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APOSTILA DE CONCEITOS BÁSICOS DE LINGUÍSTICA Prof. Tommaso Raso Langue e parole O fundador da linguística geral, o suíço Ferdinand de Saussure, propõe uma distinção entre langue, a língua como sistema abstrato, mental e social, e parole, a língua como conjunto de elementos concretos realizados pelos indivíduos. A langue lida com a competência mental do sistema linguístico que os falantes compartilham entre eles. É o fato que uma determinada comunidade compartilha a competência de um código (ou seja, de uma langue) que faz com que os indivíduos daquela comunidade se entendam. A langue é, portanto, um sistema estruturado e em equilíbrio, que sofre lentas mudanças, mas que antes de tudo fica estável. Se assim não fosse, não poderíamos nos entender. Por outro lado, as realizações concretas da língua, como a pronúncia de um som, de uma palavra ou de uma frase, pertencem à parole. Elas são manifestações concretas perceptíveis através dos sentidos (o ouvido percebe a fala e a vista percebe a escrita) e mensuráveis como realizações físicas. São os indivíduos enquanto pessoas concretas que realizam os atos de parole. Em uma interação oral ou escrita, os indivíduos são seres concretos que falam (ou escrevem) elementos concretos da língua. É importante manter distintos os níveis do sistema abstrato e estruturado (langue) e da realização concreta da língua como comunicação (parole), por muitas razões que veremos. A dupla articulação da linguagem Afirmar que a linguagem humana é articulada significa dizer que os enunciados não se manifestam como um todo indivisível. Ao contrário, eles podem ser desmembrados em partes menores, já que constituem o resultado da união de partes menores, que, por sua vez podem ser encontradas em outros enunciados. Vejamos um exemplo: Os violinistas tocavam música clássica Essa sentença pode ser dividida em unidades menores (nós não consideraremos todas as unidades possíveis). Consideremos primeiro as 5 palavras: Os / violinistas / tocavam / música / clássica O falante, para realizar uma sentença como essa, escolhe na sua memória entre os vocábulos armazenados aqueles apropriados para o efeito significativo desejado, articulando-os de acordo com as regras de formação de sentenças em sua língua. Cada vocábulo constitui um elemento autônomo que pode ser usado para compor outras sentenças. Por exemplo, a palavra violinistas pode ser usada em uma frase como aqueles violinistas trabalham na orquestra de Nova Iorque. Continuando a análise, observemos que cada vocábulo resulta da combinação de mais unidades morfológicas, ou seja as menores unidades de significado da língua: Os se divide em o e –s, sendo que o primeiro elemento pode arecer como artigo em outra sentença (por exemplo, o violinista tocava música clássica) e o segundo como plural de nomes ou adjetivos ou pronomes de outras frase (minha-s; roupa-s; nova-s). Portanto em o/os, violinista/violinistas, música/músicas, clássica/clássica-s notamos 4 duplas de palavras que se diferenciam unicamente pelo significado singular/plural que é veiculado pela marca –s. O morfema lexical (ou radical) é o mesmo, enquanto o morfema de número muda. Essa análise pode ser mais refinada: Violin/ista Músic/a Clássic/a Violin/o Músic/o Clássic/o O quadro acima mostra que o radical de violinista e violino de um lado, de música e músico do outro e de clássica e clássico do outro ainda são os mesmos. No primeiro caso, violino e violinista se diferenciam somente por um sufixo que carrega o significado de a pessoa que usa o que o radical indica (nesse caso, o violino). No segundo caso, o sufixo distingue também (mesmo que de outra forma) o significado do radical e aquele de alguém que se ocupa da coisa indicada pelo radical. No terceiro caso, o elemento final distingue apenas o significado masculino e feminino. Isso pode ocorrer também com os verbos: Toc/a Toc/av/a Toc/ar/ei Etc. Todos esses “pedaços” de palavra carregam um ou mais significados que podem aparecer em palavras diferentes de frases diferentes. Esses pedaços (chamados de morfe na sua realização física e de morfemas na sua representação significativa) se definem como as unidades mínimas da língua que possuem significado. A divisão da língua em unidades mínimas portadoras de significado é chamada de primeira articulação da língua. Podemos, portanto, dizer que a língua, em primeiro lugar, se articula em unidades mínimas portadoras de significado. A sentença acima resulta divisível assim: O/s / violin/ista/s / toc/av/am / músic/a/ clássic/a/ Mas ainda podemos dividir a nossa sentença em unidades menores, chamadas fonemas. Essas unidades, de natureza cognitiva, governam a parte sonora, como em: /m/, /u/, /z/, /i/, /k/, /a/ /k/, /l/, /a/, /s/, /i/, /k/, /a/ Os fonemas, que constituem a segunda articulação da língua, são unidades de natureza diferente do morfema. Enquanto os morfemas fazem parte da estrutura morfológica da língua e possuem significado por si (mesmo se, em português, nem sempre podem estar separados de outros morfemas na formação da palavra), os fonemas constituem a estrutura fonológica da língua e não possuem significado. Eles se definem como as menores unidades da língua capazes de distinguir significado. Agora podemos entender porque a linguagem humana é articulada: porque se manifesta em sentenças resultantes da união de unidades menores. E podemos entender porque a articulação da linguagem é dupla. Existem dois tipos diferentes de unidades mínimas: os morfemas e os fonemas. Os primeiros são elementos significativos. São os elementos da primeira articulação: in / feliz / mente Ǿ / feliz / mente feliz / Ǿ in / fiel felic / idade clara / mente Cada elemento possui um significado que pode ser utilizado em outras palavras. Quanto aos fonemas, eles são definidos como a menor unidade capaz de distinguir significados. Pra entender essa definição, pensemos em duplas de palavras que se distinguem por um único fonema (essas duplas são chamadas de “par mínimo”). Alguns exemplos: gala e mala se diferenciam apenas porque muda o primeiro fonema gala e gula se diferenciam apenas porque muda o segundo fonema gala e gata se diferenciam apenas porque muda o terceiro fonema gala e galo se diferenciam apenas porque muda o último fonema Cada fonema pode, portanto, distinguir o significado das palavras, mas o fonema em si não possui significado. Esse tipo de organização em um sistema de dupla articulação é próprio de todas as línguas naturais do mundo. Sua razão de ser está em sua economia: graças a essa característica as línguas humanas podem transmitir o máximo de informação com o mínimo esforço. A economia fica clara se pensamos no esforço de memória devido a casos como homem/mulher, boi/vaca, amar/odiar, ouvinte/surdo comparados com feliz/infeliz, animar/desanimar, cantor/cantora. Na primeira série, muda-se a palavra inteira; na segunda, a parte lexical permanece a mesma e um prefixo ou um sufixo mudam o significado para seu oposto ou para o outro gênero. Imaginem se tivéssemos que usar um vocábulo completamente diferente para o singular e o plural de cada palavra, ou se tivéssemos que usar um vocábulo diferente para cada pessoa verbal ou para cada tempo e modo. Seria um esforço de memória muito maior. Abstrato e concreto Imaginem que a gente tenha uma máquina para medir os sons (isso realmente existe e veremos um pouco como funciona mais pra frente). Graças a ela, nós poderíamos medir a altura, a intensidade, a duração de qualquer som da mesma palavra. Imaginemos agora que uma pessoa diga a mesma palavra (por exemplo, fado) 10 vezes e meça os sons de cada uma das 10 realizações da palavra. O resultado serão 10 realizações diferentes, o seja, cada [f] será diferente daquele das outras 9 realizações,assim como cada [a], cada [d] e cada [o]. Mas isso não significa que nós lidamos com a língua como se tivessem 10 (ou mais) tipos de /f/ ou de /a/ ou de /d/ ou de /o/. Significa apenas que precisamos distinguir um nível abstrato do som (o fonema) e um nível concreto (o fone). De um ponto de vista abstrato, ou seja, de um ponto de vista do código língua, o que importa é que existe em português uma oposição entre, por exemplo, /l/ e /f/ que me permita distinguir entre as palavras /lado/ e /fado/; ou uma oposição entre /d/ e /t/ que me permita distinguir entre /fato/ e /fado/. Essa distinção (ou seja, essa oposição) é pertinente do ponto de vista do código português. Possui o que se chama de "valor fonológico". As diferentes realizações concretas e mensuráveis, ainda que perceptíveis, não possuem a capacidade de distinguir significado e possuem apenas valor fonético. As diferentes realizações do mesmo fonema são chamadas de alofones. Os alofones são fisicamente distintos, mas não geram mudança no nível de sentido se substituímos um pelo outro. A realização concreta é sempre fonética, mas ela é interpretada no nível fonológico, ou seja, enquanto pertinente para distinguir os significados. É isso que me permite de associar a uma sequência concreta de sons os fonemas que compõem palavras significativas. O significado de "destino" associado à palavra /fado/ permanece nas mais diversas realizações concretas dos fonemas /f/, /a/, /d/, /o/. Podemos então dizer que um fonema (entidade abstrata e cognitiva) pode ser realizado de infinitas maneiras concretas: /a/ = [a1], [a2], [a3], [an] Isso é verdade também em outros níveis da linguagem. Por exemplo, no nível morfológico, podemos dizer que em português o significado {plural} é ser realizado como {s} em menino-s, como {es} em mar-es, como {is} em caraco-is, etc. Nesse caso, {s}, {es} e {is} são chamados de alomorfes. São formas diferentes que carregam o mesmo morfema, ou seja, o mesmo significado. É importantíssimo distinguir entre o nível concreto e abstrato. Quanto à estrutura sonora do sistema, o nível concreto é realizado através do som (audível e mensurável), que não é necessariamente ligado a um elemento linguístico. O nível abstrato é mental, mas é o que permite codificar ou decodificar o elemento concreto e perceptível dentro de um código. A sequência de sons [»sEdia] é decodificável com o mesmo significado que permite decodificar em português a sequência [ka»deIªR´]. [»sEdia] é decodificável como “o objeto que usamos para nos assentar” por quem possui o código abstrato italiano, da mesma maneira que [ka»deIªR´] é decodificável como o mesmo objeto por quem possui o código abstrato do português. Se não considerássemos esses dois níveis não se explicariam os diversos códigos para designar os mesmos significados. Nem se explicaria a diferença entre a mesma categoria abstrata (o fonema ou o morfema) e suas variadas realizações na mesma língua. O que precisamos sempre considerar é que, para que uma mensagem (um significado ou conjunto de significados) passe da nossa mente para a mente do interlocutor, não é suficiente pensá-lo. Nós humanos não podemos simplesmente pensar o que queremos comunicar e a quem queremos comunicá-lo para conseguir essa comunicação. Precisamos inevitavelmente que o significado (que é abstrato e mental) seja ligado a algo que possa realmente viajar do falante para o interlocutor; algo, portanto, que seja perceptível através dos sentidos. Por isso, o significado linguístico deve ser associado a algo que o “carregue” até seu destinatário. O elemento perceptível da linguagem é em primeiro lugar sonoro. Um conjunto de sons está ligado ao significado que queremos transmitir. Por exemplo, a sequência [»a˙vorI] está ligada ao signifcado que podemos desenhar como: Se trata portanto de uma sequência sonora que é mensurável, realizável através da voz e percebível através de nosso aparato fonador, mas que não é uma sequência sonora qualquer. Ela permite automaticamente ao ouvinte evocar o significado da entidade que desenhamos acima. Mas a ligação entre a sequência sonora (ou seja, a parte concreta, mensurável e transmissível) e o significado (que é abstrato e mental, mas que constitui o verdadeiro objetivo da transmissão) é puramente convencional. É a decisão de um grupo de indivíduos (que compõem uma comunidade linguística) que estabelece essa ligação. Cada comunidade estabelece uma ligação diferente entre o significado (mais ou menos o mesmo) e o elemento concreto que o realiza (que muda muito). Eixo sintagmático e eixo paradigmático Em um ato linguístico, os sons são dispostos em uma sequência linear: um depois do outro. Observe-se que, dessa maneira, os sons perdem a sua individualidade e se tornam uma "cadeia falada". Nós não falamos c-a-n-t-o mas canto. A nasalização de canto é diferente daquela de campo. A primeira é um som alveolar enquanto o segundo é um som labial. Isso porque os sons se influenciam um com o outro. Em canto, depois da vogal nasal, segue um som dental (os dentes ficam perto dos alvéolos); em campo depois da vogal vem um som labial. Essas relações são definidas sintagmáticas e são relações que ocorrem entre elementos que estão em relação de co-presença. Consideremos agora as palavras: esbórnia escola esmola espólio estória Nesses casos, entre os sons /es/ à esquerda e /ɔ/ à direita, ou seja no mesmo contexto, aparece um som sempre diferente: /b/ em esbórnia, /k/ em escola, /m/ em esmola, /p/ em espólio, /t/ em estória. Esses sons que podem comparecer em um mesmo contexto mantêm entre eles uma relação paradigmática, ou seja relações em que a presença de um implica a ausência dos outros. Se eu realizo um desses sons não posso realizar os outros. Todos os sons que aparecem em um mesmo contexto têm algo em comum (por exemplo, todos os sons em questão formam uma classe, que se chama oclusiva, e que tem propriedades similares). Mas tanto as relações sintagmáticas quanto as relações paradigmáticas não acontecem somente entre sons. Observem as expressões seguintes: minha amiga bonita meu amigo bonito meus amigos bonitos minhas amigas bonitas Nessas expressões há relações sintagmáticas entre o a de minha, o a de amiga e o a de bonita; entre o u de meu, o o de amigo e o o de bonito; entre o u e o s de meus, o o e o s de amigos e o o e o s de bonitos; etc. Observem-se os casos seguintes: o livro esse livro aquele livro Entre o, esse e aquele têm relações paradigmáticas, porque, realizando um deles, não é possível realizar o outro: *o esse livro *esse aquele livro Observemos as formas do imperfeito de amar: (eu) amava (tu) amavas (ele) amava (nós) amávamos (vos) amáveis (eles) amavam Essas formas têm uma parte em comum (amav-) e as desinências. Essas desinências têm relações paradigmáticas entre elas. O signo linguístico Uma palavra é um signo. Também uma sentença é um signo, ainda que mais complexo. O signo é a união de um significado e um significante. Se pronunciarmos a palavra livro, essa unidade é formada por um significante (que é a sequência de fonemas que guia a produção da sua forma sonora) e por um significado, que é a representação mental que temos de "livro". Note-se que o significado não é o objeto, a coisa "livro", mas o "conceito" de "livro". Significado e significante são unidos e não podem ser separados, como os dois lados de uma folha ou de uma moeda. Essas considerações valem mesmo para a representação gráfica de uma palavra: na forma escrita livro, essa unidade é igualmente formada por um significante (a sequência de fonemas à qual corresponde a sequência de grafemas da palavra) e o significado. O signo linguístico pode ser representado da seguinte maneira: significante /livro/ significado O signopossui várias propriedades. Entre elas: 1. A distintividade. O signo pato se distingue do signo mato ou dos signos pito, paro e pata. 2. A linearidade. O signo se estende no tempo (se for falado) ou no espaço (se for escrito). Isso implica uma sequência, um antes e um depois. Por exemplo, mala tem um significado diferente de alma, mesmo se os elementos são os mesmos: a sequência em que os elementos são dispostos é diferente. Assim, dizer Marcos ama Maria tem um significado diferente de dizer Maria ama Marcos. 3. A arbitrariedade. O signo é arbitrário no sentido que não existe nenhum motivo "natural" que determine a associação do significado "livro" ao significante /livro/. Tanto é que em outras línguas o mesmo significado é veiculado por outros significantes (book, no inglês, kitab em árabe, etc.). As únicas possíveis exceções à arbitrariedade são as formas onomatopaicas. Fonética e fonologia Comecemos por uma explicação básica do primeiro nível descritivo da lingugem: o nível fonético-fonológico. Olhemos logo para a diferença entre a fonética e a fonologia. A fonética é a disciplina que estuda os sons humanos assim como eles se manifestam concretamente, ou seja, como são concretamente executados pelo aparato fonatório humano ou recebidos pelo aparato acústico humano. Eles podem também ser medidos por equipamentos apropriados. Os sons de uma língua podem ser representados segundo o alfabeto fonético entre colchetes e o símbolo ’ indica que a sílaba seguinte possui acento. A transcrição fonética das palavras casa e vasa é [’kaz´] e [’vaz´]. A fonologia é a disciplina que estuda como os sons são representados mentalmente e como eles se agrupam pela capacidade de atribuir distinções de significado às palavras. Para compreender isso, examinemos as palavras chocar e tocar, que são representadas foneticamente como [So’kah] e [to’kah]: o primeiro som de chocar (que na escrita é representado com dois símbolos gráficos, ch) é transcrito pelo símbolo [S] do alfabeto fonético. O primeiro som de tocar, por outro lado, é representado no alfabeto fonético por [t] e no alfabeto gráfico por t. Uma comparação entre a transcrição dessas palavras – [So’kah] e [to’kah], respectivamente – nos mostra que elas se distinguem unicamente por um som e possuem a mesma estrutura acentual. Por esse motivo, chocar e tocar constituem um par mínimo, ou seja, um conjunto de palavras com significados diferentes que se diferem por um único som. Note que a alternância entre esses sons é suficiente para distinguir o significado dessas palavra. O par mínimo formado por chocar e tocar mostra que os fones [S] e [t] têm representações mentais diferentes e, portanto, correspondem a fonemas distintos: o /S/ e o /t/. Note também que a representação fonológica de um som ou de uma palavra é feita entre barras oblíquas, como em /So’kah/ (chocar) e /to’kah / (tocar). Observemos agora os sons [t] e [tS]. O primeiro é o som inicial de teto; o segundo o som inicial de tchau. Em português, com a exeção dessa palavra de origem estrangeira, o som [tS] não distingue significados. Uma prova disso é o fato de que a palavra tia é pronunciada como [‘tiª́ ] em algumas partes do Brasil e como [‘tSiª´] em outras partes, mas são sempre entendidas como variações da mesma palavra. De fato, apesar da evidente diferença de pronúncia entre elas, nenhum falante de português pensa que [‘tSiª´] e [‘tiª´] têm significados diferentes. Isso mostra que os sons [t] e [tS] possuem, em português, a mesma representação mental, apesar da diferença acústica entre eles. Ao contrário, a diferença entre [p] e [b] – que do ponto de vista acústico é bem menor que a diferença entre [t] e [tS] – é mentalmente uma diferença mais significativa. Assim, [‘pikU] e [‘bikU], [‘past´] e [‘bast´] são entendidas como palavras diferentes (e não como variações da mesma palavra) somente porque no lugar de um [p] há um [b]. O objeto da fonética são os fones. Um fone é um som concreto. O objeto da fonologia é o fonema, ou seja, uma representação mental de um som que é capaz de distinguir significados. A fonologia estuda, por assim dizer, a dimensão cognitiva do som. De fato, apesar de todos os seres humanos terem as mesmas potencialidades fisiológicas para produzir e escutar sons, sabemos que um brasileiro, um italiano ou um chinês não conseguem com a mesma facilidade produzir todos os sons nem decodificá- los quando os escutam. O que acontece é que tanto o aparato fonatório quanto o aparato acústico são comandados pela nossa cognição, e essa cognição é “moldada”, a partir do nosso nascimento, de diferentes maneiras, em diferentes lugares. A cognição de um brasileiro é moldada diferentemente daquela, por exemplo, de um chinês. Assim, a cognição brasileira é moldada para diferenciar claramente os sons [r] e [l], enquanto a cognição de um chinês não o é. A cognição de um italiano é moldada para diferenciar claramente as consoantes intensas (ou consoantes longas) das simples (ou consoantes curtas), e, com isso, diferenciar o significado da palavra /‘palla/ (bola) do significado de /‘pala/ (pá), enquanto um estrangeiro geralmente não consegue nem perceber acusticamente essa diferença, nem mesmo executá-la foneticamente. Portanto, ainda que o aparato fonatório e acústico de todos os seres humanos consiga a princípio produzir e receber os mesmos sons (sendo, portanto, uma capacidade da espécie), nem todos são de fato realizados e percebidos com a mesma facilidade. Os falantes de uma língua produzem com maior facilidade certos sons do que outros e percebem mais facilmente certas diferenças de sons do que outras. Um brasileiro, por exemplo, não tem dificuldade em perceber a diferença entre /‘pãu/ e /‘pau/ mas para um estrangeiro essas duas sequências podem parecer iguais, exatamente como para um brasileiro podem parecer iguais as sequências italianas /‘kasa/ (casa) e /‘kassa/ (caixa) ou as sequências inglesas /‘tin/ (lata) e /‘θin/ (magro, fino). Também é importante notar que as diferentes línguas não possuem os mesmos fonemas. Em outras palavras, um som que é fonema em uma língua pode não ser fonema em outra língua. Assim, enquanto o português considera os sons [t] e [tS] (o som inicial nas duas pronúncias de tia) como duas realizações possíveis do mesmo fonema, o italiano considera esses dois sons como dois fonemas diferentes, e a partir deles diferencia os pares mínimos /‘tinZere/ (tingere, que em português significa ‘tingir’) e /‘tSinZere/ (cingere, que significa ‘cercar’). Enquanto em português ou em italiano a substituição do som [t] pelo som [θ] em uma palavra não muda o seu significado, em inglês essa substituição tem o poder de mudar o significado de várias palavras. Ainda com relação à distinção entre fones e fonemas, vale ressaltar que os fones que o ser humano pode produzir são infinitos, ao passo que os fonemas de cada língua são limitados: por volta de 30 em boa parte das línguas. Os fonemas são decididos autonomamente em cada comunidade de falantes, ou seja, em cada língua. Enquanto o português diferencia como fonemas /ã/ e /a/, por exemplo, o italiano percebe os sons [a] e [ã] como diferentes realizações do mesmo fonema /a/. Ao contrário, enquanto o italiano percebe como diferentes fonemas /t/ e /tS/, o português não atribui aos sons [t] e [tS] o poder de diferenciar significados. Essa é uma das razões que torna difícil aprender uma língua estrangeira quando o cérebro de um falante está já moldado e portanto acostumado a agrupar cognitivamente os fones em fonemas. As distinções que são importantes na língua que queremos aprender e que não são importantes na língua que falamos são as distinções mais difíceis. Por esse mtoivo, é comum ouvir um brasileiro ou um italiano que pronunciam a palavra think do inglês como se fosse tink ou sink. Isso deve-se ao fato de que tanto o portuguêsquanto o italiano possuem os fonemas /t/ e /s/ mas não possuem o fonema /θ/ do inglês. Mesmo dentro da mesma língua, um fonema pode ser realizado por mais de um fone, em função de fatores diversos. Entre os mais importantes, há o fator diatópico (geográfico) e o fator contextual (o contexto fonético criado pelo som imediatamente antes e imediatamente depois daquele que queremos pronunciar). É sabido que em, Belo Horizonte, a palavra tia é pronunciada como [‘tSiª´], ao passo que, em outros lugares do Brasil, pronuncia-se [‘tiª´]. Essa é uma diferença diatópica, ou seja, geográfica. Outro exemplo de variação diatópica é a pronuncia carioca do s em final de sílaba ou de palavra. No Rio de Janeiro, o s em posição final é realizado como [S], da mesma maneira que primeiro som da palavra chocar [So‘kah]. Quando dois fones são usados para realizar o mesmo fonema, são chamados alofones. O [S] final da pronúncia do Rio, assim como o [s] usado em Belo Horizonte, são alofones de /s/, assim como os fones [tS] e [t] são alofones de /t/. Os exemplos anteriores mostram a variação em função do fator diatópico. Examinemos agora a variação em função do contexto fonético de ocorrência de um som. Em primeiro lugar, note-se que, o fonema /s/ é pronunciado como [S] no Rio somente em contextos fonéticos específicos: em final de palavra (asas, paz, etc) ou em posição final de sílaba seguido de consoante (amigos, casca, etc). Por outro lado, quando em início de palavra, o fonema /s/ é pronunciado sempre como [s] (são, sinal, etc). Assim, a variação entre [s] e [S] na pronúncia carioca trata-se de uma variação contextual. Também na pronúncia de Belo Horizonte podem-se notar variações em função do contexto fonético em que um som ocorre. O fonema /t/, por exemplo, é pronunciado como [tS] somente quando é seguido pelo fone [i] (tia, Sebastião, leite, etc). Por outro lado, quando se encontra diante das demais vogais, o mesmo fonema é realizado como [t] (tatu, tomar, até). A explicação para isso é a de que a vogal [i] é pronunciada com a língua muito próxima ao palato duro (o ‘céu da boca’) e na parte anterior da boca (próximo aos dentes). Assim, em palavras como tia, forte, arte e tirar, em que o fonema /t/ é imediatamente seguido por um [i], o /t/ assimila uma das características do som que o segue, sendo realizado pelo som [tʃ], que se pronuncia colocando a língua em contato com o palato. Esse processo chama-se assimilação. A palatalização do /t/ diante do fone [i] é um caso de assimilação regressiva, porque o som posterior gera um efeito no som anterior. Também há casos de assimilação progressiva, em que o som anterior influencia na realização do som posterior.