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Dominique Barthélemy
A CAVALARIA
oe cEnvrÂNrA ANTrce À
FRANÇA po sÉcur,o xrr
rna.ouçÃo
Néri de Barros Almeida
Carolina Gual da Silva
"§íilf;illã'riH'*"
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UNrvsnsroaor Estaoual, og CaÀ.{r,rNas
Rcitor
FpnNeNoo Frnlrrne Cosre
Coordenador Geral da Universidade
Epcen Selveooru ns Decce
E-ã-]r-T-FlEtEEl,
Conselho Editorial
Prcsidentc
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Ar,crn PÉcone - Anr,Bv Reuos MonrNo
JosÉÂ. R. GoNrryo -JosÉ RoBERTo ZAN
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À Cavalaria
Quanto à Cavalaria medieval, tal como definida mais acima com
ranro rigor quanto possível - e também, inevitayelmente, com um pouco
de flexibilidade -, náo se apresenta para nós como a anrírese de uma
barbárie primordial. Ela será muiro mais uma yersáo sofisdcada dos acor-
dos entre guerreiros, o aprofundamento de cerros rraços já presentes nas
sociedades de guerreiros nobres como o esforço que frequentemente fazem
para entrar em acordo em vez de se exporem a ser dizimados e o uso que
fazem das armas, em ritos e cerimônias, para dar crédito - sem desferir
muitos golpes - a seu personagem social de herói. É possível que aCava-
laria medieval não tenha o que acrescenrar a esse esforço ou a esses usos a
náo ser o desenvolvimento de seus próprios meios guerreiros, em período
de crescimento econômico (sensível após 600) e de reforço (ligado aos
carolíngios) dos poderes reais, condais e senhoriais - para melhor exor-
cizar uma yiolência potencial maior.
Náo temos, portanro, a relarar neste liyro, uma evolução decisiva,
toda unívoca e toda moral, da barbárie franca à Cavalaria francesa, como
fez um autor como Guizor em 1830, e com frequência, com ele, rodo o
século XIX. Isso nos permite, ao menos, dar a Carlos À{agno um lugar mais
importante e mais específico.
2
O ELITISMO CAROT,ÍNCTO
Aparentemente, a época carolíngia permite à aristocracia franca
dar um grande salto à frente, em direçáo à Cavalaria clássica. De fato, os
indícios do desenvolvimento da cavalaria e de sua identificaçáo com a
nobreza, nos séculos VIII e IX, abundam (apesar de nuanças passageiras).
Os progressos técnicos do armamento, especialmente das espadas e cou-
râças, parecem orientados, por umaverdadeira lógica social do temPo, Para
o reforço e a proteção do cavaleiro nobre. Ao mesmo temPo, utna moral
mais insistente torna odioso o homicídio entre cristáos, mais veemente-
mente do que ant€s, e sugere à classe dominante que dê preferência à re-
putaçáo de justiça àquela de ferocidade, oll ao menos que, sem renunciar
ao orgulho guerreiro franco, descubra uma vocaçáo na defesa das igrejas
e dos fracos. Além disso, a moral do casamento cristáo tende a reforçar o
papel da mulher nobre e a atençáo que lhe é devida. Como náo revelar
desde já minhas incençóes? Efecivamente, a longo e a médio prazo, é a
F rança p tí s - c ar o língi.a que verá e clodir a " Cav alarii' clássica.
No entanto, não acabemos com o suspense deste ensaio' Em
certos aspectos, contrariando o quadro que acabamos de apresentar, o
regime e a ideologia dos carolíngios poderiam ter impedido, e podem ter
92 93
A Cavalaria
retardado, um desenvolvimento Cavaleiresco que parecia muito próximo
em algumas páginas de Gregório de Tours e de "Fredegário" sobre as
guerras civis e codificadas. Pois os carolíngios e a moral de sua Igreja
querem também atacar a liberdade ariscocrática,espécie de individualismo
do guerreiro nobre. Inicialmente ,fazendo criticas frequentes à frivolidade,
ao jogo; depois, pregando e tentando abolir as guerras civis. De forma
que o modelo oferecido ao guerreiro nobre é mais de submissáo ao rei e
aos condes, ou mesmo de serviço público, do que de exaltaçáo sem nuen-
ças de sua virtude propriame nte dita. As palavras latinas, muito romanas,
rniles e militia afloram repentinamente no século IX, nesse que chama-
mos, no reino dos historiadores, de "renascimento carolíngio". Elas
competem com apalavravulgar, ladnizada,uassus,vassalo, e com o termo
técnico eques, cavaleiro. Elas aparecem nas manifestaçóes que dizem
respeito à fidelidade e ao serviço, na defesa e na ilustraçáo da vassalidade,
ou seja, de uma instituiçáo que mantém o estatuto, mas limita a liberdade
dos nobres.
Por volta do ano 1000, como veremos, as palavras rniles e ruili-
ti.a váo se tornar as mais correntes no latim das cartas e das crônicas
para designar o Cavaleiro e a Cavalaria. De forma que, retrospectiva-
mente, somos tentados a crer que sua difusão assinala direramente o
surgimento da Cavalaria. Mas isso é uma armadilha para os historia-
dores' as coisas sáo mais complexas. Pelo concrário neste ensaio, esta-
remos mais atentos às verdadeiras tensóes morais e sociais que aparecem
a partir do sécuio IX. Trata-se de um período de expansáo, situado sob
um regime mais fácil de caracterízar como claramente aristocrático e
cristão do que o século VI.
As guerras civis e a fragilidade dos merovíngios depois de 585
podiarn alarmar Gregório de Tours, fazê-lo duvidar do futuro dos francos.
Suas Histórias trazem, eferivamente, uma imagem crepuscular do século
VI na Gáiia, muitas vezes marcado pela peste, pelos falsos reis e falsos
profeas. No entanto, olhando mais de perto; aprópria época de Gregório
é o início de um mundo novo, e Carlos Magno já está sendo preparado.
A monarquia franca tem instituiçóes regulares, palácios, assembleias e
hostes (algumas que renovam as de Roma, outras as da Germânia). Uma
verdadeira interaçáo, com normas implícitas (em parte explicitadas em
Paris em 613), reúne reis, leudes e bispos. Mesmo o ofuscamento dos reis,
O elitismo carolíngio
depois de Í3g,acompanhado de ruídos na periferia do mundo francor,
náo afeta seu núcleo. Os mordomos do palácio crescem em poder no
século YII e regulam a aristocracia. De um deles, Pepino, o Veiho (morto
em 640),sairá um século depois a dinastia de Carlos Magno'
Desde 674, a"disciplina cristí' é invocada como um cimento
necessário ao reino franco, a uma sociedade na qual o cristianismo se en-
raíza cadavez mais2. É o *om"nro no qual se estabelece uma penitência
nova, reiterável e tarifada, que confirma ao mesmo tempo o esforço em
moralizar a sociedade e aaceítaçáo de numerosos compromissos. A tona-
lidade essencial do crisdanismo medieval é dada assim, e podemos Perce-
ber que, a partir de entáo, a Igreja propóe, ao mesmo temPo, um grande
ideal moral às elites, e aceita, na prática, muitas disrorçóes desse ideal.
Desde o reinado de Dagoberto (ezl-e»),o rei e mesmo seus condes devem
supostamente defender as igrejas e os pobres - eles transformam isso em
mais um elemento de sua legitimidade -, embora essa "defesa" sempre
fraca transforme-se, às vezes, em opressáo.
É por volta de 600 também que tende a desaparecer o uso, mais
profano do que pagío, de enterrar os mortos nobres com suas armas.
Isso nos priva de informaçóes arqueológicas sobre essas armas, e será
necessário aguardar até os manuscritos ilustrados do século IX para
"vermos" guerreiros nobres - e apreciarmos os Progressos da e quitaçáo
e das espadas.
Mas, por outro lado, temos as cartas de doaçóes aos mosteiros,
encarregados de rezar pelos morcos e assim de apagar seus erros, e essas
cartas fornecem algumas indicaçóes sobre o senhorio rural. Apartir delas,
entrevemos que, ao menos na Francia, a tendência ao declínio econômico
e demográfico foi invertida3. Um longo crescimento medieval começa
bastante lento, mas muito firme, uma vez que durará sete séculos, quase
até 1300. Desde a época de Carlos Magno, esse crescimento faz nascer e
crescer pequenos burgos onde acontecem os mercados e, sobretudo, ele
Ver Karl Ferdinand §7erne! "Les Principautés périphériques'l
Boredus, ne 9.
Nas regiôes meridionais, a inversáo da tendência pârece um pouco mais tardia, por
volta do século IX.
95
I
i
A Cavalaria
susrenra a empreitada guerreira e política que no ano 800 é coroada por
um dtuio imPerial.
Os 'tavaleiros" dadesde a reforma dos thertatase no sécuio VIL
As duas milícias sáo, portanto, enráo, a do século e a do clero. As reorias e
polêmicas da cultura e do regime carolíngio, enrre 800 e 880, comporram
muitas variaçóes sobre esse rema. (Jma vez qve o remâ das duas milícias é
metafórico, permite pensar ao mesmo rempo a coordenaçáo e a disrinçáo
exiscentes enrre a elite eclesiástica e a elite laica, de Carlos Magno r que,
por meio de Alcuíno, escreye ao papa Leáo III para que se retire àrlpr...,
I
58
59
2-límóteo,1I,4.
TÍtemata, plurai de tlterna, rermo que designa a unidade, simultaneamente militar e
territorial, administrada por um esüarego. (N. da R.)
56
57
Boretius, ne 1 50.
Régine le Jan, 'Justice royale et pratiques sociaies...,l
122 r23
A Cavalria
e deixe que realize seu serviço (ruilltia) de proteçáo à Igreja contra os
infiéis60 -, aos bispos e monges que exigem um clero desarmado e náo
aceiram que lhes sejam cobrados impostos, uma vez que rezam. O esquema
das duas milicias delxa na sombra a relaçáo exata da ordem eclesiástica com
o rei: ele é o senhor da milícia terrestre e tem com algreja uma relação
ambígua, ao mesmo tempo de patrocínio e de fidelidade. É melhor náo
esclarecer demais certos pontos, em uma sociedade ou em um sisrema polí-
rico... Náo convém submeter muito fortemente o clero ao rei, nem reduzir
esse ao papel de chefe da segunda milícia. Retomado frequentemente até
o século XII, o tema das duas milícias permite eyocar a rivalidade dos dois
braços da classe dominante, vindos das mesmas famílias, mas também a
sua simetria, a sua articulaçáo e às vezes até mesmo a sua colusão.
O florescimento desse tema no século IX leva os clérigos a falar
de "ordem laica" (Jonas de Orleans, 829) ou mesmo de "ordem miliar"
(Agobardo de Lyon, 833)6r, dando-lhe um papel de justiça tanto quanto
de guerra. Mas isso náo conduz nem a difundir a insígnia através de um
adubamento cristáo solene, nem a elaborar um código disciplinar do
exército, da funçáo pública, ou mesmo da vassalidade. Podemos apenas
ligar, talvez, a essa interprecaçáo de vassalidade em milícia a apariçáo da
harntiscara, â partir de 830, rito de desonra que consisre em urn vassalo
cavaleiro marchar carregando sua sela sobre as costas, ou seja, se fazendo
de cavalo e invertendo sua posiçáo social dominante6'. Mas como ele
próprio aceita essa penitência, ela não é urna destituiçáo durável - e, no
limite, o fatcj mesmo de passar por essâ humiihaçáo prova que alguém é
estaturariamente um homem de serviço honorável: um servo náo seria
sujeito a isso!
Se existe uma questáo no século IX sobre o boldrié da milícia
(cingulurn ruilitie), é para que seja deixado voluntariamente ou sob a pres-
sáo social e a prescriçáo religiosa. Para a penitência, o melhor exemplo é o
do próprio Luís, o Pio, em ln de outubro de 83363. O adeus às armas e à
cabeleira acompanha. de forma mais ou menos rirual, cada vez majs fre-
60 
Jean Flori, Z'Id.éologie du glaiue..., p. 45.
61 Idem, p. 59.
62 VerJean-Marie Moeglin, "Pénirence publique et amende honorable...".
63 Boretius, ne 197. \'er Karl Leyser, "Earlv Medieval Canon Law...".
O elitismo carolíngio
quentemente a entrada na vida monástica: vemo'lo em Cluny no século
X e em Redon no XI.
Mas a ideia das duas milícias, desde o início, comPorta um dese-
quilíbrio. As verdadeiras armas e averdadeira disciplina náo estáo; de fato,
do mesmo lado. O combate esPiritual dos cristãos, e especialmente dos
monges, conüa o mal e o demônio é apenas uma metáfora. Não §e trata
de pregaçáo arriscada, nem mesmo da ascese ermirã' mas, aPesar de tudo,
de certo conforto. O apego de clérigos e monges, pelo menos até o século
XII, à ficçáo de suas armas espirituais dissimula alvez um complexo de
inferioridade, diante dos verdadeiros Cavaleiros que zombam de sua co-
vardia ou efeminaçáo. Eles náo emitem seu Proresto viril apenas pela
criaçáo de uma metáfora, mas a6rmando sua utilidade social: eles recebem
suas rendas e seus privilégios para a' realizaçáo de um combate, de um
serviço. Para eles, * i*pli"*ç- prática é o dever de obediência a seus
chefes. Para Valafrido Estrabáo, por volta de 840, os abades sáo como tri-
bunos6a para seus monges65.
A "ordem laica'] por outro lado, tem armas verdadeiras e uma
disciplina rnenos evidente. Tâl como o emPrega o renascimento carolíngio,
o rema das duas milícias corrobora o papel das armas como símbolo de
esraruto de uma elite única e mmbém a sua legidmidade. Nos séculos X e
XI, com frequência sefalara, nos dipiomas reais, de uma milícia do reino
(ntilitia regni) que é encabeçada pelo rei e que o escolta nas cerimônias
(especialmente sacras e funerárias). Mas o que se sobressai é antes a ideia
de comunidade de reino, de compardlhamento do ministério real com os
grandes fiéis do rei (na linha do capitulário de 823-82566). E a própria re-
ferência à milícia torna-se muito limitada, reportando-se a senhores e
vassalos que sáo os herdeiros de seus estatutos e bens e cujo "serviço" guer-
reiro e judiciário deriva de seu nascimento nobre. Eles detêm as honras,
obrigaçóes e prerrogativas de condes, vassalos reais e beneffcios (feudos
no sentido amplo), pelos quais uma forte competiçáo os opóe - e nessa
ocasiáo, especialmente apartir de 830, eles se agrupam em facçóes em torno
1-
I
65
66
O autor se refere aos tribunos militares, oficiáis que comandam as legióes romanas
(N. da R.)
JeanElori, L'Idéologie du glaiue..., p. 50.
Boretius, nn 150.
124 t25
A guerra entre irmãos
os carolíngio s arvez rivessem pre cisado de uma verdadeira mirí-
cia para fundar um império durável digno desse nome. Com a reoria das
duas milícias, homens como Jonas de Orleans e Agobardo de Lyon náo
tazem nadapara reforçar verdadeiramenre o Esrado ãro[ngio. Na í.rd"d.,
eles se dessolidarizam dele, em favor do privirégio eciesiásiico.
O aho clero dessa época é parre ativa nas lutas faccionais que, com
c_eÍteza, a inrerrupçáo da expansáo franca revive pouco , po,r.o 
" 
p"rtir
do ano 800' o alto clero rraz para essa ruta sua coop eraçáode mirícia 'pero
verbo'] pregando e polem izando. o reinado de Luís, o pio, conrrasra com
o reinado de seu pai, Carlos Magno, no que diz respeiro à, 
"rr.*bl.i"r,que se multiplicam (várias por ano) enquanro 
", 
horr., rareiam ou dimi-
nuem' Eias sáo mobirizadas apena§ na proximidade das fronreirr, 
" 
r.r"-
defendidas ou libertadas. Na verdade, mobiriza-se menos. A visira de
Haroldo a Ingelheim (aze), transfigurada por Ermoldo, o Negro, em
triunfo de Luís, o pio, é positiva? O àin"maryoês recebeu o baciáo. as
armas, colocou suas máos enrre as do imperador 
- Ermordo nos forneceu
assim um dos mais n",lgo, casos de homenagem de máos67. Mas o que
Haroido dá em roca? Ele náo tem poder p".". ,. impor 
" 
,." f "rr1 
ffr"impingir a conyersáo 
- essa demorará dàt ,é.,rlor. No .rrt"l,rto, .rrr"
facção dinamarquesa firmou raços com o palácio caroríngio onde o firho
de reis e filhos de reis rivais sem que as decisóes de cima possam se impor
por si mesmas.
As duas milícias são, porranro, antes de tudo, uma ideia de clérigos
e monge§. o sucesso caroríngio e pós-caroríngio desse tema náo deve, em
nenhum caso, fazer crer nas "origens ,o-rrr"ri da "cavalaria -.di.u"l". só
há nos escriros e carras dos clérigos um dpo de jogo de palavras romanas
sobre, de um lado, os cosrumes francos.,ào o,rrro, uma disciplina cristá.
Ainda que, nesses usos ou nessa disciplina, haja autênticos ,..rrrpr"go, d.
elementos romanos * promessas d. vassalos, direito a" ig."j" i.. "
e o sobrinho de Haroldo aprendem a manejar armas e a adotar o compor-
tamento franco. Mas rudo isso tem somente uma consequência importante
a curto prazoi a de que os normandos mais bem armados, informados
sobre as riquezas e fraquezas do mundo franco, vortarão a efetuar araques.
será bastanre para isso que os laços de amizadee apadrinhamenro enrre
dois homens em parcicular - Lorário e o firho de Harordo - sejam ati-
vados durante as guerras civis francas. o afilhado dinamarquêsvirá pilhar
a terra dos irmáos inirnigos de Lotário ao seu chamado ou com r.,, 
".ordoimplícito...
Em 817, um édiro (chama.do ordinatio imperii) dnha criado uma
assimetria incomum enEre os uês filhos de Luís, o pio: Lotário, pepino e
Luís68. Rompendo com os cosrumes francos, apoiado pera ideia de império
cristão, o edito deixava a Lotário o rículo de imperador e roda a Francia,
confiando aos dois filhos mais novos as periferias (Aquirânia e Germânia)
e, em suma, tornando-os vassalos. Mas o nascimento de um quarEo irmáo,
Carlos, em 823, leva Luís, o pio, a separar algo para seu novo fiiho d" p*.r.
de Lotário, apoiado vivamente por uma facçáo e uma parre dos clérigos
"imperialistas". Assim, acendem-se pouco a pouco as guerras civis que,
apenas em parte, lembram as dos merovíngios.
Os dez primeiros anos de lutas colocam em cena um pai lurando
conrra parte de seus filhos. Náo se rrata imediatamenre de hàstes que se
enfrentam, mas de debates aquecidos nas assembieias. As palavras d. ord...,
sáo, desde Carlos Magno, a paz civil pela justiça, a renúncia à vingança e
a devoção ao bem comum (da milícia). cada ano da década d. g:o o.,
quase é ricmado pelas assembleias gerais da Francia. Luís, o pio, vive no
cenrro de seu império que é a Francia, indo de um palácio, de uma caça,
de uma assembleia a ourra, enquanro Lotário e seus dois irmãos mais velhos,
Luís, o Germânico, e Pepino daAquirânia, junram fiéis que cavalgam com
eles e os apoiam nas assembleias quando entram na Francia, Isso causa
uma aiternância entre cavalgadas com "rapinas" contra os camponeses.e,
e negociaçóes sobre rerras e obrigaçôes. Evitam-se as batalhas . o .rrfr".r-
tamento direto com choques próximos que podem fazer nobres vírimas7o.
68 Boretius, no 136.
6e Milagres de São Bento...,I,27.
70 Ánais de Saint-Bertin,p, fi ($4)
67 Ermoldo, o Negro, poema..., v. 2.4g6,
126
127
A Cavalaria
Lura-se rambém com ecuseçóes redigidas pelos clérigos: rrara-se de ganhar
a assembleia desqualificando um pouco o(os) vencido(s); oficialmente,
a paz cíyil é resrabelecida por formulas e cerirnônias (aí aparece a harrnis-
cara). Acusam-se mutuamente de perjúrio, porranro, de deslealdade, de
ganância, de conduta desonrosa, e se obriga o vencido à penitência cristã
e à reparação honorável. Esse "vencido" (em muitas ocasióes é o pai) guarda
uma boa chance de reverrer a situaçáo no final de alguns meses dissociando
a coalizáo de seus oponenres. Esse tipo de reviravolta destinada a manrer
os equilíbrios, essa injunção feira ao vencedor de uma assembleiapara que
se mostre, como nós diríamos, "Cavaieiresco'i sob o risco de atrair quase
todos contra si, sáo certamente elementos característicos de uma sociedade
"faidal". O tom muda rapidamente: lançam-se reprimendas ofensivas antes
de se reconciliarem, mas a inimizade permanece larente, pronra para res-
surgir. Por exemplo, em 833, o papa Gregório Vvem em pessoa ao Norte
dos Alpes pa ra, díz ele, "reconciliar" o pai com seus filhos, mas na verdade
ele fundamentalmente apoia estes úitimos. Ele reroma uma formula de
Agostinho em favor da jusriça e do perdáo: não se deye vingar-se a náo ser
pelo bem do EstadoTr. De forma que é preciso se argumencar em nome do
bem do Esado para que a vingança se torne aceirávei... Com isso, o desejo
de evitar toda batalha sangrenta é parenre. EmZ4 de junho, em Lügenfeld
(Alsácia), a hosre de Luís, o Pio, para diante da hosre de seus filhos. Dis-
cute-se durante yários dias e, ao final, o pai consrara que uma grande parte
de suas tropas rrocou de lado... Nada lhe resra a náo ser se entregar à mi-
sericórdia (obrigada) de Lotário, e afazer uma penitência crisrã em saint-
Médard de Soissons. Lá, ele se vê acusado, em in de ourubro, de ter desviado
a religiáo para 6.ns de vingança e de ter levado seu povo a marar-se enrre
si. Depois disso, é entáo privado de seu l'boldrié de milicia"72. Seis meses
depois, ele retoma sua realeza graças às dissensóes enrre seus filhos vence-
dores - mas ela fica irremediavelmenre enfraquecida e ele morre em g40
sem que sua sucessão esteja realmente regulamenrada.
O período que se segue é objeto de uma narrariva muito insrrutiva
de Nitardo, neto de Carlos Magno por iado de máe e fruto de um tipo de
Louis Halphen , Charleznagne..., p.243.
Boretius, ne 197.
O elitismo cmolíngio
concubinato oficial. Ele apoia e jusdfica Carlos, o Calvo, fazendo-nos
seguir com predileçáo suas assembleias e cavalgadas.
Entre irmáos carolíngios, dá-se sempre a mesma história.monó-
tona, de guerras, escârarnuças, assembleias e tratados. Os filhos de Luís, o
Pio, se distinguem dos filhos de Clotário pelo fato de terem aparência
menos furiosa e serem mais fraseadores (por seus próprios meios ou por
meio de clérigos postos a intervir nas querelas). Nas açóes, eles não são
necessariamenre menos duros - mas seu pecado é um pouco diferente.
Eles náo reúnem matadores para se exterminarem entre si, e náo cortam o
pescoço de seus sobrinhos crianças. Nesse sentido, entáo, a rejeiçáo aos
homicídios entre cristáos (todos sendo irmáos e irmás) é mais forte. Eles
se esforçaráo mais em deslegitimar casaÍnentos embaraçosos, com a ajuda
do direito cristáo do casamento (como, um pouco mais tarde, o de Lotário
II e §Taldrade). Mas existem armadilhas assassinas e, sobretudo, apelos aos
piratas normandos aos quais apátriapaga"o preço, e para os quais a época
merovíngia náo oferece nenhum verdadeiro precedente!
Nitardo crê que os filhos de Luís, o Pio, se enfrentam lamentando
rer de fazê-lo. Entre si, jogam uns para os outros a responsabilidade
da discórdia. Em maio de 841, Luís, o Germânico, e Carlos, o Calvo, reú-
nem rropas e querem manrê-las, talvez mesmo aumenrá-las. convocam
uma assembleia de bispos e de grandes, enviam uma delegação para implo-
rar que Lotário se lembre do Deus Todo-Poderoso, da paz entre irmáos
cristáos. Os delegados devem "oferecer tudo o que está sob poder da hoste,
excetuando os cavalos e as armas"73. Pode-se ceder rudo, menos o essencial.
No encanto,.Lotário faz as coisas se arrastarem. Ele espera o reforço de
Pepino II da Aquitânia. Seus dois irmáos sabem disso, mas aparentemente
calculam gue é necessário assumir o risco, pois tomar a iniciativa de um
verdadeiro combate seria malvisto. De qualquer forma, o enfrentamento
aconrece em 25 de junho de 841, em Fontenoy-en-Puisaye. É de f"to rr*"
bataiha re duzida: uma fraçáo da hoste faz a. sua parte com ousadia, outra
entrega as armâs e, um pouco mais distante, Bernardo da Septimânia e os
seus permanecem neutros. Em piena vitória, Luís e Carlos dêcide"m in-
terromper a perseguiçáo, ter pena dos vencidos: é suficientd para eies
128
73 Nitardo, IÍ, p. 69.
129
A Cavalaria
permanecer mestres do campo de baralhaTa onde se enconrra um grande
número de morcos e onde já existe pilhagem. Eles permanecem no local
no domingo e enterram piedosamente tanto os amigos quanto os inimi-
gos. Eles dáo seu perdáo aos fugitivos declarando-lhes a paz e reúnem
um conselho que proclama que rudo foi um julgamenro de Deus. tata-
se de absolver os padres que luraram e também os outros combatentes,
exceto aqueles que confessaram, em confissáo secreta, rer sido moyidos
por "cólera, ódio e glória va'i Para o remédio da alma dos morros, um
jejum de rrês dias é decretado.
É necessário dizer que esses homens sáo mais cristãos que os me-
rovíngios do século VI? De faco, em matéria de penirência, vivem um novo
cristianismo em reiaçáo àquele da Antiguidade Târdia. Desde o ano 600
se estabelece claramente um sisrema de penitências e de expiaçóes taxadas
e reiteráveis. A lgreja, para moralizar a sociedade cristã, define uma clas-
sificaçáo da gravidade das faltas, com resgares e absolviçóes ad hoc.Assim,
ela pode intervir de maneira mais sudl e circunsranciada para civilizar os
modos... a menos que consideremos que ela auxilie na conservação de sua
dureza, uma vez que, com um preço certo, tudo é absolvido! Na noite da
batalha de Fontenoy, podemos nos emocionar com sentimentos muito
cristáos, e podemos também nosdar conra de que eles teriam sido ainda
melhores se, manifesros pela manhá, tivessem impedido a baralha e os
mortos. De repente, a suspeita surge de que o cristianismo medieval prega
o Evangelho â rempo, mais do que a conrrarempo, de forma que ele ten-
deria a moldar sua morai sobre os modos dos guerreiros nobres (sobre as
demandas racionais necessárias a seus interesses de classe) mais do que com
a intençáo de mudar esses modos. E essa suspeita nunca abandona por
muiro tempo um historiador da cavalaria; ela o empurra inclusive a bus-
car ourros farores históricos pare as evoluçóes que descreve, além da
"pressão cristá" mais ou menos forre...
Entre os irmáos carolíngios, a batalha de Fontenày nada resoive.
Talvez, em caso de vitória, tivesse feito Lotário ganhar a guerra. Mas,
vencido, ele tenta naruralmente dividir a frente dos vencedores e faz pro-
postas para Luís, o Germânico. Este último, no entanro, exibe sua aliança
O elitismo carolingio
com Carlos no famoso reenconrro de Esuasburgo em 14 de fevereiro de
842.Enqaanro seu irmáo mais veiho "incendeia, pilha e massacra", como
escreve Nitardo com suaparcialidade contra ele75, os dois só têm nos lábios
o amor a Deus e a salvaçáo comum.
Eis, portanto, Luís, o Germânico, e Carios, o Calvo, bem de
acordo: neles reluzem abeleza, a valentia e a sabedoria. Eles náo podem
organizar uma simples pardda de caça para suas hostes, como fazem os
grandes em suas reservas. É necessário ocupar e entreter as tropas
com grandes manobras. Temos assim um dpo de "esperáculo" de batalha,
sem ferimento nem insulto, sem captura nem resgate. Os infantes de
carlos e de Luís se ârâcam sucessivamenre anres de fugir como num balé
ordenado. A cada vez se projeram em araque aos fugitivos, um dos reis e
seus cavaleirosT6. Embora isso náo deixe de parecer um pouco com os fu-
turos torneios do século XII, as diferenças os afastam: náo se trara de um
espetáculo, mas sim de diverdmento à margem de uma verdadeira guerra,
e náo vemos nem a honra nem o dinheiro recompensar os campeóes a
cavalo - náo é a instituiçáo dos torneios. seu aparecimenro precisa ser
colocado em um contexro histórico específico. seria um cosrume carolín-
gio expandido ? Esse jogo poderia rer sido imaginado segundo circunstân-
cias precisas, e não ter absolutamente nenhum futuro - por falta de cir-
cunstâncias análogas. Mas sabemos ráo pouco sobre as práticas propria-
mente guerreiras da época carolíngia que é preciso deixar a questáo pen-
dente, como no caso do "adubamento" do século Dí7..
No ano seguinre (A+Z), o tratado de Verdun reconcilia de forma
durável os três irmáos e estabelece urna partilha iguaiitária do mundo ca-
rolíngio entre eles. Cada um recebe uma parre da Francia e de regióes
anexas. No meio século que se segue (45 anos), há poucas guerras ver-
dadeiras entre irmáos. O araque de Luís, o Germânico, passando pela
Lorena, reino de Carlos em 858, é apenas uma cavalgada poiítica, à qual
o apoio de "Ganelon" de Sens (§Tenilon) náo garanre o sucesso. É 
"ntre
Nitardo, III, 5, p. 101. Nitardo aumenra rudo o que pleiteia em favor de Carlos ou
contra Lotário, que cerramente também fazia gestos de apaziguamento.
Idem, III, 6. VerJanet Nelson, "Ninrh-century Knighthood...'i
Ver, neste volume, p. 119.
76
77
7a Idem, III, 1-2, pp. 81-3
130
13I
A Cavalaria
Carlos e seu filho Luís que uma verdadeira batalha se desenvolve em
Andernach em87678.
Mas para Carlos, o Calvo, em 843, é hora de tomar posse de sua
parre e enfrentar as dissidências nas regióes anexas de sua Francia ociden-
ml: a Âquitânia de Pepino II - seu sobrinho "esquecido" em Verdun -,
apoiada à Gasconha, e a Bretanha. Ao mesmo tempo, seu reino é aquele
que se encontra mais exposto aos ataques normandos.
Em face dos normandos
Os normandos par€cem grassar com a permissão de Deus. Eles
sobem os rios com seus dracares, e logo suas esquadras se deslocam apé e a
cavalo,em pequenos grupos que, pouco a pouco, se reúnem e se dispersam
pilhando o país e se fazendo preceder por uma "visáo sangui nária"7e.
Particularmente célebre é a lamentação do monge Ermentário,
enumerando uma série de Cidades tomadas e pilhadasr "Quase nenhum
lugar, nem o mosteiro, foi poupado. Todas as pessoas fogem e raros sáo
aqueles que ousam dizer: 'Fiquem, fiquem, 6quem, lutem pelo seu país,
pelos seus filhos, pela sua família1 Em sua letargia, em meio a suas querelas
intestinas, eles pagam o preço de tributos por aquilo que deveriam defen-
der com armas nas máos e deixam ofuscado o reino dos cristãos"8o.
A história moderna da França usa Ermentário como pano de
fundo e dramatizao impacto dos normandos sobre o mundo carolíngio,
desacreditando suas elites. No enranro, esses adversários náo sáo nem co-
talmente desconhecidos, nem impossíveis de influenciar até certo ponro.
A pesquisa recente colocou o dedo em feridas que anres passayam desper-
cebidas. Nós vimos Luís, o Pio, Êrmar em 826 com o'lrei" Haroldo, nas
Luís, o Moço, no entanto, havia conferenciado a Carlos, o Calvo, em nome de Jesus
Cristo, sobre seu parenresco, o direito e seus juramenros. A hoste de Carlos foi posta
em fuga (um conde foi morto) e náo há riro cristáo como em Fonrenoy: somenre um
Carlos que, tendo fugido para salvar sua vida, abre os olhos para suâs faltas: Regino
de Prüm, pp. 1.t 1-2.
Abbon, 1,v. 197. Mais marginalmenre, sarracenos e húngaros.
Milagres cle S,ío Í'ilisberto..., p. 6A.
/-9
80
r32 133
O elitismo carolíngio
festas de Ingelheim, uma relaçáo forte e talvez perigosa. Na mesma linha,
seus filhos rêm, nos anos 830 e 840, amigos e "homens" entre os chefes
viquingues que percorrem o Império. Em 841, Lotário tem como vassalo
um certo Haroldosl, e o envia contra as terras de seus irmáos inimigos,
Luís, o Germânico, e Carlos, o Calvo. Pepino II da Àquitânia, seu sobrinho
e aliado, foi sacrificado na partilha de Verdun em 843. Seus rios pratica-
mente o deserdaram, e podemos compreender seu ressentimento. Eie
chama bandos normandos effr seu auxílio contra Carlos, o Calvo. Esre
úldmo certamente não 6cava atrás. Foi Janer Nelson que se deu conta de
que, aquele que pilhou a regiáo parisiense em 845, chamado de Ragnar,
era um "homem" de Carlos que fazia pressáo para ser retribuído82. Diante
disso, o rei Carlos se diz pronto, como um anrigo chefe germânico, a mor-
rer para defender apátria. É isso qu. ele diz em sua comunicaçáo poiítica
enquanto na prática tem a sabedoria de nada fazer alémde reunir rributo
para comprar a retirada do bando de Ragnar.
Em outras palavras, mesmo se recusamos a interpretação da vin-
gança de Deus, as guerras civis dos filhos de Luís, o Pio - e através deles
de facçóes de grandes -, sáo certamente uma das causas decisivas das
incursóes normandas. Ao mesmo tempo elas sustentam laços com essas
incursóes que nos obrigam arelativizar o choqae de ciuilizaçoes (ou de so-
ciedades). Podemos ver que, rapidamente, se formam alianças cruzadas
entre facçóes ou bandos francos e normandoss3. A partir disso, remos todo
dpo de manobras, de tracados, de convençóes mais ou menos respeitadas
de um lado e outro, no sentido clássico dos acordos entre guerreiros.
Muito râpidamente, os normandos se convertem para entrar para
o serviço do rei, como Wielando, que Carlos, o Calvo, faz passar o inverno
em862 no campo de Saint-Maur-des-Fossés esperando para lançá-lo con-
31 O jovem homem, seu a6lhado, que em 826 estavâ em estágio de iniciaçáo às armas e
à civilizaçáo.
82 
Janet Nelson , Charles le Chauue, pp. 774-5.
83 Os "soldados de fortuna" sáo buscados nas fileiras normandas. Como escreve Janet
Nelson, "nào existe, na realidade, um único'fator normando' intervindô como força
exterior nos negócios do reino"; de fato, "diversos bandos guerreiros tinham infiltra-
do o tecido da política franca, colaborando e rivalizando pouco â pouco, ou se
vendendo em algumas ocasióes como mercenários aos chefes de guerra da Francia"
(idem, p. 216).
A Cavalaria
rra Meaux, onde o bispo e seu próprio filho (o futuro Luís, o Gago) o
desa6am. Depoisdisso, 'tuas atividade predatórias nesse local náo devem
tê-lo desagradado demais"Ea, jâque ele mesmo, por maior seguança, pro-
rege com fossos o mosteiro de Saint-Denis do qual ele é o abade laico e
onde sua justíça ajuda a manter ou a reduzir à servidáo os camponeses.
Isso mostra que, na defesa do país contra os normandos, é im-
pensável armar os camponeses, todos tidos como mais ou menos'tervos",
tampouco deixar com que defendam os seus. Em 859, os camponeses
do Loire médio hayiam formado guildas de autodefesa. O rei Carlos, o
Calvo, emSíZ,defende a bacia do Sena apartir do campo de Piues (perto
da atual Ponte do Arco, a monrante de Rouen), onde estabelece como
barragem uma ponte forrificada. Ele reúne também os grandes e os iivres
em assembleia segundo a maneira carolíngia para lembrá-los de suas prer-
rogativas, especialmente seu monopólio de fortificaçóes públicas: as
"fortalezas" estabelecidas esponraneamente, feiras de terra ou de galhos,
deyem ser abatidas. Náo seria possível que seus súditos lhe fizessem frente
ao mesmo tempo que os pagáos,
Se poucas pessoas resisrem é talvez porque os normandos possuem
um estilo furioso do qual náo se rinha rnais nenhuma ideia. Mas é também
porque a classe dominante dissuade a resistência. No entanto, Ermentário
erra ao dizer que ninguém resiste. Há condes que morrem bravamenre,
como Vivien de Nantes (8 5 t ). O rei e os condes fazem certa defesa do país,
com conotaçáo social: eles levantam forrificaçoes e ao mesmo rempo
proíbem as fortificaçóes "privadas", preferem lidar com os normandos
comprando suapardda graças a tributos estabelecidos sobre o país a con-
duzir uma guerra mortal.
A elire do mundo carolíngio persiste, por.anro, em seu hábito
caracterísrico: no final das contas, eia prefere se abrir para o nobre, para o
chefe adversário, em yez de deixar seu próprio servo se emancipar e náo
mais se distinguir dele. E porque ela tem dificuldade em marirer a pressáo
apenas pelo argumento do esraruto servil - uma vez que precisa iurar
contra servos coligados que reclamam sua liberdade, porranro um serviço
menos pesado -, o esrabelecimento de tributos ou de 'talvamentos", que
O elitismo carolíngio
sáo taxas de proteçáo, pode lhe oferecer perspectivas interessantes. E o
esquema das uês ordens, imaginado por volta de 875,legitima o desarma-
mento dos camponeses reunidos em guildas de autodefesa. Érico, de Au-
xerre, no mais tardar em 87 5, termina sua compilaç ao dos Milagres de S,ío
Gerrnano com um trecho sobre bravurapara o uso do clero de alta cultura,
sobre o qual Dominique logna-Prat nos chamou a atençáo:
Existem aqueles que fazem a guerra, ourros que cultivam a terra e vocês, vocês
sáo a terceira ordem. Deus os instalou em Seu domínio próprio. Vocês estáo
assim desobrigados das tarefas físicas e podem se dedicar mais a Seu serviço;
outras pessoas estáo sujeitas, por sua conta, às duras exigências do combate
lrnilltia] ou do trabalho, mas em retorno vocês os servem garantindo suas
preces e o ofício sagradoss.
Inúril se interrogar longamente sobre as eventuais "origens indo-
europeias" desse esquema: ele procede, naturalmente, da ideologia caro-
língia, combinando a dualidade da elite com a dualidade dos nobres e dos
servos. É um discurso parajusdficar o privilégio dos religiosos e ordenar-
lhes um esforço de disciplina e de liurgia. Ele se situa na linha direta do
discurso sobre as duas milícias que vimos aflorar sob Luís, o Pio. Os cléri-
gos e monges, certamente, têm "armas melhores", ainda que elas náo possam
ser vistas; eles podem se isenrar de atacar os normandos, pois lutam contra
os demônios. No final do século IX, os Milagres de S,ío Bertin evocam uma
partilha do butim obtido junto aos normandos em 891 em Saint-Omer,
na qual uma parte é dada aos náo combarentes, homens de prece e pobres
desarmados que rezarâm a Deus pelo sucesso dos cristáos armados. Mas
esse texto distingue claramente também combatentes de duas categorias,
"mais nobres" e "mais humildes"86.
Mas entre esses "mais humildes", existem promoçóes ? As carreiras
do "medíocre" Ingon e do floresml Terúlio, relatadas respec.ivamente por
8t
86
Citado por Dominique Iogna-Prat, "Le baptêdre...'l p. 106.
Milagra de S,ío Bertin, pp. 512-3. Ver Georgei Duby, Les trois ordres..., pp. 123-4.
Ediçáo em português, Ás três ordens ou o imagiruírio da feudalisrno. Lisboa, Estampa,
t982.
8{ Idem, p. 229.
t34 13s
A Cavalaria
Richer de ReimssT e pela História dos Condes de Ánjou\8, poderiam nos
fazer pensar que sim, mas elas sáo fabulaçóes do ano 1000 e do século XtrI.
E, além do mais, no caso de Ingon, fucher náo fala cerramenre da parte
baixa da sociedade, mas da nobreza média; e, quanro a Grtúlio, ele yem
de uma nobreza antiga, mais decadente, cuja fortuna se refaz com ele...
Sáo épocas mais modernas que forjaram o miro dos'toldados de forruna'i
que partiram do nada para defender os francos conrra os normandos (ou
parafazer a cruzada).
Roberco, o Forre, pelo conrrário, é um conde combatence (como
outros de sua geraçáo e do século X, com sobrenomes que evocam a valen-
tia, como Braço de Ferro e Guilherme Braço Forre, mas que talvez tenham
recebido esses nomes posteriormente na formação das lendas). Ele é um
herdeiro da aristocracia do Império, investido e depois repudiado e em
seguida noyamenre reaproximado pelo rei Carlos, o Calvo. Tem a infeli-
cidade de ser morto em 866 em cornbare em Brissarthe, o que lhe rende a
boa reputaçáo de proretor do país, de que sua família se beneficia. Regino
de Prüm, por volta de 900, o menciona encabe çando a lista de morros iius-
tres, "homens de família nobreigenerose stirpzs] que defendiam as fronteiras
da pátria"se. Depois deie, seu filho Eudes consegue, em idade adulta, re-
cuperar seus condados e rornar-se ilustre no inverno de 885-886, na defesa
de Paris, ponro esrrarégico, conrra uma florilha e uma imporranre hoste
de normandos. Protegeu Paris e se tornou duque, pensa Regino. Enquanto
o último imperador carolíngio, Carlos, o Gordo, paga tributos.
É o momento da ascensáo dos condes, cujo aumento do poder o
esforço legislativo dos carolíngios favorecia. os ataques normandos per-
mitiam que se indtulassem prorerores do país, náo apenas pelo exercício
da justiça, como se enrendia sob Luís, o Pio, mas também pelas armas. As
incursóes normandas, como mais tarde as cruzadas, sáo uma boa ocasião
para reforçar o per6l heroico de uma nobreza que, ao que parece, precisa
disso com frequência.
Olhando mais de perto, no enranro; o heroísmo de Eudes se ringe
rambém de certo pragmarismo. Vemos isso no Poemade Abbon, monge de
87 Richer de Reims, 9-l l.
88 Histdria dos Condu de Ánjou, pp. 26-7 .
8e Regino de Prüm, p. 105 (alusáo: 873).
O,elitismo carolÍngio
Saint-Germain-des-Pràs, sobre a defesa de Paris pelo abade Ebles e pelo
conde Eudes - e também pelo auxílio dos santos morros, Maria ou Ger-
mano. Esse abade marcial náo se serve da reoria das duas milícias.ou das
três ordens, mas procura façanhas, como um cavaleiro. O monge Abbon,
por sua vez, tem o mérito de ser menos convencional que um cortesáo
como Ermoldo, o Negro: náo esconde deslizes de seu herói Eudes, conde
e depois rei em 888e0, e revela a coragem, as conquistas guerreiras que não
sáo de condes - mas de um nível social impre ciso, que não creio ser muiro
inferior ao dos vassalos de 12 mansos que porram brunia e usam a lança.
A repercussáo que a defesa de Paris rem é atesrada por inúmeras
fontes. Como dizem de forma um pouco desajeitada os Ánais de Sairut-
Vaast,diante dos normandos em 885, "nada resiste; no entanto, os francos
se preparam, mas náo para batalha: eles constroem fordficaçóes"er. llma
delas, Pontoise, é "rendida pela sede": ela se enrrega, o que quer dizer que
refêns sáo trocados e os defensores se afastam. Os normandos poupam,
portanto, esses guerreiros; eles os deixam provavelmente ser recuperados
pelo pagamento de um resgare. Mas os reis e condes podem permitir-se
nunca mais combater e apenas Êrmar rratados ? Paris se orgulha de resisrirmelhor. Â cena inicial é uma negociaçáo. O "rei" dinamarquês Sigefredo
pede passagem ao bispo Gozlino e ao conde Eudes; ele thes garanre que
respeirará a Cidade assim como os senhorios ("honras") de ambos. Mas o
imperador Carlos ordena que náo aceitem a proposra. Sigefredo com-
preende bem que, se aceitassem, receberiam morte e desonra.
Sigefredo e os normandos a princípio procuram apenas romper â
ponte fortificada entre a Cidade e a margem direita. No fim de novembro,
atacam por dois dias seguidos a rorre que guarda a ponre, no seror do
"Châtelet" ulterior. Lançam flechas e areiam fogo, em váo. Nos dois meses
que se seguem, pacrulham ao Norre do rio, na Francia, pilhando-a para
arranjar provisoes para seu acampamenro situado em Sainr-Germain-
lAuxerrois (chamado na época "O R.edondo"). Mas náo fazem o bloqueio.
Eles submerem a cidade a um araque mais direto e mais cruei de 31 de
I
l
I
e0 Náo espera dele a carreira nem o retorno à graça, como Ermoldo, o Negro, esperava
de LuÍs, o Pio, como preço de seu poema.
er Ánais d.e Saint-l/aast, p.322.
t36 137
A Cavalaria
janeiro a 2 de fevereiro de 886, com auxílio de máquinas de cerco, e matam
catiyos para impressionar os habicantes (tinham-nos manddo vivos até
entáo). Noyo fracasso, seguido de um novo ataque a Francia, no curso do
qual os dinamarqueses surpreendem e, entre outros, matam um conde,
Roberto Portecarquois. Mas, principalmente, cruzam o Sena e tomam
posse, contra todas as expectativas, de Saint-Germain-des-Pràs, que lhes
serve a partir de então de acampamento. Imaginava-se, no entanto, que
não ousariam âtâcer esse senhorio santo! No mesmo momenro, o rio der-
ruba a ponre enrre a cidade e a margem esquerda, isolando a torre que
guardava a sua entrada, próxima à atual fonte Saint-Michel. Os 12 defen-
sores se rendem, crendo estar salvando avida em troca de um resgate, mas
sáo mortos. O canto primeiro do poema de Abbon termina com apartida
de muitos normandos em direçáo à Nêustria, pelo Sul, que eles maltraram
sem, no entanto, entrar nem em Chartres nem na regiáo de Mans.
O canto segundo relata o que se seguiu de maneira um pouco
desconrínua. Em março, o conde Henrique - o mesmo que matou Go-
tefredo * eparece sobre a margem direita com urna hosre, mas náo há
bataiha. Ele apenas rouba, durante a noite, os cavalos dos normandose2,
no mesmo momento em que o conde Eudes negociava com Sigefredo.
Imediatamente, Eudes é aracado pelos dinamarqueses. Eudes os enfrenra
bravamente sendo logo socorrido por seus homens: " [...] sua nobre conduta
causa admiraçáo a todos"e3. Náo neguemos sua coragem, mas observemos
que ele estava simplesmente comprando apartida de Sigefredo por.60libras
de prata: seu comporcamenro náo difere, porranro, nem um pouco do
comportamento dos carolíngios, tanto dos heroicos como o falecido Luís
II, vencedor em Saucourt, quenro de políricos como Carlos, o Goqdo, que
aqui, para terminar o conflito, compra a rerirada dos normandos da regiáo
parisiense por 700 iibras e pela promessa de "enrregando os refens não
tocar em outras mar€íens a não ser as do Sena".
Ora, continua Abbon em uma passagem pouco notada pelo século
XIX, "os nossos rejeiuram fortemenre essagaranria lsecururnfpor pensar
que poderia ser violada pelos dinamarqueses. Logo tudo se rorna comum
" Q.," haviam volado da Nêusuia.
e3 Abbon de Saint-Germain, II, v. 30.
O elitismo carolíngio
entre eles pelo efeito do trarado: casas, páo, bebida, cercos, rotas, leiros,
pardlhavam tudo. Cada um dos dois povos se maravilhava de se ver mis-
turado ao outro"e4. Se o ressentimenro é superado, é porque o cerco náo
foi muito atroz. Em favor dessa mistura, não ocorreria a alguns dos bons
yassalos de Paris, táo bravos, a ideia de irem com seus novos amigos per-
correr as rotas da pilhagem dos campos ? É verdade que em seguida corre
o boato, náo sem fundamento, de que estes últimos, traindo o acordo,
atacaram o vale do Marne. Griros na cidade; procuram-se refens dinamar-
queses e os carregam junto com eles, e "nessa ocasiáo brilha particularmente
o abade Ebles'i preferindo combarer com a vantagem do número e da
posição. Entretanto, o bispo Ansero (sucessor de Gozlino) "deixa pardr,
em yeze5 de massacrar, como deveria ter feito, aqueles que ele proregia".
Belo gesto, mas talvez também belo cálculo, pois seu próprio irmáo, bispo
de Meaux, encontra-se, pouco depois, cativo dos normandos.
Quanto a Carios, o Gordo, sua deposição em 888 só consagra
uma impocência inicial. O reino perde força muito rápido depois de877;
em 884, o acidente de Carlomano marca o fracasso de roda auroridade
central, de todo o controle de um palácio sobre os condes cujo poder se
desenvolve no plano regional. Como nos ourros reinos oriundos do lm-
pério, a Francia ocidental dra "de suas próprias enrranhas" um rei, Eudes,
em fevereiro de 888.
Os primórdios da guerra feudal
Êudes é apenas um dos condes que conseguiram acumular, aparrir
de uma ou duas geraçóes, poder e domínio sobre uma regiáo inreira, e que
desde 877 ofuscavam o poder real. Sua ascensáo não restabelece o poder
real ao nível dos tempos de Carlos, o Calvo. Seu advenro náo resraura o
poder cenual. Pelo contrário, eie reinicia as guerras civis porque ume parre
dos grandes condes (vamos chamá-ios.de príncipes feudais) conresra seu
poder. Sobre ele, de fato, pesa uma verdadçira hipoteca, por meio de Carlos,
ea ldem, IÍ,4t6-9 (p.96).
et Idem, 11,v.440 (p.36).
138 139
1!l-'
ll
I A Cavalaria
o Simples, filho póstumo de Luís II e, portanto, irmão de Luís III e de Car-
lomano, que terá 15 anos em 893, idade de receber as armas yiris.
Assim se explica o contorno estranho que toma o reino de Eudes.
Ele se ilustraainda em junho de 888 com umaverdadeira baralha, vitoriosa,
contraumahoste normanda que faihou em surpreendê-io em Montfaucon
em Argonne. Abbon pode assim novarnente mencionar sua coragem, sua
força ao soar a corneta - mas também para rapidamente salvar a vida,
sem o temerário e belo orgulho do Rolando da epopeiae6. Ele derrota dez
mil cavaleiros e noye mil infantes; os pagáos são mortos ou fogem: "E o
príncipe conquista o troÍéu davitôrii'e7. Em outras épocas, isso teria au-
mentado espetacularmente sua autoridade 'germânica" de vencedor, mas
"essa vitória, infelizmenre, náo serviu para lhe garandr descanso, pois ele
aprende rapidamente que os aquitanos o abandonaram e desprezaram sua
autoridade. Em seu furor, ele se lança sobre eles, devasrando e aracando
suas teüas, mas somente as 'regióes planas'rs"». Se Montfaucon não lhe
raz adesóes massivas é porque a vitória só traz beneffcios à bacia parisiense
e porque a "mutação feudal" se dá nos anos 880. Ele reage praricando a
guerra civil, podemos até mesmo dizer guerrafeudal, socialmente com-
promedda, adaptada a uma "defesa do país" que desapareceu. Os casrelos
(ou as Cidades que sáo grandes casrelos) proregem a elire enquanto a maior
parte dos "crabalhadores", da terceira ordem funcional, é vírima das hosri-
lidades enffe seus protetores. Para aringir seus senhores, eles sáo atacados
e quase que consrituem os únicos prejudicados. Entre os membros da elite,
o homicídio não é algo excepcional: a morte de Raul de Cambrai em uma
faida que ensanguenta os anos 890, por falta de vingança, deixará cerros
traços em cançáo de gestar0o. Mas a condenaçáo carolíngia ao homicídio
náo é esquecida, e a experiência das incursóes pagás fez progredir a ideia
de resgate e de pressáo por e sobre os carivos, uma yez que as inimizades
frequentemente ievam a capruras e detençóes. Nessas guerras enrre prin-
e6 Ver a Canç,ío de Rolando, nas pp.468-70.
e7 Âbbon de Saint-Germain,II, v. 526.
e8 O autor se refere eo ?lat pals, regiáo geográfica que náo se resrringe à Bélgica atual,
designada modernemenre de Plat Pays. (N. da R.)
ee Abbon de Saint-Germain, II, w. 529-33.
lm Regino de Prüm, p.567 (896). N{as a cançáo de gesta pode também ser aproximada
da morte de Raul, 6lho de Raul de Gouy, em 943 (Flodoardo , Ánnales..., p. g7).
O elitismo carolíngio
cipes ou grandessenhores, náo se trata tanto de ensanguentar o país quanto
de fazer razias e mantê-lo sob pressáo.
Nos 30 anos que se seguem à ascensáo de Eudes, essas açóes de
gue(ra feudal, relativamente breves e ordenadas, se alternam com a reto-
mada das incursóes dos normandos apoiados em campos fortificados e
castelos provisórios edificados em vista de cercos. As duas formas de guerra
náo apresentam o mesmo grau de violência, segundo a apreciação de Ab-
bon de Saint-Germain-de-Pràs e depois dos Ánais de Saint'l/aast.
Em 893, Carlos, o Simples, tem 15 anos e uma c oalizáo de poderes
territoriais se agrupa em torno dele . Ele não tem condados nem domínios
importantes, sendo menos destacado do que qualquer um dos príncipes
regionais ("grandes feudais", como se dizia outrora) que fazem contrapeso
ao rei Eudes. Mâs, como neto de Carios, o Calvo, ele dispóe de legirimidade
e constitui um anteparo útil e pouco incômodo para aqueles que desejavam
parar a ascensáo de Eudes e de seu irmáo Roberto (aos quais os condados
paternos foram entregues em 888). O arcebispo Fulque de Reims e vários
grandes da Francia e da Lorena apoiam, entáo, o adolescente. Eudes, no
entanto, "entra nos castelos e triunfa sobre os rebeldes. Apenas com sua
presença póe em fuga Carlos e seus partidários"l01. A campanha acaba de
forma cristã: "Ele concede graça a esses homens antes orguihosos que agora
se humilham»r02. De repente, parece que voltamos à cultura polídca caro-
língia, desta feita acrescida de castelos. Essa guerra enrre cristáos é menos
dura, menos sangrenta do que aquela feita aos normandos e por eles. Em
todo caso, ela força Eudes a se desinteressar em 896 pelos ataques norman-
dos que recomeçavam. Abbon de Saint-Germain nota isso brevemente:
eis de voita os "cruéis pagáos. Eles devastam o país, massacram seus habi-
tantes; em seu percurso rondam as vilas e as residências do rei. Eles sur-
preendem os camponeses, prendem-nos, enviam-nos para o além-mar.
Eudes, o rei, ouve falar de tudo isso. Ele náo se importa: eis a sua respostd'lo3.
Ele decepciona cruelmente Abbon, que o insuita e ameaça com goipes de
versos latinos; "Certamente o demônio te emprestou sua boca. Têu espírito
I
i'
r0I Abbon de Saint-Germ ain, II, r'v. 57 3 -4.
ro2 Idem, II,v.576.
ro3 Idem, lI,vv. 584-7.
140 141
il' A Cavalaria
não se preocupa com o rebanho que Crisro lhe confioul0a, mas é possíyel
que Ele próprio náo se importe com sua alma a pardr de agora"r05. E o
poema rermina porque acabam os "feitos do nobre Eudes"106.
Até892,osÁnais de Saint-Yaast (deArras) mencionam ano após
ano as incursóes dos normandos. Por exemplo, em 885: "Nesse momenro
eles volcam a atacar. Retomam os incêndios e os assassinatos, matam e
capturam o povo cristáo, destroem igrejas, nada resiste a eles. Novamente
os francos se dispóem a resisrir a eles, mas náo peio combare: consrroem
fortificaçóes"r07. Há, portanto, nobres que sáo mortos e outros que matam
normandos.
Em 892, os normandos váo para a Inglaterra, pois a Francia náo
thes oferece mais nada a pilhar, faminra por causa da destruiçáo das relí-
quias de sainr-vaastl.8. A atençáo se voha enráo para o conde Balduíno II
de Flandres e para seu desacordo com o rei, esse Eudes que vem de uma
familia igual, náo superior à sua, e aré mesmo inferior visto que Balduíno
descende de Carlos Magno por sua antepassada (sua máe?) Judite. Dessa
vez eles se contentam em trocar mensagens. Em 893, o conde forma com
outros uma facçáo que demônsrra seu ódio e sua inimizade por Eudes
tomando o partido do jovem Carlos, o Simples, sem, no enranro, querer
realmenre a restauração real. os dois campos mobilizam suas rropas, mas
se esforçam (sl4) por buscar o arbítrio exrerior de Ârnaldo da caríntia.
Depois ficam face a face, discutem e nada se decide, nem assembleia nem
guerra, e cada um volta para seu canto.
Um pouco mais rarde, Carlos, o Simples, é perseguido por Eudes,
"que queria decidir o fim da disputa arravés de um combare. Mas Deus,
em Suapiedade, náo permite que isso se resolvapelo sangue"10e. Deus, que
protegia as hosres e as cidades conrra os normandos, náo quer guerra civil.
Entendamos isso como a sociedade impondo um freio aos contendores.
r.a observemos aqui o mesmo vocabulário aplicado tanro à realeza minisrerial quanto
aos prelados da Igre;a.
r05 Âbbon de Saint-Germain, II, w. 585,91.
r06 Idem,II, r,v. 6t5-6.
107 Ánais tle Saint-Vaast, p.3ZZ.
j08 
ldenr, pp. i43-+.
loe Idem, p. 348.
O elitismo carolingio
Em 895, afacçao de Carlos devasta "duramente" o país burgúndio
que é mantido por Eudes... Mas trata-se apenas de um combate de honra:
essa facçáo, que não tem os ventos a seu favor, se desintegra. Os parddários
de Carlos se voltam para o rei da Lorena Zwendboldo; outros negociam
sua submissáo a Eudes (SgZ). Este sabe perdoar, e todos têm conhecimen-
to disso. Em 895, ele se apresentou diante do castelo de Saint-Vaast de
Arras, ou seja, diante da abadia fortificada, no principado do marquês de
Flandres, Balduíno, protegido por vassalos. Mas esse castelo, "ele náo
queria tomar por um combate, pois dnha piedade pela cristandade. Quan-
to aos homens de Balduíno, vendo que não podiam resistir, pedem a paz,
dáo refens ao rei e váo até seus senhores buscar inscruçóes"r10. Aguardando
seu retorno, Eudes faz com que abram a igreja para que ele reze; na volta
dos vassalos de Balduíno, ele lhes entrega o casrelo e é marcada a data para
uma assembleia.
A guerra feudal aconrece por meio do confronto judiciário. Ela é
entrecortada por inúmeras 'ãssembleias" (Sl6), por sucessivas depredaçóes
seguidas por cercos a castelos (raramente a Cidades). Ao longo das páginas
dessesÁnais de Saint-Vaast,que terminam em 900, e, em seguida , dos Áruais
de Flo doardo, que váo de 9 19 a 966, podemos seguir no coraçáo da Francia
o conflito de argumentacóes, com ataques de piihagem, cercos curtos,
perdóes e reconciliaçóes que acontecem náo sem a trocâ de reféns nem
segundas intençóes. Rediglda na Âquitânia nos anos 930, a Vida de S,io
Geraldo de Áurillac fornece indícios sobre uma guerra feudal do mesmo
tipo. Náo se trata de uma explosáo bárbara, mas de uma prática oriunda
diretamente do elitismo carolíngio. O que a diferencia, de fato, da guerra
civil da época de Gregório de Tours é o acúmulo de meios de salvaguarda
para os combatentes nobres: mais cavalos para fugir, uma reprovaçáo crisrá
mais viva ao homicídio, couraças mais duras de transpassar e castelos em
que se refugiar.
O elidsmo carolíngio reforçou muito o estatuto dos guerreiros no-
bres e influenciou seu comportamento. A cavalaria propriamente dita náo
seria concebível nem sem o Império carolíngio nem sem o ,e, brr.rstó Ê..r.
I
142
r10 idem, p. 351
143Francia
. RecentementeJean-Pierre Devroey fez um balanço dos conheci-
mentos a respeito do assunto de que estamos tratandoa. Em Francia, ou
melhor, ao Norte do Loire, uma estiagem demográfica ocorreu por volta
de meados do século YL A natureza, nesses locais, voltou com toda a força,
as florestas se espalharam, assim como os animais de caça, a madeira para
aquecimento ou conscruçáo, o terreno para pastagem de porcos e as áreas
disponiveis para desmatamento. Âpesar dos vícios denunciados por Gre-
gório de Tours, os reis e as elites náo se limitam entáo a devastar e um noyo
impulso se desenha a partir do século VII, dando lugar a üma nova econo-
mia rural. Anteriormente, a Gáiia do Norte cultivava o trigo e a cevada,
com a força de um arado conduzido por uma parelha leve. A mutação desse
sistema começa a partir do século VII, e, entre outras, a culrura da aveia,
útil à alimentaçáo dos cavalos, progride. A força do cavalo deve atender às
exigências dos senhores e de seusvassalos cavaleirost, umavez que o animal
náo é utilizado parapuxar a "charrua".
Esse mundo rural, já tipicamente "medievai", é iluminado pelos
grandes polípticos compostos entre 800 e 880 e também pelos editos reais
(capitulários) e todas as demais fontes do "renascimento carolíngio". Po-
demos nos dar conra de que o desenvolvimento de uma técnica de cavala-
ria náo tem nada de contraditório com o desenvoivimento da charrua
puxada por pares de bois e capaz de atacar solos mais pesados que antes,
pois munida de uma relha de ferro. Nos dois casos, é necessário ter o apoio
de uma siderurgia que os ferreiros das florestas gârantenr efetivamente.
Jean-Pierre Devroey,Économie et société dans l'Europefanque (YI-ry tiêcle),t.l.PeÍis,
Belin, zool.
Essas exigências apareceráo, em todo caso, muito claramenre, na época Êudal com as
taxas deproteçáo,dkassaluamentl,pegàs em aveia. (N. daR.) O termo "salvamento"
(sah'etet) indica eferivamenre uma zona de imunidade.
96 97
O elitismo crolíngio
Isso cria um campo com prados e forragens próp-rias para alimentar bois
e cavalos de todas as categorias, com bosques nos quais os camPoneses
praricem cortes e limpam terreno enquanto os cavaleiros caçam. Até por
volta do ano 1000 ou 1100, eles náo se incomodam muito uns com os
oucros. Os polípcicos e os capirulários mostram bem: lavragem e Pastagem
sío, jâ por volta do ano 800, os dois "celeiros" da Francia e alimentam
monges, guerreiros e camponeses de escatutos bem diferenciados. Têr a
sua disposiçáo um cavalo, mesmo que seja aPenas para se locomover, clas-
sifica um homem como pertencente à elite.
Tudo isso náo se passa, obviamente, sem contraparddas, e há li-
mites e estreitamentos nessa civilizaçío amplamente rural. Cartas como a
do abade Lupo de Ferriàres mostram que os cavaleiros, com frequência,
penam para alimentar sua montaria, de onde vem, sem dúvida, uma habi-
tualpropensáo àpilhagem. Mas, de qualquer forma, os especialistas fizeram
seus cálculos' por volta de 800, Carlos Magno pode mobilizar, na Francia,
35 mil cavaleiros e os 100 mil infantes que sáo necessários para acompanhá-
los. A proporçáo, parece, permanecerá a mesma quando da primeira cru-
zada. No século IX, notaJean-Pierre Devroey' para cada 12 homens do
cârnpo, um privilegiado pode ser cavaleiro ou monge graças ao trabalho
dos outros. Num capitulário de 792, servir a cavalo e com couraça é repu-
tado como possível ao possuidor de 12 mansos, enquanto quatro mansos
podem prover um infante - quatro mansos é a exploraçáo camPonesa
ideal, a que se imagina necessária para sustentar um padre de paróquia. O
propriedrio de 12 mansos é um Pequeno senhor que recebe censos; é
também um pequeno notável, um vassalo de abade ou de grande iaico, que
ele escolta, entre outros motivos, a fim de honrá-lo e lhe prestar apoio, em
rroce, sem dúvida, de dons de armas e equipamentos pâra compiementar
aquilo que sua propriedade lhe permite adquirir. Uma situaçáo semeihante
parece desdnada a se Perpetuar na França pós-carolíngia. Os 12 mansos
sáo encontrados novamente mais ou menos da mesma forma em certos
"feudos de cota de malhas"n do século XII, e, ainda que os castelos impor-
6 O autor descreve no Capítulo 4 a transformação do armamento que dá lugar ao apa-
recimento da cota de malhas, propriamente dita, cuja evoluçáo fundamental será à
vestimenta longa confeccionada por meio do enrrelaçamenro de anéis de ferro, inde-
pendenre da brunia (proteçáo de couro sobre a qual a cota de malhas passa a ser co-
Á Cavalaria
tantes sejam naquele momenro os principais cenrros de agrupamento e
sociabilidade vassálica, a homenagem aos abades náo é rara e os laços com
os mosteiros permanecem muito marcantes.
Entre uma muraçáo da cavalaria próxima do ano 700 e amuraçáo
da esgrima e do combate em rorno de 1100, parece que o equipamenro
evolui basrante lentamente. É exagero, com certeza, falar de uma "revoluçáo
do esuibo'i como fazlynn Whire, ou atribuir roda a expansáo carolíngia,
a parrir da batalha de Poitiers (7zz), à cavalaria pesada. Bernard Bachrach
fez oma crítica dura a essa ideiaT, e devemos a Philippe conramine uma
elaboraçáo mais moderada e convincentes. Mas, no seu conjunro, o lugar
da cavalaria nas guerras e navida social é claramente mais imporranre que
na época dos merovíngios: isso salta aos olhos se passarmos direramente
da ieirura de Gregório de Tours à leitura de Ermoldo, o Negro. E rem-se
razáo em citar frequentemenre os Ánais reais quando eles assinalam que
muitas vezes, a partir de 751, a assembleia geral na qual o rei jusdfica a
guerra e reúne sua hoste é postergada de março para maio, devido à neces-
sidade de forragem para os cavalos. Estes últimos sáo cada vez mais nume-
rosos; vejo um ourro marcci disso no faro de que o livro daHisttjria dos
fancos, redigido por volta de 7zl, adiciona à história de cróvis um episó-
dio sobre seu cavalo, mencionando seu capacete, sua couraça e seu escudoe.
E pouco depois, por volta de 800, a documentaçáo nos revela a importân-
cia dos haras reaislo.
Chegamos enfim, eprincipalmente, às admiráveis miniaturas do
século IX, como as do sakério de ouro de sankr Gallen. Heróis do Andgo
Gstamento sáo represenrados nele à maneira dos cavaleiros cristãos d.a
época, com uma grande aurenricidade como mosrrou simon coupland
apesar das dúvidas da hipercrítica. Tâmbém se yeem no saltério estribos,
que estavam ausentes nas sepulturas merovíngias de guerreiros (século
vI) e que apareceram somenre no curso do século vII nas sepukuras da
locada) e a extensáo da proteção ao pescoço. E-bo* a co* d. malhas ainda esteja em
formaçáo, no momento ao qual o presenre capítulo é dedicado, o aoto.1"rrç" máo do
rermo. (N. da R.)
7 Em "Charles Marrel..." e "Charlemagnet Cavalry...,l8 Philippe Contamine, La Guerre au Mo1,en Áge..., pp. 215-20.e Liuro da história dos-francos, 17, p. Z7l.
r0 
Jean-Pierre Devroey, Econonzie et société..., p. 97.
98
O elitismo carolíngio
Germânia por meio do contato com os povos da esrepe, que os traziam
da china, onde eies sáo atestados no século v. Mas por que focalizar o
debate dos historiadores sobre a "revoluçáo do estribo", quando se obser-
vam embém, no período carolíngio, progressos significativos da armadura
e da espada?
Náo estamos ainda diante da unidade total (ofensiva) da blinda-
gem complera da cavalaria e da esgrima com a lança. Mas a lança é urn
elemenro normal do combate a cavalo, às vezes lançada como urn dardo,
mas principalmente empunhadapor cima ou por baixo de forma aperfu-
rar o inimigo, como mosrram os sakérios iluminados. Ela é aarma mais
carregada pelos infantes também, junro com o escudo que é de madeira e
coberto de couro dos dois lados. Ele é redondo e convexo, podendo ser
preso ao pescoço; capaz de deter um dardo, pode servir ao ataque graças
a sua Ponta.
As inovaçóes do armamento carolíngio aprofundam a distância
entre combatenres - elas náo são socialmenre inocentes, não sáo fato do
acaso. O capacere (elmo) náo é provavelmenre feito de uma única peça;
mase]e se reforça. Everardo fala de elmo e de cota de malhas (hakbergen
etimoiogicamente signifi ca' proteçáo do pescoço") (g6z); Ecardo distingue
a bruniall da cora de malhas. Roberto, o Forte, morre em Brissarthe em
866, no fim do dia, segundo Regino de Prüm, pois havia retirado seu ca-
pacere e sua couraça por causa do calor e não os colocou de voltar2.
Os vassalos ricos de 12 mansos têm uma brunia feita de couro,
tendendo a se rransformar em couraça devido às placas de ferro que são
forçadas sobre o couro recobrindo-o. o tipo comum é a armadura com
escamas de ferro, que rende a cobrir também as pernas (prolongando-se
em perneiras) e os braços (em braçadeiras) com uma frequência que os
historiadores têm di6culdade em apreciarl3.
Philippe Contamine norou que Rábano Mauro evocayâ uma
verdadeira cota de malhast4, ou seja, uma rrama de círcuios de meral que
Ir Proteçáo militar confeccionada em couro sobre a qual sáo aplicadas tachas de metal
(N. da R.)
12 Regino de Prüm, pp. 92-3 (datado erroneamenre como g67).
13 Ver o belo estudo de Simon Coupland, "Carolingian Arms and Armours...,,.
ia Philippe Contamine, La Guerre..., p. 324.
IIil
li
lt
Ii
i.
A Cavalaria
se usava, em sua origem, somente sobre a brunia. Há também uma página
sugestiva de Notker, o Gago, sobre um Carlos Magno diante de uma
Cidade lombarda aterrorizando os habitantes, coberto de ferro15. Mas
nem a cota de malhas nem o homem de ferro são representados nem
cirados em mais do que um texto... É, entretanto, insignificante que a
ideia passe pela cabeça e pela pena dos monge s de alto escaláo, próximos
dos imperadores ?
Com um coraçáo de ferro, pode-se ter a corâgem aumentada
quando se está coberto de proteçáo. É significativo que duas narrarivas
de mortes em grandes batalhas, a de Roberto, o Forte, em866, e a de seu
filho, em 923, relarcm, ou inventem, o fato de que eles náo tiveram rempo
de se armar. A superficie da couraça é um obstáculo. Para morrer em
combate, a menos que aconteça um acidente, é preciso realmente ser
impaciente ou temerário, ou ser tomado de surpresa, pelo efeito de um
ódio mortal personalizado.
As brunias sáo, em todo caso, percebidas pelos francos como
um recurso importante, uma vez que Carlos Magno em Thionville e
Carlos, o Caivo, em Pitreó, através de capitulários, se esforçam em
interdicar ou parar sua exportaçáo (sua cessão aos viquingues) - o que
prova que ela ocorre.
Eles têm a mesma preocupaçáo a respeito de suas espadas, que
conhecem entáo um claro aperfeiçoamento e sáo possuídas apenas por
cavaleiros - e nem todos os cavaleiros. O gládio curto (ou "meia-espada")
dos capitulários servia aré entáo para o combate ieve, rápido (tinha de 65
a 80 centímetros com um único lado cortante), ao passo que a espadalonga
(com duplo corre, de 90 a 100 centímetros, com lâmina entreT5 e 80 cen-
tímerros) servia, sobretudo, para metar, em caso de necessidade, o inimigo.
Ora, o progresso das técnicas de forja, exigido.ao mesmo rempo por armas,
ferramentas e tesouros, melhora a qualidade das lâminas. Antes disso, os
dois lados cortantes só se aproximavam no final; a parcir daí, as lâminas
sáo contínuas do punho à ponta da espàda. Dessa forma, o cenrro de
gravidade pode aproximar-se do cabo e a espada rorna-se mais manuseá-
vel. Assim o gládio se reforça no combate corpo a corpo. Algumas vezes
O elitismo carolíngio
podemos ler sobre a sua lâmina o nome do ourives que a fez. No século
IX, o nome Ulfiberto definia a espada de alto padrão16.
É a espada que se enrrega aos filhos de reis para simbolizar sua
idade adulta e dar crédito a sua aspiraçáo ao reino. É ela que desempenha
o papel de arma de cerimônia, que o guerreiro nobre representado nos
muros da igreja de Mals, em Grisons, antes de 881, rem à mão; é ela que
os testamentos dos condes Everardo do Frioul e Ecardo de Aurun descre-
vem com predileçáo entÍe os elementos de ornamenração pera os quais
eles preveem um destinolT.
Sem dúvida, os cavaleiros comuns náo possuem um armarnento
completo, com tudo que ele tem de mais efedvo. Mas o equipamento do
cavaleiro, ou seja, do "vassalo" como diz claramenre o capitulário de79Z-
793,éum símbolo de superioridade social símbolo mais do que um
meio absolutamente direto de superioridade social.
Os cavaieiros ofuscam os infanres nas narrativas de guerra,
mesmo precisando se apoiar neles e mesmo a efrcácia desses infanres
permanecendo importante. A supremacia total do cavaleiro em qualquer
momenro da história medieval é um miro energicamenre combatido por
John Francels.
No entanto, por mais prestigiosos que sejam, os cavaleiros francos
dos séculos VIII e IX são limitados por uma autoridade mais forte que os
"guerreiros bárbaros" da Germânia andga, e por uma moral do dever. A
qualidade de seu armamento náo tem precedenres, e seu preço rampouco.
Para manterem-se, eles dependem de sua relaçáo com o rei ou com os
magnatas que controlam melhor uma ecoíomia e um sistema de institui-
çóes já um pouco complexas.
A homenagem yassálica e o feudo ocuparam espaço demais nos
Iivros da "velha escola" histórica (até i950), e, acima de rudo, essas obras
deram a eles uma imagem muiro inocente e estereotipada. Por outro lado,
eles ocupam espaço suficiente nos livros mais recentes? Em um ensaio
sobre a Cavalaria, é necessário, de qualquer forma, dar um lugar a esses
i
16
t7
l8
Ibidem.
Ver meu estudo sobre Z a Mutation..., p. 197 .
John France, "La guerre", p. 196, passim.
I' Notker. o Gago, I), l(,. pp.83-4.
100 101
A Cavalaria
elementos. O laço entre cavalaria e vassalidade é muito claro. A própria
palavra uassus, mais tarde uassal err. francês antigo, é com frequência
empregada em senddo absoluto, sozinha, sem indicaçáo de senhor: alguém
é vassalo, isso em si é um estatuto honorável que eYoca a Yalenda guerreira
e que traz honra. Ao mesmo tempo, alguém é vassalo de outro, e os ritos,
a promessa de 6delidade e mesmo a homenagem das mãos têm a pro-
priedade sociológica de classificar na elite aquele que se submete, através
desses atos, a um senhor: eles contrastam com os ritos de servidáo. É s.^-
pre um cavaleiro que presta a homenagem das máos, alguém que náo deve
serviço em forma de trabaiho, mesmo se, Por sua própria conta, ele às
vezes trabalhe a terra.
Mas o laço entre vassalidade e "Cavalaria'i por mais fundamental
que seja, é complicado, ambivalente. De um lado, o clima das relaçóes
enrre senhor e vassalo comporta esforços de moderaçáo e de justificação
que sáo um claro prelúdio da sociabilidade Cavaleiresca: um vassalo, como
Cavaleiro, tem direito a honrarias. Por outro lado, o serviço do vassalo é
para ele uma obrigaçáo e as faltas sáo objeto, aprincípio, de sançóes graves:
morte ou exílio se o senhor é darealeza",frequentemente mudlaçáo, pesa-
das multas, desonra pública pela barrniscarale. O comporramento dos
vassalos nobres náo está, portanto, sob o controle de uma simples opiniáo
pública, como no caso do guerreiro germânico segundo Tácito. O ideal
de devoção ao senhor na guerra retoma o ideal das corporaçóes germâni-
cas, sem dúvida, mas a norma de respeito e lealdade firme aos superiores
se estende a toda vida social, ela é sacralizada pela moral cristá, e tudo isso
faltava nas florestas e nos pântanos da Germânia antiga... Tudo isso, so-
bretudo, limita a exaicaçáo do livre-arbítrio "Cavaleiresco". Náo se exige
tanto do cavaleiro que ele se disdnga na guerra, e sim que ele sirva.
A vassalidade é, de fato, uma instituição impormnte da sociedade
e do Estado carolíngio. Â homenagem, ou mesmo apenas a promessa de
fidelidade, passa por um dom de si e de seus bens. A seu senhor ou rei, os
vassalos dos tempos carolíngios reconhecem'o direiro de exaçáo e de jusriça
sobre suas terras, como se eles as tivessem recebido deles em "beneficio"
(diremos "feudo" no século XI). Entretanto a relaçáo tem algo de equili-
re Humilhação do cavaleiro, que se faz de cavalo carregando uma sela sobre as cosras.
O elitismo carolíngio
brado na medida em que há obrigaçóesrecíprocas, o senhor mantendo e
protegendo quando necessário seu vassalo. Como aprópria servidáo, cujos
ritos e normas tendem também a se precisar no século IX, a vassalidade
tem um código implícito, algo bastance yago e nem sempre coerente, e os
dois lados podem pleitear urn contra o outro na justiça e em diferentes
ambientes davida social se acusando mutuemente de náo agir "como um
vassalo deve fazer para com seu senhor" ou vice-versa.
Na verdade, a vassalidad.e é sem dúvida, antes de tudo (como a
própria servidáo se torna pouco a pouco), uma forma de pleitear, de tratar
e de disputar pubiicamente os limites da obrigaçáo, de decidir acordos, de
elaborar ritos e formulas. Náo é a uniáo moral forte, a comunidade de vida
que descrevia ingenuamente a velha escola. Náo é uma instituição pura-
mente guerreira, mas sobretudo sociai e política. Ela náo define, por outro
lado, todo o personagem social do vassalo; pelo contrário, ela implica
sempre várias pessoas, toda uma pequena colecividade. Suas formas e suas
implicações variam segundo os casos e as situaçóes. Enfim, a vassalidade
certamente não define sozinha nem a totalidade de um regime político
nem um sistema social complero. Falar de "feudalidade" é usar um rótulo
cômodo, com certa dose de desenvoltura.
Existe, no entanto, verdadeiramente, ume insistência firme do
poder carolíngio e da Igreja sobre af.delidade devida por cada um - em
primeiro lugar pela cavalaria - a Deus, ao rei, aos pais e ao senhor. Tudo
isso preenche o pequeno ntanual, na realidade muito teórico e escolar,
quase ingênuo, que a nobre Duoda redige, por volta de 840, para um de
seus filhos que vai para a corte imperial. Ela náo se esquece de ordenar-lhe
que seja agradável com seus "companheiros navassalidade" (cornrnilitones),
e que tenha umasociabilidade que já é quase "Cavaleiresca" com seus pares.
Infelizmente eia náo lhe diz aquilo que mais gostaríamos de saber: como
arbitrar entre os confiitos de deveres, como dosar a lealdade e a duplicidade,
e até a desobediência...
Há falm de clareza nos juramentos que Carlos Magno pede a todos
os homens, certos anos (ZAl, nz)" tomando por base "aquiio que um
vassalo deve ser para seu senhor". Mas o fato é que os reis não hesitam em
pedir, em grandes ocasiÕes, lealdade de forma vassálica. A vassalagem tem
o mérito de criar uma liga de dependência e de honra. Vimos isso na pró-
pria história da expansáo franca.
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A Cavalaria
As guerras de Carlos Magno
A vassalidade pode ser rito de uma sociedade de vingança: a época
posterior mostrará isso bem; há vassalos que vingam seu senhor pelo
sangue, e, acima de udo, há uma pressáo dos senhores para resolver os
confliros enlre seus vassalos. Mas sob o reinado de Carlos Magno, o que
aparece é muito mais o apelo aos senhores para que levem seus vassalos
à justiça ou ao exército (à hoste). É principalmente em nome da moral
cristá, que alguns capirulários (Zsl, sof) execrem o homicídio entre
cristáos e tendem (firmemente, mas de forma incompleca) a extirpar a vin-
gança do reino e depois do "império" dos francos'o. Os mesmos princípios
jusdficam também a recusa à guerra privada e a ordem (mal executada)
contra a manutençáo de séquito armado para serviço próprio no interior
do país. É a hora de praticar "vinganças" coletivas e públicas contra
males causados ao povo franco por seus vizinhos. Essa é, pelo menos, a
ideologia carolíngia.
Esse guadro cria guerras que náo são implacáveis, uma vez que
num sistema faidal a composição e o pacto se encontram sempre lado a
iado com a vingança. De sorte que a jusdficativa vingativa deixa sempre a
Carlos Magno a possibilidade de firmar tratados e compromissos, por
yezes até aiianças, com seus adversários. Raramente ele tem os meios para
"exterminá-los" como certos versícuios da Bíblia permitiriam ao povo
franco, enquanto "novo Israel", ao menos em se tratando de não criscáos.
Dessa forma, dá-se preferência a referências bíblicas mais misericordiosas.
A vassalidade não obriga o vassalo a entrar em um exército permanente. E
a cavalaria náo é um recurso decisivo em si mesmo. Ela náo representapara
Carlos Magno exatamente aquilo que a falange foi para Alexandre.
A guerra náo tem o mesmo caráter na monarquia interativa de Carlos
Magno - bastante "germânica" nesse sentido -,que tem em um império
digno desse nome, isto é, mais esratal, e que conquista um outro impé-
rio marcado por Cidades. Ela é apenas umâ operaçáo sazonal que se mis-
tura a muitos acordos entre guerreiros nobres à cusca dos camponeses.
O elitismo crolíngio
Têmos muitos autores - entre eles Eginardo, dos Ánais reais -
para examinar e jusrificar essa empreitada, em especial apartir do advento
de Pepino à rcaleza (ZSt). Naturalmente, náo podemos atingir.toda a
verdade na narrativa das conquistas de Carlos Magno. Ele surge estilizado
nos documentos e, tendo em vista sua clemência, seria um verdadeiro rei
Cavaleiresco se também exibisse bravura pessoal ou realizasse algumas
proezas. Mas essas proezas não acontecem e CarloS apresenta em espetáculo
apenas seus paramentos e armas de cerimônia.
Por outro lado, os homens sob o comando da monarquia franca
náo sáo citados por suas conquistas vitoriosas nem têm oportunidade
de brilhar por iniciarivas propriamente "Cavaleirescas". Os anais carolín-
gios citam mais os condes que infelizmente fitorreram e cujos nomes
seráo por vezes retomados (como o de Rolando) nas cançóes de gesta do
século XIL
A expansáo franca do século'WII consiste inicialmente em resta-
belecer a hegemonia sobre as regióes anteriormente dependentes dos
merovíngios, como a Aquitânia, que Carlos Martel tenca submeter' ao
mesmo tempo em que a defende dos sarracenos (ZZz) em uma batalha
pouco conhecida na quai o papei da cavalaria não pode ser ignorado2r, e a
Baviera do duque Tassilon, que será necessário defender dos ávaros (792)'
Mas a empreitada se estende também a noYos espaços, como a Septimânia
e a Espanha, antigamente dos godos e naquele momento (desde 7l l) nas
máos dos sarracenos, e também a Frísia e a Saxônia, ambas pagás e germâ-
nicas, ao Norte da França, onde se trata de converter e intcgrar a um im-
pério cristáo, e, finaimente, a Itália lombarda, que o paPa convoca os reis
francos a conter e ânexar.
O método é sempre o mesmo. Uma hoste franca enrra em um país
adversário, no veráo, provoca devastação, faz cerco a Cidades (ao sul, Es-
panha e ltália, Barcelona ou Pávia) ou a castelos (forcalezas de países ger-
mânicos e eslavos). O inimigo nobre em geral escapa, foge, e no fim se
submete ou se rende, prometendo ributo e lealdade, antes de trair seus
compromissos ao final de um ou vários anos e retomar as hosdlidades' O
tipo perfeito, neste caso, é o duque dos Bávaros, Tassilon, várias vezes
2t Mas também não deve ser superestimado: ver Bernard S.Bachrach,Merouingian...zo Boretius, nq22e44
104 105
j
I
A Cavalaria
ffaidor de Pepino, o Breve, e de Carlos Magno. A cada vez, ele expóe suas
terras e seus homens da Baviera à vingança indireta dos francos, enquanto
ele mesmo entrega as armas em todas as batalhas, foge ou se submete.
Podemos achar quase surpreendente a mansidáo de Carlos Magno em
relaçáo a ele. Em 788 Tassilon é condenado à morte por lesa-majestade,
mas é por fim perdoado e forçado à penitência até o final de seus dias em
um mosteiroz2. É evidente que a aristocracia bávara manrém laços com
a "corte" (o palácio) de Carlos Magno onde existem francos para inter-
vir em fayor de Tassilon. A anexaçáo da Itália do Norte, em 774, ap6s
um longo cerco a Pávia pelos francos e a rendiçáo do rei Didier, repousa
igualmente sobre a adesáo de uma facçáo notável dos lombardos a Car-
los Magno23.
As campanhas conduzidas na Saxônia sáo mais duras: há massa-
cres, por parte dos dois adversários, e verdadeiras batalhas. Mas o modelo
estratégico, milirar e social náo é de forma alguma diferçnre. Após devas-
tações, ainda é tempo de firmar tratados com os chefesnobres, de obrer a
conversáo e alealdade de alguns dentre eles. Mesmo o notório \ff/idukind,
que prefere se refugiar entre os dinamarques es em 777 a se render em Pa-
derborn, retoma a guerra diversas vezes, e termina bem, como fiel e afilhado
de Carlos Magno... llma narradva de milagre, escrica no século IX, aribui
à invocaçáo de Sáo Vandrilo a salvaçáo de um vassalo franco, Sigenando,
prisioneiro dos saxóes, que perece cer conquistado para sua causa um
destes úldmos2a. Enfim, o mesmo aconrece com os sarracenos. Há coni-
vências duranre toda a campanha de 778. Enrre guerreiros nobres há
sempre um rempo para o afrontamento e um tempo para o acordo. O
método da expansáo franca é a fusáo progressiva de "povos", ou pelhor,
de ariscocracias - ela irá longe entre os francos e os saxóes.
Sáo, no enranro, essas guerras francas do século VIII (depois as
dos séculos IX e X) que fornecem, a longo prazo,para as epopeias france-
O elitismo carolíngio
sas do século XII seu núcleo cristalizador de ficção, como a Canç,ío de
Rolando, que celebra um conde morto em778 nos Pirineus, diante dos
sarracenos, e a Canç,ío de Guilherrnr, que celebra um conde que e.scapou
da batalha de Orbieu (ZgZ).Tais epopeias dáo a essas batalhas um aspecto
muito sangrento (sáo vinganças e disputas de valor enrre aristocracias).
Gm-se a impressáo de que náo há pilhagem, apenas luta até a morte entre
aristocracias inimigas.
A confrontação ao islá25 é mais dura que a guerra empreendida
contra os lombardos, mas náo mais do que a empreendida contra os saxóes,
contendo os mesmos ingredientes. Aqui também há passagens de
um campo para outro e divisáo das aristocracias gótica e basca em facçóes
opostas, favoráveis umas aos sarrâcenos e outras âos francos. Assim, em
777, o muçulmano (recém-convertido) Ibn Arabi une-se a Carlos Magno,
antes de ajudá-lo em778 na expediçáo à Espanha, durante a qual o rei
franco pressiona Saragoça, e obtém sua lealdade formal; em seguida destrói
os muros de Pamplona, que pertence aos bascos pró-sarracenos, e depois
disso volra para a Gália através das gargantas dos Pirineus:
Ora, os gascóes [bascos] tinham colocado emboscadas nas montanhas e atacam
a re taguarda do exército que se coloca em grande desordem. Em coragem e armas,
os francos eram superiores. Mas a di6culdade do local e de um combate ao qual
não estavam acostumados os colocou em desvantagem. Muitos homens da corte,
a quem o rei havia dado uopas para comandar, foram mortos nesse combate. Os
carregamentos foram pilhados, e o inimigo, conhecendo o local, renunciou ra-
pidamente a qualquer perseguiçáo. À lembrança desse fracasso obscureceu muito
o coraçáo de Carlos Magno26.
Em ourras palavras, ele rem dificuldade em lidar com o luto de
seus palatinos; pelo menos ele deve mostrar tristeza - mesrno que a morte
de combatentes, coisa rotineira, passe despercebida, aqui como em quase
todas as ourras ocasióes.
Os bascos quiseram dissuadir os francos de voltar. E, efe$vamente,
segundo sers Árun a le s, nao há r eaçáo possível à vin gan ça dessa e{n b o scada
I
25 Ver Philippe Sénac, Les Carolingiens et al-Ándalus...
" ,4nais diros de Eginardo. p.51.
?2.
21
24
Ánnales regni Francorum, pp.80-2.
Idem, pp. 38-40.
Milagra de S,ão Vandrilo,t,4-5 (p.282): Sigenando é um vassalo da abadia de Fonte-
nelle, onde repousa o corpo de Sáo Vandrilo; o saxão se chama Abbon, e é enviado
mais tarde como refém a carlos Mag,o; ele é bem rrarado e voka a Fonrenelle para
contar o milagre.
106 1,07
A Cavaluia
âssassine em Roncesvales. osÁnnales se limiam à afirmaçáo peremprória
da superioridade franca'pela coragem e pelas armas':
Mas a revanche francanáo se enconua na canção de gesta, ou nas
uadiçóes às quais ela se junta no século xII? L/ma compensaçáo imaginá-
ria a esse revés amargo e às perdas da boa sociedade é necessária. E a cançáo
elogia a coragem de fato dos francos, ela rransforma em sarracenos
os inimigos bascos pró-sarracenos, ela introduz um raidor franco, ..Ga-
nêlon" (cujo nome é o de um bispo que, no decurso de uma guerra civir,
em 858, mudou do lado de carlos, o calvo, para o de seu irmáo Luís,
o Germânico). A pressáo sobre saragoça, anrerior a Roncesvales, rrans-
forma-se em romada da cidade após Roncesvales, ond.e ocorre uma vin-
gança estrondosa.
Sáo frequentemente morres não vingadas, heroicas, quase com-
paráveis aos martírios dos santos, que deixam üaços, nomes retomados
pelas canções de gesta. vivien é um conde de Tours, morro peios bretões
em 8 5 I , invejado ele mrnbém27, anres de se rornar, na imaginaçáo épica do
século XiI, o sobrinho de Guilherme, um grande herói dã grr.rr* o.rr".
Esses comentários náo nos obrigam de forma alguma a yokar à
tese "tradicionalisra" a respeiro das cançóes de gesta que, no século XIX,
as apresenrava como verdadeiras tradiçóes orais transmitidas, intactas, dos
tempos carolíngios até o século XII. De faro, o equipamento, as reiaçóes
sociais que essas cançóes refletem ou imaginam correspondem m.lhor ro
ano 1100, e a oralidade apârece nelas como artificio. No entanto, a aris_
tocracia do século XII é em grande parte herdeira da arisrocracia do mundo
c_arolíngio, ainda que as mutaçóes feudal (lOO) e Cavaleiresca (a pardr
de 1050) diferenciem um pouco uma da ourra. A apresentaçáo d. g,r..r",
francas como vinganças justas e a ocurraçáo de erementos náo nobrcs
sáo pontos comuns enrre as fontes caroríngias e as fontes dos tempos feu-
dais - que são, entreranro, epopeias de condes mais do qo. d. ,.ir.
Mais ainda, ao colocar em cena um Rolando cujo orgulho com_
promere a batalha na retaguarda, a cançáô posrerior faz eco a-probr.mrs
O elitismo carolíngio
constanres nas hostes medievais, aí comprêendida a hoste de carlos
Magno, quando o orgulho pessoal é considerado a despeito das pondera-
çóes pertinenres ao enconrro das facçóes. Rolando, na verdade, se recusâ
a rocar a rrompa para não parecer que está pedindo ajuda e dessa forma
lançar a vergonha sobre sua parentela - o que equivale mais uma vez a
querer manter a vitória, a pÍoeza, apenas para ele e seus l2 pares. Ora, os
Ánais reais do sécuio vIIi relatam uma derrota que aconreceu pelo mesmo
motivo. Em782, o conde Têodorico, parenre de Carlos Magno, orquesrra
a campanha na saxônia. Eie conta o seu plano a três palatin os (rrtinistri
regis):"Esses discutem entre si e remem que, se atacassem junto com Teo-
dorico, a honra da vitória ficaria apenas com ele. Resolveram enráo atacar
e conduzir o combate sem ele. Eles se armaram e atacaram nâo como se
estivessem diante de um fronre inimigo mas como se ele já se €nconüasse
em fuga'l combatem a cavalo o que era uma má escolha diante do terreno
e das circunstâncias.
o 6nal do combate foi funesro: os francos foram cercados pelos saxões [a pé ?] e
quase todos foram mortos. Os que puderem escapar náo voltaram prr, ,.rrs
acampamenros e sim foram em direçáo ao de Teodorico, do outro lado do monre.
Aperda dos francos foi ainda maiorpelaposiçáo dos mortos do que peio número
deles' Dois dos palarinos, Adalgiso e Geiláo, quatro condes e qurr. uirr. ho-.rr.
dentre os mais nobres e mais "distintos" foram mortos, ,.- .o.rr", seguidores,
que preferiram perecer a sobreviver a eles28.
Têmos aqui uma honra de tipo "germânico,, digna das antigas
companhias. Têmos também com o que esrabelecer o núcleo de uma can-
ção de gesta. o espírito não é épico? Mas a vitória de7g4,com a cavararia
de Cados, oJovem, vingará o ultraje e faciiirará seu esquecimenro.
É a derrota, ou pelo menos o perigo exrremo do guerreiro nobre,
que alimenta normalmenre a epopeia. Talvezos carolíngios tenham feito
as suas' em língua germânica ou, mais precisamente, nas línguas de seus
ancestrais2e, uma vez que os tempos heroicos raramente sãcj atuais. No
z8
29
Ánais ditos de Eginardo, pp. 6I-3.
Eginardo assinala que carlos Magno, depois de mandar rrânscrever e íazer emendas
na lei dos francos, "rranscreveu também, para que pudessem ser seguidos, os poemas
Zi-
JanetNelson, charleslecbauue...,pp.igg-9:"comoenteriormenreemRoncesvales.os pântanos do vale do vilaine foram um dos cemitérios da va.lenria rr.".r; 1p.i"menos do conde, mas náo do rei que fugiu).
108
109
A Cavalria
entanto, o que conservarno§ da poesia sobre suas guerras, seus triunfos e
aqueles de seus condes está em latim e num registro um pouco diferente'
trata-se de cantos de vitórias, sempre um pouco coÍtesãos, e em certo
sentido mais próximos da literatura propriamente Cavaleiresca. Exisrem,
no século IX, epitáfios, elogios de reis e de condes bravos ejustos (Everardo
do Frioul) que fazem eco aos versos de Venâncio Fortunaro, de mais ou
menos 300 anos antes, sobre o rei Sigeberto e o duque Lupo. Existem,
sobretudo, poemas épicos composros por alunos d" .r.ol" carolingia,
emulando Virgílio, Ovídio ou Lucano, tais como Ermoldo, o Negro, e
Abbon de Saint- Germain-des-Pré.s.
Carlos Magno queria ter as escolas (scole) mais eficazes; ele
exercia pressáo tanto sobre os jovens aprendendo sobre a guerra quanro
sobre aqueles que estudavam as lerras e o canro. Mas é necessária uma
geraçáo pâra que o esforço escolar traga seus frutos, e o primeiro broto,
com o Poema de Ermoldo, vem celebrar, entre 826 e 828, o imperador
Luís, o Pio, fiiho de Carlos Magno. Esse poema é composto de quarro
cantos, dos quais o primeiro conta essencialmenre a tomada de Barcelona
em 801 por uma hoste franco-âquirana sob a autoridade de Luís, enráo rei
da Aquitânia. Náo deve ele ser exibido pârâ uma juvenrude guerreira
como capaz de competir com seu irmáo Carlos, o Jovem, vencedor na
Saxônia em784?
O Poema de Ermoldo, o Negro
É verdade que os Ánais reais, dessa vez, náo dizem uma palavra
sobre o episódio. Eies mencionâm apenas o chefe sarraceno Zate, ouZa-
don, que presra lealdade a Cados Magno, no veráo de797, em Aix-la-
Chapelle. Mas ele rapidamenre muda de posiçáo, visto que, em 801, Bar-
celona é tomada depois de um cerco de dois anos. Zadoné, entáo, condu-
zido a Ai-x, dessa vez como carivo, e Carlos Magno, em sua bondade, não
antigos da língua bárbara na qual se canravam as açóes e as guerras dosvelhos reis" (vida
de carlos Magno,z9, p.Bz).'lemos apenas duas epopeias em língua germânica do sécu-
lo IX, compostas um pouco mais tarde: em Fulda, por volta de slo,-Hlldrbrandsried, e,
sobre o eêmero carolíngio, Luís III (S79-88 z), Ludwigslied.
O elitismo carolíngio
o condena ao "exílio"3o. O acontecimento de Barcelona recebe apenas dois
pequenos parágrafos nos Ánais, enquanto E-rmoldo, o Negro, lhe dedica
uma longa passagem. Seria uma total fabulaçáo ? Seu Poerna se parece com
uma epopeia sem engrandecimento épico, com ênfase muito mais no as-
pecto cortesâo. Ele deixa entrever a realidade da guerra carolíngia, mesmo
criando sobre ela ou colocando em relevo certos aspectos. Ele estiliza, mas
náo inventa o episódio. Ele permanece preso, nessa história contemporâ-
nea, por uma trame rígida - ele náo pode tecer a intriga nem inventar o
drama que seria necessário para chegar ao heroísmo extremo ou aos gran-
des conflitos de valores. De qualquer maneira, cria.uma imagem que parece
agradar à corte de Luís, o Pio, e ela ilustra bem certas ori€ntaçóes socioló-
gicas. Ermoldo, o Negro, náo menciona o adubamento de Luís, pelaespada,
sem dúvida por seu pai, em794, assinalado pelo único biógrafo de Luís, o
Pio (aquele que nós chamamos de 'hstrônomo"). O rei Luís comparriiha
as arençóes com o duque Guilherme - que será um dos grandes nomes
da epopeia feudal, do Charroi de Nírnes ao Moniage Guilhernte em Gellone,
a ponto de ofuscar totalmente um rei inativo e ingraro.
A guerra é jusdficada no Pa erua deBrmoldo da mesma forma que
nos Ánais reais.Ltís vê a terra franca submetida aos etaques dos mouros e
pede conselho aos grandes de seu reino. Ele náo pode impor-lhes nada,
é necessário que eles consintam em ajudá-io. Ei-lo novamente, portanto,
um pouco mais germânico, persuadindo e ao mesmo tempo combatendo
pessoalmente. Sua relaçáo com os condes, para dízer a verdade, reflete
também os anos 820, invadidos por um modelo de consentimento auro-
mático a rudo que o imperador faz.
Os duques, no Poerna de Ermoldo, não estão todos de acordo. Ao
gascão Lupo Sanches, que fala em paz, opõe-se a bela determinaçáo guer-
reira de Guilherme, que diz ao rei aquilo que ele queria ouvir e se oferece
para guiar a expediçáo3l. Ele já é o vassalo de coraçáo fiei que rirará disso
recompensas. Mas o debate náo se transformâ em invectivas, porque esta-
mos diante de um poema discreto, longe das estrofes veementes e das
aposiçóes violentas das cançóes de gesta. Lupo Sanches não trai e o debate
náo se degenera em Yendeta.
)o Ánnales regni Francorurn..., pp. 100-2.
}t Poema,v-,,. Á4-210 (pp. 16-20).
110 111
A Cavalria
A campanha de 801 não tem batalha organizada: segundo um
cenário clássico, os mouros se fecham atrás dos muros da cidade, aguar-
dando um exército de socorro de Córdoba que náo virá. Eles conram
também com a fraqueza logística daqueles que os atacam, uma vez que
exringuiram todas as reservas atrás de si. Náo se combate pela espada, corpo
a corpo, mas lanças sáo arremessadas sobre o inimigo para perfurá-lo; é
aqui, certamente, que começa a esdlizaçáo de Ermoldo. Os adversários
rêm tempo de se verem e de se falarem, e todos os olhares parecem vokados
para algumas pessoas: o autor de um golpe admirável, grave ou mortal, é
claramente identificado, assim como sua vítima. Haveria, entáo, enrre os
francos e os mouros um interconhecimento entre inimigos. Diante de
Barcelona desenvolvem-se diálogos, altercaçóes (em qual língua?): os
desafios e conquistas dos francos respondem âos sarcasmos dos mouros.
No entanto, náo há provo caçáo ao duelo, como a de Bertoaldo em Landry
ou, como veremos, nas cruzadas. Enquanto Zadonfala aos seus sobre sua
esEima e seu tellror aos francos, um de seus compatriotas,Dtrzaz, os ridi-
culariza do alto das muralhas: "Povo invencível, você acredita derrubar de
um único golpe essas construçóes que o esforço romano levou mil anos
para edificar? Fuja, franco furioso, vá, saia da nossa visra!"32. Aisso náo se
concebe outra réplicapossível do que o arremesso de uma lança que desuói
a garganta zombadora. "0 homem cai do alto da muralha e, enquanro
morre, seu sangue respinga sobre os francos"33. Felicidade do sangue dos
mouros! Os francos ainda abatem ourros deles: "Guiiherme mata Habi-
rudar, e Liutardo mata Uris"34, sem, no enranro, chegarem a um verdadeiro
combate geral e próximo: os mouros náo se arriscam a isso. Apostemos
que os francos tarnpouco. Assim, o cerco se eterniza.
Então o rei discursa às suas rropas, "segundo o cosrume". Ele pro-
nuncia um dpo de promessa, o voro de não leyanrar o cerco até que Bar-
celona capitule. Do ourro lado do muro, um mouro que o escura rerruca
que ele nunca entrará. Os siciados rêm muito mais víveresdo que os sirian-
rcs. Guilherme, entâo, inrervem: Luís comerá seu cavalo antes de renunciar
32 Idem, lv. 390-a (p.3a).
33 Idem, w.4oz4 (p.3a).
3a Idem, v.407 (p.34).
O elitismo carolíngio
ao cerco. O inimigo fica estupefato, pois ele Sabe3t que o cavalo é o recurso
máximo para um franco e quanto valor simbólico e de uso tem para ele.
Eis as palavras que, acredita Ermoldo, desmoralizam o adversário. Elas
semeiam o desacordo em suas fiieiras. Zadon mobiliza os mouros e anun-
cia que vai tentar, ele próprio, atravessar as linhas francas para buscar re-
forço em Córdoba.
Ele fracassa e acaba prisioneiro. Luís manda que ele seja arrastado
por Guilherme, diante dos muros de Barcelona, a fim de que convençâ os
seus a se renderem, sendo que a recusa em fazê-lo, percebemos bem, cau-
saria sua morte. Mas Zadon se desmente através de signos combinados
anteriormente. Isso náo escapa a Guilherme, que lhe dá um soco com toda
aforça, se m poder de cidir-se por matá-lo: na verdade, "ele admira o mouro,
e especialmente sua astúcia"36. Em outras palavras, apesâr dessa ressalva
sobre a astúcia, ele lhe rende sua admiração. E, apesar do golpe que deixa
Zadon com a face coberca de sangue, ele poupa a vidadesse inimigo que
ele evidentemente estima mesmo combatendo-o.
Depois disso, cabe ao filho de Carlos Magno desferir o golpe
decisivo com a força prodigiosa de seu braço que arremessa a lança-dardo.
Barcelona se rende. Luís envia o fiel Bigon para contar isso a seu pai, em
AixJa-Chapelle, junto com belos rofeus para apoiar seus dizeresr "escudos
e couraças, vestimentas e capecetes, um cavalo caparazonado com freio de
ouro"37 eZadon prisioneiro (nós o perdemos de vista depois disso). Mas
o relato de Bigon é mesmo assim ligeiramente foreado: Luís "os conquis-
tolr com nobre luta sobre os mouros, em pessoa, espada e escudo em pu-
nho"38. Admitamos que ele tenha sido visto assim paramenrado diante dos
muros de Barcelona, mas o próprio Ermoldo, o Negro, assinala a ausência
de combate próximo; o chefe, o cavaleiro mais bem nascido, capitaliza um
mérito coietivo...
Náo há fanatismo exagerado nessa guerra contra o Infiel. Ne-
nhuma intervenção de homens da lgreja, de Deus, de santos vem impedir
que os francos mostrem seu valor intrínseco. Poderíamos crer qpase esrar-
35
36
37
38
Cf. a história de Datus, evocada neste volume, p.
Poema,v.5Z7 (p. aZ).
rdem, w. ) '4-) (p. 461.
Idem, v. s86 (p. a6).
113
A Cavalria
mos lendo Tácito, ao ver Ermoldo, o Negro, falar da aptidáo nativa dos
francos para as armas: os sarracenos substituem em grande vantagem as
mulheres germânicas como espectadores... Sáo mesmo melhores: verda-
deiros parceiros com os quais, se fossem cristáos (ou apenas pagáos
suscetíyeis à conversáo fácil), uma amizade futura teria tido grandes
chances de acontecer.
Vimos no cerco de Barcelona os sarracenos impressionados pelo
voto de Luís: comer seu cavalo, ou seja, aquilo que eie tinha de mais caro!
Eles invejam as montarias francas e os cristáos sabem disso. A história de
Datus mencionada també m no Poema de Ermoldo, o Negro, é testemunho
disso. Em 793, os mouros 'passam em turbilháo sobre a província de Rouer-
gue e a devastam", ou, mais precisamenre, a pilham: eles romam da casa de
Datus o mobiliário e até mesmo sua máe. Ele, entáo, "arria seu cavalo, se
arma e se prepara, com seus companheiros, para a perseguição". Chega
assim diante de uma fortificaçáo, feita de muros e paliçadas; ele ataca
os mouros aí entrincheirados com seu burim e seus carivos. Um deles lhe
fala com sarcasmo: "Sábio Darus, o que craz às nossas rincheiras, e ti e a
teus companheiros? Diga-me, eu te peço". O mouro, que evidentemenre
sabe o motivo, continua com uma proposiçáo: "Se você aceitar a rroca, se
você me der o cavalo que está montando e sobre o qual desfila, eu the
devolyerei sua máe e todos os seus bens. Senáo, sua máe morrerá dianre
dos seus olhos"3e. Ora, Datus se recusa a se separar de seu cavalo. O mouro
mata a mãe de Datus diante de seus olhos: corca seus seios e depois sua
cabeça. Datus treme de raiva diante da muraiha e se desespera com a im-
possibilidade de vingar a máe. Disso deriva sua conversáo: eie renuncia a
tudo, "toma armas melhores" - espirituais - e se torna eremita na regiáo
de Conques onde um eremirério prepâra "a futura formleza dos monges":
o desenvolvimenro de um mosreiro em 800.
Sabendo do valor de um cavalo e de sua importância para o esra-
tuto sociai, talvez devamos desculpar Datus. Quanto aos mouros, antes de
cometerem essa atrocidade, eram apenas deniandantes de resgate. Deyemos
notar seu inreresse pela montaria (e armas francas). Em 869, eles pedem
cem belas espadas em troca de Rolando, arcebispo deÁries. E esse episódio,
O elitismo carolíngio
com cavalo, cascelo e resgate, já tomaum ar intensamente (ou pragmad-
camente) feudal uma Aquitânia em que no século V a elite per-
manecia romana na aparência. Condiçao que reivindicará subsequente-
mente. No entanto, desde entáo a Aquitânia já se encontra exposta aos
bascos, sarÍacenos e francos: tudo o que é necessário pararefxzer a germa-
nidade que havia desaparecido depois de Luern, Bituit e Vercingetorix.
Naquele momento e até o século XII inclusive, ela é mais rude e rúsrica
do que a Francia.
Em Barcelona, tomada em 801, tudo permanece bastante compli-
cado. Os Ánais reais indicam que, em 820, o conde Bero, um godo, é
acusado por muitos de rair Luís, o Pio. Em combate singular contra seu
acusador, ele é vencido, condenado por lesa-majestade e, por fim, per-
doadoao. Thata-se de um costume de raízes merovíngias, mas dessa vez é
bem ressaltado que se dá um ccsmbate a caualo, e que ocorre de fato, mesmo
sendo interrompido bruscamente. Ermoldo, o Negro, pode bern de-
senvolver a narrativa desse acontecimento. O acusador é godo como ele,
seu nome é Sanilon, e os francos julgam, "segundo o costurne antigo']
que o combate deve acontecer. Mas é um combate de um novo tipo para
eies, pois é conduzido à moda dos godos. Gostaríamos que Ermoldo,
o Negro, fosse mais preciso sobre o que é novo para eles: o fato mesmo
de lutarem a cavalo ou de lançar dardos, antes de se esgrimirem com a
espada? Em todo caso, o cavalo permite que Bero fuja, sendo necessário
ao outro persegui-lo, atingindo-o com um golpe de espada, fazendo com
que ele se confesse culpado. Homens (ou "jovens") enviados pelo impera-
dor Luís correm para parar o combate, salvar Bero da morte e colocá-lo
à mercê (diante da clemência) de Luís. Ele consegue até mesmo menter
seus bens, sem desonra aparente - é necessário dizer que permaneceu,
apesar de sua fuga, à altura de seu estaruto de conde ? Eis um in-rpério no
quai a decadência social náo parece de forma alguma mais frequente
do que a promoçáo!
Os guerreiros nobres formam um clube extremamente fechado.
Nada arraía o olhar de Ermoldo, o Negro, mais longe do que os condes
presentes nesse episódio. O yaioroso Choslus e o rude Datus, que parecem
Kurze, Hanovre, 1895).
115
3e Idêm, w.270-5 (p.24). ao Ánnale regni Francorurn, p.152 (ed. F
A Caralaria
vir de famílias mais medíocres (mas náo "plebeias"), só se destacam pela
valentia e determinaçáo extremas, para, em seguida, respectiyamente,
morrer e se torner ermitáo. A promoçáo de um combatente de origem
"humilde", ou seja, que não pertence à alta nobreza, nío esrá na ordem do
dia. Náo há nada de comparável ao que mostrava a Histtiria augusta, sobre
Maximino no exército romano do século IIIal. Notker, o Gago, relara a
recusa de Carlos Magno em deixar ir ao combate dois irmáos manchados
pela servidão (pois basmrdos)a'. No máximo, podemos ler na História
dos Lornbardos, de Paulo Diácono, amigo de Carlos Magno, os feitos de
um seryo em um combate singular decisivo, recompensados com a liber-
dadea3 . Como se, na elite carolíngia, a promoção de alguns esrivesse sujeire
a debate. Mas normalmence, como na Vida de Santo Errnelanclo, redigida
por volta de 800, o nascimento nobre e o engajamenro no serviço de armas
(rnilitia) andam lado a ladoe.
O Poerna de Ermoldo, o Negro, permite aos guerreiros nobres
viver sem dificuldade sobre a reputaçáo de bravura proverbial de seus an-
cestrais francos. De fato, uma vez realizados os primeiros combates, nos
limires do lmpério, eles não precisam arriscar a vida todos os dias. Um
programa oficial de paz e de concórdia enrre crisrãos, do qual Ermoldo se
faz o poeta, permite a rigor guerrear conrra os bretóes, uma vez que sáo
maus cristáos, mas sugere muito mais abreviar o combate. Ele obriga opor-
tunamente Luís, o Pio, a interromper o duelo entre Bero e Sanilon, dois
nobres godos, antes que ocorresse a morte de um dos dois. EIe se concentra,
principalmente, nos dinamarqueses que a anexação da Saxônia transfor-
mara, desde 800, em vizinhos setentrionais do Império. Procura-se fazer
pactos e retardar confitos muito mais do que combater. Náo podem eles
ser atraídos ao cristianismo de preferência através de presenres, de auxílio
e de boas maneiras, muito mais do que pela guerra? É assim que a visita
de um dos reis dinamarqueses, Haroldo, ao palácio de Ingelheim em 826,
marcada por seu barismo, por uma caçada, um fesrim e uma homenagem,
ar História augusta, pp. 651-5.a2 Notker, o Gago, I1, 4, p. 52.
a3 Paulo Diácono, Histtiria d.os Lornbardos, I, 12. Essa obra contém outras narrativas de
feitos, qualificando os reis (t, ts; t, zl).
a Vida de Santo Ermelando,l (p.684). Ver K. F. §7erner, "Formation...".
O e)itismo carolingio
compreende o verdadeiro rrecho de bravura do Poerna de Ermoldo, seu
ponto alto, o canto IV. Por pouco não podemos dizer que os francos nada
têm de ferozes, nem na aparência, nem nos atos, além da etimologia!
Esse cristianismo permite exaltar, bem.como legitimar, acordos
enrre guerreiros que provêm de um veio uadicional mas até entáo pouco
considerados pela epopeia. O Poema de Ermoldo, começado com o he-
roísmo, pode acabar com um elogio ao luxo, em um cristianismo de con-
ôrro palatino muito mais do q.r. d. esforço guerreiro. O heroísmo esrá
apenas nas pinturas do palácio e de sua capela, que tratam da história e dos
ancestrais. Náo há nem as justas guerreiras nem os torneios que caracteri-
zaráo mais tarde os tempos propriarnente Cavaleirescos. Nada além de
veraneios esportivos e festivos, onde o sangue que corre é aquele dos cervos
e corças caçados pelos francos e dinamarqueses.Juntos, de fato, eles fazem
uma alegre carnificina de animais, cervos e javalis especialmence. O mais
jovem dos fiihos de Luís ainda não tem quatro anos: é o futuro Carlos, o
Calvo. Ele é criado como se deve: tem um pequeno cavalo e armas de
brinquedo. Ele também quer caçar como seu pai e seu irmáo mais velho.
Sua máe o impede, mas ele é consolado um pouco mais tarde quando levam
para ele um gâmo e "entáo ele toma suas pequenas armas e aringe o animal
trêmulo. Todo o encanto da infância circula ao re dor dele"at. Efetivamenre,
a cena é muito tocante. O pequeno Carlos é da semente de rei cristáo e
guerreiro, ele entende aquilo que esperam dele!
O imperador e as duas milícias
Náo falta esplendor na corte dos imperadores carolíngios quando
ela come, ca.ça e Íeza nos palácios entre o Sena e o Reno, no coraçáo de um
mundo rústico. Sob Carlos Magno, ela é o ponto alto de um poder real-
mente forte que se impóe à aristocracia e que esmbelece em todos os pe-
qu€nos países Çtagi) condes providos de instruçóes precisas e supervisio-
nados por bispos e abades, ou ainda vassalos diretos (poss{idores de
centenâs de mansos). l
t16
45 Poerua,*,. 2.410-1 (p. lSa)
111
A Cavalaria
No enranro, a Vida de Carlos Magno escrira por Eginardo, no
mesmo momento em que Ermoldo, o Negro, celebra em yerso seu filho,
não descreve nele um esplendor imperial à maneira anriga ou bizandna.
Eginardo se inspira em parre em Suetônio contando sobre Augusto,
sobretudo para dar a Carlos Magno a preocupaçáo de respeitar os cos-
rumes de seu povo. Ele lhe dá o crédito de rer aumentado o império dos
fancos, e de náo te r incorrido em censura. Ele o justifica ao mesmo rempo
em que o exalta.
Modestamente e orgulhosamenre ao mesmo rempo, Carlos Mag-
no carrega por toda a sua vida, fora de Roma, o costume franco. Eginar-
do nos assegura isso, ele rcm o imperium discretot "Ele se dedicava à
equitaçáo e à caça. Era um gosro que tinha de nascença, pois náo há,
talvez,um povo no mundo que, ne sses exercícios, possa igualar os francos".
E, ele acrescenta um pouco mais para frente, "ele levava a vestimenta
nacional dos francos": a camisa e o calçáo, a túnica, as ligaduras em rorno
das pernas, o colete de pele. Enfim, "ele se envolvia com um manto azul,
e dnha sempre suspenso a seu lado um gládio cuja empunhadura e boldrié
eram de ouro ou prata. Às vezes ele colocava uma espada ornada de pe-
drarias fporranto, uma espada de cerimônia, que o distinguia dos francos
comuns], mas, ourros dias, seu cosrrurre se diferenciava pouco daquele
dos demais". Ele jamais adotava os costrunes de oucras naçóes, mesmo que
fossem mais belos, fazendo exceçáo some nre a Roma, a pedido dos papasa6.
Notker, o Gago, fornece uma descriçáo do mesmo estilo, adicionando um
toque gaulês, como que para melhor exorcizar o especrro de uma majes-
tade à romanaaT.
Exisrem cerimônias e insígnias reais bem conhecidas, cujos usos
o século IX desenvolve pouco a pouco, e que si,gularizam os reis em reia-
çáo à aristocracia. Mas, no conjunro, os ornamentos de Carlos Magno e
os feitos de Luís permanecem sendo aqueles de guerreiros nobres. Esses
reis sáo de alguma forma os "Cavaleiros" de referência, um modelo para
os ourros, dando o rom, mas, por isso mesmo, obrigados , pr.r,r, *uiro
mais atençáo àquilo que se espera deles: que sejam submissos às mesmas
normas sociais e morais que o resro da elite.
O eiitismo carolíngio
Podemos dizer que os reis, os imperadores carolíngios, sáo adu:
bados como os outros grandes? Isso pode provocar debate no reino dos
historiadores. Com certeza, a espada de cerimônia é um signo, um símbolo
de poder social que caracteriza ao mesmo cempo os reis e os grandes, e
ambos encontram quem louve sua valentia e jusriça em versos latinos. Na
tradiçáo de um Venâncio Fortunaro, temos no século IX, entre ourros,
"Sedulio Escoto" e seus belos elogios aos carolíngios e ao conde Everardo
do Frioulas. Mas náo temos nenhum testemunho sobre um rito de primeira
entrega da espada a esses condes. É apenas poro os reis que enconffamos
algum traço disso!
A espada é várias vezes entregue a seus 6ihos, para significar sua
ascensáo à idade adulta e sua apddão à realeza. Mas a importância e o ca-
ráter mesmo desse rito sáo dificeis de compreender bem. Um único cro-
nista, aquele a que chamamos de "o Astrônomo" por causa de suas
frequenres alusóes às estrelas, portânro devido a sua inclinaçáo asuológica,
menciona esse rito ao relatar a vida de Luís, o Pio. Já em782, com cinco
anos de idade, seu herói foi "coroado com um diadema, cingido de armas
que convinham a sua idade e colocado sobre um cavalo"ae, exatamente
como seu 6lho Carlos em lngelheim (3z6). Depois, aos 14 anos, no mo-
mento em que começa a agir como rei, "cingem-no com uma espada, como
deve ser feito no período da adolescência"50 - mas seria essa uma cerimô-
nia digna desse nome? Ele mesmo, em 838, "cingiu seu filho Carlos [o
úldmo nascido, com I7 anos de idade] com armas de adulto, ou seja, com
a espada, e colocou sobre sua cabeça uma coroa real"5l. O adubamento é
dessa vez, portanto, apenas um prelúdio à coroaçáo, como será frequente-
mente o caso dos reis daqui para frente. Ainda que atestada duas vezes na
família carolíngia, no fim do século IX, essa enrrega de uma espada tem
bem a característica dos adubamentos, que é habilirar um jovem nobre a
receber sua herança.
Entretanto, o essencial parece ser portar uma espada em púbico,
na vida social e judiciária, participando, cerramenre, de cavaigadas, sem
46
47
Eginardo, Vida de Carlos Magno...,n (pp.6S-70).
Notke1 o Gago, I,3a (pp.46-z). Ver Robe rtMorissey, L'Erupereur..., pp. 42-65.
48
49
50
51
SedúIio Escoto, nq 12,25,28, 30, 38, 39,53,59.
"O Astrônomo", Vida de Luís, o Piedoso,4. Ver Régine leJan, 'Remises d'armes...".
Idem,6.
Idem, 59. VerJanet Nelson, Charles cle Chauue..., pp. 116-21, parâ o conrexro.
118 tt9
t;
A Cava.laria
realizar proezas organizadas como será o caso dos príncipes dos séculos
XI e XiI. É ..rco mesmo que a enrrega iniciar da espada é uma verdadeira
cerimônia? Nada na documentaçáo caroríngia aparece no sentido de ver-
dadeiramente lhe dar valor. Se carregar rrrr".rp"d", por ourro lado, é ráo
importanre parâ os grandes quanro para os reis, por que sua enrrega tam-
bém náo o seria? será que, no caso deres, um rito "vassálico,, acorrL..ria,
uma promessa de fidelidade, uma homenagem garantind.o seu esraruro e
süa iegidmidade de adulto nobre? Isso tambéà náo é evidenre. o riro
comum aos reis e aos grandes é muito mais a renúncia à cabeleira e à espada,
por ocasiáo de penitências ou de enrrada para a vida religiosa.
O governo caroiíngio se apoia em geral sobre uma forte ..aristo-
cracia de império"i2, que ele acomoda e q.r. ro mesme rempo o limita. Tâl
é ao menos o balanço que pode ser feito a parrir d* imrg"á que Eginardo
oferece de CarlosMagno.
- Mas ele náo procura mmbém por intermirência ou, gradualmenre,
mudar os costumes francos e desenyolver uma adminisraçãã e um* j,rstiça
mais fortes, em seu beneffcio ? Isso pode ser norado nos editos (.aprtiários)
que limitam a vingança ou denunciam a opressão dos 
.pobres,,p.lo, .po_
derosos"' Desde o 6m do reino de carlos M"g.,o lsoo-s ia; ,.i,.àd*-..rr.
se ordena aos condes e seus agentes que combatam os abusos da aristocra-
cia' Mas como os condes são eres próprios nobres, assim como os rr-tissi
dorninici que os supervisiona-, 
" 
ord.* náo produz efeitos. seria neces-
sário, para melhor aplicá-la, aquilo que Max §/eber chama d. ,r_ .p.rro"l
burocrárico", fortemente dependente do soberano, composto de genre que
devessç a ele sua ascensão social e cuja fortuna depend.rse v..d"diramenre
dele' ora, esse perfii de agente real foi esboçado por grandes rr-tinisteriais
de origem servil, mas ele não é táo difundiio. O gorr.rro carolíngio não
rem tanro pessoal especializado, ranros servos livres como grandJs assis-
tenres e intendentes poderosos, náo tem "bárbaros" incorp"orados como
profissionais em um exército. Ere se rimita essencialmenr. n d". impursos
ao poder local dos condes e a arbirrar conflitos e^tre facçóes e crienteras
de aristocratas, a repartir os encargos e as 
,.honras,, 
entre eles.
O e)itismo carolíngio
Isso cria, ao lado da empreirada guerreira de carros Magno, uma
empreitada legislativa e religiosa náo negligenciável. Amba, ,J dá,, .r.,
associação com a Igreja e a arisrocracia (preparando assim o período se-
guinre), e não em ruprura com elas, uma vez que tais empreiradas reforçam
seu poder local.
É muitas vezes em nome da vontade de Deus que carros Magno
quis estabelecer algumas reformas, principarmenre conrra a vingança e o
homicídio, em período de fomes interpretadas como avisos de I* D.,r,
vingadvo (ou seja, justiceiro). Nisso dnha o apoio de bispos - sobre os
quais, por outro lado, exercia um verdadeiro magisrério. Mas, no conjunto,
o alto clero' recrutado em grande parte na aristocracia53, não srrgá. 
"o,imperadores uma reforma social radical. o alto crero entend" po, "d.f.r"
dos pobres'l antes de rudo, a defesa das propriedades da Igreja (das quais
uma das justificarivas, um dos usos efetivos , é a ajudaaos indrg"rrtes). sob
o rómlo de "jusriça" ou de "concórdia,l de 
,,paz', 
social,o .1.- efetua um
uabalho de regulação bastante conformista, como yemos nos casos da
servidáo e do casamento. Existe um casamento cristáo, exogâmico, indis-
solúvel, no qual se constitui uma verdadeira a
a obediência da esposa5a. Há uma servidáo .#[iff:::T'i"irTH
de escravidáo, na qual o servo possui verdadeiros ãir.iro, sociais (pater-
nidade, propriedade) e seria quase como um "vassalo de nível inferior,l
segundo as palavras de Benjamin Guérard (te«) 
- mas bem inferior, de
qualquer forma, pelo rabalho. Mulheres e servos (ou camponeses em
geral) terão, portanro, uma necessidade natural de possuir^proretores
("Cavaleirescos") e vocaçáo a obedecer-lhes.
valorizados como goverrlantes cristãos, os reis carolíngios colocam
no topo de seu programa de comunicação polírica a defesa dos fracos:Jean
Flori estudou bem essafunçrío "Caualeiresca', d.o rei55.M"r, *t..uo_*. 
"dizer, realizam esse governo cristáo "à moda germânica'l da mesma maneira
que os reis germânicos faziam a guerra: dando o exemplo aos ourros aris-
rocraras, e persuadindo-os a agir da mesma forma. Em outras palavras,
esses reis carolingios dividem sua carga com seus 6eis de alra posiçáo,
52 I)a qual podemos medir.merhor o poder e a permanôncia a parrir dos rrabalhos deKarl Ferdinand Werner, Naissarr, à, h ,oblrrrr..., . lgr"l.n..rr. a. n.gr". iJ"r, 
"a.La Royauté et les elite.r...
A excecáo famosa do arcebispo Ebbon de Reims.
Ver Régine leJan, Fantille et pauuoir..., e Femmes, pouuoir et société...
J ean Flori, L'I déo logie du glaiu e..., pp. 7 9 -BZ.
53
54
t5
),20
121
A Cavalaria
bispos e abades, condes e vassalos reais. O que quer dizer que eles abando-
nam de fato uma boa parte do poder efetivo, com o risco de se enfraque-
cerem na defesa dos fracos.
Sob Luís, o Pio, o governo se convence, ou finge crer, que os con-
des, os vassalos reâis, os bispos, os abades têm de fato uma vocaçáo namral
à defesa dos pobres. Nesse senrido, temos a bela "prescriçáo" (capirulário)
de 823-82556 que reafirma a funçáo "ministerial" da realeza, segundo a
visâo do papa Gregório, o Grande: os reis sáo os minisrros de Deus, o que
os legirima ranro quanro a sagração, colocando-os sob um controle maior
da Igreja. Em seguida, Luís, o Pio, ordena a seus fiéis das duas ordens,
eclesiástica e laica, que o ajudem a exercer esse "ministério'] a defender as
igrejas e os pobres, e romar, assim, sua parte de responsabilidade, mas
rambém de força e de prestígio, ao mesmo rempo em que não prevê ava-
liar seus aros. Isso náo seria mais do que um voto piedoso de Luís, o pio?
Náo seria uma renúncia a enfrentar os poderosos e seus abusos ? Mas mesmo
assim, esses poderosos, como os reis, realizam um verdadeiro trabalho de
regulaçáo social57. observamos aqui a ambivalência durável tanto do
"senhorio", como da monarquia e da "cavalaria" justiceira.
A Igreja esrá, ao mesmo rempo, denrro do Esrado carolíngio e
associada a ele. Juntos, Igreja e Esrado regem a sociedade tendo em yisra
sua salvaçáo. Nesse sentido, o alto clero faz com que suas reformas discipli-
nares sejam promulgadas pelos imperadores: regras de cônegos e de mon-
ges, interdiçáo ao porre de armas por todo o clero (a t r-s t s). Daí termos
sob o reino de Luís, o Pio, o desenvolvimento de uma reflexáo do clero
sobre as duas milícias. Impossível náo nos derermos um pouco aqui, mesmo
que o impacto dessa noção, de origem romana, sobre as guerras. nobres
pareça limitado. É muito mais seu impacro sobre as fo.rt", (eclesiásticas)
e, a parrir disso, sobre certas hisrórias recentes que exige uma explicaçáo.
Por vezes se crê que os caroiíngios quiseram resraurâr a milícia romana, tal
a frequência com que as fontes de então evocam com regularidade o "cin-
turáo'l o "boldrié" (cingulurn); ainda que as duas milícias não represenrem
uma reforma do Estado carolíngio, mas uma reoria da Igreja - .o- ,o",
lacunas, seus hiatos, suas contradiçóes, mas também ,.u, oro, efetiyos.
O elitismo carolíngio
Aparrirdo Baixo-Império, com Diocleciano, observamos de fato
o aparecimento de duas milícias paralelas. Uma civil, outra militar, ambas
caracterizadas pelo mesmo dpo de insígnias e disciplina. Naprática, foram
os bárbaros francos ou godos que povoaram a milícia em armas. Estes
levam sua germanidade fara a milícia ao mesmo rempo em que absorvem
apenas parcialmente o caráter romano desta. Tratava-se de um sistema do
século IV à sua maneira ainda estatal, ao qual, por volta de 390, no impé-
rio de Teodósio, vem se juntar a ideia de que o clero, privilegiado no plano
judiciário e fiscal, forma uma rerceira milícia. Além disso, o próprio texto
das epístolas de Paulo desenvolve a ideia do combare cristáo, do serviço
combatente de Deus (Deo rnilitare), do esforço e da glória que é ser um
"adeta do Cristo'l até o martírio. A suas observaçóes sobre a quescáo, Paulo
acrescenta "[...] q". nenhum daqueles qu€ servem fassim] a Deus se en-
volva em assuncos do século"58.
No entanto, no rempo da virtude dos sanros morros (em face do
número menor de lutadores vivos, salvo asceras aracados pelo demônio) e
das guerras de povos de hostes (mesmo que seus chefes, como Childerico,
tivessem insígnias do exército romano), a partir do século I a insrituiçáo
das duas milícias romanas e a meráfora cristá da milícia do terceiro tipo
sofrem um ofuscamento. Procuramo-las em váo na obra de Gregório de
Tours, e elas aparecem pouco em Venâncio Fortunato. Nos anos 810, no
entanto, assiste-se a um verdadeiro renascimento carolíngio da ideia ro-
mana das milícias.
Ou melhor, remos a sua reciclagem. No espíriro dos autores do sé-
culo IX, a fusáo das milícias civil e militar permanece escabelecida - como
ela é no Imperio bizantino,

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