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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM MESTRADO EM LITERATURA COMPARADA ALEXSANDRO LEOCÁDIO DA SILVA A REPRESENTAÇÃO DO ATOR SOCIAL LATINO-AMERICANO NAS CRÔNICAS JORNALÍSTICAS DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ NATAL 2021 ALEXSANDRO LEOCÁDIO DA SILVA A REPRESENTAÇÃO DO ATOR SOCIAL LATINO-AMERICANO NAS CRÔNICAS JORNALÍSTICAS DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ Dissertação de Mestrado apresentada à banca examinadora, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em estudos da linguagem, na área de Literatura Comparada. Orientadora: Profa. Dra. Regina Simon da Silva. NATAL 2021 Silva, Alexsandro Leocádio da. A representação do ator social latino-americano nas crônicas jornalísticas de Gabriel García Márquez / Alexsandro Leocadio da Silva. - Natal, 2022. 97f. Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade Fe- deral do Rio Grande do Norte, 2022. Orientador: Profa. Dra. Regina Simon da Silva. 1. Crônicas - Dissertação. 2. Jornalismo-literário - Dissertação. 3. Gabriel García Márquez - Dissertação. I. Silva, Regina Simon da. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.091 ALEXSANDRO LEOCÁDIO DA SILVA A REPRESENTAÇÃO DO ATOR SOCIAL LATINO-AMERICANO NAS CRÔNICAS JORNALÍSTICAS DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ Dissertação de Mestrado apresentada à banca examinadora, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em estudos da linguagem, na área de Literatura Comparada. Aprovada em: ______/______/______ BANCA EXAMINADORA ______________________________________ Profa. Dra. Regina Simon da Silva Orientadora UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ______________________________________ Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira Lima Membro interno UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ______________________________________ Profa. Dra. Raquel de Araújo Serrão Membro externo INSTITUTO FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE Com gratidão, carinho e muita saudade, dedico este trabalho à Dona Francisca Leocádia, minha mãe, uma mulher que faz muita falta neste mundo, sem ela eu não teria chegado até aqui. AGRADECIMENTOS Cursar esse mestrado foi uma longa viagem que incluiu uma trajetória permeada por inúmeros desafios, foram algumas tristezas e muitas incertezas que me faziam questionar se valia a pena continuar, foram também alguns desesperos que surgiram quando o cansaço mental e físico me fizeram por alguns instantes acreditar que não conseguiria, mas também momentos de alegria que vieram para acalmar o coração e dar forças para não desistir. Foram muitos percalços pelo caminho, mas apesar do processo solitário a que qualquer investigador está destinado, na realidade nunca estive só, várias pessoas foram indispensáveis para encontrar o melhor rumo em cada momento dessa longa viagem que agora se encerra. Agradeço, primeiramente, a Deus, que me fez presença, com sabedoria e voz de conforto não me deixou chegar ao ponto de desistir, além de colocar em minha vida pessoas maravilhosas que me acompanharam desde o processo seletivo, até a defesa. À três incríveis mulheres que são parte extremamente importante nesse processo, à minha mãe, (em memória) que mesmo não estando aqui em corpo, sempre esteve presente, sem ela eu não teria acreditado em mim, não entenderia que com trabalho, honestidade e dedicação se consegue quebrar as barreiras da vida e de nossa origem humilde, e que família é o mais importante que temos. À minha esposa Poliana, que sempre foi uma inspiração sobre o quanto a educação e boa qualificação são importantes em nossa vida, sendo ela também a minha maior incentivadora na vida acadêmica. À ela, que nessa viagem foi o meu porto seguro, não me deixou surtar, segurou minha mão quando pensei em desistir, me puxou pelo braço e não deixou a Covid me levar, não desistiu de mim um só momento, e agora juntos formamos uma família que vai prosperar cada vez mais. Minha companheira, te amo. À minha querida e paciente orientadora, Professora Dra. Regina Simon, que sempre acreditou que era possível chegar até aqui, que com seus conselhos dados sempre com um sorriso acolhedor e uma voz tranquila, me fazia a cada encontro acreditar que com um pouco por vez a gente chega ao final, muito obrigado, professora, e desculpa pelo trabalho que eu dei, rs. Aos amigos da graduação que levo para a vida, mesmo que afastados pela pandemia, estiveram sempre muito presentes me dando apoio. Juliana, Max e Rodrigo, vocês são incríveis! Aos professores Dr. Samuel Anderson e Dra. Izabel Nascimento que durante a graduação me proporcionaram conhecer e fazer parte do mundo da pesquisa, extensão e escrita acadêmica durante as disciplinas e projetos desenvolvidos no PIBID e no Instituto Ágora. Ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem/PPGEL – sua coordenação, corpo docente, corpo discente e todos os outros profissionais –, pelo trabalho realizado nesses anos. Por fim, o meu profundo e sincero agradecimento a todas as pessoas que contribuíram para a concretização desta dissertação, estimulando-me intelectual e emocionalmente. Ninguém vence sozinho. En este viaje he conocido a un hombre extraordinario. Un hombre a quien el relámpago del machetazo le cayó, de frente sobre la risa, y lo dejó serio, con una seriedad tremenda, llena de cicatrices. Gabriel García Márquez RESUMO O início da carreira do Nobel colombiano Gabriel García Márquez foi marcado pela presença do jornalismo e da literatura que, no caso dele, sempre andaram de mãos dadas quando o assunto é o gênero crônica. Foi nos anos de 1948 a 1952 que Gabo iniciou sua carreira jornalístico-literária, publicando suas notas quase que diariamente em jornais colombianos. São crônicas que transitam entre o jornalismo e a literatura, o real e o ficcional, e todas carregando a magia da escrita daquele que anos mais tarde viria a ser considerado um dos pais do Realismo mágico latino-americano. Nesta dissertação, que analisa uma seleção dessas crônicas jornalísticas publicadas no livro Obra periodística Vol.1: Textos costeños (1991), do escritor colombiano Gabriel García Márquez, pretende-se analisar como se dá a representação dos atores sociais presentes na forma de personagens das crônicas que compõem essa seleção que vai de 1948 a 1952. Trata-se de um estudo baseado em pesquisa bibliográfica, que utiliza, além do livro já mencionado, biografias sobre o autor, Bachelard (1989), Bender e Laurito (1993), Candido (1989, 2011), Chiampi (1980), Cunha (1986), Franco (2004), Hall (2006), Moisés (2004), Moscovici (2015, 1978), Nitrini (2000), Sartre (1999), Soares (2002) e Vivaldi (1987) como base teórica. É possível observar que García Márquez representava os seus personagens a partir da observação de gente que fazia parte do seu cotidiano e do dia a dia dos leitores que o liam, compondo seus textos de uma forma que Candido (1989) chama de literatura humanizadora, aquela que tem o papel de fazer com que pessoas comuns se sintam representadas e se identifiquem com o que está sendo lido. García Márquez, nos primórdios de sua carreira, já escrevia sobre o seu povo e para seu povo,trazendo em suas narrativas a presença de eventos históricos da formação identitária da América sobre quem/a qual escreve. Palavras-chave: Imaginário. Crônicas. Jornalismo-literário. Gabriel García Márquez. Ator social. ABSTRACT The beginning of the career of Colombian Nobel laureate Gabriel García Márquez was marked by the presence of journalism and literature which, in his case, have always gone hand in hand when it comes to the chronicle genre. It was from 1948 to 1952 that Gabo began his journalistic-literary career, publishing his notes almost daily in Colombian newspapers. They are chronicles that transit between journalism and literature, the real and the fictional, and all of them carrying the magic of the writing of the man who, years later, would be considered one of the fathers of Latin American Magic Realism. In this dissertation, which analyzes a selection of these journalistic chronicles published in the book Obra periodística Vol.1: Textos costeños (1991), by the Colombian writer Gabriel García Márquez, we intend to analyze how the representation of the social actors present in the form of characters from the chronicles that make up this selection that goes from 1948 to 1952. This is a study based on bibliographic research, which uses, in addition to the book already mentioned, biographies about the author, Bachelard (1989), Bender and Laurito (1993), Candido (1989, 2011), Chiampi (1980), Cunha (1986), Franco (2004), Hall (2006), Moisés (2004), Moscovici (2015, 1978), Nitrini (2000), Sartre (1999), Soares ( 2002) and Vivaldi (1987) as a theoretical basis. It is possible to observe that García Márquez represented his characters from the observation of people who were part of his daily life and the day to day of the readers who read him, composing his texts in a way that Candido (1989) calls humanizing literature, that that has the role of making common people feel represented and identify with what is being read. García Márquez, in the early days of his career, was already writing about his people and for his people, bringing in his narratives the presence of historical events in the identity formation of America about whom/which he writes. Keywords: Imaginary. Chronicles. Literary-journalism. Gabriel García Márquez. Social actor. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.................................................................................................. 11 2 OS PASSOS DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ .................................... 16 2.1 O homem: “De la mano de su abuelo”.......................................................... 24 2.2 Uma casa de histórias.................................................................................... 28 3 3.1 3.2 3.3 CRÔNICAS: ORIGEM E EVOLUÇÃO.............................................................. As crônicas historiográficas ......................................................................... As crônicas jornalísticas ............................................................................... Um gênero híbrido: o cotidiano interpretado literariamente ...........……... 31 32 34 37 4 4.1 5 5.1 5.2 5.3 5.4 ESPAÇOS E REPRESENTAÇÕES.................................................................. O espaço literário e a Topoanálise ............................................................... O ATOR SOCIAL LATINO-AMERICANO AOS OLHOS DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ ........................................................................................ Povos formadores e marginados ................................................................. A mulher e sua representação ...................................................................... Perfis históricos.............................................................................................. O cidadão comum…………………………….................................................... 43 45 48 56 69 75 79 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 83 REFERÊNCIAS................................................................................................. 86 ANEXO A – CRÔNICAS USADAS NAS ANÁLISES .................................. 91 11 1 INTRODUÇÃO Não é de hoje que a Literatura hispano-americana é bastante admirada, respeitada e gera um grande fascínio a nível internacional, basta observar a grande quantidade de prêmios internacionais que seus autores vêm ganhando ano após ano, fato este que demonstra bem tal fenômeno de prestígio internacional. Um destes grandes prêmios, e talvez o maior deles, é o Nobel de Literatura, já concedido seis vezes a autores latino-americanos1 desde a década de 40, tendo sido mais especificamente o primeiro deles ocorrido no ano de 1945, ano em que a chilena Gabriela Mistral deu início a uma bela e bem-sucedida trajetória de prêmios Nobel de grandes nomes da literatura latino-americana. Ainda a respeito de tal prestígio, podemos, inclusive, dizer que o período de grande reconhecimento dessa literatura coincide com o surgimento do boom2 da Literatura hispano-americana, período de surgimento, seguido de um grande reconhecimento também do movimento realista mágico latino-americano, que nas palavras de Chiampi (1980, p.19) foi “um vigoroso e complexo fenômeno de renovação ficcional”. Chiampi chamou de “renovação”, pois acreditava-se em uma crise do realismo-naturalista da época. Em suas palavras, Chiampi diz que o [...] realismo veio a ser um achado crítico-interpretativo, que cobria, de um golpe, a complexidade temática (que era realista de um outro modo) do novo romance e a necessidade de explicar a passagem da estética realista-naturalista para a nova visão (“mágica”) da realidade”. (CHIAMPI, 1980, p.19, grifo da autora) Já nas palavras de Leal (1967), trata-se de uma mudança de atitude diante do real, na qual o autor se aprofunda mais na realidade para extrair os mistérios ocultos 1 Os vencedores foram: Gabriela Mistral, do Chile, em 1945; Miguel Astúrias, da Guatemala, em 1967; Pablo Neruda do Chile em 1971; Gabriel García Márquez, da Colômbia em 1982; Octávio Paz, do México, em 1990 e Mario Vargas Llosa, do Peru, em 2010. Informações disponíveis em: https://www.nobelprize.org/prizes/lists/all-nobel-prizes-in-literature/ Acesso em: 6 set 2020. 2 Podemos dizer que o Boom da Literatura Latino-americana foi um movimento literário que se iniciou por volta da década de 40/50 e teve seu auge entre os anos 60 e 70, período em que o movimento se tornou um fenômeno em duas esferas, a editorial, e claro, a comercial da América Latina. O Boom da Literatura Latino-americana fez com que a produção da região fosse amplamente divulgada na Europa, atingindo níveis de vendas “explosivos” em comparação ao que se vendia até então. O movimento teve seu nome associado a jovens escritores à época, como Mario Vargas Llosa, com a novela La ciudad y los perros, Júlio Cortázar, com seu jogo de montar Rayuela, de 1963 e Gabriel García Márquez, com Cien años de soledad, de 1967. https://www.nobelprize.org/prizes/lists/all-nobel-prizes-in-literature/ https://www.nobelprize.org/prizes/lists/all-nobel-prizes-in-literature/ 12 presentes nela. Ribeiro (2006), sobre as estéticas do mágico e do fantástico, explica que “A ideia de maravilhoso associa-se ao mundo sobrenatural: universo dos deuses, da magia, dos bruxedos, dos encantamentos” (RIBEIRO, 2006, p. 31), e completa: “o maravilhoso, o imaginário, o onírico, o fantástico extrapolam a esfera da pura fantasia para refletirem determinadas verdades humanas” (RIBEIRO, 2006, p. 32). E por último, cabe ressaltar também a busca da classe intelectual e literária por uma certa identidade latino-americana, tendo nos países da chamada América espanhola,o mágico, fantástico, ou maravilhoso como características marcantes na literatura de um período em que o domínio literário era dos autores europeus e norte-americanos. É então nesse contexto que encontramos jovens escritores hispano- americanos que tiveram seus nomes ligados ao movimento, como por exemplo, o mexicano Juan Rulfo, o guatemalteco Miguel Ángel Asturias, o cubano Alejo Carpentier, e claro, o autor de nosso estudo, o colombiano Gabriel García Márquez. Gabriel José García Márquez, um dos maiores escritores que o mundo já viu, ainda é um dos mais lidos também, é conhecido no universo literário por ser um dos grandes expoentes do realismo mágico latino-americano, movimento que tinha como principais características, entre outras, a inovação da linguagem, os questionamentos sobre a identidade latina e os debates políticos e sociais, principalmente no que diz respeito à grande onda de golpes militares no continente nesse período, características muito presentes na literatura de García Márquez, e que o fizeram ser reconhecido também como uma voz potente contra os regimes autoritários que tomaram a América Latina3 na segunda metade do século XX. García Márquez também foi jornalista durante grande parte de sua vida, principalmente no período em que começou a escrever, além disso, foi apaixonado pelo cinema, chegando, inclusive, a ser diretor e roteirista, e ainda fundar, com o apoio de Fidel Castro, a 3 Ainda que haja diversas discussões acerca da imprecisão e do uso do termo, e o porquê chamá-la assim, adotamos aqui o termo América latina sob a seguinte ótica: Região do continente americano composta por países que têm como língua oficial idiomas neolatinos, como o português, o espanhol e o francês, incluindo também a Guiana e o Suriname, colonizados por Inglaterra e Holanda, países de origem germânica que tem como línguas oficiais o inglês e o holandês, respectivamente. Geograficamente, essa mesma classificação seria a região que vai do Rio Grande, localizado na fronteira entre Estados Unidos e México, e a Terra do fogo, localizada no extremo sul da América, excluindo a Jamaica, no Caribe. Nas palavras de César Fernandez Moreno: “América Latina é toda terra americana que fica ao sul do Rio Grande ou Bravo [...]. O uso habitual da expressão ‘al sur del rio Grande, o Bravo’, seria a prova de sua veracidade: ao sul deste rio existe certa homogeneidade cultural, política, social, linguística, religiosa. (MORENO et al, 1979, p. 20) 13 Escola Internacional de Cinema e Televisão, em Cuba. Por esses motivos, encontra- se aqui um grande desafio: o de pesquisar e analisar García Márquez. Ler e escrever sobre a obra de Gabriel García Márquez, seja ela em conto, crônica, romance, novela ou nota de jornal é uma tarefa já desempenhada por meio mundo e em diversas línguas, é caminhar por caminhos possivelmente já transitados e mencionados, é arriscar aventurar-se em sua companhia enquanto descreve em suas narrativas as vidas daqueles que surgem em seus textos, não de uma forma involuntária, mas pensada, e, quiçá, desenhada por este genial escritor colombiano, que em 87 anos de vida foi capaz de transformar a vida daqueles que o leram e por que não dizer da América Latina e também da literatura hispano-americana. Pensando então no quão diversas são as possibilidades sobre o que se analisa no universo literário e periodista de Gabriel García Márquez, chegamos à decisão de trabalhar o que vamos chamar aqui de “el laboratorio periodístico4 de García Márquez”5, fazendo um recorte em parte da produção desenvolvida no período em que Gabriel García Márquez iniciou no mundo das letras, do jornalismo e da literatura. Desse modo, nesta dissertação, serão analisadas algumas crônicas jornalísticas escritas por ele no começo de sua carreira, para ser mais preciso, serão trabalhadas aqui uma seleção das crônicas presentes no livro Obra periodística Vol.1: Textos costeños (1991), exemplar que reúne os textos publicados pelo Nobel colombiano em jornais, também colombianos, nos anos que abarcam o período de 1948, ano em que começou a escrever para o jornal El Universal, da cidade de Cartagena, até o final do ano de 1952, quando escreveu para o jornal El Heraldo, da cidade de Barranquilla, também na Colômbia. Obra periodística Vol.1: Textos costeños (1991) é um dos livros que fazem parte da coleção que o professor, crítico e pesquisador francês Jacques Gilard se dedicou a organizar e publicar sobre Gabriel García Márquez. Gilard, que também assina o prólogo do livro citado, se viu encantado pela obra de García Márquez e pelos aspectos mágicos de uma realidade mítica localizada mais ao sul do mundo, não se conteve em ficar apenas nas análises literárias dos livros, nas imagens ou metáforas, 4 A expressão aqui usada foi tomada emprestada de um artigo escrito por Robert Sims no ano de 1986, no qual escreve sobre o começo da produção literária de García Márquez nos jornais colombianos sob a ótica da relação de tempo-espaço baseada na teoria Bakhtiniana. 5 O laboratório jornalístico de García Márquez (tradução nossa) 14 percebeu que precisaria ir buscar na fonte os elementos que alimentavam seu interesse pelo processo criativo do Nobel Colombiano. Gilard percebeu que esse interesse carecia de um trabalho de campo mais rigoroso, e assim ocorreu, trilhou o caminho de García Márquez desde os seus primeiros textos, pesquisando, catalogando e organizando as crônicas jornalísticas para entender um pouco sobre onde e como surgiu García Márquez. Esta dissertação tem como objetivos principais analisar como se dá a representação do ator social caracterizada pelos personagens presentes nas crônicas desses primeiros momentos de autoria do Nobel colombiano dentro dos espaços nos quais são apresentados. Para se chegar a esse resultado, será utilizada como base, a Teoria das Representações Sociais proposta por Moscovici (1978), acompanhada da análise dos espaços literários descritos e/ou construídos pelo autor, abordada aqui a partir dos estudos sobre a categoria do espaço literário, usando a Topoanálise de Bachelard (1989), como referencial principal sobre o espaço literário. A pesquisa inicia-se com a investigação biográfica e contextual da vida e obra do autor, no Capítulo 2, Os passos de Gabriel García Márquez, que está dividido em duas subseções: O homem e O cronista e escritor. Neste segundo capítulo, será possível perceber como a vida do autor até o momento das criações dos textos que formam o corpus deste trabalho e seus envolvimentos com diversos eventos históricos do mundo e principalmente da América latina influenciaram em sua escrita. Para o estudo dessa etapa da vida de Gabriel García Márquez, foram utilizadas basicamente três obras: duas delas são biografias, e dentre estas três obras, a principal fonte de pesquisa empregada aqui, foi a detalhadíssima biografia Gabriel García Márquez: una vida (2009), do professor Gerald Martin, professor de estudos caribenhos na London Metropolitan University e professor emérito de Línguas modernas na University of Pittsburgh. O professor Gerald Martin além de, a partir dos anos noventa, ter se dedicado a estudar a vida e a obra de Gabriel García Márquez, já havia publicado antes uma tradução (1975) e uma edição crítica (1981) de um dos primeiros romances do realismo mágico nos anos 40 e 50, Hombres de maíz (1949), do escritor e jornalista guatemalteco Miguel Ángel Asturias. No capítulo 3, Crônicas: origem e evolução, serão apresentados o nascimento do gênero crônica, sua definição e evolução ao longo dos anos como gênero literário, além do papel e da importância do escritor profissional e do escritor jornalista, e sua 15 contribuição na transformação desse gênero, que transita entre literatura e jornalismo, gerando um texto híbrido. A importância desse capítulose dá pela necessidade de haver uma definição e delimitação sobre o gênero, que há bastante tempo faz parte de nossa comunicação escrita. No capítulo 4, Espaços e representações, apresentamos, especialmente os conceitos das categorias utilizadas neste trabalho: o espaço literário e as Representações sociais, usamos aqui como teoria base a Topoanálise, de Bachelard (1989), e estudos de Borges Filho (2007), e também a Teoria das representações sociais, de Moscovici (1978), ambas utilizadas na análise de textos literários. Já o capítulo 5, último deste trabalho, intitulado Ator Social Latino-Americano aos olhos de Gabriel García Márquez, debatemos o conceito de Ator social, a importância da compreensão sobre a identidade cultural, muito presente na representação dos atores sociais dessas crônicas, e por último damos início às análises das crônicas selecionadas. Com análise dessas crônicas, vimos como García Márquez representa os atores componentes de suas crônicas nos primeiros anos de sua produção como autor. 16 2 OS PASSOS DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ Não há como falar de Gabriel García Márquez sem que o nome de sua obra mais famosa não passe pela lembrança de quem já a leu, ou tenha visto algum comentário sobre ela, dada a importância que este livro adquiriu nas discussões sobre a América latina do século XX. Cem anos de solidão (1967) foi, sem sombra de dúvidas, o livro mais aclamado dele, foi a obra que consolidou Gabriel García Márquez como um dos grandes representantes da geração do boom da literatura latino- americana e do Realismo mágico latino-americano, chegando ao ponto de, por alguns, ser chamado de “pai do realismo mágico”. Certamente encontraremos críticos e estudiosos da literatura latino-americana que discordarão dessa possibilidade, mas não cabe aqui, neste momento, discutir sobre o movimento e sua paternidade, já que não é objeto de análise deste trabalho, porém, devemos levar em conta sua grande importância como novelista para a literatura latino-americana, principalmente por ter conseguido ocupar um espaço antes ocupado apenas por nomes de fora do continente sul-americano, e sobre isso, Martin diz: García Márquez talvez seja o novelista latino-americano mais admirado no mundo inteiro, e talvez o mais representativo de todos os tempos de toda América latina, e, também, no “primeiro mundo”, formados pela Europa e os Estados Unidos, em uma época na qual se custa muito encontrar grandes escritores reconhecidos universalmente, seu prestígio durante as quatro últimas décadas não conheceu um rival à altura. (MARTIN, 2009, p. 21 – tradução nossa) Voltando então a tratar da obra de 67, Martin (2009), no prefácio de sua obra biográfica sobre García Márquez, fala sobre quem foi Gabriel e o livro Cem anos de solidão (1967) para a literatura, não somente latino-americana, mas mundial. Segundo ele: Sua obra mestra, Cem anos de solidão, publicada em 1967, surgiu no ápice da transição entra a novela da Modernidade e a novela da Pós- modernidade, e talvez seja a única publicada entre 1950 e 2000 que atingiu expressivo número de leitores entusiastas em praticamente todos os países e culturas do mundo. [...] talvez não seja excessivo considerá-la a primeira novela verdadeiramente “global”. (MARTIN, 2009, p.21, tradução e grifo nosso) 17 Nesse livro, Gabriel García Márquez nos apresenta o povoado de Macondo, relata diversos acontecimentos ocorridos ao longo dos anos nesse lugar tão mágico, tendo, como principais personagens da história, a família Buendía ao longo de sete gerações, que, na trajetória do povoado participa de todo o processo político-social da região, são disputas políticas entre grupos liberais e conservadores, guerras civis e os fatos que misturam realidade com fantasia em eventos “mágicos” que tão brilhantemente caracterizam a obra, e que fomentam interpretações, análises e diversas discussões acerca da real América Latina ocorrer dentro da mágica Macondo. Apesar de não ser o objetivo deste trabalho, o livro Cem anos de solidão (1967), considerado por muitos como um dos mais importantes fenômenos literários do século XX, tem grande importância neste momento do projeto, pois, além de ser a obra que consagrou García Márquez não apenas na literatura Latino-americana, mas também mundial, foi essencial na escolha dele como vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1982 “por seus romances e contos, nos quais o fantástico e o realista se combinam em um mundo de imaginação ricamente composto, refletindo a vida e os conflitos de um continente”,6 tornando-o no único escritor colombiano e um dos pouquíssimos latino-americanos a receber tão grandioso prêmio, é nele que Gabo insere parte de sua vida na narrativa, sua família, sua terra, sua América e seu posicionamento político, que jamais foi ocultado de seus leitores. Em Cem anos de solidão (1967), encontramos muitas marcas do passado de Gabo, inseridas dentro do universo do povoado fictício de Macondo e dos Buendía. Aliás, Gabo, o apelido pelo qual Gabriel García Márquez é conhecido não só em sua terra natal, mas também em grande parte da América Latina, e uma curiosidade sobre este apelido, é que, na Colômbia, chamar Gabo pelo seu nome de batismo é como no Brasil chamar de Edson Arantes do Nascimento o Pelé. Esse apelido veio de sua infância, do período quando foi viver com seus avós maternos, o Coronel Nicolás Márquez Mejía e Tranquilina Iguarán Cotes, no pequeno povoado colombiano de Aracataca, este momento de sua vida, em que passa a ser criado e educado por seus avós em uma casa cheia de tios, tias, primos, primas e criados índios, é de grande importância para sua formação enquanto homem e escritor. 6 Texto retirado do Comunicado Oficial de Imprensa da Academia Sueca sobre ao ganhador do Prêmio Nobel de literatura do ano de 1982, Gabriel García Márquez. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/1982/summary/ https://www.nobelprize.org/prizes/literature/1982/summary/ 18 Essa casa, tão famosa e sempre presente na literatura de García Márquez, seja de forma direta ou indireta, é, segundo o próprio Gabriel, a sua lembrança mais viva e marcante. Em Cheiro de goiaba (2021), livro que reúne uma série de conversas que teve com seu amigo, e, também, escritor e jornalista, Plinio Apuleyo, Gabriel García Márquez fala sobre essa lembrança muito marcante, ele diz: Minha lembrança mais viva e constante não é a das pessoas, e sim a da própria casa de Aracataca onde morava com meus avós. É um sonho repetitivo que ainda persiste. Mais ainda: todo dia da minha vida acordo com a impressão, falsa ou real, de que sonhei que estou nessa casa. Não que voltei a ela, mas sim que estou lá, sem idade e sem nenhum motivo especial, como se nunca tivesse saído dessa casa velha e enorme. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021, p.21) Segundo Martin (2009), a casa de Aracataca, pertencente aos avós de Gabo, era uma casa cheia de gente e de fantasmas, tratava-se de uma casa com “inúmeros quartos onde suspiravam às vezes os mortos” (GARCÍA MARQUEZ, 2021, p.11). Ainda sobre a casa e sua relação com a avó naquela casa, García Márquez diz que sempre sentia algo inexplicável, segundo ele: Era uma sensação irremediável que começava sempre ao entardecer e que me inquietava mesmo durante o sono, até que tornasse a ver pelas fendas das portas a luz do novo dia. Não consigo definir muito bem, mas me parece que aquela angústia tinha uma origem concreta e é que à noite se materializavam todas as fantasias, os presságios e evocações da minha avó. Essa era a minha relação com ela: uma espécie de cordão invisível mediante o qual nos comunicávamos ambos com um universo sobrenatural. De dia, o mundo mágico da minha avó me era fascinante, eu vivia dentro dele, era o meu mundo próprio. Mas à noite me causava terror (GARCÍA MÁRQUEZ,2021, p. 22) Entre esses fantasmas frequentadores da casa grande, mencionados por Martin (2009), estão os de guerra, sempre muito presentes nas histórias sobre a Guerra dos Mil dias, conflito armado, civil e histórico pela forma sangrenta como ocorreu. Ocorrida entre os anos de 1900 e 1902, deixou ao redor de cem mil colombianos mortos. Esse conflito esteve muito presente na literatura de Gabo, inicialmente apresentado a ele por seu avô. A respeito dessa presença da Guerra em seus livros, García Márquez diz que (ele/avô) “muitas vezes me havia falado da guerra... e daí surgiu o interesse que aparece em todos os meus livros” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021, p. 24). 19 Além desses fantasmas dos mortos na guerra, havia também os da família, sempre presentes nas falas de sua avó, Dona Tranquilina. Ela sempre que caía a noite “imobilizava numa cadeira o Gabriel, então um menino de cinco anos de idade, assustando-o com os mortos que andavam por ali: a tia Petra, o tio Lázaro ou a tia Margarita Márquez.” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021, p.11) Entre os fantasmas de ausência, o principal deles foi, sem dúvida, o de sua ausente mãe, que escolheu deixá-lo aos cuidados dos avós, isso ocorreu ainda em idade de amamentação, ela seguiu de trem à Barranquilla, cidade localizada também na Colômbia, para acompanhar seu esposo, e, também, pai de Gabo em mais uma das muitas tentativas frustradas de ganhar a vida em um novo negócio. E, assim, após ser deixado aos cuidados do Coronel Nicolás Márquez e de Dona Tranquilina, Gabo se viu desde cedo em meio a um mar de experiências familiares e histórias incríveis contadas por seus tios e principalmente seus avós; eram memórias militares, fábulas e lendas mágicas, vozes que dialogam com contextos e, inclusive, discursos de épocas distintas que alimentaram o imaginário do Nobel colombiano, convertendo-o em um escritor capaz de reunir os pormenores da realidade, transformando-os e inserindo-os em conflitos que fizeram com que toda uma geração de leitores se identificasse com a própria realidade, ao mesmo tempo em que se surpreendia com ela. Misturar a realidade, a magia, o mito e a ficção, e com isso criar tramas e personagens marcantes, fortes e únicos, fazendo uso de uma mágica forma de lidar com as palavras e descrever enquanto nos conta as histórias, sempre foi a mais expressiva característica da forma como García Márquez escrevia. Segundo García Márquez (2021), essa capacidade de narrar coisas tão extraordinárias, tão mágicas veio dos seus antepassados: Meus avós eram descendentes de galegos e muitas coisas sobrenaturais que contavam provinham da Galícia. Mas acho que esse gosto pelo sobrenatural próprio dos galegos é também uma herança africana. A costa caraíba da Colômbia onde nasci é, com o Brasil, a região da América Latina onde mais se sente a influência da África (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021, p. 75) Para parte dos críticos que acompanharam os trabalhos do escritor colombiano, dentre eles cabe destacar o ensaísta alemão Ernesto Volkening (2010). Grande parte de sua obra escrita teve como inspiração a sua própria família, além de suas próprias 20 experiências de vida, e isso se confirma quando o próprio García Márquez fala da sua relação com o ofício de escrever uma nova história, e como essa nova história surge a partir de uma imagem visual. Em Cheiro de goiaba (2021), ao ser questionado sobre qual imagem serviu de ponto de partida para Cem anos de solidão (1967), García Márquez confirma, pelo menos em parte, a teoria de Volkening, Gabo diz: Um velho que leva um menino para conhecer o gelo, exibido como curiosidade de circo. […] Lembro que, sendo muito criança, em Aracataca, onde vivíamos, meu avô me levou para conhecer um dromedário no circo. Outro dia, quando lhe disse que nunca tinha visto o gelo, levou-me ao acampamento da companhia bananeira, ordenou que se abrisse uma caixa de pargos congelados e me fez meter a mão lá dentro. Dessa imagem parte Cem anos de solidão inteiro. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021 p. 39 - 40) Além desse evento, García Márquez menciona também a imagem que dá origem aos livros: Ninguém escreve ao coronel e O enterro do diabo. No primeiro, “é a imagem de um homem esperando uma lancha no mercado de Barranquilla. Esperava-a com uma espécie de aflição silenciosa” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021, p.39), já no segundo, “é um velho que leva o neto a um enterro” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021, p.39). Em outro livro, que também teve sua inspiração em fatos ou eventos de sua vida e com a presença de alguns parentes, Crônica de uma morte anunciada (1981), García Márquez nos apresenta a história de um assassinato ocorrido em 1951, quando ainda “era um jornalista de província num jornal ao qual talvez não tivesse interessado o assunto” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021, p. 41). Para ele, quando ocorreram os fatos, aquilo não lhe parecia, pelo menos naquele momento, interessante como material para um romance, apenas como reportagem, e foi somente anos depois que aquele evento ganhou espaço em sua criação literária, e ainda com a presença de alguns sujeitos “conhecidos” participando da história, Gabo diz: “Comecei a pensar o caso em termos literários vários anos depois, mas sempre levei em conta a contrariedade que causava à minha mãe a pura ideia de ver tanta gente amiga, inclusive alguns parentes, metidos num livro escrito por um filho seu” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021, p. 41). Já a respeito dos eventos mágicos que ocorrem em seus textos, García Márquez (2021, p. 53) diz: “Não há nos meus romances uma linha que não esteja baseada na realidade”. Essa “realidade” mencionada por Gabriel é a mesma com a qual aprendeu a conviver com sua avó, Dona Tranquilina. Ela caracteriza o movimento ao qual o 21 tornou reconhecido mundialmente, entretanto, em nada surpreende àqueles que dela partilham seus dias. A respeito disso, García Márquez (2021, p. 52) diz: “Conheço gente inculta que leu Cem anos de solidão com muito prazer e com muito cuidado, mas sem surpresa alguma, pois afinal não lhes conto nada que não pareça com a vida que eles vivem”. Alguns eventos dentro de seus textos também foram inspirados na realidade vivida por García Márquez, como, por exemplo, o caso de Remedios, a Bela, que sobe ao céu de corpo e de alma. Na história, Remedios Buendía é uma personagem feminina com uma passagem “curta” pela história, mas bastante marcante e complexa, com um destaque em especial à sua “morte”, que García Márquez nos conta de onde veio sua inspiração da realidade: Inicialmente tinha previsto que ela desapareceria quando estava bordando na varanda da casa com Rebeca, e Amaranta. Mas esse recurso, quase cinematográfico, não me parecia aceitável. Remedios ia ficar ali de qualquer forma, então me ocorreu fazê-la subir ao céu em corpo e alma. O fato real? Uma senhora cuja neta tinha fugido de madrugada e que para esconder essa fuga decidiu fazer correr o boato de que sua neta tinha ido para o céu” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021, p.53, grifo nosso) Ainda a respeito desse episódio, García Márquez fala sobre a inspiração para fazer Remedios subir ao céu: [Ela] não subia. Eu estava desesperado por que [sic] não havia meio de fazê-la subir. Um dia, pensando nesse problema, fui para o quintal da minha casa. Havia muito vento. Uma negra muito grande e muito bonita que vinha lavar roupa estava tentando estender lençóis num varal. Não podia, o vento os levava. Então, tive uma iluminação. “É isso”, pensei. Remedios, a Bela, precisava de lençóis para subir ao céu. Nesse caso, os lençóis eram o elemento trazido pela realidade. Quando voltei para a máquina de escrever. Remedios, a Bela, subiu, subiu e subiu sem dificuldade. E não teve Deus que a impedisse. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021 p. 54, grifo nosso) Além dos episódios e experiências de sua vida, Gabo também fez uso de muitos eventos históricos. Segundo Martin(2009), as principais referências históricas que formaram o contexto da própria infância de Gabriel García Márquez foram a Guerra dos Mil Dias e o massacre dos trabalhadores bananeiros em Ciénaga, no ano de 1928, eventos históricos também presentes, direta e indiretamente em sua obra mestra, Cem anos de solidão (1967). 22 Segundo García Márquez, seu avô já havia lhe falado muitas vezes da guerra civil, mas foi a partir de um comentário de seu avô sobre uma cicatriz de um tiro na guerra civil, nas palavras de Gabriel “surgiu o interesse que aparece em todos os meus livros por esse episódio histórico” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021, p. 24). Ainda sobre a formação de Gabo, para Martin (2009), foram as lembranças dos eventos ocorridos durante sua primeira infância que formaram a base da mítica Macondo, cidade mais famosa da literatura latino-americana do século XX, que apareceu pela primeira vez na literatura de Gabo em seu primeiro romance, escrito quando ele tinha apenas 22 anos. La hojarasca (1955), que no Brasil foi lançada com o título de A revoada (o enterro do diabo), apresenta muitos dos traços que estarão presentes em toda sua obra, sendo um deles o local onde se passa a história, a Macondo, que anos depois ficaria mundialmente conhecida. Outro momento importante na vida de García Márquez que influenciou na construção mítica de Macondo foi a ausência da presença feminina de sua mãe, segundo Martin: […] o período de desenvolvimento de Gabito durou, portanto, desde os dois anos de idade, quando sua mãe partiu pela segunda vez, até pouco antes que completasse os sete quando seus pais e irmãos voltaram para Aracataca. As memórias daqueles cinco anos são o que realmente constituem as bases do mítico Macondo, o mundo que os leitores de todo o mundo vieram a conhecer” (MARTIN, 2009, p. 73 - tradução e grifos nossos) Ainda segundo Martin (2009), no campo daqueles que alimentaram a escrita de García Márquez, cabe destacar seu avô, um veterano de guerra, de quem ouvia memórias sobre as batalhas, boa parte delas da sangrenta Guerra dos Mil dias, guerra civil entre liberais e conservadores colombianos, ocorrida entre os anos de 1900 e 1902. Seu avô, o coronel Nicolás Ricardo Márquez Mejía, ou simplesmente Coronel Márquez, foi um homem de grande influência na escrita de Gabo, era rígido na forma de tratar com as pessoas, talvez pelo histórico militar de toda uma vida, e conhecido como um grande contador de histórias, além de ser visto por muitos dos que estudam as obras de García Márquez como a figura inspiradora para a criação do coronel Aureliano Buendía, um dos grandes personagens de sua mais célebre obra, Cem anos de solidão, (1967). Entretanto, esta informação é negada pelo próprio Gabriel 23 em entrevista dada a seu amigo Plinio Apuleyo e publicada no livro Cheiro de goiaba (2021): - Sempre acreditei que o Coronel Aureliano Buendía parecia com o seu avô… - Não, o Coronel Buendía é o personagem oposto à imagem que tenho do meu avô. Este era rechonchudo e sanguíneo e, além disso, era o comilão mais voraz de que me lembro e fornicador mais desmedido, segundo soube mais tarde. O Coronel Buendía, em compensação, não só corresponde melhor à estampa ossuda do General Rafael Uribe Uribe7, mas também tem a mesma tendência à austeridade.” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021, p. 24) Em uma das poucas entrevistas feitas com ele, Martin (2009) relata que García Márquez lhe contou que seu avô, o Coronel Márquez, costumava lhe dizer: “tú no sabes lo que pesa un muerto” (GARCÍA MÁRQUEZ apud MARTIN, 2009, p. 44). Essa frase é uma clara referência a um episódio do passado do jovem Nicolás Ricardo Márquez Mejía, antes que viesse a viver na cidade de Aracataca, cidade natal de García Márquez, e, neste episódio, García Márquez citou certa vez em uma conversa com Mario Vargas Llosa no ano de 1967 que: Ele, em alguma ocasião teve que matar a um homem, (...) Ele vivia em um povoado e parece que havia alguém que o incomodava muito e o desafiava, porém, ele não lhe dava atenção, até que se tornou tão difícil a situação que, simplesmente, lhe deu um tiro. Parece que toda a população local estava tão de acordo com o que ele fez, que um dos irmãos do morto dormiu atravessado, nesta noite, na porta da casa, em frente ao quarto de meu avô, para evitar que a família do defunto viesse vingá-lo. Então meu avô, que já não podia suportar a ameaça que existia contra ele neste povoado, se foi então a outra parte; ou seja, não foi a outro povoado; foi para longe com sua família e fundou um povoado... Sim. Ele foi embora e fundou um povoado, e o que eu mais recordo de meu avô e que sempre me dizia: “Você não sabe o quanto pesa um homem morto.” (VARGAS LLOSA; GARCÍA MÁRQUEZ, 2013, p. 47- 48, grifo nosso). O peso deste morto que fez seu avô ir embora e fundar um outro povoado, deixou uma lição e inspiração que Gabo carregou para a vida e a literatura, e isto se tornou parte importante de vários de seus livros, principalmente de Cem anos de 7 Político e militar colombiano, líder do partido liberal e chefe das forças que se levantaram contra o Governo conservador em 1899, considerado o início da Guerra dos mil dias. 24 solidão (1967), onde o Coronel José Arcádio Buendía também funda um povoado após ir embora do seu por causa de um assassinato público. De sua avó, Gabo se alimentou de fábulas e lendas mágicas que trouxeram a fantasia para dentro de suas histórias, a religiosidade, o sobrenatural, o extraordinário e como tudo isso deveria ser visto como algo perfeitamente natural, e assim foi como García Márquez empregou em seus textos, tal qual como sua avó lhe dizia, segundo ele: Para ela, os mitos, as lendas, as crenças das pessoas faziam parte, e de maneira muito natural, da sua vida cotidiana. Pensando nela, percebi de repente que não estava inventando nada, mas simplesmente captando e me referindo a um mundo de presságios, de terapias, de premonições, de superstições […]. Lembre-se, por exemplo, daqueles homens que no nosso país conseguem tirar pela orelha, rezando orações, os vermes de uma vaca. Toda nossa vida diária, na América latina, está cheia de casos como esse. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021, p.87) Ainda sobre sua avó, García Márquez (2021) dizia que ela era uma mulher imaginativa e supersticiosa e lhe contava fatos bárbaros sem se comover, como se fosse uma coisa que acabara de suceder, e que esta maneira o ajudou na forma usada para escrever Cem anos de solidão. Ele diz: “Descobri que essa maneira de imperturbável e essa riqueza de imagens era o que mais contribuía para a verossimilhança das suas histórias. Usando o mesmo método da minha vó, escrevi Cem anos de solidão” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021, p. 44). Apesar da grande importância que teve sua avó em sua vida, principalmente na forma mágica, maravilhosa e fantástica que aprendeu a observar o mundo que o rodeava e transformar isso em literatura, na sua formação, nas suas próprias palavras e na sua biografia, o seu avô sempre teve mais espaço, e a ele estará dedicado o tópico a seguir. 2.1 O homem: “De la mano de su abuelo” “El coronel se llevaba consigo a su nieto a todas partes, todo se lo explicaba” (Gerald Martin, p. 64) 25 A importância de seu avô, o Coronel Nicolás Márquez Mejía, em sua vida, sempre foi algo que Gabo fazia questão de declarar. Certa vez, no ano de 1967, após o sucesso do lançamento de Cien años soledad (1967), ao ser perguntado por Mario Vargas Llosa sobre quem havia sido a pessoa mais importante de sua infância, Gabo respondeu sem titubear: “Era mi abuelo, fijense que era un señor que yo encuentro después en mi libro”8 (VARGAS LLOSA; GARCÍA MÁRQUEZ apud MARTIN, 2009, p. 44). Este episódio que Gabo menciona ao responder à pergunta, trata-se da imagem de abertura dessa mesma obra, em queo Coronel Aureliano Buendía frente ao pelotão de fuzilamento recordava o dia em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Segundo Martin (2009), o Coronel Márquez Mejía ofereceu uma série de aventuras bastante simbólicas, lembranças memoráveis que ficariam eternamente presentes na imaginação de seu neto, e que muitos anos depois fariam parte da abertura de sua mais célebre obra. Sobre este dia que foi a conhecer o gelo, Gabo diz: O toquei e senti que me queimava, porém, nesta primeira frase da novela eu precisava do gelo, porque no povoado que é o mais quente do mundo, a maravilha é o gelo. Se não fizesse calor, não sairia o livro. Faz tanto calor, que não fez falta voltar a mencioná-lo, estava no ambiente” (GARCÍA MÁRQUEZ apud MARTIN, 2009, p. 76. - tradução nossa) Essa imagem do velho que leva o menino pela mão se repete com grande frequência na literatura de García Márquez, dentre as várias e várias histórias contadas por seu avô, o Coronel Márquez Mejía, que também ganhou uma homenagem em forma de personagem de um de seus livros, assim como diversas pessoas que passaram por sua vida, e de alguma forma o inspiraram a escrever. É no livro O enterro do diabo (1955) que encontramos a imagem e representação de seu avô, disse García Márquez: O único personagem que parece com meu avô é o coronel de O enterro do diabo. Mais ainda: é quase um decalque minucioso de sua imagem e do seu temperamento, embora talvez isso seja muito subjetivo, porque não está descrito no romance e é muito provável que o leitor tenha dele uma imagem diferente da minha. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021, p. 23) 8 “Era meu avô, observem que é um senhor que eu encontro depois em meu livro”. (tradução nossa). 26 Esse personagem, inspirado em seu avô, tinha também um “defeito físico”, segundo Gabriel, o coronel do livro era “coxo”, um “defeito” transposto de seu avô, que era cego de um olho, e que o havia perdido de uma maneira muito única, García Márquez comenta que: Meu avô tinha perdido um olho de uma maneira que sempre me pareceu literária demais para ser contada: estava contemplando da janela do seu escritório um belo cavalo branco e de repente, sentiu alguma coisa no olho esquerdo, cobriu-o com a mão e perdeu a visão sem dor. […] Minha vó dizia sempre no final: A única coisa que lhe ficou na mão foram as lágrimas. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021, p. 23) Em Cheiro de goiaba, García Márquez fala de sua relação com seu avô, ele diz: O Coronel Nicolás Ricardo Márquez Mejía, que era o seu nome completo, é talvez a pessoa com quem melhor me entendi e com quem melhor comunicação já tive, mas a quase cinquenta anos de distância tenho a impressão de que ele nunca foi consciente disso. Não sei por que, mas essa suposição, que me surgiu na época da adolescência, sempre foi traumática para mim. É como uma frustração, como se estivesse condenado para sempre a viver com uma incerteza que devia ser esclarecida e que não será nunca mais, porque o coronel morreu quando eu tinha oito anos. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021 p. 22 - grifo nosso) Em outro episódio retratado por García Márquez a respeito da figura de seu avô e a relação com a Guerra Civil, Gabriel menciona uma recordação muito importante: A lembrança mais impressionante que tenho do meu avô tem a ver com isso:9 Pouco antes de sua morte, não sei por que motivo, o médico estava lhe fazendo um exame na cama e de repente se deteve numa cicatriz que tinha muito perto da virilha. Meu avô lhe disse: “Isso foi um tiro”. Muitas vezes me havia falado da guerra civil, mas nunca tinham dito que aquela cicatriz fora causada por bala. Quando disse isso ao médico, para mim foi como a revelação de alguma coisa lendária e heroica. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021 p. 24, grifo nosso) 9 Aqui García Márquez se refere à Guerra dos Mil Dias, “última da Colômbia nos primeiros anos deste século, e na qual meu avô obteve a patente de coronel revolucionário ao lado do partido liberal” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021. p. 24). 27 Segundo Martin (2009), a Espanha e a América Latina guardavam mais uma entre tantas semelhanças, a de que tradicionalmente o ambiente das mulheres era a casa, e o dos homens, a rua, e que foi o Coronel Márquez Mejía quem havia levado o pequeno Gabriel para conhecer um mundo fora dessa grande casa em que viviam, Martin diz: Foi o seu avô, o coronel, que aos poucos o resgatou daquele mundo feminino de superstições e premonições, daquelas histórias que pareciam emergir do lado negro da própria natureza, e que o instalou no mundo da política e da história que era apropriado aos homens; o tirou, por assim dizer, à luz do dia. (MARTIN, 2009, p. 73 - tradução nossa). O coronel Márquez Mejía foi a figura paterna que García Márquez conheceu durante a sua primeira infância entre os anos de 1927 até 1937, sendo também, nas palavras de Vargas Llosa, um personagem com grande influência na literatura de García Márquez (VARGAS LLOSA; GARCÍA MÁRQUEZ, 2013 p. 48), dele, García Márquez herdou “sua filosofia de vida e sua moralidade política; em definitivo, sua visão de mundo” (MARTIN, 2009, p.75), foi com ele que García Márquez aprendeu sobre a guerra dos Mil Dias, as plantações de banana e a United Fruit Company, a grande greve de 1928 e as mortes que dela “surgiram”, as batalhas, a violência, as diversas cicatrizes e histórias dos liberais heroicos e suas façanhas (MARTIN, 2009). Não foi apenas o coronel Márquez Mejía que contribuiu para esta formação do escritor Gabriel García Márquez. Ao responder a uma pergunta feita por seu amigo Vargas Llosa sobre em que momento pensou em usar essas lembranças e experiências pessoais para escrever novelas e contos, García Márquez menciona que, além de seu avô, outro elemento merece destaque nesta formação como escritor, é a casa onde viveu: “Na realidade, não é somente meu avô, é toda essa casa no povoado que ele ajudou a fundar e que era uma casa enorme, onde se vivia verdadeiramente no mistério” (VARGAS LLOSA; GARCÍA MÁRQUEZ, 2013, p. 48 - tradução nossa) 2.2 Uma casa de histórias 28 A casa onde morou com seus avôs em Aracataca, nos primeiros dez anos de sua vida, também deixou profundas marcas em Gabo, não apenas pela casa como o seu lar, uma casa cheia de gente durante todo o dia, mas pelas imagens que esta casa sempre lhe causou. Martin (2009) conta que, certa vez, Gabo recordava, durante uma conversa, que a imagem mais poderosa de sua infância havia sido aquela casa, em suas palavras: Minha lembrança mais viva e constante não é a das pessoas, e sim a da casa de Aracataca onde vivia com meus avós. É um sonho recorrente que ainda persiste, mais ainda: todos os dias de minha vida acordo com a impressão, falsa ou real, de que sonhei que estou nessa casa. Não que voltei a ela, e sim que estou ali, sem idade e sem nenhum motivo especial, como se nunca tivesse saído dessa casa velha e enorme. Entretanto, ainda no sonho, persiste o que foi meu sentimento predominante durante toda aquela época, aflição noturna. Era uma sensação irremediável que começava sempre ao entardecer, e que me inquietava inclusive durante o sono, até que voltava a ver pelas frestas das portas a luz do novo dia. (GARCÍA MÁRQUEZ apud MARTIN, 2009, p. 56 - tradução nossa) Foi nessa casa que diversos elementos de sua literatura começaram a ganhar vida, entre pessoas e eventos, do natural ao sobrenatural, todos tiveram suas sementes plantadas ali. Segundo Martin (2009), a casa de Aracataca foi, de certa forma, o gene da formação do escritor Gabriel García Márquez, sendo o ambiente que, a todo momento, reunia tudo aquilo que García Márquez tentava reviver em seus textos, e “anos mais tarde, quando o tempo e ou a distância o afastaram dali, aquela casa continuaria a assombrá-lo, e o esforço para recuperá-la, recriá-la e dominar as memórias que guardavadela seria em grande parte o que o tornaria escritor” (MARTIN, 2009, p. 56, tradução nossa). Essas sementes do passado de García Márquez são elementos constituídos por marcas de sua história vivida, é o que o escritor Walter Benjamin nos apresenta como spuren, ou rastro, que, segundo Sedlmayer e Ginzburg (2012), é um elemento do universo benjaminiano utilizado para questionamentos sobre como interpretar o passado, neste caso, o passado daquele Gabriel de 1948. Quando nos questionamos sobre como o passado nos influenciou acerca de sua importância nos diversos elementos constitutivos de quem somos hoje, estamos buscando o que de importante ou não nos fez ser quem somos. Segundo Sedlmayer e Ginzburg (2012), o termo rastro (spuren) aponta ambiguamente para dois elementos 29 do passado, a ausência e a presença, ambos intensamente vividos por García Márquez em suas relações familiares durante sua infância. A ausência de seus pais de um lado, e do outro, a presença de uma grande família, composta por diversos tios, tias, primos e primas, e principalmente, sua avó e seu avô, personagens muito importantes na constituição de quem se tornou “Gabito”, ambos em constante contato, com a morte, tenha sido ela mágica ou real. Nessa casa, cenário de ausências e presenças, uma morte que verdadeiramente afetou de diversas formas sua vida, foi a de seu avô, alguém que ele não largava quando pequeno, “vivia pegadito al abuelo, oyendo todas las histórias”10 (MARTIN, 2009, p. 75), fez com que García Márquez aprendesse a conviver com os rastros de seu passado sempre que escrevia quando adulto. “Lidar com um rastro exige contemplar o que restou, dentro de um horizonte em que houve perda” (SEDLMAYER; GINZBURG, 2012, p. 8). Os estudos de Walter Benjamin, autor de origem judaica e nacionalidade alemã, se expandiram e com isso avançaram alguns limites, permitindo assim serem usados para análise em diversos campos. Segundo Vasconcellos, Benjamin não foi: [...] propriamente um historiador, um teólogo, um filósofo da linguagem ou um crítico da literatura e da arte, escrevia sobre história, teologia, estética e literatura indistintamente, misturava áreas e saberes constituindo uma forma própria de lidar com o mundo e com o conhecimento. [...] seu trabalho não se limitou aos campos mencionados acima, mas se espraiou e vem se espraiando pelos campos da psicanálise, da arquitetura, da sociologia e, principalmente, da teoria literária, disciplina que recentemente tem se expandido para dar conta não só de objetos artísticos, mas também dos discursos e das narrativas que compõem o vasto panorama da cultura [...] (SEDLMAYER; GINZBURG; VASCONCELLOS, 2013. p. 249, grifo nosso) De acordo com o pensamento benjaminiano, se essas marcas, ou vestígios do passado são de algum modo incorporados ao presente, esse passado é revivido, no caso em questão, o passado do Gabriel é revivido em sua formação como escritor, e principalmente em seus textos, que durante toda sua vida o fizeram voltar ao seu passado, usando-o como fonte de inspiração literária. Analisar os textos de García Márquez sob a luz da teoria do rastro de Walter Benjamim se mostra ser também uma possibilidade real, entretanto, para este 10 “Vivia grudado ao avô, ouvindo todas as histórias”. (tradução nossa). 30 trabalho, acreditamos não ser suficiente para observar com qualidade e precisão as marcas do passado, as presenças e ausências descritas e/ou mencionadas pelos narradores nos textos presentes em suas crônicas, tendo em vista que há aqui um pequeno recorte de parte das crônicas escritas em apenas um período de sua produção como cronista. Outro ponto importante a se considerar é o fato de que a crônica enquanto gênero textual possui uma característica muito singular, trata-se da representação do presente, das coisas simples do dia a dia, do nosso cotidiano, o que leva a pensar que o gênero não trata ou apresenta elementos do passado, mas podemos ressaltar que as observações sobre o presente, inseridas nessas crônicas, até podem levar a lembranças de um passado e trazer todos esses elementos do universo benjaminiano, mas, mesmo assim, é importante ressaltar que a natureza e as características deste trabalho apresentam apenas um recorte. 31 3 CRÔNICAS: ORIGEM E EVOLUÇÃO O termo “crônica” carrega consigo muito mais do que a definição que lhe é atribuída cotidianamente, sua origem vai muito além, remetendo ao período dos titãs e deuses gregos, para ser mais preciso, sua origem vem da Mitologia Clássica, do mito do deus titã Cronos, aquele que destronou o pai, casou-se com a própria irmã e devorou os próprios filhos frutos desse casamento. Neste mito, Cronos, filho de Gaia, a Terra, e de Urano, o Céu, usurpa o trono de seu pai, mas uma profecia anunciava que um filho seu faria o mesmo que ele havia feito com Urano, seu pai, então, a fim de evitar que isso ocorresse, Cronos passou a devorar os próprios filhos assim que nasciam, mas Reia, sua esposa e irmã, na tentativa de evitar mais uma morte de um filho seu, embrulhou uma pedra em um pedaço de pano e deu para Cronos, que a devorou acreditando ser seu filho e, assim, a criança conseguiu sobreviver e concretizar a profecia. Este filho, trocado por uma pedra, era Zeus, que criado longe da presença de seu pai, cresceu e voltou para enfrentá-lo e destroná-lo, assim como dizia a profecia, além de salvar todos os seus irmãos que haviam sido devorados (BULFINCH, 2002). Cronos, o deus titã grego que passou a ser visto como o deus do tempo, passou agora a dar nome a este gênero narrativo que se ocupa em narrar fatos históricos em uma sequência linear de tempo ou tratar de temas atuais, a crônica, palavra originada do grego khrônos11 (tempo)¸ e que deu origem a outros diversos vocábulos que se relacionam com a ideia de tempo, como, por exemplo, os termos cronograma ou cronológico, os quais sofreram diversas mudanças de sentido ao longo dos séculos, até, finalmente, ser compreendida como um gênero narrativo e literário. A crônica, desde que passou a ser vista como gênero literário, sempre esteve estreitamente ligada à narrativa dos fatos ocorridos, sejam eles históricos ou não. Entretanto, até ser reconhecida de fato como um gênero literário em seu sentido moderno, objeto desta dissertação, a crônica percorreu uma longa jornada através dos anos, e durante esta evolução o termo mudou de sentido, “mas nunca perdeu os vínculos com o sentido etimológico que lhe é inerente e que está em sua formação” (BENDER; LAURITO, 1993, p. 11). 11 MASSAUD, Moisés. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 110. 32 Dentre as possíveis definições do termo, Moisés (2004, p. 110) diz que o termo, que primeiramente foi empregado no início da era cristã, “designava uma lista ou relação de acontecimentos, arrumados conforme a sequência linear do tempo”. Já para Cunha (1986, p. 191), trata-se de uma “narração histórica, feita por ordem cronológica, seção ou coluna de jornal, ou de revista, que trata de assuntos da atualidade”. Houaiss e Villar (2001), por sua vez, apresentam uma definição mais ampla, contemplando história, jornalismo e literatura. Os autores definem a crônica como uma compilação de fatos e eventos históricos que são apresentados seguindo a ordem temporal de ocorrência destes fatos ou eventos. Na segunda definição, trata- se de uma coluna de periódicos assinada, na qual há a presença de notícias ou comentários sobre diversos temas da sociedade, atividades culturais, políticas, econômicas ou científicas; por último, apresenta a crônica como um texto literário curto, narrativo, que possui como base da trama os temas do nosso cotidiano, contemplando assim, respectivamente, as esferas histórica, jornalística e literária. Sendo assim, observando atentamente, nosdois casos, tanto em Cunha (1986) quanto em Houaiss e Villar (2001), encontramos a crônica como uma narração histórica de fatos ocorridos em ordem cronológica ou como texto jornalístico de caráter mais pessoal, escrito de forma livre, e que tem como tema os fatos relativos ao cotidiano. Dessa forma, fica evidente, então, que, em relação à primeira definição, o termo remete ao registro do passado, de tudo aquilo já ocorrido, enquanto que a segunda, ao registro do presente contínuo. Sendo assim, como entender e significar a relação da crônica com a literatura? Para isso, faz-se necessário um pequeno histórico sobre esse gênero e suas origens. 3.1 As crônicas historiográficas Segundo Bender e Laurito (1993), o gênero vem desde a Idade Média, mas é a partir de 1434, com os chamados Cronicões medievais na Europa, que surge, na literatura portuguesa, o profissional cronista, o qual passa a ter como trabalho escrever crônicas. O cargo de cronista-mor do Reino era o cargo em que o profissional cronista seria pago para trabalhar com a matéria histórica, com a narrativa vinculada ao registro de acontecimentos históricos no reino, sendo Fernão Lopes, segundo os registros, um dos mais conhecidos cronistas históricos do reino de Portugal. 33 No Brasil, o nascimento da crônica, usada no sentido antigo do termo, encontra-se na Carta de Pero Vaz de Caminha, documento este que relatava os acontecimentos do descobrimento, e que só chegaria semanas depois ao destinatário, logo, estaria relatando acontecimentos ocorridos no passado, quando então chegassem às mãos do rei de Portugal. Porém, Bender e Laurito (1993, p.12) destacam que, além desse sentido já conhecido, Caminha “comporta-se também como um cronista no sentido atual da palavra – o de flagrador do tempo presente – na medida em que seu relato é contemporâneo dos acontecimentos que narra”. O uso da crônica, ainda no sentido antigo do termo, percorre séculos, até chegar ao século XIX, período em que ganha o caráter de um texto jornalístico que aborda diversos assuntos, adquirindo, assim, “uma significação moderna” (MOISÉS, 2004, p. 110). Com seu surgimento no folhetim francês do Journal des Débats, foi ali que a crônica ganhou espaço nos jornais. Segundo Moisés (2004), a crônica, agora sob outra ótica, e não mais aquela da Idade Média, teria sido inaugurada pelo francês Julien-Louis Geoffroy, por volta de 1800 no jornal já mencionado anteriormente. De acordo com Bender e Laurito (1993), o folhetim (do francês feuilleton) surge com o objetivo de entreter e dar ao leitor uma espécie de descanso das notícias da época, as quais quase sempre eram notícias graves, sobre violência. O folhetim se constituía de um espaço no rodapé do jornal, e o cronista da época levava o nome de folhetinista. Havia dois tipos de folhetins: o Folhetim-romance e o Folhetim- variedades. No primeiro, eram publicados os textos de ficção, textos muitas vezes distribuídos em capítulos, os quais conseguiam prender a atenção dos leitores, de modo que consumissem mais e mais aquela leitura, apenas para acompanhar a continuação de sua leitura. Já no segundo, eram publicados textos que registravam, e, por vezes, comentavam os acontecimentos cotidianos. Foi a partir desse modelo que surgiu o gênero crônica tal como o concebemos na atualidade. Bender e Laurito destacam “que o valor e a sedução dessa seção do jornal dependiam do talento e do estilo do escritor, ainda que a marca fosse o tom ligeiro e descomprometido, geralmente e propositadamente ‘frívolo’, para conquistar a empatia do leitor” (1993, p. 16, grifo das autoras). Nota-se, nessa citação, um elemento que levaria a crônica a consagrar grandes cronistas, que se transformariam, mais tarde, em escritores de renome, como é o caso de García Márquez: o talento e o estilo do escritor. 3.2 As crônicas jornalísticas 34 Com o desenvolvimento da imprensa, os chamados folhetins - crônicas do século XIX que abordavam os mais diversos temas possíveis, foram perdendo espaço nos jornais para seções especializadas, eram articulistas, comentaristas e críticos, que davam a este espaço no jornal uma matéria especializada produzida por um jornalista. Nas palavras de Bender e Laurito, entre estes especialistas que assumiram o espaço nos jornais, está o cronista moderno: Entre eles, está o que se chama hoje de cronista, o especializado em tudo e em nada. Melhor dizendo, aquele escritor-jornalista ou jornalista-escritor que, ao mesmo tempo, prende e solta sua imaginação criadora num espaço específico e bem caracterizado da imprensa diária ou periódica. (BENDER; LAURITO, 1993, p. 22) Motivados pelo mercado que se abria para esse escritor profissional, a crônica mostrou-se como uma saída para o escritor viver da sua produção literária, por ser um gênero imediatista e de retorno econômico garantido, mas para isso o cronista tinha como desafio ter algo interessante do presente para contar. Essa característica de narrar o cotidiano, na visão de Henrique Pongetti (1973), faz do cronista um “historiador menor de sua época” (apud BENDER; LAURITO, 1993, p. 24), fornecendo material, no futuro, para a análise do passado. Segundo Bender e Laurito (1993, p. 24), Pongetti (1973) também “enfatiza o importante aspecto intrínseco da crônica como registro da fugacidade do cotidiano que morre a cada instante, como forma de recriar e salvar do esquecimento o fato efêmero”. É pensando nesse aspecto, e nos registros de momentos efêmeros do século XX que posicionamos nossa atenção a esta pesquisa, e como já mencionado antes, mais precisamente em 1948 e 1950, que voltamos nosso olhar sobre as crônicas de Gabriel García Márquez. É nesse ponto que se deve ressaltar que o interesse deste trabalho é a crônica como gênero próprio, uma forma de arte, ou seja, o que nos interessa são as crônicas literárias de Gabo. Outro fato a ser comentado é o de que grandes nomes da literatura também já foram cronistas no começo da carreira, afinal, viam nessa prática uma profissão, diminuindo, assim, o seu prestígio enquanto gênero, classificando-o, por vezes, como um gênero menor. Diferente disso pensa Vinicius de Moraes que, em uma de suas várias crônicas em que trata do exercício do cronista, classifica o gênero como uma “Prosa fiada”. Na crônica que abre o livro Para viver um grande amor, Vinicius nos diz: 35 Escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista; não a prosa de um ficcionista, na qual este é levado meio a tapas pelas personagens e situações que, azar dele, criou porque quis. Com um prosador do cotidiano, a coisa fia mais fino. Senta-se ele diante de sua máquina, acende um cigarro, olha através da janela e busca fundo em sua imaginação um fato qualquer, de preferência colhido no noticiário matutino, ou da véspera, em que, com as suas artimanhas peculiares, possa injetar um sangue novo. Se nada houver, resta-lhe o recurso de olhar em torno e esperar que, através de um processo associativo, surja-lhe de repente a crônica, provinda dos fatos e feitos de sua vida emocionalmente despertados pela concentração. Ou então, em última instância, recorrer ao assunto da falta de assunto, já bastante gasto, mas do qual, no ato de escrever, pode surgir o inesperado. [...] Coloque-se porém o leitor, o ingrato leitor, no papel do cronista. Dias há em que, positivamente, a crônica “não baixa”. O cronista levanta- se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração — e nada. Ele sabe que o tempo está correndo, que a sua página tem uma hora certa para fechar, que os linotipistas o estão esperando com impaciência, que o diretor do jornal está provavelmente coçando a cabeça e dizendo a seus auxiliares: “É… não há nada a fazer com fulano…”.Aí então é que, se ele é cronista mesmo, ele se pega pela gola e diz: “Vamos, escreve, ó mascarado! Escreve uma crônica sobre esta cadeira que está aí em tua frente! E que ela seja bem-feita e divirta os leitores! (MORAES, 2010, p.15-16, grifo do autor) Nesse texto, Vinícius trata a crônica como um gênero trabalhoso, que merece atenção, fala das dificuldades que percorrem a vida e a atividade do cronista que, segundo ele, engrandecem o gênero, pois o cronista do “cotidiano” encara um processo de construção que é o de interpretar, a partir de seu olhar e suas experiências, ou a falta delas, as ações do dia a dia, trazendo algo sobre aqueles acontecimentos tão comuns em nossa vida diariamente, e para isso, ele usa o termo “fiada”, que de forma solta poderia remeter a diversos sentidos, mas aqui a usa no seu sentido de alinhamento, construção diária em seus detalhes. Além dele, outro grande nome da literatura brasileira que veio em defesa da crônica foi Carlos Drummond de Andrade, que, em crônica publicada no jornal Folha de São Paulo, no ano de 78, rebateu a suposta superficialidade do gênero em resposta a um leitor12 que lhe questionara sobre o gênero ser frívolo e superficial: 12 Carlos Drummond de Andrade. “O frívolo cronista”. Folha de S. Paulo, 14 set. 1978. 36 Um leitor de Mato Grosso do Norte escreve deplorando a frivolidade que é marca registrada desta coluna. Hoje não estou para brincadeiras, e retruco-lhe nada menos que com a palavra de um sábio antigo, reproduzida por Goethe em Italianische Reisen. Vai o título em alemão para maior força do enunciado. [...] A frase é esta, em português trivial: “Quem não se sentir com tutano suficiente para o necessário e útil, que reserve em boa hora o desnecessário e inútil”. É o que faço, respaldado pela sentença de um mestre, endossada por outro. E vou mais longe. O inútil tem sua forma particular de utilidade. É a pausa, o descanso, o refrigério, no desmedido afã de racionalizar todos os atos de nossa vida (e a do próximo) sob o critério exclusivo de eficiência, produtividade, rentabilidade e tal e coisa. Tão compensatória é essa pausa que o inútil acaba por se tornar da maior utilidade, exagero que não hesito em combater, como nocivo ao equilíbrio moral. Não devemos cultivar o ócio ou a frivolidade como valores utilitários de contrapeso, mas pelo simples e puro deleite de fruí-los também como expressões de vida. [...] Meu leitor (ou ex-leitor) mato-grossense do norte, não me queira mal porque não alimento a sua fome de conceitos graves, eu que me cansei de gravidade, espontânea ou imposta, e pratico meu número sem pretensão de contribuir para o restauro do mundo. O sábio citado por Goethe me justifica, absolve e até premia. Eu disse no começo que não estou para brincadeira? Mentira; foi outra frivolidade. Ciao (ANDRADE apud Bender e Laurito, 1993, p. 27 – grifos nossos) Candido (1980) vê com bons olhos o fato de a crônica ser apresenta por vezes como um gênero menor, e assim escreveu: A crônica não é um ‘gênero maior’. Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor. ‘Graças a Deus’, - seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica perto de nós. (CANDIDO, 1980, p. 5, grifo do autor) O fato é que, desde a sua origem, a crônica foi casa para a literatura em meio mundo, mas nem sempre reconhecida com o devido valor que merece, e com García Márquez não seria diferente. Para o jornalista e escritor Gustavo Tatis Guerra, em matéria escrita para o jornal El Universal, sobre o primeiro trabalho de García Márquez publicado no mesmo jornal, os textos ali escritos eram “uma coluna que tinha mais de prosa poética que de crônica”13. Infelizmente, não é possível afirmar se essas palavras 13 “una coluna que tenía más de prosa poético que de crónica”. (TATIS GUERRA, Gustavo. Lo primero que escribió Gabo en El Universal. El Universal, Cartagena, 20 mar. 2015. Cultural). Disponível em: 37 foram uma crítica ou elogio a primeira crônica daquele que viria a ser vencedor do Nobel de literatura, o fato é que a crônica, mesmo não sendo tão valorizada quanto os gêneros novela ou romance, é escala para que esses dois últimos tenham o prestígio que têm, talvez porque a casa da crônica, o jornal, desde os primórdios, tem sempre um final não muito feliz, o de se tornar um papel velho, usado no mercado para embrulhar mercadoria ou mesmo para o lixo. 3.3 Um gênero híbrido: o cotidiano interpretado literariamente Desde os primórdios, a literatura e a história sempre andaram juntas, seja como fonte para pesquisa de uma ou como fonte de inspiração para a criação em outra. A relação entre essas duas grandes áreas tem se tornado cada vez mais um campo de pesquisa de valor inestimável para que seja possível a nossa leitura e compreensão tanto do passado, quanto do presente. Entretanto, para se compreender o mundo, precisamos partir da premissa de que tanto a literatura quanto a história apresentam, como produto ou objeto final, a narrativa, uma narrativa nascida a partir daquilo que ambas as áreas fazem, o ato de contar e recontar, o narrar, apresentar fatos e acontecimentos, apresentar a realidade com tramas, enredos e personagens dos mais variados tipos. Alguns destes surgidos na inspiração dos já mortos em carne, mas vivos em conquistas, histórias ou legados, outros, apenas vivos e passageiros nas linhas de um parágrafo, mas sempre presentes nos acontecimentos que nos levam a compreender o passado, o presente e por que não o futuro também. A literatura é uma das muitas formas de manifestação artística que conduzem os diversos aspectos sociais da realidade que visa retratar. Ao tratar de literatura e sociedade, Facina (2004) busca algumas reflexões, e entre tantas, uma delas é entender as maneiras como a literatura pode vir a ser uma fonte de estudo das sociedades, e para isso, primeiramente, precisa apresentar a concepção de literatura utilizada em seu trabalho: Basicamente, estou me referindo àquele campo das letras que conquistou certa autonomia e especialização no mundo contemporâneo, destacando-se do que se costumava denominar <https://www.eluniversal.com.co/cultural/lo-primero-que-escribio-gabo-en-el-universal-188120- JBEU286870>. Acesso em: 11 ago 2019. https://www.eluniversal.com.co/cultural/lo-primero-que-escribio-gabo-en-el-universal-188120-JBEU286870 https://www.eluniversal.com.co/cultural/lo-primero-que-escribio-gabo-en-el-universal-188120-JBEU286870 38 “belas letras” e que incluía, além da poesia e do romance, a filosofia, a história, o ensaio político ou religioso. (FACINA, 2004, p.7, grifo do autor) Essa definição, que nas palavras da própria Facina (2004, p.9), é “bastante simplificada”, mas serve para os estudos sobre a realidade da qual faz parte. Ademais, Facina (2004, p.9) menciona que, mesmo que um autor de “outra época” tenha algo nos dizer, sua obra literária é um fruto de seu tempo, “e, portanto, é historicamente situada”. Já para Candido: Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. [...] aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. (2011, p.174) Em outro momento, Facina (2004) na busca por detalhar melhor o conceito apresentado por ela o relaciona