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QUANDO AS QUESTÕES DE GÊNERO, RAÇA E MASCULINIDADES INTERROGAM AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS Vivemos em um momento histórico de questionamento ao projeto da modernidade e de mudanças no contexto sociopolítico-cultural e epistemológico. Esta fase contemporânea tem sido caracterizada por uma explosão de identidades políticas centradas na ascensão do feminismo, nas identidades gays, lésbicas e negras, na migração de antigas colônias dos países pobres para os países ricos, tudo isso causando grande impacto nas sociabilidades em geral. Nas escolas, as identidades de gênero, raça, sexualidades e masculinidades, com seus lugares e funções tradicionalmente adjudicadas, vêm sendo interpeladas, problematizadas e, em certo ponto, desestabilizadas por outras formas de vivê-las. Assim, neste painel, defendemos a necessidade de se tematizar as diferenças e identidades nos discursos e nas práticas pedagógicas. No primeiro texto destacam-se as práticas pedagógicas de dois professores: uma de educação física e outro de artes que buscam discutir e problematizar as questões de gênero e raça em suas práticas. No segundo texto procura-se problematizar e desessencializar as masculinidades vivenciadas por jovens adolescentes no contexto escolar. Para tal, o autor utilizou a narrativa de três jovens estudantes da rede pública. Por fim, aborda-se a formação de professores e seu olhar para as diferenças de gênero e sexualidade objetivando refletir acerca das estratégias pedagógicas referentes à categoria gênero da disciplina Educação Física e ludicidade de uma universidade federal situada na cidade do Rio de Janeiro. Nos três trabalhos destacamos práticas pedagógicas que buscam desconstruir/problematizar verdades essencializadas e valorizar novas possibilidades de sociabilidades. Assim, a proposta central é contribuir para o reconhecimento e valorização das diferenças de gênero, raça, masculinidades e ao mesmo tempo para a melhoria da qualidade da educação e do ensino nas redes públicas. Palavras-Chave: Gênero, Raça, Masculinidades. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12053ISSN 2177-336X 2 A FORMAÇÃO DE DOCENTES DE EDUCAÇÃO FÍSICA E SEU OLHAR ACERCA DAS QUESTÕES DE GÊNERO Rita de Cassia Silva UNISUAM e Secretaria Municipal de Educação do RJ Os cursos formadores de professores/as de Educação Física devem acompanhar as transformações ocorridas em nossa sociedade para contemplar questões ligadas à diferença cultural, no intuito de fornecer aos/às futuros/as docentes pistas para se trabalhar com as múltiplas identidades presentes em nossa sociedade e em nossas escolas, com estudantes oriundos/as de diferentes classes sociais, de diferentes comunidades populares, com características étnico-raciais diferenciadas, que apresentem um olhar distinto acerca das questões de gênero, que façam parte de diferentes orientações religiosas, que são por vezes transferidos/as de outros estados e cidades, que estão inseridos/as em famílias com formação diferente do que consideramos em geral “normal” ou “heterossexual”, ou seja, que apresentem distintas formas de pensar e enfrentar o mundo, diferentes formas de agir e de dialogar. Sendo assim, o presente estudo tem como objetivo refletir acerca das estratégias pedagógicas referentes à categoria “gênero” da disciplina “Educação Física e ludicidade”, integrante do curso de formação de professores/as de Educação Física, de uma universidade federal situada na cidade do Rio de Janeiro. Para tanto foram observadas as aulas desta disciplina durante dois períodos letivos. Também foi realizada a análise da ementa e programa da mesma. Estudantes e professora foram ouvidos através de entrevistas realizadas na instituição de ensino. Uma nova Educação Física parece surgir, mesmo através de tentativas isoladas de docentes. O olhar para o “outro” começa adentrar a formação destes educadores/as. Contudo, muito ainda deve ser discutido. As questões de gênero ainda precisam ser evidenciadas no sentido de se realizar a desconstrução de ideários engessados ao longo da história da construção deste campo. A disciplina analisada fornece caminhos possíveis para a re(construção) de uma nova Educação Física, mas uma longa jornada ainda precisa ser trilhada. Palavras-chave: Formação de professores/as, Educação Física, Gênero. Introdução “Hoje é um dia muito feliz, é o primeiro dia de aula de Maria no ano letivo de 2016. Maria está muito contente, pois irá reencontrar antigas amizades e quem sabe conhecer novas pessoas. Ao adentrar a escola Maria, que está no 6º ano do Ensino Fundamental, recebe o horário de aulas do dia de hoje: dois tempos de matemática, um tempo de música e dois tempos de Educação Física. O olhar de Maria se modifica e sugere certa preocupação. Algumas indagações surgem: será que a partir de agora poderei participar do Futebol juntamente com os meninos? As aulas serão mistas? As atividades levarão em conta as minhas necessidades? E se eu não souber jogar?”. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12054ISSN 2177-336X 3 O trecho acima trata-se de uma pequena provocação, contudo, pode caracterizar o que vem ocorrendo em muitas aulas de Educação Física escolar. Estudantes são excluídos/as por habilidades físicas e por gênero, alguns/mas docentes não conseguem lidar com as diferenças que atravessam os muros da escola e adentram as quadras, se inserindo nas práticas hegemônicas historicamente construídas no campo da Educação Física. Para Neira (2007), a prática pedagógica do campo da Educação Física tem apresentado um grande vínculo com interpretações instrumentais do movimento humano, o que caracterizaria seu ensino pela transmissão e reprodução de padrões preestabelecidos, retirados de elementos culturais específicos (esportes), o que desencadeia a rejeição pelas diferenças técnicas dos/as alunos/as ou ainda, o desenvolvimento de habilidades motoras (educação do movimento) e perspectivas (educação pelo movimento) voltadas para o desempenho, para o mérito e para o lazer funcional. Cabe salientar que diversas tendências pedagógicas marcam a história da Educação Física brasileira e influenciam, até os dias de hoje, a prática docente deste/a educador/a. As tendências higienista, militarista e competitivista fazem parte do cotidiano de atuação do campo da Educação Física, com suas práticas disciplinadoras, exclusivistas e elitistas. Porém, não podemos ignorar que o público recebido na escola brasileira, principalmente na escola pública, advém, em sua maioria, de classes populares, é pertencente a várias comunidades e portador das mais diversas bagagens culturais. Estas bagagens, muitas vezes, não contemplam experiências de vitória e sucesso, no que diz respeito à prática de esportes e por que não dizer, nos diversos campos da vida social. De acordo com Souza (2007), a Educação Física compromete-se de maneira dominante com uma prática eminentemente competitivista, ou seja, princípios relacionados ao “selecionar” e ao “vencer” são disseminados sem qualquer reflexão e naturalizados de forma a tornar a prática da Educação Física como sendo fortemente discriminatória. A escola parece contribuir para a exclusão dos/as estudantes a partir da categoria gênero e reforça a generificação das atividades e esportes preconizados pela Educação Física. Louro (2013) afirma que A despeito de todas as oscilações, contradições e fragilidades que marcam esse investimento cultural, a sociedade busca, XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12055ISSN 2177-336X 4 intencionalmente, através de múltiplas estratégias e táticas, “fixar” uma identidade masculina ou feminina “normal” e duradoura. Esse intento articula,que todos e todas têm direito a ter acesso” (CANDAU, 2014, p. 29). Esse processo se dá desde ao uso do uniforme até ao tipo de avaliação, que são idênticos para os (as) estudantes, o que contribui para o apagamento e silenciamento de determinadas identidades. Em relação ao termo diferença, Candau (2014) destaca que nos discursos dos professores, é frequentemente associado a um problema a ser resolvido, a deficiência, ao déficit cultural e a desigualdade: Diferentes são aqueles que apresentam baixo rendimento, são oriundos de comunidades de risco, de famílias com condições de vida de grande vulnerabilidade, que têm comportamentos que apresentam níveis diversos de violência e incivilidade, os/as que possuem características identitárias que são associadas à ”anormalidade” e/ou a um considerado baixo “capital cultural”. Enfim, os diferentes são um problema que a escola e os educadores/as têm de enfrentar e esta situação vem se agravando e não sabemos como lidar com ela. Somente em poucos depoimentos, a diferença é articulada a identidades plurais que enriquem os processos pedagógicos e devem ser reconhecidas e valorizadas (CANDAU, 2014, p. 30) Corroboramos com a autora citada quando afirma que somente poderemos mobilizar processos de construção de práticas interculturais quando fomos capazes de não reduzir igualdade à padronização, mas ao reconhecimento da dignidade de cada um e, também, quando não encararmos a diferença como um problema a resolver, mas como riqueza pedagógica. Experiências pedagógicas: quando a Educação Física e a Arte discutem gênero e raça Trabalhar a partir do regime heteronormativo e da igualdade racial garante o funcionamento tranquilo e seguro da escola e acaba por apagar as diferenças, não as colocando em questão. Porém, como professor e professora do ensino fundamental optamos por problematizar estas questões juntos aos alunos e alunas. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12082ISSN 2177-336X 31 Destacamos que os trabalhos apresentados nesta pesquisa foram trabalhados em duas escolas. Na escola do município do RJ, situada na zona oeste da cidade, foi selecionada para a pesquisa uma turma do 5º ano do ensino fundamental. Na segunda escola, localizada em um bairro da periferia da cidade da Baixada Fluminense - Duque de Caxias – a pesquisa foi realizada em uma turma de 6º ano do ensino fundamental. EF e gênero: uma análise a partir das vozes dos estudantesiv A pesquisa realizada na escola pública do município do RJ, contou com a participação de alunos e alunas de uma turma de 5º ano onde foram percebidas, a partir de observações, nas aulas de Educação Física, de situações de divisão entre os meninos e as meninas de forma naturalizada, onde os primeiros apresentavam uma atitude de domínio aos espaços e materiais utilizados na aula (bolas, cordas, etc). As meninas apesar de demonstrarem resistência à situação descrita, não conseguiam revertê-la imediatamente, sendo necessária à nossa intervenção, no sentido de tornar o espaço igual para todos (as). Tais constatações iniciais serviram de fundamento para iniciarmos o presente estudo tendo como objeto de análise as relações de gênero nas aulas de Educação Física. O encontro ocorreu no início do ano letivo com os/as estudantes sentados dispostos em círculo no pátio da escola. As respostas foram anotadas em um diário de campo bem como as reações da turma no momento dos questionamentos. Ao serem questionados sobre o tema gênero e os preconceitos e discriminações inerentes a essa temática, percebemos uma nítida separação entre meninos e meninas em relação às brincadeiras e jogos vivenciados na rua e na aula de Educação Física o que culminava, segundo os relatos, na exclusão do outro gênero: “na rua, as meninas brincam de pique-bandeira, aí quando eu apareço e peço pra brincar, as meninas me chamam de boiola” relatou João. Nessa direção, Pedro acrescentou: “na Educação Física, as meninas não deixam a gente jogar queimado” e ainda, argumentou Carlos: “teve uma vez que os meninos ficaram chamando a gente de „viadinho‟ só porque a gente tava brincando com as meninas”. Nessa discussão, Maria ressaltou a sua posição: “a gente quer jogar futebol e os meninos não deixam e quando eles querem jogar queimado a gente deixa”. Sobre este aspecto, Louro (2003) afirma que se em outras áreas escolares as diferenças de gênero aparecem de forma implícita, é na Educação Física que esse processo se torna mais explícito e evidente. Segundo a autora, mesmo que em várias XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12083ISSN 2177-336X 32 escolas os/as professores/as venham atuando em regime de coeducaçãov, a Educação Física parece ser a área onde a resistência ao trabalho integrado persiste e se renova. O discurso biológico, ainda muito presente na disciplina, reproduz a ideia de que as mulheres são, fisicamente, menos capazes do que os homens o que resulta na diferenciação de maneiras de ser e viver segundo os papéis determinados socialmente para cada sexo. Percebemos nas falas dos/das alunos/as uma diferenciação na forma como vivenciam as brincadeiras e jogos na rua e nas aulas de Educação Física e a consequente exclusão do sexo oposto. Em relação à participação ou não nas atividades propostas nas aulas de Educação Física e os possíveis preconceitos sofridos por meninos e meninas durante a vivencia destas práticas, percebemos um processo de exclusão desenvolvido por conta dos estereótipos de gênero. Para Melissa, a situação não se mostrava fácil: “Já deixei de jogar futebol por ser menina porque os meninos ficam me zoando”, já Maria destaca um ponto para ela traumático: “Já fiquei com medo de jogar queimado porque os meninos falaram que iam me estourar porque eu era menina e não ia aguentar”. É importante ressaltar que o medo e a submissão não se apresentaram exclusivamente nas meninas. No relato de Carlos percebemos a não participação em atividades consideradas “femininas” como uma proteção contra a discriminação: “Deixei de jogar queimado com as meninas porque os meninos ficavam me chamando de „boiolinha‟ e já deixei de dançar porque todo mundo falava que era „coisa de mulher” Neste caso, podemos perceber que as falas dos/das estudantes explicitam que havia um controle de atividades consideradas próprias de meninos e outras atividades consideradas próprias de meninas causando a exclusão do sexo oposto. Qualquer um que tentasse romper com esta “norma” era considerado como desviante ou julgado em sua sexualidade. Os estudos de Louro (2003) compartilham com as nossas ideias quando mencionam que: A Educação Física parece ser, também, um palco privilegiado para manifestações de preocupação com relação à sexualidade das crianças. Ainda que tal preocupação esteja em todas as áreas escolares, talvez ela se torne particularmente explícita numa área que está, constantemente, voltada para o domínio do corpo (LOURO, 2003, p.74). Ainda neste contexto, percebemos a construção de formas de ser masculino e ser feminino se caracterizando por emoções, sentimentos, gestos e formas de agir segundo XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12084ISSN 2177-336X 33 um padrão pré-determinado baseado nas diferenças entre os sexos. Desta forma, meninos devem agir com coragem, bravura e força, enquanto as meninas devem agir com fragilidade, timidez e delicadeza. Este controle do corpo acaba por ser considerado uma norma que vai determinar como meninos e meninas devem se “comportar” na sociedade. Deste modo, percebemos que os/as estudantes pesquisados apresentaram resistência ao trabalho integrado na aula de Educação Física, principalmente por parte dos meninosque mostraram insatisfeitos com o tema. Encontramos na maior parte das falas, estereótipos de gênero causadores de desigualdades e diferenciações de comportamento, linguagem e vivências corporais que impedem que o trabalho integrado nas aulas de Educação Física transcorra de forma justa e igualitária. Artes, gênero e raça: uma experiência Esta atividade aconteceu no primeiro dia de aula. Propusemos que os/as alunos/as construíssem seus autorretratos, na tentativa de substituir a tradicional apresentação que acontece a cada início de ano, quando professor/a e alunos/as se apresentam, dizem seus nomes e falam de seus sonhos e objetivos. A atividade planejada objetivava conhecer a turma e sondar caminhos para integrar as propostas de discussão sobre sexualidades, gênero, masculinidades e raça com a disciplina. Para tal, primeiramente apresentamos a vida e os autorretratos de diversos artistas, tais como Picasso, Van Gogh e Frida Kahlo, entre outros. Explicamos a diferença entre retrato e autorretrato, pedindo então que cada um confeccionasse o seu autorretrato. Apesar da relutância inicial de alguns/mas alunos/as que diziam não saber desenhar, a turma aceitou de maneira tranquila participar da atividade proposta. É importante destacar que a opção pelo trabalho de artistas da corrente moderna em muito facilitou essa aceitação, uma vez que eles não privilegiam a forma no processo de construção de suas obras. Nesse dia estavam presentes na sala de aula 14 alunos e 10 alunas. O marcador visível da identidade coletiva desta turma era a cor da pele – a raça negra. Dos/as 24 alunos/as presentes, 18 eram negros/as. Contudo, pensando no conceito de identidades como múltiplas, em processo, híbridas e marcadas por relações de poder, a identidade negra não pode ser vista de maneira essencializada, o que faz pensar que nesta sala de aula há uma grande pluralidade cultural. Ao permitirmos que sentassem livremente, alguns/mas estudantes foram para o chão, outros permaneceram em suas próprias carteiras. Além disso, colocamos à XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12085ISSN 2177-336X 34 disposição alguns espelhos, lembrando que, caso alguém quisesse ver algum detalhe do próprio rosto, poderia usá-lo. No entanto, “apenas umas 4 meninas pegaram o espelho, mas estavam mais interessadas em ver como estavam do que utilizar os espelhos para a produção do autorretrato”vi. Na aula seguinte, posicionamos a turma em círculo para que pudessem apresentar seus autorretratos. Nesse dia, 9 de fevereiro, estavam em sala 13 meninos e 10 meninas. Combinamos que cada um falaria de si, e que a opinião emitida seria pessoal. A principal característica do autorretrato é a representação da maneira como a pessoa se vê. Durante as apresentações algumas questões despertaram a nossa atenção: em uma sala onde a maioria era negra, nenhuma das 10 meninas presentes se apresentou como tal. Este fato específico revela como os processos sociais acabam por se desdobrar na produção de diferenças e distinções. E estas diferenças terminam por subalternizar o outro, como ressalta Walsh (2009b) e ao mostrar as matrizes da colonialidade no processo de construção identitária da raça negra, sobretudo a da mulher negra que foi construída a partir da negação e da inferiorização. Para reforçar esse pensamento, reproduzimos a fala de algumas alunas cujo marcador identitário “cor da pele” era muito claro como negro. A primeira se apresentou: “Sou morena escura, bonita e vaidosa... (uma pequena pausa para avaliar a reação da turma), mas as pessoas me acham feia, eu sei que sou bonita” (Jorgiene, 13 anos). Vale destacar que o comentário – eu sei que sou bonita – estava diretamente relacionado à fala inicial do professor, ou seja, à importância de cada um mostrar como se vê, e da turma respeitar a opinião do/a colega; tanto que a aluna fez uma pequena pausa depois de dizer que era bonita. Por sua vez, os risinhos e respirações da turma revelaram que não concordavam com as palavras dela. Outra aluna disse: “Sou morena, gosto muito de desenhar, sou vaidosa, sou amiga e meu nome é Kezia” (13 anos). A mesma fala se repetiu com a aluna Monique (13 anos): “Tenho cabelo castanho, sou morena, olhos pretos, tenho orelhas grandes, meu cabelo é encaracolado, fiz 12 anos na sexta-feira”; com Dalila (16 anos): “Meu cabelo está com reflexo, minha boca é pequena, meus olhos são pretos, meu cabelo é ondulado, meu nariz é mais ou menos”; com Kamila (12 anos): “A cor do meu cabelo é castanho escuro, meus olhos são castanhos bem escuros, cabelo liso e minha cor morena escura”; com Joyce (13 anos): “Eu me vejo com lindos olhos, lindo cabelo e linda boca”; e com Iara (13 anos): “Eu me acho muito bonita e estudiosa. Muitas vezes os garotos me zoa mas eu me gosto porque me olho no espelho e me acho bonita”. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12086ISSN 2177-336X 35 A turma não se incomodou com o fato de nenhuma menina se posicionar como negra. Pelo que pudemos perceber ao longo das aulas, este marcador identitário, no caso das meninas, trazia marcas de inferiorização em relação às demais, seja desde a preocupação com os cabelos, passando pelos padrões de beleza e de comportamento, até o processo de escolha dos parceiros. No conjunto de falas destacadas ecoam, mais uma vez, as matrizes da colonialidade e da força da lógica do colonizador; ou seja, a colonialidade do ser (WALSH, 2009b) mostra como a identidade da mulher negra foi construída, de forma hierarquizada, em uma classificação social e subalternizada. E como, infelizmente, este processo é um dos mais dolorosos, causando grande sofrimento para algumas pessoas. Existem diversos aspectos sociais e culturais que marcam os processos de inferiorização e rejeição da raça negra. Assim, ao se apresentarem como morenas, ao reforçarem que se acham bonitas apesar de os outros não acharem, ou ao destacarem o cabelo encaracolado, conclui-se que essas meninas estão fugindo de suas próprias marcas identitárias. Ao mesmo tempo, tais falas indicam como deve ser trabalhado o caráter híbrido das identidades, conforme preconizado pelo multiculturalismo em suas vertentes crítica e interativa (CANDAU 2008). Com isso, problematizando a visão essencialista e reconhecendo que as identidades não são puras, visto que carregam marcas que se mesclam a partir de relações de poder, deixamos para as próximas seções as discussões sobre cabelo de forma mais ampla. Limitamos aqui a apenas registrar como o cabelo representa uma forte questão identitária para a mulher negra. Já entre os meninos a situação foi diferente, pois não tiveram problema de se afirmarem como negros. Acredito que estavam publicamente apresentando os ritos e provas que os constituiriam como pertencentes ao grupo de homens negros. Desse modo, entre os mais velhos alguns se apresentaram como “negão”. O aluno Wanderson (15 anos) declarou: “sou negão, magro, alto”, e em seguida exibiu o autorretrato pelo qual enfatizava a cor negra. O desenho deste aluno chamou atenção não pela forma em si, mas principalmente pela utilização da cor. Ele fez questão de destacar que era negro, usando lápis e canetinha preta e reforçando que aquela cor tinha alguns significados. O mesmo aconteceu com o aluno Isaac (14 anos), que afirmou “Sou negro, tenho orelha grande e tenho nariz pontudo”; Durante a apresentação daquele dia, seis alunos se apresentaram dessa forma; em comum entre eles havia o fato de serem os mais velhos, com idades entre 14 e 15 anos. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12087ISSN 2177-336X 36 As questões interrogam nossa prática pedagógica: para não concluirAo refletirmos sobre as escolas investigadas podemos perceber a existência de certas normas e padrões que cercam tanto as questões relacionadas à raça quanto às questões ligadas à gênero e sexualidade. A presença de um princípio heterossexual, branco e masculino parece se evidenciar em diversos momentos de contato com os/as estudantes, regendo comportamentos e discursos. Na primeira escola, compreendemos que os temas ligados ao corpo se constroem como verdadeiros dilemas no que se refere a questão do movimento. Constatamos na realidade pesquisada que um dos espaços de maior possibilidade de conflito em relação a questão de gênero é na aula de Educação Física. A necessidade do domínio e do controle do corpo associado a explícita demonstração de gestos e movimentos presentes nas aulas podem contribuir para uma certa vigilância sobre o que é adequado para as meninas e para os meninos. Neste sentido, identificamos uma nítida diferenciação de manifestações corporais que os/as estudantes classificam como sendo masculinas e femininas a partir de padrões culturais construídos com base nas diferenças biológicas que, por conseguinte, acabam representando a exclusão do outro. Na segunda escola destacada percebemos como as questões raciais marcam o processo de construção das identidades reforçando sentidos de masculinidades e feminilidades que passam a circular no universo cultural dos/das estudantes acentuando mecanismos de superioridade e inferioridade. Neste caso, para as meninas, ser negra pode colocá-las em uma posição de subalternidade em relação as outras. Podemos observar aqui a mesma negação de sua raça, evitando o termo negra. Já para os meninos ser negro representa uma questão orgulho, pois, remete a força, ao vigor sexual. Dentro desse contexto, defendemos que todos os momentos de conflitos ocasionados pelo reconhecimento da diferença podem e devem instigar as práticas pedagógicas. É importante sensibilizarmos nossos/as estudantes para a urgência do respeito ao outro e para o questionamento dos fatores que têm contribuído para a construção e reforço de preconceitos e discriminações. Assim, evidenciamos neste trabalho a importância de se colocar a diferença em questão, de problematizar os conceitos essencializados que circulam nas salas de aula e de se refletir sobre os processos de racialização, sexualização e generificação. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12088ISSN 2177-336X 37 Referências bibliográficas AUAD, D. Educar meninos e meninas: relações de gênero na escola. São Paulo: Contexto, 2006. BARNARD, I. Queer Race. 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Los Angeles: Alysson Books, 2004 i Dissertação de Mestrado intitulada: “Inclusão em educação, gênero e sexualidade: um estudo de caso”, defendida pelo autor no ano de 2013, pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGE-UFRJ). ii Paulo Melgaço da Silva Junior estudou as questões de raça, gênero, sexualidades e masculinidades no contexto escolar. iii Ana Paula da Silva Santos estudou as questões de gênero no contexto escolar XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12089ISSN 2177-336X 38 iv Ressaltamos a utilização de nomes fictícios para representar os/as alunos/as participantes do presente estudo. v Coeducação, segundo Auad (2006) refere-se uma política propositiva e implementadora de modos de pensar e transformar as relações de gênero na escola. vi Notas do diário de campo, 6 de fevereiro de 2012 XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12090ISSN 2177-336Xentão, as identidades de gênero “normais” a um único modelo de identidade sexual: a identidade heterossexual. Nesse processo, a escola tem uma tarefa bastante importante e difícil. Ela precisa se equilibrar sobre um fio muito tênue: de um lado, incentivar a sexualidade “normal” e, de outro, simultaneamente, contê-la (LOURO, 2013, p.25). A autora adiciona: A competição, no entanto, que é frequentemente enfatizada na formação masculina parece dificultar que meninos e jovens “se abram” com seus colegas, expondo suas dificuldades e fraquezas. Para um garoto (mais do que para uma garota), tornar-se um adulto bem- sucedido implica vencer, ser o melhor ou, pelo menos, ser “muito bom” em alguma área. O caminho mais óbvio, para muitos, é o esporte (no caso brasileiro, o futebol), usualmente também agregado como um interesse masculino “obrigatório” (LOURO, 2013, p.22). A partir destas premissas, nossa “Maria” estaria subvertendo uma lógica imposta pela sociedade, uma vez que é menina e supostamente gostaria de participar dos jogos de futebol. Concordo com Daolio (2004) ao afirmar que a Educação Física pode e deve ampliar seus horizontes, abandonando de vez a premissa de investigar o movimento humano, o corpo físico ou o esporte na sua dimensão exclusivamente técnica, para tornar-se um campo de atuação que considere o ser humano como ator cultural e social. Mas como preparar os/as futuros/as docentes para uma prática pedagógica mais igualitária? A formação inicial parece não contribuir para a resposta a este questionamento. De acordo com Tardif (2012), a mesma vem sendo marcada pelo predomínio dos saberes disciplinares, saberes estes produzidos sem nenhuma ligação com a ação profissional. O autor adiciona ainda que educadores/as e pesquisadores/as apresentam- se como dois grupos cada vez mais distintos, destinados simultaneamente a tarefas especializadas de transmissão e de produção dos saberes sem nenhuma relação entre si. No sistema escolar esta separação já se encontra bem caracterizada uma vez que o saber dos/as professores/as parece residir unicamente na competência técnica e pedagógica para transmitir saberes elaborados por outros grupos. A partir da problemática apresentada, proponho que os cursos formadores de professores/as de Educação Física também devam acompanhar as transformações XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12056ISSN 2177-336X 5 ocorridas em nossa sociedade e possam contemplar questões ligadas à diferença cultural, no intuito de fornecer aos/às futuros/as docentes pistas para se trabalhar com as múltiplas identidades presentes em nossa sociedade e em nossas escolas, com estudantes oriundos/as de diferentes classes sociais, de diferentes comunidades populares, com características étnico-raciais diferenciadas, que apresentem um olhar distinto acerca das questões de gênero, que façam parte de diferentes orientações religiosas, que são por vezes transferidos/as de outros estados e cidades, que estão inseridos/as em famílias com formação diferente do que consideramos em geral “normal” ou “heterossexual”, ou seja, que apresentem distintas formas de pensar e enfrentar o mundo, diferentes formas de agir e de dialogar. Sendo assim, o presente estudo tem como objetivo refletir acerca das estratégias pedagógicas referentes à categoria “gênero” da disciplina “Educação Física e ludicidade”, integrante do curso de formação de professores/as de Educação Física, de uma universidade federal situada na cidade do Rio de Janeiro. Para tanto foram observadas as aulas desta disciplina durante dois períodos letivos. Também foi realizada a análise da ementa e programa da mesma. Estudantes e professora foram ouvidos através de entrevistas realizadas na instituição de ensino. Educação Física e Ludicidade: o olhar sobre os gêneros Disciplina oferecida preferencialmente aos/às estudantes de terceiro período de licenciatura e quarto período de bacharelado, Educação Física e Ludicidade contava com a participação de alunos/as de bacharelado e licenciatura de diversos períodos. Suas aulas ocorriam, na maioria das vezes por conta do seu caráter prático, em um dos ginásios da instituição e suas aulas teóricas eram ministradas em diferentes salas de aula, não tendo local fixo. A disciplina apresenta em seu programa uma carga horária de sessenta horas, sendo trinta horas de aulas práticas e trinta horas de aulas teóricas. Em geral as aulas práticas ocorriam da seguinte forma: a professora sugeria uma atividade ou um jogo prático. Após a sua realização os/as alunos/as eram questionados acerca da atividade: suas impressões, pontos positivos e pontos negativos. Logo após, o jogo/atividade era novamente realizado/a, seguindo as alterações sugeridas pelos/as discentes. Em todas as aulas práticas a grande preocupação da docente era fomentar discussões acerca de atividades e jogos que pudessem ser realizados por todos e todas, principalmente no que diz respeito à pessoa com deficiência, às questões de gênero e à habilidade motora. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12057ISSN 2177-336X 6 Outro aspecto observado nas aulas práticas se refere à conduta dos/as alunos/as frente às atividades sugeridas. Para a concretização do seu ideal de realização de aulas para todos/as, a professora apresentava inúmeras possibilidades, incluindo os jogos cooperativos. De acordo com Soler (2006), pensar em jogos cooperativos vai ao encontro da valorização do jogar “com o outro” e não “contra o outro”, por meio de atividades de cooperação, potencializando a autoestima e a relação social. Procura auxiliar na proposta da inclusão das diferenças, pois permite a participação de todos/as, independente do seu nível de habilidade motora. Os jogos cooperativos em geral, não eram muito bem aceitos pelos/as estudantes. As alunas, exclusivamente, reclamavam com frequência das atividades realizadas em grupo, pois sinalizavam que os “meninos” se utilizavam de uma força física exagerada no intuito de “vencer a qualquer custo”. Ainda no que diz respeito à realização de jogos cooperativos, em alguns casos, os/as estudantes subvertiam a atividade no sentido de torná-la competitiva. Os jogos cooperativos têm como características principais o realizar as atividades por prazer, o jogar com o/a outro/a e não contra o/a outro/a. Os jogos nesta perspectiva não têm fim, ou seja, não há vencedores e ganhadores para se considerar o término da atividade, o grupo que decide quando ela deve ser finalizada. Mesmo assim, por diversas vezes, os/as alunos e alunas traçavam estratégias para vencer os jogos sugeridos, não compreendendo assim a proposta das atividades. A competição é apresentada ainda como um aspecto fortemente presente no curso de Educação Física analisado. Alguns/mas alunos/as questionam a proposta da professora de trabalhar com jogos mais inclusivos e menos competitivos. Um estudante fala da condição dos indivíduos de uma forma fixa, engessada. “Quem é habilidoso é habilidoso, quem não é, não é” (Willian). Estas questões são problematizadas a todo tempo pela professora e este foi o cenário que atravessava as aulas práticas; a desconstrução do que está posto, a recriação de atividades, a discussão de novas práticas que possibilitassem a participação de todos e todas. “Se acreditarmos nisso, se só pensarmos assim, realmente não vamos conseguir nada”, nós pensamos em aulas em que todos podem participar?” (Professora Adriana). “A Educação Física é o espaço do sucesso! Bem, deveria ser, pra todos” (Professora Adriana). XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12058ISSN 2177-336X 7 Não podemos negar que a construção da identidadeprofissional do campo da Educação Física é fortemente influenciada pela visão biologicista e competitivista e sua intervenção médica e militar. Até os dias de hoje vemos o esporte como conteúdo fortemente ministrado nas aulas e de uma maneira excludente. As aulas observadas não negaram o esporte como conteúdo a ser trabalhado pelo campo da Educação Física, mas apresentaram uma proposta de releitura e recriação dos diferentes esportes, proposta esta que avança no sentido de que os mesmos possam ser praticados por todos/as efetivamente, de maneira igualitária. A releitura de esporte oficiais e jogos populares era a premissa das aulas práticas e embora a mesma tivesse o intuito de fomentar a discussão acerca da inclusão de todos/as nas aulas de Educação Física, nem sempre este objetivo era atingido. Em uma das aulas a proposta foi a realização de jogos de queimado diferenciados. Foi apresentado um tipo de queimado onde o/a participante que é “queimado” não vai para a área que fica atrás do outro time (o limbo), mas continua no jogo no sentido de continuar participando ativamente. Inicialmente alguns/mas alunos/as reclamam da atividade dizendo que a mesma estava “sem graça”. Algumas alterações foram sugeridas pela professora no intuito de tornar a atividade mais interessante e os/as futuros/as professores/as sinalizaram que a mesma mantinha a exclusão. “Achei o jogo mais excludente, cada um lutava pra voltar e não se importava em passar a bola pro mais fraco” (Caio). Embora o curso de licenciatura seja considerado como o curso de formação inicial de professores/as, concordo com Tardif (2012) quando o mesmo salienta que antes mesmo de começarem a atuar como docentes, os/as futuros/as professores/as vivem nas salas de aulas e nas escolas, seu futuro local de trabalho. Desta forma, esta prévia imersão no futuro local de trabalho se caracteriza como formadora, pois a partir dela as crenças, representações e certezas sobre a prática do ofício de professor/a são adquiridas. Antes mesmo do início da sua atuação profissional, o/a professor/a já sabe, de muitas formas, o que vem a ser o ensino, por conta de toda sua história escolar anterior. Tardif (2012) adiciona ainda que o saber herdado da experiência escolar anterior é muito forte, persiste através do tempo e a formação universitária não consegue transformá-lo e nem tão pouco abalá-lo. A partir deste olhar concebido por Tardif (2012), tenho como hipótese que o caráter competitivo amplamente preconizado pela Educação Física escolar tenha feito parte da trajetória escolar dos/as futuros/as professores/as de Educação Física. Sendo XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12059ISSN 2177-336X 8 assim, os/as professores/as em formação apresentam em seu imaginário a competição como a maneira convencional, e por que não dizer, a única forma de se trabalhar com os conteúdos específicos do campo da Educação Física, uma vez que o viés competitivo sempre esteve presente nestas aulas. Em geral, a grande resistência e até dificuldade em compreender e participar de jogos cooperativos e com caráter inclusivo é representada, em sua maioria, pelos alunos do gênero masculino da turma. Uma das estudantes, fala do seu incômodo nas atividades, e adverte quanto ao objetivo do curso de licenciatura. “Eu sai desse jogo, muito violento, eu não posso me machucar. Os meninos dessa turma acham que vêm pra faculdade pra jogar, eu não, eu vim aqui pra aprender a dar aula” (Andréa). As questões sobre a temática gênero não só eclodem a todo tempo nas aulas práticas, como também são provocadas pela docente, no sentido de fomentar as discussões. A partir desta premissa, diversas atividades foram propostas no sentido de diminuir a supremacia masculina nas aulas de Educação Física, sempre favorecendo a reflexão e discussões do tema. Em uma das aulas, foi sugerido um jogo de futebol diferente: a atividade seria desenvolvida em dupla, ou seja, em duplas mistas, os/as estudantes deveriam estar de mãos dadas e o jogo de futebol se desenvolveria de forma convencional, com o objetivo de fazer gols. Algumas alunas pareciam ser arrastadas pelos meninos que corriam velozmente objetivando ganhar o jogo. Após o término da atividade, no momento da discussão, algumas alunas comentaram sobre a velocidade excessiva utilizada pelos alunos. Uma aluna questionou a realização da atividade, colocando em pauta a existência de atividades específicas para os diferentes gêneros. “Mas também né? Geralmente os meninos têm mais habilidade com os pés” (Rosana). Pareceu-me que todos/as concordavam com a fala da aluna uma vez que nenhum comentário foi feito acerca da mesma. Todavia, algumas alunas disseram se sentir felizes, pois nunca tinham feito um gol em um jogo de futebol. Para um grupo reduzido de alunas, a atividade gerou efeito satisfatório. Em uma das aulas alguns jogos populares foram apresentados à turma através de um circuito com diversas estações: cordas, taco, elástico (pular), petecas, bambolês, raquetes e bolas de tênis, bolas de gude, mini-cones e amarelinha. Mais uma vez as XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12060ISSN 2177-336X 9 questões de gênero se apresentaram e na verdade, conforme sinaliza a professora posteriormente, a atividade tinha esta discussão como objetivo. Os alunos do gênero masculino tentavam inicialmente, no momento da troca de atividade do circuito, não realizar as atividades consideradas por eles, “brincadeiras de meninas”, ou seja, burlavam as regras do circuito e não participavam de atividades como peteca, amarelinha e elástico. Alguns verbalizavam suas opiniões. “Peteca é brincadeira de menina professora!” (Willian). “Mas elástico é uma brincadeira de meninas!” (Pablo). Após a intervenção da professora, que sinalizou que a definição de “brincadeiras de meninos e brincadeiras de meninas” vem a ser uma construção social e cultural, todos e todas participaram de todas as atividades do circuito, sendo que alguns alunos ainda generificaram algumas atividades, como é o caso do elástico, onde os alunos criaram competições onde verificavam quem realizava o salto mais alto e mais veloz. Conforme sinaliza Silva (2012), a escola e principalmente a Educação Física, através de seus conteúdos, como a ginástica e o esporte, atuam como agentes generificadores das práticas escolares uma vez que, de acordo com o autor, as influências dos métodos ginásticos, como o sueco e o alemão, na Educação Física brasileira, preconizavam diferentes exercícios para homens e mulheres. Já o esporte reforça a ideia de uma Educação Física voltada para o mundo masculino e heterossexual, onde qualidades como virilidade, força e agilidade são ligadas ao universo masculino, mantendo uma distância segura do universo feminino. Ora, se nas competições esportivas de alto nível as categorias são divididas por gênero, por que não dividir alunos e alunas nas aulas de Educação Física, se essas preconizam o esporte como conteúdo principal? Esta parece ser a proposta transformadora hoje em voga para a Educação Física escolar: refletir sobre a apropriação de diversos temas como conteúdos a serem ministrados nas aulas, conteúdos como as danças, lutas, ginásticas e até mesmo os jogos populares, excluindo e até mesmo demonizando a aplicação do conteúdo esporte nas aulas. Porém, ao observar as aulas observadas, me parece que a discussão necessita ganhar outros contornos, uma vez que mesmo na aplicação de um conteúdo outro (os jogos populares),os alunos do gênero masculino, generificam as atividades consideradas por eles, femininas. Altmann e Sousa (1999) incrementam a discussão quando consideram que XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo:cenas da Educação Brasileira 12061ISSN 2177-336X 10 Não se pode concluir que as meninas são excluídas de jogos apenas por questões de gênero, pois o critério de exclusão não é exatamente o fato de elas serem mulheres, mas por serem consideradas mais fracas e menos habilidosas que seus colegas ou mesmo de outras colegas. Ademais, meninas não são as únicas excluídas, pois os meninos mais novos e os considerados fracos ou maus jogadores frequentam bancos de reserva durante aulas e recreios, e em quadra recebem a bola com menor frequência até mesmo do que algumas meninas (ALTMANN & SOUSA, 1999, p.56). As aulas teóricas eram apresentadas com a leitura de textos e apresentação de filmes e animações. Todas, porém, tinham como temática as discussões acerca das identidades de gênero. Ao assistirem o vídeo For The Birds, da Pixar, os/as discentes foram convidados/as pela professora, a exporem suas impressões sobre o filme. A temática central do mesmo são episódios de exclusão por conta da diferença. Dois alunos defendem que as brincadeiras que enfatizam as diferenças e os apelidos não podem ser sempre consideradas como bullying e acreditam que a interferência do adulto nestas questões faria com que as crianças perdessem a autonomia. “Chamar o gordinho de gordinho é uma brincadeira saudável, a gente não tem que ficar interferindo em tudo, senão a criança perde a autonomia” (Ezequiel). Uma aluna defende que nestes casos, a interferência do adulto, do/a professor/a é primordial, pois o bullying causa sofrimento à pessoa discriminada. “Eu sempre fui vítima de apelidos, de brincadeiras porque eu era baixinha e eu sofria muito, o professor tem que intervir sim!” (Mariana). A professora direciona a discussão alertando que qualquer brincadeira que enfatize as diferenças pode se tornar um sofrimento para quem está sendo discriminado e que se faz necessário estar atento/a a toda atitude que hierarquize os indivíduos. Pude observar que em geral, os estudantes do gênero masculino encaram a aplicação de apelidos a partir de características físicas e habilidades como “algo normal”, “uma simples brincadeira”, “uma brincadeira saudável” enquanto as estudantes indicam sua preocupação com estas práticas, sinalizando que já foram vítimas de tais atitudes e que as mesmas provocaram efeitos negativos. O episódio sugere que os alunos que consideram as atitudes discriminatórias “brincadeiras saudáveis” não enxergam o preconceito implícito nas mesmas. A discriminação tem muitas nuances e normalmente se apresenta de forma disfarçada, velada. As relações entre “nós” e os “outros” estão carregadas de ambiguidade. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12062ISSN 2177-336X 11 Acabamos incluindo no “nós” todos os grupos e indivíduos que apresentam hábitos de vida, valores, estilos, visões de mundo semelhantes aos nossos. Incluímos nos “outros” os que se confrontam com a nossa maneira de nos situar no mundo, por características diferentes (CANDAU, 2005). É importante salientar que as discussões sobre gênero são fomentadas pela professora, a partir da sua iniciativa, numa espécie de movimento solitário, uma vez que nem a ementa e nem o programa oficiais da disciplina apresentam esta temática como conteúdo ou como tema norteador para o desenvolvimento das aulas. As discussões estão apenas começando... As questões discutidas na disciplina são confrontadas com o viés esportivistas e biologizante que historicamente atravessa e embasa essa formação (OLIVEIRA & DAOLIO, 2011). Os discursos que permeiam as relações que se estabelecem nas práticas pedagógicas se apresentam de forma dialógica, favorecendo uma interação igualitária, onde discentes são vistos/as como atores do processo pedagógico e não apenas como receptores/as de informações e conteúdos. Estes aspectos observados vão ao encontro do estudo de Lüdord (2009) quando a mesma salienta que a Educação Física talvez esteja trilhando novos caminhos ao abordar assuntos na sua formação com base em perspectivas históricas e socioculturais. Reflito, a partir do contato com a disciplina, sobre o esforço em desconstruir a visão do/a professor/a de Educação Física que visualize seus/as educandos/as apenas como corpos que necessitem ser (con)formados e treinados para a excelência das práticas esportivas e para a execução de gestos esportivos, baseados nos modelos de corpo e de execução física de atletas de alto nível. Para Barbosa-Rinaldi (2008) repensar a formação de professores/a de Educação Física é urgente. Faz-se necessária a reflexão e efetivação de uma formação profissional capaz de fazer com que os/as futuros/a educadores/as compreendam a complexidade da realidade social e sejam capazes de atuar como transformadores/as, co-criadores/as e não como reprodutores/as de saberes. Para que isso aconteça, segundo a autora, faz-se necessária a superação do modelo de racionalidade técnica ainda presente na educação, rumo a uma nova epistemologia da prática docente. Uma nova Educação Física parece surgir, mesmo através de tentativas isoladas de docentes. O olhar para o “outro” começa adentrar a formação destes educadores/as. Contudo, muito ainda deve ser discutido. As questões de gênero ainda precisam ser XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12063ISSN 2177-336X 12 evidenciadas no sentido de se realizar a desconstrução de ideários engessados ao longo da história da construção deste campo. A disciplina analisada fornece caminhos possíveis para a re(construção) de uma nova Educação Física, mas uma longa jornada ainda precisa ser trilhada. Referências ALTMANN, H.; SOUSA, E.S. Meninos e meninas: expectativas corporais e implicações na educação física escolar. Cadernos Cedes. Campinas-SP, ano XIX, n. 48, p. 52-68, 1999. BARBOSA-RINALDI, I.P. Formação inicial em Educação Física: uma nova epistemologia da prática docente. Movimento. Porto Alegre-RS, v.14, n. 03, p.185-207, 2008. CANDAU, V.M. Sociedade multicultural e educação: tensões e desafios. In: CANDAU, V.M. Cultura(s) e educação: entre o crítico e o pós-crítico. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. 165 p. DAOLIO, J. Educação Física e o conceito de cultura. Campinas: Autores Associados, 2004. 77 p. LOURO, G.L. O corpo educado. 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. 174p. LÜDORF, S.M.A. Editorial. Arquivos em movimento, Rio de Janeiro-RJ, v.1, n.1, p.5, 2005. NEIRA, M.G. Ensino de Educação Física. São Paulo: Thomson Learning. 2007. 210 p. OLIVEIRA, R.D.; DAOLIO, J. Educação Intercultural e Educação Física escolar: possibilidades de encontro. Pensar a Prática, Goiânia-GO, v.14, n.2, p.1-11, 2011. SILVA, M.M. Escola e Educação Física: maquinaria disciplinar, biopolítica e generificante. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Florianópolis-SC, n.1, v.34. p.343-357. 2012. SOLER, R. Educação Física: uma abordagem cooperativa. Rio de Janeiro: Sprint, 2006. 184 p. SOUZA, M.S. Didática da Educação Física escolar e o processo lógico de apreensão do saber. Movimento. Porto Alegre-RS, n. 03. v. 13. p. 181-199. 2007. TARDIF, M. Saberes Docentes e Formação Profissional. 14. Ed. Petrópolis: Vozes, 2012, 325p. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12064ISSN 2177-336X 13 SIGNIFICAÇÕES DAS MASCULINIDADES NO COTIDIANO ESCOLAR: PERFORMANCES E DESCONSTRUÇÕES Leandro Teofilo de Brito Colégio Pedro II - Universidade do Estado do Rio de Janeiro RESUMO Discursos heteronormativos, muitas vezes, buscam direcionar os/as jovens a enquadrar- se em modelos identitários, hierarquizados e fixos, que reproduzem as noções mais tradicionais e conservadoras de ser homem e ser mulher, entretanto parte das juventudes contemporâneasdesconstroem tais normatizações, apresentando variadas performatizações de masculinidades e feminilidades, fazendo tal fato ser visível nos cotidianos escolares, atravessando assim questões importantes na Didática contemporânea. Pautando-me nos estudos sobre masculinidades de Raewyn Connell, nas noções de desconstrução de Jacques Derrida e performatividade de gênero em Judith Butler, discuto, neste trabalho, como os chamados jovens mais jovens (des) construíam e performatizavam suas masculinidades no cotidiano escolar de uma escola pública situada no estado do Rio de Janeiro. A metodologia de pesquisa queer, com preceitos de inspiração etnográfica, tendo como referência os estudos de Katherine Browne, Catherine Nash e Cristina Reis, me auxiliou na desconstrução e desestabilização de concepções fixas sobre corpos e sujeitos no campo empírico, a partir de um modo de fazer pesquisa em que o/a pesquisador/a se utiliza de um pensamento queer, ou seja, de um olhar desnaturalizado frente às identificações de gênero e sexualidade. A partir desta visão, constatou-se que performatizações de masculinidades se fizeram presentes entre os jovens mais jovens no contexto da pesquisa, denotando ressignificações e rupturas nos processos de identificação de gênero, que se mostraram mais livres e menos hierarquizados frente às normas e regulações impostas sobre os sentidos atribuídos ao masculino. A Didática, neste contexto, precisa estar atenta a significações que emergem nas questões de gênero e sexualidade nos cotidianos escolares, tornando as temáticas alvo também de seus olhares. Palavras-chave: masculinidades, performatividade, cotidiano escolar. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12065ISSN 2177-336X 14 SIGNIFICAÇÕES DAS MASCULINIDADES NO COTIDIANO ESCOLAR: PERFORMANCES E DESCONSTRUÇÕES Leandro Teofilo de Brito Colégio Pedro II – Universidade do Estado do Rio de Janeiro Introdução As culturas juvenis contemporâneas têm trazido novas delimitações em questões relacionadas à sociabilidade, aspectos culturais, socioeconômicos, assim como nas discussões sobre gênero e sexualidade tão presentes na condição relacional de jovens, como na sociedade em um todo. Discursos heteronormativos, muitas vezes, direcionam os/as jovens a enquadrar-se em modelos identitários, hierarquizados e fixos, que reproduzem as noções mais tradicionais e conservadoras de ser homem e ser mulher. Por outro lado, parte das juventudes contestam tais normatizações, apresentando variadas expressões de masculinidades e feminilidades, denotando então desconstruções nestas questões e, consequentemente, performatizações de gênero, que se fazem visíveis nos cotidianos escolares, atravessando questões também de preocupação da Didática contemporânea. A noção de gênero em que este trabalho se apoia, está pautada nos estudos da filósofa Judith Butler. Como efeito de instituições, discursos e práticas, que determinam nossos modos de ser masculino e/ou feminino, o gênero, para Butler (2010), é performativo e se dá através da repetição estilizada de atos corporais, gestos e movimentos particulares, cujo seu efeito é criado e imposto pelas estruturas reguladoras rígidas, que são coerentes com normas instituídas e com o poder do discurso. Entretanto, Butler (2014) também afirma que o gênero pode ser o viés pelo qual as noções de masculino e feminino podem ser desconstruídas e desnaturalizadas, questionando o binarismo que esgotou o campo semântico do termo. Referir-se à XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12066ISSN 2177-336X 15 “confusão de gênero”, “mistura de gêneros”, “transgêneros” ou “cross-gêneros” sugere que o gênero se move além do binarismo naturalizado (idem). Dialogando com esta perspectiva teórica, a noção de desconstrução, cunhada pelo filósofo Jacques Derrida, também coaduna com os objetivos propostos neste estudo. A desconstrução, pela leitura de Haddock-Lobo (2008), se dá pelo deslocamento das oposições para além da dicotomia metafísica dualista, ao mesmo tempo se respeitando e se desordenando a ordem interna de um objeto, de um texto, por exemplo, havendo certa transgressão e promovendo um movimento interno no pensamento. Nas palavras de Derrida (1991): A desconstrução não pode limitar-se ou passar imediatamente para uma neutralização: deve, através de um gesto duplo, uma dupla ciência, uma dupla escrita, praticar uma reviravolta da oposição clássica e um deslocamento geral do sistema. É só nesta condição que a desconstrução terá os meios de intervir no campo das oposições que critica e que é também um campo de forças não-discursivas (p.372). Jacques Derrida, neste contexto, aposta na desestabilização de binarismos linguísticos como homem/mulher, masculino/feminino, heterossexual/homossexual, dentre outros, buscando não só a fragmentação, para desconstruir suas formas desviadas e negadas, mas também para mostrar que cada polo é plural e múltiplo, carregando vestígios e dependendo do outro para adquirir sentido (LOURO, 2008). Trago novamente Haddock-Lobo (2008), interpretando a noção de desconstrução em Jacques Derrida, ao colocar que: Enquanto se permanecer preso a um discurso classificatório, seja nos discursos machistas dos heterossexuais masculinos ou nos discursos libertários das feministas ou dos homossexuais, ainda assim se estará insistindo em divisões dualistas, tais como a metafísica tradicional sempre impôs. Sob este prisma, o feminino não é a mulher, mas sim a possibilidade de se lidar com a ausência da verdade fálica, masculina, certa... É a possibilidade do desconhecido e do novo e, por isso, a chance de pensarmos para além de qualquer classificação sexual, seja hetero, homo, trans, metro ou mesmo pansexual (p.20). XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12067ISSN 2177-336X 16 Com base nas noções enunciadas, esta pesquisa se pauta nos estudos sobre masculinidades, oriundos do campo do gênero e sexualidade. Tais discussões adentraram a produção acadêmica brasileira em meados da década de 1990, quando pesquisadores e pesquisadoras de diversas instituições do país, a partir das críticas e dos aportes teóricos dos estudos feministas da época, reconheceram que os sujeitos masculinos também faziam parte das discussões sobre gênero, consequentemente, tornando-os também uma categoria empírica e de análise nas pesquisas da área (CECHETTO, 2004). Estes estudos buscavam reconhecer a existência de masculinidades plurais, contestando modelos essencialistas associados ao masculino, assim como também buscavam colocar em discussão os homens como vítimas das opressões e desigualdades no contexto das relações de poder entre os gêneros (OLIVEIRA, 2004). Com grande destaque na década de 1980, surgindo nos países anglo-saxões, os men’s studies tiveram grande contribuição no desenvolvimento teórico da produção acadêmica brasileira, dedicando-se à investigação das construções socioculturais da masculinidade, cujos pesquisadores eram em grande parte homens vinculados explicitamente aos movimentos feministas (CECCHETTO, 2004). Dentre estes estudos, a noção de masculinidade hegemônica, apresentada por Raewyn Connell, foi e é uma das principais vertentes teóricas das quais as pesquisas acadêmicas brasileiras se apropriaram e se apropriam nas investigações sobre homens e masculinidades, nas diferentes áreas do saber, como a Sociologia, Antropologia, Educação, Saúde, etc. A masculinidade hegemônica refere-se à dinâmica na qual a estrutura hierárquica das relações de gênero é permeada por um modelo de masculinidade normativo, tendo ao seu redor outros modelos de masculinidades considerados subalternos e inferiores,em conjunto com as feminilidades, apresentando como justificativa para tal hierarquização o patriarcado e as relações de poder (CONNELL, 2003). De todo modo, questiono se esta estrutura hierárquica de masculinidades ainda é um modelo predominante no contexto social ou se novas configurações, pautadas na desconstrução da masculinidade hegemônica, já se fazem presentes de forma significativa em diferentes instâncias da nossa sociedade, como a escola. A partir destas afirmações, tendo como base o recorte de uma Dissertação de Mestradoi, busquei compreender como os chamados jovens mais jovens (des) construíam e performatizavam suas masculinidades no cotidiano escolar. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12068ISSN 2177-336X 17 Leite (2015) nomeia como jovens mais jovens aqueles/as que frequentam as salas dos anos finais do ensino fundamental, considerados/as também como aqueles/as mais próximos/as da condição de criança do que, por exemplo, do/da jovem que frequenta o ensino médio. Para a autora há uma invisibilização de sujeitos com este recorte etário nas pesquisas sobre juventudes, ou mesmo uma alternância de identificações atribuídas como sinônimos a adolescente, jovem, jovem mais jovem, adolescente jovem e jovem adolescente. Para esta pesquisa, me detenho no termo jovem mais jovem para designar estes estudantes, problematizando além da identificação etária os sentidos atribuídos ao gênero masculino. Desta forma, com base na metodologia de pesquisa queer (BROWNE; NASH, 2010; REIS, 2014), apresento dados construídos no espaço de uma escola pública carioca, durante o primeiro semestre do ano de 2012, cujos sujeitos são meninos jovens mais jovens com a faixa de idade entre 11 e 13 anos. A teoria queer é uma corrente composta por um campo de saberes, reconhecida, dentre outras esferas, na pesquisa acadêmica para pensar a ambiguidade, a multiplicidade e a fluidez das identidades sexuais e de gênero, assim como novas formas de pensar a cultura, o conhecimento, o poder e a educação (LOURO, 2008). Browne & Nash (2010) afirmam que o queer busca desconstruir a pesquisa convencional, levando em conta o deslocamento das identidades, pois, neste contexto, a pesquisa social se debruçará em contextos anti-identitários pautada em uma epistemologia de desestabilização. Neste sentido, a metodologia queer busca, além de desconstruir e desestabilizar concepções fixas sobre corpos e sujeitos no campo empírico, se utilizar de um modo de fazer pesquisa em que o/a pesquisador/a se utiliza de um pensamento queer, também para questionar e subverter normatizações nos processos de pesquisa, combinando métodos e procedimentos. De acordo com Reis (2014): Esse tipo de análise focada nas posições de sujeito permite-nos utilizar a teoria e metodologia queer para pesquisar não apenas aqueles/as considerados/as e que se consideram queer, ou seja, pessoas que escapam ou ficam nas fronteiras das dicotomias homem/mulher, heterossexual/homossexual, masculino/feminino, mas ter como sujeitos da pesquisa quaisquer pessoas. O que buscamos, afinal, são os significados expressos por meio dos atos corporais, de fala e como XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12069ISSN 2177-336X 18 esses atos divulgam posições de sujeito com as quais cada um/a poderá ou não se identificar (p.254). Com base em preceitos de inspiração etnográfica (ANDRÉ, 2014), através de observações participantes e entrevistas informais, me pautei no pensamento e na análise queer para adentrar o cotidiano escolar e investigar performatizações de masculinidades dos chamados jovens mais jovens. Os jovens mais jovens e as masculinidades Apresento os dados construídos no campo de pesquisas, retiradas de um caderno de campo utilizado nas observações participantes e através de falas de estudantes, registradas por meio de entrevistas informais durante o processo de pesquisa. Os nomes apresentados aqui serão fictícios, preservando o anonimato dos sujeitos participantes da pesquisa. Performances de masculinidades são citadas em uma aula observada, conforme apresento abaixo: Em aula de português, na qual foi apresentada um texto sobre direitos humanos, levantou-se a questão do trabalho infantil. Alguns meninos disseram à professora, em tom de deboche, que eram explorados em casa pela mãe, pois faziam trabalhos domésticos como arrumar a casa e lavar louça. Outros meninos na turma também falaram que trabalhavam em casa auxiliando a mães nas tarefas domésticas. Questionei o aluno Talmo, que estava ao meu lado, sobre o que ele achava dos trabalhos domésticos feitos por um homem, e ele me disse que também ajuda a mãe em casa, mas que os homens fazem para “dar uma força” às mulheres, e que para ele este não era serviço de homem. Claudio, outro aluno que estava próximo, ao ouvir nossa conversa fala: “todo homem deve fazer trabalho doméstico, porque pode acontecer da esposa trabalhar e ele não, como acontece na minha casa, onde minha mãe trabalha fora e meu pai não”. Talmo se mostra surpreso e ri (Diário de campo em 05/03/2012). Este excerto mostra como desconstruções do masculino já se mostram presentes nos diferentes espaços da nossa sociedade, exemplificando a questão do trabalho doméstico, expostas pelos alunos na aula. Embora alguns estudantes, através de seus discursos, não reconheçam que este tipo de trabalho possa ser feito também pelos homens, o aluno Claudio expõe o caso que vivencia em sua casa, no qual o trabalho XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12070ISSN 2177-336X 19 doméstico é realizado pelo pai. Connell (2000) afirma que não há um padrão de masculinidade que se encontra em todos os lugares, por este motivo falamos sobre masculinidades, no plural, havendo assim o que chama de relação dinâmica de gênero, pois nunca se está diante de processos de identificação homogêneos, sendo estes sempre fluídos e, algumas vezes, contraditórios. Os discursos dos jovens meninos, sempre performativos, ao mesmo tempo em que buscam fixar um sentido para o masculino, acabam sendo ressignificados a partir do exposto por Claudio, que apresenta, como exemplo do seu pai, uma performance de masculinidade desconstruída das normas e dos padrões instituídos tradicionalmente. Durante o período da pesquisa de campo, pude constatar um modismo que se fez presente na escola, referente ao uso de pulseiras coloridas que constavam nomes de sentimentos como amor, paz, amizade, etc. entre jovens meninos e meninas. As pulseiras eram até mais usadas pelos alunos quando em comparação com as alunas. Tanto eles como elas usavam e trocavam pulseiras entre si, embora houvesse divergências em suas ideias sobre o uso masculino de pulseiras: Pulseira é coisa feminina, eu não entendo isso deles usarem (Aluna 1). Pulseira colorida não é coisa de homem, mas eles usam, inclusive na cor rosa (Aluna 2). Pulseira é tanto masculina, como feminina, não tem problema, é unissex (Aluno 1). A maioria das meninas gosta de rosa e eu às vezes falo que gosto de verde, porque senão todo mundo fica me zoando (Aluno 2). Não têm problema em usar pulseiras na cor rosa, todo mundo usa, é moda (Aluno 3). Discutindo os discursos apresentados, as meninas se contrapunham ao uso das pulseiras pelos jovens meninos, justificando como algo estritamente feminino. Já os meninos defendiam que o uso de pulseiras não iria intervir em suas performances de masculinidades, possivelmente pautada em uma masculinidade heterossexual, embora, de certa forma, desconstruída, como as pulseiras de várias cores, inclusive na cor rosa. Entretanto, a utilização de pulseiras na cor rosa também foi justificadacom a expressão “é moda”, constatada pela fala de um dos meninos, buscando um tipo de desculpa para a XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12071ISSN 2177-336X 20 transgressão. O discurso da masculinidade hegemônica ainda se faz presente de forma a intimidar as diferentes manifestações de masculinidades em nossa sociedade, seja na justificativa citada pelo aluno ao modismo, seja quando se analisa os discursos das alunas, não admitindo o uso de pulseiras pelos meninos, e no jovem garoto que gosta do rosa, mas que diz ser obrigado a falar que gosta do verde. Para Butler (2014): Assim, um discurso restritivo sobre gênero que insista no binarismo homem e mulher como a maneira exclusiva de entender o campo do gênero atua no sentido de efetuar uma operação reguladora de poder que naturaliza a instância hegemônica e exclui a possibilidade de pensar sua disrupção (p.254). O uso das pulseiras pelos jovens meninos pode também ser designado como um marcador de masculinidade, ou como Paechter (2009), baseada Judith Butler, chama de repertório compartilhado. Para a autora: “[...] o repertório compartilhado consiste em modos de encenação do eu, tais como estilos de andar, de falar, de se vestir e de se comportar, comum aos membros de um grupo” (p.33), ou seja, performances de gênero que são compartilhadas em grupos específicos. Nas minhas observações, constatei que praticamente todos os meninos envolvidos na pesquisa se utilizavam das pulseiras e estas poderiam ser consideradas como uma marca performativa de masculinidade no espaço escolar. De acordo com Derrida (1991): [...] o performativo não tem seu referente (mas aqui essa palavra sem dúvida não convém e constitui o interesse da descoberta) fora de si ou, em todo caso, antes e perante si. Não descreve algo que existe fora da linguagem e antes dela. Produz ou transforma uma situação, opera [...] (p.363). No primeiro dia de observação na escola (Diário de campo em 02/03/2012) me chamou a atenção a vaidade dos alunos Jonathan e Eduardo. Negro, com o cabelo em corte moicano, com a crista alisada e pintada de loiro, Jonathan também usava as variadas e coloridas pulseiras, expressando um modelo de masculinidade que estava XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12072ISSN 2177-336X 21 pautado, tanto na vaidade, como no modismo de rapazes jovens. Jonathan me conta em quem se inspirou no corte de cabelo e que alguns meninos da sala – brancos e negros - também passaram a cortar o cabelo no estilo moicano depois dele: Esse corte de cabelo é uma imitação do Leo Moura, que joga no Flamengo [...]. Vários meninos aqui da sala também cortam moicano, me imitando [...]. Tem uns que só não tem coragem de pintar de loiro e passar alisante como eu passo, mas agora também cortam igual ao meu... alguns também não precisam de alisante, porque já tem o cabelo liso (Jonathan). Jonathan construía suas performances de masculinidades pautadas nos ídolos do futebol e da música, associado ao modelo tão enfatizado pela mídia: o metrossexual. Anderson (2005) afirma que o metrossexual é a designação de um homem heterossexual que se permite agir de maneiras culturalmente atribuídas aos gays, como aquele que não dispensa roupas e apetrechos de marcas, dando uma grande ênfase à vaidade na (des) construção de sua masculinidade. Embora esta designação de Anderson (idem) esteja atribuída a certo essencialismo, este é um modelo muito presente na construção de masculinidades juvenis. A masculinidade performativa de Jonathan, um jovem negro, pautada na vaidade, e que serve de modelo para os outros jovens mais jovens da turma, brancos e negros, pode ser analisada à luz do que Connell (2003) designou como masculinidade marginalizada, aquela que é associada aos grupos minoritários, expressas nas relações de classe e raça. Segundo a autora alguns grupos de negros não são marginalizados, devido à autorização da masculinidade hegemônica ao pertencimento no grupo dominante, levando-se em consideração alguma ação que os enquadre na esfera desse modelo de masculinidade. Desta forma, o modelo de masculinidade marginalizada passa a manter uma relação de cumplicidade com o modelo hegemônico, embora este não seja um benefício que se estenderá a todos os homens negros, que continuam em uma situação de marginalidade social, conforme exemplo apresentado pela pesquisadora: A marginalização sempre é relativa à forma de autoridade da masculinidade hegemônica como grupo dominante. Assim, nos Estados Unidos, os atletas negros podem ser exemplos da masculinidade hegemônica. No entanto, a fama e a riqueza individuais XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12073ISSN 2177-336X 22 destas estrelas não têm nenhuma consequência profunda que se traduza em maior autoridade social para os negros (CONNELL, 2003, p.122, tradução minha). A partir desta afirmação de Connell (idem), aponto que Jonathan, embora seja um modelo para que os meninos da turma o imitem no corte de cabelo, apresentando uma performance de gênero desejada tanto por alunos negros como por alunos brancos, encontrava-se dentro dos preceitos da masculinidade marginalizada no cotidiano escolar pesquisado, pois conforme sua fala: Já me chamaram de “macaco loiro “numa briga, mas eu nem ligo, porque foi depois do meu corte de cabelo e da pintura, que todo mundo começou a me imitar. [...] Isso é do xingamento mesmo que quem é negro passa, ninguém aceita um cara preto pintar o cabelo de loiro, acham feio (Jonathan) Jonathan, nesta fala apresentada, naturaliza o racismo que vive no espaço da escola, afirmando que ser chamado de “macaco” faz parte dos xingamentos que todo negro vive, embora também reconheça que seu corte de cabelo trouxe possibilidades desconstrutoras no cotidiano escolar, pois outros jovens meninos passaram a imitá-lo no corte. Dentro de um contexto de supremacia branca, que ainda é imposto na nossa sociedade, as masculinidades negras também desempenham papeis simbólicos para a construção do gênero nos brancos, como afirma Connell (ibid.). Essa (des) construção está também permeada por deslocamentos de sentidos, como se pôde constatar. Bastante vaidoso também, Eduardo era branco, havia clareado o cabelo e utilizava também o corte moicano como Jonathan, e, assim como o amigo, não dispensava o uso das pulseiras. O jovem era considerado um dos mais populares da sala, sendo bastante assediado pelas meninas da turma e de outras turmas da escola. Em algumas observações, Eduardo fazia questão de se sentar próximo das meninas que o bajulavam, ou, em outras palavras, nutriam uma “paixão” – algumas secretas, outras não - por ele (Diário de campo em 23/03/2012 e 25/05/2012). Segundo o aluno, o assédio era bom, mas ao mesmo tempo ele se sentia mal frente aos outros jovens meninos, que não eram tão assediados como ele: XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12074ISSN 2177-336X 23 Eu sou amigo de todos, mas às vezes parece que eles têm inveja de mim, porque nunca vi nenhuma menina gostar deles... isso às vezes é ruim na amizade. Eu também queria que eles tivessem meninas que gostassem deles, quisessem namoro, comentassem deles... mas não tem” (Aluno Eduardo) A valorização das amizades entre sujeitos masculinos, pode também ser vista como um marcador de um tipo de performance de masculinidade, conforme a fala de Eduardo expressou. De qualquer forma, cabe destacar que, muitas vezes, a amizade entre homens não possui o mesmo grau de intimidade e aproximação com a qual as amizades femininas caracterizam-se, e mesmo que para eles alealdade faça parte de um modelo de socialização imposto, os obstáculos culturais ainda repreendem uma maior intimidade nas relações masculinas. Este é um modelo performativo normatizador ainda muito apropriado pelos homens, mas também passível de desnaturalização, pois como coloca Butler (2014) considerar apenas uma definição de gênero normativa é delimitar suas possibilidades de desconstrução. Derrida (1991) complementa: “A desconstrução não consiste em passar de um conceito para outro, mas em modificar e em deslocar uma ordem conceitual assim como a ordem não conceitual à qual se articula” (p.372). Cabe, por fim, destacar, que a vaidade de Jonathan e de Eduardo era bem aceita dentro da escola, não havendo qualquer “interrogação” em relação a certa identificação heterossexual dos dois jovens meninos. Considerações finais Os jovens mais jovens, sujeitos desta pesquisa, mostraram como a desconstrução de masculinidades estão presentes em alguma medida na nossa sociedade, exemplificadas nos relatos de um cotidiano escolar. Performatizações de masculinidades se fizeram presentes no dia-a-dia escolar destes jovens meninos, denotando ressignificações e rupturas, apresentando processos de identificação mais livres e menos hierarquizados frente às normas e regulações impostas nos sentidos fixos de ser “homem”. Um olhar queerizado no cotidiano escolar, proposto por este estudo, permite que se visualizem possibilidades reais de mudanças nas configurações de gênero, performatizadas pela juventude contemporânea, e que permitem acreditar que as XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12075ISSN 2177-336X 24 multiplicidades dos processos identitários, de fato, já estão sendo apropriados pelos sujeitos masculinos dentro de um recorte etário. Novos sentidos do masculino emergem em diferentes contextos socioculturais de nossa sociedade, como a escola, e, deste modo a Didática na contemporaneidade precisa atentar para as significações que emergem nas questões de gênero e sexualidade, tornando as temáticas também alvo de seus olhares. Referências Bibliográficas ANDERSON, Eric. In the game: gay athletes and the cult of masculinity. New York: State University of New York, 2005. ANDRÉ, Marli Elisa D. Afonso. 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XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12077ISSN 2177-336X 26 GÊNERO E RAÇA: SUBSÍDIOS TEÓRICOS PARA A PRÁTICA PEDAGÓGICA Paulo Melgaço da Silva Junior Doutor em educação pela UFRJ - Professor da rede pública municipal de Duque de Caxias Ana Paula da Silva Santos Doutoranda em Educação pela PUC/Rio – Professora da rede pública municipal de Duque de Caxias Nos dias de hoje, pensar em educação escolar nos remete a pensar na questão da função social da escola na contemporaneidade: a construção de identidades abertas à diversidade cultural, o combate à discriminação dos grupos culturais marginalizados na sociedade, a valorização da cultura destes mesmos grupos e o desafio a preconceitos e estereótipos limitadores de uma educação mais igualitária e menos excludente. Neste sentido, a questão da diferença torna-se o grande desafio a enfrentar por parte dos professores no espaço escolar. Dentro deste contexto, este estudo aborda alguns modos pelos quais alunos/as de duas escolas da periferia do Rio de Janeiro e de Duque de Caxias/RJ constroem suas identidades culturais de raça e gênero e, ainda, como estas são vivenciadas no ambiente escolar. A pesquisa realizada na escola pública do município do RJ, contou com a participação de uma turma de 5º ano do ensino fundamental nas aulas de Educação Física. Na segunda escola, localizada em um bairro da periferia da cidade da Baixada Fluminense - Duque de Caxias – a pesquisa foi realizada nas aulas de Artes em uma turma de 6º ano do ensino fundamental. Destacamos que trabalhar com periferias urbanas abre possibilidades de conhecer como determinados discursos e conceitos que circulam nos grandes centros são apropriados e reinventados. A proposta das aulas foi investigar e problematizar os conceitos apresentados por alunos e alunas diante de questões relativas a gênero e raça. O trabalho evidenciou a importância de se colocar a diferença em questão, de problematizar os conceitos essencializados que circulam nas salas de aula e de se refletir sobre os processos de racialização, sexualização e generificação. Palavras-chave: Escola, Gênero, Raça Introdução Este estudo aborda alguns modos pelos quais alunos/as de duas escolas da periferia do Rio de Janeiro e de Duque de Caxias/RJ constroem suas identidades culturais, de raça e gênero e como estas são vivenciadas no ambiente escolar. O trabalho é resultado das discussões entre as pesquisas de doutoradoii e de mestradoiii que investigaram como as questões de gênero e raça atravessam as práticas pedagógicas nestas comunidades escolares em específico. Destacamos que trabalhar com periferias urbanas abre possibilidades de conhecer como determinados discursos e conceitos que XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12078ISSN 2177-336X 27 circulam nos grandes centros são apropriados e reinventados. As relações de vizinhança persistem muito mais do que em bairros de classe média ou alta. As necessidades básicas, os espaços de sociabilidade, fazem com que sejam redesenhadas novas formas de perceber o mundo social (SILVA JUNIOR e MOREIRA, 2010). Neste sentido, o estudo de gênero, segundo Moita Lopes (2006), pode ser considerado como uma das categorias cruciais para entender as mudanças sociais e culturais da vida contemporânea. Ao mesmo tempo, Butler (2003) afirma que entender gênero no contexto global pode levar ao combatede falsas formas de universalismos. Em paralelo, de acordo com Barnard (2004) a raça é uma abstração, uma fantasia móvel que não tem nada a ver com o determinismo biológico. Nas palavras do autor, o corpo é feitichizado. A lógica de mercado constrói o homem negro e a mulher negra como sensuais, bons de cama, sempre prontos a realizar desejos. Pelas palavras de Wilchins (2004), aprendemos a ser de determinada raça e a agir como tal. Para Barnard (2004), as questões de raça, sexualidades, gênero e classe social devem ser vistas como interseccionadas, ou seja, não podem ser dissociadas, uma vez que se deve olhar para o sujeito social como um todo e não apenas por um ângulo de suas subjetividades. Reflexões sobre escola e culturas Nos dias de hoje, pensar em educação escolar nos remete a pensar na questão da função social da escola na contemporaneidade: a construção de identidades abertas à diversidade cultural, o combate à discriminação dos grupos culturais marginalizados na sociedade, a valorização da cultura destes mesmos grupos e o desafio a preconceitos e estereótipos limitadores de uma educação mais igualitária e menos excludente. Neste sentido, a questão da diferença torna-se o grande desafio a enfrentar por parte dos professores no espaço escolar. Candau (2008), nos convida a pensar que não há educação que não esteja imersa nos processos culturais do contexto em que se situa. A referida autora afirma que existe uma relação intrínseca entre educação e cultura e ainda “[...] não é possível conceber uma experiência pedagógica „desculturizada‟, isto é, desvinculada totalmente das questões culturais da sociedade” (CANDAU, 2008, p. 13). Segundo a referida autora, as diferenças socioculturais permeiam nosso cotidiano e são componentes centrais nas relações, embora sejam marcadas muitas vezes por tensões e conflitos em virtude das desigualdades de poder que as atravessam e XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12079ISSN 2177-336X 28 que são responsáveis por hierarquizações, preconceitos, discriminações e subalternizações em relação a determinados grupos sociais. Nesta perspectiva, a escola acaba por reproduzir as estruturas de poder, bem como os privilégios de um sexo sobre o outro, tal como ocorre em nossa sociedade. Adota-se, assim, o modelo binário de gênero e sexualidade homem/ mulher, defendendo-se expectativas de papéis sociais e sexuais naturalizados de gênero e de raça nos quais o homem deve ser bruto e a mulher delicada e comportada. Ou, pensando a partir da raça negra, espera-se que o menino seja bruto, sexualizado e com habilidades para o esporte, e a menina escandalosa, barraqueira e altamente sexualizada. Um olhar atento ao cotidiano escolar pode evidenciar diversas relações que acentuam a multiplicidade de diferenças e que provocam uma série de tensões nas práticas pedagógicas e nas relações sociais. Reconhecemos, neste sentido, que a educação intercultural pode se tornar uma importante ferramenta para lidar com estas tensões, especialmente no desafio de se promover a articulação ente igualdade e diferença no contexto escolar (CANDAU, 2014). Educação intercultural: em busca de novos caminhos No intuito de buscar novas possibilidades para a caminhada rumo a educação intercultural é necessário refletirmos sobre as tensões e os princípios que permeiam esta perspectiva. Candau (2014), identifica como uma problemática o fato da expressão educação intercultural apresentar uma polissemia. Sendo assim, situa a perspectiva intercultural no campo do multiculturalismo, onde classifica em três grandes abordagens: o multiculturalismo assimilacionista, o multiculturalismo diferencialista ou monocultura plural e o multiculturalismo interativo ou interculturalidade. Primeiramente a abordagem assimilacionista, no sentido descritivo, refere-se ao fato do multiculturalismo ser uma característica das sociedades atuais, imersa na pluralidade de ideias, comportamentos, modos de ser, agir e estar no mundo e na diversidade cultural de etnia, raça, gênero, classe social, dentre outros marcadores identitários. No sentido prescritivo, a ideia é o favorecimento que todos sejam inseridos à cultura hegemônica. Quanto ao multiculturalismo diferencialista, Candau (2014) afirma que esta abordagem parte do princípio que quando se enfatiza a assimilação, se acaba por negar ou silenciar a diferença. Logo, propõe a ênfase no reconhecimento da diferença e a garantia de espaços para que estas possam se expressar. Segundo a referida autora, estas XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12080ISSN 2177-336X 29 duas abordagens são as mais comuns em nossa sociedade, convivendo de maneira tensa e conflitiva e ocasionando polêmicas sobre a problemática multicultural. A terceira abordagem destacada por Candau (2014), a qual nos posicionamos para fundamentar o presente estudo, é o multiculturalismo interativo ou interculturalidade. Tal perspectiva supõe a inter-relação entre os diferentes grupos culturais, rompe com a visão essencialista da construção das culturas e identidades culturais e afirma que a sociedade atual é marcada por intensos processos de hibridização cultural que definem as identidades como abertas e em permanente construção. Outra autora que também aborda o conceito de interculturalidade é Walsh (2009a). A mesma se apoia em Tubino (2005) para esclarecer a diferença entre interculturalidade funcional e interculturalidade crítica. Enquanto a primeira se traduz em políticas que buscam promover o diálogo e a tolerância sem tocar nas causas da assimetria social e cultural, a segunda vai propor uma crítica cultural no sentido de visibilizar as causas do não diálogo e questionar o modelo social vigente. Em relação a interculturalidade crítica, a autora destaca que tal perspectiva busca alternativas para a globalização neoliberal e a racionalidade ocidental e, também, para a luta pela transformação social e condições de poder, ser e saber bem diferentes das percebidas atualmente. É, na visão da referida autora, um processo dirigido à construção de modos “outros” de poder, ser e saber. Desta forma, torna-se indispensável derrubar as barreiras da colonialidade que determinam padrões e inferiorizam sujeitos contribuindo, assim, para a reconstrução da escola enquanto espaço de valorização dos diferentes conhecimentos e culturas. Práticas pedagógicas interculturais: um caminho a construir Alguns/mas autores/as reconhecem que a perspectiva intercultural da educação exige transformações urgentes na escola (CANDAU, 2014; FLEURI, 2000). Para Fleuri (2000), a perspectiva intercultural da educação implica em mudanças profundas na prática educativa, não só pela necessidade de oferecer oportunidades significativas a todos e todas, respeitando pontos de vista e pensamentos, mas pela necessidade de desenvolver processos educativos, metodologias e instrumentos pedagógicos que possam dar conta da complexidade das relações entre os indivíduos e diferentes grupos culturais. O autor destacado também aposta na necessidade de se reinventar o papel e o processo de formação dos educadores. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12081ISSN 2177-336X 30 Nesse sentido, Candau (2014) afirma que a condição primordial para a transformação é a mudança de ótica, ou seja, uma reconstrução dos sentidos e significados que atravessam a escola e as práticas educativas. A autora citada ressalta a polissemia presente nos discursos dos professores em relação aos termos igualdade e diferença, onde o primeiro termo refere-se a um “processo de uniformização, homogeneização e padronização orientado à afirmação de uma cultura comum a