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A FALTA COMO POSSIBILITADORA DA FELICIDADE: QUESTÕES SOCIAIS E HISTÓRICAS Ensaio, por Douglas Miguel da Silva RESUMO Nos livros Banquete e Lísis, o Sócrates platônico discorre sobre aquilo que seria a causa de toda ação: a falta. Embora sejam citados exemplos específicos em cada caso daquilo que se busca (amor e amizade, respectivamente), o princípio pode ser expandido a qualquer tipo de ação praticada rotineiramente, como pretende mostrar o restante desse artigo. Dessa forma, ao analisar a ação, será possível entender o que a falta busca sanar, e uma melhor forma de obter esse objetivo. FALTA. ORIGEM DA AÇÃO. FELICIDADE. SOCIAL E HISTÓRIA Já era comum na filosofia antiga identificar o objetivo de cada ação com a busca pela felicidade (eudaimonia). Toda ação realizada, por qualquer pessoa, não seria senão uma forma de alcançar uma sensação mais agradável que se aproximasse daquilo que os gregos entendiam pelo termo(1) . Dessa forma, arrumar um amigo ou namorada, buscar um trabalho etc, todas essas e demais ações tem como objetivo final um incremento na alegria que se possui (2). Mas como seria essa felicidade, e que tipos de ações devem ser feitas para conquista-la ? A filosofia grega era repleta de pragmatismo em seu conteúdo, de forma que buscava ser útil não somente na área acadêmica ou algum outro tipo de produtividade tecnológica/material, mas sim tentava servir a qualquer um que se interessasse, principalmente em gestos rotineiros no dia-a-dia. Isso mostra que esta deve ser buscada principalmente na constância de boas sensações, e não na criação de pequenos momentos de glória ou euforia. Saber se relacionar bem com as diversas pessoas ao redor no cotidiano é muito mais importante do que dedicar uma vida inteira na busca por conseguir um determinado momento, como a conquista de um prêmio ou outra realização efêmera. Depois de passado tal momento, pouco se resta daquilo que foi feito ao longo do trajeto, se considerar que agiu apenas em torno desse tipo de objetivo. Mas até mesmo se relacionar bem presume uma certa disposição interior, que irá refletir nas demais ações. Essa sensação usualmente denominada felicidade, tem como característica algo em comum com todas as outras sensações: não pode ser transmitida com exatidão somente através da linguagem ou outra forma de simbologia, a não ser que a pessoa receptora da informação já tenha vivido alguma experiência relacionada. A teorização se mostra problemática, mas é preciso tentar: a felicidade (eudaimonia) pode ser definida como o equilíbrio das diversas sensações possuídas, desde às mais agressivas às mais afetuosas. Não se trata de priorizar sempre o afeto em relação à raiva, mas sim de encontrar uma proporção adequada entre esses que forneçam o maior bem-estar possível; embora, obviamente, seja de se esperar que o afeto deva prevalecer na maioria das circunstâncias. Cada qualidade de sensação, nas mais diferentes nomeações que lhes foram atribuídas (raiva, euforia, tranquilidade, inveja etc) tem sua função e as usar de forma adequada não é, de forma alguma, problemático. Oscilações, obviamente, são inevitáveis que ocorram em todo caso. Porém, mesmo essas acabam inevitavelmente acontecendo de forma a manter o grau de satisfação o mais estável e em torno da maior qualidade possível. Uma das características fundamentais para a sua busca é que a pessoa tenha condição de reagir da forma mais adequada possível ao meio em que se vive. É difícil cobrar tranquilidade de quem quer que seja quando esta se encontra em um momento de dificuldade; certamente, seria muito mais vantajoso para essa estar tomado por tensão e adrenalina, que poderiam aumentar o seu grau de foco naquilo que está fazendo e obter um melhor resultado. Pode ser citado como caso exemplo para facilitar a ilustração, alguém que se encontra em conflito armado. Porém, certamente atingiu um grau de satisfação maior aquele que não precisou ir à uma guerra e pôde desfrutar uma vida inteira de um amor convívio familiar, repleto de segurança física e também financeira. Este sim tem condições de viver, de forma geral, com sensações mais agradáveis do que aquele que passou por diversas dificuldades ao longo da vida. O meio, portanto, é fundamental para quão próximo da felicidade a pessoa poderá ficar. Para que se possa alcançar o equilíbrio entre as sensações, ou chegar o mais perto dessa, são necessárias ações constantes para que se possa atingir esse objetivo. Diante disso, pode ser certamente afirmado que a falta mencionada por Sócrates também se refere a algo mais amplo do que qualquer situação específica; a falta a que somos constantemente submetidos é a da felicidade, a procura pelo equilíbrio, que requere ação constante de nossa parte ser possível a atingir. E a ação, obviamente, não é um ato isolado. Isso é fácil de observar, mesmo diretamente em questões de sobrevivência: seria impossível alguém conseguir, sozinho, equilibrar itens como alimentação e moradia, ou mesmo somente um desses. Quando se vive em comunidade é mais seguro atribuir que tais itens sejam conseguidos, bem como o tempo livre para outras atividades também aumenta. Diante disso, pode se concluir que o grau de proximidade da felicidade também é dependente do fator histórico. A questão material, por questões óbvias, é de extrema importância para que se possa atingir uma vida plena. E isso depende não só dos avanços tecnológicos, mas também das relações de trabalho que determinam a produção. É curioso notar que hoje, diferente de 500 anos atrás, é possível produzir até mesmo excedentes do que seria necessário para todos possam garantir sua sobrevivência, mas ainda assim tal benefício não é desfrutado da forma que poderia. Dentre os diversos que hoje não conseguem se manter de forma saudável, ainda assim entre aqueles que conseguem, uma série de problemas indesejáveis (e que não precisavam acontecer) acontecem. Dois dos mais comuns é a insegurança e a individualidade, ambos oriundos da competição amplamente estimulada e difundida na conquista pela sobrevivência. Por mais que se possa discutir que esses três itens possuam importância na busca pela felicidade, se utilizados na intensidade correta, é indiscutível também o exagero que esses se encontram hoje. A insegurança permite que, mesmo diante de tantos recursos disponíveis e de todo esforço individualmente realizado, a maioria das pessoas esteja sujeita a perder toda essa garantia em um curto espaço de tempo. Se na produção agimos de maneira coletiva, no consumo se está mais perto do completo isolamento, e das consequências indesejáveis que tal forma de agir possui. A individualidade – ou melhor, o excesso dessa – também provém da competição exacerbada pela sobrevivência, refletindo nos demais aspectos da vida. É cada vez mais comum não reconhecer a outra pessoa, mas como um algo ou coisa que possua características completamente diferentes de si. Isso é necessário para que o megaempresário justifique a si mesmo a exploração de seus funcionários ou os diversos atos de corrupção praticados frequentemente junto com políticos; não são seres humanos que estão sendo prejudicados, mas sim coisas, inferiores a eles, e que por isso não tem problema em sofrer. Não é preciso recorrer a casos mais escassos para exemplificar; é comum ver tal forma de desprezo mesmo entre pessoas de classe média ou mesmo de classe baixa. Isso é decorrente não só do fenômeno da exploração do trabalho alheio, mas também da ignorância sobre o que seja um ser humano. Ao ser instruído a não reconhecer no outro um igual, um ser que, como diria Sócrates, não erra intencionalmente, parte-se para a coisificação pressupondo características que não existem à pessoa. Os gestos considerados desagradáveis não são vistos como uma tentativa (que sempre possui certa dose de desespero) de se fugir do sofrimentoe alcançar a felicidade, mas sim que, por algum motivo, a pessoa o desagrada por culpa dela, seja o ue isso uise dizer. A ignorância sobre a necessidade de união do ser humano, baseado nessa condição de sofrimento que possui e da qual busca sair, é um dos fenômenos típicos da coisificação e está relacionada diretamente com a exploração do trabalho alheio. Uma está ligada a outra de forma intrínseca, legitimando ambas a si mesmas, de forma que se transformou um ciclo difícil de ser quebrado. Mas que, enquanto isso não acontecer, será difícil fazer avanços em busca de uma vida mais próspera e próxima do equilíbrio, até mesmo para os que mais se beneficiam materialmente de tal situação. Se, por um lado, eles podem ter a questão material praticamente resolvida, certamente eles também sofrem com a falta de equilíbrio oriundo dos diversos setores que vivenciam, sendo prejudicados fortemente pela individualidade e ignorância que tanto semeiam. NOTAS (1) Felicidade é tida como uma tradução aproximada para eudaimonia, sem representar o grau de exatidão que o termo grego possui. Porém, é o termo mais frequentemente utilizado por estudiosos (2) Não será apresentado rigor no texto quanto a palavra que traduzirá eudaimonia. Nessa passagem, foi utilizado alegria como sinônimo, e posteriormente será utilizado satisfação.