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Estudamos duas maneiras principais de analisar a linguagem humana. A primeira, a Fonética, tinha seu enfoque nas unidades sonoras mais elementares da fala oral. Identi�camos, nesse âmbito, os traços que constituem os sons, partindo de conhecimentos da Física e da Biologia para entender sua produção, propagação e recepção. Assim, conseguimos descrever esses sons de maneira objetiva. Na aula passada, conhecemos com mais profundidade a segunda maneira: a Fonologia. Nessa área do conhecimento linguístico, olhamos os idiomas e sua utilização das amplas possibilidades de sons, aprendendo a reconhecer formas usuais em cada grupo de falante. Nesta aula, veremos que essas formas não são tão rígidas porque sua produção pode variar dependendo da faixa etária do falante, do gênero, da sua localização geográ�ca e do estrato social ao qual pertence. Além disso, expandiremos para a próxima aula, quando faremos algumas re�exões levando em consideração também os conhecimentos da Sociolinguística. • Descrever a distribuição complementar e a variação livre; • De�nir o arquifonema; • Explicar alguns processos fonológicos. Vimos que o elemento de estudo da fonologia é o fonema, uma unidade distintiva de uma língua, e que, como mencionamos também acima, as realizações às vezes podem ser múltiplas sem que, no entanto, haja mudanças de sentido (se não se lembrar desse conceito, reveja, na última aula, nossa explicação sobre os alofones). Mas não é porque pode haver variação que estamos impedidos de estudar e sistematizar essas possibilidades. Quando falamos em alofones, entendemos que certos sons, próximos em alguns traços linguísticos, podem ser equivalentes na produção de determinada palavra. Demos o exemplo, na aula passada, da palavra mar, em que o som de r pode ser descrito como [h], [X], [ɹ] e [ɾ] (reveja a tabela da IPA e tente comparar esses sons). Atenção! Aqui existe uma videoaula, acesso pelo conteúdo online Lembre-se de que estamos tratando aqui de uma análise fonológica e, por isso, restringindo-nos aos elementos puramente linguísticos. Logo, há equivalência dessas formas na produção da palavra que estamos estudando, não sendo possível hierarquizá-las com base em fatores sociais, por exemplo. Repare também que nosso exemplo apresenta essa variação em �nal de palavra, mas esse não é o único contexto em que tal relação ocorre. Esse tipo de fenômeno aparece em �nais de sílabas, e não somente em �nais de palavras. Pense, por exemplo, nas palavras Marta, mirtilo, mortal, camurça (nesses casos a consoante é sucedida por oclusiva ou fricativa surda, e isso faz diferença na fala, como veremos melhor no item que trata da assimilação). Fonte: Undrey / Shutterstock Mas é preciso chamar a atenção a outro fator: até aqui, essa variação livre apresenta essas quatro formas equivalentes na produção da consoante em �nal de sílaba. Você consegue pensar em um exemplo em que a consoante está em início de sílaba? Podemos usar como exemplo as palavras carro e caro. Essas, aliás, podem ser descritas fonologicamente como pares mínimos porque a variação entre os quatro sons não é mais livre. Para falar caro, inevitavelmente é preciso usar o tepe — [ɾ]. Qualquer dos outros três sons vai ser a produção sonora de carro. Nesse contexto, ainda será possível produzir com uma vibrante [r], que pode ser associada a falantes de faixa etária mais avançada. Percebe a diferença entre essas situações? Voltemos, então, à sistematização do uso dos alofones. Além da variação livre, existe uma outra forma de relação entre eles na organização das palavras: a distribuição complementar. Vamos pensar na distribuição dos fones [t] e [t∫] em palavras do português, especialmente na produção do sudeste do país. Pronuncie as palavras: • Tanque; • Tato; • Tempo; • Teto; • Tipo; • Time; • Tolo; • Tombo; • Tuba; • Tumba. Considerando o modo de articulação (a maneira como som é produzido), você notou que em quase todos os contextos o primeiro som era produzido como [t]? Apenas em duas palavras ocorria uma diferença signi�cativa, você reparou? Nas palavras tipo e time, a primeira consoante é produzida como [t∫]. A partir desse exemplo e com base no nosso conhecimento linguístico prévio, restringindo nossa análise à fala típica do sudeste do Brasil, podemos concluir que onde ocorre [t] não ocorre [t∫] e vice-versa, tendo em vista que esses dois fones acontecem em distribuição complementar. Fonte: Axel Bueckert / Shutterstock Essa conclusão decorre do fato de que, estando diante de [i] e suas variantes (incluindo aí aquelas que não são grafadas nas entradas lexicais, como é o caso de atmosfera), /t/ é realizado como [t∫]. Nos outros contextos, a fala utilizará [t]. Você reparou que alguns sons foram classi�cados como fonemas, mas em determinados contextos perdem o traço distintivo e são utilizados com certa equivalência e sem alteração de signi�cado? Reveja, por exemplo, o caso da palavra mar. Podemos pensar também em outras situações, como dos sons [s, z, ∫, ʒ]. Conseguimos identi�car no português os pares mínimos assa, asa, acha e haja, correto? Com esses exemplos, é possível a�rmar que os sons [s, z, ∫, ʒ] em posição intervocálica apresentam contraste fonêmico e, por isso, são considerados fonemas. Assim também, em início de palavra, há igualmente contraste fonêmico desses sons, haja vista os exemplos (ele) seca, Zeca, (ele) checa e jeca. Atenção! Aqui existe uma videoaula, acesso pelo conteúdo online A�rmamos que esses casos comprovam que se trata de fonemas porque, havendo troca dos sons, o sentido também muda. Mas não encontramos esse mesmo resultado procedendo com a comparação em �nal de sílaba. Note que, para a palavra mês, encontramos como formas possíveis de realização: ['mes] ou ['me∫] mês; [mezbu'nitʊ] ou [meʒbu'nitʊ] mês bonito; e [mezatra'zadʊ] mês atrasado. Mesmo com as variações apresentadas, conseguimos entender que todas fazem referência à palavra mês. Comentário Com esses exemplos, podemos concluir que, no português brasileiro, os fones [s, z, ∫, ʒ] são fonemas em posição de início de palavra e entre vogais, mas não apresentam o mesmo contraste fonêmico em �m de sílaba. A esse último caso, então, damos o nome de neutralização, tendo em vista que o que ora era um contraste foi neutralizado na posição �nal de sílaba. Quando ocorre neutralização de sons que representam fonemas em uma língua, descrevemos fonologicamente com um arquifonema, um símbolo que indica a perda de traço fonêmico e que, por isso, em determinado contexto linguístico, há dois ou mais sons que são possíveis. No caso descrito acima, o arquifonema que indicará tal possibilidade é /S/. No caso do exemplo que também demos nessa aula (a análise de mar), temos também uma neutralização. O arquifonema que representa esse caso é /R/. Continuemos estudando os contextos fonológicos e como eles podem afetar a realização dos sons. Um fone pode ser afetado de forma a tornar-se mais parecido com um ou mais sons próximos. Esse processo é nomeado assimilação. Também é possível que haja o caminho inverso e a unidade sonora modi�que-se, diferenciando-se de um ou mais sons que estejam perto. A esse processo dá-se o nome de dissimilação. Uma vogal, por exemplo, pode também se modi�car se estiver em um contexto átono. A esse tipo de processo, chama-se redução. Vamos estudar mais detidamente a assimilação. Fonte: Photographee.eu / Shutterstock Quando se fala em assimilação como um processo fonológico, refere-se genericamente à aquisição de características que determinado som sofre por conta de outro(s) som(ns) que o rodeia(m). Esse processo pode ser total, como no exemplo em Fiorin (2008, p. 48), que descreve o su�xo transitivizador em ainu, uma língua falada no norte do Japão: mak-a (abrir) ker-e (tocar) pis-i (perguntar) pop-o (ferver) tus-u (agitar) tas-a (cruzar) per-e (rasgar) nik-i (dobrar) tom-o (concentrar) yup-u (apertar) No caso descrito acima, temos um exemplode assimilação total porque a vogal que funciona como su�xo é uma cópia exata da vogal da raiz. É mais comum, no entanto, que ocorra uma assimilação parcial, que pode ocorrer de várias maneiras. Vamos observar algumas. Uma das formas mais recorrentes de assimilação é aquela em que determinado segmento adquire o mesmo ponto de articulação de outro elemento sonoro. Vamos pensar nas palavras campa, canta e canga. Essas palavras apresentam uma consoante nasal no �nal da primeira sílaba. Há certa variação de pronúncia (que veremos com mais propriedade no próximo item), mas vamos considerar que essa consoante é pronunciada. No caso da palavra campa, teremos como transcrição ['kãmpɐ]. Já no caso de canta, ['kãntɐ]. E, no caso de canga, ['kãŋgɐ]. Fonte: Africa Studio / Shutterstock Observemos, assim, que a consoante nasal se modi�cou de acordo com o contexto. Como [p] é um som bilabial, o segmento nasal que o antecede adquiriu esse traço. Da mesma forma, [t], sendo um segmento coronal – ou seja, ocorrendo com a ponta da língua como articulador ativo que se move em direção ao articulador passivo – também in�uencia o som nasal que o precede. E, por último, a oclusiva velar sonora [g] contamina a nasal anterior com seu traço dorsal. Continuemos observando as palavras citadas no item anterior. Muitas vezes, no português brasileiro, a realização desses vocábulos não incluirá uma consoante nasal, mas apenas a nasalização da vogal. Assim, nem sempre serão pronunciadas as consoantes nasais, o que pode ser descrito da seguinte forma: ['kãpɐ], ['kãtɐ] e ['kãgɐ]. Esse tipo de processo é muito comum no português, em especial no caso de vogais tônicas precedendo consoantes nasais, como ocorre com as três palavras citadas. Podemos observar, em português, casos em que a fala promove uma certa aproximação entre vogais. Vamos analisar, por exemplo, a palavra Sepetiba, um bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro. É comum ouvir tanto a pronúncia [sepe'tibɐ] quanto [sepi'tibɐ]. O que ocorre, no segundo caso, é uma harmonização vocálica, pois a vogal da sílaba imediatamente anterior à sílaba tônica se apropria da altura da vogal tônica. Assim, de [e], uma média-alta anterior não arredondada, passa-se a [i], uma vogal alta anterior não arredondada. Atenção! Aqui existe uma videoaula, acesso pelo conteúdo online Fonte: YAKOBCHUK VIACHESLAV / Shutterstock 1. Veja o exemplo e indique o que muda nos processos indicados a seguir: [b] —> [G] Ponto de articulação [r] —> [l] Modo de articulação [g] —> [k] [s] —> [v] [u] —> [y] [o] —> [u] [θ] —> [t] [u] —> [ɯ] 2. Explique o que é um arquifonema. 3. Observe esses três grupos de palavras transcritas foneticamente: ['kahtɐ], ['kaɾtɐ]; ['topʊ], ['t∫ipʊ]; e [mas], [ma∫]. Podemos a�rmar que os alofones consonantais indicados podem ser organizados, com base no que estudamos, em: a) Variação livre. b) Variação livre, distribuição complementar e variação livre. c) Distribuição complementar. d) Distribuição complementar, variação livre e variação livre. e) Variação livre, distribuição complementar e distribuição complementar. 4. Explique por que a palavra samba pode ser pronunciada, no português do Brasil, tanto como ['sãbɐ] quanto como ['sãmbɐ]. 5. O caso descrito nesta aula que tratou da assimilação de ponto de articulação pode ser relacionado a uma regra morfológica que se aprende no Ensino Fundamental. Escolha a opção que representa corretamente essa regra: a) Antes de p e t, escreve-se m. b) Antes de p e t, escreve-se n. c) Antes de p e b, escreve-se m. d) Antes de p e b, escreve-se n. e) Antes de d e b, escreve-se n. 6. Descreva a harmonia vocálica que existe comparando as seguintes pronúncias da palavra botijão, sendo em São Paulo, por exemplo, pronunciada majoritariamente como [bot∫i'ʒãʊ], e, no Rio de Janeiro, falada como [but∫i'ʒãʊ]. FIORIN, J. L. Introdução à linguística II: princípios de análise. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2008. SILVA, T. C. Fonética e fonologia do português. São Paulo: Contexto, 2009. • Variação linguística; • Norma culta e dialeto padrão; • Preconceito linguístico. Sugestões de leitura: • CAMARA JUNIOR, J. M. Para o estudo da fonêmica portuguesa. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. Esta obra explora com mais profundidade os estudos fonológicos e apresenta também uma análise sobre a rima na poesia brasileira, comparando, por exemplo, o que compõe uma rima no português europeu e não é encarado desse modo por aqui. • SIMÕES, D. Considerações sobre a fala e a escrita – fonologia em nova chave. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. Esta obra apresenta soluções dentro do conhecimento fonológico para apoio especialmente nas tarefas de alfabetização.