duas soluções. — La casaca negra. — Pastor. — Uma cidade exige seu bobo. — Solução �nal</p><p>do enigma. — A embaixada folclórica. — A mulher que se parece com a cidade. — Mais um</p><p>quadrinho para o homem feliz. — Um poeta na cidade.</p><p>Julho de 1952</p><p>A morte é uma dama impontual. — Negócio entre excêntricos. — Como quem vai a uma festa.</p><p>— 31 japoneses e uma japonesa. — Exercícios de linguagem. — Sartre muda de horta. — Moral</p><p>sem fábula. — O viúvo. — As acácias não morrem de pé.</p><p>Agosto de 1952</p><p>Júnior vai se casar. — Os anjos da guarda de Margareth. — Bremen precisa de um canhão. — 82</p><p>anos em pára-quedas. — Greta Garbo não morreu. — A paz gramatical. — Lugares-comuns.</p><p>Setembro de 1952</p><p>Elegia. — Falando de circos. — É preciso ter má ortogra�a. — Um bom livro por três razões. —</p><p>Discurso dos enforcados. — Ignorância contabilizada. — ... E agora, El Cafetal. — O ônibus das</p><p>nove.</p><p>Outubro de 1952</p><p>Otávio. — O �nal da história. — Coisas da pequena diferença. — O jogador e a desleixada. — Os</p><p>trens viraram cidades. — Mistérios do romance policial. — Mais que uma tragédia, um tango. —</p><p>Lógica feminina. — A geração de 52. — Furacões civilizados. — Política sem emoções.</p><p>Novembro de 1952</p><p>Perdeu-se o diabo. — Um príncipe de óculos. — Einstein disse não. — Os piratas</p><p>enlouqueceram. — O capitão.</p><p>Dezembro de 1952</p><p>O suicídio de Papai Noel. — Recado aos ladrões. — La Sierpe. Um país na Costa Atlântica.</p><p>1950 ou 1952</p><p>Acabaram-se os barbeiros.</p><p>Apêndice</p><p>Cerimônia inicial. — A casa dos Buendía.</p><p>Cronologia</p><p>Índice remissivo</p><p>PRÓLOGO</p><p>No dia 9 de abril de 1948, à uma da tarde, o líder liberal e populista Jorge</p><p>Eliécer Gaitán sucumbiu atingido pelas balas de um desconhecido ao</p><p>sair do seu escritório de advocacia, situado na carrera Séptima, próximo</p><p>ao cruzamento com a avenida Jiménez de Quesada, em pleno centro de</p><p>Bogotá. Meia hora depois Gaitán falecia. A notícia — primeiro do</p><p>atentado e posteriormente da morte do líder — desencadeou o furor</p><p>vingativo e desesperado das massas populares que se sublevaram numa</p><p>insurreição espontânea e desordenada que deixaria um elevado saldo de</p><p>mortos, saques, incêndios e ruínas. Foi o chamado “Bogotazo”, que logo</p><p>se estenderia, como um eco sangrento, por todas as cidades</p><p>assim vestidas as nossas</p><p>mulheres, transitando por um calendário novo, desordenado, desfolhado</p><p>de um tempo que não é o tempo lógico, matemático, a que estávamos</p><p>acostumados, mas a um outro que, pelo informal, pode ser o que está</p><p>vigente pelas variações da moda. Assim vestida, a nossa mulher é</p><p>intemporal. Movimentando-se nesse tempo pessoal, privado, nossas</p><p>moças, com sua �exibilidade, com esse vago desapego amoroso, darão</p><p>início a um renascimento da galanteria.</p><p>Já não haverá para nós outra “quinta-feira” senão essa que �cou</p><p>adormecida, escutando o rumor de seus joelhos. Nossa “sexta-feira” será</p><p>a que se curvou sobre o seu ventre e nele pôs o seu ouvido para sentir o</p><p>tropel de uma distante cavalgada. Abril nos chegará da cintura da noiva</p><p>para inventar uma moderna primavera.</p><p>Mas talvez — e isto é o pior — hoje não seria domingo no vestido de</p><p>todas as moças.</p><p>*</p><p>Eu poderia dizer: os helicópteros estão chegando. Dizer que à nossa</p><p>paisagem está fazendo falta a sua presença de pássaro fantástico,</p><p>lendário. Que as crianças camponesas sentirão o rumor de sua</p><p>vizinhança pelos �os de seus papagaios. Que o verão vir, distraídos,</p><p>abanando o céu das árvores, a pousar sobre a terra recém-arada, à beira</p><p>d’água, como um barco encalhado.</p><p>Recordaria As mil e uma noites. Contaria o feitiço dos tapetes</p><p>mágicos que, só ao ouvir uma voz, levavam o homem por cima dos</p><p>camelos e das montanhas. Anotaria que o viajante ia glorioso, belo e</p><p>trans�gurado por entre as espadas do ar, respirando um cheiro de</p><p>distância, enquanto desferia a sua canção luminosa e longa como um</p><p>alfanje.</p><p>Poderia falar da aventura do vôo. Dizer que sua embriaguez é a</p><p>revelação de nossa escondida bondade. Que quando sentimos o avião</p><p>suspenso sobre os ombros do ar descobrimos inesperadamente que</p><p>ainda temos a capacidade de nos evangelizar. Recordaria então as coisas</p><p>que temos visto outras vezes desde a nossa elevada estatura arcangélica.</p><p>Falaria daquela aldeia anônima pastoril que passou certa vez à margem</p><p>de nossa viagem. Diria que o ventre da aldeia estava curvado. Cheio de</p><p>uma gravidez frutal, de um silêncio que em algo se parecia ao de uma</p><p>mãe adormecida. Que mais além, crescido, estava o rio indispensável. E</p><p>vinha mansamente, habitado por cachos de uva e crianças, como se a</p><p>paisagem não passasse senão pela memória da aldeia.</p><p>Poderia recordar agora, como daquela vez, o muito de falso, de</p><p>arti�cial que havia nessa beatitude. Dizer que há um doloroso</p><p>desequilíbrio entre a velocidade da máquina e a tranqüilidade do</p><p>espírito. Que o trepidar dos motores, a ânsia da rota que se vai</p><p>prolongando para trás como uma sede implacável, não nos pode</p><p>proporcionar aquela brancura, aquela limpeza de alma.</p><p>Poderia, agora sim, voltar ao helicóptero. Dizer que ele tem sobre o</p><p>avião não só as vantagens de que pode ancorar à margem de uma árvore,</p><p>descer até um leito de grama, permanecer suspenso no ar,</p><p>pensativamente; mas também — e esta é a principal — a vantagem de</p><p>obter a serenidade. Eu me lembraria dos pássaros e diria que o poético, o</p><p>musical do helicóptero, é o pouco que tem de máquina e o muito que</p><p>tem de colibri.</p><p>Eu poderia dizer todas estas coisas e muito mais, e �car a�nal com a</p><p>desolada certeza de não haver dito nada.</p><p>*</p><p>Cruci�cado na metade da tarde está o espantalho. Tem apenas a idade de</p><p>uma colheita, mas sua proximidade cheira a frutas e a eternidade. O</p><p>gesto duro, inexpressivo, vem de sua altura. Uma serena luminosidade</p><p>habita-o por dentro, trans�gurando-o. Os pássaros, jubilosos, vieram</p><p>rodeá-lo, desfrutar de sua vizinhança.</p><p>Ontem, precisamente, meu vizinho de coluna1 falava do</p><p>irremediável desprestígio em que caíram os fantasmas. Algo parecido</p><p>acontece aos espantalhos. Sua decadência, porém, o digni�ca. Os</p><p>fantasmas passaram de moda para sempre. Ninguém tentará</p><p>rejuvenescê-los, polir seu enferrujado prestígio. Ao espantalho, em</p><p>compensação, bastará mudar de lugar, renovar sua indumentária, para</p><p>que o homem con�e outra vez em sua boa qualidade. A cada nova</p><p>colheita, os pássaros terão recuperado sua capacidade de se enganar.</p><p>Voltarão a evitar a proximidade daquela coisa perpétua, estatuária, que</p><p>levanta seus braços para que ninguém detenha a viagem vertical do grão</p><p>ou impeça a semente de subir até a altura da espiga.</p><p>Apesar disso, chega o dia em que os pássaros se acostumam a ela.</p><p>Tarde demais para a sua fome, porque o semeador já recolheu os frutos.</p><p>O campo está então trespassado de luz e cansado, com o mesmo glorioso</p><p>cansaço de uma recém-parida.</p><p>É aqui onde começa o desprestígio do espantalho como animal de</p><p>terror. As aves descobrem, bruscamente, que não há nada a temer. Que</p><p>seus braços não estão em atitude de ira, senão de prece. Então todas as</p><p>criaturas do ar se precipitam, regozijadas, contra a inofensiva serenidade</p><p>daquele ente esfarrapado, desprezível, que tem o rosto voltado para a</p><p>súplica.</p><p>Desde esse dia não fará mais jus a seu nome. Quando o fantasma foi</p><p>relegado ao lugar da lenda esteve mais em paz com sua denominação. Os</p><p>homens não o consideraram como uma coisa real, existente, que havia já</p><p>deixado de cumprir sua missão, senão como um produto de sua própria</p><p>fantasia. Os pássaros, em troca, sabem da realidade do espantalho</p><p>precisamente quando está na plenitude de sua decadência.</p><p>Não o humilham, enaltecem-no. Cercam-no, fruti�cam-no de</p><p>trinados, despem-no de sua pitoresca e ridícula indumentária, para que</p><p>sua armadura tenha a oportunidade de voltar a ser árvore.</p><p>*</p><p>Um novo, inteligente e estranho personagem incorporou-se à nossa</p><p>redação. Apresentou-se num dia qualquer procedente de não sei que</p><p>desconhecido país, situado ao norte da extravagância. Um homenzinho</p><p>intranscendente, desprevenido, que aciona o mais difícil e pitoresco</p><p>mosaico de gesticulações. O animal da timidez passeava em sua voz e a</p><p>fazia despencar pelos despenhadeiros mais intransitáveis da gramática.</p><p>Um homem positivamente desadaptado. Sem �liação política de�nida,</p><p>teria sido fácil confundi-lo com um anarquista de mau gosto. Sem</p><p>credenciais diplomáticas, tinha a consumada dignidade de um ministro</p><p>plenipotenciário fora de moda.</p><p>Iniciou-se no tema de sua predileção falando suavemente, com</p><p>palavras cercadas por uma corrente de lirismo barato. Logo, quando em</p><p>seu interior se desatou a tempestade oratória, quando lhe subiu de grau a</p><p>temperatura verbal, falou de sua peregrinação pelo desordenado mundo</p><p>do idioma, de suas campanhas sanitárias em praças e descampados, dos</p><p>procedimentos de puri�cação brotados de sua frondosa experiência de</p><p>andarilho. Sua entonação, sua entrincheirada voz de caudilho municipal,</p><p>de eleitoreiro incorrigível, podiam estremecer de inveja a muitas de</p><p>nossas estátuas.</p><p>O homem, insigni�cante, tinha, apesar de tudo, um porte senhorial.</p><p>Por seus olhinhos inquietos circulava o sorriso doloroso da ironia,</p><p>enquanto seus gestos deixavam no ar um cheiro de loções francesas e</p><p>brilhantina nacional. Era uma curiosa mostra de cavaleiros andantes e</p><p>Sanchos decadentes — pálido, frágil, pré-rafaélico — como se devesse</p><p>ser posto a secar dentro de uma antologia de versos centenaristas.</p><p>Agora está aqui de�nitivamente incorporado ao nosso trabalho</p><p>diário, suspenso de um prego, na redação. Aí o deixou o lápis genial de</p><p>Héctor Rojas Herazo, talvez sem saber que aquela caricatura sem</p><p>importância desataria a mais implacável campanha puri�cadora.</p><p>É ele hoje a nossa cotidiana e bené�ca dor de cabeça. Desce de seu</p><p>pedaço de papel e nos aparece na máquina por cima do ombro.</p><p>Começamos a escrever uma crônica, e ele, como um pro�ssional da</p><p>sinceridade, grita-nos ao ouvido com uma voz de resmungos: “O senhor</p><p>nunca aprenderá a escrever, sr. García. Torça o pescoço desse cisne</p><p>decadente! Pare com essas bobagens e diga coisas com substância. É</p><p>preciso iniciar uma campanha contra a frondosidade lírica, eliminar essa</p><p>adjetivação a três por quatro. Um verdadeiro labor de saúde literária.”</p><p>Este é, em poucas palavras, o membro mais útil da nossa redação. É</p><p>o encarregado</p><p>de arquivar tudo o que não vale nada. Ali, no próprio</p><p>prego que sustenta a desajeitada �gura, está pendurada a obra</p><p>impublicável de todos os Mingos Revulgos espontâneos.</p><p>Ali, amigos leitores, podem ser encontrados amanhã os originais</p><p>desta crônica.</p><p>*</p><p>Frances Drake é uma respeitável dama norte-americana que mantém</p><p>uma minuciosa e diária correspondência com os astros. Noite após noite,</p><p>sem vassoura nem fórmulas apocalípticas, esta bruxa moderna vai ao</p><p>terraço de sua casa de Hollywood para receber os desinteressados e</p><p>e�cazes conselhos que, por seu intermédio, enviam-nos os sereníssimos</p><p>e silenciosos corpos siderais. Às vezes, como registrava um distinto</p><p>cronista de El Especialista, nossos distantes conselheiros preocupam-se</p><p>exclusivamente com a saúde dos colombianos. Com efeito, a sra. Frances</p><p>Drake, em sua coluna de ontem, adverte aos nascidos entre 23 de agosto</p><p>e 23 de setembro sobre a necessidade de se tornarem “um pouco</p><p>conservadores em outros tempos”. Sem que isso queira dizer,</p><p>naturalmente, que os astros tenham uma �liação liberal.</p><p>Talvez o êxito do horóscopo pessoal esteja baseado em que — como</p><p>o velho oráculo de Delfos — ele orienta o curso das relações familiares.</p><p>Todas as manhãs as donas-de-casa deitam um carinhoso e atento olhar a</p><p>essas colunas para saber a que temperatura amanheceu o amor de seus</p><p>maridos. E o catastró�co �m de muitos romances adolescentes se deve,</p><p>na maioria dos casos, a uma involuntária imprudência de Saturno ou a</p><p>um equívoco lamentável da Estrela Polar.</p><p>Apesar disso, a imprensa destes dias tem demonstrado que os</p><p>oráculos não só desequilibram a estabilidade das relações domésticas</p><p>mas também, inesperadamente, intervêm na órbita da complicada</p><p>política internacional.</p><p>Os habitantes da humilde aldeia de Assis, a italianíssima pátria de “Il</p><p>Poverello”, de Francisco, o amigo dos pássaros, estão preparando suas</p><p>consciências para uma boa morte. O súbito transbordamento da fonte</p><p>aldeã fez a tranqüilidade pastoral virar desassossego. A boa gente de</p><p>Assis sabe há muito que o “Fosso das prisões” só transborda de suas</p><p>ribeiras quando sobre o mundo se agita a pavorosa asa da catástrofe.</p><p>A in�uência dos astros, porém, não podia terminar aí. Hoje — como</p><p>para reforçar o que já está palpável na tensão diplomática das grandes</p><p>potências — os pací�cos habitantes do Tibete, temendo uma guerra</p><p>mundial iminente, fecharam à curiosidade estrangeira as portas</p><p>monumentais do seu lendário e misterioso país. A decisão foi tomada</p><p>porque as palavras tremendas do oráculo anunciaram que sobre as</p><p>costas patriarcais e martirizadas do velho Dalai Lama deteve-se, como</p><p>um pássaro absurdo, a ameaçadora vizinhança da morte. Só em meados</p><p>de 1950 os cautelosos cidadãos do Tibete abrirão suas fronteiras à</p><p>curiosidade dos turistas.</p><p>E nós, ao conhecer a data prevista, talvez por exagerada pretensão</p><p>dos nossos horóscopos privados, pensamos que o ancião patriarca, para</p><p>entregar-se outra vez aos problemas da vida pública, só espera pelo</p><p>resultado das nossas eleições presidenciais.</p><p>Nota</p><p>1 O vizinho mencionado por GGM é Héctor Rojas Herazo, que, no dia anterior, falava da</p><p>decadência dos fantasmas em sua coluna “Telón de fondo”.</p><p>JUNHO DE 1948</p><p>O fato de que um museu de Nova York esteja exibindo um longo e</p><p>estranho pergaminho de origem oriental dá motivo para que a imprensa</p><p>comente o assunto no sentido de que foram os chineses os inventores do</p><p>cinema. Ninguém que se haja aproximado da serena margem das antigas</p><p>histórias orientais pode surpreender-se do que tivesse feito esse povo da</p><p>China. Uma gente que inventou a bússola e a pólvora enquanto</p><p>acreditava que o espírito dos antepassados descia na corrente de todos os</p><p>rios; que acreditou em Confúcio e ouviu Lao-Tsé enquanto falava como</p><p>cantava e comia ninhos de andorinhas, tinha su�ciente capacidade para</p><p>inventar o cinematógrafo e muitas coisas mais.</p><p>Por desgraça, a a�rmação dos jornalistas não tem fundamento.</p><p>Naturalmente seria maravilhoso que os nossos �lhos não vissem na</p><p>história dos inventos a branca cabeça de omas A. Edison, mas</p><p>precisassem familiarizar-se com um novo personagem. Quem sabe um</p><p>ancião de barba �uida e nome monossilábico, sentado diante de uma</p><p>dessas paisagens infantis, deliciosamente desproporcionadas, que a gente</p><p>via nas bordas da louça japonesa.</p><p>Entretanto, já que se está tratando de dar a esse antigo pergaminho a</p><p>categoria de glorioso antepassado, podíamos adjudicar-lhe uma</p><p>descendência menos sobressalente. Poderíamos, por exemplo, nomeá-lo</p><p>bisavô das histórias em quadrinhos. Nem Benitín, dom Fulgêncio e o</p><p>Super-Homem se importariam — na medida em que importasse à conta</p><p>corrente dos Irmãos Mayer — que lhes mudássemos a ascendência</p><p>espanhola por outra mais nobre e mais gloriosa, nascida no Extremo</p><p>Oriente. A única diferença consistiria em que Penny, em vez de</p><p>continuar sonhando com Robert Taylor, esperaria pela vinda perfumada</p><p>de Henry Pu Yi.</p><p>Embora, repito, não devamos nos surpreender de que os chineses,</p><p>há oito mil anos, tivessem inventado o cinematógrafo com todo o seu</p><p>aparatoso sistema de alto-falantes e tecnicolores. Aquele foi um povo</p><p>capaz de tudo, até mesmo de dar um �lósofo como Lin Yutang, que,</p><p>depois de andar por todas as esferas da cultura oriental — e como se isso</p><p>não fosse já su�ciente —, acabou inventando uma máquina de escrever</p><p>em chinês.</p><p>*</p><p>Anteontem Paris pôs em vigor um novo calendário. Não importa que</p><p>este tempo juliano continue sendo a visão antropocêntrica de um</p><p>venerável avô barbudo, astroso; e que continue passeando pela fria</p><p>região da morte sob a lua metálica de sua gadanha. Para nós —</p><p>resignados animais políticos — está muito bem que seja assim. Mas os</p><p>franceses — sempre tão franceses! — não podiam suportar que a areia</p><p>miúda e terrível da clepsidra se antecipasse diariamente ao destino dos</p><p>seus ossos.</p><p>A França nunca simpatizou com esse ancião simbólico e decrépito.</p><p>Depois da memorável Revolução — com maiúscula romântica —</p><p>castigaram-no com um desterro obrigatório para abrir suas fronteiras a</p><p>um novo tempo adolescente, informal e complicado, que surgiu sobre os</p><p>escombros, com a cabeça sacudida pelo vento da renovação. Os</p><p>habitantes da França o acolheram, olharam-no, trataram de acostumar-</p><p>se a ele. Mas um dia, e sem que soubessem quando, deixou-os esperando</p><p>no centro da tempestade romântica.</p><p>Agora — precisamente quando o fantasma da guerra voltou a agitar</p><p>suas asas sobre os olhos surpreendidos — os franceses inventaram,</p><p>também com maiúsculas, o Calendário da Rosa.</p><p>Até 12 de junho Paris viverá sob um tempo feminino. As vitrines da</p><p>cidade correrão pelos olhos das mulheres, carregadas de pétalas como a</p><p>água dos jardins. O domingo não cairá mais sobre o número vermelho</p><p>de um calendário, pois virá, serenamente, a se pôr de pé sobre a manhã</p><p>da rosa.</p><p>Outra vez, ao menos por 15 dias, os franceses tiveram a satisfação de</p><p>exilar esse velho centenário fora de moda. De sua esquecida ilha</p><p>imemorial, verá ele passar as horas renovadas, ordenadas por uma</p><p>donzela ágil e esportiva, que irá empurrando o dia até o ignorado lugar</p><p>onde se esquecem os perfumes. E talvez ele — pobre velho e romântico</p><p>— sinta também desejos de viver neste mundo transformado, poético,</p><p>quando os relógios marcarem o meio-dia da rosa e toda a Paris se tenha</p><p>metido em uma página de Platero e eu.</p><p>*</p><p>Vamos passear, amiga minha, por essa adormecida terra dos mapas.</p><p>Vamos ao Egito pela amorosa rota dos seus dedos, para contemplar o sol</p><p>declinando por detrás dos dromedários. Ponhamos o ouvido sobre o</p><p>curvado peito dos pólos para tomar o pulso à Terra empurrando os rios</p><p>até a morte. Ponhamos as costas nuas sobre a pele do novo continente,</p><p>onde o homem da América golpeia com seus punhos de cansado metal a</p><p>sua dor de não saber quem é, nem até onde o levará o seu noturno</p><p>cataclismo.</p><p>Olhar este mapa, amiga, é uma maneira de viajar. É uma forma de</p><p>irmos nos esquecendo paulatinamente de nossa consciência. De nos</p><p>livrarmos desta substância mortal,</p><p>e começar a ser um pouco menos nós</p><p>mesmos e um pouco mais universais. Nossas inumeráveis pequenezes</p><p>vão caindo como folhas de uma árvore imemorial, no fundo de nossas</p><p>almas trespassadas por um rio onde navegam todas as luzes do universo.</p><p>Desse ângulo, nós nos confundimos com as grandes criaturas, mas</p><p>aprendemos a conhecer a beleza através das coisas humildes. Sabemos</p><p>então que no canto de um pássaro pode caber a voz de todas as águas</p><p>musicais. E que a morte de um pirilampo pode fazer retornar a luz ao</p><p>princípio do mundo.</p><p>Viajando assim, imóveis, virá a Austrália a mostrar-nos seu álbum</p><p>de retardadas zoologias. À tua esquerda veremos as ilhas do Pací�co que</p><p>ouvem chegar a civilização no costado de suas tartarugas.</p><p>Vamos, amiga minha, pelos quietos rios da Ásia a acalmar esta sede</p><p>de quatro séculos com o suor de todos os cavalos. Poremos a mão sobre</p><p>o calor da península Ibérica para sentir dentro do sangue o nascimento</p><p>de tuas palavras. E acordaremos a Sibéria do seu insondável sonho</p><p>perturbado apenas por milenárias tempestades geológicas.</p><p>Vamos passear, calada amiga minha, antes que a morte venha a</p><p>desviar o rumo dos nossos ossos.</p><p>*</p><p>Não é verdade que você, freqüentemente, sente-se como protagonista de</p><p>um �lme, quando a excitante carga emotiva do seu enredo ocupa</p><p>integralmente sua capacidade de emocionar-se? Você, como qualquer</p><p>homem normal, deve ter sentido, mesmo numa anônima poltrona de</p><p>cinema, a sensação de que entre as sombras de uma cortina o vigia o</p><p>gelado cano de um revólver. É o momento em que a sala deixa de ser um</p><p>núcleo de simples espectadores e se converte num universo de</p><p>encontrados sentimentos. Cada indivíduo raciocinará à sua maneira, de</p><p>acordo com sua estrutura temperamental. Alguém — sem dúvida um</p><p>exagerado — cometerá a vulgaridade de desmaiar. Outros</p><p>acompanharão, em suspense, o �o esticado da trama. Mas você, cineasta</p><p>de boa cepa, homem de boa-fé, não pode permitir que o diretor da</p><p>película tome tais liberdades com seus sentimentos; e como todo homem</p><p>rebelde, com indiscutíveis impulsos de anarquista, edi�cará dentro de</p><p>sua consciência uma sala de cinema privada, para seu uso particular e</p><p>arbitrário, onde possa projetar um �lme de conjuros e maldições. Sua</p><p>dignidade de cineasta decente �cará, assim, satisfeita. E eu, em nome</p><p>destas colunas, felicito-o por sua galharda atitude.</p><p>O mal, porém, é que nem todos pensam como você. O sr. Bonifácio</p><p>Nieves, por exemplo, um honrado habitante de San Javier, povoado</p><p>situado no litoral uruguaio, demonstrou há dias que, quando sua</p><p>emoção se despenha sobre uma situação insuportável, converte-se num</p><p>autêntico homem capaz de sacar a arma. Este cidadão, de uma poltrona</p><p>que pode ser igual a que você ocupou muitas vezes, sentiu que em suas</p><p>veias subiam os animais do inconformismo durante a projeção de um</p><p>�lme cuja paisagem era o gasto ocidente norte-americano. Este enérgico</p><p>cavalheiro, ao ver frustradas suas esperanças de autêntico cineasta,</p><p>precipitou-se contra a tela e descarregou sobre o protagonista quase todo</p><p>o conteúdo de sua pistola automática. Falta dizer que o impetuoso</p><p>Bonifácio Nieves teve de dormir entre as quatro paredes do xadrez, mas</p><p>não resta dúvida de que teve o sonho tranqüilo dos homens que estão</p><p>em paz com sua consciência.</p><p>Provavelmente você ignorava este acontecimento. Mas será que não</p><p>está pensando agora que para a satisfação dos bons cineastas não seria</p><p>conveniente convidar a Cartagena todos os Bonifácios Nieves uruguaios?</p><p>*</p><p>Maio foi um mês próspero para o censo de Cartagena. As estatísticas,</p><p>com essa exatidão que converte as cifras em uma barreira diante dos</p><p>canais abertos de nossa incredulidade, informaram que no Hospital de</p><p>Santa Clara registraram-se quatro duplos nascimentos. Foram quatro</p><p>mães abnegadas, fortes, que escutaram de sua distância de cansaço o</p><p>redobrado clamor dos recém-nascidos, enquanto outros tantos pais</p><p>viram aluir diante dos seus olhos o edifício do orçamento doméstico.</p><p>Que isso tivesse acontecido em Antióquia, o mundo, acostumado à</p><p>desconcertante fecundidade dos antioquenhos, continuaria seguindo,</p><p>imperturbável, seu percurso em volta do Sol. Que alguns antepassados</p><p>de Sansão ou de Jericó em 57 anos de vida conjugal tenham levado à pia</p><p>batismal outros tantos rebentos, merecem, desde já, todo o respeito dos</p><p>cidadãos conscientes. Mas que as senhoras de Cartagena tenham</p><p>resolvido enriquecer os registros eleitorais com a maior brevidade</p><p>possível, surpreendendo o equilíbrio �nanceiro com quatro duplas</p><p>entregas, é coisa que irá afetar consideravelmente a estrutura da</p><p>economia nacional.</p><p>O pior do caso é que nada é mais contagioso do que esta geminação.</p><p>Rebeca, esposa de Isaac, foi a primeira mulher histórica que se deu a</p><p>tamanho desplante, ao dar à luz, simultaneamente, a Esaú — “o peludo”</p><p>— e a Jacó — “o suplantador”. Mas o invento da veneranda matrona</p><p>bíblica serviu de conjuntura para que todas as mulheres do Antigo</p><p>Testamento acolhessem clamorosamente a catastró�ca inovação.</p><p>Desde as famosas Dionne até os trigêmeos que recentemente vieram</p><p>ao mundo em Barranquilla, o universo feminino decidiu empenhar-se</p><p>em superar a cifra com uma insistência, com uma fanática vontade que</p><p>já beira os limites do esportivo. Há alguns anos uma respeitável</p><p>argentina logrou chegar até o glorioso muro que delimita o prestígio dos</p><p>quíntuplos, mas na China — uma das nações que encabeçam a</p><p>maternidade — outra zelosa dona-de-casa surpreendeu as estatísticas</p><p>com três pares de criaturas saudáveis e perfeitas.</p><p>Conforme andam as coisas, parece que no panorama nacional a sede</p><p>da fecundidade está sendo localizada entre Antióquia e a Costa</p><p>Atlântica. De qualquer maneira, é preciso estabelecer algumas diferenças</p><p>notáveis no que se refere ao tempo. Pois é indiscutível que dos quatro</p><p>casos locais de gêmeos deve-se concluir que a gente antioquenha é</p><p>prolí�ca por resistência, enquanto a de Cartagena o é por velocidade.</p><p>*</p><p>Nada mais difícil que a originalidade. Ramón Gómez de la Serna, nas</p><p>ruas de Paris, comendo ovos de tartaruga sobre o lombo de um elefante,</p><p>não deixou de ser um espetáculo ridículo para o gosto re�nado dos</p><p>franceses. Em compensação, quando Gandhi fez sua aparição no</p><p>Parlamento britânico vestido apenas com sua túnica branca de algodão,</p><p>sem o menor esforço escreveu uma página da história da originalidade.</p><p>A diferença consistiu em que Ramón, retumbante e aparatoso, pôs em</p><p>prática a mais inservível de suas excentricidades, enquanto Gandhi nada</p><p>fez de particular.</p><p>Não basta que se façam originalidades, o indispensável é ser</p><p>original. Requer-se, assim mesmo, que não haja premeditação,</p><p>elaboração prévia dos propósitos. Bastará seguir, em dado momento, as</p><p>inclinações do bom senso, sem contar com o senso comum dos outros.</p><p>Passado um momento, o mesmo protagonista se surpreenderá de que</p><p>naquele ato simples, sem complicação, �orescerá a rosa da originalidade.</p><p>Hailé Selassié, o irremediável monarca da Etiópia, para darmos um</p><p>exemplo, é um homem bastante original apesar de si mesmo e sem que</p><p>ninguém tenha dito isso. Toda a sua trajetória monárquica, toda a sua</p><p>vida de mandatário na reluzente e obscura corte africana, tem sido uma</p><p>incontável sucessão de originalidades. Entre elas — para ilustrar a</p><p>a�rmativa — ocupa um lugar antológico o caso da cadeira elétrica que o</p><p>imperador fez levar dos Estados Unidos para Adis-Abeba, a �m de usá-la</p><p>nas execuções das sentenças máximas. Por um motivo qualquer, as</p><p>intenções do mandatário de cor não puderam ser postas em prática, e a</p><p>cadeira elétrica — que não podia �car sem uso — foi desativada de seus</p><p>transformadores, de sua complicada aparelhagem voltaica, e passou a</p><p>servir de trono à originalíssima majestade de Hailé Selassié.</p><p>Agora que nos chega a notícia de que esse monarca da Etiópia</p><p>importou dos Estados Unidos um completo guarda-roupa ocidental,</p><p>sem que o alfaiate tomasse qualquer medida de sua obscura anatomia, é</p><p>conveniente recordar o caso da cadeira elétrica. No �nal das contas,</p><p>não</p><p>será de estranhar que a roupa não caia bem em Hailé Selassié e — como</p><p>da outra vez — o mundo possa vir a assistir ao nascimento de uma</p><p>legítima originalidade.</p><p>*</p><p>À sombra do parque está o macaco, como um monarca caído. Sereno,</p><p>indiferente à curiosidade humana, deixa correr por seu âmbito uma</p><p>tristeza corporal de quatrocentas dinastias. Através do seu silêncio ouve-</p><p>se passar a selva de seus antepassados, cheia de rios primitivos, de</p><p>amanheceres elementares, de ignoradas genealogias, submersas já na</p><p>eternidade da noite zoológica. Tem algo de humano esta tristeza e muito</p><p>de animal sábio este silêncio imperturbável.</p><p>O macaco do tocador de realejo, pitoresco e comercializado, não</p><p>passa de um espetáculo vulgar. Vestido com sua indumentária de</p><p>estridentes guinchos, senta-se sobre a caixa sonora a escutar essa música</p><p>barata que é moída com igual simplicidade em todas as esquinas da</p><p>Terra. É tão inútil como o outro, o fanfarrão e vaidoso que coloca à</p><p>venda sua amestrada mediocridade sob o céu dos circos. Nada pode nos</p><p>surpreender nessa categoria de micos encerrados no lugar-comum da</p><p>palhaçada.</p><p>Por isso é que é interessante este macaco do parque. Tem toda a</p><p>dignidade de um nobilíssimo bisavô. Nele se faz mais apreciável nossa</p><p>inquietante proximidade anatômica, talvez por causa dessa seriedade</p><p>grave, retardada, pela exatidão linear do rosto, pelos olhos plenos de</p><p>pavor e onde assoma todo o seu universo interior.</p><p>Graças à sua presença, o parque agora tem algo de selva. O vento</p><p>entre as árvores traz um clima imemorial, um carregado odor de</p><p>gerações primárias. Nós, que já nos acostumamos com este animal</p><p>humanizado, temos a impressão de que amanhã, quando ele abandonar</p><p>o parque com a mesma naturalidade com que veio habitá-lo, vamos</p><p>sentir em cada canto o volume do seu vazio. Mas antes que isso aconteça,</p><p>é bom contemplá-lo, procurar descobrir a semente de sua meditação.</p><p>Talvez, ao ver os transeuntes apertados a seu redor, ele pense que está</p><p>imerso numa selva diferente, incompreensível, na qual todos os macacos</p><p>se contagiam com a incurável loucura da curiosidade.</p><p>*</p><p>Do lado oposto ao meu vem viajando a negra, reluzente e magní�ca</p><p>como um santo de breu. Há muito contempla a paisagem com um</p><p>distanciamento interior quase beirando a tristeza. É uma mulher que</p><p>leva a sério essa necessidade de viajar. Alguns, impacientes, procuram</p><p>buscar no sonho um refúgio para seus fastios. Mas a negra viaja com</p><p>todo o seu corpo, com a boca redonda e maciça, repleta de uma</p><p>madureza de fruto; com os olhos cintilantes, com seu total organismo de</p><p>negra assumida. Traz duas argolas à maneira de brincos. Duas argolas</p><p>falsas e poderosas que bem poderiam ser as que traziam no nariz seus</p><p>bisavós. E em sua cabeça, como uma bandeira sem norte, agita-se um</p><p>grande lenço, amarelo e vermelho, com desenhos de barco em derrota.</p><p>Neste instante, ela parece esquecida do lenço que �utua sacudido pelo</p><p>vento contrário. Mas nós, os viajantes, sentimos que no descuido da</p><p>negra existe algo de naufrágio.</p><p>Poucas coisas possuem tanta beleza plástica como uma negra</p><p>vaidosa. Esta parece saber disso e — aparentemente — despreza o</p><p>companheiro de banco que aspira sua vizinhança como se fosse um</p><p>perfume inalcançável. No entanto, ela está sorrindo por dentro. A</p><p>malícia lhe morde os lábios, toda a pele, e sacode seu braço reluzente</p><p>para mostrar o espetáculo grande e maciço do relógio de pulso.</p><p>Momentos atrás, quando passamos pelo último povoado, uns</p><p>gaiteiros estavam tecendo sua meada de música à margem da estrada. A</p><p>negra, que vinha semi-adormecida, estremeceu longamente como se um</p><p>grupo de negros ébrios, frenéticos, ao escutar o soar dos tambores,</p><p>tivesse começado a bailar em volta do seu sangue. Pareceu, por um</p><p>instante, que a negra ia falar. Olhou à sua volta para o grupo de viajantes</p><p>que ouviu, imutável, passar a música. Ela, negra legítima, que a havia</p><p>escutado com os cinco sentidos, fez um gesto de desprezo para mostrar a</p><p>constância de sua superioridade.</p><p>Os barcos do lenço, in�ados ante a força do vento contrário,</p><p>continuam sua marcha. A negra olha o relógio, tira um pequeno espelho</p><p>que traz na bolsa e, com feminina maestria, arranja o lenço que se �rma</p><p>contra o seu cabelo indômito. Agora o vento passa imprimindo às</p><p>embarcações um ligeiro balanceio de mar sossegado. A negra o sabe e</p><p>sorri cheia de regozijo, com um largo e a�ado sorriso que reluz como um</p><p>facão.</p><p>Nós, os passageiros, temos a impressão de que todos os barcos do</p><p>mundo atracaram no cais de sua vaidade.</p><p>*</p><p>Numa poltrona de ônibus, detrás da negra, chega de viagem o índio. É</p><p>um exemplar perfeito dessa espécie de homens — metade primitivos,</p><p>metade civilizados — que descem da Sierra Nevada de Santa Marta</p><p>carregados de plantas medicinais e de fórmulas secretas para o bom</p><p>amor. Os olhos, ligeiramente circun�exos, imprimem no rosto citrino</p><p>uma distante a�rmação asiática. Liso e raivoso, o cabelo do índio deixa</p><p>passar pelo seu físico uma violenta rajada de cavalo. É um nativo</p><p>silencioso, observador, que veste uma grossa manta crioula e fuma</p><p>cigarros americanos.</p><p>Durante toda a viagem o índio parecia estudar a seriedade da negra.</p><p>Entre eles se interpunha um complicado mapa de costumes, de usos</p><p>diferentes. Como se os poucos metros que os separavam tivessem</p><p>subitamente crescido numa inelutável distância sociológica. A negra,</p><p>porém, deu inesperadamente ao índio a oportunidade de uma longa e</p><p>�rme conversa. Por entre o cansaço da viagem se escutam correr as duas</p><p>vozes surdas, pausadas, em meio ao silêncio de uma civilização absurda.</p><p>Soa a voz do índio, voz de cânhamo retorcido, de laço amansado pela</p><p>soberba dos potros; e a da negra, que é uma diáfana voz de água �ltrada.</p><p>O índio lhe disse que ali, na pequena caixa que traz sobre as pernas, há</p><p>uma cobra cascavel. A negra estremece com um �ngido terror, que não</p><p>leva senão a intenção de deixar o índio satisfeito em sua dignidade. No</p><p>entanto a negra tem fé no evangelho desse homem sacerdotal e lhe pede</p><p>“um remédio para não ter �lhos”.</p><p>Os dois, cada um à sua maneira, são pro�ssionais da aventura. Mas o</p><p>índio, em sua despreocupada atitude, parece compreender que o melhor</p><p>do homem é o muito que ele tem de cigano, e quer satisfazer a negra em</p><p>seu desejo de ser estéril. Agora, já há algum tempo, a negra vem</p><p>enchendo a boca com punhados de sementes trazidas quem sabe de que</p><p>rincão da feitiçaria. E, depois de cada dose, um estremecimento febril</p><p>sobe-lhe pelo corpo comovido, como se sentisse no ventre as a�adas</p><p>dentadas que vão cicatrizando sua dinastia.</p><p>*</p><p>Sob o céu da tarde surgiu o arco-íris das araras. Campo aberto de sol</p><p>morrente, este por onde elas vinham, era um sorriso repetido no âmbito</p><p>de cada feixe. A ruidosa vanguarda avançou por muitos metros, e no</p><p>pátio, para esperá-la, a arara doméstica subiu no pau mais alto e ali �cou</p><p>contra o ar do norte, como uma bandeira. Por sua vez, a mancha</p><p>multicor (sic) fez soar um ru�ar de asas sobre o verde ensolarado, e</p><p>perdeu-se, desordenada e vistosa, pelo outro lado da semeadura.</p><p>Naquela tarde, parada no marco da cerca, a arara �cou em silêncio,</p><p>talvez matutando sobre sua irrealizável vocação de viajante, sua condição</p><p>de aventureira frustrada.</p><p>Antes, a partir do momento em que o galo fazia tinir suas esporas</p><p>metálicas ao ouvido da madrugada, a arara estava no pátio, cantando</p><p>uma canção sem música, desordenada e arbitrária, que havia aprendido</p><p>não se sabe de qual parente de mau gosto. Assim, cambiante, era todo</p><p>um espetáculo de regozijo e até podia confundir-se sua luminosa</p><p>presença com uma antecipada forma de crepúsculo.</p><p>Latia aos cães, miava aos gatos e fazia rir aos transeuntes com um</p><p>riso desumano que era uma autêntica caricatura da alegria. Agora,</p><p>porém, a arara perdeu sua personalidade de animal decorativo. Passa as</p><p>horas remoendo a nostalgia do temperado equador onde a terra aperta</p><p>com um cinturão de tigres e de sumaúmas sua larga cintura vegetal. Está</p><p>repassando a terna geogra�a de sua infância,</p><p>na qual uma arara velha e</p><p>descolorida fala aos rebentos sobre outra arara donzela a quem a</p><p>maldição de uma cacatua fez dormir por longos anos num bosque</p><p>encantado, à espera de que viesse um formoso pássaro-príncipe para</p><p>amadurecer o fruto do seu sonho.</p><p>Não sei que outra coisa pode pensar esta arara. Mas não há dúvida</p><p>de que se pôs a repassar sua infância para descobrir a hora absurda em</p><p>que os homens inventaram a cetraria.</p><p>*</p><p>Conheci nesta viagem um homem extraordinário. Um homem a quem o</p><p>relâmpago da machadada lhe atingiu o riso de frente, e o deixou sério,</p><p>com uma tremenda seriedade, cheia de cicatrizes. Este personagem,</p><p>dentro da enredada trama de um romance, não seria senão o caso oposto</p><p>do Homem que ri, de Victor Hugo. Mas aqui, em nosso mundo material,</p><p>na forçada comunidade da viagem, sua verdade de homem sem sorriso</p><p>golpeia com tormentosa insistência as portas do espanto.</p><p>A primeira coisa que nos perguntamos é como seria seu riso, que</p><p>sonoro volume teria noutro tempo o fruto de seu regozijo, antes que o</p><p>rosto marcado de pavor tivesse assomado no abismo da contenda. Seu</p><p>grito deve ter sido cortante, de�nitivo. Em seu terror deve reluzir ainda o</p><p>momento em que o gume metálico recolheu a fulgurante claridade de</p><p>todas as fogueiras para descarregá-la no osso gelado de sua mandíbula.</p><p>Agora está sério, tremenda e de�nitivamente sério. Por seu</p><p>desconcertado continente passeia o fantasma da amargura com suas</p><p>violetas de espanto. Apesar disso, talvez haja algo de burla nessa</p><p>seriedade. É tão insistente, tão estatuária, e ao mesmo tempo tão</p><p>dilacerada, que mais do que uma forçada cicatriz mais parece um</p><p>protesto. Porque não é outra coisa este viajante. Um homem que protesta</p><p>contra tudo, contra o riso dos outros, do carnaval de alegria que leva os</p><p>homens a esquecerem, com desesperante repetição, seu curso</p><p>irreversível em direção à morte.</p><p>Nunca poderíamos olhar esse homem sem recordar o destino de</p><p>nossos ossos. Quando ao largo da viagem se nos abrir a polpa da beleza</p><p>de um detalhe da paisagem ou no olhar sem desencanto de uma criança</p><p>distraída; ou quando despertar nossa alegria ante uma situação ridícula,</p><p>será preferível não olhar para atrás e encontrar-nos com esse rosto</p><p>inexpressivo, desumanizado, como uma espessura de cal. Seria como</p><p>encontrarmos, no ângulo de uma só esquina, com todas as coisas sérias e</p><p>dolorosas da existência, e começar a sentir — juntamente com a</p><p>iminente vizinhança da morte — que nos estamos convertendo num</p><p>punhado de pó sem sentido.</p><p>*</p><p>Anteontem se completaram 36 anos desde o dia em que Pafúncio e</p><p>Marocas1 escaparam pelos luminosos des�ladeiros da imaginação de</p><p>George McManus, para ingressar nesse maravilhoso espaço onde</p><p>intentam diariamente alinhavar o enredado novelo de sua vida conjugal.</p><p>Desde aquela memorável data na história das histórias em quadrinhos,</p><p>os personagens de Ensinando papai — Jiggs and Maggs nos Estados</p><p>Unidos — visitaram todos os rincões da terra, mergulhados em seus</p><p>indecifráveis problemas domésticos, contribuindo com sua in�uência</p><p>bené�ca para a boa digestão dos mortais. Talvez o êxito da inigualável</p><p>dupla se deva à força de humanidade que lhes infundiu seu autor. Porque</p><p>dentro do exagerado nó de sua dramática vida cotidiana foi dado lugar a</p><p>tão imponderável mensagem de naturalidade, que os dois protagonistas</p><p>não só transcenderam o mundo real, naquele dia em que se</p><p>apresentaram no Teatro Colón de Buenos Aires, mas também porque,</p><p>quando vamos visitar uma dupla de esposos, assalta-nos a certeza de que</p><p>em lugar de nossos amigos iremos encontrar Pafúncio e Marocas</p><p>empenhados numa estrepitosa discussão familiar.</p><p>Nenhum lar foi tão bem de�nido a partir de um princípio como este</p><p>forjado por McManus. Há 36 anos continua a esposa tratando de ajustar</p><p>as desa�nadas cordas de sua garganta metálica, enquanto o marido</p><p>inventa as mais inúteis artimanhas para conseguir encontrar-se com seus</p><p>desajustados companheiros de farra. Mas, sem dúvida, onde melhor se</p><p>percebe o afã do autor para humanizar seus personagens é nos retratos</p><p>que decoram as paredes do inconfundível lar de Pafúncio e Marocas.</p><p>Não há neles nenhuma imagem satisfeita com sua imóvel qualidade de</p><p>elemento decorativo. O retrato dos avós freqüentemente sai para tomar</p><p>um banho de realidade no pequeno universo da história em quadrinhos.</p><p>Constantemente nesses quadros há repentinas tormentas na água dos</p><p>aquários, e naufrágio de galeões no comprimido oceano dos retratos.</p><p>Ensinando papai não se tornou uma exceção nesse tempo particular das</p><p>histórias em quadrinhos, nas quais os protagonistas vivem o</p><p>ambicionado mundo onde não se envelhece. Marocas pode ter já</p><p>esquecido como era o rosto dos nobres antepassados cujos poeirentos</p><p>pergaminhos são a substância medular de suas preocupações, mas não</p><p>pode queixar-se de que em duas gerações se haja aberto em sua fronte o</p><p>sulco inquietante de uma só ruga.</p><p>Por haver cumprido esta inigualável família os 36 anos de vida</p><p>conjugal, o Congresso dos Estados Unidos lhe enviou uma comovente</p><p>mensagem de felicitações. E como estes 36 anos foram outros tantos em</p><p>que Pafúncio não conseguiu chegar tranqüilamente até a tumultuada</p><p>companhia de seus amigos, é muito provável que nesta data</p><p>extraordinária Marocas o permita sair, pela porta da frente, para jogar</p><p>com seus amigões uma partida de baralho no café de Perico.</p><p>*</p><p>Estamos de acordo, amigo e companheiro. Nós, os homens desta</p><p>geração, que hoje se aproxima da franja da maioridade, não</p><p>conhecíamos a forma da violência. Nascemos numa época em que a</p><p>gente desmontava a sombra para classi�car os bois do arado. Às nossas</p><p>costas, como uma longínqua �ora extinta, desapareciam as fogueiras da</p><p>guerra civil. Sabíamos que a paz era verdadeira porque ocupava todos os</p><p>volumes que coloriam os nossos sentidos. Sabíamos que ela própria</p><p>estava ali, no ranger das carroças que traziam do campo fruto após fruto.</p><p>Na estatura do moinho que se movia empurrado por um poderoso vento</p><p>sem cadeias. Na força do mineiro que talhava o ventre da montanha para</p><p>encontrar o lugar imemorial onde dormiam os luzeiros. Estava na nuca</p><p>da noiva, na saciedade do operário, na carta do soldado, na música das</p><p>turbinas, na proa dos barcos, na escravidão do pão e na liberdade dos</p><p>cavalos.</p><p>Diz você, amigo meu, que o nosso sonho tecia um tecido de</p><p>mansuetude que haverá de despertar o grito de nossos �lhos, quando</p><p>cheguem à beira do abismo dos pesadelos. Talvez você tenha razão. Este</p><p>mundo que nos deixam nossos antepassados tem um odor de barricada.</p><p>A janela onde nossa infância esperou a volta da chuva tem a dimensão</p><p>de uma trincheira. Ninguém poderá obrigar-nos a que sejamos homens</p><p>de boa vontade agora que em nossos ossos deixaram crescer o trigo da</p><p>morte. Em nosso campo não cabe senão o fantasma do espanto, porque</p><p>aprendemos, por experiência, que não é mais serena a vida e nem mais</p><p>tranqüila à sombra das baionetas.</p><p>“Uma má paz é sem dúvida pior do que a guerra.” Não será demais</p><p>que recordemos nesta hora as palavras de Tácito, mesmo que faltasse</p><p>dizer por que devemos recordá-las.</p><p>*</p><p>Reto, empinado e magní�co caiu Braulio Henao Blanco sob o �amejante</p><p>sopro da violência. A força de suas idéias, de suas convicções ideológicas,</p><p>de sua palavra brilhante fez de sua voz uma clarinada que estremecia as</p><p>determinações arbitrárias. Desde o instante em que o chão da pátria</p><p>começou a sentir em seu ventre as raízes inusitadas do ódio, da</p><p>perseguição e da morte, Braulio Henao Blanco foi para a rua com suas</p><p>lâmpadas acesas, à espera da tormentosa chegada da névoa.</p><p>Agora, sobre este lugar que sentiu nas costas o crescimento de sua</p><p>força, caiu com os braços tombados e com o olhar voltado para a glória.</p><p>Na mesma cidade onde edi�cou suas barricadas de justiça, onde suas</p><p>palavras a�adas defenderam a golpes de claridade a rija anatomia da</p><p>democracia, aqui caiu o seu corpo abatido e ergueu-se seu último grito,</p><p>como um apelo profético. Em suas pálpebras começaram a crescer as</p><p>violetas</p><p>do espanto, porém em seu ventre há outra violeta de chumbo</p><p>que busca, na sombra da noite perpétua, o caminho de sua estátua.</p><p>Na turva comarca da morte, vejo-o adestrando seus pássaros</p><p>iluminados. Tem a voz desatada e trans�gurado o continente. O vento</p><p>do eterno norte sacode seus cabelos eternizados. Um ar frio, gelado pelo</p><p>sopro contínuo da morte, golpeia com punhos metálicos seu rosto</p><p>inquebrantável. Está acaudilhando seus exércitos, organizando suas</p><p>legiões agrárias, unido ao grupo dos libertadores que clamam por</p><p>justiça, que pedem paz, concórdia e compreensão, para que não</p><p>desapareçam os homens de boa vontade.</p><p>Seu nome tem agora sabor de pedra. Braulio Henao Blanco, cidadão</p><p>da eternidade.</p><p>Nota: B.H.B., líder liberal ferido a bala por um policial no domingo, 20</p><p>de junho, e morto na terça-feira, 22.</p><p>*</p><p>Quinta-feira é um dia híbrido. Uma fatia do tempo, sem sabor nem cor,</p><p>sem outra justi�cação senão a de nos obrigar a gastar um pedaço de vida</p><p>que poderíamos utilizar em coisas mais úteis. As horas que</p><p>malbaratamos numa quinta-feira nos poderiam servir para tornar mais</p><p>macia a almofada do domingo. Servir-nos-iam para ruminar com</p><p>tranqüilidade, com calma mansuetude, as lembranças que a segunda-</p><p>feira, nas primeiras horas, nos impõe como um anel ao dedo. Poderiam</p><p>agregar-se à poética substância da terça-feira, que é o luminoso dia de se</p><p>casar, de embarcar, de ir-se — de costas para seus sonhos e suas</p><p>esperanças — com sua gasta música a outra parte. Alguns minutos nos</p><p>serviriam para libertar o cálido fruto da quarta-feira, que se mexe nas</p><p>árvores do tempo com uma indecisão de mulher pensativa. Servir-nos-</p><p>iam para diluir a névoa tormentosa da sexta-feira, que é a estação da</p><p>feitiçaria, a infância assustada que aprende a decifrar o alfabeto dos</p><p>astros. As das quintas-feiras são, �nalmente, as 24 horas que nos</p><p>poderiam servir para adiantar os relógios do sábado.</p><p>Mas a quinta-feira, apesar de todos os inconvenientes, continua</p><p>sendo verdade em nosso calendário. Despertamos à sua simples</p><p>claridade, à sua desabrida transparência, com a sensação de estar</p><p>desembarcando numa ilha estéril, de vegetação triste, rodeada pelas</p><p>águas das horas vividas.</p><p>Acredito que a quinta-feira não serve sequer para morrer.</p><p>Entregarmo-nos ao gozo da morte depois de haver moído os minutos de</p><p>três dias fecundos, produtivos, é — mais que uma simplicidade — uma</p><p>loucura. Esse tráfego diário, este dar voltas à cabeça sobre um alfabeto</p><p>mecânico, para que você, senhor leitor, tenha ao meio-dia algo com que</p><p>se lamentar; este tratar de ser algo sem consegui-lo, de nada valeriam se</p><p>numa quinta-feira qualquer, sem premeditação e sem nos despedirmos</p><p>de ninguém, estendêssemo-nos sobre a grama da morte. O certo será, se</p><p>nossa resolução é irrevogável, esperar até a sexta-feira, dia em que, pelo</p><p>seu caráter lutuoso, a vulgaridade de morrer pode resultar numa</p><p>de�nitiva manifestação de elegância.</p><p>Indiscutivelmente, a quinta-feira é um dia entre parênteses. Só serve</p><p>para que se escreva sobre sua inutilidade, quando não é possível</p><p>desenvolver outro tema de maior importância.</p><p>*</p><p>Joe Louis prossegue com a sua imbatível ditadura pugilística. Depois de</p><p>seu encontro com o outro Joe — o reluzente e monumental cozinheiro</p><p>— ter sido adiado em duas ocasiões porque a chuva continuava a cair,</p><p>sob insistente expectativa, sobre o Yankee Stadium, os colossos negros</p><p>subiram ao ringue para fazer estremecer com seus formidáveis golpes o</p><p>sistema nervoso do continente.</p><p>Atentos e com o corpo cheio de um silêncio trepidante, seguimos,</p><p>junto ao rádio, os movimentos dos dois gladiadores. Eram dois animais</p><p>magní�cos aqueles que se moviam com uma desenvoltura técnica no</p><p>estádio nova-iorquino, e eram duas anatomias de feras rebeldes as que</p><p>trocavam golpes a�ados no ringue de nossa imaginação.</p><p>No entanto, nós, os que simpatizávamos com Walcott mais pelo</p><p>desejo do seu triunfo do que por um incontido afã de renovação,</p><p>sentimos que com o corpo vencido se desmoronava igualmente o mais</p><p>pugilístico dos nossos desejos. Pensar que Joe Louis continuará sendo</p><p>campeão tem um sabor insosso, aborrecido, e seu triunfo já não tem</p><p>nenhuma importância pela simples razão de que já não mostra nada de</p><p>particular. Mais ainda, sem a pretensão de fabricar um paradoxo, poder-</p><p>se-ia dizer que o que não podemos suportar, nesta vitória de Louis, é a</p><p>íntima e involuntária segurança que já tínhamos dela.</p><p>Talvez houvesse sido mais original se Walcott tivesse passado, pela</p><p>ponte segura de um soco, da cozinha de seu restaurante a essa outra</p><p>cozinha, grande e cobiçada, do campeonato mundial.</p><p>Além do mais, seu triunfo nos teria feito assistir a outro dos</p><p>estranhos espetáculos que nos oferece nosso tempo, porque Louis, como</p><p>era sabido, ter-se-ia dedicado à política. E se por lá as coisas andam</p><p>como por aqui, e o negro invencível não perdesse a incontida força dos</p><p>seus punhos, certamente teria realizado uma luminosa trajetória</p><p>eleitoral.</p><p>*</p><p>George Bernard Shaw está cumprindo com um dever de decadência. Ele,</p><p>que em determinado tempo foi pontí�ce de uma geração e agora chega à</p><p>idade proibida de 92 anos, vem escrevendo, com o mesmo cérebro que</p><p>escreveu As aventuras da negrinha que procurava Deus, textos para uma</p><p>agência irlandesa de propaganda.</p><p>E o pior de tudo é que é bom que assim seja, porque nada deve ser</p><p>mais agradável do que recolher os frutos da idade provecta. O fato de se</p><p>ter passado metade da vida — que no caso de Bernard Shaw é uma vida</p><p>inteira — redigindo comédias para que todo mundo se convencesse de</p><p>que no fundo ele não era mais do que um jovem brincalhão deve ser</p><p>uma tarefa que no �nal dos anos não deixa outra satisfação senão a de</p><p>haver perdido um tempo que poderia ter servido — por tratar-se de um</p><p>inglês — para envelhecer uma garrafa de uísque dentro do bolso.</p><p>O caso, porém, é que George Bernard Shaw não só resolveu pôr um</p><p>ponto �nal ao seu laborioso quixotismo, mas também que pretende</p><p>manter a sua ânsia de popularidade nos anúncios que está redigindo.</p><p>Antes, quando a fama de sua excentricidade começou a girar seu nome</p><p>em volta dos principiantes, bastava que as editoras o denominassem de</p><p>G.B.S. e nada mais, o que para um excêntrico era já o su�ciente. Mas um</p><p>redator de propaganda turística, que vai fazer-se presente diante de todos</p><p>os desocupados do mundo, tem que se chamar integralmente — e não de</p><p>outra maneira — George Bernard Shaw. Daí ter o barbudo e</p><p>neurastênico humorista inglês exigido de seus novos editores a</p><p>apresentação do seu nome completo.</p><p>Do que não podemos duvidar é de que Bernard Shaw encabeçará,</p><p>dentro de alguns anos, o rol dos milionários ingleses. As pessoas deste</p><p>tempo preferem — preferimos? — uma propaganda engenhosa em vez</p><p>de todas as palavras de Pigmalião. Pelo menos a primeira nos deixa a</p><p>satisfação de nos enganar sem que disso nos demos conta.</p><p>Se bem que o interessante, na nova determinação de Shaw, é que ele,</p><p>sem dúvida alguma, está dando um exemplo a todos nós que nos</p><p>empenhamos em não escrever por comércio e no entanto o fazemos por</p><p>vaidade.</p><p>*</p><p>Alto, com estilo e distante, César Guerra Valdés esteve em nossa redação.</p><p>Parece incrível que este homem suave, de maneiras urbanas tranqüilas,</p><p>seja um dos maiores revolucionários estéticos de que hoje pode ufanar-</p><p>se a imensa família americana. Já havíamos sofrido, em época não muito</p><p>distante, a ardente temperatura de seus livros. Já havíamos sido</p><p>conduzidos, por sua mão iluminada, através do sibilino labirinto de seus</p><p>poemas, onde o homem da América respira, com um pulsar novo, e</p><p>olha, com a pupila trêmula, o autêntico panorama do seu destino.</p><p>Mas o fato é que tínhamos, talvez por uma enganadora afetação</p><p>imaginosa, outra idéia deste homem. Não o imaginávamos potente e</p><p>arbóreo. Acreditávamo-lo dono de uma voz grave e administrando</p><p>ademanes opulentos e de�nitivos. Porém, por força de um admirável</p><p>contra-senso, este homem, com sua presença física, é uma viva lição da</p><p>força e perenidade das idéias. E do</p><p>desnecessário, por temporais, das</p><p>coisas formais. Toda a América, com a herança de seus grandes líricos,</p><p>com o profético desespero de seus sociólogos, com o pródigo gesto de</p><p>sua mão, carregada de rios, de raças e costumes, acende-se — com a</p><p>força de uma teia feita de todas as claridades contidas — apenas se deixa</p><p>hipotecar, na avassaladora conversa, pelo tema de nosso hemisfério.</p><p>Guerra Valdés é um grande poeta e um grande sociólogo, o que</p><p>signi�ca a mais nobre maneira de ser o legislador de um continente.</p><p>Traz, em sua mala de viajante, cinco livros fundamentais. E em sua voz o</p><p>metal com que fundir armas dialéticas para a nova luta. Acredita em</p><p>nosso homem autóctone, mas lhe nega toda a bijuteria com que falsos</p><p>apóstolos pretenderam rematá-lo no varejo folclórico. Crê nos grandes</p><p>mortos de nossa democracia, mas não aceitos como um monótono</p><p>cambalacho de heróis. E crê, por último, que chegamos a um limite</p><p>sagrado em que é preciso criar novas formas de luta para sermos</p><p>credores de novas formas de vitória.</p><p>Num ambiente como o nosso, no qual sua �gura passou</p><p>despercebida, erguemo-nos para saudar, nele, essa nova argila do barro</p><p>do hemisfério que tão profundos e de�nitivos sulcos começa a traçar,</p><p>nos marcos de�nitivos, para a espécie humana.</p><p>*</p><p>Parece que a complicada novela dos dois agentes da Scotland Yard que</p><p>tentaram chegar a Bogotá envoltos numa cortina de névoa, mui própria</p><p>do seu ofício e sobretudo mui londrina, já perdeu o novelo de sua trama</p><p>inicial e saiu para tomar um banho de sol pelas ruas da opinião pública.</p><p>Não podia ser de outra maneira, já que este enredo vinha funcionando</p><p>às avessas, contrário aos princípios acadêmicos mais elementares da</p><p>novelística policial. Isso porque, enquanto os dois agentes tentavam</p><p>escapar à curiosidade pública, transitando discretamente pelos</p><p>corredores do anonimato, todos os habitantes de Bogotá, para lhes</p><p>cortarem a retirada, resolveram transformar-se em detetives.</p><p>Contudo a novela ia muito bem como ia, e melhor fora que tivesse</p><p>continuado assim, porque muitos dos interessados em descobri-los</p><p>devem ter sentido um estrepitoso desmoronamento interior ao ver a foto</p><p>que um diário da capital publica com grande destaque grá�co. E não é</p><p>para menos, já que os dois detetives, que para cúmulo do enredo eram</p><p>ingleses, deviam ser como os de Conan Doyle, para que pudessem</p><p>preencher todos os requisitos de sua pro�ssão. Mas os que agora vemos</p><p>na página dos diários são dois cidadãos comuns que se chamam, como</p><p>qualquer inglês, Bevridge e Tensell, o que, anglicizando um pouco a</p><p>conjunção, mais parece uma �rma produtora de automóveis. É notório</p><p>que a curiosidade com que os perseguia a agudeza dos bogotanos estava</p><p>muito longe de ser o impulso de uma cortesia. Sem dúvida, era o desejo</p><p>de assistir a uma novidade. Queriam encontrar-se diante de Sherlock</p><p>Holmes e do dr. Watson, não mais nas páginas de uma novela, mas com</p><p>eles bebendo uma xícara de café em qualquer local suburbano.</p><p>Imaginavam um deles alto, britanicamente desajeitado, com um gorro de</p><p>dupla viseira e um cachimbo interrogador, examinando com uma</p><p>poderosa lupa as paredes do edifício Gaitán Nieto, enquanto o outro,</p><p>pequeno e gorducho, aguardava o momento oportuno para perguntar</p><p>uma bobagem. Agora que já se descobriu como são, podem ingressar</p><p>tranqüilamente na maré urbana sem o perigo de que alguém por eles se</p><p>interesse.</p><p>A Scotland Yard nada perdeu. Mas no íntimo de cada bogotano</p><p>restará a descon�ança de que os detetives ingleses são verdadeiramente</p><p>ingleses, ou se Conan Doyle não passa de um charlatão.</p><p>Nota</p><p>1 Pancho e Ramona, no original. (N. do T.)</p><p>JULHO DE 1948</p><p>E pensar que tudo isto estará alguma vez habitado pela morte. Que esta</p><p>cálida madureza de sua pele, que sobe por meu tato até o abismo do meu</p><p>desassossego, deva despedaçar-se um dia sobre o seu próprio silêncio</p><p>desolado. Que esta ordem de coisas naturais, que fazem de você e de</p><p>mim e da água e dos pássaros, nítidos volumes para a vindima dos</p><p>sentidos, estará uma tarde afundada na névoa de distantes regiões. Que</p><p>essa agitação de vozes interiores que sobe por seu sangue, que se aninha</p><p>em seu ventre como um �lho, quando lhe falo de coisas simples,</p><p>elementares, como estas coisas formidáveis que estou falando, precise</p><p>estar um dia transferido a outro corpo, quando os nossos conheçam o</p><p>peso das pedras, e todavia continue sendo verdade o amor. Que essa dor</p><p>de estar dentro de você, e distante de minha própria substância, há de</p><p>encontrar alguma vez seu remédio de�nitivo.</p><p>Pensar que alguma vez conheceremos os portos do esquecimento,</p><p>igual a antes, quando ainda não tinham vindo estes corpos a habitar</p><p>nossa tristeza. Que os homens terão que se surpreender alguma vez de</p><p>que todos os pássaros emudeçam de repente, sem saber que é você, e que</p><p>sou eu, que voltamos a nos encontrar mais além de nossos ossos. Que</p><p>uma tarde retornarão os bois do arado com as lâminas iluminadas por</p><p>uma amorosa claridade, e todos acreditarão que há estrelas semeadas,</p><p>sem saber que é você, e que sou eu, que estamos preparando as sementes.</p><p>Que um domingo como este soarão os sinos com bronze estremecido e</p><p>as crianças perguntarão espantadas quem morreu no domingo, sem</p><p>saber que é você, e que sou eu, que ainda continuamos morrendo em</p><p>todas as perguntas.</p><p>Pensar que alguma vez as árvores perguntarão a suas raízes quando</p><p>irão passar os vidros dos nossos olhos para que seja mais clara a luz de</p><p>suas laranjas. Que a água dos rios nos levará, pó por pó, até o júbilo dos</p><p>que tiveram sede e a mitigarão com o nosso barro. E cada uma das coisas</p><p>que amamos continuará sendo bela sem necessidade de que nós a</p><p>amemos.</p><p>E, sobretudo, pensar que este amor nosso tem que morrer, antes que</p><p>estas coisas passageiras estejam habitadas pela morte.</p><p>*</p><p>Quando a primavera chegar e eu não estiver com você, e estiverem secas</p><p>a terra e o seu paladar, plante uma árvore no pátio. Uma árvore poderosa</p><p>e corpulenta — um carvalho ou uma paineira — para que possa amparar</p><p>a temporada dos pássaros. Regue-a diariamente com a água em que você</p><p>lavou as mãos, para que o vento aprenda a tecer carícias. E deixe-a</p><p>crescer, sem que haja boca humana que se atreva a morder suas raízes</p><p>amargas. Seja egoísta, porque a vida é curta demais para compartilhá-la.</p><p>E faça com que a sua árvore seja só sua, com todo o vigor de seu poderio</p><p>vegetal, para que ninguém venha disputar o seu frescor. Não empreste o</p><p>machado ao vizinho nem tome do mel de seus favos, porque a gratidão é</p><p>inimiga das árvores. Mas se ainda insisto em ser ausente, pegue uma</p><p>faca, grave nossos nomes no tronco, e chame o vizinho para que derrube</p><p>o carvalho.</p><p>Quando chegar o outono, se ainda não tiver retornado, crave uma</p><p>ferradura na porta. Quando vierem os nossos amigos comuns e lhe</p><p>falarem do amargo sabor do barro e elogiarem os animais que cresceram</p><p>na sua horta, tenha em sua mesa pão de boa levedura e água recém-</p><p>chovida em suas moringas. Mas quando forem embora, logo depois do</p><p>jantar, feche as portas para que não voltem, porque um dia acabarão com</p><p>o pão, com a água, e apesar disso continuarão sendo nossos amigos. Nas</p><p>terças-feiras não olhe para a ferradura, mas, se continuo ausente, olhe-a</p><p>todo o tempo até mesmo quando a ira enterrar suas raízes de aço no seu</p><p>coração.</p><p>Quando o verão chegar, espere-me, mas guarde todo o sal dos mares</p><p>em sua casa. Se alguém chegar às suas portas e as derrubar com</p><p>violência, dê-lhe de beber três águas de salitre, e deixe o pão salgado</p><p>para que a voz se transforme em pedra em sua garganta. Regue sal em</p><p>seu leito para se martirizar em minha demora, e para que tenha sabor de</p><p>espanto a massa dos seus pesadelos. Lave sua pele com torrões de sal e</p><p>então sentirá como morde a solidão, quando todas as estações já tiverem</p><p>passado. Se ao terminar o outono ainda continuo distante de seu âmbito</p><p>amoroso, cubra com seda escura os espelhos e regue sal no umbral de</p><p>sua porta.</p><p>E se quando chegarem as chuvas ainda não houver regressado a seu</p><p>coração,</p><p>vá então ao pátio, e cave um buraco onde caibam seus ossos.</p><p>*</p><p>O amor é uma enfermidade do fígado tão contagiosa como o suicídio,</p><p>que é uma de suas complicações mortais. Entretanto ambas têm sido</p><p>convenientemente digni�cadas, elevadas a uma categoria sentimental,</p><p>talvez pela impossibilidade da ciência de elaborar uma terapêutica</p><p>apropriada. A languidez, a suspirante atitude das donzelas medievais que</p><p>derramavam a sua palidez por uma janela com a mesma seriedade com</p><p>que uma lavadeira derrama um balde d’água, não era senão o resultado</p><p>lógico de uma alimentação cheia de proteínas.</p><p>Mas o mais perigoso da enfermidade amorosa é o que ela tem de</p><p>teatral. Não apenas em sua essência, mas em seus elementos acidentais.</p><p>Tão logo se mostram os primeiros sintomas, o paciente se torna</p><p>impaciente, elabora argumentos, monta sua aparelhagem cenográ�ca</p><p>com o mais complicado sistema de bambolinas suspirantes, de pontos</p><p>literários (sic), de telões decorados a pinceladas de lírica timidez; e</p><p>empapela as paredes do seu pensamento com grandes cartazes</p><p>espalhafatosos que anunciam uma comovedora obra cingida aos cânones</p><p>de um autêntico dramatismo de escola, para depois, à hora da função,</p><p>sair com uma pantomima. Daí que as maiores obras da literatura</p><p>universal não tenham outro �m senão encontrar a vulnerabilidade</p><p>hepática do leitor.</p><p>Com o amor, como com toda enfermidade contagiosa, sucede que</p><p>quem o contrai tem indefectivelmente a quem atribuir a culpa. Ainda</p><p>que venha depois o período do isolamento, da quarentena sentimental,</p><p>em que os dois enfermos, após incontáveis rodeios, conseguem</p><p>encontrar-se no lugar espiritual onde sua identi�cação sintomática</p><p>começa a se acentuar e sua enfermidade a se tornar crônica.</p><p>É o período emocional em que o paciente pode ser desenganado</p><p>com a epístola de São Paulo. O fígado se ancilosa, a mulher empalidece,</p><p>o homem perde o apetite e se converte em idiota ou em �lósofo. Não lhe</p><p>resta então outro recurso a não ser especular sobre a metafísica do</p><p>esquecimento, que uns — precipitados demais — resolvem com o</p><p>suicídio, e outros com um bocado de ruibarbo antes do café-da-manhã.</p><p>SETEMBRO DE 19481</p><p>Um Jorge Artel continental</p><p>Jorge Artel levou nossa terra a Bogotá. Em um quarto de hotel da capital</p><p>abriu o poeta suas malas vagabundas e, lentamente, com a segurança do</p><p>viajante que sabe o lugar de cada coisa, foi extraindo de entre as camisas</p><p>e os lenços as perguntas da raça, os tecidos da música, a estrela que não</p><p>reluziu na noite quimérica; e aí, entre livros e cadernos de anotações,</p><p>retorcidas e úmidas, as raízes nutritivas da Costa Atlântica.</p><p>Fora, saindo à avenida, o ar estava gelado. Mas Artel levava,</p><p>embrulhada em um jornal matutino, a razão poética dos tanques, das</p><p>tarrafas.</p><p>O segredo musical da gaita soava-lhe na mão como uma vértebra da</p><p>nossa anatomia social. Barcos por um delirante itinerário lírico. A</p><p>madrugada de Cartagena dentro de uma garrafa, para que o mar fosse</p><p>mais verde — verde de vidro — no sonho dos náufragos. Um patriarca</p><p>negro tomando o pulso à febre no ventre do tambor. E uma mulata</p><p>frutal, fabricada da mesma madeira das gaitas, vendo aumentar sua</p><p>idade em direção ao abismo do primeiro pesadelo.</p><p>Ninguém poderá disputar ao poeta este milagre de levar consigo a</p><p>terra, porque ninguém como ele sentiu correr por dentro do corpo,</p><p>lubri�cando os ossos, a resina sentimental de nossa raça. Em sua voz o</p><p>público bogotano vai conhecer o mar — o mar de que Artel gosta</p><p>“porque tem as ondas volúveis como fêmeas; e porque não é de</p><p>ninguém” — através da encenação de Tambores en la noche.</p><p>O bisturi da crítica da capital descobrirá, sem dúvida, o que</p><p>Cartagena não tem querido reconhecer — pelo menos publicamente —,</p><p>o fato de que Jorge Artel tem nas artérias um terremoto (sic) continental.</p><p>Ele conhece os instrumentos que arrancam a cortiça decorativa da</p><p>nossa biologia popular e penetrou com eles nos centros vitais do</p><p>sentimento terrígeno, onde reside sua verdadeira razão de ser; sua razão</p><p>de ser poeta.</p><p>Em mãos de Jorge Artel a Costa Atlântica tem nome próprio.</p><p>O domador da morte</p><p>Um dia — muito antes de que se conhecesse o naufrágio do Euskera —</p><p>Emilio Razzore nos tinha mostrado em seu quarto do Hotel Colonial as</p><p>horrendas cicatrizes que brilham em suas costas.</p><p>— Arranhaduras de leões... — comentava, de forma tão natural, que</p><p>em nossa imaginação a poderosa fera começou a se retorcer e a miar</p><p>como um gato.</p><p>Mas daquela experiência aprendemos, nós os presentes, por que é</p><p>apaixonante o ofício dos vagabundos, e conseguimos cheirar o tóxico</p><p>que faz da farândula uma maneira de habitar a lenda.</p><p>Diante de nós estava um homem em cujas costas os tigres e os ursos</p><p>haviam escrito com garra quarenta anos de circo, de dias bons e dias de</p><p>catástrofe. Meio mundo viajado, com a selva como única bagagem, já era</p><p>uma história apaixonante para imaginar as lâminas que acalmavam os</p><p>nervos desse domador em que, certa manhã, o urso gigante, em uma</p><p>repentina explosão de ternura, deu um abraço que terminou no hospital.</p><p>Depois, quando o ar da tragédia começou a subir pelos ânimos</p><p>surpreendidos, tivemos a mais amarga oportunidade de conhecer o</p><p>domador, mordido por dentro, tentando dominar a fera da dor que tinha</p><p>crescido de repente com as garras mais a�adas que as dos leões.</p><p>Devo dizer que Emilio Razzore é o homem mais tremendamente</p><p>humano que já conheci. Quando não pôde mais duvidar do naufrágio,</p><p>quando compreendeu a pavorosa realidade de que nada lhe restava sobre</p><p>o mundo, de que no fundo do mar, cobertos pelas algas verdes da morte,</p><p>repousavam cem anos de batalha, aferrou-se a seu último desejo. Queria</p><p>que um — pelo menos um dos seus — sobrevivesse ao espanto da</p><p>tragédia para começar novamente a domesticar �lhotes, para refazer o</p><p>circo.</p><p>Entretanto, nem mesmo quanto a esse último desejo a catástrofe o</p><p>satisfez, e o domador foi embora — sabe Deus para onde — para iniciar</p><p>uma tournée solitária, com as costas da alma mordidas por irremediáveis</p><p>cicatrizes.</p><p>Um triunfo de Ñito Ortega</p><p>Ñito Ortega encerrou sua atuação da quinta-feira, no México, com uma</p><p>volta à arena,2 embora o touro não se tenha portado à altura de sua casta,</p><p>e muito apesar também do que foi dito por um destacado colunista deste</p><p>jornal — “velha raposa do jornalismo” segundo sua própria con�ssão, o</p><p>que, aliás, eu reconheço em toda a extensão dos adjetivos —, que nos</p><p>comunicou alguns segredos bem conhecidos,3 relativos à primeira</p><p>intervenção do novilheiro colombiano na capital asteca, e com os quais o</p><p>autor destas colunas gostaria de estar inteiramente de acordo.</p><p>Não sendo assim — manifesto que não considero para o caso</p><p>presente o triunfo que o palmirano obteve na quinta-feira — e me</p><p>considero na obrigação de justi�car meus pontos de vista, sem a</p><p>intenção de estabelecer uma polêmica que, de outra parte, seria</p><p>deselegante entre gado do mesmo aprisco.</p><p>Devo confessar primeiro que, sem ser vegetariano convicto, entendo</p><p>tanto de touros quanto de astronomia analítica. Isto é, tanto quanto</p><p>confessa o meu ilustre colega.</p><p>Não há desacordo no que se refere aos elogios que a imprensa da</p><p>capital costuma prodigalizar. Neste sentido, tenho os mesmos escrúpulos</p><p>digestivos de “Fulminante”, que garante não comungar com tortas de</p><p>cazabe.4 Parece-me, porém — e há quem garanta que me parece bem —,</p><p>que para julgar a atuação de Ortega no México não se requer ser um</p><p>perito em tauromaquia. Basta — dadas as circunstâncias — que os que</p><p>presenciaram a corrida tenham sido correspondentes de imprensa.</p><p>E a eles me reporto. Diz o telegrama que o touro não esteve à altura</p><p>— como não esteve na quinta-feira — e que Ñito Ortega tirou disso o</p><p>melhor partido possível. Não é de estranhar, pois, que a pior parte</p><p>coubesse ao toureiro.</p><p>Não obstante esse inconveniente, o público mexicano — que</p><p>entende bem desses problemas — se pôs de pé mais de uma vez ante os</p><p>formidáveis muletazos5 do nosso compatriota. De onde se pode deduzir</p><p>— sem forçar a imaginação — que de fato há todo</p><p>um estofo de bom</p><p>toureiro em Ñito Ortega, e que não é fácil a um provinciano, pela</p><p>primeira vez diante da melhor opinião taurina da América, e com</p><p>novilhos de�cientes, conseguir entusiasmar a assistência. A coisa, vista</p><p>por este ângulo, já soa diferente.</p><p>Por outro lado, Ñito não foi inicialmente contratado com facilidade.</p><p>Para ninguém é segredo que dois observadores técnicos assistiram em</p><p>Bogotá a uma corrida do palmirano, enviados expressamente pelos</p><p>astecas para constatar o que havia de verdade no que dizia a imprensa da</p><p>capital. Técnicos que não vacilaram em dar sua aprovação e reconhecer</p><p>que não eram tão exagerados os elogios que, sobre Ñito Ortega,</p><p>fabricavam os jornalistas de Bogotá.</p><p>Em resumo: sim, ele é um bom novilheiro. E não fez um papelão,</p><p>como parece entender o meu ágil colega, embora, se tal houvesse</p><p>acontecido — e isto é um capítulo à parte —, não teria sido por esse</p><p>“complexo de inferioridade que nós colombianos devíamos evidenciar”.</p><p>Pelo contrário, teria sido produto de um complexo de superioridade, tão</p><p>volumoso quanto os touros que se vêem nos noticiários.</p><p>Entretanto, isso não quer dizer, é claro, que Ñito Ortega seja na</p><p>atualidade um Manolete, nem que eu tenha de escrever um panegírico</p><p>aos machões.</p><p>O cinema norte-americano</p><p>O velho esporte de sair no pau dos magnatas de Hollywood voltou outra</p><p>vez à baila com a bomba de profundidade que Charlie Chaplin lançou há</p><p>alguns dias sobre os mercadores do cinema norte-americano.</p><p>Os críticos — parte essencial desse campo de concentração</p><p>cinematográ�co — não vacilaram em voltar-se contra ele e dizer que,</p><p>quando o criador do grande Carlitos a�rma que os EUA não prestaram</p><p>nenhuma contribuição valiosa à sétima arte, está apenas deixando</p><p>escapar algumas libras de ressentimento pelo tratamento — tão mau</p><p>quanto inútil — que deram esses mesmos críticos à sua atuação em</p><p>Monsieur Verdoux.</p><p>Quaisquer que sejam as causas de sua atitude, Chaplin pôs o dedo</p><p>na ferida. E o fez com maior força do que se pôde imaginar, pois, quando</p><p>aquela gente arma uma baderna como essa, é porque o franco-atirador</p><p>não errou na pontaria.</p><p>O pior de tudo é que não se precisa ser um Chaplin para descobrir</p><p>um fracasso tão saliente quanto o do cinema norte-americano. Basta</p><p>saber que cada vez que os ingleses produzem um novo �lme, os</p><p>endinheirados de Hollywood têm de recorrer a um especialista para</p><p>normalizar sua pressão arterial.</p><p>Tudo porque não querem se convencer de que, se esse vultoso</p><p>capital que inverteram para mostrar tanta tragédia doméstica fosse</p><p>aproveitado na produção de desenhos animados, a arte teria tido para</p><p>com eles pelo menos uma dívida de gratidão.</p><p>Mas o caso é que os produtores dos EUA não apenas decidiram fazer</p><p>�lmes de bilheteria, e com isso mandaram ao diabo o bom gosto de uma</p><p>boa parte do público, que por �m deveria afeiçoar-se ao cinema superior</p><p>para não �car sem espetáculos.</p><p>Se desde o princípio se houvesse prescindido desse arsenal de</p><p>procedimentos aparatosos, de tempestades a bordo de uma banheira, a</p><p>grande massa popular de hoje faria delirar a galeria diante de Orson</p><p>Welles e quebraria as poltronas face a um palhaço como Frankenstein.</p><p>Pode ser que Chaplin esteja ressentido pela crítica feita a Monsieur</p><p>Verdoux, mas isso não quer dizer que não sejam verdadeiras as suas</p><p>a�rmações.</p><p>Otimismos de Aldous Huxley</p><p>Aldous Huxley, o inteligente romancista inglês, não é muito pessimista</p><p>ao se mostrar preocupado com a pressa com que, segundo ele, estão se</p><p>cumprindo as profecias de seu último romance, cujos personagens vivem</p><p>no paraíso do século XXV.</p><p>Não tenho notícia de que este livro — cujo título original é Brave</p><p>New World [Admirável mundo novo] — tenha chegado às livrarias do</p><p>país, nem se existe já a versão para o nosso idioma; mas, segundo alguns</p><p>comentaristas, o autor de Também o cisne morre volta-se para ele por</p><p>seus foros de romancista principal, uma vez que, depois da publicação de</p><p>O tempo deve parar, a crítica concordou em a�rmar que não tinha</p><p>chegado a se superar em relação às duas obras anteriores — os mais</p><p>famosos e indiscutivelmente dois grandes romances do nosso tempo —,</p><p>cujos títulos originais, Point Counter Point e Eyeless in Gaza, foram</p><p>vertidos ao castelhano como Contraponto e Con los esclavos en la noria,</p><p>respectivamente.6</p><p>Segundo entendo, em Brave New World, Huxley deve apresentar</p><p>circunstâncias análogas às de Un mundo feliz7 — uma de suas obras de</p><p>maior procura em razão de seu humorismo amargo —, pois em ambos</p><p>os livros a ação se desenrola em distantes épocas futuras.</p><p>Mas o último, que, mais do que uma profecia, é uma crítica aguda ao</p><p>mecanicismo da época, que o autor inglês exagera até os extremos de</p><p>criar um mundo arti�cial, em que a própria reprodução humana está</p><p>submetida a procedimentos técnicos, à fabricação em série com que</p><p>tanto os norte-americanos vêm-se preocupando, é um quadro utópico</p><p>destinado a a�igir duramente as sociedades que estão dando toda sorte</p><p>de precedências à máquina sobre o espírito.</p><p>Em Brave New World, em compensação, Huxley faz uma profecia.</p><p>Seus personagens movimentam-se em um mundo que, segundo o autor,</p><p>deve ser o nosso dentro de cinco séculos, levando em conta certos fatos</p><p>atuais que hão de servir de antecedentes históricos ao tempo do</p><p>romance.</p><p>Assim, o insigne romancista chega à conclusão de que os homens</p><p>encontrarão por �m os meios para conseguir uma sociedade</p><p>“genuinamente humana”.</p><p>Em razão disso, provocou uma explicável surpresa a declaração feita</p><p>por Huxley há alguns dias, à revista Life, segundo a qual suas predições</p><p>em Brave New World estão-se cumprindo com uma pressa imprevista. É</p><p>certamente estranho — mesmo sem ler o romance comentado — que</p><p>alguém possa crer, no momento atual, que estamos conseguindo os</p><p>métodos para constituir uma sociedade genuinamente humana.</p><p>Notas</p><p>1 Estes artigos não foram assinados com pseudônimo. (N. da E.)</p><p>2 Volta à arena, em espanhol vuelta al ruedo, o que se concede ao bom toureiro, após sua</p><p>exibição, sob as palmas do público. (N. do T.)</p><p>3 García Márquez se refere a “Secreto a voces”, crônica de “Fulminante”, publicada em El</p><p>Universal da quarta-feira, 15 de setembro, p. 4.</p><p>4 Tortas de cazabe, à base de farinha de mandioca. Neste sentido, elogios exagerados, badalação.</p><p>(N. do T.)</p><p>5 Muletazos ação do toureiro que leva na mão um pedaço de pau, escondido debaixo de sua</p><p>capa ou do pano vermelho, e o utiliza para enganar o touro e fazer-lhe baixar a cabeça na hora da</p><p>morte. (N. do T.)</p><p>6 Contraponto e Sem olhos em Gaza, nas edições brasileiras. (N. da E.)</p><p>7 Há aqui um equívoco quanto ao título do livro de Huxley citado por García Márquez, uma vez</p><p>que Un mundo feliz é a tradução espanhola para Brave New World. Gárcia Márquez</p><p>provavelmente quis se referir a alguma outra obra da extensa produção literária do autor inglês,</p><p>que compreende diversos volumes de �cção cientí�ca. (N. da E.)</p><p>OUTUBRO DE 1948</p><p>A verdadeira Policarpa</p><p>Una heroína de papel</p><p>Faz apenas quarenta dias que o escritor barranquilheiro Rafael Marriaga</p><p>fez a última revisão nas 208 páginas de seu livro Una heroína de papel, e</p><p>já sofreu a mais impenitente das surras críticas dos últimos tempos.</p><p>Na verdade, nada há de mais simples do que sentar-se e escrever</p><p>cem laudas impiedosamerte iconoclastas, com o único propósito de</p><p>aproveitar o revolto rio das controvérsias em benefício cantante e</p><p>sonante, sem a terrena preocupação com a dignidade e o prestígio.</p><p>Mas se alguma coisa há de salvar Rafael Marriaga desta tempestade</p><p>editorial que estão fazendo desabar sobre sua obra é precisamente a sua</p><p>boa-fé de investigador, sua decorosa posição de escritor documentado</p><p>que o distinguem de�nitivamente do pan�etista exagerado, do vulgar</p><p>fabricante de murmúrios sem fundamento.</p><p>Una heroína de papel é, acima de tudo, um livro sério. Em suas</p><p>páginas, transita o leitor por esse grande romance de nossa pátria,</p><p>guiado por um autor responsável que se detém diante de cada detalhe,</p><p>diante de cada passagem mais</p><p>ou menos nebulosa, para autenticar suas</p><p>a�rmações com documentos de inequívoca autoridade. Assim, pelos</p><p>des�ladeiros de uma primitiva organização social, vai-se assistindo à</p><p>dramática realidade de um mundo torturado, mordido pela fome e a</p><p>rebeldia, condenado à noite perpétua de um regime atrasado, no qual a</p><p>única heroína possível é esta tremenda e máscula Policarpa Salavarrieta</p><p>que nos mostra Rafael Marriaga.</p><p>Em um instante de profundo desconforto social como o dos nossos</p><p>anos coloniais, nada resulta mais pueril do que tentar conceber uma</p><p>revolucionária melindrosa, uma conspiradora de papel dourado como a</p><p>Policarpa de opereta que nos dizia palavras açucaradas do livro da escola</p><p>primária.</p><p>A Pola de Marriaga é uma heroína de temperamento, uma mulher-</p><p>macho sem condimentos retóricos como qualquer soldado da época.</p><p>Uma Gregoria Apolinaria, �lha de quaisquer Joaquins e Gregorias que</p><p>no casario de Guaduas tinham de pagar impostos e morrer de fome por</p><p>ordem do mau governo.</p><p>O mais lógico, pois, é que Gregoria Apolinaria — como Marriaga</p><p>chama Policarpa ao longo de sua obra, sem que isso retire nem</p><p>acrescente nada ao valor da heroína — não tivesse papas na língua para</p><p>proferir palavrões às autoridades, especialmente quando sua estada na</p><p>casa da família Herrán y Zaldúa, a quem servia como costureira, valeu</p><p>para contemplar de perto a profunda desigualdade econômica que</p><p>separava as diferentes classes sociais daquele período histórico. Uma</p><p>mulher de temperamento como aquela, que além disso tinha uma</p><p>inteligência pouco comum, não podia conformar-se ante aquela</p><p>realidade, e então precisou sair — para viver sua vida sem jugos de</p><p>nenhuma espécie — para ganhar o pão de cada dia na única forma</p><p>decorosa em que podia pensar uma mulher consciente das</p><p>arbitrariedades do mau governo: dedicando-se ao contrabando.</p><p>E a esta altura, reconhecida na oposição, com um passado de</p><p>inconformismo e de contrabandista, estava já aberta a transformação</p><p>para dormir nos quartéis, para montar guarda à porta das conspirações,</p><p>e depois — quando cai nas mãos de um sargento bem recompensado —</p><p>para largar-se em palavrões contra o mau governo que a leva ao</p><p>cadafalso, em “uma forte gritaria de mercado”, fazendo uso do único</p><p>mundo vocabular que podia estar ao alcance de uma revolucionária</p><p>caprichosa e violenta, que amamentara sua rebeldia entre soldados e</p><p>ru�ões. Rafael Marriaga deu-nos uma Policarpa verdadeira. Nada era tão</p><p>falso quanto essa camponesa rebelde, mas de maneiras aristocráticas,</p><p>que evocava uma proclamação impecável, quase poética, mais própria de</p><p>uma literatura oportunista do que de uma grande guerrilheira.</p><p>É preciso anotar, todavia, que o autor de Una heroína de papel teria</p><p>podido poupar as quarenta e tantas páginas da primeira parte, através</p><p>das quais, partindo da viagem de Colombo, vem dando profundos</p><p>golpes históricos, abrindo passagem por uma emaranhada selva</p><p>centenária que, em vez de a�rmar a unidade da obra, divide-a com uma</p><p>desesperada odisséia, da qual sai o leitor ofegante, sufocado, por haver</p><p>percorrido duzentos anos sem parar para respirar, em meio a uma prosa</p><p>vacilante entre a narração vernácula e a história romanceada, na qual,</p><p>apesar de tudo, sentem-se às vezes o bené�co soprar da poesia resgatada.</p><p>A verdade é que, depois de conhecer esta nova Policarpa, nós nos</p><p>perguntamos qual foi a verdadeira intenção de Marriaga ao intitular a</p><p>obra. Se a heroína de papel é a Pola de que tínhamos notícia antes de ler</p><p>este livro, não há nada a objetar. Mas se a intenção do historiador</p><p>barranquilheiro foi a de acabar de uma vez por todas com a ilustre �lha</p><p>de Guaduas, e apesar de tudo iluminou-a em todo o seu esplendor de</p><p>heroína autêntica, fracassou em seu propósito. Mas com esse fracasso fez</p><p>um favor à história.</p><p>DEZEMBRO DE 19481</p><p>Um profundo Eduardo Carranza</p><p>(Comentários)</p><p>N o suplemento literário de El Tiempo do último domingo2, Eduardo</p><p>Carranza brindou o país com uma verdadeira surpresa. O aguerrido</p><p>capitão de Pedra e Céu estava atravessando um período de silêncio que</p><p>até ontem era inexplicável. Sabia-se que como adido cultural de nossa</p><p>embaixada em Santiago do Chile desenvolveu um intenso labor em</p><p>benefício de nosso renome literário, e que os círculos culturais do país</p><p>austral haviam correspondido a essa atividade. A missão diplomática de</p><p>Eduardo Carranza estava cumprida.</p><p>Mais tarde, nomeado diretor da Biblioteca Nacional, voltou à</p><p>Colômbia para se internar nesse campo de concentração de velhos</p><p>papéis mal ordenados de onde seu nome esteve saindo eventualmente,</p><p>mais com um objetivo publicitário do que com o propósito de continuar</p><p>sua trajetória lírica. Porque o silêncio continuava espesso sobre sua voz</p><p>de poeta.</p><p>E havia, certamente, razões para abrigar sérios temores por aquela</p><p>palavra malograda. No movimento que liderou em 1939, Eduardo</p><p>Carranza se destacou como capitão, como batalhador infatigável, mas</p><p>não — estritamente — pela qualidade perdurável de sua obra. Aquilo de</p><p>donzelas, de tardes desmaiantes, do llano feminino atravessado pelo</p><p>cavalo ronda�or, �cava bem ao poeta, mas em nenhum caso dava por</p><p>trabalho cumprido. Carranza precisava superar-se, dar seu tom</p><p>de�nitivo. E o país já havia perdido as esperanças de escutá-lo.</p><p>Agora — inesperadamente — sai um Eduardo Carranza novo,</p><p>totalmente desconhecido. Na pequena seleção que o grande jornal</p><p>bogotano publica, há um poeta universal, um homem espantado de</p><p>perguntas, transitando por um submundo que não é — agora — o</p><p>submundo arti�cial, falso, por onde se têm aventurado alguns poetas</p><p>nossos. A sombra do Carranza funambulesco retrocedeu diante do</p><p>avanço deste outro grande Eduardo Carranza que já está se per�lando</p><p>com uma vigorosa personalidade lírica pelos mais altos territórios da</p><p>poesia continental.</p><p>Notas</p><p>1 Este artigo não foi assinado com pseudônimo. (N. da E.)</p><p>2 García Márquez se refere aos poemas publicados em El Tiempo, no domingo, 12 de dezembro</p><p>de 1948, segunda seção, p. 1, sob o título geral El olvidado (“De los sueños”, “Penumbra”, “El</p><p>olvidado”, “Cancioncilla”, “Tema de mujer y manzana”, “Primer retrato”, “Segundo retrato”, “Es</p><p>amor”).</p><p>JULHO DE 19491</p><p>A viagem de Ramiro de la Espriella</p><p>Agora que Ramiro de la Espriella viaja a Bogotá, para receber seu título</p><p>de advogado, é necessário que nós, seus amigos, digamos a ele mais de</p><p>quatro verdades para que não vá com a ilusão — tão perseguida por</p><p>outros! — de que é um incompreendido.</p><p>Para entender este advogado iminente, �el a seu rijo bigode</p><p>moscovita e a esse cachimbo descomunal que alguma vez o levará de</p><p>bruços sobre sua própria meditação, basta ter lido um pouco de Karl</p><p>Marx e um pouco também, naturalmente, de Caliban. Entre tudo o que</p><p>ambos a�rmam está tudo o que a�rma e nega Ramiro de la Espriella.</p><p>Nós, seus amigos recentes, sabemos que há quatro anos o enviaram a</p><p>Bogotá, como a qualquer destes tantos estudantes da província a quem</p><p>suas tias solteiras disseram que são inteligentes, porque recitam de</p><p>memória a Nuñez de Arce e a Campoamor. Ramiro devia ser então um</p><p>universitário prematuramente sério, que inventava suas manhas para que</p><p>entre um artigo do Código Civil e uma sentença de Justiniano</p><p>coubessem vários livros de Vargas Vila, uns quantos romances de Paul</p><p>Bourget e três volumes do dicionário �losó�co de Voltaire. Não se pôde</p><p>saber como se operou exatamente o processo, mas a verdade é que</p><p>aquele arisco estudante provinciano, que tinha tudo de que se precisa</p><p>para ser um astuto e inoperante oligarca, retornou de repente com os</p><p>mais sólidos desejos de fazer uma revolução.</p><p>Revolução contra o quê, era o de menos. Revolução porque sim,</p><p>simplesmente. Seus amigos de então começaram a ter sérias</p><p>preocupações com sua saúde. O universitário estava todo um teórico do</p><p>marxismo, começara a deixar crescer o bigode à moda soviética, e sobre</p><p>a testa caía-lhe, enquanto conversava, uma mecha de cabelos louros</p><p>certamente suspeita. Parecia, na verdade, um homem capaz de dinamitar</p><p>uma ferrovia.</p><p>e povoados</p><p>importantes da Colômbia. Mergulhava assim aquele país, de forma</p><p>indisfarçável, no ciclo conhecido como “a Violência”, cuja engrenagem,</p><p>na realidade, já havia começado a funcionar dois anos antes, com o</p><p>acesso da minoria conservadora ao poder presidencial.</p><p>É precisamente à época desse marco histórico que se situa o ingresso</p><p>de García Márquez na atividade jornalística, uma conseqüência direta,</p><p>embora imperceptível, do “Bogotazo”. O escritor principiante (que nos</p><p>meses anteriores havia publicado três contos no suplemento literário de</p><p>El Espectador, de Bogotá) cursava então o segundo ano de direito na</p><p>Universidade Nacional.1 Fechada a universidade em razão dos motins do</p><p>9 de abril, García Márquez nada mais tinha a fazer na capital e por isso</p><p>optou pelo regresso à Costa Atlântica, região de onde vinha. Primeiro</p><p>esteve em Barranquilla, a principal cidade da Costa, onde vivera alguns</p><p>anos em casa dos pais2 e freqüentara os primeiros anos do curso</p><p>secundário, no colégio de jesuítas de San José.3 Como também em</p><p>Barranquilla a universidade fora fechada, decidiu seguir para Cartagena,</p><p>cidade que não conhecia, mas cuja universidade reiniciara as aulas. Foi</p><p>em Cartagena que García Márquez tratou da transferência de sua</p><p>matrícula.</p><p>Segundo ele próprio recorda,4 encontrou-se casualmente, numa rua</p><p>de Cartagena, com um prestigioso intelectual local, o médico e escritor</p><p>Manuel Zapata Olivella, que o levou à redação de El Universal,5 um</p><p>diário recém-fundado onde Zapata tinha vários amigos. Deve datar de</p><p>18 ou 19 de maio de 1948 esse casual e decisivo contato com o</p><p>jornalismo. Com efeito, no dia 20, na seção “Comentarios” da página</p><p>editorial de El Universal (a página 4, onde viriam a sair todas as matérias</p><p>assinadas por García Márquez e quem sabe quantas outras por ele</p><p>redigidas), apareceu um texto atribuído ao chefe da redação, Clemente</p><p>Manuel Zabala, dando as boas-vindas ao jovem escritor e iminente</p><p>jornalista. Como mais tarde faria Alfonso Fuenmayor, em Barranquilla,</p><p>o autor do texto ressaltava o promissor talento literário do recém-</p><p>chegado. Intitulado “Saludo a Gabriel García”, assim dizia o texto:</p><p>Certo dia Gabriel García Márquez deixou a margem do Mojana e partiu para Bogotá,</p><p>levado por sua ambição de aprender e de abrir à sua inteligência novos caminhos à sua</p><p>inquietação (sic). Ali ingressou na universidade, com o objetivo de familiarizar-se com</p><p>as disciplinas da jurisprudência e, restando em sua curiosidade intelectual uma zona</p><p>livre, ocupou-a com o nobre exercício das letras. Foi assim, portanto, que, ao lado dos</p><p>códigos, fez suas incursões no mundo dos livros; e que, acicatado pelos apelos urgentes</p><p>da criação, publicou em El Espectador os seus primeiros contos. Constituíram uma</p><p>verdadeira revelação aquelas primícias do seu talento, e de tal forma que Eduardo</p><p>Zalamea, grande cultor e mecenas das belas-letras, fez chegar ao jovem escritor sua</p><p>palavra de incentivo, abrindo-lhe as portas de sua insuperável revista.</p><p>Hoje, Gabriel García Márquez, por um imperativo sentimental, retorna à sua terra e</p><p>incorpora-se ao nosso ambiente universitário, ao assumir seu lugar na Faculdade de</p><p>Direito, prosseguindo os estudos que havia iniciado com lisonjeiros êxitos na capital.</p><p>O estudioso, escritor e intelectual, nessa nova etapa de sua carreira, não emudecerá e</p><p>expressará nestas colunas todo esse mundo de sugestões com que diariamente</p><p>impressionam sua inquieta imaginação as pessoas, os homens e as coisas.6</p><p>No dia seguinte, 21 de maio de 1948, apareceu em El Universal, de</p><p>Cartagena, o texto de estréia da longa, bem-nutrida e brilhante trajetória</p><p>jornalística de García Márquez, com o primeiro original entregue de sua</p><p>efêmera coluna intitulada “Punto y aparte”.</p><p>García Márquez colaborou em El Universal durante todo o restante</p><p>de 1948 e também durante 1949, pelo menos até sua partida para</p><p>Barranquilla em dezembro desse último ano. Ao mesmo tempo, cursou o</p><p>segundo e o terceiro anos de direito, embora não tenha sido, em matéria</p><p>de assiduidade, um aluno exemplar.7 Sua colaboração em El Universal,</p><p>no conjunto, é bem escassa: em mais de um ano e meio assinou somente</p><p>38 matérias, identi�cadas com as iniciais GGM ou com o seu nome</p><p>completo. Sua colaboração mais efetiva no diário de Cartagena situa-se</p><p>num anônimo trabalho de redação, difícil ou impossível de ser</p><p>identi�cado ou a ele atribuído, já que seu estilo ainda não se de�nira, e</p><p>ainda mais porque — segundo ele próprio recorda — o chefe da redação,</p><p>sempre que lhe parecia de�ciente a qualidade estilística, cortava e</p><p>reescrevia impiedosamente trechos inteiros dos textos que deveriam ser</p><p>publicados sem assinatura.</p><p>A respeito do que foram as atividades de García Márquez em El</p><p>Universal, fornece-nos valiosos dados — além das 38 matérias</p><p>identi�cadas — um texto sem assinatura (atribuído, mais do que ao</p><p>chefe da redação, ao jornalista, poeta, pintor e futuro romancista Héctor</p><p>Rojas Herazo), publicado como sempre na seção “Comentarios” da</p><p>página 4, no dia 30 de março de 1949. Por problemas de saúde, García</p><p>Márquez teve de ausentar-se por algum tempo do jornal e viajar para</p><p>Sucre, onde residia sua família. Este texto, intitulado “Gabriel García</p><p>Márquez”, refere-se à sua atividade jornalística nos seguintes termos:</p><p>A ausência temporária de García Márquez das tarefas diárias deixa um vácuo fraterno</p><p>nesta casa. Diariamente, sua prosa transparente, exata, vigorosa, destacava-se no</p><p>cotidiano decorrer dos acontecimentos. Da heterogênea montanha de notícias, sabia</p><p>selecionar com inato esmero de grande jornalista aquelas que — por suas possibilidades</p><p>de desobramento — pudessem oferecer às manhãs dos leitores um melhor desjejum. Seu</p><p>estilo impôs-se rapidamente em nosso meio. Para isso, dispõe ele, além de um cultivado</p><p>bom gosto, de recursos de verdadeiro mestre, obtidos na sua experiência de contista e</p><p>romancista.</p><p>Essas linhas fazem, uma vez mais, uma clara alusão ao talento literário</p><p>de García Márquez (no parágrafo posterior será dito também “que</p><p>indubitavelmente é hoje o maior contista da Colômbia e que, nos</p><p>intervalos do seu trabalho jornalístico, vem construindo com exemplar</p><p>tenacidade um romance de poderosa e inquietante inspiração”) e</p><p>ressaltam, particularmente, suas qualidades de redator, e aqui devemos</p><p>lembrar, mais do que um redator anônimo. A menção a seu faro para</p><p>“selecionar (...) [aquelas notícias] (...) que pudessem oferecer às manhãs</p><p>dos leitores um melhor desjejum” deixa, além do mais, a suspeita de que</p><p>García Márquez, como mais tarde faria em El Heraldo, de Barranquilla,</p><p>ocupava-se também da revisão dos despachos que chegavam pelo</p><p>teletipo de El Universal, bem como da escolha daqueles que deviam ser</p><p>publicados.8</p><p>Dessa época passada em Cartagena são muito poucos, em sua</p><p>produção jornalística identi�cada, os elementos que nos permitem</p><p>conhecer algo sobre a vida de García Márquez. Uma interessantíssima</p><p>crônica, de 28 de julho de 1949, informa sobre sua amizade com Ramiro</p><p>de la Espriella e os debates literários que mantinham.9 Uma outra que</p><p>sairia mais tarde em El Heraldo, de Barranquilla, refere-se a Jorge Álvaro</p><p>Espinosa. É evidente que a convivência pro�ssional com Héctor Rojas</p><p>Herazo teria de signi�car um importante aspecto nesse período vivido</p><p>em Cartagena. Mas a in�uência maior — evocada muito de passagem</p><p>tempos depois na coluna intitulada “La Jirafa” — foi certamente a de</p><p>Clemente Manuel Zabala, na época chefe da redação de El Universal.</p><p>Zabala, oriundo da Costa Atlântica, havia pertencido, nos anos 20, ao</p><p>grupo “Los Nuevos” antes de dedicar-se às atividades culturais e</p><p>jornalísticas que exerceu em Barranquilla, Bogotá e Cartagena. Trata-se</p><p>de personalidade bastante misteriosa, sobre a qual não faltam dados</p><p>reais daqueles que o conheceram — e todos destacam o aspecto</p><p>enigmático de sua personalidade10 —, mas parece ter deixado pouca</p><p>coisa escrita, di�cultando uma avaliação melhor do seu trabalho</p><p>intelectual. García Márquez chega até a a�rmar que</p><p>Entretanto, alguém — com sua secreta intenção, naturalmente — lhe</p><p>deu um cachimbo descomunal e todo o furor polêmico desapareceu. Ali</p><p>estava a razão do mal. Porque o entusiasmo exterior, que teria cessado</p><p>sem dúvida com a mudança de voz, com a passagem da adolescência à</p><p>maioridade, �ltrou-se no cachimbo e — maduro já em um longo</p><p>processo mental — concentrou-se em seus ossos.</p><p>E agora, quando passa inadvertido, quando lhe nasceram certos</p><p>gostos esportivos e voltou a ser um homem sereno, de aspecto inteligente</p><p>mas inofensivo; quando parece — a�nal — curado de todos os seus</p><p>impulsos revolucionários, é precisamente quando Ramiro de la Espriella,</p><p>em determinadas circunstâncias, pode resultar num homem perigoso</p><p>para certos vícios dos nossos sistemas de governo.</p><p>Já não é o sarampo da adolescência o que o está impelindo, mas a</p><p>doença crônica de uma arraigada convicção. E tudo isso — naturalmente</p><p>— apoiado por uma cultura séria, uma inteligência extraordinária e pelo</p><p>domínio de seus materiais dialéticos que lhe permitem examinar,</p><p>friamente e sem preconceitos burgueses, as situações históricas.</p><p>Agora que será doutor em Direito, era apenas necessário que seus</p><p>amigos disséssemos estas verdades, para que os adversários políticos de</p><p>Ramiro de la Espriella vão tratando — também eles — de deixar crescer</p><p>o bigode, de fumar cachimbo e de estudar um pouco de economia</p><p>política.</p><p>A nós — pessoalmente — de la Espriella vai-nos fazer falta durante</p><p>alguns meses, para falar mal de André Maurois, discutir sobre Faulkner e</p><p>estar de acordo sobre Virginia Woolf. Vai-nos fazer falta, por outro lado,</p><p>para que nos recorde por que é necessário destituir os chefes naturais do</p><p>liberalismo departamental e para que nos ature, dias inteiros, lendo</p><p>originais de um romance que não pode circular sem o seu “de acordo”.</p><p>Vai-nos fazer falta, en�m, como companhia e como espetáculo de</p><p>inteligência; como motivo incomparável para perder o tempo e como</p><p>conselheiro insubstituível para esquecer algumas loucuras da vida e nos</p><p>convertermos em responsáveis pais de família. Mas, principalmente, nos</p><p>fará falta a sua fraterna proximidade.</p><p>Nota</p><p>1 Este artigo não foi assinado com pseudônimo. (N. da E.)</p><p>OUTUBRO DE 19491</p><p>Vida e romance de Poe</p><p>(Comentários)</p><p>Paul Valéry falava de Edgar Allan Poe como um gênio desconhecido ou</p><p>esquecido por seus próprios compatriotas. Hoje faz cem anos do dia em</p><p>que o célebre poeta de Baltimore morreu em um hospital daquela</p><p>cidade, dilacerado pelos fantasmas do delirium tremens, e é possível</p><p>assegurar que a literatura norte-americana não registra um caso similar</p><p>ao seu, nem uma tendência que se possa considerar como a</p><p>continuidade no tempo dessa sombria e tenebrosa linha de conduta</p><p>estética criada por Edgar Poe. Os norte-americanos — e nisto eles se</p><p>diferenciam fundamentalmente dos ingleses — perderam o senso do</p><p>mistério.</p><p>Desprezando os termos extremos que foram enfrentados na</p><p>polêmica que pretende valorizar em sua justa medida a estranha</p><p>mercadoria literária de Poe, acaba sendo inegável que ela — qualquer</p><p>que seja sua qualidade estética — corresponde a um profundo cordame</p><p>humano que não é passível de menosprezar na valorização de nenhum</p><p>autor.</p><p>A vida de Poe foi o cumprimento de um itinerário trágico. Como</p><p>seus extraordinários contemporâneos nas letras norte-americanas —</p><p>Nathaniel Hawthorne e Herman Melville —, deixou ele em cada uma de</p><p>suas palavras o testemunho da neurose que ordenava todos os aspectos</p><p>de seu universo psicológico. Todos esses três são acusados de haver</p><p>criado uma obra de evasão, indiferente aos complexos problemas sociais,</p><p>aos fatores dominantes da época, da psicologia do homem que nos</p><p>Estados Unidos da metade do século lançava as bases de uma sólida e</p><p>extraordinária natureza (sic). Isso é certo, ao contrário na realidade do</p><p>acontecido com o poderoso avô Whitman, que semeou em seu canto a</p><p>semente sinfônica da civilização.</p><p>Lewisohn — em seus ensaios críticos sobre literatura norte-</p><p>americana — acredita descobrir a razão dessa atitude de fuga em direção</p><p>ao irreal e que caracteriza os três autores que vimos citando,</p><p>precisamente nessa neurose que os obrigou a desprezar “os mais</p><p>profundos e amplos motivos da arte” para concluir dizendo que</p><p>Hawthorne, Melville e Poe não realizaram a obra que o sr. Lewisohn</p><p>teria desejado porque “não foram su�cientemente humanos”.</p><p>Naturalmente que esta certeira a�rmação seria concludente no caso</p><p>de qualquer autor, se não se tivesse a necessária serenidade para pensar</p><p>que essa insu�ciência de experiências humanas que obrigou Poe a buscar</p><p>na evasão e na fantasia a satisfação de suas di�culdades estéticas é</p><p>também uma condição humana capaz de projetar-se na obra, com</p><p>resultados tão respeitáveis e estremecedores como os de Balzac,</p><p>Dostoiévski ou Cervantes.</p><p>Comovedora condição humana foi o sentimento de culpa de</p><p>Hawthorne, �agrante em A casa das sete torres, e convertido em discurso</p><p>�losó�co em A letra escarlate, ou o lacerante sentimento de Melville, que</p><p>o fazia ver nos seres e nas coisas, em sua natureza externa, agentes</p><p>secretos ou públicos da maldade universal, a qual obtém sua apoteótica</p><p>consagração em Moby Dick, a prolongada perseguição da baleia branca</p><p>por todos os mares da Terra. Comovedora condição humana,</p><p>�nalmente, o sentimento de impotência, de insu�ciência, que limitou a</p><p>possibilidade de Poe — como homem — e é a justi�cação de sua</p><p>torturante e desolada produção literária. É esse sentimento — que teria</p><p>proporcionado um copioso documentário a Sigmund Freud — o que</p><p>mais preocupa a seu discípulo na crítica, Lewisohn. O estranho, na</p><p>verdade, é que este último considere como um obstáculo para a</p><p>realização de Poe, não como uma de suas condições essenciais como</p><p>escritor (sic).</p><p>Nem sequer é justo o penetrante Aldous Huxley quando acusa o</p><p>extraordinário narrador norte-americano de haver incorrido na</p><p>vulgaridade, reincidindo sistematicamente nas situações de terror. É</p><p>necessário pensar que a reincidência de Poe em sua própria temática não</p><p>é senão o resultado de uma de�nida personalidade literária,</p><p>condicionada por uma de�nida embora amarga personalidade humana.</p><p>Seria demais citar aqui o caso de Dostoiévski, um epiléptico, ou o de</p><p>Franz Kaa, genial, �agelado pela abstinência e a tuberculose.</p><p>O inevitável retorno de Poe em direção à necro�lia ou, mais</p><p>concretamente, em direção ao ideal da amada morta é um sintoma da</p><p>exatidão com que a obra correspondeu aos con�itos interiores do autor.</p><p>Poe era — no mais trágico sentido da palavra — um impotente, em</p><p>conseqüência de uma lesão que sofrera durante a infância. A totalidade</p><p>de sua obra, o seu trágico e dilacerado ambiente, gira em torno desse</p><p>fracasso vital. A visão do mundo, o regozijado espetáculo da criação</p><p>deve ter chegado a Poe através desse tremendo �ltro de seu sentimento</p><p>de inferioridade ou — mais exatamente neste caso — de sua “certeza” de</p><p>inferioridade orgânica. Toda a construção argumentativa fracassa em</p><p>cada peça de Poe, desaba, transforma-se em pó — como a casa de Usher,</p><p>de seu conto — em uma derrota �nal que os freudianos atribuíam aos</p><p>“impulsos frustrados”.</p><p>Talvez aos numerosos leitores dos romances policiais — dentre os</p><p>quais se incluir, e com muita honra, o autor desta crônica — interesse</p><p>pensar que provavelmente a esse sentimento de inferioridade que regeu a</p><p>vida de Poe se deve muito do que é, na atualidade, aquele apaixonante</p><p>gênero, apesar daqueles que atribuem sua paternidade a omas de</p><p>Quincey. Conan Doyle, S. S. Van Dine e Ellery Queen não estariam</p><p>talvez desfrutando de seu justo prestígio, se não houvessem escrito</p><p>Histórias extraordinárias ou Os assassinatos da rua Morgue.</p><p>Poe — o aristocrata, o dono de uma estranha erudição — não</p><p>poderia se desvincular desse afã de aparecer em público cercado por um</p><p>halo de superioridade mental, como um especialista em questões</p><p>cientí�cas. Cientí�co foi o sentido do seu mistério, não apenas em seu</p><p>extraordinário e único “O caso do senhor Valdemar”,</p><p>mas naquela</p><p>travessia a bordo de um balão, que é certamente fatigante em sua</p><p>erudição.</p><p>O método dedutivo empregado por autores do chamado romance de</p><p>mistério — com o qual Conan Doyle atingiu níveis de mestria</p><p>indiscutíveis — tem seu perfeito antecedente em “O escaravelho de</p><p>ouro”, um dos contos menos felizes de Poe por outros aspectos diferentes</p><p>do que nos interessa neste caso.</p><p>Oxalá este primeiro centenário de sua morte seja uma data de�nitiva</p><p>na justa e necessária valorização de Edgar Allan Poe.</p><p>Nota</p><p>1 Este artigo não foi assinado com pseudônimo. (N. da E.)</p><p>JANEIRO DE 1950</p><p>O santo do meio século</p><p>Uma das características especiais desta primeira metade de século é</p><p>precisamente a preocupação de saber qual foi o nome do meio século. A</p><p>revista Times, no mesmo número em que publica a última equação do</p><p>sábio judeu Albert Einstein, proclamou o nome de Winston Churchill</p><p>como o do homem a quem corresponderá a glória de simbolizar a</p><p>trajetória de tempo compreendida nos últimos cinqüenta anos. Nossa</p><p>revista Semana, por sua vez, cumprindo talvez com a obrigação de se</p><p>parecer em tudo à citada revista norte-americana, fez também sua</p><p>eleição, com a pequena e muito signi�cativa diferença de que se decidiu</p><p>pelo nome de Einstein. Fica realmente difícil, nas condições do mundo</p><p>atual, precisar o critério com que as duas publicações realizaram a</p><p>respectiva eleição. Churchill, de um ponto de vista estritamente humano,</p><p>leva sobre o sábio judeu a vantagem de merecer o título disputado sem</p><p>haver deixado de ser um inglês comum e freqüente, como qualquer dos</p><p>muitos que servem a suas majestades britânicas.</p><p>Desde os primeiros instantes do século atual, Einstein começou a</p><p>modi�car a mentalidade humana à base de verdadeiras garatujas</p><p>matemáticas, em uma forma que é quase mitológica, saída da órbita</p><p>prosaica do mundo moderno. Churchill, em compensação — sendo o</p><p>homem do meio século —, chega à posse de sua glória desprovido de</p><p>qualquer instrumento que possa parecer estranho ou divino a seus</p><p>contemporâneos. A obra de Einstein é produto da genialidade. A de</p><p>Churchill, da boa digestão. Então, por esse aspecto, se parece muito mais</p><p>ao que o homem comum do meio século teria querido ser.</p><p>Enquanto o chefe da oposição no Parlamento inglês pisa o suculento</p><p>meridiano da gastronomia, o genial criador da relatividade se abstém,</p><p>com pudor indigno da época, de comer carne de porco. Enquanto</p><p>Churchill participa do prazer escocês de um bom uísque, Einstein não se</p><p>permite uma embriaguez diferente da que resulta dos abismos</p><p>matemáticos. E, humanamente, a diferença é fundamental para</p><p>constituir o símbolo dos cinqüenta anos.</p><p>Se alguma coisa faz mais invejáveis os 75 anos de Churchill que o</p><p>século iminente de seu compatriota George Bernard Shaw, é</p><p>precisamente esse aproveitamento que de suas faculdades humanas tem</p><p>feito o primeiro dos citados. Não terá ele escrito a considerável</p><p>tonelagem de comédias que servem de suporte à glória do magistral</p><p>humorista irlandês, mas é quase certo que a maioria dos homens de hoje</p><p>preferiria os fumos clássicos, o uísque com soda — e sabe Deus que</p><p>outras coisas! — próprios do sr. Churchill, aos ranços próprios do sr.</p><p>Shaw. Humanamente, valem mais 75 anos sem abstinência de nenhuma</p><p>espécie do que noventa e tantos vestido de chinês em uma casa de Ayot</p><p>St. Lawrence, tremendo de emoção vegetariana ante um prato de</p><p>aspargos.</p><p>Daí que nos pareça mais acertada a opinião da Times do que a da</p><p>Semana, apesar de tudo e do conceito desta última. Talvez se deva isso à</p><p>nossa convicção de que Churchill chegará a ser um santo à maneira de</p><p>Salavin — o aprendiz de Duhamel —, embora Einstein possa sê-lo à</p><p>maneira de São Francisco de Assis. Entre os dois sistemas de ganhar a</p><p>santidade, o de Churchill é sem dúvida o que está mais de acordo com o</p><p>meio século que acaba de se cumprir.</p><p>Em busca do tempo perdido</p><p>Um tal Dionísio, ao que parece mestre em primitivas astronomias, mas</p><p>tão desprovido de história naquele tempo como agora de sobrenome, é o</p><p>único responsável de que a “jirafa” esteja perdida em uma embrulhada</p><p>aritmética tentando encontrar a data de seu aniversário. Se os</p><p>astrônomos de todos os tempos — e em especial Dionísio que teria</p><p>podido ser, sem dúvida, um carpinteiro exemplar — houvessem se</p><p>dedicado a ofícios menos estratosféricos, este ano que começa seria o</p><p>que deve ser e não o que os modernos investigadores celestes pretendem</p><p>que seja. Porque não é qualquer “jirafa” que se resigna com que se</p><p>modi�que em quatro anos a sua certidão de batismo só para agradar a</p><p>quem sonha que o presente não seja o ano de 1950 mas o de 1954.</p><p>O mais grave consiste em que agora vão encher o almanaque de</p><p>remendos históricos para ver se é possível remediar a tolice que o</p><p>benemérito Dionísio cometera há tantos anos mais quatro. De acordo</p><p>com o projeto das costureiras astronômicas, o ano não será de 365 dias,</p><p>mas um pouco mais longo, com o propósito de que entre o 30 de</p><p>dezembro e o 1º de janeiro �quem dois dias acomodatícios, sem data</p><p>nem denominação, e destinados única e exclusivamente a festejar o ano-</p><p>novo. Dois dias parecidos aos “descamisados” no calendário da</p><p>Revolução Francesa, durante os quais o único dever dos cidadãos</p><p>consistia em esbanjar o tempo para garantir patrioticamente a</p><p>infalibilidade dos calendários.</p><p>Janeiro, abril, julho e outubro terão 31 dias. Todos os outros,</p><p>inclusive fevereiro, terão trinta, acabando com essa memorável e</p><p>caluniada instituição dos anos bissextos.</p><p>Mas o verdadeiro problema da “jirafa” começa na averiguação do</p><p>seu dia de nascimento, uma vez que, segundo o novo calendário, aqueles</p><p>que venham ao mundo durante os dois dias que irremediavelmente</p><p>sobrarão depois do grande remendo universal, não comemorarão o seu</p><p>aniversário no dia do seu aniversário, mas no anterior. Um caso tão</p><p>grave como o dos nascidos durante os dias 31 de março, maio e agosto,</p><p>os quais desaparecerão do calendário sem contemplação.</p><p>É quase certo que as damas não acharam muita graça na notícia,</p><p>informadas de que não têm na verdade a idade que pensavam ter, mas</p><p>quatro anos mais. Quer dizer, oito a mais pelo menos dos que diziam ter</p><p>e aproximadamente 12 a mais dos que teriam desejado ter. E tudo por</p><p>culpa desse histórico carpinteiro frustrado que em má hora se chamou</p><p>Dionísio e o pior: meteu na cabeça fazer cálculos astronômicos.</p><p>Por se tratar de Hernando Téllez</p><p>Na enquete realizada entre os pontí�ces da cultura da capital, publicada</p><p>no último domingo pelo suplemento literário de El Tiempo, é talvez de</p><p>Hernando Téllez a opinião mais importante. E não precisamente por</p><p>acertada, mas por surpreendente. No exercício da crítica literária,</p><p>praticada por Téllez com tanta pontualidade quanto destreza durante os</p><p>últimos cinco anos, o magní�co escritor tem sabido observar uma severa</p><p>linha de conduta que se por alguma coisa deve se caracterizar é pela</p><p>maestria e a graça com que maneja o difícil sistema de a�rmar muito</p><p>sem se comprometer. Disso resulta surpreendente a circunstância de que</p><p>se tenha comprometido pela primeira vez, em quatro palavras que</p><p>constituem toda uma obra-prima do desacerto crítico.</p><p>Quando Eduardo Carranza a�rma que o melhor livro de poesia</p><p>publicado em 1949 foi Límite, desse aristocrata da afetação que se chama</p><p>Alberto Angel Montoya, ou que os melhores da prosa são quase todos os</p><p>editados, não faz senão demonstrar que o pior livro do ano é o que ele</p><p>mesmo não publicou. Quando, porém, Téllez a�rma que Las estrellas son</p><p>negras é o melhor livro em prosa publicado na Colômbia durante o ano</p><p>que acabou agora, o problema muda de aspecto, quase tão</p><p>substancialmente como Téllez de opinião.</p><p>Ainda não transcorreu um semestre desde o lançamento quase</p><p>simultâneo de Minerva en la Rueca — os ensaios de Jorge Zalamea — e</p><p>En medio del camino de la vida — as crônicas romanceadas de Germán</p><p>Arciniegas — e ainda está �utuando no ambiente o entusiasmo retórico</p><p>com que Hernando Téllez saudou, em sucessivas edições do suplemento</p><p>literário de El Tiempo, o lançamento desses que classi�cou como dois</p><p>grandes exemplos de nossas letras. Em compensação, quando Las</p><p>estrellas son negras foi lançado, Téllez guardou um discreto e nada</p><p>desconcertante silêncio, cuja explicação acreditávamos encontrar, uma</p><p>vez lido, na própria qualidade do romance de Arnoldo Palacios.</p><p>Entretanto, estávamos enganados. Téllez aguardava apenas uma</p><p>oportunidade para dizer a sua fria e agora sim desconcertante verdade.</p><p>Las estrellas son negras, com o seu gasto molinilho de ressentimento</p><p>racial, sua mediocridade técnica e a insigni�cância humana de seu</p><p>protagonista, é superior em qualidade literária a esse limpo e depurado</p><p>processo do livro de Arciniegas ou ao inteligente e castigado testemunho</p><p>de Zalamea.</p><p>Por havê-la emitido Hernando Téllez, essa opinião é quase uma</p><p>dupla falta de respeito consigo mesmo e com aqueles que escrevem sobre</p><p>a base essencial de saber escrever.</p><p>Uma mulher com importância</p><p>Quando Eva Duarte e Juan Domingo Perón puseram à volta do pescoço</p><p>o laço conjugal, ela não era senão a apagada lembrança de um �lme</p><p>medíocre. Libertad Lamarque havia realizado toda uma galeria de</p><p>desmaios oportunos e espetaculares, antes que a atriz secundária — com</p><p>uns olhos enormes e inteligentes e um sorriso desmedidamente sensual</p><p>— passasse a interpretar os episódios centrais dessa outra grande</p><p>película suntuosa que é o atual governo argentino. A lua-de-mel de Eva e</p><p>Juan Domingo foi quase um golpe de Estado aos preconceitos da alta</p><p>sociedade americana e uma oportunidade que recebia a desposada para</p><p>demonstrar que sua capacidade de intérprete podia ir muito além das</p><p>insigni�cantes tragédias cinematográ�cas. Da noite para a manhã —</p><p>para usar uma expressão original — Eva descobriu que o seu gabinete de</p><p>estrela secundária era substituído por um militarizado gabinete</p><p>executivo, e seu papel de comediante sem oportunidades passava a ser</p><p>um papel preponderante na perigosa e em algumas ocasiões ridícula</p><p>trama da opereta o�cial.</p><p>Dessa maneira, e para continuar sendo uma mulher com</p><p>importância, enquanto os outros cônjuges comuns e banais se</p><p>dedicavam ao vulgar divertimento da vida de casados, Eva e Juan</p><p>Domingo entregaram-se por inteiro ao apaixonante e cobiçado esporte</p><p>de converter os tremendos problemas de Estado em singelos</p><p>passatempos conjugais. Passados poucos meses e o mundo começou a</p><p>compreender que Eva era, ela sozinha, um tratado completo de direito</p><p>administrativo, emendado e ampliado pelos caprichos de seu caráter</p><p>executivo, de sua vontade legislativa e de sua inteligência judicial.</p><p>Veio depois, como segundo ato, a famosa correria de Eva pela</p><p>Europa. Em um espalhafatoso gesto de demagogia internacional,</p><p>esbanjou com o proletariado da Itália — mais por espetaculosidade do</p><p>que por sentimento caritativo — quase todo um Ministério da Fazenda.</p><p>Na Espanha, os cômicos estatais a receberam com um entusiasmo de</p><p>colegas magnânimos. E como na Inglaterra a aristocracia soberba e</p><p>gotosa negara-se a receber sua embaixada de formosura e propaganda,</p><p>Eva adotou um discreto fora de cena diplomático e retornou a seu</p><p>camarim nacional com a consciência tranqüila, saboreando o orgulho</p><p>que deve ter quem se sente desprezado nada menos que por toda a</p><p>realeza britânica reunida.</p><p>Depois disso, Eva se converteu em uma das mulheres mais</p><p>interessantes do mundo atual, desde que não compartilhemos com a</p><p>ideologia e os sistemas postos em prática por seu marido. Hoje —</p><p>segundo as alarmantes notícias do telégrafo — Eva é uma mulher tão</p><p>segura de si mesma e de uma personalidade tão de�nida, que sofreu, em</p><p>público e sem se envergonhar, um ataque de apendicite aguda. Grave</p><p>ataque, que já deve ter-se convertido em uma espécie de enfermidade</p><p>nacional, obrigatoriamente garantida através de um decreto executivo a</p><p>todos os cidadãos da Argentina.</p><p>Da intervenção cirúrgica que necessariamente há de vir, Eva sairá</p><p>tanto mais bela quanto se aproxima, cada vez mais, de um estado de</p><p>simplicidade ideal. Com apêndice ou sem ele, esta Eva Duarte de Perón</p><p>continuará sendo a melhor primeira atriz da comédia americana, graças</p><p>a cuja inteligência a vulgar e proletária apendicite foi elevada a uma alta</p><p>hierarquia de doença presidencial.</p><p>Elegia para um bandoleiro</p><p>Na madrugada do último sábado — talvez quando a trombeta do</p><p>arcanjo já tinha dado o toque de recolher — alguém bateu às portas do</p><p>inferno. O porteiro de plantão — vestido com um pijama de fogo —</p><p>apressou-se em atender o tresnoitado visitante e viu um homem jovem,</p><p>louro, nervoso, com a dentadura feita em ouro legítimo e os ossos</p><p>armados em chumbo de grosso calibre. Talvez o recém-chegado não</p><p>tenha dito uma palavra. Talvez tenha permanecido silencioso, ofegante,</p><p>de pé no umbral, aguardando a voz que lhe ordenasse entrar. Entretanto,</p><p>deve ter-se passado um século antes que o porteiro, ainda com as</p><p>imagens do último sonho grudadas nas pálpebras e ainda sem ter</p><p>reconhecido o visitante, desse a ordem de entrar, de acordo com as mais</p><p>elementares normas da cortesia infernal. Uma vez lá dentro, o hóspede</p><p>esvaziou seus bolsos e colocou o conteúdo deles na mesa de nogueira</p><p>que deve haver na recepção do inferno. Dois revólveres, oitenta</p><p>cartuchos, setecentos pesos em moeda e dois escapulários foi o que o</p><p>porteiro conseguiu distinguir, um pouco espantado, um pouco confuso e</p><p>com o livro de atas aberto e pronto para preencher os requisitos do</p><p>registro civil. O nome do recém-chegado? Marco Tulio Tafur Triana,</p><p>aliás “Lamparilla”. Toureiro? Não. Bandoleiro de pro�ssão e criminoso,</p><p>por má sina. Causas da morte? Morte natural. Natural? (O porteiro fez</p><p>um gesto que era ao mesmo tempo de dúvida e descon�ança.) Por que</p><p>dizia o visitante que havia falecido de morte natural, quando estava com</p><p>o corpo crivado de balas? “Lamparilla”, eterno então, trans�gurado pela</p><p>escabrosa viagem metafísica, esclareceu: “Para um homem como eu, oito</p><p>balas depois de uma luta é morte natural, a mais natural de todas as</p><p>mortes. Uma pneumonia ou uma crise de apendicite teria sido um</p><p>epílogo arti�cial, completamente falso para um digno bandoleiro.”</p><p>Enquanto isso, em Touro, tranqüilo povoadinho do Vale do Cauca, o</p><p>corpo metralhado de “Lamparilla” repousava, quieto e glacial, em um</p><p>salão de baile, cercado de mulheres patéticas e de homens turvos,</p><p>sombrios. Seu enterro seria uma concorrida procissão de curiosos.</p><p>À frente, onde os enterros burgueses levam os círios, iriam os três</p><p>ladrões mais conhecidos da região, presidindo o cortejo, no meio do</p><p>qual, e nos ombros de seus amigos, seguiria o corpo arrebentado do</p><p>morto, que havia permanecido toda a noite em câmara ardente na</p><p>inspeção policial. Dará a impressão, quando passe o cortejo, de que o</p><p>ataúde leva todo o espanto, todo o desassossego noturno, todos os</p><p>pesadelos da região. Será visto dobrando a última esquina do povoado</p><p>— o ataúde ladeado, alto, primitivo — em meio a um silêncio quase</p><p>sólido, quase concreto, que poderia preceder a um grito de mulher.</p><p>Entretanto no inferno há uma espécie de revolução. Em meio aos</p><p>revólveres, os cartuchos, os setecentos pesos roubados e à história</p><p>desagradável, há dois escapulários e uma palavra de arrependimento à</p><p>última hora. Talvez a história não passe daí. Talvez não se houvesse</p><p>chegado a uma conclusão de�nitiva no Juízo Final quando o coveiro</p><p>lançou a primeira pazada de terra e uma mulher começou a soluçar por</p><p>detrás de uma dor barata, inconsistente. Isso foi tudo, antes que o</p><p>porteiro infernal, tresnoitado e confuso, dissesse ao visitante, oito</p><p>séculos depois de haver batido à porta: “O caso seria simplíssimo, não</p><p>fosse pelos escapulários.”</p><p>A personalidade de “Avivato”</p><p>Na semana passada o Times publicou um minucioso e interessante</p><p>comentário sobre a vida e os milagres de Lino Palacios, o magistral</p><p>desenhista argentino. Posteriormente, esse mesmo comentário apareceu</p><p>na seção “Cosas del Día”, de El Tiempo, traduzido por alguém que, talvez</p><p>sem o desejar, esqueceu-se de registrar a procedência</p><p>da crônica. O</p><p>curioso do incidente está no fato de que o mencionado comentário</p><p>festeja triunfalmente o êxito obtido pelo famoso desenhista argentino</p><p>com seu não menos famoso personagem “Avivato”: tipo perfeito do</p><p>malandro sem escrúpulos, do trapaceiro exemplar. Se não fosse porque</p><p>estamos perfeitamente convencidos de que o anônimo tradutor omitiu a</p><p>origem da nota por simples e explicável descuido, a�rmaríamos que foi o</p><p>próprio “Avivato” quem abandonou, por um momento, o quadrado</p><p>universo de sua historieta, sentou-se à máquina e realizou a magistral</p><p>tradução, para provar ao mundo como são fundas e sólidas as suas raízes</p><p>humanas. “Avivato” é isso. O portenho comum e simples, oportunista</p><p>praticante irredutível da alta e vulgarizada �loso�a da farsa, com certos</p><p>sinais de fanfarrão mundano que já estão gritando por um psicanalista.</p><p>Apesar da singular acolhida que tem tido entre os leitores de todos</p><p>os gostos e todas as idades, “Avivato” está muito longe de ser o tipo</p><p>humano digno da simpatia pública ou privada. É — e nem sempre</p><p>inofensivamente — um vigarista de boa-fé, um aproveitador da</p><p>ingenuidade e da con�ança de seu próximo. Apesar disso, sua presença</p><p>nas histórias em quadrinhos tem a importância de estar re�etindo</p><p>cabalmente um dos tantos e tão variados aspectos da personalidade</p><p>humana, com tanta dignidade quanto o dr. Merengue representa o</p><p>hipócrita cauteloso, ou Penny, a moderna adolescente da classe média</p><p>norte-americana, ou Pafúncio, esse universal e sobressaltado esposo para</p><p>quem o lar não tem outra válvula de escape senão a escada de incêndio.</p><p>Por outro lado, com sete pratos quebrados, um piano às costas e</p><p>uma �lha bela ou inofensivamente maluca, a felicidade de Pafúncio é</p><p>contagiosa para o leitor. Ninguém compartilha a felicidade de “Avivato”</p><p>quando, num domingo na praia, pode estender-se, de tão redondo que é,</p><p>à sombra dessas raparigas em �or que Lino Palacios desenha com tanta</p><p>maestria. “Avivato” é o tipo do invejoso, e seus triunfos, no mais alto</p><p>grau, suscitam a inveja de seus admiradores. Em compensação, quando</p><p>depois de um complicado processo de estratégia doméstica Pafúncio</p><p>consegue chegar ao café de Perico para jogar cartas ou comer um prato</p><p>de feijão com arroz em companhia de seus amigos, os leitores não</p><p>poderão dissimular sua satisfação de que tal coisa tenha acontecido e até</p><p>se sentirão um pouco deliciosamente cúmplices e um pouco também</p><p>deliciosamente inclinados a jantar fora de casa.</p><p>Com a historieta argentina de que agora tratamos, o gênero dos</p><p>quadrinhos — gênero literário? — alcança um novo grau de perfeição</p><p>em seu permanente interesse de se parecer à vida. Até agora — como no</p><p>cinema — o herói tinha sido literal e irritantemente um herói unilateral,</p><p>com paixões e sentimentos orientados em inexorável direção. “Avivato”</p><p>é, entretanto, cruamente, um bandido, com toda a ênfase e a secreta</p><p>admiração com que o dizem as solteironas de bom estofo.</p><p>Aqui ia-se falar de Ricaurte</p><p>Até a letra do nosso hino nacional teria de ser modi�cada, se se</p><p>comprovassem verdadeiras as a�rmações desse historiador venezuelano</p><p>que pretende mostrar-nos um Ricaurte sacri�cado pelas balas inimigas e</p><p>não o tradicional Ricaurte da nossa escola pública, heróico e com um</p><p>sentido quase japonês do patriotismo. Se o historiador Cova conseguir</p><p>sustentar de forma incontrastável sua espantosa a�rmação, talvez</p><p>ninguém saia tão bem preservado quanto a memória do dr. Rafael</p><p>Núñez, que a estas horas deve estar em suas regiões metafísicas, batendo</p><p>no próprio peito por esse pecado mortal de lesa-literatura que é a letra</p><p>do nosso formoso e comovedor hino nacional. O verso “Ricaurte en San</p><p>Mateo / en átomos volando” sofreria uma modi�cação, com a qual não</p><p>apenas se renderia tributo à verdade histórica — se é que a verdade é a</p><p>do venezuelano —, mas também à verdade estética; porque nem mesmo</p><p>em uma antologia de Guillermo Valencia ou de Leopoldo Lugones — tão</p><p>parecidos! — pudemos encontrar duas linhas tão vazias de emoção</p><p>poética.</p><p>De qualquer maneira, seria conveniente que as investigações do</p><p>historiador venezuelano chegassem a alguma conclusão. É de esperar</p><p>que não se trate de uma invenção espetacular com objetivos polêmicos,</p><p>mas do resultado sério de um profundo e cuidadoso estudo sobre as</p><p>circunstâncias históricas em que o herói de San Mateo deixou de existir.</p><p>Se perseguir a a�rmação simples e os vulgares efeitos publicitários, o sr.</p><p>Cova estaria, de outra parte, muito longe de ser original, uma vez que</p><p>nestas coisas de des�gurar a biogra�a dos próceres sem nenhum</p><p>fundamento, nós, americanos, temos uma respeitável tradição.</p><p>Algo assim foi dito quando nosso excelente amigo Rafael Marriaga</p><p>publicou seu livro e recebeu, impassível, a mais surpreendente surra</p><p>crítica de que se tem memória nestes últimos tempos. O autor destas</p><p>crônicas de colarinho alto deu oportunamente sua opinião sobre Una</p><p>heroína de papel e concordou com aqueles que viram no trabalho de</p><p>Marriaga um estudo sério, documentado, cujo único defeito está no fato</p><p>de que Policarpa Salavarrieta dele saía mais heróica e mais vibrante. Uma</p><p>Pola completamente diferente da literata que conhecemos na escola rural</p><p>e não exatamente uma heroína de papel, mas, pelo contrário, uma</p><p>mulher-macho sem argumentos retóricos; uma espécie de caudilho</p><p>popular, de carne e osso. Embora o dr. Marriaga não tenha destruído —</p><p>como parecia ser sua intenção — a Salavarrieta, não se pode dizer que</p><p>seu livro seja um libelo espetacular, desprovido de seriedade; nem que o</p><p>tivesse escrito com o único propósito de espantar a opinião pública.</p><p>Decorre daí o fato de que, quando acima se disse algo sobre a nossa</p><p>tradição de des�gurar a biogra�a dos próceres, Septimus tenha querido</p><p>excetuar expressamente o dr. Marriaga e assim desvanecer qualquer mal-</p><p>entendido a respeito da opinião que mereça sua obra. A�nal de contas,</p><p>cumpria-se com um dever de cavalheirismo.</p><p>O certo é que com tantos rodeios e circunlóquios, esta “jirafa” quase</p><p>se transformou em um quebra-cabeça. E como tal se publica, deixando</p><p>para outra oportunidade o panegírico que pensávamos escrever à</p><p>memória de Antonio Ricaurte e de seus heróicos átomos.</p><p>Banheira para o troglodita</p><p>É pelo menos consolador saber que ainda restam no mundo homens tão</p><p>otimistas como o professor Slichter, de Harvard, economista e profeta,</p><p>que vaticinou coisas surpreendentes para daqui a trinta anos. Eis</p><p>algumas das mais admiráveis e tranqüilizadoras: “As piscinas familiares</p><p>serão provavelmente populares e é possível que sejam construídas aos</p><p>milhões. Aumentará a proporção de pessoas que poderão realizar</p><p>estudos secundários e universitários. As viagens continuarão</p><p>aumentando em popularidade. É de esperar que então cada família, em</p><p>alguma nação, tenha dois automóveis para uma semana de trabalho de</p><p>trinta horas. Então as artes �orescerão como nunca o �zeram no</p><p>passado.”</p><p>Como se pode perceber, esta profecia é quase um poema em edição</p><p>de luxo. Tão otimista, tão carregada de verdadeira e diáfana formosura,</p><p>que em nenhum momento se poderia suspeitar que aparecerá editado</p><p>em um bloquinho das edições Espiral. Apesar disso, como dizem os</p><p>jornalistas, tudo parece indicar que o professor Slichter anda um pouco</p><p>pelas nebulosas, onde resolveu não fabricar os tradicionais castelos na</p><p>areia mas algo mais prático e, é claro, mais duradouro: banheiras,</p><p>banheiras aos milhões e a baixo custo, para que mergulhe a humanidade</p><p>atomizada e prosaica do século XXI.</p><p>Estou certo de que o meu inteligente amigo e colega, o dr. Logos, vai</p><p>se apaixonar com a precisão e a segurança com que faz suas profecias</p><p>este extraordinário vidente de Harvard. Estou certo de que isso se deve</p><p>porque o dr. Logos é um dos mais fervorosos “torcedores” de</p><p>Nostradamus, o enigmático e cabalístico poeta em quem deu na veneta</p><p>nada menos do que fazer profecias versi�cadas, em grande escala e em</p><p>tal estado de desorganização, que só depois de consumados os fatos é</p><p>possível conhecer a exatidão dos</p><p>vaticínios. O Nostradamus de Harvard,</p><p>em compensação, estabelece datas exatas e fala clara e enfaticamente de</p><p>automóveis e viagens populares, o que, a�nal de contas, está quase</p><p>logicamente na proporção de causas e conseqüências.</p><p>Apesar da simpatia que o magní�co professor Slichter nos deve</p><p>merecer, é necessário confessar, com toda a modéstia que uma “jirafa”</p><p>pode permitir-se, que não estamos dispostos a tomar bem ao pé da letra</p><p>suas benévolas aventuras proféticas. Esse futuro paraíso terrenal, com</p><p>trinta horas de trabalho semanais, só seria possível se os selvagens das</p><p>equações e dos laboratórios não estivessem perfeitamente dispostos a</p><p>multiplicar o poder destrutivo da bomba atômica, empregando na sua</p><p>fabricação não sei que endemoninhadas desintegrações de hidrogênio.</p><p>Entre essas ocupações e as do homem primitivo que torneava o seu</p><p>garrote à volta da fogueira cavernária, há apenas uma pequena diferença.</p><p>Muito pequena, de fato, mas não o su�ciente para permitir que</p><p>subsistam as banheiras públicas, as viagens a baixo custo e o</p><p>�orescimento das manifestações estéticas.</p><p>Vamos em direção a uma época em que o homem das cavernas,</p><p>depois de almoçar uma suculenta perna de mastodonte, entrega-se a</p><p>curtir sua pesada e brutal sesta em uma superfortaleza voadora, certo de</p><p>que dará a volta ao mundo e estará de regresso, outra vez torneando o</p><p>garrote, antes de acabado o processo digestivo. Quer dizer: dentro de</p><p>trinta anos, o próprio professor Slichter, tão otimista e coisa e tal, terá</p><p>alcançado já um nível de civilização que lhe permita ser tão esquisito a</p><p>ponto de se dedicar à antropofagia.</p><p>O inglês do conto</p><p>Aos 55 anos de idade, Vivian de Gurr St. George, descendente de uma</p><p>das famílias mais distintas da Inglaterra e que participou ativamente da</p><p>maior parte das guerras civis, da mexicana à espanhola, é na atualidade o</p><p>engraxate mais feliz de Londres. Seu avô, um velho britanicamente �el a</p><p>seus monarcas e monarquicamente respeitoso da moral e das leis,</p><p>permaneceu durante a maior parte de sua vida entrincheirado na Torre</p><p>de Londres, custodiando as valiosíssimas jóias da coroa inglesa.</p><p>E tudo isso para que Vivian de Gurr St. George, a ovelha-negra da</p><p>casa, como devem dizer os engomados aristocratas na gíria britânica,</p><p>acabe lustrando os sapatos dos tranqüilos pedestres de Londres, quando</p><p>devia estar legislativamente instalado na Câmara dos Comuns.</p><p>Entretanto Vivian — a quem muito pouco devem preocupar os</p><p>comentários domésticos — é um verdadeiro �lósofo, segundo a melhor</p><p>tradição. A mesma coisa lhe teria impelidado a �xar residência em um</p><p>tonel, sair pelas ruas da capital inglesa com um lampião e um traje sujo</p><p>em busca de um cidadão capaz de resolver quebra-cabeças metafísicos</p><p>ou levar uma vida retirada no deserto, cavando todos os dias o buraco de</p><p>sua própria sepultura. A�nal de contas, ser �lósofo pode ser uma</p><p>maneira de vestir, adotar frente à vida uma posição diferente à dos</p><p>cidadãos comuns, desde que essa postura consista em virar a cabeça,</p><p>voluntária e �loso�camente. O resto é pura especulação.</p><p>Vivian de Gurr, depois de haver buscado a felicidade nos papéis de</p><p>Aristóteles ou de Erasmo; depois de persegui-la, metralhadora em</p><p>punho, por terras espanholas, como já o �zera o outro cavaleiro em</p><p>maltratado Rocinante, encontrou a felicidade onde nenhum outro</p><p>membro da realeza britânica pensara buscar: em uma lata de graxa.</p><p>Semelhante descoberta pode apenas anteceder a uma vida tranqüila</p><p>como a que leva esse engraxate de sangue azul que todos os dias, de sol a</p><p>sol, instala-se nas proximidades do Marble Arch com sua modesta</p><p>caixinha e sua boina caída sobre a orelha esquerda.</p><p>Naturalmente que é um engraxate com certas prerrogativas que não</p><p>têm seus colegas, como são as de servir de intérprete aos estrangeiros e a</p><p>de lustrar, com todo o protocolo exigido, o calçado da totalidade dos</p><p>diplomatas credenciados ante Suas Majestades britânicas.</p><p>Não pretende esta crônica convidar aqueles que buscam a felicidade</p><p>sem encontrá-la a que liquidem, em leilão público, seus haveres de luxo e</p><p>os substituam pela clássica caixinha dos engraxates como recurso e�caz</p><p>para acabar com o tédio ou os problemas. A lição de Vivian de Gurr é</p><p>muito mais difícil porque não era a Felicidade — com maiúscula</p><p>romântica — que repousava na escova e na graxa, mas unicamente a</p><p>felicidade dele, exclusiva e intransferível como as entradas de favor. A de</p><p>Diógenes estava em um tonel, a de um gastrônomo — citado por Illia</p><p>Ehrenburg — no sabor doentio de um ganso maltratado. E é possível que</p><p>a sua, amado leitor, repouse simplesmente no prazer de passar à página</p><p>seguinte e amaldiçoar Septimus por se haver metido a �lósofo, quando o</p><p>senhor estava esperando uma crônica mais importante. Resta-nos o</p><p>prazer de lhe haver proporcionado uma felicidade muito mais barata e</p><p>talvez mais decorosa do que a do inglês do conto.</p><p>O direito de se tornar louco</p><p>Por �m, depois de ter vivido um ano inteiro submetidos à enfadonha</p><p>vigilância da cordura, chega o instante em que nos garantem o direito de</p><p>nos tornarmos loucos. Talvez o carnaval não tivesse nenhuma graça;</p><p>talvez passasse inadvertida esta etapa febril, se não fosse porque cada um</p><p>de nós, no seu íntimo, sente o diário bater de asas da loucura sem lhe</p><p>poder dar curso a seu secreto golpear, a seu recôndito chamado. A</p><p>cordura é um estado simples, medíocre, completamente vulgar, e sob</p><p>cujo império a única coisa extravagante que nos podemos permitir, de</p><p>vez em quando, é a muito normal e inofensiva de vestir cores mais ou</p><p>menos berrantes do que as do vizinho de assento.</p><p>Durante cinqüenta semanas, quem, como nós, ainda não tem</p><p>su�cientes méritos para ingressar em um manicômio, devemos nos</p><p>limitar a viver disfarçados de cidadãos comuns e banais. Pobres</p><p>transeuntes que vão a seus escritórios, à universidade, ao café,</p><p>simplesmente com o propósito de fazer uma coisa completamente</p><p>ridícula, mas que a comunidade cristã já se encarregou de classi�car de</p><p>honesta e edi�cante. Está garantido o direito de ser burguês, o direito de</p><p>se vestir de branco ou de paci�camente transitar pelas ruas. Mas quando</p><p>um cavalheiro, insubornavelmente �el a sua consciência, resolve sair à</p><p>rua com o seu pijama mais novo, em um 17 de setembro, rompe-se a</p><p>normalidade cotidiana e o extravagante acaba numa delegacia de polícia</p><p>ou na clínica de um psiquiatra, que é quase a mesma coisa. E só porque</p><p>na nossa perfeita organização ocidental... foram garantidos — e isso a</p><p>um só tempo — todos os direitos humanos, menos o humaníssimo</p><p>direito de se tornar louco.</p><p>Deve-se reconhecer a falta de originalidade daqueles que</p><p>organizaram os nossos sistemas de vida. Esses veneráveis próceres que</p><p>ainda pensam na criação de um idioma internacional, de uma legislação</p><p>internacional, de uma confraternização internacional, literalmente caem</p><p>de costas se em um dia qualquer o comerciante da esquina se chateia</p><p>com sua indumentária ocidental e vai realizar seu trabalho habitual</p><p>enrolado em um lençol e com um lenço branco atado à cabeça.</p><p>Enquanto isso, os hindus, em um casamento da mais alta distinção,</p><p>vestem essa que é a sua natural indumentária. O que quer dizer — sem</p><p>que isto seja um so�sma, nem de longe — que nem sequer nos permitem</p><p>ser normais de acordo com o sentido da normalidade dos outros países,</p><p>mas de acordo com o nacional, mesmo que este seja dos mais incômodos</p><p>e absurdos. Paris, de certo modo, é uma notável exceção a essa regra</p><p>abominável, se se recorda a naturalidade com que Ramón Gómez de la</p><p>Serna saiu pelos Champs-Elysées comendo ovos de tartaruga no lombo</p><p>de um elefante, sem que houvesse acontecido nada de especial. Talvez a</p><p>essa garantia que tem em Paris o direito de cometer disparates, se deva o</p><p>seu esplendor e sua permanente grandeza.</p><p>Agora, contudo, nós, pobres normais, vemos chegar com satisfação</p><p>o instante em que nos será permitido — impunemente — dar rédeas</p><p>soltas à nossa loucura. O carnaval nos permitirá vestir-nos, disfarçar-nos</p><p>da maneira</p><p>que secretamente acalentamos durante os dias comuns.</p><p>Assim vestidos, como teríamos querido estar sempre, acabaríamos</p><p>levados a um sanatório. Agora, não. Talvez porque o exercício do direito</p><p>de ser louco é o único que nos permite sentir-nos completamente</p><p>normais.</p><p>Dona Bárbara ao volante</p><p>Dona Bárbara — a chauffeuse venezuelana — pretende ser um poeta da</p><p>velocidade. Todos os seus colegas nesta insensatez motorizada das</p><p>corridas automobilísticas devem estar de acordo em reconhecer que</p><p>dona Bárbara, além da técnica, da perícia com que se desenvolve ao</p><p>volante, decorou todo um tratado de retórica automotriz. Regras exatas,</p><p>invariáveis e quem sabe se incontestáveis, segundo as quais esse poema a</p><p>110 quilômetros por hora que anda agora realizando acabará saindo</p><p>limpo de truculências mecânicas, se é que a gramática dos motores e das</p><p>mudanças não acaba avariada, e dona Bárbara, com inspiração e tudo,</p><p>�ca parada na metade do caminho amaldiçoando os caprichos</p><p>ortográ�cos ou os abismos sintáticos da preceptiva motriz.</p><p>Segundo as notícias divulgadas, dona Bárbara, além de suas</p><p>estranhas teorias sobre a maneira como se deve ganhar a competição,</p><p>tem uma força física diretamente proporcional à sua força de vontade e</p><p>inversamente à raiz quadrada de seu próprio volume. É uma mulher</p><p>branca, de olhos azuis, com um peso aproximado de noventa quilos, o</p><p>que equivale a dizer que esta poderosa e saudável chauffeuse não é uma</p><p>destas tantas senhoritas melí�uas e aristocráticas de linhas</p><p>aerodinâmicas e mudanças automáticas, mas uma dona Bárbara puro-</p><p>sangue, com quatro pares de rodas tão bem postas quanto suas calças.</p><p>Apesar de tudo, dona Bárbara, a�nal de contas, pôs uma nota de</p><p>feminilidade nesta corrida Grancolombiana que certamente servirá para</p><p>algo que eu não pude ainda descobrir. Uma nota de feminilidade, não</p><p>importa que seja comum e desproporcionada ou que tenha a su�ciente</p><p>fortaleza a ponto de demonstrar que o chamado sexo fraco pode, em</p><p>determinadas circunstâncias, ir mais longe do que geralmente se acredita</p><p>e a uma velocidade maior do que a que se pode imaginar.</p><p>Confesso o meu secreto desejo de que dona Bárbara acabe vencendo</p><p>esta competição. Seria não apenas um triunfo de sua extraordinária</p><p>resistência física, de sua desconcertante habilidade, mas, acima de tudo,</p><p>um triunfo de sua vocação poética. Comprovar-se-ia dessa forma que, de</p><p>fato, estava certa quanto às suas anunciadas teorias e que teve, além</p><p>disso, su�ciente destreza para levá-las à prática com todas as suas</p><p>bené�cas conseqüências. Não fosse assim, desabaria no chão esse</p><p>empinado edifício especulativo com que a robusta chauffeuse</p><p>venezuelana tratou de surpreender a opinião pública, e seus noventa</p><p>quilos a elevariam a uma deplorável hierarquia de charlatã</p><p>graciosamente ridícula. Isto é: Dona Bárbara, depois de tudo, não será</p><p>mais que um espetáculo de passageiro brilho, uma espécie de</p><p>insigni�cante Augustoramirezmoreno motorizado.</p><p>Certas lagostas!</p><p>A crônica apareceu em El Tiempo — título: “Certos viajantes”. Seção:</p><p>“Cosas del Día” — e se refere a um interessante excerto do livro e</p><p>Condor and the Cows do romancista anglo-americano Christopher</p><p>Isherwood, que recentemente visitou a Colômbia. Conheço dessa obra a</p><p>tradução que vem sendo publicada em fascículos na edição dominical de</p><p>El Espectador e que por motivos óbvios limitou-se exclusivamente à</p><p>parte em que o insigne escritor registra suas experiências de viajante em</p><p>nosso país. Apesar da ingenuidade com que o jornalista da capital se</p><p>refere às características da edição realizada por uma empresa norte-</p><p>americana, tenho razões para a�rmar que conheceu o excerto</p><p>comentado na mesma fonte a que antes me referi. Esta a�rmação, que</p><p>poderia parecer uma idiotice, é importante por estar �xando,</p><p>de�nitivamente, a postura mental quase totalmente extravagante com</p><p>que o nosso colega da capital abordou um problema tão apaixonante</p><p>como o que propõe Isherwood nessas duas polegadas de seu livro.</p><p>Diz o excerto do ilustre viajante, entre outras coisas, que o lavrador</p><p>colombiano se alimenta quase exclusivamente de farinhas; se tem leite,</p><p>não o dá às crianças mas aos mercados; quando está doente não procura</p><p>o médico mas o curandeiro, que recorre ao exercício ilegal da pro�ssão</p><p>com procedimentos primários, com um critério totalmente supersticioso</p><p>e absolutamente nada cientí�co.</p><p>É precisamente quando Isherwood aborda, com a frieza própria dos</p><p>observadores insubornavelmente sinceros, um de nossos mais</p><p>inquietantes e dolorosos problemas sociais, que um jornalista</p><p>colombiano — que para o cúmulo dos absurdos pertence à oposição, sob</p><p>um regime conservador — considera que o perspicaz viajante está</p><p>levantando falsos testemunhos contra os nossos camponeses e nos</p><p>envergonhando ante a opinião internacional. O mais curioso de tudo, o</p><p>que dá a medida justa da linhagem espiritual desse inesperado</p><p>adversário de Isherwood, é que se surpreenda que o autor de e Condor</p><p>and the Cows fale tão cruamente do nosso país depois que os membros</p><p>da santa irmandade dos intelectuais da capital “acompanharam com</p><p>atenção suas conferências em língua inglesa” e o recepcionaram “no</p><p>Temel com lagostas ao termidor”. Em outras palavras, que aqueles que</p><p>assistiram às dissertações de Isherwood não o �zeram por concordar</p><p>com as experiências dele, mas para fazer crer que em Bogotá há</p><p>numerosos conhecedores da língua inglesa. E que aqueles que o</p><p>recepcionaram com essas lagostas ao termidor — e até talvez tivessem</p><p>complicado sua digestão! — não o �zeram como sinal de admiração a</p><p>um dos mais signi�cativos romancistas modernos, nem mesmo como</p><p>uma obrigação de cavalheirismo, mas como simples e vulgarmente se</p><p>quer fazer crer ao sr. Isherwood que aqui na Colômbia todos os</p><p>camponeses — inclusive os que escrevemos para os jornais — se</p><p>alimentam de suculentas e apetitosas lagostas ao termidor. É esta a</p><p>interpretação que quisemos dar à deselegante alusão àquela comilança,</p><p>porque, em hipótese nenhuma, poderíamos pensar no que, a rigor, trata</p><p>de sugerir o jornalista da capital. Isto é, que as tais lagostas não</p><p>pretenderam ser senão um suborno para que Isherwood — por</p><p>agradecimento aparente — não dissesse as verdades que estão</p><p>consumindo e aniquilando a nossa população rural.</p><p>Apesar disso, a�nal de contas, a única coisa que se pode tirar a limpo</p><p>deste desagradável incidente é que Isherwood, em apenas 15 dias de</p><p>permanência na Colômbia, �cou muito mais impregnado com os nossos</p><p>problemas sociais do que alguns jornalistas da capital da República em</p><p>toda a sua vida. Isto sim — por vergonhoso — discretamente não referiu</p><p>o autor de e Condor and the Cows. Talvez por causa das conferências</p><p>em inglês e das lagostas ao termidor.</p><p>Só para cavalheiros</p><p>Berta Beatriz é uma astuta e saudável pitonisa que, segundo tentam</p><p>demonstrar agora suas presumíveis vítimas ante os tribunais, dedicava-</p><p>se ao suculento ofício de conseguir maridos por métodos cabalísticos.</p><p>Sem levar em conta que a própria Berta Beatriz é sabidamente uma</p><p>solteirona, viva negação da sentença segundo a qual a lei deveria entrar</p><p>pela própria casa do legislador, algumas cândidas damas a quem deixou</p><p>plantadas nas plataformas da estação outonal esse renomado e caluniado</p><p>trem da oportunidade conjugal, apresentaram-se à casa da pitonisa com</p><p>o �rme e otimista propósito de conseguir maridos, feitos sob medida.</p><p>Não aspiravam, entretanto, a que fossem maridos, em poucas palavras,</p><p>mas cavalheiros inermes, indefesos, suscetíveis de suportar com todo o</p><p>decoro necessário as obrigações impostas pelo sétimo mandamento.</p><p>O gabinete de Berta Beatriz não podia menos que produzir às</p><p>consulentes uma saudável e adolescente sensação de otimismo. Depois</p><p>de haverem experimentado todos os métodos recomendados pela</p><p>farmacopéia cabalística para fazer efetiva a terapêutica do amor</p><p>retardado; depois de haverem empregado in�nitamente o método</p><p>clássico de dissecar um beija-�or, moer os ossos, triturá-los, atomizá-los</p><p>e adoçar com o</p><p>pó resultante o café do cauteloso e matrimoniável</p><p>visitante, as damas que chegavam ao espetacular gabinete de Berta</p><p>Beatriz diziam a seus botões que ali sim acabariam todas as suas penas e</p><p>até sentiam um pouco de tristeza pelo lamentável estado em que</p><p>�cariam aqueles santos que por tanto tempo tinham vestido e desvestido</p><p>no altar doméstico... Atrás de uma cortina decorada com misteriosos e</p><p>dourados signos astrológicos, a pitonisa iniciava seus ritos na presença</p><p>da futura desposada, com todos os requisitos exigidos pelos trapaceiros</p><p>dos �lmes mexicanos. Quando a consulente saía do mágico gabinete,</p><p>iniciara-se já em sua psicologia um bené�co processo de</p><p>rejuvenescimento cuja vítima imediata era o Santo Antônio do lar, para</p><p>quem, desde esse dia, não haveria mais velas de cinco centavos nem mais</p><p>ramalhetes de cravos com �ta rosada. Depois de muitos anos de espera,</p><p>as artes e ofícios de Berta Beatriz realizariam o dramático milagre.</p><p>Entretanto, alguma coisa deve ter falhado no sistema. O tempo</p><p>passou, e com ele a paciente estação da espera. As otimistas damas</p><p>começaram a descon�ar, começaram a descobrir que havia cobre demais</p><p>nos símbolos astrológicos que a princípio brilhavam como ouro legítimo</p><p>no gabinete de Berta Beatriz. Em reunião plenária, resolveram acudir a</p><p>uma outra pitonisa que lhes dissesse se realmente a primeira tinha a</p><p>capacidade de lhes conseguir marido ou se não era mais que uma</p><p>charlatã com turbante e túnica estrelada. É possível que a nova pitonisa,</p><p>por ética pro�ssional, tivesse a elegância de guardar um prudente</p><p>silêncio a respeito da capacidade de sua distinta colega. As damas,</p><p>porém, não guardaram silêncio nenhum, foram ao tribunal mais</p><p>próximo e lá promoveram uma ação contra Berta Beatriz por</p><p>descumprimento do contrato. Eis aqui uma história, com moral e tudo.</p><p>O homenzinho que veio ontem</p><p>O homenzinho, rigorosamente malvestido, entrou na redação</p><p>misteriosamente, com o ar de quem tem a convicção de que será mal</p><p>recebido em um lugar onde obrigatória, necessária e irrevogavelmente</p><p>deve fazer-se presente. Sem falar, sem fazer sequer o menor ruído,</p><p>sentou-se aí, na cadeira do canto, e deixou descansar sobre seus</p><p>desbotados joelhos um pequeno embrulho. Deve ter-se passado um</p><p>pouco mais de meia hora antes que mudasse de posição no assento, antes</p><p>que, pelo menos, demonstrasse o menor interesse em ser entendido. As</p><p>pessoas entravam e saíam da redação. Alguém deixava algumas laudas</p><p>sobre a escrivaninha. O telefone soou e foi atendido uma in�nidade de</p><p>vezes, sem que ninguém percebesse a presença do homenzinho que</p><p>estava ali, sentado a um canto, com um pequeno embrulho sobre os</p><p>joelhos.</p><p>De repente, quando todos se retiraram e �quei eu, sozinho na</p><p>redação, o silencioso e estranho visitante esticou-se no assento, levantou-</p><p>se, aproximou-se de onde eu fazia esforços para remendar a “jirafa” de</p><p>hoje e, estendendo-me o embrulho com as mãos, disse-me,</p><p>surpreendentemente:</p><p>— Aposto que não adivinha o que tem neste pacote!</p><p>Confesso que sofri um desagradável susto. O que signi�cava aquele</p><p>modo de vir à redação de um jornal, com um embrulho, simplesmente</p><p>para perguntar a um retardado colaborador, em tom desa�ante, que</p><p>diabo continha aquele pacote? Entretanto, antes que pudesse responder-</p><p>lhe, o homenzinho, ainda sem mudar de posição, mas um pouco mais</p><p>enfático do que na primeira vez, insistiu no desa�o, modi�cando apenas</p><p>a frase:</p><p>— Aposto o que quiser como não adivinha o que é que tenho neste</p><p>pacote!</p><p>— É claro que não — respondi. — E agora, se não precisa de mais</p><p>nada, tenha a bondade de se retirar. Não estamos aqui para adivinhar</p><p>coisas.</p><p>Mas o homenzinho não se deu por achado. Simplesmente virou-se</p><p>para a janela, �cou contemplando a rua durante alguns segundos, antes</p><p>de retornar à posição inicial, já agora em uma atitude mais conciliatória:</p><p>— Aposto vinte pesos como não sabe — disse.</p><p>(Não respondi.)</p><p>— Aposto 15.</p><p>— Não!</p><p>— Dez.</p><p>— Não!</p><p>— Oito, sete!</p><p>— Não! Não!</p><p>Levantei-me, desesperado. Peguei paci�camente o desconhecido</p><p>pelo braço e o conduzi até a porta. Ele se deixou levar, sem pronunciar</p><p>uma única palavra, pensando talvez que era conduzido a um lugar onde</p><p>se chegaria a um acordo. De repente, quando pensei que havia se</p><p>retirado, senti outra vez sua sombra, ali na cadeira do canto, como esteve</p><p>durante quase toda a tarde. Mas desta vez não demorou mais de dois</p><p>minutos antes de se levantar, colocar-se em posição de ataque e dizer,</p><p>agora sim, com um ar completamente amistoso:</p><p>— Diga-me francamente se não vai adivinhar.</p><p>— Francamente lhe digo que não!</p><p>Foi então quando o homenzinho, rigorosamente malvestido, ajeitou</p><p>o cinzento chapéu de palha e saiu da redação azedamente enfurecido. Já</p><p>na porta, às minhas costas, eu o ouvi gritar, entre pragas e juramentos:</p><p>— Foi para isso que me fez esperar toda a tarde!</p><p>FEVEREIRO DE 1950</p><p>Amor: uma afecção hepática</p><p>Uma interessante leitora me escreve uma carta sagaz, breve, inteligente.</p><p>O nome completo que subscreve suas vinte linhas ágeis e a�rmativas, a</p><p>data do carimbo postal que garante a sua autenticidade e, sobretudo,</p><p>certos matizes característicos de uma de�nida personalidade feminina,</p><p>embora romântica e sentimental, um pouco à moda do século passado,</p><p>colocam-me na obrigada e de outra parte agradabilíssima condição de</p><p>me referir a elas, ainda que seja tão brevemente quanto este espaço me</p><p>permite.</p><p>Se fosse indispensável classi�cá-la, eu diria que é uma carta com</p><p>pretensões �losó�cas. Entretanto, tem aspectos muito mais interessantes,</p><p>muito mais poéticos à moderna — se tal é possível — que denunciam de</p><p>imediato a sinceridade e a boa-fé da autora. Em nenhuma hipótese quis</p><p>acreditar que dona Isabel — e minha correspondente me perdoe</p><p>esconder o seu personalíssimo nome, em homenagem à discrição —</p><p>tenha escrito esta carta com o único e muito pouco original propósito de</p><p>me embaraçar. Trata-se, segundo entendo, de uma exposição sincera, em</p><p>forma epistolar, do conceito que faz dona Isabel de um sentimento tão</p><p>perigoso e tão delicado como o amor. Simplesmente — acredito — dona</p><p>Isabel quis saber que opinião tem de suas teorias amorosas o homem da</p><p>rua, o cidadão comum e banal, e resolveu apresentá-las a este jornalista,</p><p>talvez porque esteja certa de não conhecê-lo pessoalmente ou por ter ele</p><p>um endereço fácil. É a única explicação que tenho para esta</p><p>surpreendente e estranha deferência.</p><p>Eis aqui o núcleo das teorias expostas por dona Isabel: “Em minha</p><p>opinião”, diz a carta, textualmente, “o amor é uma doença do fígado,</p><p>cujas complicações podem chegar a extremos fatais, como o suicídio.”</p><p>Acrescenta adiante: “Todo apaixonado, de qualquer sexo, é um produto</p><p>da alimentação de�ciente ou de uma dieta sobrecarregada de proteínas.”</p><p>E �nalmente, em uma a�rmação decepcionante, dona Isabel opina: “O</p><p>pior da doença amorosa é que está sempre estreitamente vinculada ao</p><p>teatral, ao ridículo e ao pomposo, embora suas manifestações externas</p><p>possam parecer sublimes àqueles que padecem de suas in�uências</p><p>mórbidas.”</p><p>Minha inteligente correspondente não fala, contudo, de um detalhe</p><p>que a�nal é indispensável em tais problemas e que certamente já deve</p><p>estar no pensamento daqueles que venham acompanhando esta crônica:</p><p>Quantos anos tem dona Isabel? Eu diria que tem 17 ou 45. Em nenhum</p><p>caso, 22. Quer dizer, trata-se de uma adolescente que já começou a temer</p><p>o amor ou de uma solteirona que já lhe perdeu o medo há muito tempo e</p><p>tem coragem bastante para especular sobre ele e tomar certas liberdades,</p><p>sem o menor perigo de cair em seu cativeiro. Mas em nenhum caso</p><p>trata-se de uma atraente dama de 22 anos, em plena madureza espiritual</p><p>para correr o risco com as melhores possibilidades de sua parte.</p><p>Dona Isabel compreenderá — com essa inteligência que tão</p><p>salientemente aparece em sua carta — que estou manejando hipóteses;</p><p>que certamente estou enganado, e que recorro a toda a minha</p><p>sinceridade para acompanhá-la em sua dor no caso de que, realmente,</p><p>seja uma dama solteira</p><p>de 45 irremediáveis outonos.</p><p>Logo, em outra ocasião, eu me referirei aos conceitos que faço das</p><p>desagradáveis teorias da minha inteligente correspondente. A�nal de</p><p>contas, não seria estranho que tivesse razão em suas a�rmações de que o</p><p>amor é uma doença do fígado. Neste caso, teria dado uma solução</p><p>cientí�ca a esse problema que tanto tem preocupado a humanidade de</p><p>todos os tempos. Estar apaixonado não seria então nada grave e seu</p><p>remédio e�caz passaria a ser um verdadeiro poema de singeleza.</p><p>Simplesmente, bastaria tomar uma colherinha de purgante antes do café</p><p>da manhã. Não é assim, dona Isabel?</p><p>Enquanto dorme Ingrid Bergman</p><p>Com razão se incomoda Ingrid Bergman — “com seu rosto de orquídea</p><p>inteligente”, segundo a feliz de�nição de “Ulisses” — de que a</p><p>curiosidade pública esteja penetrando além do permitido nos limites de</p><p>sua vida privada. A história é clara demais, humana demais, além disso,</p><p>para que o público pretenda a todo transe acrescentar-lhe mais rendas</p><p>das que em verdade tem. Acaba sendo comovedor o dramático desvio</p><p>que, repentinamente e sabe-se lá devido a que secretos motivos, tomou a</p><p>vida de quem nos permitiu assistir — com sua arte, com sua beleza — a</p><p>mais de dois espetáculos inesquecíveis. Em agradecimento a eles, o</p><p>único direito que vai sobrando aos admiradores de Ingrid Bergman é o</p><p>de ser cinematogra�camente sentimentais. Mas em nenhum caso</p><p>humanamente indiscretos.</p><p>Alguns cronistas supersticiosos pretendem relacionar a repentina e</p><p>um pouco tardia conduta da sra. Bergman com o número do seu</p><p>calçado. É verdade que ela, com sua compatriota e colega Greta Garbo,</p><p>não poderá acomodar o seu delicado pé em um sapato de número</p><p>inferior a 41 — devidamente medido —, mas essa circunstância, a�nal</p><p>de contas, não leva senão à conclusão de que as atrizes suecas têm</p><p>capacidade de conhecer, melhor do que ninguém, as condições do</p><p>terreno em que pisam. A�rmar o contrário seria quase tanto quanto</p><p>confundir as tempestades sentimentais com simples e prosaicos</p><p>problemas de sapataria.</p><p>Se em atenção à discussão se aceitasse que Ingrid Bergman está em</p><p>uma clínica de Roma tecendo pecinhas de lã — azuis ou rosa? —; se em</p><p>atenção a essa mesma discussão se aceitasse que o produtor italiano e</p><p>inevitavelmente futuro cônjuge de la Bergman é quem provê — com</p><p>fundos que não �guravam no contrato — o dinheiro para as agulhas e a</p><p>lã, tampouco haveria motivos para levantar testemunhos imaginários. E</p><p>se, para o máximo de casualidades, dentro de alguns meses um</p><p>menininho chorar na clínica e o produtor Rossellini fumar três caixas</p><p>inteiras de cigarros norte-americanos junto à sala da maternidade, a</p><p>única coisa que pode acontecer é que o atual esposo de Ingrid Bergman</p><p>lhe quebre a cabeça, merecidamente. Seria possível esperar dramatismo</p><p>menor? Coisas menos graves acontecem no cinema e, apesar de tudo, o</p><p>público sai satisfeito.</p><p>Sobre o �m do mundo</p><p>Estás vendo, Septimus, que Nostradamus não é tão charlatão como</p><p>pretendem alguns. Naquelas surpreendentes e comprovadas profecias —</p><p>elaboradas em velho francês — de que falávamos há algumas semanas,</p><p>diz o terrível mago medieval que o mundo chegará a seu �m quando o</p><p>último descendente de Luís XVI ocupar o trono pontifício.</p><p>Naturalmente que Sua Santidade Pio XII, por princípio, não dá crédito</p><p>aos arrevesados vaticínios de Nostradamus, mas já se comenta que anda</p><p>em conversas secretas com antiquários, professores de heráldica e</p><p>genealogistas para comprovar se existem relações sangüíneas entre seu</p><p>sobrenome e o do beligerante e revoltoso Grã-duque. Compreendes,</p><p>Septimus, que existem razões poderosas para que esta, tua eventual e</p><p>espantada “jirafa”, abandone por um instante sua zombaria de pescoço</p><p>alto e se dedique a pensar, com toda a seriedade do caso, nos múltiplos</p><p>fatos que já estão indicando o iminente �nal deste mundo onde houve</p><p>uma vez um paraíso.</p><p>Se ainda duvidas, Septimus cético, relê nos jornais as informações</p><p>que chegam dos Estados Unidos. Lá o presidente Truman, depois de</p><p>tomar um copo de água, deu a ordem de fabricar bombas de hidrogênio.</p><p>Pequeno e inofensivo petardo que acabará — segundo se diz em língua</p><p>ianque — com todo o poderio de Moscou em um segundo.</p><p>Insigni�cante “trique-traque” que deixará mortos ao mesmo tempo não</p><p>menos de cinqüenta milhões de cidadãos comuns e banais — sem</p><p>descontar os coveiros — e que poderia reduzir a cinzas, pelo menos</p><p>teoricamente, qualquer objetivo militar por mais poderoso que fosse.</p><p>Enquanto isso, Moscou garante já ter o segredo cientí�co da insensata</p><p>superbomba. O que quer dizer — se é que uma “jirafa” tem o direito de</p><p>fazer cálculos — que para liquidar com toda a população da Colômbia</p><p>bastaria enviar a seus pací�cos habitantes uma fatia dessa bomba,</p><p>correspondente a uma quinta parte de seu poderio total. Assim, de fatia</p><p>em fatia, iriam aniquilando os países circunvizinhos, como se o grande</p><p>pêssego da morte estivesse disposto a se repartir em pedacinhos.</p><p>Mais além, pelas Filipinas, apareceu um profeta de 17 anos. Vestido</p><p>à maneira franciscana, profetizou que o �m do mundo ocorreria a 22 de</p><p>janeiro último. Como errasse em seus cálculos, foi escarnecido e</p><p>encarcerado. E se não tivesse errado, teria permanecido aqui alguém</p><p>para comemorar o seu acerto? Isso é o mesmo que ser preso por ter cão e</p><p>preso por não tê-lo; nem mais nem menos. Simplesmente, o que se passa</p><p>é que a humanidade já tem o pressentimento de que por algum lado</p><p>deve vir o Juízo Final, como única solução para todos estes problemas</p><p>que lhe estão fazendo perder o juízo. Daí que quando surge um profeta</p><p>— �lipino ou não — que marca o dia em que vai ter começo esse</p><p>necessário e apetecido repouso, desejamos todos, intimamente, que se</p><p>realizem suas profecias.</p><p>Deve-se estar certo, porém, de que os fabricantes da bomba de</p><p>hidrogênio não serão nem escarnecidos nem encarcerados como o</p><p>�lipino desta história, porque as matemáticas não falham. Estás vendo,</p><p>Septimus: Apaga a luz e vamo-nos; a zarzuela acabou.</p><p>Chateação do domingo</p><p>Perguntam-me por que a “jirafa” não vadia nas segundas-feiras e eu</p><p>respondo, com toda a formalidade exigida pelo padre Astete: “A ‘jirafa’</p><p>não vadia nas segundas-feiras porque teria que ser escrita na tarde de</p><p>domingo, e isso é substancialmente impossível.” Nada se parece tanto a</p><p>uma tarde de domingo como uma senhora sentada. Não, porém, uma</p><p>esbelta e aclimatada senhora, proprietária de uma corpulência de</p><p>condições decorativas, mas uma dessas senhoras raivosamente anti-</p><p>sindicalistas, com 150 quilos e dois metros de largura e que se sentam</p><p>para fazer a digestão depois de um almoço espetacular. Assim sentadas,</p><p>essas reverendas damas começam a bocejar, a tentar dormir sem querer,</p><p>a desfrutar do enjoado prazer de �ertar com o sono sem dar tréguas à</p><p>vigília. Esse espetáculo — dois minutos depois de iniciado — será</p><p>su�ciente para convencer ao mais incrédulo dos espectadores de que</p><p>nada há de tão contagioso quanto a modorra, dignamente praticada por</p><p>uma dama das dimensões expostas, e que — pelas mesmas razões —</p><p>nada se parece tanto a uma tarde de domingo na cidade como uma</p><p>senhora sentada.</p><p>É possível que numa quarta-feira ou numa sexta-feira alguém</p><p>perceba, de repente, que perdeu a imaginação para se distrair. Mas é</p><p>quase certo que nessa ocasião um bom livro ou um mau �lme podem</p><p>descobrir o secreto paraíso da distração cobiçada. Nos domingos, não.</p><p>Nos domingos — e se o são tão dominicalmente dignos como o que</p><p>acaba de passar — qualquer livro é medíocre e qualquer �lme, desde que</p><p>dure seis horas o espetáculo, não será nunca su�cientemente completo</p><p>para solucionar o problema da chateação. No domingo, já pelas horas da</p><p>tarde, o cavalheiro mais re�nado começa a perder o seu verniz de</p><p>civilização, torna-se analfabeto, insociável e quase completamente</p><p>antropófago, porque são as seis horas da catástrofe semanal destinadas a</p><p>comemorar os bárbaros dias da Idade da Pedra. Só um esforço de</p><p>vontade impede-nos então de sair à rua vestidos com o desabrigado</p><p>pijama da mãe natureza e distribuindo bordoadas a torto e a direito,</p><p>possivelmente a maneira como os trogloditas comemoravam suas festas</p><p>patrióticas.</p><p>Em razão disso, o domingo é um dia vertebralmente equivocado,</p><p>inútil, que deve ter entrado de contrabando quando os astrônomos</p><p>tomaram as medidas do tempo humanamente suportável.</p><p>Por isso não me acostumo a escrever aos domingos. Porque entendo</p><p>que a semana é uma roupa que �ca muito grande em todos os homens.</p><p>O número justo é de seis dias e até de seis dias e meio, se se prefere a</p><p>roupa folgada em um clima como o nosso. Mas por muito que se ajeitem</p><p>os costumes, por muito que bordem enfeites e inventem debruns à</p><p>folgada roupa da semana, a tarde de domingo sempre sobrará para o</p><p>homem da cidade e dele se arrastará como um rabo fantástico e absurdo.</p><p>Nova anedota de papagaios</p><p>É um problema tradicional que os cavalheiros, chegada a idade em que o</p><p>solteirismo se transforma em um estado irremediável, comprem um par</p><p>de chinelos e um papagaio. Não me lembro se Gedeón — o protagonista</p><p>do Buey Suelto — cumpriu com este iniludível dever do celibato, mas</p><p>não há dúvida de que George Blair, agente de polícia aposentado, em</p><p>Detroit, este, sim, estava a par das obrigações adquiridas por aqueles que</p><p>deixam de lado a feminina companhia para substituí-la pela menos</p><p>custosa ainda que talvez não menos conversadora de um papagaio real.</p><p>Aos 52 anos, Blair faz seu testamento e lega sua fortuna de quarenta mil</p><p>dólares a seu emplumado acompanhante. É um caso de gratidão como se</p><p>registram muito poucos.</p><p>De Nápoles, em compensação, vem uma notícia completamente</p><p>diferente. Vicenzenzo Marvasi, que em lugar de comprar os chinelos e o</p><p>papagaio, preferiu assumir a responsabilidade conjugal de Clara Moroni,</p><p>e não apenas vivia em aperturas econômicas, mas se viu na necessidade</p><p>de alugar, através de um contrato escrito e a prazo �xo, os bons serviços</p><p>de sua cônjuge amantíssima. O sacrifício deve ter sido mortal para</p><p>Vicenzenzo, mas em troca dele recebeu, das mãos de Rino Vinceguerra,</p><p>exatamente quarenta mil liras, ou seja, a mesma quantidade, em</p><p>números, que o policial aposentado de Detroit acaba de doar a seu</p><p>papagaio de cabeceira. Foi um contrato perfeito, por meio do qual um</p><p>italiano cedeu a outro italiano o controle absoluto sobre a conduta</p><p>material e moral de uma italiana que, depois de haver sido esposa do</p><p>primeiro durante longos anos, convertia-se em um simples semovente de</p><p>aluguel.</p><p>Se este mundo não andasse tão maluco, o policial de Detroit teria se</p><p>casado com a esposa alugada e o seu locador compraria os serviços do</p><p>papagaio. Dessa forma, Vicenzenzo teria tido tão pouca necessidade das</p><p>quarenta mil liras como o papagaio que é agora o proprietário delas. De</p><p>outra parte, o policial de Detroit teria tido uma esposa competente a</p><p>quem legar o seu patrimônio e esta, por sua vez, teria se poupado o</p><p>desagradável sacrifício de se identi�car legalmente como um objeto de</p><p>contrato. Em resumo, chega-se à conclusão de que nesta arrevesada</p><p>anedota sobra um personagem: Rino Vinceguerra, aquele que, em troca</p><p>das quarenta mil liras, recebeu os benefícios da operação comercial.</p><p>Como poderia se desenredar este complicado trava-línguas da vida</p><p>real para que tudo acabe tão bem como no cinema? Simplesmente</p><p>fazendo com que o policial morra para que o papagaio passe a ser logo o</p><p>proprietário único dos quarenta mil dólares. Feito isso, que os tribunais</p><p>de Nápoles concedam o divórcio a Vicenzenzo e o enviem à cadeia por</p><p>haver dado sua esposa em aluguel. Imediatamente, devolve-se a Rino</p><p>Vinceguerra suas quarenta mil liras e Clara Maroni viaja de Nápoles a</p><p>Detroit e se casa com o papagaio. Tudo �cará então como devia ser e se</p><p>ajeita um dos tantos desequilíbrios deste mundo desarrumado.</p><p>Diatribe da sobriedade</p><p>A gastronomia com exóticos re�namentos me parece uma dejeção tão</p><p>desprezível como a do artista da fome — o magistral personagem de</p><p>Franz Kaa — que passeava pelas cidades em uma jaula de exibição,</p><p>com o único propósito de mostrar ao mundo a sua extraordinária</p><p>capacidade de sobreviver sem se alimentar. Os dois extremos são</p><p>desprezíveis por desumanizados e por estarem em aberto e</p><p>irreconciliável divórcio com a natureza racional do homem. É admirável,</p><p>em compensação, o homem que come sem se envergonhar com a</p><p>qualidade ou a quantidade dos manjares e sem render tributo à</p><p>meticulosidade falsi�cada ou temer ao muito relativo cativeiro da</p><p>vulgaridade. O nobre e humano é empanturrar-se, comer até onde a</p><p>fome agüente e com toda a dignidade do que se é: um animal. Porque o</p><p>grau de civilização a que chegamos não se opõe a isso, mas a que o</p><p>façamos publicamente. Então, assim, a coisa é outra coisa.</p><p>O banquete, como espetáculo, preenche todas as condições para ser</p><p>um ato repugnante. A comilança coletiva é uma invenção falsa, arti�cial</p><p>e burra; contraria os recursos naturais do animal humano. Durante um</p><p>banquete, o cavalheiro pode comportar-se corretamente, e nesse caso</p><p>acabará com fome su�ciente para quebrar um restaurante de primeira</p><p>classe. Ou é sincero, e depois de deixar brilhando os próprios pratos</p><p>satisfaz seus naturais impulsos com os restos do vizinho. Neste último</p><p>caso, sendo humanamente normal, acaba socialmente desadaptado e</p><p>vulgar. Por isso nada de nobre, nem edi�cante, nem espontâneo pode</p><p>haver no fato de que setenta cavalheiros da melhor sociedade sentem-se</p><p>em torno de uma mesa, para oferecer como homenagem o exercício</p><p>público de uma atividade �siológica tão necessária quanto qualquer</p><p>outra, mas também, como ela, espetacularmente repugnante. Apesar de</p><p>que o amar durante todo o tempo e o beber quando não se tem sede</p><p>sejam qualidades exclusivas do homem (a idéia é de Ortega y Gasset, se</p><p>não ando desmiolado, como diz Alfonso), a primeira delas só deve ser</p><p>praticada entre duas pessoas e a segunda entre não mais de quatro. Entre</p><p>dois casais, o beber é uma saudável diversão. Mas entre cinco acaba em</p><p>bebedeira.</p><p>A mesma coisa acontece com o comer. Nada é tão desprezível como</p><p>a sobriedade neste sentido, nem nada tão ridículo e arti�cial como a</p><p>surpresa do amigo que ontem, à hora do almoço, mostrou-se santamente</p><p>indignado porque Septimus resolveu aproveitar, secretamente, os</p><p>nobilíssimos conselhos de Pantagruel. Estou certo de que ele, ao chegar a</p><p>sua casa, espoliou sua geladeira. Eu, em vez disso, vim escrever esta</p><p>crônica como um legítimo burguês.</p><p>Um chapéu para Eduardo</p><p>A imprensa publicou ontem uma radiofoto da AP em que aparecem o</p><p>duque e a duquesa de Windsor em uma feira de Laredo. Ostenta o</p><p>nobilíssimo cavalheiro, acima de seu austero casaco britânico, um desses</p><p>desproporcionados chapéus de fabricação mexicana que nem sempre</p><p>levam debaixo — pelo menos no cinema — uma personalidade tão</p><p>atraente quanto a do duque de Windsor. A foto é interessante por tantos</p><p>aspectos que di�cilmente cabem todos em uma única “jirafa” por muito</p><p>que ela se esforce em esticar o seu pescoço já bastante longo por</p><p>natureza.</p><p>Quinze anos antes de usar este chapéu, o duque de Windsor se</p><p>chamava Eduardo VIII e levava sobre a cabeça a não menos pesada</p><p>coroa do reino britânico. Muito mais talvez que os enfadonhos —</p><p>porque enfadonho também deve ser um trono — problemas de Estado,</p><p>parecia Sua Majestade interessada em cultivar seus dois gostos</p><p>fundamentais: a equitação e as viagens. No primeiro dos esportes sofreu,</p><p>como é natural, umas quatro quedas espalhafatosas. Mas foi no segundo</p><p>deles que sofreu a mais espalhafatosa e de�nitiva de todas, uma vez que</p><p>foi durante uma viagem pelo aprazível Mediterrâneo que ele caiu, direto</p><p>e sem etapas, do trono britânico no cativeiro sentimental da belíssima</p><p>srta. Wallis War�eld, mais conhecida, enquanto duravam as</p><p>machucaduras da queda monárquica, como sra. Simpson, seu nome de</p><p>casada. E é possível que o bálsamo amoroso, o sedativo linimento das</p><p>carícias da sra. Simpson houvesse realizado no monarca destronado o</p><p>espantoso milagre de que lhe doessem mais as incontáveis quedas</p><p>de um</p><p>cavalo do que a única e espetacular que acabava de sofrer deste potro</p><p>não menos difícil de montar que deve ser o trono britânico.</p><p>A verdade é que Eduardo, com essa extraordinária personalidade</p><p>que agora lhe serve até para usar um chapéu mexicano, abandonou os</p><p>complicados negócios estatais e veio às Bahamas para saborear a doçura</p><p>dessa lua-de-mel sem protocolo que lhe garantiu a sua aparente</p><p>extravagância.</p><p>A sra. Simpson, em compensação, recebeu o título de duquesa e</p><p>fama universal. Foi revendo esta história extraordinária que cheguei a</p><p>me perguntar se a família real norte-americana não será, dentro de</p><p>alguns anos, de sobrenome Simpson. Não faz ainda uma semana que o</p><p>marquês de Midford Haven — membro da realeza britânica e padrinho</p><p>de casamento da princesa Elizabeth — contraiu matrimônio com uma</p><p>dama tão norte-americana quanto a duquesa de Windsor, e cujo nome,</p><p>se não se enganou o telegrama, é Dalligreen Simpson.</p><p>É possível que os Simpsons da agora marquesa de Midford Haven</p><p>não sejam os mesmos Simpsons da duquesa de Windsor. Mas, como é</p><p>preciso enquadrar essa história por algum lado, para não desperdiçar</p><p>esta “jirafa” cujo pescoço já está passando da medida, concordemos que</p><p>sim, são, e que, com o tempo, a família real dos Estados Unidos será de</p><p>sobrenome Simpson. A�nal de contas, a culpa dessa complicação não</p><p>caberia ao autor desta crônica, mas ao chapéu mexicano que em boa</p><p>hora o duque de Windsor exibiu em uma feira de Laredo.</p><p>Biogra�a do meio-peso</p><p>No princípio foi o caos. Um caos de cuartillos, morrocotas, papel-moeda</p><p>e toda a hierarquia de anjos e sera�ns que no princípio dos séculos</p><p>nacionais habitaram o agora desvalorizado paraíso da numismática</p><p>circulante. Quebraram as arcas familiares e o peso inteiro se viu na</p><p>obrigatória necessidade de protagonizar, outra vez, a bíblica loucura de</p><p>trocar os seus direitos de primogenitura por um prato de lentilhas. Foi</p><p>aquele o primeiro dia do peregrino e desprestigiado meio-peso, �lho da</p><p>peseta, neto da morrocota, bisneto do patacão, tataraneto em linha direta</p><p>unilateral do doblón sonante e último descendente do ouro legítimo que</p><p>garantiu as transações coloniais.</p><p>Mais que circulante, o meio-peso foi castigado, desde o seu primeiro</p><p>dia, a ser uma moeda errante. Foi — durante o período paleontológico</p><p>do regime monetário nacional — um timbrado adolescente, cujo</p><p>prestígio de bem resguardado secundogênito levantou nos balcões a</p><p>metálica canção de sua indiscutível legitimidade. Vieram, porém, os</p><p>tempos duros — tempo dos apertos e necessidades — e o meio-peso</p><p>começou a freqüentar a perniciosa companhia dos nitratos, até o</p><p>extremo de que o gravado per�l boliviano que compartilhou as horas de</p><p>sua �orescente prosperidade perdesse de�nitivamente a sua aquilatada</p><p>prosápia e se transformasse, passados poucos anos, em um obscuro</p><p>adereço de bugiganga. Aquela foi a primeira queda do meio-peso, e</p><p>desde então sempre houve motivos para esperar que não fosse a última.</p><p>Tão baixo havia chegado!</p><p>Anos mais tarde, após um forçado recesso bancário, foi visto</p><p>transitar em notinhas de má índole e cercado por uma lamentável,</p><p>embora bem merecida, descon�ança popular. Nada de comum havia</p><p>entre aquele meio-peso de saudável timbre, de séria e responsável �ança</p><p>boliviana, e este outro meio-peso de duvidoso parentesco e que em</p><p>poucos meses de vida começou a denegrir o seu próprio ofício e a se</p><p>desfazer �sicamente no prematuro desterro a que o castigou a</p><p>comodidade transacional.</p><p>À terceira emissão — que de fato alcançou este quixote na família</p><p>monetária — todo o crédito que a con�ança prestara à sua primeira fase</p><p>de meio-peso exemplar foi substituído por uma franca e decidida</p><p>hostilidade da parte daqueles que o viram chegar às suas áreas</p><p>representado por um insigni�cante e incômodo retângulo de prosaica</p><p>litogra�a. Mais parecia, em seu novo hábito, decadente bastardo do peso</p><p>inteiro do que legítimo meio-peso com salvo-conduto o�cial.</p><p>Entretanto, o que em sua vida lhe faltou em prestígio parece haver</p><p>lhe sobrado em teimosia circulatória. Porque, nem bem acabara de</p><p>desaparecer, nojento e deformado à custa de reincidir nos baixos setores</p><p>comerciais, e se inaugurava a sua quarta emissão. Foi então, como nos</p><p>bons tempos, um meio-peso de metálico continente, apesar de que sua</p><p>nova e solene investidura — como estava previsto — não conseguiria</p><p>persuadir ninguém de sua aparente mas de�nitivamente duvidosa</p><p>legitimidade.</p><p>Agora aqui o temos, em sua inservível e talvez última �gura</p><p>corporal, convertido em uma nota minúscula, incômoda, que mal</p><p>consegue cobrir com o seu valor a chateação que signi�ca aceitá-lo como</p><p>esmola. No princípio era a prata legítima e valia na realidade o que</p><p>pesava, agora é de papel — de triste e decadente papel — e di�cilmente</p><p>consegue ser um símbolo dos incontáveis objetos sem valor, sem</p><p>importância, que ainda lhe emprestam o ombro para que não se</p><p>veri�que a sua necessária e de�nitiva destruição.</p><p>Oradores enjaulados</p><p>Mohamed Zafrullah Khan, ministro das Relações Exteriores do</p><p>Paquistão, acaba de bater um recorde de oratória no Conselho de</p><p>Segurança, falando da disputa que seu país tem com a Índia em torno do</p><p>território de Caxemira. O discurso se prolongou durante seis horas e 22</p><p>minutos, tempo esse su�cientemente longo para que os participantes de</p><p>tão importante assembléia recuperassem todas as energias em um sono</p><p>que deve ter sido reparador como nenhum outro, desde que se leve em</p><p>consideração que o de Mohamed Zafrullah Khan é um idioma melí�uo,</p><p>insinuante, como um soporífero da melhor qualidade oriental.</p><p>Lembrei-me de um conto do extraordinário Averchenko, no qual</p><p>um primitivo da África, que incidentalmente chega a uma casa de jogo</p><p>européia, surpreende-se de que os jogadores tenham de permanecer</p><p>horas inteiras à volta de uma mesa para ganhar uns poucos centavos do</p><p>adversário, sendo tão fácil — na opinião do africano — derrubá-lo a</p><p>murros, arrastá-lo e subtrair-lhe a soma que se queira. O sistema,</p><p>naturalmente, é tão lógico que, se o agredido tem mais destreza do que o</p><p>agressor, invertem-se os papéis, o que é exatamente como se o último</p><p>perdesse o jogo.</p><p>Algo parecido a este conto poderia se dizer — sendo nós os</p><p>africanos, para o caso — a respeito das competições oratórias no</p><p>Conselho de Segurança e em outras assembléias de menor importância.</p><p>Mohamed Zafrullah fala durante seis horas e 22 minutos para ganhar</p><p>um pedaço de terra, tentando resolver assim um problema que países</p><p>mais adiantados que o Paquistão têm resolvido na força bruta.</p><p>Mas do que não querem se convencer os homens da atualidade é que</p><p>a oratória teve, oportunamente, seu Século de Ouro, e que agora é desses</p><p>objetos que se manda apreender, como os baralhos. A oratória perdeu há</p><p>tempo sua força dialética, suas faculdades para se impor à razão, e só</p><p>serve atualmente para que os delegados dos diferentes países durmam</p><p>uma agradável sesta burocrática, enquanto os cientistas acabam de</p><p>aperfeiçoar a bomba de hidrogênio.</p><p>Na Colômbia temos tido exemplos menores. Já tivemos um rebanho</p><p>de leopardos que se deu ao luxo parlamentar de render tributo ao mau</p><p>gosto durante tantas horas multiplicadas por sete como acaba de fazê-lo</p><p>o ministro do Paquistão. Houve até um desses leopardos que durante</p><p>anos inteiros não teve outro ofício senão o de adormecer a todo o</p><p>pessoal legislativo traduzindo-lhe ao mais arrevesado castelhano os</p><p>hieroglifos de suas próprias gravatas surrealistas. Leopardo que se</p><p>entregou ao nobilíssimo esporte da calvície e confundiu o Parlamento</p><p>com uma vitrine de alfaiataria, para logo, passados uns poucos anos,</p><p>permanecer com o inquietante prestígio de haver falado durante quatro</p><p>lustros sem haver dito nada.</p><p>O mundo de agora devia recolher todos os seus oradores e expô-los</p><p>em uma vitrine de antiguidades, em memória da época em que a razão</p><p>primava sobre os instintos. Assim, enjaulados, os pro�ssionais da</p><p>oratória não serviriam para o que acreditam servir, mas em</p><p>compensação poderiam</p><p>Zabala deve ter sido</p><p>mais importante para ele do que o “sábio catalão” Ramón Vinyes, que</p><p>conheceu rapidamente em Barranquilla; o certo é que, pelo menos sob o</p><p>aspecto jornalístico, a orientação de Zabala deve ter tido um impacto</p><p>mais do que notável. Outro encontro decisivo, porém não documentado,</p><p>e do qual só tomamos conhecimento através do próprio García Márquez,</p><p>parece haver sido o de Gustavo Merlano Ibarra, jovem intelectual de</p><p>Cartagena, que contribuiu para ampliar a cultura do futuro romancista,</p><p>permitindo-lhe conhecer em particular os grandes escritores norte-</p><p>americanos do século XIX.11</p><p>Nesses quase vinte meses passados por García Márquez em</p><p>Cartagena, colaborando em El Universal, o fato mais notório é o período</p><p>em que se ausentou da cidade por motivos de saúde, indo morar com</p><p>seus parentes em Sucre. A crônica, já citada, na qual um dos seus</p><p>companheiros se referia à viagem e expressava votos de rápida</p><p>recuperação, foi publicada em 30 de março de 1949. Somente um mês e</p><p>meio depois é que García Márquez voltou a Cartagena, já que em 15 de</p><p>maio outra crônica sem assinatura (também atribuída a Héctor Rojas</p><p>Herazo, e dessa vez com probabilidade bem maior do que a anterior)</p><p>saudava “o regresso de um companheiro”, acrescentando que “na Mojana</p><p>— terra brava e máscula — García Márquez deu os toques �nais ao seu</p><p>romance — a aparecer em breve — intitulado Ya cortamos el heno [Já</p><p>ceifamos o feno]”.12</p><p>Na mesma época em que colaborou em El Universal aconteceu um</p><p>fato importante na vida pessoal e literária de García Márquez e de</p><p>grande transcendência para a história de sua literatura caribenha,</p><p>colombiana e latino-americana: seu encontro com os intelectuais do que</p><p>mais tarde seria conhecido como “o grupo de Barranquilla”.13 Até o</p><p>momento parece não haver documentos que permitam situar com</p><p>precisão indiscutível a data em que se deu tal encontro. De fato, se nos</p><p>ativermos aos documentos disponíveis, as relações de García Márquez</p><p>com o que adiante chamarei simplesmente de “o grupo” iniciam-se em</p><p>dezembro de 1949; em 17 de dezembro de 1949, em sua coluna “Aire del</p><p>día” da terceira página de El Heraldo de Barranquilla, que assinava sob o</p><p>pseudônimo “Puck”, o destacado jornalista Alfonso Fuenmayor dava as</p><p>boas-vindas a Gabriel García Márquez, o qual, “no gozo informal de</p><p>umas férias, encontra-se nesta cidade”. Contudo, mesmo que se trate do</p><p>primeiro encontro documentado, é impossível que tenha sido o primeiro</p><p>encontro real, mesmo porque um jornalista tão rigoroso como Alfonso</p><p>Fuenmayor não iria registrar com ênfase a passagem de um</p><p>desconhecido por Barranquilla, apesar do talento já demonstrado por</p><p>Gabriel García Márquez. Fuenmayor14 refere-se elogiosamente aos</p><p>contos de GGM, mas não daria tanta importância à pessoa de seu autor</p><p>se não o tivesse conhecido antes.15</p><p>Relacionando fatos anteriores, e a partir de vários documentos, é</p><p>possível suspeitar-se de e situar outros contatos prévios entre García</p><p>Márquez e o grupo. De grande utilidade, no caso, é a alusão que, no dia</p><p>28 de julho de 1949, faz García Márquez a Faulkner e Virginia Woolf.</p><p>São autores que ele jamais havia mencionado e que havia tempo faziam</p><p>parte da cultura do pessoal do grupo.16 Essa breve alusão deve ser vista</p><p>como indício de uma leitura recente, e isso pode ser con�rmado por</p><p>uma super�cial comparação entre os dois contos que García Márquez</p><p>publicou no suplemento literário de El Espectador, de Bogotá, nesse ano</p><p>de 1949: “Diálogo do espelho” e “Amargura para três sonâmbulos”. O</p><p>primeiro situa-se dentro da linha fantástica e mórbida evidentemente</p><p>in�uenciada por Kaa, que García Márquez vinha seguindo desde “A</p><p>terceira renúncia”, seu primeiro conto, enquanto o segundo revela já uma</p><p>discreta porém inconfundível inspiração no modelo faulkneriano de O</p><p>som e a fúria. Entre ambos os contos produziu-se algo, que foi o</p><p>encontro com a obra de Faulkner, e certamente foi sob a orientação de</p><p>alguns dos membros do grupo de Barranquilla que tal fato se deu.</p><p>Mesmo padecendo de algumas imprecisões, vale a pena citar aqui, a</p><p>propósito desse capital encontro, o depoimento de Germán Vargas,</p><p>membro do grupo que — da mesma maneira que Ramón Vinyes, Álvaro</p><p>Cepeda e Alfonso Fuenmayor —, mais tarde, viria a ser personagem de</p><p>Ninguém escreve ao coronel e Cem anos de solidão. Diz Vargas:</p><p>Certa ocasião, em 1950, García Márquez encontrava-se em Sucre, um pequeno povoado</p><p>hoje situado no departamento do mesmo nome, mas que na época pertencia ao de</p><p>Bolívar. Gabriel estava doente, e obviamente não dispunha de nada para ler. Foi então</p><p>que dom Ramón, Álvaro Cepeda, Alfonso Fuenmayor e eu providenciamos vários</p><p>pacotes de livros e lhe enviamos pelo Correio. Dessa forma, o autor de A revoada tomou</p><p>conhecimento de Faulkner, Virginia Woolf, John Dos Passos, Ernest Hemingway, John</p><p>Steinbeck, o hoje esquecido Erskine Caldwell e Aldous Huxley, outro esquecido.17</p><p>A data a que se refere Germán Vargas tem que ser 1949, em vez de 1950,</p><p>como ele escreve. Não é aceitável a alusão a Alfonso Fuenmayor, que</p><p>então vivia em Bogotá.18 Também não foi nessa época que García</p><p>Márquez “conheceu” a obra de Huxley, autor que ele já mencionara em</p><p>uma de suas crônicas de El Universal muito antes do fato evocado por</p><p>Germán Vargas. Mas cabe admitir que o empréstimo dos livros</p><p>aconteceu durante a enfermidade de García Márquez, quando este</p><p>repousava em Sucre, em casa de seus pais, ou seja, entre �ns de março e</p><p>meados de maio de 1949. Isso signi�ca que o contato efetivo e pessoal já</p><p>se havia estabelecido entre o jornalista de El Universal e o grupo. Esse</p><p>encontro talvez tenha-se dado nessa mesma época — caso García</p><p>Márquez tenha passado por Barranquilla ao viajar a Sucre — ou em</p><p>oportunidade anterior.</p><p>O certo é que um texto de García Márquez, escrito quando da morte</p><p>do sábio catalão, em maio de 1952, parece indicar que ele conheceu</p><p>Vinyes entre Cartagena e Sucre, quando de sua viagem para tratamento</p><p>de saúde: “Na época em que o conheci [a Ramón Vinyes], há três anos...”,</p><p>escreveu ele, acrescentando mais adiante: “Não sei de onde lhe saiu a</p><p>idéia de deixar Barcelona, o que aconteceu um pouco antes do</p><p>tricentésimo sexagésimo quinto dia de havê-lo conhecido.”19 Como</p><p>Vinyes saiu de�nitivamente de Barranquilla no dia 15 de abril de 1950,20</p><p>é de se supor que García Márquez de fato o conheceu em abril de 1949,</p><p>isso se for correto, é claro, que, ao redigir sua crônica de homenagem</p><p>póstuma, a memória de García Márquez tenha funcionado</p><p>corretamente; mas sua insistência a respeito do prazo de um ano quase</p><p>exato não deixa de ser signi�cativa e convincente.</p><p>Mas a despeito das incertezas sobre esse primeiro encontro com o</p><p>sábio catalão, tudo indica que, em abril e maio de 1949, García Márquez</p><p>leu livros emprestados por seus amigos do grupo. E é mais do que</p><p>provável, porém, que tenham se conhecido antes e que o empréstimo</p><p>não tenha sido feito a um amigo recém-conhecido pessoalmente</p><p>(embora, como se verá em seguida, não o ignorassem como contista). Já</p><p>se insinuou que Alfonso Fuenmayor é um jornalista por demais</p><p>circunspecto para que viesse a saudar com elogios a passagem inicial por</p><p>sua redação de um escritor principiante. Por outro lado, Fuenmayor</p><p>morou em Bogotá entre janeiro e setembro de 1949, o que</p><p>impossibilitava García Márquez de tê-lo conhecido em abril, quando</p><p>passou por Barranquilla, se realmente passou por ali. Tudo isso implica</p><p>que entre eles se deu um encontro anterior, e que García Márquez deve</p><p>ter feito amizade com os membros do grupo antes de abril de 1949. A</p><p>respeito desse primeiro encontro, que realmente se deu, é preciso referir-</p><p>se a este outro testemunho de Germán Vargas:</p><p>Um dia estávamos Álvaro [Cepeda Samudio] e eu na redação do jornal [El Nacional, de</p><p>Barranquilla], quando ali chegou um rapaz perguntando por nós, pois queria nos</p><p>conhecer... Quando se aproximou de nós, perguntamos quem era, e ele respondeu que</p><p>era Gabriel García Márquez. Conhecíamos Gabo por um conto que havia publicado</p><p>ser embrulhados, rotulados e vendidos nas</p><p>farmácias, como e�cazes colheradinhas para a insônia.</p><p>Um Rafael Sabattini</p><p>Não seria exato dizer que Rafael Sabattini, na hora de sua morte, é um</p><p>autor completamente esquecido. Não é tampouco, entretanto, um desses</p><p>escritores a quem a posteridade se encarregará de fazer justiça. A única</p><p>coisa que nesta ocasião poderia resultar aproximadamente correta é um</p><p>lugar-comum inevitável: com Rafael Sabattini desaparece — talvez para</p><p>sempre — um dos mais belos estados de alma que a humanidade já teve</p><p>em todos os séculos.</p><p>Com esse outro Rafael Sabattini que se chamou José Salgari e com o</p><p>que acaba de morrer em um hotelzinho de Aldeboden, Suíça, encerrou-</p><p>se uma família literária, herdeira universal do patrimônio deixado vago</p><p>pelo romance de cavalaria e que agora — enquanto se enraízam</p><p>popularmente as aventuras interplanetárias — permanece sob a custódia</p><p>exclusiva das histórias policiais. Assim, a grandes passos, a humanidade</p><p>vai enterrando seus mortos, com a mesma frieza com que agora vê</p><p>desaparecer a visão corporal de Sabattini.</p><p>Se o extraordinário criador do Capitão Blood houvesse deixado de</p><p>existir 15 anos antes, a sua não teria sido esta morte anônima, suave,</p><p>esquecida sob um apertado pedaço de terra européia, senão um dos mais</p><p>comovedores episódios da literatura universal. A humanidade de 1925</p><p>ardia ainda nos rescaldos de um romantismo heróico, arriscado,</p><p>intrépido, como o que foi tostado nos fornos de Sabattini e Salgari.</p><p>Toda obra de �cção é a apresentação de um mundo imaginário,</p><p>entregue por um autor capaz de cercá-lo com as mais dramáticas</p><p>aparências de realidade a um público capaz de se comover diante de tais</p><p>aparências. O leitor de Sabattini, em seu momento, era o homem comum</p><p>e banal que, em seu íntimo, aspirara a ser um pouco Capitão Blood, e</p><p>um pouco também protagonista do episódio romântico em que uma</p><p>donzela se enforque de amor com o laço de suas próprias tranças.</p><p>Aos 75 anos de sua vida, Rafael Sabattini deve ter sido um</p><p>homenzinho discreto, silencioso, que via com seus apertados olhos azuis</p><p>o contundente crescer de um mundo diferente, completamente diferente</p><p>daquele que ele criou em seus melhores anos. Talvez, em seu afastado</p><p>hotelzinho da Suíça, tenha duvidado à última hora da arriscada</p><p>vitalidade, da dramática intrepidez desse Capitão Blood e desse “Cisne</p><p>Negro” que ele próprio foi em algum momento de sua próspera</p><p>madureza.</p><p>Se no ataúde de Rafael Sabattini colocassem as edições atuais de</p><p>todos os seus livros, é possível que o mundo não se considerasse</p><p>frustrado com essa dupla perda. Nem sequer no doce reduto da infância</p><p>haveria um minuto de silêncio por essa cerimônia que, há 15 anos,</p><p>poderia ter tido todas as aparências de um castigo. Naquela época, todos</p><p>os meninos, quando crescessem, teriam um barco sem bandeira</p><p>nacional, uma espetacular vida de abordagens e assaltos. Quinze anos</p><p>depois, muitos deles conseguiram tê-la, de certo modo e de acordo com</p><p>as circunstâncias atuais.</p><p>Agora todos os meninos, quando crescerem, vão ser Super-Homem</p><p>ou um Buck Rover de carne e osso para tripular uma nave</p><p>interplanetária. A mesma volta de todos os séculos, para que dentro de</p><p>vinte anos morra outro Rafael Sabattini como este que acaba de morrer,</p><p>esquecido em um hotelzinho da Suíça.</p><p>Para a morte de Albaninha</p><p>E pensar que tudo — Albaninha — estará algum dia habitado pela</p><p>morte. Que essa cálida madureza de sua pele, que faz o tato descer até o</p><p>abismo do desassossego, está sendo empurrada a cada dia, a cada hora,</p><p>para a névoa de ignoradas regiões. Que esta ordem de coisas naturais</p><p>que faz de você e do ar e da água e dos pássaros, nítidos volumes para a</p><p>vindima dos sentidos, é matéria destinada ao cativeiro da cinza e</p><p>substância de sabor agradável ao paladar da terra.</p><p>Há de vir uma manhã em que os andarilhos se surpreenderão,</p><p>quando todos os pássaros emudecerem de repente, quando a natureza</p><p>detiver seu secreto ritmo de criação diária, e talvez não compreendam</p><p>que é chegada a hora em que você voltou a se encontrar com seu nome,</p><p>mais além de seus ossos. E numa tarde como esta retornarão os bois do</p><p>arado com as lâminas iluminadas por uma amorosa claridade, e todos</p><p>perguntarão se há estrelas semeadas, sem saber que é você, que já está</p><p>debaixo do sulco joeirando as sementes. E num domingo qualquer</p><p>dobrarão os sinos com bronze estremecido, e perguntarão as crianças</p><p>espantadas quem morreu no domingo, sem saber que foi você —</p><p>Albaninha — que ainda continua morrendo em todas as perguntas deles.</p><p>Nesse dia perguntarão as árvores a suas raízes quando há de passar</p><p>por seu enterrado leito o vidro dos seus olhos para que seja mais limpa e</p><p>mais pura a luz das laranjas. E os mortos suspenderão por um instante a</p><p>profunda tarefa de se converter em pó para colaborar na fabricação</p><p>subterrânea dessa grama miúda e compacta em que repousará o peso de</p><p>sua morte.</p><p>Porque a essa hora, quando todos os seres aspirem a se transformar</p><p>em ombro para fazer mais leve e menos dura a madeira do seu andor,</p><p>alguém fará girar a chave do tempo e com suas pálpebras será encerrado</p><p>o transcurso da criação.</p><p>Será essa a hora em que desabe sobre o rio o insistente chuvisqueiro</p><p>do salgueiro e se detenha na metade do vôo a asa turva de sua funerária</p><p>estação, aberta desde o princípio do mundo. E será a hora em que a</p><p>espiga suspenda a sua viagem vertical e minuciosa até a altura do grão,</p><p>porque à notícia de sua morte não nascerão as colheitas e restará o seu</p><p>cordão vegetal atado para sempre ao útero do sulco.</p><p>Quando isso acontecer — Albaninha — todos saberemos que a</p><p>morte começou a habitar sua formosura e se inverteu para sempre o</p><p>rumo maravilhado de seus ossos.</p><p>Música formulada</p><p>Leio uma notícia segundo a qual a Associação Médica Norte-americana</p><p>estaria utilizando composições musicais no tratamento de certas</p><p>doenças. A iniciativa, naturalmente, está muito longe de ser original,</p><p>mas os resultados obtidos nas últimas experiências parecem ser tão</p><p>satisfatórios que não seria exagerado considerar a possibilidade de que,</p><p>com o tempo, as modernas faculdades de medicina e cirurgia incluam</p><p>em seus currículos — como matéria obrigatória — a aprendizagem de</p><p>algum instrumento de determinadas propriedades curativas. A idéia de</p><p>que o saxofone substitua entre os instrumentos pro�ssionais o arrepiante</p><p>bisturi é verdadeiramente consoladora, quase tanto como se nos</p><p>dissessem que em lugar de uma repugnante apózema de sal de Epson</p><p>para regular o funcionamento digestivo, receitar-nos-iam dose</p><p>apropriada de Beethoven em jejum ou até exageradas massagens de</p><p>Wagner e Bach para os desarranjos musculares.</p><p>A meloterapia — se não batizarem em língua ianque o novo sistema</p><p>curativo — daria, como resultado imediato, certa dignidade pro�ssional,</p><p>ligada a uma repousante prosperidade econômica, a esses martirizados e</p><p>abnegados maestros de bandas paroquiais, que durante os acidentados</p><p>dias de sua vida não �zeram nada senão soprar um instrumento</p><p>qualquer para que dance o cacique oligárquico, num inconcebível</p><p>suicídio musicalmente progressivo que ameaça permanecer, com o</p><p>passar dos anos, na mais comovedora impunidade. Com a cura pela</p><p>música, em troca, o médico rural precisaria recorrer ao clarinetista</p><p>municipal para que suavize com seus agudos analgésicos uma febre</p><p>tifóide persistente, como em épocas passadas já acudiu aos serviços</p><p>sangrentos do barbeiro. Dessa forma, junto ao leito do moribundo, não</p><p>estariam apenas o sacerdote e o médico tradicionais, mas também uma</p><p>orquestra especializada em a�nar as desa�nadas cordas do paciente, em</p><p>uma última e desesperada serenata terapêutica. É possível que a contrita</p><p>parentela veja falecer, umas horas depois, seu estimado agonizante;</p><p>�cará, porém, com a limpa consciência de que ele não deixou de existir</p><p>por falta de música, nem porque menosprezassem os serviços de um</p><p>notável saxofonista de cabeceira.</p><p>Compreendo que o meu admirado e admirável Pafúncio não se</p><p>mostrará muito satisfeito</p><p>com o aperfeiçoamento deste novo sistema</p><p>curativo. Até agora os catastró�cos exercícios de piano, as dolorosas</p><p>lições de canto que com tanta constância pratica Marocas — essa</p><p>adorável dor de cabeça conjugal — não deixaram de ser inofensivos</p><p>entretenimentos de caráter doméstico. O grave para o martirizado</p><p>Pafúncio começará quando Marocas pretender aperfeiçoar as</p><p>propriedades curativas de sua voz ou desentranhar a piano sua estridente</p><p>e raivosa faculdade analgésica. Quer dizer, quando Marocas descobrir</p><p>que esse desgosto espiritual, que há trinta e tantos anos vem</p><p>confundindo com uma irrevogável vocação musical, não era senão uma</p><p>desenfreada inclinação pela arte de aliviar os castigos humanos.</p><p>Talvez então o sobressaltado Pafúncio, como recurso de�nitivo,</p><p>resolva outra vez recorrer à escada de emergência, para ouvir durante</p><p>muitas horas a desconcertada eletrola do boteco do Perico, como único</p><p>tratamento possível para o seu muito justi�cado desequilíbrio nervoso.</p><p>Palavras a uma rainha</p><p>No ato de coroação da rainha do carnaval de Baranoa, o autor desta seção</p><p>pronunciou ontem à noite as seguintes palavras:</p><p>“Nós nos reunimos — senhora da perfeita alegria — para te fazer a</p><p>entrega do nosso mais feliz território espiritual. Aqui está, aguardando o</p><p>teu gesto imperativo, o vigilante soldado da terra, o que nesta mesma</p><p>tarde amarrou seus bois e vem entregar as armas do arado em sinal de</p><p>submissão a tua esbelta monarquia. E está também o silencioso operário</p><p>do algodão, aquele que com suas sábias mãos transformou a áspera �bra</p><p>vegetal nessa nuvem de intimidade e ternura onde se tecem teus sonhos.</p><p>E está o cavaleiro arisco e romântico, aquele que ferrou sua montaria</p><p>com tuas douradas iniciais e veio a esta festa com seu animal de febre,</p><p>com sua besta adestrada no musical exercício de repetir teu nome com</p><p>suas ferraduras. E está o homem total, o homem anônimo, essa terrível</p><p>criatura de barro e de sonho que hoje obedece a teus desígnios. Todos</p><p>estamos aqui — senhora da perfeita formosura — esperando pelo</p><p>instante em que a tua graça reconstrua, pedra por pedra, a apetecida</p><p>torre do paraíso.</p><p>“Teu reino — senhora da perfeita simpatia — é o infatigável reino da</p><p>cascavel e do delírio, o alucinado território do tambor e da gaita; a</p><p>esfogueada região onde a guitarra a�na seus bordões até converter a</p><p>canção em um �níssimo pó de música; a embriagadora zona da cana</p><p>espremida em ardente leite, em noturno licor de febre e alegria. Nós</p><p>estamos te entregando — senhora da perfeita harmonia — todos os</p><p>setores do teu domínio, após um minucioso inventário em que o silêncio</p><p>não teve lugar, nem lugar para a amargura, nem se reservou lugar para a</p><p>desolação. Todo o contorno do teu reino está em paz com o ritmo, com o</p><p>sabor ao excessivo mel da festa retumbante, com a alegria do homem e o</p><p>júbilo da besta. Assim te coroamos, imperadora das vontades sem</p><p>limites, monarca de um país ideal onde o homem começa a ser</p><p>exatamente igual a seus desejos.</p><p>“E a estes homens chamamos por testemunho de tua coroação —</p><p>senhora da perfeita soberania. Chamamos ao primeiro de todos, a</p><p>Erasmo de Roterdã, custodiado pelo arcanjo da loucura. A Tales de</p><p>Mileto, inventor da linha reta. A Ésquilo e a Sófocles, que ensinaram a</p><p>falar às máscaras. Ao deus Pã e a sua corte de sátiros, que ensinaram a</p><p>cantar os juncos. A Jubal e a Davi, bisavô e avô das harpas. Ao patriarca</p><p>Noé, que espremeu dos cachos de uva sua embriagadora raiz de loucura.</p><p>A Dionísio, que dava lições de dança aos moribundos. Ao primitivo sem</p><p>nome que fabricou o primeiro tambor sob a noite milenária. Aos</p><p>monarcas babilônicos e a Ramsés, que deram dignidade real aos</p><p>disfarces, e a Esopo, que deu dignidade humana aos animais. E</p><p>�nalmente, chamamos por testemunho de tua coroação — senhora do</p><p>perfeito júbilo — a Momo, o deus ilimitado que devolveu ao desatino e à</p><p>extravagância os seus direitos de primogenitura.</p><p>“Desçam todos sobre o instante e dêem testemunho universal, por</p><p>todos os séculos, destas últimas palavras: ‘Esther primeira, soberana do</p><p>carnaval, senhora do perfeito domínio.’”</p><p>No velório de Joselito</p><p>Às cinco puseram-no em câmara ardente. Ardente câmara de grito e</p><p>aguardente para esse Joselito extravagante e imprudente que mais do que</p><p>três vidas desregradas teve três dias de agonia sem esperanças. O touro e</p><p>o tigre — às cinco — conheceram a notícia e devem ter pensado,</p><p>simplesmente, que Joselito tinha-se disfarçado de morto para bailar a</p><p>dança dos quatro círios, posto de través em um balcão qualquer sem</p><p>nenhuma importância. Entretanto, quando se con�rmou a notícia e se</p><p>disse, sem lugar a dúvidas, que o desabotoado José estava autêntica,</p><p>de�nitiva e �sicamente morto, o tigre e o touro vieram tropeçando pela</p><p>selva de sua própria bebedeira, perseguidos por uma dor de cabeça</p><p>silenciosa, mordente, que era ferina e primitiva por ser dor de cabeça de</p><p>tigre e de touro. E, com efeito, Joselito estava aí, frio e sem sentidos, tão</p><p>desoladamente frio e tão sem sentidos como esteve durante seus três dias</p><p>de vacilação entre o júbilo e o fastídio. Sobre um balcão, rodeado de</p><p>copos vazios, estava carregando sua morte desordenada, seu apetecido e</p><p>último repouso, como um domingo comum e banal que tivesse</p><p>agonizado mais do que o permitido e viesse a morrer em um fatigado</p><p>amanhecer da Quarta-feira de Cinzas.</p><p>Às cinco acenderam as velas. Mas não foram as quatro velas cristãs,</p><p>mas um montão de velas baratas, tresnoitadas, com as quais se dançou</p><p>em torno do morto a última cumbiamba1 de chateação e cansaço,</p><p>enquanto os coveiros cavavam um buraco limitado, estreito, onde</p><p>caberia Joselito com sua terça-feira e as imprudências, mas não caberia a</p><p>tristeza dos sobreviventes. O touro e o tigre, quando pregaram o caixão,</p><p>jogaram as máscaras lá dentro pensando que a dor era só da máscara;</p><p>era, porém — para desgraça do tigre e do touro —, autêntica e</p><p>irremediável dor de cabeça humana. As carpideiras choravam com voz</p><p>rouca, masculina, junto ao corpo tombado de um Joselito</p><p>merecidamente morto, para quem o único disfarce suportável era esse</p><p>irremediável e cômodo disfarce de madeira com que haveria de se</p><p>apresentar na quarta-feira, na grande festa do carnaval metafísico. Talvez</p><p>as carpideiras soubessem disso. Talvez o soubessem os mascarados que</p><p>foram cantar no velório o seu pasodoble de insônia, para que o touro</p><p>fosse investir contra as suas últimas verónicas2 de aborrecimento. Porque</p><p>ali, junto ao balcão, estavam todos os incautos que tiveram fé na</p><p>desenfreada demagogia pirotécnica de Joselito. Os que acreditaram em</p><p>sua oratória popularesca, os que admitiram sua redentora política de</p><p>candidato à primeira magistratura do desatino. Todos estavam ali,</p><p>decepcionados, rogando em segredo para que não estivesse</p><p>completamente morto para matá-lo verdadeiramente pela segunda vez.</p><p>Joselito morreu como o que era: como um farsante de lona e</p><p>serragem que esbanjou todo um capital de desprestígio em três dias de</p><p>desprestígios consecutivos. Seu rosário póstumo foram sete ave-marias</p><p>de maldições para cada padre-nosso de injúrias, enquanto o cadáver,</p><p>caminhando já em direção ao paraíso dos seus restos domésticos, dava-</p><p>se golpes no peito em uma última dança de contrição.</p><p>Começava a amanhecer quando chegou o cantar dos galos. Ridículo</p><p>e nojento, chegou farejando o balcão onde Joselito ainda não acabara de</p><p>abotoar seu disfarce de fantasma deteriorado. Nesse instante apagaram-</p><p>se as velas e os dançarinos acabaram sua prolongada cumbiamba</p><p>funerária. O touro e o tigre, abraçados na santa confraternização</p><p>zoológica de uma bebedeira irmã, iniciaram do outro lado do balcão os</p><p>compassos do hino em tempo de bambuco3 melancólico. Enquanto</p><p>Joselito, já a salvo na outra margem da semana, ria como o papagaio</p><p>zarolho e meio cínico do verso, contando os incautos a quem</p><p>“apareceria” nesse castelo sem limites nem claridade que deve ter sido</p><p>para eles a Quarta-feira de Cinzas.</p><p>Notas</p><p>1 Cumbiamba, dança de roda colombiana, popular na Costa</p><p>Atlântica. (N. do T.)</p><p>2 Verónica, tauromaquia, um dos passes executados pelo toureiro e que consiste em esperar pela</p><p>arremetida do touro com a capa estendida ou aberta, com as duas mãos diante do animal. (N. do</p><p>T.)</p><p>3 Bambuco, dança popular colombiana ou a toada desta dança. (N. do T.)</p><p>MARÇO DE 1950</p><p>Visita a Santa Marta</p><p>Um grato convite me manteve afastado por alguns dias destes</p><p>agradabilíssimos prédios. Felizmente estive em uma cidade — Santa</p><p>Marta — onde cada pedra centenária, cada monumento, cada instante</p><p>da formosa baía é um motivo para continuar dando voltas a este diário</p><p>molinilho de impressões. Foi lá que alguém me disse — alguém que,</p><p>segundo entendo, comete versos — que com as cidades, como com as</p><p>mulheres, só devemos nos arriscar na maioridade. Isso está bem, embora</p><p>não tenha nenhuma relação com esta crônica e embora realmente eu me</p><p>sinta satisfeito de haver corrido o risco de conhecer Santa Marta numa</p><p>idade em que as experiências já começam a ter certos indícios de</p><p>desengano.</p><p>A verdade é que Santa Marta é uma cidade desconcertantemente</p><p>silenciosa. Talvez a mais silenciosa que tenha conhecido, sem excetuar</p><p>Tunja, Popayán, Cartagena, Mompós, e todos esses povoadinhos</p><p>coloniais do interior da República onde o visitante tem motivos</p><p>su�cientes para se perguntar se é realmente uma pessoa viva ou um</p><p>fantasma. Tunja e Popayán, cidades sem mar, têm mais de monastério</p><p>desabitado do que de prédios urbanos. Cartagena, encruzilhada</p><p>portuária, viu-se na necessidade de ser uma cidade moderna, apesar de</p><p>sua arraigada vaidade de monumento colonial, o que fez dela uma</p><p>cidade estreita, apertada, como um romance ambientado no século</p><p>XVII, cujos protagonistas tivessem entretanto a mentalidade da época</p><p>atual. Santa Marta, em compensação, tem um ambiente que parece viver</p><p>ainda no século passado, embora o seu aspecto arquitetônico não</p><p>conserve a preocupação colonial de Tunja, Popayán ou Cartagena.</p><p>Acredito que, sob esse ponto de vista, as cidades que mais se</p><p>parecem são Santa Marta e Mompós. Detrás dos imensos janelões, nas</p><p>ruas desta última cidade, ouve-se durante as 12 horas do dia um</p><p>insistente e inacabado estudo de piano que não pode ser executado</p><p>senão por uma dessas moças sonhadoras, de compridas tranças e olhos</p><p>provincianos, que ainda não sabem realmente se estão aprendendo a</p><p>tocar piano para este mundo ou para as páginas desoladas de uma novela</p><p>romântica. Em Santa Marta acontece exatamente o mesmo. E em cada</p><p>casarão antigo há uma lápide histórica e um estudo de piano. Para</p><p>sempre. O mais extraordinário do silêncio na capital do Magdalena é que</p><p>se conserve intato, como nos dias de dom Rodrigo,1 apesar de ninguém</p><p>parecer fazer o menor esforço por conservá-lo. Em Cartagena foram</p><p>baixadas severas medidas policiais com o objetivo de apagar os</p><p>desordenados ruídos da cidade. Não sei se em Santa Marta foram</p><p>tomadas medidas semelhantes, mas a verdade é que lá não se anunciam</p><p>gritando os jornais, não soam as buzinas dos automóveis nem os</p><p>transeuntes fazem barulho andando. Apesar disso, o silêncio se conserva</p><p>de uma maneira tão espontânea, tão natural que mais parece obedecer</p><p>ao temperamento dos habitantes do que a qualquer disposição policial. É</p><p>como se os samarios2 estivessem tão aborrecidos em sua cidade que nem</p><p>sequer se dão ao trabalho de perturbar o silêncio do seu aborrecimento.</p><p>Até a baía é serena e aprazível. Mais que uma enseada propícia às férias,</p><p>mais que um magní�co ancoradouro para os barcos internacionais, a</p><p>baía de Santa Marta é uma sensação. Uma aprazível sensação de</p><p>quietude, bem-estar, mansidão. Seria possível dizer que — por sua</p><p>extraordinária beleza — não é uma paisagem, mas uma ilusão de óptica.</p><p>E até Mercedes de Armas, essa criatura frutal que habita a luz de Santa</p><p>Marta, é a beleza mais repousada e serena que tenha podido andar por</p><p>este mundo.</p><p>As estátuas de Santa Marta</p><p>Se tivesse viajado muito me atreveria a a�rmar que as estátuas mais</p><p>estranhas do mundo são as de Santa Marta. Por agora, basta-me dizer</p><p>que são as mais originais que conheço. Tinha chegado à aprazível cidade</p><p>de dom Rodrigo na terça-feira de carnaval. Ainda andavam pelas ruas, já</p><p>sem noção do tempo, alguns mascarados de última hora. Talvez por isso</p><p>não tenha me surpreendido ao ver, diante da baía, um cavalheiro</p><p>monumental, vestido com todos os adornos do conquistador espanhol,</p><p>que parecia estar passeando diante da paisagem todo o seu</p><p>aborrecimento de mascarado sem público. Pensei, na realidade, que é</p><p>preciso ter uma coragem cívica a toda prova para se en�ar em uma</p><p>armadura de cavalheiro a 30ºC à sombra e sair a caminhar sem rumo à</p><p>beira-mar. Apesar disso — e dom Rodrigo me perdoe o erro — o</p><p>conquistador espanhol a tinha realmente. Não sei se foi em um instante</p><p>de bom humor cívico ou em um delírio de originalidade que os samarios</p><p>pensaram em apear dom Rodrigo do seu pedestal e colocá-lo sobre a</p><p>terra física, de costas para a baía e a dez centímetros do nível do mar.</p><p>Nessa desacostumada posição, o fundador parece haver perdido sua</p><p>antiga e vigorosa personalidade de estátua, e está-se transformando em</p><p>um transeunte histórico, em um dos tradicionais samarios que todas as</p><p>tardes vão contemplar o trânsito do tempo e as raparigas à beira-mar.</p><p>Ninguém pôde explicar-me por que dom Rodrigo foi colocado em</p><p>tão difícil postura para uma estátua de tanta dignidade quanto foi a sua.</p><p>Assim, de frente para a cidade, sem pompas de bronze monumental, o</p><p>fundador é certamente mais humano, mais familiar, e ganhou bastante</p><p>em popularidade doméstica. Mas, de qualquer modo, eu tinha me</p><p>interessado pela origem daquela decisão porque alguém me disse — nem</p><p>sei com que base — que foi o dr. Augusto Ramírez Moreno, em uma de</p><p>suas tantas palhaçadas pro�ssionais, quem impôs a dom Rodrigo o</p><p>castigo de andar na terra, de costas para o seu mar, como um qualquer</p><p>do milhão e oitocentos mil eleitores que, segundo ele, tem o país. Parece</p><p>que o leopardo, em uma diatribe espetacular, profetizou que até o</p><p>próprio dom Rodrigo daria as costas à diáfana e tranqüila paisagem da</p><p>baía. E desde então o fundador desceu do seu pedestal, saiu caminhando</p><p>melancolicamente e virou as costas à paisagem, só para fazer a vontade</p><p>do dr. Ramírez Moreno.</p><p>De outra parte, acredito que a menor estátua de Bolívar é a de Santa</p><p>Marta. Di�cilmente poderá medir sessenta centímetros e é um</p><p>monumento eqüestre, apesar das dimensões. Colocada à sombra de um</p><p>oratório, a estatueta de Bolívar também tem a sua história, que não é, por</p><p>certo, história pequena.</p><p>De qualquer maneira, é curiosa a circunstância de que na cidade</p><p>onde morreu Bolívar sua estátua �gure em uma praça pública com as</p><p>mesmas dimensões desses Bolívares de mesa que servem, simultânea e</p><p>lamentavelmente, de monumentos privados e peso de papel.</p><p>Há em Santa Marta outra estátua que não pude interpretar. É uma</p><p>estátua completamente grega, também de mínima expressão, cheia de</p><p>marmóreas túnicas e per�s helênicos, como símbolo de alguma coisa</p><p>que ninguém conseguiu explicar. Essa Vênus leva, na destra, um sol</p><p>aceso com rosto de gravura egípcia, e está colocada sobre um pedestal</p><p>que tem, em cada um dos seus lados, um rosto de sexo inde�nido que</p><p>serve a um tempo de monumento e fonte luminosa. Diferente das</p><p>anteriores, essa estátua é de uma fealdade extraordinária, de uma</p><p>extravagância desarrazoada e sem objetivo. Mas ela também, como</p><p>todas, tem sua história em Santa Marta. E parece que em um carnaval as</p><p>fontes luminosas não verteram água, mas vinho, o que foi</p><p>simultaneamente um desperdício e uma esquisita manifestação de</p><p>paganismo.</p><p>Por isso acho que as estátuas de Santa Marta são as mais estranhas</p><p>que conheço. Tão estranhas como a de um prócer cujo nome não</p><p>recordo, que repousa sobre um pedestal de propriedade privada. Há</p><p>alguns dias iam desalojar o mencionado prócer para colocar em seu</p><p>lugar o busto do extraordinário negro Robles, em razão de seu</p><p>centenário, mas o proprietário do pedestal se opôs, com todo o respeito</p><p>que lhe merecem as suas estátuas. Um caso francamente excepcional,</p><p>como os que não acontecem senão com as originais estátuas de Santa</p><p>Marta.</p><p>Metafísica da cozinha</p><p>Há alguns dias GOG comentava — em sua inteligente seção do</p><p>vespertino bogotano — alguns aspectos da culinária em geral e</p><p>incidentalmente citava Arturo Laguado como “a maior autoridade em</p><p>teoria e prática da culinária na Colômbia”. Na verdade, foi para mim</p><p>uma surpresa encontrar o nome do nosso mais característico contista</p><p>comprometido em tão apetitosas e pouco freqüentes quali�cações.</p><p>Entretanto, se GOG o a�rma, razões de sobra terá para sabê-lo e para se</p><p>atrever a consagrar de maneira tão de�nitiva um nome que para mim —</p><p>até aquele dia — não teve relação alguma com as vias digestivas. Feita a</p><p>a�rmação por um humorista sério como o é GOG de forma</p><p>impressionante, não me resta um recurso mais sensato que o de aceitar a</p><p>culinária e sua contrapartida lógica, a gastronomia, como o mais</p><p>saudável e maravilhoso dos gêneros literários. Já estava descon�ando,</p><p>sem que tivesse me atrevido a dar um salvo-conduto editorial a essa</p><p>explicável descon�ança, desde o momento em que aprendi a admirar o</p><p>Chateaubriand com batatas fritas, muitos anos antes de que caísse em</p><p>minhas mãos uma tradução das Memórias de além-túmulo. Desse ponto</p><p>de vista estão explicados, com ingredientes dialéticos igualmente</p><p>poderosos, os ecumênicos prestígios da literatura e da cozinha francesa.</p><p>Entre nós �ca muito bem que Arturo Laguado esteja a caminho de</p><p>passar à posteridade — como passará sem dúvida com esses contos</p><p>pouco comuns que escreve freqüentemente — condimentado com o</p><p>molho de um suculento guisado. Segundo entendi, meu amigo Alberto</p><p>Dow é também mestre em preceptiva culinária, proprietário de uma</p><p>excelente ortogra�a digestiva, tão douto em retóricas gastronômicas</p><p>como o é em música e clínica médica, embora eu não queira enganar-me</p><p>no pressentimento de que é muito mais hábil no preparo de um prato</p><p>oriental do que na execução de um conto.</p><p>Estas especulações vão-me arrastando irremediavelmente à</p><p>conclusão �nal de que, com o tempo, nenhuma pro�ssão desfrutará de</p><p>melhores prerrogativas alimentícias do que a do crítico de arte. A penosa</p><p>tarefa de valorizar estes versos de impossível digestão que os nossos</p><p>poetas mais notórios andam cometendo em bandejas diárias estaria</p><p>�sicamente compensada com a sua publicação. E é muito provável que,</p><p>em seu regresso de Roma, Antonio Cardona Jaramillo nos proporcione a</p><p>surpresa de haver inventado um novo sistema de preparar macarrão e</p><p>que seja ao mesmo tempo o único e merecido título que o consagre na</p><p>literatura nacional.</p><p>A mola movida por GOG nessa providencial referência a Arturo</p><p>Laguado é francamente consoladora para aqueles, como nós, que</p><p>pretendemos fazer literatura como meio para nos manter a par da obra</p><p>que outros literatos, sem dúvida mais práticos e diretos, executam</p><p>diariamente nessas espécies de bibliotecas públicas que são os hotéis e os</p><p>restaurantes.</p><p>Sempre, em tais lugares, tenho sido um porta-estandarte</p><p>insubornável da gastronomia. Não vou dissimular, portanto, a satisfação</p><p>de me sentir identi�cado nas inclinações naturais com quem tem</p><p>reconhecidos títulos de primeiros atores no drama diário da boa</p><p>digestão. Entretanto, não esperei nunca que fosse o meu querido e</p><p>admirado GOG quem me permitisse o prazer de esclarecer que esta</p><p>magní�ca capacidade estomacal de que me orgulho não é comum, mas</p><p>nobilíssima e respeitável vocação literária. Queiram os deuses que</p><p>encontre sempre a oportunidade de pô-la em prática, a não ser que por</p><p>angustiosa e de�nitiva me conduza ao lírico e enciclopédico re�namento</p><p>da antropofagia.</p><p>O livro de Castro Saavedra</p><p>Se tivesse tido antes a oportunidade de ler os 33 poemas de Carlos Castro</p><p>Saavedra, não teria vacilado em dizer que é um dos melhores livros em</p><p>verso que se publicaram no ano passado neste país. O outro é Poemilla,</p><p>de León de Greiff. Editado nos desvalorizados caderninhos Espira, o</p><p>livro de Castro Saavedra não é só o único aceitável que está circulando</p><p>com essa marca editorial mas um dos bons livros de poesia que</p><p>apareceram na Colômbia desde o instante em que teve início a nossa</p><p>história literária.</p><p>Em torno de um título simples, agrupam-se 33 testemunhos de pura</p><p>e extraordinária beleza, prestados por uma voz elementar, masculina.</p><p>Poesia em bruto, como não ocorria entre nós desde que as gerações</p><p>literárias inauguraram o lirismo de �tinhas rosadas e trataram de impô-</p><p>lo como código de estética. Castro Saavedra resgata a poesia daquele</p><p>paraíso de evasão, daquele suspirante território onde o homem parecia</p><p>haver substituído seus hormônios por re�nadas seivas vegetais e se</p><p>enfrentava com uma morte inofensiva e benevolente. Em 33 poemas,</p><p>contudo, o poeta volta a ser homem. É outra vez o animal comum e</p><p>banal que vê apertar-se o cerco de angústia e sabe dizer isso com as suas</p><p>terríveis palavras de besta encurralada. Talvez assim a poesia tenha</p><p>menos açúcar, menos essências balsâmicas, mas é, em compensação,</p><p>densa matéria biológica. Poesia dolorida na carne viva do macho. Última</p><p>e dilacerante poesia testicular para resistir à diária investida da morte.</p><p>Talvez não seja necessário esclarecer que Castro Saavedra, com esse</p><p>impulso geológico que lhe faz vibrar a artéria do canto, está muito longe</p><p>de ser um poeta áspero, primitivo no modo de resolver os seus con�itos.</p><p>Sua força, sua vitalidade, não está simplesmente nas palavras, mas na</p><p>destreza com que amolda essas mesmas palavras a seus pontos de vista</p><p>humanos, à sua rebelde posição de homem atingido pelas correntes</p><p>naturais. Nesse clima, sua poesia já é um perfeito diapasão que pode</p><p>passar da angústia da rebeldia à angústia da ternura, e passar sem se</p><p>romper, em um perfeito equilíbrio de execução.</p><p>O erro fundamental de todos os nossos poetas — e as exceções são</p><p>tão poucas que não é necessário citá-las — consiste precisamente em que</p><p>se afundaram para sempre na catalepsia das palavras. Em conseqüência</p><p>disso, deixaram primar a onomatopéia sobre o sentido. E acreditaram ser</p><p>ternos quando elaboraram o poema com palavras suspirantes, ou</p><p>soberbos, quando o elaboraram com elementos vocabulares de</p><p>estridente e galopante sonoridade. O resultado foi esta poesia</p><p>inconsciente, sem lastro em ouro espiritual, que se distribui como um</p><p>lencinho de lágrimas em nossos mercados literários. E foi poesia</p><p>feminina, não exatamente por sua raiz de feminilidade, mas por seu</p><p>simples aspecto bem-proporcionado e �oral. Para esclarecer o sentido do</p><p>que está escrito talvez seja conveniente dizer que, sob esse aspecto, é</p><p>muito mais feminina toda a obra poética de Eduardo Carranza que um</p><p>único poema de Meira Delmar, outra de nossas notáveis exceções.</p><p>A de Meira é poesia feminina por seu sedimento, mas vigorosa por</p><p>sua densidade humana, por seu medido e trabalhado equilíbrio. A de</p><p>Carranza é feminina apenas pela postura com que se apresenta em</p><p>sociedade. E agora, depois disso, descobre com indissimulável amargura</p><p>que continua sendo e não será nunca senão uma re�nada e afetada</p><p>postura. Mas muito pouco mais.</p><p>Daí que o livro de Castro Saavedra haja resgatado para a nossa</p><p>poesia a verdadeira medida, a verdadeira voz não ampliada do animal</p><p>humano. Talvez Neruda e García Lorca ainda estejam frescos demais em</p><p>suas lembranças da escola primária. Mas a presença daqueles dois</p><p>grandes poetas mal se adverte em algumas palavras que, com o tempo,</p><p>irão se desprendendo em virtude de um fenômeno natural. É possível</p><p>que Castro Saavedra possa precipitar esse fenômeno e entregar-nos logo</p><p>a sua limpa voz total, elaborada com ingredientes de sua exclusiva</p><p>propriedade. Do modo como ele se apresenta em seus 33 cantos já é um</p><p>extraordinário poeta. O que se exige dele quando lhe recordo aqueles</p><p>dois nomes que tanto admira — Neruda e García Lorca — é</p><p>precisamente que se pareça mais a eles, que aspire a identi�car-se com</p><p>eles, em algo menos perecível e transitório do que as palavras.</p><p>Da</p><p>santa ignorância esportiva</p><p>Com esta santa ignorância de que me vanglorio — entre muitas outras</p><p>— em matéria de futebol, não posso menos que confessar meus</p><p>sentimentos de respeito por aqueles que se instalam em uma</p><p>arquibancada, desde as primeiras horas do dia e sob um sol que</p><p>certamente não deve ter nada de esportivo, para esperar que 11</p><p>cavalheiros vestidos de criança se empenhem em demonstrar a outros 11</p><p>igualmente vestidos que, com as extremidades inferiores, pode-se fazer,</p><p>em determinadas circunstâncias, muito mais do que habitualmente se</p><p>faz com a cabeça. Tanto mais profundo é o meu respeito para com os</p><p>pro�ssionais desse fanatismo esportivo quanto mais incapaz me sinto de</p><p>alguma vez chegar a descobrir o misterioso segredo do seu entusiasmo.</p><p>E ainda mais, se não fosse porque tenho notícias �dedignas de que o</p><p>mestre León de Greiff é um dos muito notáveis “torcedores” com que</p><p>conta o país — um “torcedor” com toda a sua barba e a casaca, além</p><p>disso — e porque quase diariamente tenho a satisfação de ler “Ulises”</p><p>mencionando em sua admirável seção os hierarcas do futebol com todos</p><p>os seus títulos nobiliários, além de outros que o próprio “Ulises” se</p><p>encarregou de inventar; se não fosse, �nalmente, porque todos os</p><p>domingos à tarde devo �car perambulando por estas ruas do Senhor, só</p><p>porque os meus mais admirados amigos — cuja compostura mental</p><p>respeito mais que tudo — foram gritar de sincero entusiasmo nas</p><p>arquibancadas, com tanta sinceridade como o �zeram diante de um</p><p>poema de Rilke ou um romance de William Faulkner; se não fosse por</p><p>todos estes fatores, digo, acreditaria que os insípidos, os loucos, são os</p><p>fanáticos esportistas. Entretanto, depois do que disse, não me resta um</p><p>recurso mais sensato que o de reconhecer que os insípidos e os loucos</p><p>somos os deste lado, os que nos emocionamos diante de um programa</p><p>de futebol quase tanto quanto frente à solução de uma equação de</p><p>segundo grau.</p><p>Tantos matizes tem esse esporte que em nosso país começou a se</p><p>transformar em uma suculenta indústria, que no último sábado sete mil</p><p>pessoas foram ao estádio da Cidade Universitária, em Bogotá, só para</p><p>presenciar o début do árbitro inglês Mr. Brenent Sindney, que —</p><p>segundo penso — para os fanáticos da capital signi�ca tanto quanto se</p><p>Virginia Woolf em pessoa fosse atuar de meio-campo. A verdade é que,</p><p>de acordo com a imprensa, parece que Mr. Sindney ofereceu um</p><p>espetáculo pouco comum em nosso meio. Um espetáculo de serenidade,</p><p>habilidade, ponderação, conhecimento, cortesia e todos os demais</p><p>adjetivos que usualmente se aplicam às pessoas cultas do Império</p><p>britânico.</p><p>Entretanto, ao contrário do que eu teria podido imaginar, Mr.</p><p>Sindney não foi ao gramado vestido de fraque, como era de supor em</p><p>um árbitro severamente inglês, mas com um traje de clássico modelo</p><p>esportivo, composto por umas calças pretas até os joelhos e uma</p><p>blusinha verde, pelo que se pode entender que o distinto árbitro mais</p><p>parecia, no trajar, um camponês escocês que um colegial londrino. Só</p><p>que, diferentemente do escocês, Mr. Sindney levava um apito em vez de</p><p>uma gaita tradicional.</p><p>Um fanático me dizia, em certa ocasião, �guradamente, que se</p><p>Dante, em lugar de se sentar para escrever versos, tivesse integrado o</p><p>pessoal dos Milionários, teria jogado como Pedernera.3 Não o duvido</p><p>um só instante. Pelo contrário, me satisfaz e entusiasma que seja assim,</p><p>porque �ca aberta a possibilidade de que o colégio de árbitros da</p><p>Inglaterra nos envie, numa próxima ocasião, em companhia de outros</p><p>Mr. Sindney, nada menos que Mr. Bernard Shaw, de calças curtas e</p><p>blusinha verde.</p><p>Ricardo González Ripoll</p><p>Há dez anos, quando fazia o ginasial em um triste e enevoado</p><p>povoadinho de Cundinamarca, Ricardo González Ripoll nos disse, a seus</p><p>colegas de internato, que a arquitetura é a pro�ssão que mais se parece</p><p>com a poesia. Por essa época tinha ele começado a olhar a vida detrás de</p><p>uns irreverentes óculos que lhe davam certos ares de menino precoce.</p><p>Era talvez o único habitante daquele povoadinho colonial que nunca</p><p>havia escrito um verso, nem aproveitado uma sessão solene para</p><p>pronunciar um discurso. Hoje, com o título de arquiteto recém-saído</p><p>dos fornos universitários, Ricardo continua sendo o colombiano</p><p>excepcional que não sofreu durante a sua melodramática adolescência o</p><p>sarampo da retórica versi�cada. E isso está muito certo, porque já está</p><p>disposto a demonstrar a tese de que a sua pro�ssão é a que mais se</p><p>parece à poesia, e vem demonstrá-la, como se diz, com quatro pedras na</p><p>mão. Poesia de elevadores e concreto armado, de paraísos funcionais e</p><p>cálculos de resistência, tão à moderna a ponto de que Ricardo aceitaria</p><p>�car meio calvo para se parecer um pouco com M. Le Corbusier.</p><p>Os amigos de González Ripoll, este montão de amigos que ontem</p><p>nos alegramos por vê-lo chegar um pouco atrasado para os carnavais,</p><p>sabemos há tempos que, se o dr. Augusto Ramírez Moreno tivesse sido</p><p>um pouco mais inteligente no vestir, talvez Ricardo estivesse nestas horas</p><p>legislativamente instalado na Câmara dos Representantes. Porque toda</p><p>vez que vemos vir na rua um casaco quadriculado, uma gravata cheia de</p><p>metáforas espectrais ou uma camisa sem um salvo-conduto para os</p><p>salões do classicismo ornamental, tememos que dentro dessa arrojada</p><p>composição de alfaiataria esteja Ricardo, para nos dizer, singelamente,</p><p>uma de suas últimas frases espetaculares.</p><p>O comum, quando o amigo de um jornalista recebe o seu título</p><p>universitário, é dedicar-lhe uma nota social. Neste caso, entretanto, pego</p><p>o atalho do classicismo precisamente com o propósito de evitar que</p><p>sobre González Ripoll sejam ditas mais de quatro verdades que possam</p><p>ser confundidas com uma nova edição, corrigida e ampliada, de todos os</p><p>lugares-comuns que tenham sido escritos até este momento. Tão grave é</p><p>este perigo, quanto mais que a ninguém estarão tão de acordo todos os</p><p>adjetivos com que se quali�cam os novos pro�ssionais nas crônicas</p><p>sociais, como a este inteligente amigo que chega hoje com os</p><p>nobilíssimos propósitos de elevar a uma respeitável categoria artística o</p><p>memorável e caluniado ofício da alvenaria. Se Ricardo foi um destacado</p><p>estudante, bom discípulo de Pitágoras e de toda a corte de sábios que</p><p>resolveram quebra-cabeças algébricos no abstrato paraíso das</p><p>matemáticas, logo virá quem oportunamente o diga. Se é um dos 25</p><p>mortais que têm capacidade de entender Einstein, logo haverá também</p><p>quem se esforce por estar entre os 15 que cheguem a entender González</p><p>Ripoll. Nós apenas nos limitamos a registrar sinceramente um</p><p>acontecimento de alta signi�cação em sua vida, como é a conclusão de</p><p>um curso universitário. Porque esta pode ser a pior “jirafa” que se tenha</p><p>escrito, mas indiscutivelmente é a que foi realizada com a melhor das</p><p>vontades.</p><p>A consciência de Pafúncio</p><p>O admirável desenhista George McManus é talvez o único mortal que</p><p>não sente nenhuma simpatia por Pafúncio, o simpático personagem de</p><p>sua própria criação. Há 35 anos o seu trabalho diário tem consistido</p><p>exclusivamente em tornar a vida insuportável a esse honesto chefe de</p><p>família, resignado e bonachão, cujas comovedoras tragédias domésticas</p><p>dizem bem da sistemática aversão que o criador sente pela criatura. É</p><p>claro que o generoso afeto que todos — casados ou solteiros — pusemos</p><p>em Pafúncio deve-se em grande parte a essa cômica situação de</p><p>encurralamento conjugal em que vive o sobressaltado marido de</p><p>Marocas. Mas é verdade também que McManus está abusando desse</p><p>recurso até o extremo de que, num dia qualquer, nós, os admiradores</p><p>dessa pobre família, vamo-nos introduzir à força no extravagante mundo</p><p>dos quadrinhos e, sem maiores rodeios, amordaçaremos Marocas,</p><p>expulsaremos os seus amarfanhados e ridículos irmãos, para levar</p><p>Pafúncio pela porta da frente e então se realize — por �m — esse</p><p>empanturramento de feijão com arroz que tantas vezes lhe fez fracassar</p><p>suas peripécias domésticas.</p><p>É necessário que na casa de Pafúncio se imponha de vez em quando</p><p>a igualdade</p><p>doméstica. Que se dê representação proporcional a cada</p><p>uma das partes nesse drama diário da vida matrimonial. Porque não é</p><p>direito que um homem pací�co e inofensivo ao extremo, como é</p><p>Pafúncio, tenha que suportar durante 35 anos a ditadura inabalável dessa</p><p>Marocas que já está fazendo sair do juízo a todos os possíveis Pafúncios</p><p>que todos os dias olhamos os touros da barreira de uma insegura</p><p>solteira.</p><p>McManus não se conformou — para criar problemas a seu</p><p>personagem masculino — em dar-lhe uma esposa determinada e</p><p>totalitária, além disso deu a essa mesma esposa um doentio gosto pela</p><p>música. Como se sua voz já não fosse su�cientemente desa�nada para</p><p>levar Pafúncio às raias da loucura, o admirável desenhista colocou, sem</p><p>nenhuma discrição, um piano de cauda no lugar mais visível da casa.</p><p>Finalmente, concebeu para a desgraça de Pafúncio aqueles cunhados</p><p>desbocados e vadios, pro�ssionais completos da vulgaridade e da</p><p>gastronomia. Mas talvez nada disso seria tão grave se a brilhante</p><p>imaginação de McManus não houvesse complementado a galeria trágica</p><p>com uma distante e inacessível taberna, onde o grande Perico prepara o</p><p>melhor feijão com arroz do mundo para uma família de amigos pouco</p><p>sérios. A idéia pode ser muito moderna — muito kaiana, como diriam</p><p>em Bogotá aqueles que nunca leram Kaa —, mas, de qualquer maneira,</p><p>estamos dispostos a nos decidir pelo classicismo em troca de que</p><p>Pafúncio, pelo menos uma vez, tenha a sua necessária e ambicionada</p><p>revanche.</p><p>Quis iniciar esta desinteressada campanha em favor do meu mais</p><p>admirado personagem porque, de dois dias para cá, McManus</p><p>introduziu um novo elemento que me parece disposto a complicar a vida</p><p>de Pafúncio a um ponto verdadeiramente inaceitável. Trata-se de um</p><p>duendezinho extravagante, de cartola e bastão, que se interpõe no</p><p>caminho de Pafúncio quando já foi posta em prática toda a estratégia</p><p>aprendida em trinta e tantos anos de exercício diário. O novo</p><p>personagem diz ser nada menos do que “a consciência de Pafúncio”. Mas</p><p>uma consciência adversa, inimiga, que desde o primeiro instante �cou</p><p>do lado de Marocas, com a maior desfaçatez. Ontem, por exemplo, no</p><p>momento em que Pafúncio ia expulsar a pauladas, merecidamente, um</p><p>de seus cunhados que sesteava no divã familiar, o duendezinho se</p><p>interpôs para impedi-lo de maneira arbitrária. Assim não é e nem pode</p><p>ser a consciência de Pafúncio. Se essa situação continua, não haverá</p><p>outro remédio senão pedir o divórcio. Porque tudo isso é sério.</p><p>Defesa dos ataúdes</p><p>O mais otimista dos mortais haveria de se perguntar, numa tarde como</p><p>esta, em que lugar do mundo está plantada a árvore que há de servir para</p><p>a fabricação do seu ataúde. Passando diante de uma hortaliça, muitos de</p><p>nós temos sentido, em alguma ocasião, o angustiante desejo de preparar</p><p>uma salada que nos faça viver por um instante o fervor quase religioso</p><p>com que os vegetarianos substituíram por insípidos legumes o singelo</p><p>pão nosso de cada dia. Talvez, recordando o maravilhoso período em</p><p>que fomos antropófagos, alguém tenha sentido, em outra ocasião, a</p><p>re�nada necessidade de preparar um suculento guisado com uma</p><p>qualquer das inumeráveis soberanas que passaram a ser agora —</p><p>gra�camente — o prato do dia da imprensa nacional. E até é possível que</p><p>esta insensibilidade, esta indolência, esta despreocupação que às vezes</p><p>nos surpreende não seja senão a recordação imemorial do tempo em que</p><p>pertencemos às escuras cavernas no reino mineral, a que outra vez</p><p>pertencerão os notáveis que, depois de habitar o transitório invólucro</p><p>carnal, ver-se-ão elevados ao mármore ou castigados no glorioso</p><p>purgatório de suas estátuas.</p><p>Contudo, do ponto de vista estritamente norte-americano, não se</p><p>resolve inventar para os mortos — como fazem os hindus — um destino</p><p>mais tranqüilo e cômodo que as sepulturas. O taciturno homem que</p><p>cava diariamente o buraco onde repousarão os seus ossos poderia ser</p><p>menos patético, mais natural e, é claro, muito mais poeta, se, em vez</p><p>desse diário labor de auto-sepultador precavido, se dedicasse ao paciente</p><p>cultivo de um carvalho ou de um cedro, próprios para a fabricação de</p><p>sua caixa mortuária. Talvez, sendo mais lento o processo, a vida lhe desse</p><p>a oportunidade de se prolongar uns anos mais no penitente exercício de</p><p>morrer porque não se morre. Com o seu espalhafatoso dramatismo,</p><p>porém, o taciturno homem não é mais do que um homem comum e</p><p>banal que se equivoca no símbolo tanto quanto se teria equivocado o</p><p>patriarca Noé, se, em vez de fabricar a arca bíblica, se houvesse dedicado</p><p>a praticar a natação para sobreviver ao dilúvio.</p><p>A tarefa de cavar a própria sepultura é tão despropositada como se</p><p>nós os homens construíssemos uma casa para refúgio, quando se acabe a</p><p>nossa roupa, sem pensar que é muito mais fácil e natural visitar</p><p>habitualmente o alfaiate. No �nal das contas — como dizem — a morte</p><p>pode ser apenas uma mudança de estado civil, mas é também, e com</p><p>maior exatidão, uma mudança de critérios a respeito do vestuário, uma</p><p>modi�cação substancial na maneira de se vestir.</p><p>Morrer é desprender-se para sempre desta camisa quadriculada,</p><p>destes sapatos ou daquela gravata espetacular, e começar a vestir</p><p>resignadamente o hábito vegetal com que nos apresentaremos a prestar</p><p>contas dos nossos atos, no dia em que o arcanjo resolver soprar as</p><p>trombetas com tão saudável sentido musical como fez Josué diante dos</p><p>muros de Jericó.</p><p>Nesse dia se convencerão os �lósofos de que não foram os</p><p>carpinteiros mas sim os agricultores que puseram o homem em</p><p>condições de se apresentar decorosamente aos metafísicos tribunais do</p><p>Juízo Final.</p><p>A exposição de Neva Lállemand</p><p>Escrevo esta crônica a poucas horas da inauguração, nos salões da</p><p>biblioteca departamental, da exposição de desenhos, pintura e escultura</p><p>da jovem artista barranquilheira Neva Lállemand.</p><p>É muito provável que razões completamente diversas do interesse</p><p>que me merece a obra de tão destacado símbolo da inteligência feminina</p><p>impeçam-me de assistir ao ato inaugural de sua exposição, mas é muito</p><p>possível também que a circunstância de não conhecer os seus trabalhos</p><p>no momento de escrever esta crônica seja conveniente para a admirável</p><p>expositora. Quero dizer, mais concretamente, que não sou um crítico de</p><p>arte e se uma coisa lamento de verdade é estar muito longe de sê-lo.</p><p>Apesar de tudo, com este tropicalismo que na maioria dos casos nos</p><p>induz, a nós colombianos, a emitir conceitos sobre questões de estética</p><p>sem estar su�cientemente preparados em tão difíceis disciplinas, poderia</p><p>orientar o meu entusiasmo ou a minha decepção em um sentido</p><p>equivocado, que possivelmente contribuiria para criar uma falsa opinião</p><p>— favorável ou desfavorável — a respeito da obra de uma artista que</p><p>naturalmente merece a atenção de uma crítica séria e especializada. Por</p><p>isso — e nada mais que por isso — alegro-me de escrever esta crônica</p><p>sem ainda conhecer a obra de Neva Lállemand, em quem, por outro</p><p>lado, reconheço qualidades que, sem margem a dúvidas, contribuíram</p><p>favoravelmente no desenvolvimento de sua extraordinária vocação</p><p>estética. Porque é a vocação e a admirável disposição para as artes</p><p>plásticas o que pude perceber há muitos anos neste valiosíssimo</p><p>exemplar da inteligência barranquilheira.</p><p>Conheci Neva Lállemand, ainda guardada pelos anjos da infância,</p><p>garatujando silhuetas e paisagens em seus cadernos da escola primária.</p><p>Por essa época, sua extraordinária beleza — quase absolutamente</p><p>européia —, sua prematura seriedade, sua �na e discreta postura davam-</p><p>lhe certo ar de mulher predestinada para os ofícios superiores do</p><p>espírito. Muito antes que sua idade a conduzisse a esta colina adolescente</p><p>onde vive agora respirando pura beleza, era já exatamente igual ao que</p><p>geralmente se conhece por mulher de atraente e de�nida personalidade.</p><p>Essa lembrança que tenho do tempo em que a artista estudava as</p><p>primeiras letras de sua apaixonante pro�ssão permite-me a�rmar — sem</p><p>comprometer minha venerável ignorância pictórica — que</p><p>a exposição</p><p>aberta nos salões da biblioteca departamental está garantida em nome de</p><p>um temperamento autêntico, de uma vocação exemplar, que, sem</p><p>dúvida, alcançou já uma técnica de execução somente possível aos que</p><p>— como Neva Lállemand — nasceram e cresceram à sombra propícia do</p><p>anjo da graça.</p><p>Prometo recolher, numa próxima ocasião, as opiniões autorizadas</p><p>que circulem, sem o salvo-conduto editorial, em torno da exposição de</p><p>Neva Lállemand. Qualquer que seja o seu sentido, a admirável artista</p><p>pode estar certa de que esse trabalho de repetição que me proponho a</p><p>levar a cabo não pretende senão contribuir para que ela mesma forme</p><p>um juízo exato da maneira como o público recebeu sua obra. Desse juízo</p><p>e do que, sem dúvida, produziu em Neva Lállemand a sua severa</p><p>autocrítica. Entendo que é isso o que os pintores perseguem quando se</p><p>submetem à prova de�nitiva de uma exposição, e porque assim entendo</p><p>é que me disponho a colaborar de maneira decidida com tão destacada e</p><p>apreciável cidadã da república espiritual.</p><p>Seja esta crônica, então, o registro de um acontecimento signi�cativo</p><p>para a cultura da cidade, como indiscutivelmente é a exposição que Neva</p><p>Lállemand acaba de abrir nos salões da biblioteca departamental.</p><p>Surrealismo suicida</p><p>Está vendo, Germán, as coisas que estão acontecendo na Bucaramanga</p><p>dos seus sonhos. Um cavalheiro cujo nome me reservo a dizer, embora o</p><p>jornal da capital que publicou a notícia não o tenha reservado, resolveu</p><p>escapar desse paradisíaco e repousado clima bumangués4 pela falsa porta</p><p>de um suicídio original. Conhece-se à saciedade o caso de suicidas</p><p>demagógicos, que antes de se precipitarem no vazio de um décimo andar</p><p>— como �zera o frustrado Natanael — resolvem soltar as rédeas de sua</p><p>colombianíssima vocação oratória e convocam, para acompanhar a sua</p><p>voluntária morte, um público capaz de admirar um discurso encerrado</p><p>com a tremenda �gura retórica de um salto-mortal, como o que</p><p>desgraçadamente não deram os parlamentares da minoria desde suas</p><p>bem remuneradas poltronas. Essa contida inclinação teatral, que só se</p><p>manifesta minutos antes de seu proprietário se submeter à arrepiante e</p><p>espontânea ruptura da própria cachola, deve ter parecido uma</p><p>inconcebível extravagância, indigna ante-sala da boa morte, a este</p><p>bumangués que na quarta-feira passada virou as costas à vida,</p><p>possivelmente com as mesmas terríveis e amargas palavras com que o</p><p>general Hermógenes Maza assim também �zesse.</p><p>O protagonista destas histórias tenebrosas não se enforcou no farol</p><p>municipal como pretendeu fazer o poeta em amargurada ocasião. Não</p><p>recorreu, como outros �zeram exagerando ao máximo, ao repetido e</p><p>chato exercício de fumar um naco de dinamite como se pretendessem, à</p><p>última hora, disfarçar-se de um Winston Churchill com desconhecidas</p><p>inclinações pirotécnicas. Tampouco se proporcionou a acrobática morte</p><p>de lugar-comum — morte de caixão sem caixão — com que os</p><p>ressentidos do amor resolvem em partida dupla os seus con�itos</p><p>sentimentais e os seus con�itos higiênicos, neste banho de um</p><p>quilômetro de altura que é o Salto de Tequendama.</p><p>O suicida de Bucaramanga tinha razões para não ser um suicida</p><p>vulgar pela mesma razão que as suas necessidades eliminatórias não</p><p>eram nem a perda da razão nem o exibicionismo da sem-razão. A sua</p><p>razão era demasiado razoável para satisfazê-la como qualquer dos</p><p>numerosos irracionais que se dedicam ao nobilíssimo esporte do</p><p>suicídio. Porque não sendo o desamor, nem a escassez de dinheiro —</p><p>nem sequer uma tristeza, o que é mais grave — a causa imediata de tão</p><p>extremada determinação, o respeitável cavalheiro bumangués viu-se na</p><p>necessidade de inventar, para problemas distintos, soluções distintas.</p><p>Suicidava-se — escreveu antes da morte — pelo suicídio em si mesmo,</p><p>pelo �losó�co prazer de abandonar o mundo voluntariamente. Como</p><p>quem diz: a arte pela arte.</p><p>E foi assim que na última quarta-feira ele chegou a um</p><p>estabelecimento do centro bumangués, pediu ao homem da cantina uma</p><p>limonada forte e, em lugar de misturá-la com cianureto — como manda</p><p>a ortodoxia — misturou-a com o conteúdo de dois cartuchos de fuzil.</p><p>Isso dá a entender que este cidadão exemplar tinha um elevado conceito</p><p>do seu próprio valor e que a sua não era uma vida qualquer, senão uma</p><p>respeitável vida com dois cartuchos de grosso calibre.</p><p>Analisando mais a fundo o caso, é necessário aceitar que esta</p><p>estranha maneira de viajar para o outro mundo obedece a misteriosas e</p><p>cabalísticas normas simbólicas. De acordo com o sistema clássico — que</p><p>nem sempre é o menos complicado —, os dois cartuchos devem ter</p><p>estado estritamente vinculados à indispensável cumplicidade do fuzil, se</p><p>é que o suicida queria chamar as coisas por seu nome e se administrar</p><p>dois tiros nobremente, segundo os usos e os costumes da comunidade</p><p>racional. Mas este sistema de se dar dois tiros por via oral, dissolvidos</p><p>em limonada e não em uma diabólica fumaçada, como ensinam os</p><p>acadêmicos de balística, não apenas é de um surrealismo novo, sem</p><p>precedentes, mas de uma originalidade desconcertante. É certo que com</p><p>este método evita-se a aparatosa e indiscreta marcha fúnebre da</p><p>detonação, que de qualquer modo é um lucro pouco modesto para um</p><p>suicida humilde, inimigo de tudo o que possa promover a publicidade.</p><p>Aceitando embora esse recurso silenciador, não consegue o comentarista</p><p>explicar-se por que o incompreendido suicida de Santander utilizou</p><p>ingredientes tão pouco indicados quando a boa dialética alcoólica</p><p>permite descobrir sem muito esforço que são mais saudáveis e efetivos os</p><p>projéteis dissolvidos em água mineral, não em limonada.</p><p>Cidades com barcos</p><p>Há cidades com barcos e cidades sem barcos. É a única divisão</p><p>admissível, a única diferença verdadeiramente essencial. Fora dela,</p><p>qualquer cidade tem uma torre, um armazém de víveres e um barbeiro</p><p>que, a�nal de contas, pode falar bem de Voltaire, como o do soneto, ou</p><p>detestá-lo incondicionalmente. Esta pode ser capital, aquela, modesta e</p><p>esquecida cidade sem história, ou com uma história recentemente escrita</p><p>à força por seus dignos conselheiros. É possível que haja cidades com</p><p>estátuas e cidades transitoriamente sem elas, ou que a mais afortunada</p><p>tenha um bispo santo com su�ciente sensibilidade para redigir suas</p><p>pastorais em hexâmetros gregos. Mas de qualquer modo, logo haverá</p><p>cidadãos progressistas — porque de certa maneira todas as cidades os</p><p>têm — que se decidam a aperfeiçoar as condições urbanas, se possível a</p><p>um extremo inigualável. E a�nal de contas, a diferença fundamental</p><p>continuará dependendo da ausência ou da presença dos barcos.</p><p>Dentro dessa divisão irremediável, talvez as mais tranqüilas, as mais</p><p>convencionalmente repousadas sejam as cidades a cuja margem não</p><p>crescerá nunca a alta e delgada �ora dos mastros. As outras, em</p><p>compensação, as cidades com barcos, estarão sempre transitadas por</p><p>uma secreta pulsação, por essa inesgotável corrente que move a invisível</p><p>cordoalha das viagens. Sempre farei o possível para estar nestas últimas,</p><p>porque em cada barco que atraca, em cada barco que zarpa há um ir e</p><p>vir da mesma cidade; um vaivém de navio que nos ensina a estar sempre</p><p>em instante de espera, em uma situação transitória que é como se em</p><p>cada barco estivéssemos esperando a nós mesmos.</p><p>Cada cidade com porto é um pouco Holanda, embora seus</p><p>habitantes não tenham batalhado contra o mar durante séculos para</p><p>resgatar uma parcela de terra onde semear tulipas; é um pouco França, e</p><p>todos os anos as rosas se tornarão duras, concretas, como se estivessem</p><p>respirando o ar familiar das estufas; é um pouco Alexandria com uma</p><p>parede branca de cal com sol e um imenso mercado à �or da água; é um</p><p>pouco Grécia e um pouco Bombaim e quase completamente as ilhas do</p><p>Pací�co, com pacientes tartarugas que fazem a digestão do tempo e</p><p>caracóis que põem canções retorcidas em vez de ovos. Todas as noites os</p><p>barcos trazem às cidades a rêmora insistente, pedacinhos de arranha-</p><p>céus e ônibus afundados da baía de Hudson.</p><p>E trazem jardins da</p><p>Califórnia, minerais do Chile, cavalos e mulheres da Arábia, pegadas de</p><p>homem sobre a neve da Rússia e noites muradas da costa do Labrador.</p><p>Cada vez que soa o apito de um barco à meia-noite, os dormentes da</p><p>cidade com porto sentem que o sono se torna mais adequado, mais</p><p>amigo e doméstico, e têm a certeza de que nada é impossível, nem</p><p>desconhecido para além de seus travesseiros. Porque os dormentes</p><p>sabem que o �o do apito não faz senão cortar a viagem, para ir deixando</p><p>em cada porto pedaços de uma viagem integral, medida com todas as</p><p>distâncias do mundo.</p><p>Ao amanhecer, o homem dos portos sabe se chegou um barco</p><p>durante a noite porque à hora do café o pão sabe a forno apagado e o</p><p>leite a estábulo conhecido, a bebedouro limpo, a pasto novo. E sabe se</p><p>zarpou um barco porque não há em sua casa rosto que não lhe seja</p><p>familiar, nem mãos que não tenham a linha do amor marcada com um</p><p>sulco profundo. E em todos os portos da terra, enquanto os barcos</p><p>navegam, há uma pura sensação de equilíbrio, uma certeza de</p><p>estabilidade permanente, como se cada palavra, cada gesto do homem</p><p>estivesse obedecendo ao nível da maré.</p><p>E a cidade com porto sabe que, quando amanhece mais tarde, é</p><p>porque em algum lugar do mar houve um naufrágio.</p><p>Héctor Rojas Herazo5</p><p>Héctor Rojas Herazo chega a Barranquilla em absoluto exercício de</p><p>poesia. Apesar de tudo, isso não é uma surpresa para os que conhecemos</p><p>o seu fervor, a sua vitalidade, o tom personalíssimo com que este poeta</p><p>extraordinário, destacado, convoca seres e coisas ao encontro do canto.</p><p>Durante sua permanência em Bogotá, a imprensa constantemente nos</p><p>trouxe sua voz. Lemos esse incrível testemunho de homem que é o seu</p><p>poema “El habitante destruido”, uma das obras fundamentais de nossas</p><p>letras. Falar de Rojas Herazo é uma maneira de se sentir acompanhado</p><p>por um universo de criaturas totais.</p><p>A sua é uma poesia elementar, cuja submissão à forma do canto é</p><p>possível apenas com a força com que o poeta enfrenta as suas angústias</p><p>interiores, pela destreza com que maneja os seus instrumentos</p><p>essenciais. Poesia exaltada, em bruto, a de Rojas Herazo não acontecia</p><p>entre nós desde que as gerações literárias inauguraram o lirismo de</p><p>�tinhas rosas e pretenderam impô-lo como código de estética. Rojas</p><p>Herazo resgatou-a do subsolo, libertou-a dessa falsa atmosfera de evasão</p><p>que a as�xiava e onde o homem parecia haver substituído os seus</p><p>hormônios por re�nadas seivas vegetais e se enfrentava com uma morte</p><p>inofensiva e benevolente. Rojas Herazo voltou a descobrir o homem. Em</p><p>seu canto adverte-se outra vez a presença febril do animal comum e</p><p>banal que vê apertar-se o cerco da angústia e sabe dizer isso com suas</p><p>terríveis palavras de besta encurralada. Talvez assim a poesia seja menos</p><p>�oral, menos carregada de atraentes ornamentos, mas é, em</p><p>compensação, densa matéria biológica. Poesia dolorida na carne viva do</p><p>macho. Última e dilacerante poesia para resistir à diária investida da</p><p>morte.</p><p>Em roda íntima, temos conhecido os últimos poemas de Rojas</p><p>Herazo. Gostaríamos de ouvi-los outra vez, em um ato público, que ele</p><p>mesmo oferecerá a esta gente de Barranquilla, à qual o poeta se encontra</p><p>ligado por sólidos vínculos, por íntimas ligações espirituais.</p><p>Aqui, nesta praia em que Meira Delmar canta a sua angustiada</p><p>canção de poesia verdadeira, Rojas Herazo sabe que existe um clima</p><p>propício para tornar conhecido o seu novo tom. O país atravessa uma</p><p>dura crise em matéria literária. A poesia, considerada até há pouco como</p><p>um dos nossos mais valorizados artigos de exportação, afundou em uma</p><p>dolorosa catalepsia, em um turvo lodaçal. A missão daqueles que</p><p>pretendam restituir à nossa cultura a sua perdida vitalidade é, pois, uma</p><p>difícil missão: estimular a sacudidela dessa poesia que está transformada</p><p>em uma inútil e inoperante adormecida. Rojas Herazo, como Carlos</p><p>Castro Saavedra, é um esteio indispensável a essa tarefa de recuperação.</p><p>Sua poesia vem marcada por uma herança legítima. Está situada no</p><p>meridiano de Silva, de Barba Jacob, de León de Greiff. Na linha do</p><p>homem. A única verdadeira e a única possível para que encontre, outra</p><p>vez, o rumo perdido do paraíso.</p><p>Abelito Villa, Escalona & Cia.</p><p>Meira Delmar não teria sido menos poeta se não fosse admiradora da</p><p>música vallenata — assim classi�cada por ser originária da região de</p><p>Valledupar —, mas, de fato, eu teria estranhado que ela não confessasse</p><p>essa admiração. Exatamente Abelito Villa, o mais conhecido dos</p><p>intérpretes e compositores dessa música, dizia a Manuel Zapata Olivella</p><p>e a mim, em uma noite de festa em Valledupar, que quem compõe um</p><p>merengue “é como aquele que faz uma gaiola”. Abelito — que nunca leu</p><p>o ensaio “Poesia inconclusa” de Andrés Holguín — é um cantor que sabe</p><p>“calar a tempo”, e como antes pediu Menéndez Pidal, conforme exige o</p><p>ensaísta citado, não procurou desarmar em peças a sua feliz frase,</p><p>deixou-a no ar, �utuando em seu ambiente de mistério e beleza. Nós</p><p>ouvintes — e não precisamente porque tivéssemos lido Andrés Holguín</p><p>— preferimos que a frase �casse sem esclarecimento, exatamente como</p><p>estava: “compor um merengue é como aquele que faz uma gaiola”.</p><p>Lembrei-me de tudo isso, porque um amigo santanderiano —</p><p>conhecedor das minhas fraquezas pelo vallenato — perguntou-me, faz</p><p>algumas noites, se me parecia melhor o bambuco6 que a música do</p><p>Magdalena. A pergunta, sem dúvida, servia à discussão; mas para uma</p><p>discussão que, a�nal de contas, teria sido desnecessária, porque em</p><p>substância poética talvez nada guarde uma relação tão íntima quanto o</p><p>vallenato e o bambuco. Vallenato e bambuco autênticos, naturalmente,</p><p>porque Guillermo Buitrago — que tinha uma bela voz de intérprete —</p><p>deixou alguns merengues que ele mesmo compôs e que são</p><p>verdadeiramente lamentáveis. Como é natural, com alguns bambucos</p><p>deve ter acontecido coisa semelhante. Não falta nunca um Bovea que</p><p>cante bem, mas sem esse sentido poético, sem esse escandaloso</p><p>sedimento de nostalgia que converte em matéria de pura beleza as</p><p>composições de Pacho Rada, Abelito Villa e Rafael Escalona.</p><p>Quem conheceu de perto os jograis do Magdalena — e são muitos</p><p>depois de Enrique Martínez, Miguel Canales, Emiliano Zuleta — poderá</p><p>servir-me de �ador na a�rmação de que não há uma única letra nos</p><p>vallenatos que não corresponda a um episódio determinado da vida real,</p><p>a uma experiência do autor. Um jogral do rio César não canta porque</p><p>quer, nem quando lhe dá na veneta, canta quando sente a necessidade de</p><p>fazê-lo, depois de ter sido estimulado por um fato real. Exatamente</p><p>como o verdadeiro poeta. Exatamente como os jograis da melhor estirpe</p><p>medieval.</p><p>Uma das características essenciais desses músicos silvestres é a sua</p><p>ingênua vaidade. Em conseqüência disso, surge a rivalidade entre os</p><p>diversos compositores, que muitas vezes põem �m a uma discussão —</p><p>mantida durante longas horas de acordeão a acordeão — com uma boa</p><p>briga. Talvez essa vocação, essa unidade pro�ssional, tenha sido a causa</p><p>de os acordeonistas terem um mundo à parte, uma religião própria, dos</p><p>quais muito poucos mortais têm tido notícias. Por isso os compositores</p><p>do Magdalena visitam com regularidade Pacho Rada, o velho patriarca</p><p>que tem o seu feudo espiritual nas regiões de Plato, como em uma</p><p>cerimônia indispensável para os que desejam continuar pertencendo a</p><p>essa santa irmandade dos acordeonistas. Foi precisamente em Plato que</p><p>Abelito Villa me contou aquela famosa história do Pontí�ce — Pacho</p><p>Rada — detido por um juiz arbitrário que provavelmente não contava</p><p>com o fervor popular que cerca o nosso maior acordeonista. A verdade é</p><p>que Pacho Rada sentou-se a tocar acordeão e a improvisar canções</p><p>dentro da cela até o momento em que o povo se amotinou, libertou o</p><p>preso e expulsou a pauladas o juiz. Desde então, nenhum jogral do</p><p>Magdalena é preso com o acordeão, que tem para eles muita coisa de</p><p>gazua, muito de chave mestra.</p><p>Para que nada faça falta nesse mundo diferente, lá está o grande</p><p>Lutero do vallenato,</p><p>o índio Crescencio Salcedo. De ascendência guajira,</p><p>este compositor — que é também “ervateiro”, como se diz — não aceitou</p><p>matricular-se na confraria e é um músico avulso, a quem os colegas não</p><p>reconhecem méritos nem dão ajuda de espécie alguma. Alguém,</p><p>entretanto, me disse — alguém que depois foi submetido às represálias</p><p>de Abelito Villa — que Crescencio Salcedo é nada menos que o autor de</p><p>Varita de Caña e El Cafetal. O que lhe dá, sem dúvida, su�cientes</p><p>méritos para ser um respeitável protestante.</p><p>Outro dia falaremos de Rafael Escalona e das vantagens que obteve</p><p>diante de seus colegas pela signi�cativa circunstância de se ter formado</p><p>no Liceu Celedón de Santa Marta. Escalona é hoje o intelectual do</p><p>vallenato e seus colegas de alpercatas e chapéu de aba larga — como o</p><p>“compadi” Chinuco — estão satisfeitos de que seja assim. Por hoje, os</p><p>leitores devem agradecer que tenha se acabado o pescoço desta “jirafa”.</p><p>Massagens na Bela Adormecida</p><p>Mirella Petrini é uma adolescente italiana — de cuja extraordinária</p><p>beleza os cabogramas dão testemunho — que durante os seus escassos</p><p>anos não fez nada senão viver com os pais em um modesto apartamento</p><p>das áreas mais pobres de Roma. Na casa de Mirella nunca houve talvez</p><p>um objeto decorativo. Talvez, dentro das quatro paredes em que</p><p>começou a amadurecer sua idade, só houve o espaço indispensável para</p><p>a austera mesa familiar. Essa precária e desventurada mesa do pós-</p><p>guerra italiano, sobre cuja limpa superfície sem toalhas a morte vai</p><p>deixando, hora após hora, suas migalhas de má levedura. Entretanto — e</p><p>embora não o digam os telegramas — é possível que detrás do</p><p>apartamento onde vivem os esposos Petrini haja um amplo terraço</p><p>comum para estender a roupa e uma janela em cujo parapeito arde, há</p><p>muito tempo, um vaso de �ores in�amadas. Como as donzelas liriais das</p><p>lendas românticas, Mirella deve ter crescido naquele mundo apertado,</p><p>cheirando, de um lado, a restos humanos, a cloaca, e, de outro, a esse</p><p>limpo ar mediterrâneo da campina romana. Ainda que não se tenha</p><p>podido saber o que motivou a extrema determinação da bela Petrini, é</p><p>necessário supor que conhecia a lenda da bela adormecida do bosque,</p><p>sua amorável história de donzela submersa no profundo letargo da</p><p>espera, e então a sua imaginação de mulher sobranceira levou-a a</p><p>converter-se — à falta de pão — em uma moderna versão de bela</p><p>adormecida. Porque na verdade, deve ter pensado Mirella, nem só de</p><p>pão vive o homem, mas também de sonho. Feita essa sábia re�exão,</p><p>deitou-se em seu leito (possivelmente repetindo as palavras de Hamlet:</p><p>“Dormir, dormir...”) e se entregou a um poético sono de barbitúricos que</p><p>já dura suas duzentas horas. Muito bem — eu me pergunto — a quem</p><p>cabe a culpa de que esta seja uma crônica com indisfarçáveis sinais de</p><p>mau gosto? Seria do autor ou da protagonista do episódio italiano que</p><p>em má hora resolveu de�nir os seus problemas com um suicídio como</p><p>qualquer outro? Acredito que nenhum dos dois, mas simplesmente a</p><p>época escolhida para levá-lo a cabo. Porque se esta história, em vez de se</p><p>desenvolver no moderníssimo instante do pós-guerra italiano, houvesse</p><p>se desenvolvido alguns séculos antes, teria sido uma história sublime,</p><p>suscetível de ser imitada profusamente por todas as belas adolescentes</p><p>do Mediterrâneo. Sonolenta em uma clínica em Roma, a adormecida</p><p>Petrini, como a bela do bosque, deve ter por sua vez um príncipe do</p><p>baixo mundo, que todas as tardes lhe cantava romanças com uma</p><p>melí�ua e operante voz de barítono sem oportunidades. Um príncipe</p><p>galante e esportivo, que muitíssima experiência deve ter no amor, mas</p><p>talvez não tanta nem tão efetiva a ponto de opor-se à ação dos</p><p>barbitúricos atuais.</p><p>Nessas lamentáveis circunstâncias, a bela adormecida, que fez</p><p>morrer de amor imaginário tantas donzelas, transforma-se agora em um</p><p>simples caso de emergência. Um caso urgente, como deve haver muitos</p><p>nas clínicas romanas, com complicações policiais e espertezas judiciais.</p><p>Seu corpo, porém, não será levado a uma luminosa cápsula de vidro,</p><p>esquecida em uma clareira do bosque, mas a ciência continuará</p><p>insistindo à sua volta, tentando romper o encanto com massagens e</p><p>agulhas hipodérmicas. Se a experiência não é bem-sucedida para Mirella</p><p>e amanhã ela desperta no apertado espaço de uma clínica, é possível que</p><p>se surpreenda que a tenham alimentado durante o sono, por condutos</p><p>diversos dos habituais, e que começou a engordar de um modo</p><p>inaceitável. Nada poderia ser mais vulgar. O fracasso não poderia ser</p><p>mais estrondoso. Porque se para uma coisa serve a ciência moderna é</p><p>para estragar uma história que poderia ter sido romântica e inutilizar</p><p>uma crônica jornalística que poderia ter sido, vários séculos antes, a</p><p>primeira versão da bela lenda.</p><p>O barbeiro presidencial</p><p>Na edição de um jornal governista apareceu há alguns dias a fotogra�a</p><p>do Exmo. Sr. Presidente da República, Mariano Ospina Pérez, no ato</p><p>inaugural do serviço de telefonia direta entre Bogotá e Medellín. O chefe</p><p>do Executivo, sério, preocupado, aparece na foto rodeado por dez ou 15</p><p>aparelhos telefônicos, que parecem ser a causa desse ar concentrado e</p><p>atento do presidente. Acho que nenhum objeto dá uma impressão mais</p><p>clara de homem atarefado, de funcionário dedicado por inteiro à solução</p><p>de complicados problemas dissímeis, quanto este rebanho de telefones (e</p><p>peço, entre parênteses, um aplauso para a metáfora, surrealisticamente</p><p>de mau gosto) que decora a foto presidencial. Pelo aspecto de quem faz</p><p>uso deles, parece que cada receptor fala com um diferente dos múltiplos</p><p>problemas de Estado e o senhor presidente se visse obrigado a estar</p><p>durante as 12 horas do dia tratando de encaminhá-los a longa distância</p><p>do seu remoto gabinete de primeiro magistrado. Entretanto, apesar dessa</p><p>sensação do homem incalculavelmente ocupado, o sr. Ospina Pérez</p><p>continua sendo, mesmo na fotogra�a de que me ocupo, um homem</p><p>correto no vestir, cuidadosamente penteados os �os de suas grisalhas</p><p>têmporas, suave e liso o seu queixo barbeado, como um testemunho da</p><p>freqüência com que o senhor presidente acode à íntima e e�caz</p><p>cumplicidade do barbeiro. E na verdade é esta a pergunta que me �z ao</p><p>contemplar a última foto do mandatário mais bem barbeado da</p><p>América: Quem é o barbeiro do palácio?</p><p>O sr. Ospina é um homem prudente, astuto, precavido, que parece</p><p>conhecer profundamente a índole daqueles que o servem. Seus ministros</p><p>são homens de sua inteira con�ança, nos quais não é possível imaginar</p><p>pecados contra a amizade presidencial, sejam em palavra ou</p><p>pensamento. O cozinheiro do palácio, se é que o palácio tem um</p><p>cozinheiro, deve ser um funcionário de irrevogável convicção ideológica,</p><p>que prepara com minucioso cuidado os guisados que, poucas horas</p><p>depois, servirão de fator altamente nutritivo para a primeira digestão da</p><p>República, e que deve ser uma boa e despreocupada digestão. Além</p><p>disso, admitido o caso de que até na cozinha do palácio penetrem,</p><p>clandestinamente, as mal-intencionadas calúnias da oposição, não faltará</p><p>um honesto provador na mesa dos presidentes. Se tudo isso sucede com</p><p>os ministros, o cozinheiro, o ascensorista, como será com o barbeiro, o</p><p>único mortal eleitor que se pode permitir a liberdade democrática de</p><p>acariciar o queixo do presidente com o a�ado gume de uma navalha? De</p><p>outra parte, quem será esse in�uente cavalheiro a quem, todas as</p><p>manhãs, o sr. Ospina comunica suas preocupações da noite anterior, a</p><p>quem relata, com cuidadosa minuciosidade, a trama de seus pesadelos, e</p><p>é, a�nal de contas, um conselheiro e�ciente como deve ser todo barbeiro</p><p>digno de sua pro�ssão?</p><p>Muitas vezes a sorte de uma república depende mais de um único</p><p>barbeiro que de todos os seus governantes, como na maioria dos casos</p><p>— segundo o poeta — a dos gênios depende da parteira. O sr. Ospina</p><p>sabe disso e assim, talvez, antes de sair para inaugurar o serviço</p><p>telefônico direto entre Bogotá e Medellín, o primeiro mandatário, com</p><p>os olhos fechados e as pernas esticadas,</p><p>entregou-se ao prazer de sentir</p><p>muito perto de sua artéria jugular o frio e irônico contato da navalha,</p><p>enquanto por sua cabeça passavam, em compacto des�le, todos os</p><p>complicados problemas que seria necessário resolver durante o dia. É</p><p>possível que o presidente tivesse informado o seu barbeiro de que</p><p>naquela manhã inauguraria um serviço telefônico perfeito, glória do seu</p><p>governo. “A quem vou chamar em Medellín?”, deve ter perguntado,</p><p>enquanto sentia subir o a�ado �o por sua garganta. E o barbeiro, um</p><p>homem discreto, chefe de família, transeunte nas horas de descanso,</p><p>deve ter guardado um prudente mas signi�cativo silêncio. Porque na</p><p>verdade — deve ter pensado o barbeiro — se ele, em lugar de ser o que é,</p><p>fosse presidente, teria assistido à inauguração do serviço telefônico, teria</p><p>pegado o telefone e, visivelmente preocupado, teria dito com voz de</p><p>funcionário e�ciente: “Telefonista, ligue-me com a opinião pública.”</p><p>Uma garrafa de �loso�a</p><p>Assim começaram as coisas. Alguns jornalistas franceses iniciaram há</p><p>dias uma campanha cerrada contra a Coca-Cola por considerar que a</p><p>garra�nha mundialmente conhecida não contém apenas uma bebida</p><p>refrescante, mas também — e em grau máximo — o segredo de uma</p><p>nova posição diante da vida. Tal re�exão — muito francesa por certo —</p><p>não teria passado de um primeiro passo para uma novíssima corrente</p><p>�losó�ca. Mas um norte-americano estabelecido em Paris, chamado Billi</p><p>Ross e proprietário de cabarés, resolveu que as coisas não �cariam desse</p><p>�losó�co tamanho e se negou a servir champanha francês em seus</p><p>estabelecimentos enquanto durasse a ofensiva contra sua compatriota</p><p>engarrafada. A revanche desencadeou a fera do escândalo e esta é a hora</p><p>em que a cultura francesa — cultura de vinhos antigos — se considera</p><p>ameaçada em suas raízes por essa outra cultura esportiva e refrescante —</p><p>cultura de fachada, como disse alguém — que se distribui a dez centavos</p><p>em todos os cantos do mundo. O civilizado habitante de Paris não quer</p><p>aceitar a realidade dessa nova obra de misericórdia que é ensinar inglês a</p><p>quem não sabe.</p><p>O curioso é que não é esta a primeira vez que a Coca-Cola se vê</p><p>comprometida em con�itos internacionais. Já se tinha misturado a</p><p>questões políticas durante a guerra entre árabes e judeus, quando se</p><p>decidiu pela criação do Estado de Israel. Os árabes, dispostos a não</p><p>abandonar a casa tradicional, decretaram o purgatório jejum da Coca-</p><p>Cola em sinal de protesto pela decisiva intervenção dos diplomatas</p><p>norte-americanos na criação de um pátio próprio para os judeus.</p><p>Daquela vez, como agora, toda uma nação concordou em reconhecer na</p><p>deliciosa bebida um mistério plenipotenciário do novo viver norte-</p><p>americano.</p><p>Os franceses dizem que cada “pausa que refresca” é uma brecha que</p><p>se abre na mentalidade dos seus compatriotas para que penetre por ela o</p><p>chiclete, o barulhento caça-níquel, o despenteado tipo do homem</p><p>público norte-americano, substancialmente diferente do esperto e</p><p>alinhado político francês. Cada moeda que se gasta em uma Coca-Cola é</p><p>uma contribuição favorável à preponderância do boogie-woogie sobre a</p><p>insinuante e nostálgica música da eterna Paris. A Coca-Cola, en�m, é</p><p>um estilo de vida sob cuja vigência os aprazíveis meandros do vale do</p><p>Mosela estariam dominados por esse grande cartaz litografado em que a</p><p>adolescente de suéter amarelo e meias soquetes não só recomenda uma</p><p>bebida refrescante, mas indiretamente uma maneira de vestir que</p><p>repugna o bom gosto francês. Em resumo, a campanha iniciada pelos</p><p>jornalistas culminou com a criação de um inteligente e signi�cativo</p><p>neologismo: Os norte-americanos — dizem em Paris — não puderam</p><p>colonizar a França, mas, em compensação, a estão “cocacolizando”.</p><p>Talvez agora possamos compreender os colombianos a que se referiu</p><p>o mestre León de Greiff quando designou com o apelido de “cocacolos”</p><p>os desorientados membros da tribo escrevinhatória.</p><p>Glosa com estrambote</p><p>Meu amigo e colega, o pragmático Pepe, fez chegar a minha mesa um</p><p>boletim da Metro-Goldwin-Mayer, segundo o qual os afortunados</p><p>cabeleireiros de Hollywood teriam eleito os seus protótipos. Entendo que</p><p>os sindicalizados realizaram sua reunião anual e, depois de longa e</p><p>profusamente deliberada tertúlia, chegaram às seguintes conclusões, que</p><p>transcrevo sem tirar nem pôr uma vírgula: “Protótipo moreno: Clark</p><p>Gable, porque, cortado do jeito que for o seu cabelo, sempre �ca bem.”</p><p>O que quer dizer — comenta a “jirafa” — que Clark Gable é um</p><p>homem de muita “paciência”, a quem se pode enganar de qualquer</p><p>maneira sem que isso lhe dê a menor preocupação.</p><p>Prossegue o boletim da Metro: “Protótipo ruivo: Red Skelton,</p><p>porque fala sozinho, poupando ao cabeleireiro o trabalho de animar a</p><p>conversa.”</p><p>Indiscutivelmente, Skelton é um homem precavido!</p><p>“Protótipo louro: Van Johnson, porque ri de todas as piadas que lhe</p><p>contam, por mais bobas que sejam.”</p><p>Naturalmente — diz a “jirafa” — cabe aos cabeleireiros procederem</p><p>de igual maneira quando assistirem aos �lmes de Johnson. Uma má</p><p>piada festejada é um empréstimo com juros.</p><p>“A pessoa cuja cabeleira” dizem os cabeleireiros de Hollywood</p><p>“gostaríamos de cortar: Howard Keel, porque há quatro anos não</p><p>podemos usar a tesoura em seus cachos, por culpa dos papéis que lhe</p><p>cabem no cinema e no teatro, e porque sua mulher jamais o viu com o</p><p>cabelo curto.”</p><p>Mistério! Que relação existe entre a mulher de Keel e o desejo dos</p><p>cabeleireiros? “Homem (fora de concurso) que mais nos agradaria rapar:</p><p>Bing Crosby. Nesta operação, demoraríamos um minuto inteiro.”</p><p>Quer dizer, os cabeleireiros de Hollywood gostariam de ter Bing</p><p>Crosby sob sua jurisdição porque poderiam deixá-lo o quanto antes.</p><p>“Ambiciosos projetos para 1950: ter Lana Turner por freguesa.”</p><p>Ah! será que os cabeleireiros de Hollywood não se limitam</p><p>santamente a cortar o cabelo?</p><p>Acho, amigo Pepe, que os autores do boletim deixaram de</p><p>mencionar como se sentiriam se numa manhã qualquer se apresentasse</p><p>em seu estabelecimento o próprio leão da Metro em pessoa, com o</p><p>propósito de fazer uma permanente. Quanto ao resto, tubo bem que</p><p>continuem redigindo boletins como este, porque lá a vida é um sonho, e</p><p>a “jirafa”, um simples e repousante trabalho de cabeleireiro.</p><p>P.S. — Os leitores da historieta “Bozzo”, que se publica em El</p><p>Especialista, estiveram de parabéns na quarta-feira passada. Naquele dia,</p><p>pela primeira vez, o misterioso homem do guarda-chuva apareceu de</p><p>frente para os leitores. Vale, claro que vale!</p><p>Motivos para ser cão</p><p>Se um dia desses me chateasse deste diário martelar sobre a paciência do</p><p>público e me fosse concedido o direito de ser alguma coisa</p><p>completamente diferente, e não tivesse limitações humanas — nem</p><p>mesmo limitações naturais — o exercício desse direito, eu me dedicaria a</p><p>ser esse cão gordo, transbordante de saúde, que perambula pelo setor</p><p>comercial da cidade e faz seu cômodo e habitual dormitório no café Japi.</p><p>Ninguém que tenha em boa ordem os cinco sentidos pôde privar-se de</p><p>um espetáculo tão invejável, tão maravilhoso, como o que oferece aquele</p><p>animal tranqüilo, parcimonioso, que fez da sua uma vida perfeita,</p><p>afastada de todo o mundano ruído, como sem dúvida não conseguiram</p><p>fazer os incontáveis e caluniados cães que no mundo foram. Talvez</p><p>nenhum agrupamento zoológico se pareça tanto ao do homem como o</p><p>dos caninos domésticos. Talvez, de outra parte, essa seja a razão que</p><p>entrelaça homens e cães em uma amizade proverbial, em um mútuo</p><p>exercício de colaboração diária. E até é possível que tenha sido o cão que</p><p>domesticou o homem, e não o contrário, como geralmente se acredita.</p><p>Encontramos assim cães vadios — como homens vadios — que se</p><p>deitam para dormir em qualquer lugar, sem se preocupar com que, no</p><p>dia seguinte, caia ou não sobre sua boca, como chovido do céu, o osso</p><p>nosso de cada dia. Há cães laboriosos, cumpridores do seu dever, que</p><p>realizam o trabalho cotidiano com uma dedicação de operários</p><p>responsáveis e participam, todas as noites, de reuniões no sindicato,</p><p>no</p><p>suplemento literário de El Espectador, de Bogotá. De maneira que nos conhecíamos de</p><p>nome. Inclusive eu já havia escrito um texto sobre esse conto, e talvez tenha sido por isso</p><p>que Gabo queria nos conhecer.21</p><p>A data desse primeiro contato permanece hipotética. Pode-se, não sem</p><p>certo risco, dizer que ele teve lugar em setembro de 1948. García</p><p>Márquez acredita ter conhecido Germán Vargas, Álvaro Cepeda</p><p>Samudio e Alfonso Fuenmayor22 no instante em que se perdia no mar do</p><p>Caribe, sem que houvesse tempestade ou mesmo um pedido de socorro</p><p>transmitido pelo rádio, o navio Euskera, que trazia de Havana para</p><p>Cartagena o Circo Razzore (ele próprio tratou do caso numa de suas</p><p>crônicas de El Universal). Esse misterioso naufrágio aconteceu nos</p><p>primeiros dias de setembro de 1948.23 Como detalhe, não deveria ser</p><p>mais do que um fato pitoresco e de medíocre �delidade. Contudo, há</p><p>algo mais: a crônica que García Márquez publicou em El Universal, em 6</p><p>de outubro desse ano. Nela, defende com entusiasmo o livro Una heroína</p><p>de papel, de Rafael Marriage. Esse texto polêmico fornece valiosas</p><p>indicações sobre as posições ideológicas e culturais de García Márquez</p><p>na época, mas no momento importa mais destacar que Marriaga fazia</p><p>parte do grupo de Barranquilla. Se García Márquez conheceu, leu e</p><p>defendeu com tanto ardor esse livro, é lícito supor que tenha sido</p><p>porque, na batalha que se desenrolava em torno de Una heroína de papel,</p><p>estavam envolvidos intelectuais que já eram seus amigos. A própria frase</p><p>inicial do seu comentário contém um detalhe concreto, que leva a pensar</p><p>que esse encontro já se tinha realizado (“Faz apenas quarenta dias que o</p><p>escritor barranquillero, Rafael Marriaga, fez a última revisão...”).24</p><p>Últimos dados que podem corroborar a possibilidade de uma</p><p>passagem de García Márquez por Barranquilla nos primeiros dias do</p><p>mês de setembro de 1948. Primeiro: seu chefe de redação em El</p><p>Universal, Clemente Manuel Zabala, passou ali alguns dias, em missão</p><p>jornalística,25 e García Márquez poderia perfeitamente tê-lo</p><p>acompanhado. Segundo: a crônica que García Márquez dedicou ao livro</p><p>de Marriaga é em alguns trechos semelhante à que lhe dedicou Alfonso</p><p>Fuenmayor em sua coluna “Aire del día”, do dia 6 desse mês.26</p><p>Com isso, pode-se chegar à conclusão de que o encontro de García</p><p>Márquez com o grupo ocorreu nessa época, e sobretudo que nada teve</p><p>de casual. García Márquez não pôde conhecer os membros do grupo da</p><p>mesma forma que o último Buendía de Cem anos de solidão conheceu os</p><p>quatro jovens amigos e discípulos do sábio catalão. Pelo menos através</p><p>de Clemente Manuel Zabala; e também, seguramente, da leitura da</p><p>imprensa regional, tinha de saber da existência do grupo e de suas</p><p>preocupações ideológicas, culturais e literárias, que coincidem com as</p><p>suas próprias.27 Os membros do grupo, de sua parte, como assim indica</p><p>o depoimento de Germán Vargas, conheciam seus contos e acreditavam</p><p>nele.28</p><p>Isso quer dizer que, em dezembro de 1949, quando García Márquez</p><p>passou novamente alguns dias em Barranquilla, voltou a rever os</p><p>membros do grupo e decidiu instalar-se ali para colaborar em El</p><p>Heraldo, não foi uma decisão precipitada, mas consciente. Após ter</p><p>pensado a respeito durante muitos meses, radicava-se no ambiente que</p><p>então melhor convinha a seus projetos de escritor e à sua formação de</p><p>jornalista.</p><p>*</p><p>Subsiste uma dúvida a respeito do momento em que García Márquez</p><p>estreou como colaborador de El Heraldo. Com alguma freqüência, no</p><p>rastro de sua produção jornalística, o pesquisador depara-se com o fato</p><p>de que leitores abusivos e fetichistas roubaram textos de García Márquez</p><p>das por vezes únicas coleções existentes: em alguns casos, foi arrancada</p><p>sem mais nem menos toda uma página de jornal; em outros, foi</p><p>cuidadosamente recortado com tesoura o artigo do futuro autor de Cem</p><p>anos de solidão. Assim aconteceu, felizmente não tanto como poderia ter</p><p>acontecido, nos volumes de El Heraldo conservados na sede do diário de</p><p>Barranquilla. E é de notar que a terceira página da edição de 19 de</p><p>dezembro de 1949 desapareceu. Como esta edição saiu dois dias após</p><p>Alfonso Fuenmayor ter saudado a presença de García Márquez em</p><p>Barranquilla, é de temer que um texto de García Márquez tenha</p><p>desaparecido com o roubo da página. A verdade é que sua verdadeira</p><p>estréia como colaborador regular de El Heraldo se deu em 5 de janeiro de</p><p>1950, com a primeira entrega da sua coluna “La Jirafa”, que ele sempre</p><p>assinou com o pseudônimo Septimus — a primeira de uma abundante e</p><p>sob vários aspectos admirável série de umas quatrocentas colaborações.</p><p>Iniciava-se, assim, um período que iria ser de intensa atividade</p><p>jornalística e de grande febre intelectual e literária. Além de escrever —</p><p>quase diariamente, de início — sua coluna de “La Jirafa”, alguns</p><p>editoriais29 e matérias não assinadas, García Márquez, segundo recordam</p><p>seus amigos,30 tomava a si a tarefa de selecionar entre os despachos</p><p>telegrá�cos que chegavam à redação do jornal os que deviam ser</p><p>publicados — o que lhe permitiu, muitas vezes, extrair deles o tema que</p><p>ele mesmo iria abordar em suas “jirafas” — e também desempenhava</p><p>funções de titulador, no que em pouco tempo conquistou um notável</p><p>grau de perfeição (no caso em questão, “La Jirafa” demonstra imensos</p><p>progressos em relação aos títulos de suas crônicas escritas em</p><p>Cartagena). Intui-se que tanta atividade não devia ser muito propícia</p><p>para a tranqüila redação de uma coluna humorística, e é evidente que</p><p>em mais de um caso García Márquez deve ter buscado</p><p>desesperadamente um tema (a ponto de chegar a escrever sobre a falta</p><p>de assunto), o que explica o fato de ter por várias vezes reescrito ou</p><p>retomado textos já publicados em El Universal, de Cartagena, ou se</p><p>valido de anotações pessoais e até de seus papéis de escritor.</p><p>Paralelamente, continuava desenvolvendo seu trabalho de contista</p><p>(embora se suponha que, em grande parte ou na sua totalidade, os textos</p><p>de �cção que publicou no primeiro semestre de 1950 se originavam de</p><p>seus tempos em Cartagena) e suas re�exões estéticas, antes de iniciar, lá</p><p>para junho de 1950, a redação de A revoada. E tudo isso em meio à</p><p>inquietação — intelectual, festiva, alcoólica e prostibular, no fundo séria,</p><p>mas sem transcendentalismo — da vida coletiva desenvolvida pelo</p><p>grupo. Fatos marcantes dos primeiros meses vividos em Barranquilla são</p><p>a viagem de Ramón Vinyes e o retorno de Álvaro Cepeda Samudio,</p><p>ambos citados em “La Jirafa”. Como Vinyes partiu no dia 15 de abril de</p><p>1950, na realidade foi muito curto o tempo que García Márquez</p><p>conviveu com o sábio catalão,31 embora este — segundo lembra o</p><p>escritor — lhe tivesse dado alguns conselhos valiosos sobre os originais</p><p>que teve tempo de mostrar-lhe e submeter a seu julgamento.32 A</p><p>correspondência que Vinyes manteve com Germán Vargas, entre sua</p><p>volta a Barcelona e sua morte, em 5 de maio de 1952, demonstra o</p><p>interesse que lhe merecia o trabalho literário de García Márquez.33 A</p><p>volta de Álvaro Cepeda Samudio, com seu �amejante título de jornalista</p><p>obtido em uma universidade norte-americana e sua inata vitalidade,34</p><p>também deve ter signi�cado muito: Cepeda trazia um conhecimento</p><p>vivo do que havia de mais novo na �cção americana — tão fundamental</p><p>para os membros do grupo —, seus conhecimentos e idéias a respeito do</p><p>cinema, seus às vezes agressivos conceitos a respeito do que devia ser um</p><p>jornalismo moderno.</p><p>Um acontecimento essencial desse intenso ano de 1950 é a</p><p>publicação do semanário Crónica, cujo primeiro número saiu em 29 de</p><p>abril. A história desse tablóide de Barranquilla torna-se bastante difícil</p><p>de ser evocada, na medida em que até agora dele ainda não apareceu</p><p>uma única coleção completa. Nenhuma biblioteca pública da Colômbia a</p><p>possui.35 A revista era de apresentação muito pobre, combinando</p><p>temerariamente literatura e esporte — quando o público era escasso em</p><p>relação à primeira e sobrava em relação ao segundo —, mas a ambição</p><p>de seus colaboradores era fazer,</p><p>onde resolvem, se as coisas estão muito duras, organizar uma passeata à</p><p>base de eloqüentes latidos de reivindicação e públicas ameaças de</p><p>morder o amo. Há cães poetas, idealistas e românticos, cães que deixam</p><p>crescer o cabelo e passam a noite em claro, latindo liricamente à lua.</p><p>Cães anarquistas que se rebelam até contra a bondade da água e saem às</p><p>ruas protestando contra as instituições vigentes, contra a organização</p><p>universal, soltando terríveis uivos de inconformismo e deixando uma</p><p>mordida de morte em cada perna. Cães políticos há — e em igual</p><p>proporção à dos homens — com admiráveis dotes oratórios, quase</p><p>sempre a serviço de uma fórmula demagógica, com o objetivo de</p><p>convencer seus semelhantes, furiosamente, de que têm direito de viver</p><p>comodamente durante 360 dias porque latiram de praça em praça</p><p>durante cinco. Cães advogados que levam a vida esperando por uma</p><p>briga para se interpor entre os cães litigantes e dar, a�nal, a melhor</p><p>mordida. Cães proletários de uma admirável fecundidade. Cães</p><p>aristocratas com coleiras de ouro, descendentes em linha direta de</p><p>Argos, o cão homérico que fez seu último movimento de rabo quando</p><p>Ulisses regressou à casa de Penélope, ou do que mordeu o patriarca Noé</p><p>que tratava de introduzi-lo à força na arca. Cães charlatães, cães</p><p>farsantes, cães policiais. Cães maravilhosos, re�nados, que só apóiam a</p><p>pata apertada em árvores aromáticas; e cães modernos, civilizados, que</p><p>só a apóiam nos metálicos postes de iluminação elétrica. E �nalmente,</p><p>não há apenas cães carnívoros, mas também — segundo a conceituada</p><p>a�rmação do pintor Orlando Rivera — cães vegetarianos em Campeche,</p><p>que se alimentam única e exclusivamente de milho moído.</p><p>Mas de todos eles, talvez o único cão �lósofo é o que dorme todos os</p><p>dias, bem à vontade, no umbral do café Japi, como dormiu o outro a sua</p><p>mediocridade versi�cada “no umbral da poeirenta porta”. Possivelmente</p><p>este cão ideal nem sequer tem o vulgar distintivo de um nome. Não tem</p><p>— como os outros homens — preocupações cotidianas, porque sabe que</p><p>ao despertar todo o setor comercial está na obrigação de alimentá-lo.</p><p>Não morde ninguém, não late para ninguém, porque o mundo é</p><p>imperfeito demais para que um cão se interesse por fenômenos</p><p>transitórios. É o cão sábio, reservado, desdenhoso, indiferente, que um</p><p>dia fez cortar o próprio rabo — porque é um cão sem rabo — para se</p><p>livrar até dos próprios e naturais sentimentos. Mas raivosamente</p><p>individualista, porque não sacode o rabo diante do regresso de ninguém.</p><p>A orfandade de Tarzan</p><p>Como aconteceu com Popeye, o marinheiro, Tarzan sobreviverá por</p><p>muitos anos a seu criador, Edgar Rice Burroughs, que morreu ontem em</p><p>um lugar qualquer da Califórnia.</p><p>Durante os dias vindouros, o intrépido aventureiro da selva</p><p>continuará se desenvolvendo em seu mundo primitivo, com a maior</p><p>naturalidade, sem levar em memória de quem lhe deu vida e prestígio</p><p>nem mesmo uma faixa preta em sinal de luto. Mas isso é, por outro lado,</p><p>muito justi�cável, porque, se é verdade que Burroughs criou um tipo de</p><p>homem relativamente sobrenatural, caracterizou de modo tão de�nitivo</p><p>a sua criação que agora Tarzan não é o mesmo cavalheiro selvático que</p><p>há alguns anos apareceu no admirável universo dos quadrinhos com o</p><p>extraordinário antecedente de haver sido amamentado pela fêmea de um</p><p>orangotango. Agora é — para o companheiro de colégio — mais bem</p><p>dotado �sicamente, o mais hábil nos exercícios acrobáticos. É nas</p><p>piscinas o assistente que demonstra ter a melhor aptidão natatória. E,</p><p>por extensão, entendo que as damas consideravelmente robustecidas e</p><p>machonas recebem também, pelas costas naturalmente, esse nome de</p><p>tão musculada signi�cação. Como é natural, não estou descobrindo</p><p>coisa nenhuma nem pretendendo provar que só o personagem criado</p><p>por Burroughs conseguiu tão grande popularidade. É certo que na</p><p>espécie humana há Quixotes, há Sanchos, há Karamázovs, há Robinsons</p><p>Crusoés, há Pantagruéis, mas é indiscutível também que, em uma ou</p><p>outra forma, a lembrança desses personagens está intimamente ligada ao</p><p>nome do seu criador. Mais ainda, no caso da literatura, realiza-se um</p><p>processo inverso ao que se está descobrindo nos quadrinhos. Na obra</p><p>literária, Cervantes é agora o que é por haver conseguido um Quixote;</p><p>Dostoiévski, por haver entregue ao mundo um Karamázov ou um</p><p>Raskolnikob; Rabelais, por haver imposto um Gargântua e um</p><p>Pantagruel. Com os quadrinhos, em compensação, acontece que os</p><p>personagens vivem, incorporam-se ao vocabulário comum e se tornam</p><p>famosos por suas próprias atividades, sem que ninguém leve em</p><p>consideração qual é o nome do criador de Dick Tracy, se está falando de</p><p>fatos, como o são — e indiscutivelmente por certo — estes, e assim como</p><p>na esquina há um Gargântua, na outra há um Avivato e mais além um</p><p>Super-Homem e, �nalmente, um Popeye extravagante e descomunal. Se</p><p>isso signi�ca que a humanidade está em uma lamentável decadência, boa</p><p>hora para que os outros o digam. Mas não nos vai custar muito trabalho</p><p>admitir que o gênero preponderante dessa decadência não é tanto o</p><p>cinema mas os quadrinhos.</p><p>Estou certo de que muitos dos admiradores de Tarzan terão se</p><p>surpreendido, ao ler a notícia fúnebre, de que o criador do homem-</p><p>macaco tivesse um nome tão difícil. Mas nem por isso vão se preocupar</p><p>para saber quem é o autor de todas as historietas que, dia a dia, vêm</p><p>acompanhando com justi�cável atenção nos jornais nacionais.</p><p>E como esta nota não pretendia senão registrar um fato, deixo aos</p><p>profundos ensaístas — com os seus incisivos instrumentos — a tarefa de</p><p>explicar por que os personagens dos quadrinhos se tornam famosos e</p><p>enriquecem as expressões populares sem que o público se interesse por</p><p>conhecer os nomes daqueles que lhes deram vida. Que outros o</p><p>averigúem, porque eu — para ser franco — perdi o �o desde o princípio.</p><p>Cidadãos do outro mundo</p><p>Quando Jack Garvey chega, todos os dias às oito, a seu gabinete no</p><p>Museu Nacional de História, em Nova York, encontra uma compacta �la</p><p>de sérios e silenciosos cavalheiros esperando vez para se inscreverem na</p><p>primeira excursão interplanetária que se realizará em 15 de março de</p><p>1975. A nave sairá do Central Park de Nova York a uma velocidade</p><p>muito acima da supersônica e isso lhe permitirá estar em uma adequada</p><p>pista de aterrissagem, construída na Lua, ao cabo de umas poucas horas.</p><p>Jack Garvey deu início, desde agora, a todo o programa publicitário que</p><p>caberá desenvolver a quem se empenha em uma empresa séria,</p><p>transcendental como nenhuma outra. Talvez as duzentas pessoas que até</p><p>agora se inscreveram para o primeiro vôo de turismo interplanetário se</p><p>chamem ainda Martín Alonso Pinzón, Juan de la Cosa, e estejam</p><p>dispostas a tripular os espaços siderais com as mesmas pretensões</p><p>colonizadoras com que os espanhóis o �zeram por mares desconhecidos.</p><p>Talvez, entre esses duzentos, se encontre um Rodrigo de Triana norte-</p><p>americano, que já praticou diante do espelho, a portas fechadas, a atitude</p><p>declamatória com que, numa madrugada de 1975, gritará de sua proa</p><p>estratosférica: “Lua! Lua!”</p><p>Vinte e cinco anos não é muito tempo para este novo Cristóvão</p><p>Colombo que não terá necessidade de repetir o episódio do ovo, ao</p><p>retornar de sua primeira viagem, porque, se de uma coisa estamos</p><p>convencidos os mortais de hoje em dia, é de que Jack Garvey irá à Lua. E</p><p>— o cúmulo das antecipações — é possível que retorne. Além disso, a</p><p>coisa será agora muito mais simples, pois nem sequer a sra. Truman se</p><p>verá na obrigação de arriscar suas jóias e colares para apoiar a empresa.</p><p>O que se pergunta é se a história vai-se repetir com exatidão. Se</p><p>depois da travessia o almirante Garvey retornará à Terra com uma boa</p><p>porção de selenitas, como testemunho irrefutável dos seus</p><p>descobrimentos, ou se terá de regressar em uma vergonhosa retirada,</p><p>perseguido de perto por uma beligerante e poderosa esquadrilha de</p><p>discos voadores.</p><p>Segundo informa o telegrama, há várias mulheres na lista de</p><p>inscrições. Mulheres que certa noite</p><p>antes de tudo, um bom jornalismo.36</p><p>Alfonso Fuenmayor era diretor de Crónica, e García Márquez, o chefe de</p><p>redação. No vigoroso corpo editorial �guravam todos os membros do</p><p>grupo e mais alguns colaboradores, porém é evidente que, salvo a</p><p>assídua participação de Germán Vargas, quem de fato trabalhava era</p><p>Alfonso Fuenmayor e García Márquez. Este, além das tarefas normais de</p><p>um chefe de redação, dedicava-se a traduzir (do francês) ou a condensar</p><p>contos policiais estrangeiros, a desenhar ilustrações37 para artigos de tipo</p><p>magazine (geralmente tirados de revistas norte-americanas, e algumas</p><p>vezes de publicações européias), e também a paginar o semanário.</p><p>Apesar da pobreza dos meios de que dispunha, Crónica não tardou a</p><p>apresentar um aspecto elegante, eliminando com notável rapidez os</p><p>defeitos de paginação que enfeavam o primeiro número. Sem dúvida, a</p><p>pequena revista signi�cou mais um passo positivo na formação</p><p>jornalística de García Márquez, da mesma forma que seu trabalho com</p><p>os contos policiais ajudou em sua aprendizagem literária. O que hoje</p><p>mais chama atenção, nos sumários de Crónica,38 são os textos literários</p><p>estrangeiros e colombianos que foram aparecendo semana após semana,</p><p>a partir do primeiro número. Os contos estrangeiros revelam os gostos</p><p>literários do grupo, ou, melhor dizendo, con�rmam as preferências que</p><p>já se vinham manifestando de anos para cá nas crônicas de Ramón</p><p>Vinyes, de Alfonso Fuenmayor, Germán Vargas e, menos</p><p>freqüentemente, de Juan B. Fernández Renowitzky. Em Crónica, o conto</p><p>nacional estava representado principalmente pelos escritores do grupo:</p><p>José Félix Fuenmayor, García Márquez e Álvaro Cepeda Samudio, que</p><p>publicaram respectivamente sete, seis e quatro contos no tablóide. Outro</p><p>intelectual de Barranquilla, Julio Mario Santodomingo, hoje dono de</p><p>uma das maiores fortunas da América Latina, e então ligado ao grupo</p><p>(integrava o comitê editorial do semanário), também contribuiu com um</p><p>interessante conto no nº 4. Sem sombra de dúvida, essas contribuições</p><p>literárias locais �zeram de Crónica a melhor publicação, na época, da</p><p>Colômbia (levando-se em conta inclusive a existência de Crítica, dirigida</p><p>por Jorge Zalamea), e uma das melhores já aparecidas no país. Esse</p><p>estupendo nível não impediu que fosse decaindo o interesse que seus</p><p>promotores sentiam pela revista. O último conto de García Márquez</p><p>apareceu em dezembro de 1950, e já nessa época haviam deixado de</p><p>colaborar Álvaro Cepeda e José Félix Fuenmayor. O nível das</p><p>contribuições começara a deteriorar-se em setembro; a partir de</p><p>dezembro de 1950, até o de�nitivo desaparecimento da revista (ao que</p><p>parece, em junho de 1951), Crónica não apresentava senão alguns</p><p>poucos nomes de interesse, todos literários e de origem estrangeira. O</p><p>próprio García Márquez, numa data imprecisa, deixou a che�a da</p><p>redação, embora continuasse auxiliando por algum tempo Alfonso</p><p>Fuenmayor.39 Mas o certo é que o brilhante e modesto tablóide, com a</p><p>sua mui caribenha ausência de solenidade, já havia marcado uma etapa</p><p>capital no panorama literário da região, da Colômbia e do continente, e</p><p>signi�cara uma experiência bastante original no campo jornalístico.</p><p>A decadência de Crónica, que se precipitou em janeiro de 1951, teve</p><p>algo a ver com a ausência de García Márquez, um distanciamento não</p><p>apenas das atividades da revista, mas também de Barranquilla. Em</p><p>fevereiro de 1951, sem deixar de colaborar em El Heraldo, García</p><p>Márquez voltou a Cartagena. Foi na época em que seus pais e irmãos se</p><p>mudaram de Sucre,40 devido a uma difícil situação econômica. García</p><p>Márquez obteve do diretor de El Heraldo um empréstimo para ajudar o</p><p>pai (dinheiro destinado à compra de móveis, segundo parece recordar</p><p>Alfonso Fuenmayor), dinheiro que iria devolvendo aos poucos com</p><p>“jirafas” e editoriais. Na edição de El Heraldo de 10 de fevereiro de 1951,</p><p>uma nota anônima assinala sua partida; o redator, mal informado,</p><p>a�rma que García Márquez regressa a Bogotá para continuar seu curso</p><p>de Direito. O lugar de destino não é correto, mas a �nalidade indicada</p><p>sim. García Márquez tinha a intenção de terminar seus estudos,41 só que,</p><p>ao chegar à Universidade de Cartagena para matricular-se, inteirou-se de</p><p>que precisaria repetir o terceiro ano por haver perdido três matérias em</p><p>1949. Preferiu então ausentar-se para sempre das salas universitárias. De</p><p>Cartagena, foi remetendo para El Heraldo “jirafas” e editoriais, até que</p><p>saldou sua dívida: então, em princípios de julho de 1951, suspendeu sua</p><p>colaboração no diário de Barranquilla.42</p><p>São poucos os dados que se podem conseguir a respeito das</p><p>atividades de García Márquez em Cartagena durante o período que vai</p><p>de fevereiro de 1951 a fevereiro de 1952. Segundo lembram alguns dos</p><p>seus parentes e ele próprio, �gurou na lista dos empregados ocasionais</p><p>que, em Cartagena, colaboraram no censo populacional de 1951. Seu pai</p><p>conseguira que ele e seu irmão Gustavo fossem contratados, mas a</p><p>desordem administrativa era tal que sua única atividade consistiu em</p><p>cobrar um ordenado, sem dúvida útil para o orçamento doméstico, mas</p><p>de forma alguma merecido, já que nem ele nem seu irmão trabalharam</p><p>efetivamente no censo. Lembra ele também que voltou a colaborar em El</p><p>Universal para ganhar dinheiro, mas o certo é que sua assinatura não</p><p>voltou a aparecer nas páginas do diário de Cartagena. Limitar-se-ia, por</p><p>conseguinte, a um anônimo trabalho de redação (pelo menos nos</p><p>primeiros meses tal discrição se justi�cava, em vista de continuar</p><p>colaborando em El Heraldo, de Barranquilla).</p><p>Nesse ano transicional vivido em Cartagena é que se situa uma outra</p><p>aventura de alguma importância na trajetória jornalística de García</p><p>Márquez. Trata-se de uma outra experiência, muito mais breve e</p><p>modesta do que aquela da Crónica, mas bastante original sob certos</p><p>aspectos, embora ainda mais difícil de ser inteiramente conhecida. Entre</p><p>18 e 23 de setembro de 1951 apareceram entre duas e seis (mais</p><p>provavelmente, duas) edições de um pequeno periódico chamado</p><p>Comprimido, do qual García Márquez era o diretor — e talvez o único</p><p>redator. Parece que de Comprimido não existe mais um só exemplar.</p><p>Sabemos de sua experiência por alguns documentos que estão com</p><p>Antonio J. Olier, veterano jornalista de Cartagena.43</p><p>Uma nota anônima publicada no dia 20 de setembro no Diário de la</p><p>Costa, de Cartagena, assim descreve Comprimido:</p><p>Comprimido deve ser de interesse para o comerciante, já que se trata de um veículo de</p><p>propaganda que o põe em contato direto com o público, que o lê com avidez.</p><p>Alegra-nos saudar o novo colega, que consta de oito páginas numa dimensão de</p><p>sessenta centímetros, e aplaudimos a iniciativa do colega Dávila Peñaloza, seu gerente e</p><p>proprietário.</p><p>Outra nota sem assinatura (presumivelmente de Clemente Manuel</p><p>Zabala), publicada na seção “Comentarios”, de El Universal do dia 19,</p><p>dava alguma idéia do conteúdo da pequena publicação:</p><p>Começou a circular ontem em Cartagena um dos menores periódicos do mundo,</p><p>administrado por Guillermo Dávila e dirigido por Gabriel García Márquez. Trata-se de</p><p>Comprimido, que circulará todas as tardes e cuja proposta é inovar o modo de fazer</p><p>jornalismo, tratando as notícias com a brevidade e a eloqüência de uma pílula composta</p><p>dos assuntos mais interessantes e atuais.</p><p>Comprimido, cuja distribuição é gratuita, se manterá à margem das atividades</p><p>políticas e sua �nalidade é exclusivamente a de facilitar à opinião pública uma</p><p>informação rápida dos acontecimentos do dia, de forma amena e simples.</p><p>Através desses dois depoimentos pode-se ter uma idéia aproximada do</p><p>que foi Comprimido. A segunda nota citada, a primeira que apareceu, a</p><p>de El Universal, tem, além disso, a vantagem de reproduzir (é impossível</p><p>dizer se parcial ou totalmente) o editorial do primeiro número,</p><p>evidentemente de García Márquez. Este é o texto reproduzido por El</p><p>Universal:</p><p>Comprimido não é o menor periódico do mundo mas aspira a sê-lo, com a mesma</p><p>laboriosa tenacidade com que outros aspiram</p><p>a ser os maiores. Nossa �loso�a consiste</p><p>em aproveitar em benefício próprio as calamidades que conspiram contra o jornalismo</p><p>moderno. O custo elevado do papel e a escassez de anúncios e de leitores favorecem</p><p>nosso êxito, já que nos colocam na circunstância de reduzir cada vez mais nossas</p><p>proporções. Esta iniciativa — como os empréstimos a juros altos — tem o privilégio de</p><p>prosperar à custa de sua própria falência.</p><p>Ao iniciar nossos trabalhos, saudamos a imprensa nacional, o comércio, a sociedade</p><p>em geral e nos comprometemos a cumprir, na medida de nossas forças, esta aventura</p><p>diária, cuja chave consiste em endereçar todas as tardes um telegrama urgente à opinião</p><p>pública.</p><p>Além dos textos citados na nota, Antonio J. Olier conserva uma folha</p><p>mimeografada que deveria ter sido o editorial do último número de</p><p>Comprimido. Não sabemos se realmente chegou a circular. Com todas as</p><p>reservas que o caso exige, por não se tratar de um texto em letra de</p><p>imprensa, vamos reproduzi-lo, já que, de todos os modos, corresponde</p><p>perfeitamente ao estilo jornalístico de García Márquez:</p><p>A última pedra</p><p>Seis dias após ter atirado a primeira, Comprimido lança esta segunda pedra que,</p><p>suspeita-se, seja a última. Nosso propósito — in�exível nesses longos e sobressaltados</p><p>dias de trabalho —, de prosperar à custa de nossa própria penúria, foi realizado com</p><p>uma presteza que superou de maneira ampla e por certo muito grati�cante os cálculos</p><p>mais otimistas.</p><p>A partir de hoje Comprimido deixará de circular, embora só de forma aparente. Na</p><p>realidade, consideramos um triunfo nosso — e assim o exigimos — a circunstância de</p><p>havermos mantido durante seis dias, sem uma falta sequer, uma publicação diária que</p><p>segundo todos os cálculos custa uns 99% mais do que rende.</p><p>Diante de tão lisonjeiras perspectivas, não encontramos um modo mais decoroso de</p><p>comprimir este periódico até o limite da invisibilidade. A partir de agora, Comprimido</p><p>continuará circulando no formato ideal que certamente merecem para si muitos</p><p>periódicos. A partir deste instante, este começa a ser — para honra e glória nossa — o</p><p>primeiro periódico metafísico do mundo.</p><p>*</p><p>Em fevereiro de 1952 reinicia-se a publicação de “La Jirafa”. García</p><p>Márquez encontra-se novamente em Barranquilla44 e mais uma vez</p><p>colaborando em El Heraldo. Este novo período da bem-sucedida coluna</p><p>é notavelmente menos fecundo do que a primeira etapa (janeiro de 1950</p><p>a fevereiro de 1951) e mais semelhante ao período em que García</p><p>Márquez mandava seus textos de Cartagena (fevereiro a julho de 1951).</p><p>É relativamente baixa a média mensal de “jirafas” que aparecem a partir</p><p>de 1952, e sua quantidade diminui de forma brutal em novembro desse</p><p>ano, pouco antes de a série ser de�nitivamente interrompida. Deve-se</p><p>supor que García Márquez dedicava-se a outras atividades dentro do</p><p>periódico e que, também, devia começar a se cansar de um tipo de</p><p>redação que para ele ia-se convertendo numa atividade rotineira. É certo,</p><p>além do mais, que já então começava a sentir-se atraído, talvez sem ter</p><p>consciência disso, para a reportagem.</p><p>Os fatos mais notáveis desse ano são o fracasso do original de A</p><p>revoada, rejeitado pela Editora Losada, e a morte de Ramón Vinyes em</p><p>Barcelona. Essa morte demonstrou que na época mantinha-se a coesão</p><p>do grupo de Barranquilla em torno da lembrança do sábio catalão.45</p><p>García Márquez deixou de redigir sua coluna e saiu de El Heraldo,</p><p>talvez antes que ali fosse publicado, no número especial de Natal, um</p><p>conto intitulado “El invierno” e que mais tarde seria intitulado “Isabel</p><p>vendo chover em Macondo”.46</p><p>*</p><p>Aqui é que deve ser situado o episódio menos documentado da trajetória</p><p>de García Márquez: o período em que foi viajante e vendedor de livros.</p><p>Dessa experiência o escritor falou em diversas entrevistas, e também dela</p><p>se lembram seus amigos de Barranquilla, mas sempre com grande</p><p>imprecisão, imprecisão tão grande que é de supor que essa incursão por</p><p>uma modesta atividade comercial tenha se situado no pouco</p><p>documentado período que vai de julho de 1951 a fevereiro de 1952. Um</p><p>detalhe, porém, nas lembranças de García Márquez — no qual deve</p><p>basear-se exclusivamente esta evocação — incita a descartar essa</p><p>possibilidade e a a�rmar que foi em 1953 que ele se dedicou a vender</p><p>livros e não em outro período.</p><p>Curiosamente, o fato tem relação com o fracassado intento inicial de</p><p>publicar A revoada. A Editora Losada, que pretendia estabelecer-se no</p><p>mercado colombiano, havia anunciado sua intenção de publicar livros de</p><p>autores do país. García Márquez enviara o original de seu romance e</p><p>durante certo tempo acreditou que iam publicá-lo, simultaneamente ao</p><p>romance de outro colombiano, Eduardo Caballero Calderón. Este, sim,</p><p>foi editado, enquanto A revoada foi �nalmente rejeitado.</p><p>Era representante da Losada em Bogotá Julio César Villegas, um ex-</p><p>político peruano que fugira das perseguições da ditadura do general</p><p>Odría. Acusado pela editora de ter praticado sérios desfalques, Villegas</p><p>deixou Bogotá e abriu em Barranquilla um negócio de venda de livros a</p><p>prazo. García Márquez converteu-se em seu caixeiro-viajante, talvez</p><p>porque lhe pagassem melhor do que em El Heraldo (disso ele não se</p><p>lembra com muita exatidão), e sobretudo porque a nova pro�ssão lhe</p><p>permitia viajar pela Costa Atlântica, ampliando e aprofundando seu</p><p>conhecimento da região. Ele lembra, com absoluta certeza, que, no dia</p><p>seguinte ao golpe de Estado do general Gustavo Rojas Pinilla, ou seja, em</p><p>junho de 1953, teve uma acalorada discussão política, na livraria de</p><p>Villegas, com seu amigo de Cartagena, Ramiro de la Espriella. Este é o</p><p>detalhe que permite situar em 1953 esse episódio comercial, que foi</p><p>interrompido quando Villegas foi preso e levado para o Cárcere Modelo</p><p>de Bogotá.47</p><p>Pouco depois — tinha de ser pouco depois — abriu-se outra etapa</p><p>na carreira jornalística de García Márquez: o breve período em que ele</p><p>foi chefe de redação de El Nacional, outro dos diários de Barranquilla.</p><p>Aqui também faltam os dados, porque as peripécias pelas quais passou</p><p>El Nacional causaram a perda de pelo menos 50% dos volumes de sua</p><p>coleção — e tudo leva a crer que nenhuma biblioteca pública da</p><p>Colômbia possui sua própria coleção do jornal. Vários testemunhos,</p><p>porém, e o de García Márquez em particular, bem como documentos</p><p>adjacentes, permitem a�rmar com segurança que ele colaborou por</p><p>algum tempo em El Nacional, de Barranquilla, embora não exista um</p><p>indício que possa con�rmar o fato. Foi outra aventura jornalística, outra</p><p>etapa — algo descabida — de sua formação e à qual foi levado por sua</p><p>amizade com Álvaro Cepeda Samudio.</p><p>Por este sentia um grande apreço Julián Davis Echandia, fundador e</p><p>dono de El Nacional, e lhe quis dar uma responsabilidade jornalística à</p><p>qual Cepeda aspirava desde o seu regresso dos Estados Unidos.48 Os</p><p>testemunhos coincidem na a�rmativa de que a aventura teve começo no</p><p>momento em que o jornal estreou uma rotativa nova49 — ou seja, ao</p><p>longo de todo o mês de setembro de 1953. El Nacional anunciou com</p><p>notas e fotos que apareceram com grande destaque, na primeira página,</p><p>o processo de montagem de suas novas máquinas, efetuado sob a direção</p><p>de um técnico norte-americano. Como a montagem só terminou em �ns</p><p>desse mês de setembro, é de presumir que foi em outubro que Cepeda</p><p>Samudio e García Márquez iniciaram sua colaboração conjunta em El</p><p>Nacional.</p><p>Infelizmente, a coleção conservada na sede do jornal não inclui</p><p>nenhum volume relativo aos últimos três meses desse ano de 1953. Os</p><p>únicos documentos que subsistem são matérias de Cepeda Samudio —</p><p>recortadas e conservadas por seus familiares — referentes a fatos que</p><p>efetivamente aconteceram no último trimestre desse ano. Cepeda</p><p>Samudio era o chefe de redação da edição matutina que circulava nos</p><p>departamentos da Costa Atlântica, enquanto García Márquez se</p><p>encarregava da edição vespertina que se vendia em Barranquilla. Todos</p><p>os depoimentos concordam que foi um período agitado, no qual os</p><p>jovens</p><p>viviam praticamente trancados na sede do jornal, vigiando e</p><p>participando de todas as etapas do processo editorial.50 Foi também um</p><p>período curto. García Márquez refere-se a uns três meses, assim como as</p><p>outras testemunhas. É possível que Cepeda Samudio tivesse continuado</p><p>em El Nacional algumas semanas mais que seus companheiros, porém</p><p>sua permanência total não deve ter passado de uns quatro ou cinco</p><p>meses (a coleção conservada mostra que em janeiro e fevereiro de 1954</p><p>El Nacional continuou tirando duas edições diárias), embora tivesse</p><p>voltado a ser colaborador destacado, como sempre fora a partir de 1947,</p><p>mas já sem a responsabilidade que assumiu durante alguns meses.</p><p>A perda das coleções de El Nacional não permite conhecer como se</p><p>deu concretamente a colaboração de García Márquez. Sem tal perda,</p><p>pelo menos se poderia saber algo sobre sua maneira de orientar a</p><p>publicação, e é provável que também um pouco mais. Ele não acredita</p><p>haver escrito nada nesses meses e pensa que, se chegou a escrever</p><p>alguma coisa, não foram mais do que matérias sem assinatura, redigidas</p><p>às pressas e, em sua opinião, de pouco interesse.</p><p>Com sua passagem pela redação de El Nacional, concluía ele a etapa</p><p>caribenha de sua atividade jornalística. Rapidamente se iniciaria a etapa</p><p>de Bogotá.</p><p>*</p><p>García Márquez inicia-se no jornalismo uns oito meses após publicar o</p><p>seu primeiro texto de �cção, o que signi�ca dizer que tanto sua obra</p><p>jornalística quanto literária se desenvolveram, nos primeiros anos, de</p><p>maneira mais ou menos simultânea. Apesar da alta qualidade, seu</p><p>jornalismo hoje não teria nenhum interesse, se não existissem os contos</p><p>e os romances. De qualquer maneira é difícil — uma vez que se dispõe</p><p>do material documental — separar estes aspectos, ainda que uma</p><p>espontânea e arbitrária hierarquia incite a ver as crônicas e críticas de</p><p>imprensa como mero pano de fundo da obra de �cção. O jornalismo de</p><p>García Márquez, embora tivesse alcançado inigualáveis êxitos, foi</p><p>principalmente uma escola de estilo e constituiu a aprendizagem de uma</p><p>retórica original.</p><p>O período caribenho de García Márquez forma um todo — e isso</p><p>porque, independentemente de ser um período decisivo de formação e</p><p>de de�nição de opiniões (além de um marco geográ�co e humano bem</p><p>característico), sua atividade jornalística desenvolve-se dentro de um</p><p>gênero especí�co, ou seja, o da crônica na sua modalidade humorística.</p><p>Quase se poderia acreditar que há uma solução de continuidade entre a</p><p>produção de Cartagena e a de Barranquilla: até certo ponto, pode-se</p><p>falar de duas etapas distintas, e não por motivos meramente espaciais. O</p><p>nível da primeira etapa é indiscutivelmente inferior ao da segunda. Mas</p><p>é preciso levar em conta que, antes de tudo, houve uma evolução que a</p><p>reduzida quantidade de textos assinados por García Márquez em</p><p>Cartagena não permite apreciar precisamente. Esses longos meses sem</p><p>textos que possam ser identi�cados (outubro a dezembro de 1948,</p><p>dezembro de 1948 a julho de 1949, julho a outubro de 1949, outubro de</p><p>1949 a janeiro de 1950) constituem um obstáculo na formulação de um</p><p>juízo fundamentado, principalmente quando se sabe que a etapa</p><p>posterior e de tão maciça produção, em Barranquilla (por volta de</p><p>duzentas “jirafas” somente em 1950), oferece in�nitos motivos de</p><p>análise, ao contrário dos poucos textos de El Universal. Na realidade,</p><p>dispomos de um único texto jornalístico, o de 28 de julho de 1949, para</p><p>termos uma idéia da evolução estilística de García Márquez;51 é muito</p><p>pouco, mas o su�ciente para comprovar que essa evolução se deu, e é até</p><p>mesmo possível a�rmar que foi então que se manifesta pela primeira vez</p><p>um estilo jornalístico tipicamente garciamarquiano.52 O que signi�ca</p><p>dizer que a diferença entre a época cartagenera e a barranquillera resulta</p><p>abusiva e ao mesmo tempo cômoda, dada a existência de vários períodos</p><p>que não podem ser documentados em El Universal. Digamos que, ao</p><p>falar da primeira dessas etapas, nos referiremos preferencialmente à</p><p>produção de 1948.</p><p>Como jornalista e como escritor, García Márquez é e sempre foi um</p><p>estilista. Isso, porém, mostra-se mais evidente do que nunca ao se levar</p><p>em conta o seu trabalho como crítico de jornal e humorista, quando</p><p>muitas vezes tratava-se apenas de preencher um espaço, de dizer coisas</p><p>— às vezes muitas coisas — a propósito de pouco ou de nada. Então</p><p>tudo vinha a ser questão de estilo, da maneira de dizer as coisas, e</p><p>também da maneira de apresentá-las, com o que se amplia bastante a</p><p>estreita noção de estilo. E com uma agravante, no caso de García</p><p>Márquez: sua ambição de ser escritor levava-o — um tanto por</p><p>narcisismo — a destacar mais ainda a busca de apresentações e</p><p>expressões originais.53 Talvez seja esta última o que mais de�nitivamente</p><p>marca o seu jornalismo nos cinco primeiros anos, como se pode</p><p>apreciar, por exemplo, ao comparar suas colunas da terceira página de El</p><p>Heraldo com as imediatamente vizinhas de Alfonso Fuenmayor — outro</p><p>modelo de crônicas �namente escritas e nunca isentas de um discreto</p><p>humor, embora tratassem de temas mais sérios.</p><p>O próprio García Márquez de�niu logo de saída o que havia de ser</p><p>sua maneira de praticar o gênero da crônica humorística. Em sua</p><p>segunda crônica publicada em El Universal, a 22 de maio de 1948, ele</p><p>escreve que ela “tem princípio e terá �nal de algaravia”. Quatro dias</p><p>depois, em sua evocação a respeito dos helicópteros, ele se refere</p><p>longamente — mais ou menos o espaço de um quarto de página — ao</p><p>que poderia dizer,54 ou seja, aos arbitrários elementos de recheio que se</p><p>costuma usar para escrever sobre algo sem ter que dizer nada em</p><p>particular. E conclui: “Eu poderia dizer todas estas coisas e muito mais, e</p><p>terminar com a desoladora certeza de não haver dito nada.” O que</p><p>signi�ca dizer que as leis do gênero que ele de�ne, quiçá</p><p>inconscientemente, no momento de sua estréia, impõem os seguintes</p><p>requisitos: começar e terminar com fórmulas que combinem uma feliz</p><p>expressão e uma atrevida apresentação conforme o modelo do</p><p>palavreado de Ramón Gómez de la Serna, e — entre o princípio e o �m</p><p>— dizer as coisas com humor, com poesia, inclusive com extravagância</p><p>(não importa que sejam coisas muito originais, podem ser até da mais</p><p>total trivialidade, mas sua expressão deve ser original e imprevista). Em</p><p>suma: não dizer nada, mas dizê-lo bem. É de notar que algumas vezes,</p><p>em Barranquilla, García Márquez iniciava suas “jirafas” com uma</p><p>referência ao que poderia ter dito Gómez de la Serna sobre um tema ou</p><p>um objeto qualquer.</p><p>A in�uência do autor de El chalet de las rosas, um magistral estilista,</p><p>é �agrante no jornalismo de García Márquez, se bem que este só o</p><p>evoque, de preferência, no que se refere a suas atitudes excêntricas. É</p><p>uma in�uência intensa, duradoura e sem dúvida alguma positiva.</p><p>A outra in�uência notável nessa época inicial é a que exerceu a</p><p>escola poética colombiana do “piedracielismo”. Embora García Márquez</p><p>não demorasse a rechaçar a parte puramente formal do exemplo do</p><p>grupo “Piedra y Cielo” (como demonstra sua crônica do dia 15 de</p><p>dezembro de 1948, inequívoco sinal de sua evolução evocada acima),</p><p>não se pode ignorar que esse exemplo teve felizes conseqüências sobre</p><p>seus conceitos literários, ao mostrar-lhe — não somente a ele, mas</p><p>também a outros colombianos aspirantes a escritores — que se podia e se</p><p>devia fazer uma literatura que seguisse as diretrizes da maneira adotada</p><p>pelos escritores do século XIX. O certo, porém, é que em sua produção</p><p>jornalística de 1948, sobretudo a que vai de maio a julho, a in�uência</p><p>propriamente formal do “piedracielismo” leva a resultados negativos. As</p><p>colaborações dos dias 3 de junho, 4 e 6 de julho, como poemas em prosa</p><p>que são (e bem felizes em sua feitura), devem �car fora deste enfoque,</p><p>mas os textos propriamente jornalísticos demonstram com freqüência</p><p>um estilo excessivamente amaneirado e sobrecarregado de defeitos sob</p><p>um ponto de vista jornalístico.55 É um estilo excessivamente literário</p><p>e</p><p>poético, no mau sentido das palavras. García Márquez busca</p><p>constantemente realizar atrevidas e brilhantes metáforas, que resvalam</p><p>com freqüência para o lugar-comum e para a arbitrariedade do</p><p>paradoxismo, do oximoro. Há uma contínua busca de imagens, um</p><p>incansável intento de estabelecer relações irracionais entre palavras e</p><p>objetos. Palavras e objetos pretensamente poéticos: o adjetivo “frutal”,</p><p>por exemplo, de freqüente uso em Cartagena e que muito pouco</p><p>reaparecerá em Barranquilla. “Vértebra” é também uma palavra — e um</p><p>conceito, e um motivo — repetidamente utilizada. A violeta também</p><p>aparece muito nesses textos da primeira época (como acontece em seus</p><p>primeiros contos), associada à morte, quando é evidente que é uma �or</p><p>que nada tem a ver com autênticas vivências tropicais. Pode-se até</p><p>suspeitar de que García Márquez jamais vira uma violeta de verdade.</p><p>Mas há que reconhecer que inclusive nos primeiros tempos, quando</p><p>consegue esquecer um pouco suas preocupações formais, García</p><p>Márquez escreve textos de excelente nível: mesmo que apresente algum</p><p>maneirismo de estilo, a crônica sobre o acordeão, de 22 de maio de 1948,</p><p>é um grande texto.56 Também o é a crônica que García Márquez dedica</p><p>ao macaco do parque, no dia 8 de junho, como igualmente o são as duas</p><p>semelhanças sucessivas sobre a negra e o índio (16 e 17 de junho),</p><p>mesmo com todo o seu sucumbir a certa tentação folclorística. E muito</p><p>interessante é a evocação às araras (18 de junho).57 Quando se refere à</p><p>realidade de seu universo caribenho, García Márquez consegue desfazer-</p><p>se em boa parte das peias que lhe impõem suas leituras e suas</p><p>preocupações literárias.</p><p>É que ele tem que lutar contra uma retórica emprestada, e só</p><p>consegue alcançar uma expressão pessoal não propriamente quando</p><p>rechaça essa retórica, mas quando a decanta e amplia. Sua própria</p><p>retórica de jornalista — e, em parte, de escritor —, ele começa a de�ni-la</p><p>com a sua cálida paródia de crônica social de 28 de julho de 1949: já não</p><p>se trata de reunir palavras e/ou conceitos segundo as clássicas �guras de</p><p>estilo — no caso, apenas uma forma de elaborar de�nições complicadas</p><p>que muitas vezes nem sequer chegavam a trans�gurar poeticamente os</p><p>objetos —, mas de relacionar, na narrativa, objetos e situações que nada</p><p>têm em comum, mas que uma vez postos em conta criam uma nova</p><p>realidade, arbitrária porém mais verdadeira do que a realidade concreta:</p><p>o bigode e o cachimbo se convertem em poderosos instrumentos de luta</p><p>ideológica. Superados assim os truques formalistas aprendidos no</p><p>“piedracielismo” e sem jamais perder de vista — em nível de formulação</p><p>— o exemplo do linguajar ramoniano, García Márquez forjava um</p><p>sistema bastante pessoal de expressão que iria usar e depurar na série de</p><p>“La Jirafa” — larga experiência formal e conceitual — antes de aplicá-lo à</p><p>captação da realidade, na reportagem e, mais tarde, no romance.</p><p>Dentro dessa evolução formal, que deve cumprir-se quase</p><p>totalmente em 1949, um ano muito pobre em matéria de documentação,</p><p>e que termina por a�rmar-se no primeiro ano de “La Jirafa” (embora as</p><p>primeiras “jirafas” não sejam perfeitas, pouco lhes falta para que</p><p>sejam),58 até o ponto em que, passado certo momento, García Márquez</p><p>pode dar a impressão de andar em círculos,59 situa-se a constante do</p><p>jornalismo desses anos 1948-1952. No que se refere a temas, não há</p><p>mudanças entre os “Punto y aparte” de 1948 e as “jirafas” que, com uma</p><p>interrupção de oito meses, cobrem três anos de publicação em El</p><p>Heraldo, de Barranquilla. Uma desordenada enumeração do que tratou</p><p>“Punto y aparte” aplica-se igualmente à “La Jirafa”: comentários sobre</p><p>sucessos intranscendentes de origem regional, nacional ou estrangeira (o</p><p>despacho telegrá�co como substância da coluna),60 textos de criação</p><p>literária, esboços biográ�cos, �agrantes captados na realidade, crônicas</p><p>sociais,61 extravagantes re�exões. Faltaria somente a crítica literária e de</p><p>cinema que, é certo, tampouco foi muito abundante em “La Jirafa”</p><p>(sobretudo no que diz respeito ao segundo aspecto).</p><p>Se bem que tudo isso tenha transcorrido sob o signo das críticas e</p><p>crônicas e se bem que García Márquez ainda hoje se recorde do temor</p><p>que sentiu, em 1954, diante da obrigação de transformar-se num</p><p>repórter, é lícito imaginar que logo ele manifestou tendência a cruzar a</p><p>fronteira dos gêneros, e quiçá de maneira cada vez menos inconsciente.</p><p>Inclusive nas crônicas dos primeiros tempos, os temas e os �agrantes que</p><p>às vezes esboça demonstram a tentação de narrar, tentação normal num</p><p>narrador por vocação, mas tratando-se de anedotas com que se deparava</p><p>e episódios alheios — não de vivências ou emoções próprias —, isso</p><p>tinha de se desviar na direção dos embriões de reportagens.</p><p>Algumas das crônicas que escreve a partir de setembro de 1948,</p><p>inclusive as crônicas sociais (a que dedica ao poeta Jorge Artel é mais</p><p>social do que literária), deixam igualmente entrever essa tentação de</p><p>contar coisas, reais mas com certa dose da �cção e do exagero que mais</p><p>tarde iriam, caracterizar o modelo formal de García Márquez.62 É</p><p>particularmente signi�cativa a abundância dessas crônicas, tanto as</p><p>escritas em Cartagena quanto as escritas em Barranquilla, nas quais</p><p>conta detalhes e peripécias de suas viagens, mesmo que às vezes se trate</p><p>de viagens imaginárias. Nesse sentido, as coisas parecem a�rmar-se e</p><p>precipitar-se, de forma notável, em 1952. A “jirafa” “Algo que parece um</p><p>milagre”, de 15 de março de 1952, por outros aspectos também muito</p><p>importantes, é, além de uma bela narrativa, uma pequena obra-prima no</p><p>gênero reportagem. Simultaneamente, García Márquez confessa em sua</p><p>carta a GOG63 que, embora reservasse as anotações de sua viagem por</p><p>Valledupar e pela região bananeira para seu projeto de romance, sua</p><p>primeira intenção foi usar esse material na feitura de uma série de</p><p>crônicas. Foi igualmente em 1952 que apareceu a primeira colaboração</p><p>da magní�ca crônica sobre La Sierpe,64 que inclui o mais atraente</p><p>antecessor do personagem Mamãe Grande. Pode-se suspeitar, ademais,</p><p>que, nas reportagens não assinadas de interesse local que em 1950</p><p>saíram em Crónica, García Márquez deve vez por outra ter tido</p><p>participação, embora não conceda a esse trabalho muita importância, já</p><p>que para ele não seria mais do que uma das muitas coisas que lhe coube</p><p>fazer no pequeno semanário.65 De qualquer maneira, e sem que</p><p>percebesse isso claramente, em 1952 estava pronto para inaugurar outro</p><p>aspecto de sua atividade jornalística, passando da imobilidade da crônica</p><p>para a vida da reportagem, da interpretação da realidade à sua</p><p>reelaboração. Anunciava-se uma evolução de sua atitude jornalística,</p><p>literária e política.66</p><p>Faz-se inevitável evocar este último aspecto. O ingresso de García</p><p>Márquez no jornalismo deu-se na raiz desse cataclismo histórico e moral</p><p>que para a Colômbia representou o 9 de abril de 1948. Os anos que se</p><p>seguiram, os anos em que García Márquez trabalhava em Cartagena e</p><p>Barranquilla, foram os piores da Violência, sob as presidências e/ou</p><p>tiranias conservadoras de Ospina Pérez, Laureano Gómez e Udaneta</p><p>Arbeláez. Meses antes do acesso de García Márquez à che�a da redação</p><p>de El Universal, deu-se o golpe do general Rojas Pinilla. Foi um período</p><p>sumamente negro da história colombiana aquele em que García</p><p>Márquez dedica-se a escrever textos humorísticos.</p><p>Disso poder-se-ia tirar uma impressão de frivolidade e indiferença.</p><p>Mas não se deve deixar de lado o fato de que essa época transcorreu sob</p><p>uma censura quase constante: depois do dia 9 de abril, durou algumas</p><p>semanas, implantando-se novamente como uma das medidas</p><p>antidemocráticas tomadas pelo governo conservador, quando do seu</p><p>golpe institucional de novembro de 1949. O bom humor de “La Jirafa”</p><p>deve muito ao Decreto nº 3.521 do dia 9 de novembro desse ano. E</p><p>quando não havia censura, a intolerância dos agentes do poder chegava a</p><p>ter os mesmos efeitos.67 É certo que em Barranquilla a censura foi muito</p><p>menos drástica</p>

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