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CULTURA – alguns questões prévias e outras circunstanciais 
Introdução 
Ao propor-me abordar o termo cultura tenho a intenção, para além de apresentar ideias, definições, 
pressupostos, de provocar o debate e de apresentar algumas dúvidas. 
Consta que cultura provém do Latim, algo próximo a cultivar e, na sua génese, a colher: cultiva-se 
para se colher cereais e legumes. Corresponde, em termos da história humana, a uma fase em que os 
homens deixaram de depender somente da caça, da pesca e do que recolhiam na sua passagem. 
Criaram comunidades mais estáveis em termos geográficos, construíram casas, criaram gado e 
cultivaram a terra. Modificaram a sua alimentação introduzindo os cereais, formaram uma 
sociedade em que o futuro poderia ser imaginado e alterado, tentando controlar a terra, planeando 
cultivos futuros, prevendo acontecimentos cíclicos e astronómicos que propiciassem boas colheitas, 
criando engenhos de rega, utensílios de lavra, desenvolvendo rapidamente diferentes formas de 
participação na sociedade. Criaram organizações sociais complexas, a política, a cidade, a 
observação e a ciência. Cultura, política e cidade estão intimamente ligadas desde a sua origem. 
Mas cultura, hoje, significa muito mais: cultura popular, alta cultura, cultura geral, cultura burguesa, 
cultura de massas, cultura folclórica (ou seja, das canções do povo), cultura artística, sub-culturas 
várias, cultura maçónica, culturas urbana e suburbana, projetos culturais, pelouros da cultura, 
centros culturais, ministério da cultura, subsídios para a cultura. 
Definição 
Parece-me que avançar uma definição de cultura será algo temerário. Mas vou (seguramente sem 
êxito) tentar. 
Cultura, hoje, tem a ver com atividades de criação na relação em sociedade, com trocas simbólicas; 
normalmente na cultura se incluem as atividades criativas próprias do ser humano: a música, a 
pintura, o teatro, a arquitetura, a dança, mas também a construção, a gastronomia, os mitos, o jogo e 
as múltiplas atividades lúdicas, a leitura, o pensamento, talvez mesmo a física e a química enquanto 
cultura científica, com pressupostos experimentalistas tão particulares na chamada cultura 
ocidental. O que não se inclui em cultura… difícil dizer. 
Cultura tem a ver com atividades interpessoais, com a relação das pessoas numa comunidade, na 
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medida em que essa relação se vai formalizando em esquemas repetidos, em trocas simbólicas que 
são reconhecidas pelos seus membros, que formam um quadro – cultural – de referências comum. 
Formam como que clusters simbólicos que ora são aceites ora são recusados dentro de um quadro 
comum de referências. Nós recusamos o apedrejamento de adúlteras como algo cultural, outros não; 
nós não vivemos com intensidade as delicadezas e profundidade da música carnática, mas milhões 
doutros, no sul da Índia, sim, pois é a sua “música clássica”; alguns de nós ouvem com prazer a voz 
de Paulo Bragança, outros preferem a de Philippe Jaroussky, outros as vozes de ambos, outros a de 
nenhum deles. 
Cultura implica, na génese, uma relação com as coisas e com os outros, e uma reflexão sobre essa 
relação. Cultura implica a elaboração de um discurso: se algo é cultura, é porque existe um 
discurso mais ou menos elaborado sobre isso. Há discurso sobre tudo: sobre catedrais, duendes, 
automóveis, tripas à moda do Porto, sobre barcos, sobre tascas, sobre esse imenso fenómeno 
cultural que são…. os gambuzinos. E na razão desse discurso é que entendemos a cultura, ou esse 
pedaço de cultura. 
E, a meu ver, o grau de elaboração desse discurso será da maior relevância para a consideração do 
objeto ou dado cultural; quanto mais profundo, mais interessante, mais novo, mais gerador, mais 
desenvolvido é esse discurso, mais interesse terá esse pedaço de cultura. O que importa são as 
implicações desse discurso: 
• O que nos possibilita esse discurso em termos de pensamento e ação – conceptuais, 
filosóficas, formais, éticas, sociais, criativas; 
• O que nos proporciona de novo, de evolutivo; 
• Em que medida esse discurso nos aproxima de um grau superior de existência pessoal e com 
os outros; 
• Em que medida esse discurso nos aproxima da sabedoria. 
Assim, será bem diferente, com graus de importância bem diversos, um discurso sobre futebol ou 
um sobre Platão; será muito diferente as possibilidades de nos transformarmos interiormente com 
uma peça de Strindberg ou com um texto de stand-up-comedy; apesar da imensa satisfação que este 
último nos possa proporcionar, em contraste com a dificuldade de entendimento do enredo e a 
densidade das personagens da primeira. 
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Graus de Cultura 
Há, assim, graus de cultura, podendo diferenciar uma cultura pobre de uma cultura rica em termos 
de discurso; uma cultura atuante, que propõe um desenvolvimento da sociedade, de uma cultura 
inerte, que simplesmente confirma o campo de previsões estabelecido; uma cultura profunda, que 
não se inibe de interrogar os esquemas formais compreendidos, de uma cultura superficial, que se 
satisfaz na narração do observável. Ou até uma alta e baixa cultura, não exatamente pelo nível 
social dos seus protagonistas ou complexidade dos produtos, mas pela profundidade do discurso 
elaborado. E lembremo-nos que já existiu um Instituto de Alta Cultura. Não é tudo igual: entre 
Walter Hugo Mãe e Herberto Helder há todo um mundo de diferenças de nível. Hoje, mas não daqui 
a 100 anos, pois também estes níveis e estes discursos são circunstanciais. 
Bens culturais 
E aqui se toca, a meu ver, numa questão importante: a transação de produtos culturais, de bens 
culturais. Vendem-nos constantemente imagens, histórias, mitos, maneiras de estar em sociedade, 
fatos, moda, bonecos que consumimos sem sequer nos darmos conta disso através da televisão e 
outros media, através das novelas, de filmes, das imagens nos pacotes de açúcar, no design dos 
objetos, nas mil e uma expectativas de comportamento social a que todos os dias temos de 
corresponder. Vendem-nos a vanguarda de arquitetos conservadores, vendem-nos o mais belo, o 
melhor, a qualidade fantástica de... qualquer coisa. E dizem… “porque não há música clássica e 
pop: há simplesmente boa ou má música”… mas porquê boa ou má? Para quem boa ou má? 
Tretas… culturais. 
Alguns fenómenos culturais são, talvez, mais difíceis de vender, pelo seu carácter performativo, 
imaterial, mera ideia de existência ou conjunto de existências materiais e pessoais. Uma música e 
um projeto de dança não podem facilmente figurar num testamento, a não ser para os autores 
iniciais. Mas até se vão vendendo em suportes diversos. Os movimentos das tribos urbanas, as cores 
das gentes da cidade, os cheiros, o céu, os movimentos contínuos dos carros, de luzes, de pessoas, a 
simpatia das pessoas, a própria cultura mítica dificilmente se transaciona... mas é possível! Veja-se a 
mítica Atlântida nas pedras da Ilha Terceira (uma enorme aldrabice), veja-se a famosa “Area 51” no 
Nevada, em relação aos extraterrestres; veja-se o Porto.pt como fenómeno de venda turística de algo 
tão global. Porque, o que andamos a vender aos turistas no Porto, é a cultura que temos: 
precisamos é de a continuar a desenvolver e a transformar como nossa, para não termos de vender 
uma cultura inventada, somente para venda, estéril, de outros. 
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Cultura e identidade 
Em grande parte dos casos, a cultura reafirma, fortalece, confirma a nossa pertença a essa mesma 
cultura, satisfaz a nossa necessidade de mostrar a pertença a um grupo com convicções, símbolos, 
atuações específicas. Sentimo-nos melhor num bloco de apartamentos onde não se usam banheiras 
para criar galinhas, num restaurante onde todos comem de faca e garfo, numa sala de reuniões onde 
nos sentamos em cadeiras, num loja onde somos servidos por um funcionário simpático; sentimo-
nos satisfeitos com um programa de televisão em que todos falam um português correto, ao verum 
filme com uma história com princípio meio e fim, ainda melhor se esse fim for o chamado happy 
end; gostamos de livros que, de alguma forma, contem a “nossa” história ou melhor, a história que 
nos é intrinsecamente próxima, que revalidem os nossos preconceitos morais, que reflitam a 
sociedade tal como a conhecemos, vista pelo crivo da moral vigente. Satisfaz-nos o que nos diz o 
que já sabemos. 
Tal necessidade de afirmação cultural é necessária para assegurar a existência de uma estabilidade 
social, mesmo para a conservação de estados razoáveis de sanidade mental na população. 
Mas há fenómenos culturais que questionam essa existência: lembro-me de uma produção de uma 
peça de Wederkind que vi recentemente - O Despertar de Primavera - uma produção do Teatro 
Praga onde o texto era traduzido para um português inventado, que refletia as pessoas e os seus 
interesses abaixo dos 30 anos, que não conheciam Wederkind: foi um espetáculo apelidado de 
Wederkind queer – transsexuado. Esse espetáculo levou-me a refletir sobre imensas coisas: sobre o 
que é a linguagem, sobre o que são essas novas gerações e os seus comportamentos, sobre o que é o 
mundo de gays, de travestis, de transsexuais, a sua linguagem cheia de estrangeirismos, sobre o que 
é teatro e representação, sobre o papel da música num espetáculo. Era o Teatro Praga, conhecido 
pelas suas leituras algo extremas. 
Mas o mesmo pode acontecer com telas de Kandinsky ou de Sol leWitt: muitos tentarão discernir 
caras, animais, ocasos, revoluções, sendo simplesmente quadros do chamado Expressionismo 
Abstrato ou do minimalismo igualmente abstrato. Ou admirarmos o formalismo extremo de Ângelo 
de Sousa: será o jogo de proporções cultura? 
Lembro-me ainda de compositores que foram abalando as ideias de uma beleza pacífica, 
adormecedora, de auto-satisfação, como John Cage, Stockhausen, Franck Zappa – ídolo Rock e 
também compositor mais erudito que foi gravado por Pierre Boulez – ou o Revolution 9, faixa 
extrema do também extremo Álbum Branco dos Beatles. 
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Procurar o novo, o diferente, o que nos faz pensar, é parte dessa evolução cultural: é fazer a cultura 
ir ao encontro do devir. 
Cultura com o distinção 
Uma boa parte dos símbolos culturais, dos sistemas simbólicos, que absorvemos não são fruto da 
nossa vontade, mas estão no nosso ecossistema. Fazem parte – caracterizam – desde logo a nossa 
aprendizagem como seres humanos desde tenra idade: nós aprendemos a ser, a agir, a viver, a 
interagir, dentro de sistemas simbólicos específicos que são intrínsecos à nossa família, ao local 
onde crescemos, aos nossos conhecidos e amigos, à escola, aos media que contactamos. Nascemos e 
crescemos em banhos específicos de cultura que, sendo os nossos, irão marcar o nosso futuro de 
forma indelével. 
Por exemplo, para mim, ir ao futebol, colecionar cromos, ler banda desenhada, mastigar chiclets ou 
conhecer arte contemporânea foi algo que me não foi incutido desde cedo, em alguns casos mesmo 
vedado. Por outro lado, os valores da democracia liberal, da autoridade e da ordem social, da Pátria, 
da responsabilização pelos próprios atos, o gosto por uma certa cultura portuguesa do séc. XIX, por 
touradas, pela comida chinesa e pelo bacalhau com batatas, foram sistematicamente louvados, 
repetidos, incentivados. Coisas de família. Um certo gosto por culinária e por arte contemporânea, 
completamente fora do âmbito de referências culturais familiares e escolares, surgiram e foram 
vontades minhas que, sem dúvida, se refletem no meu ser atual ... juntamente com tudo o resto, 
tanto pela recusa como pela assunção. 
Mas todos estes sistemas de símbolos culturais inserem-se em padrões que, assegurando a 
persistência e evolução de uma sociedade, asseguram também a exclusão de outros sistemas 
culturais e dos seus membros: e fazem-no, por vezes, de forma bem violenta. 
E conto-vos uma história que me foi também contada por um professor. Um grupo de professores 
decidiu instituir, numa escola secundária pública dos arredores de Londres, uma série de aulas de 
música. Como a escola terminava as atividades letivas às 16 horas, a partir das 17 seriam usadas as 
instalações para aulas específicas de instrumentos e de educação musical. Nada inédito, as mesmas 
instalações eram também usadas em horário pós-laboral por operários em formação. Ora, logo após 
o início das aulas, houve um protesto dos grupos de operários: não tinha cabimento, não lhes 
parecia bem, que os operários entrassem pela mesma porta da escola que os meninos que iam 
aprender música; não estava certo; os operários, por vontade dos mesmos, passaram a entrar por 
uma porta lateral. Neste caso, a aprendizagem musical foi vista como algo de outra categoria social, 
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de outra ordem de valores culturais, não compatível com os valores culturais de operários fabris. E 
estes, pelos vistos, olhavam a entrada dos jovens músicos (alguns, eventualmente, filhos de 
operários) como algo descabido que derrubava os muros culturais e sociais estabelecidos. 
Bem, eram os anos 70/80. Hoje há múltiplas escolas de música, os operários são muito poucos, 
usam cabelo à hipster e bebem coca-cola às 5 da tarde, a cultura e a educação estão acessível a 
todos em casa, online. 
O Poder e a Cultura 
A – um exemplo 
Recordo há uns anos um ilustre Presidente da Câmara contar que, um dia, um músico e promotor de 
um festival lhe foi explicar o que pretendia e a dimensão desse festival: foi-lhe pedir subsídio para o 
desenvolvimento de um festival específico. Esse Presidente da Câmara comentou-nos: “E vinha 
esse tipo dizer como havia eu de gastar o meu dinheiro”. 
A dimensão destas palavras é, a meu ver, chocante. 
1- nunca seria o seu dinheiro mas o dos contribuintes que ele deveria gastar; um erro simplista; 
2- mas muito mais grave é, a meu ver, o fato de ele assumir que teria de ser ele a decidir alguma 
coisa nesse investimento; certamente não poderia ser ele, mero político Presidente da Câmara e 
claramente alguém de cultura bastante sucinta, a saber discernir algo sobre como gastar esse 
dinheiro dos contribuintes. 
A questão aqui fundamental é a de gastar dinheiro na cultura – investir em cultura. Numa visão à 
distância, em nada mais se pode gastar dinheiro do que na cultura, pois qualquer investimento – 
mesmo o de uma mera rotunda, de obras de saneamento, ou até num jantar no Garret – refletem 
uma visão cultural do meio, das relações das pessoas, das necessidades dessas relações. Tudo é 
cultura e reflete-se em cultura. 
B – outro exemplo 
Quando um Presidente da Câmara (não é o mesmo de há pouco) apoiou atividades no âmbito do 
espetáculo comercial, pretendia ele com isso cativar público para mais tarde este também se dedicar 
a espetáculos de índole menos comercial, mais eruditos. Ou seja, apoiava pimba esperando que o 
público futuramente se transferisse para a Casa da Música? Claro que não! Pierre Bourdieu provou-
o extensivamente nos anos 60 a 80. Mas Bourdieu e as suas observações morreram de caducas. 
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Hoje sabemos outras coisas. 
Quando se apoia um determinado bem cultural característico de um grupo social, pretende-se 
simplesmente que esse grupo social se mantenha satisfeito com o seu consumo cultural e com o 
dinheiro investido nele: é ótimo para satisfazer eleitores e para deixar estar tudo como está, sem 
mudança, sem evolução. Pretende-se que os públicos ávidos de pimba tenham o seu pimba, seja ele 
de nome António Carreira ou Fausto (musicalmente não há diferenças substanciais), satisfeitos com 
a resposta às suas expectativas culturais, renovando a verdade dos seus símbolos culturais: dirão 
sempre que essa é que é a boa música! Porque é a sua. E refiro-me ao pimba mas poderia transferir 
para qualquer outro exemplo, como a música sinfónica, o teatro de revista, os espetáculos de danças 
floclóricas, etc. Quando muito, se estes públicos se tornarem elites políticasou económicas, 
podendo dar-se ao luxo de ir para bons lugares de Fausto ou Carreira, também irão ver os Carmina 
Burana de Orff, a Carmen de Bizet, ir aos musicais do Soho de Londres ou a um concerto de Bob 
Dylan algures por aí. Porque são da mesma ordem de fruição. Mas dificilmente irão a outro tipo de 
espetáculo que os perturbe, que os mova do seu estado conforto, que altere o seu grau de satisfação 
pessoal e social, que os tire do seu estado de estupor cultural. 
C – Cultura popular 
Usa-se largamente o conceito de “Cultura Popular” e de “Arte Popular”, uma arte para o povo, ou 
uma arte do povo. Ou mesmo uma arte para as massas. Mas nunca entendi se eu mesmo fazia parte 
desse popular; ou se Belmiro de Azevedo, ou o famoso emplastro do Dragão também se incluíam 
nesse povo. Parece-me que povo é uma abstração que serve para iludir, onde se inclui o tal povo 
que lava no rio, mas também os que têm máquinas de lavar e os que não lavam porque são porcos. 
E, digamos, lavar no rio produz alguma poluição com os detergentes que para aí se vendem. 
Povo é, sem dúvida, muito diferente de “Proletariado”, conceito bem mais claro e definido no 
marxismo-leninismo. 
Popular e povo, por outro lado, são conceitos que, quando aplicados à cultura, estão completamente 
fora da realidade atual. Será um concerto dos Moonspell ou dos Iron Maden algo de popular? Serão 
os seus frequentadores povo? Sabemos que milhares os frequentam. Mas … uma performance ou 
uma peça de dança contemporânea de vanguarda, no Rivoli, igualmente enche a sala. Será um 
fenómeno de arte popular? E os concertos de pianistas russos como Grigory Sokolov ou Arcadi 
Volodos, na Casa da Música, que enchem invariavelmente a enorme sala? 
E que dizer de um espetáculo de cânticos de trabalho, tal como vistos por Michel Giacometi e 
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Lopes-Graça? Bem… seria necessário trazer os assalariados – ou retomar a escravatura – e 
postarmo-nos durante horas ao sol a observar, para percebermos o alcance destes cânticos. Hoje os 
cânticos de trabalho dão na Rádio Renasceça, na Antena 1, ou mesmo no IPod; e o trabalho é no 
computador. 
Talvez seja melhor abstermo-nos dessa ideia do popular, porque é uma falácia. 
Mas igualmente a ideia de erudito: as eruditas melodias das óperas de Mozart (quem as vê hoje?) 
foram trauteadas nos mercados de Viena e Praga; algumas melodias bem simples de Beethoven 
eram de origem popular; entre as quais a famosa Ode à Alegria da 9ª sinfonia, uma melodia popular 
cantada na França pós-revolução; e lembremo-nos que o texto de Schiller foi, primeiramente, 
denominado “Ode à Alegria e à Fraternidade”. Estes Maçons andam por todo o lado… 
Cultura e Investimento 
Mas então, a questão importante é: onde se deve investir o dinheiro na cultura? 
Alguns dirão que o mercado vai tudo arranjar. Seria uma primeira vez: nunca foi assim na história 
ocidental desde os confins da Grécia clássica; sempre houve imenso investimento da aristocracia, da 
cidade, da igreja, de associações de cidadãos privados, a apoiar atividades culturais. Nova Iorque é, 
sem dúvida, um caso paradigmático, onde o mercado, os privados, as associações e o estado 
investem fortemente na cultura. 
Mas então, deve-se apoiar o quê? 
A minha posição é, em parte, radical: por princípio, deve-se apoiar o que em termos de mercado não 
consegue qualquer existência. 
Mas há múltiplos critérios a considerar e a ponderar. 
• O critério da qualidade intrínseca, formal, técnica; o caso, por exemplo, de uma feira do 
livro, ou do teatro clássico; 
• O critério do local, sendo a cultura um suporte de uma identidade; insere-se aqui os 
fenómenos como S. João, fado, artesanato ou tripas; ou mesmo os concertos de Rui Veloso e 
os espetáculos do Seiva Trupe; 
• O critério do novo, do diferente, fora do habitual, geralmente impulsionador de novas ideias; 
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insere-se aqui o trabalho da performance art, da música experimental, ou até o espetáculo 
“palhaço rico fode palhaço pobre”, estreado no Rivoli o ano passado… aliás com lotação 
esgotada; 
• O critério da tecnologia, impulsionando a inovação tecnológica e a inserção desta na cultura; 
foram importantes os experimentalismos dos futuristas do séc. passado; hoje serão 
importantes as atuais técnicas de improvisação de VJ, a escrita e/ou a criação em rede, as 
propostas de mistura cultural possíveis só através de tecnologias avançadas; 
• O critério do virtuosismo, dando a conhecer os malabarismos técnicos de um qualquer 
trabalho criativo; claramente os pianistas russos da Casa da Música e o Cirque du Soleil 
inserem-se nesta vertente; 
• O critério do global, dando a conhecer experiências culturais de múltiplas partes; insere-se 
aqui a vinda de bailarinos chineses, ou a culinária coreana; 
Numa política cultural é importante tomar opções, mas perceber que essas opções têm 
consequências, que se inserem em quadros de referência específicos, que influem no mercado, que 
pressupõem critérios, que excluem outros. 
E, pelo fato de serem investimento público, não se devem sobrepor ao mercado, mas completá-lo, 
aumentando a oferta, dando a conhecer e propondo outras possibilidades de oferta. 
Porque, na verdade, o que andamos todos aqui a fazer é cultura. 
Fim 
Elaborei um discurso perspetivando diferentes maneiras de abordar a cultura como fenómeno de 
trocas simbólicas e como discurso sobre o mundo. 
Será sempre importante, a meu ver, repensar, questionar, revalorizar a cultura – todas as culturas e 
sub-culturas – pensando criticamente os valores que, sem o apercebermos, salientamos ou 
excluímos, pensando a história, tentando sistematicamente centrar este exercício em critérios claros 
e em fundamentos éticos, pois têm repercussões na vida de todos os dias.

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