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POÉTICAS HÍBRIDAS E INTERTEXTUAIS AULA 6 Prof. Marcel Albiero da Silva Santos 2 CONVERSA INICIAL Na aula passada, discutimos o conceito de hibridismo. Vimos a história da palavra e do conceito e sua apropriação contemporânea por autores como Stuart Hall e Donna Haraway. Pudemos acompanhar, nesse percurso, como o termo híbrido se constituiu com forte carga pejorativa e negativa nos primórdios do ocidente, de maneira que, em detrimento do híbrido, tenha-se valorizado o puro, o idêntico a si mesmo – enfim, a identidade. Essa carga depreciativa do híbrido, bem como o valor positivo dado à identidade, chega até a Modernidade exercendo forte impacto político e cultural: tanto a noção de sujeito universal do Iluminismo como as identidades nacionais por muito tempo gozaram de hegemonia. Atualmente, porém, experimentamos uma ampla crise da noção de identidade, de maneira que o conceito de híbrido tem sido resgatado e passa a ser valorizado positivamente, servindo de ferramenta para crítica política, cultural, social e estética. As artes contemporâneas exprimem essa apropriação atual do hibridismo, tirando daí sua potência, como é o caso da poética de Ai Weiwei. Discutimos as relações entre noções de hibridismo, transdisciplinaridade e intertextualidade. Vimos que esses conceitos possuem pontos de intersecção, o que fica bastante evidente quando analisamos as poéticas artísticas. O hibridismo liga-se à transdisciplinaridade quando as poéticas híbridas assumem seu papel ético, político e cultural de dar voz às minorias silenciadas, e ele se liga à intertextualidade quando as poéticas híbridas discutem a influência da tradição e experimentam prazer em dissolver as fronteiras entre os gêneros artísticos, criando obras que são verdadeiros híbridos de linguagens. Na presente aula, discutiremos o tema possibilidades de criação poética por meio de diferentes manifestações artísticas: imagéticas, escritas, sonoras e corporais. Nosso objetivo será mobilizar os principais conceitos discutidos ao longo dessa disciplina para pensar e interpretar casos concretos de poéticas híbridas e intertextuais da arte contemporânea. A aula será estruturada da seguinte forma: inicialmente, introduziremos os conceitos de jogo, símbolo e festa propostos por Gadamer para pensar a situação da arte contemporânea. Este recurso conceitual nos permitirá examinar algumas possibilidades e/ou elementos de poéticas híbridas e intertextuais contemporâneas que serão apresentadas – instalações artísticas, happening, 3 performance e poética do concretismo. Finalizaremos a aula com uma breve reflexão de conjunto sobre a disciplina de Poéticas híbridas e intertextuais. TEMA 1 – GADAMER E A ARTE COMO JOGO, SÍMBOLO E FESTA No ensaio escrito por Gadamer em 1974, A atualidade do belo: arte como jogo, símbolo e festa (2011), o filósofo propõe três conceitos para pensar a situação da arte contemporânea: jogo, símbolo e festa, que discutiremos brevemente a seguir. Gadamer propõe esses conceitos como meios de pensar a intertextualidade na arte. A arte contemporânea é vista por ele como um esforço criativo que, a um só tempo, se contrapõe à arte do passado, mas também retira dela sua própria força, seus estímulos e direções. Anteriormente, vimos que a atividade produtiva desemboca na obra, sendo a técnica o tipo de saber especificamente produtivo (um saber-fazer ou poder-fazer) que permite aos seres humanos criarem obras. Gadamer (2011) recorda que desde os gregos a noção de obra implicava descolamento ou autonomia em relação ao artista ou ao técnico que a criara por meio de seu saber-fazer. Uma vez criadas as obras de arte sobrevivem aos artistas, podendo ser interpretadas até mesmo contra ou além das intenções e propósitos de seu criador. De todo modo, desde a Antiguidade até o século XX, a obra de arte era um ponto de referência das produções artísticas e da reflexão sobre a arte, de maneira que, basicamente, poderíamos pensar que há arte onde houver uma obra de arte, onde houver algo duradouro, estável, que sobreviva ao saber empregado em sua criação. A arte contemporânea, porém, subverte de muitas maneiras o conceito de obra, tornando difícil a tarefa de quem queira ainda definir a arte. Gadamer (2011, p. 163) questiona: Como se pretende compreender aquilo que os artistas de hoje e certas direções da arte atual designam precisamente como antiarte — o happening? Como se pretende compreender a partir daí o fato de Marcel Duchamp apresentar repentinamente um objeto de uso, isolando-o, e, com isso, exercer uma espécie de estímulo estético de choque? Não se pode simplesmente dizer: “Que tosco disparate”! O filósofo menciona dois casos da arte contemporânea justamente de poéticas híbridas e intertextuais, que implicam um questionamento radical da noção central de obra: o happening e a poética dadaísta de Duchamp. O primeiro caso, como ainda discutiremos melhor, trata de uma manifestação artística que 4 não possui materialidade alguma, consistindo numa ação que costuma integrar os espectadores como copartícipes. Já a menção a Duchamp alude aos ready- mades, objetos de uso que são apresentados fora do contexto utilitário habitual, como obras de arte. Em ambos os casos, a noção tradicional de obra de arte vacila. Gadamer (2011) propõe então os conceitos de jogo, símbolo e festa como operadores para que possamos pensar as poéticas híbridas hoje para além da noção tradicional de obra de arte. Tais conceitos designam aspectos fundamentais da existência humana, tornando-se particularmente evidentes no caso das produções artísticas. Para Gadamer, a noção de jogo indica uma função elementar da vida humana, de modo que a cultura não pode ser pensada sem tal noção. A ideia de jogo indica um aspecto fundamental ou elementar da vida porque esta é essencialmente movimento. Desde os gregos, a vida em geral foi pensada como automovimento, ou seja, como algo que se move por si só, como algo que é transformação, ação no tempo. A vida (e a vida humana em particular) é, enfim, um constante estar em jogo, algo que está constantemente estabelecendo suas metas e seus desafios e buscando alcançá-las ou resolvê-los. No caso específico da vida humana, o jogo sempre é um jogar-com, ou seja, sempre envolve a participação de outros jogadores. Gadamer (2011) refere-se, enfim, ao fato de que somos animais políticos ou sociais, na célebre definição de Aristóteles: compartilhamos um mundo comum, falamos uma língua e vivemos numa cultura que foram e são estabelecidas socialmente. Nesse sentido, a arte é sempre jogo; ela imita a vida, repete seu jogo de automovimento, convida todos a jogar. Quando visitamos um museu ou quando contemplamos uma obra de arte, saímos transformados da experiência, porque a arte nos convida a jogar e participar do jogo nela proposto. Mesmo no caso do happening, em que não há uma obra propriamente dita, a noção de jogo permite compreendê-lo como arte. O conceito de símbolo vem da cultura grega: indicava o pedaço de vaso que um anfitrião entregava ao seu hóspede, ficando com a outra parte que se encaixaria no caco entregue. Se 30 ou 40 anos mais tarde o portador do pedaço do vaso ou um descendente seu retornasse à casa do anfitrião, poderia ser reconhecido pela junção dos fragmentos e seria considerado digno de hospitalidade. Tratava-se de uma espécie de passaporte antigo. 5 Quando algo é um símbolo, portanto, ele é um pedaço ou fragmento de algo maior, uma parte de uma totalidade. Isso não significa somente que a arte represente a realidade. Pelo contrário: ela pode justamente ser um símbolo do que é meramente possível ou desejável. A arte, enfim, simboliza, isto é, leva o espectador ou intérprete para além de si e da obra ou da ação que experimenta na contemplação. Ela pode,como no caso de um ready-made de Duchamp, nos levar a pensar de outro mundo, para além do utilitário, para além da serventia. Com o conceito de símbolo, Gadamer (2011) pensa na abertura da arte para a construção de mundos possíveis. Por fim, temos o conceito de festa. Gadamer tem em vista, em primeiro lugar, com essa noção, a ideia básica de que a festa é sempre um momento de comunhão, sendo um evento para todos. Essa comunhão não transcorre num tempo qualquer. Nos calendários, normalmente a festa indica um período em que as atividades úteis cessam, sendo uma interrupção do tempo cronológico voltado aos afazeres e cuidados básicos da vida. O tempo da festa, enfim, não é o tempo cronológico, mas, sim, o tempo da celebração. O tempo cronológico ou dos afazeres é sempre um tempo para algo, um tempo calculado, medido e reservado para as atividades do cotidiano, um tempo escasso, um tempo que corre, pressiona e acaba. Já a celebração envolve uma quebra dessa quantificação do tempo. O tempo da festa é um tempo pleno, um estar presente e junto aos outros com quem se festeja. A arte é sempre um convite para a festa e para a temporalidade própria da festa. O tempo para contemplar um quadro não pode ser medido ou quantificado; temos que ficar diante dele o tempo que for necessário para interpretá-lo. Do mesmo modo, uma música pede que a escutemos pelo tempo que ela durar. Uma obra arquitetônica pede que nos demoremos nela, que passeemos e experimentemos seu espaço interior pelo tempo que for necessário para uma experiência satisfatória. Precisamos, enfim, passear sem pressa ao estar em contato com a arte, precisamos nos demorar pelo tempo que for junto dela. A arte nos convida a nos deter e nos demorar, a deixar o tempo escasso do relógio para outro momento. A partir desses conceitos articulados por Gadamer (2011), podemos refletir nas instalações artísticas presentes em muitas poéticas híbridas contemporâneas. É o que veremos a seguir. 6 TEMA 2 – A INSTALAÇÃO ARTÍSTICA A instalação é uma modalidade de produção artística, e não uma escola ou estilo artístico. As origens das instalações remontam ao surrealismo de Kurt Schwitters, com suas montagens Merz; a Marcel Duchamp, com seus ready- mades e obras como 1200 sacos de carvão (1938) e à arte minimalista. No Brasil, nomes importantes são os de Lygia Pape, Hélio Oiticica, Nuno Ramos e Cildo Meireles. É um recurso usado em variados domínios artísticos e sobretudo nas artes visuais. O termo instalação surge na discussão das artes a partir dos anos de 1960. Ainda hoje se discute o que, afinal, é uma instalação. Por exemplo: a chamada land art, arte feita a partir de intervenções humanas na natureza, é uma modalidade de instalação? A assemblage, quando disposta espacialmente em várias obras ou peças integrantes de uma obra, difere-se da instalação ou não? Questões como essas permanecem abertas. De todo modo, podemos identificar algumas características da instalação artística. Em primeiro lugar, é importante notar que as instalações são formas híbridas de produção artística, normalmente conjugando mídias bastante diversas (imagens, vídeos, sons, esculturas, textos etc.) num mesmo espaço. Em segundo lugar, é preciso destacar a importância do arranjo espacial criado. Uma instalação cria espacialidade própria, na qual insere vários elementos ou obras de materiais diversos, de gêneros e linguagens artísticos diversos, criando uma cena que convida o espectador percorrê-la. A instalação pode solicitar que o espectador apenas passeie por ela, pode pedir para que ele se detenha e observe ou ouça algo ou pode também exigir participação mais ativa dele, como tocar ou manipular objetos, esgueirar-se por suas dobras e entranhas etc. Esse espaço pode ser criado tanto dentro quanto fora de um museu. Em terceiro lugar, é digna de nota a experiência sensorial peculiar da instalação; ela pode engajar diferentes sentidos e experiências do espectador – tato, olfato e audição – para além do sentido da visão, que costuma ser o mais solicitado nas artes visuais. A instalação é, em primeiro lugar, uma forma transdisciplinar de produção artística. O contexto no qual o conceito surge foi o das discussões transdisciplinares do feminismo, do Pós-Colonialismo e dos estudos críticos dos anos de 1960. Ela se insere, dessa maneira, no campo das poéticas híbridas e 7 intertextuais. O hibridismo da instalação é perceptível no rompimento de fronteiras entre gêneros artísticos, já que as instalações são híbridos de artes visuais, sonoras, visuais, arquitetônicas etc. A intertextualidade da instalação consiste fundamentalmente no questionamento do conceito de obra. Tradicionalmente, a obra de arte pede apenas para ser passivamente contemplada. Já a instalação mobiliza o espectador de forma mais ativa, solicitando que ele percorra um espaço instalado, um ambiente que se confunde com a própria produção artística. Trata-se de um diálogo com a tradição artística. Os conceitos de jogo e de festa apresentados por Gadamer (2011) são especialmente interessantes para entendermos a instalação como produção artística. A instalação exige do espectador, primeiramente, que ele jogue o jogo por ela proposto. Esse jogo pode, muitas vezes, convocar outras pessoas para jogar junto. É comum que as instalações sejam ambientes que obrigam os espectadores a interagir uns com os outros, ou pelos menos a se observarem uns aos outros. O conceito de festa é particularmente rico para compreendermos a experiência artística proposta na instalação. A instalação cria, arranja ou instala um espaço onde acontece a experiência estética. Esse espaço destacado da instalação é um espaço de festa; há outra temporalidade nele, pois a instalação convida a nos determos pacientemente em seu interior, a nos desligarmos do tempo cronológico. Ela cria uma espécie de templo artístico, um ambiente propício para a reflexão lenta e cuidadosa. Boa parte das esculturas gregas da Antiguidade, por exemplo, encontrava-se no interior dos templos de adoração religiosa, pois o tempo requerido para sua contemplação era distinto daquele dos afazeres diários. A instalação explora esse aspecto arquitetônico da temporalidade, sendo uma espécie de arquitetura temporal da experiência artística. TEMA 3 – O HAPPENING E A PERFORMANCE O happening e a performance (ou arte performática) são poéticas artísticas híbridas que combinam elementos das artes visuais, do teatro e da dança. Muitas vezes, ambos os termos são tratados como sinônimos. De fato, nem sempre é simples distinguir uma modalidade de outra, mas há teóricos e artistas que estabelecem algumas diferenças entre essas poéticas irmãs que tiveram forte influência do dadaísmo e do surrealismo. 8 O termo happening (ou acontecimento-espetáculo) foi cunhado no final dos anos de 1950 pelo artista norte-americano Allan Kaprow para se referir a um híbrido de artes visuais, dança e teatro, normalmente executado em lugares públicos sem roteiro, programa, coreografia ou enredo detalhadamente elaborados de forma prévia; espontaneidade, improvisação e acaso são fatores valorizados nesses eventos artísticos. Os eventos contam, normalmente, com objetos ou instalações dispostos de antemão, de maneira que os espectadores são convidados a fazer parte da cena ativamente, interagindo uns com os outros e com os artistas, tornando-se copartícipes e até mesmo coautores da apresentação ou partes da obra. A distância entre espectador, artista e obra de arte é, desse modo, dissolvida. O artista deixa de ser criador exclusivo da experiência estética e o espectador deixa de ser figura passiva que apenas contempla uma obra de arte, passando a compor ativamente a apresentação. O happening apresenta ainda um aspecto paradoxal para a história da arte: é uma manifestação artísticaque consiste numa simples e fugaz ação que toma rumos bastante aleatórios, não deixando materialidade alguma, não seguindo roteiro ou coreografia estabelecidos de antemão, e não podendo ser reproduzido do mesmo modo em outra apresentação. Trata-se, enfim, de uma modalidade artística que é uma antiarte: uma arte sem obra, uma arte que questiona a obra como centro de referência do que chamamos arte, uma arte que se esgota numa ação efêmera, aleatória e irrepetível. A performance conserva muitas das características do happening, mas talvez possamos encontrar algumas diferenças entre ambas as linguagens artísticas. Um elemento distintivo da arte performática consiste no fato de que normalmente há um roteiro para a apresentação, ou um programa definido. As performances não deixam de contar com boa margem de improviso e aleatoriedade, mas têm propostas políticas e críticas muito bem definidas. Outra diferença reside na interação com o público: ela sempre existe de algum modo, mas nem sempre de forma tão intensa como no caso do happening. Muitas vezes a performance é executada apenas pelo artista, de modo que o público conserva seu lugar mais tradicional de espectador. Mas talvez o elemento distintivo mais importante da arte performática consista na ênfase que se dá ao corpo do artista na apresentação. Este se torna elemento central da manifestação artística, torna-se matéria ou espaço de experimentação estética. 9 Há performers que chegam a colocar seu corpo em risco, como foi o caso do artista norte-americano Chris Burden, que em Shoot, executada em 1971, pediu a um amigo que lhe desse um tiro de fuzil no braço. A performance de Chris Burden acontece em meio à guerra do Vietnã e procurava fazer refletir sobre a violência e a guerra na política e na cultura dos Estados Unidos. Happenings e performances figuram entre os casos mais instigantes e radicais de poéticas híbridas e intertextuais atualmente. Essas formas de arte estão ainda em desenvolvimento, expandindo-se e abrindo novas possibilidades, de maneira que qualquer caracterização que queiramos fazer delas precisa ser vista como provisória e insuficiente. O hibridismo dessas poéticas artísticas mostra-se tanto no cruzamento de linguagens diferentes (dança, teatro, artes visuais etc.) como no propósito transdisciplinar de ligar estética a crítica cultural e política. A intertextualidade aparece, sobretudo, na efemeridade dessas poéticas: elas questionam radicalmente a ideia de obra de arte que marca a tradição artística ocidental. Onde está a obra de arte num happening ou numa performance? No caso desta última, temos ainda a entrada em cena do corpo do artista na arte, questionando a distância entre obra de arte e artista; é o artista como obra ou a obra como ação ou gesto do artista. As noções de jogo, símbolo e festa são bastante promissoras para entender essas poéticas. No que diz respeito ao jogo, sobretudo o happening se insere num registro lúdico, numa convocação para que todos, tanto artistas como espectadores, participem do que está em jogo na arte. Já a noção de símbolo parece ser interessante para pensar sobretudo a performance. Esta possui programa político e crítico para o qual remete o espectador. Trata-se, enfim, de uma forma artística radicalmente simbólica, que funciona como manifesto escrito na própria carne do artista. A noção de festa, por sua vez, nos permite avaliar a experiência característica da temporalidade nessas poéticas. Ambas esgotam-se no gesto, na ação, naquilo que é efêmero e irrepetível, acenando para o caráter finito da vida humana. Temos aqui, afinal, uma obra que coincide com a ação humana ou com o gesto do artista, e não um produto que sobreviverá à atuação humana e continuará disponível para futuros espectadores. A arte do performer coincide com sua execução, não permitindo comercialização ou consumo da arte em larga escala ou em tempos futuros. 10 A performance também nos permite refletir no tempo próprio (isto é, finito) da vida humana e no seu estar em processo, no seu caráter aberto. Há performances que duram muitas horas, dias ou meses, exigindo engajamento completo do artista, não permitindo que ele se separe de sua obra. Muitas performances retratam e tematizam justamente o processo de criação artística, configurando-se como um working in progress, trabalho ou obra em processo de vir a ser, um conceito paradoxal para a estética dos séculos passados. TEMA 4 – O CONCRETISMO POÉTICO A poesia concreta costuma ser estudada na teoria da literatura. Contudo, esse não é um gênero exclusivamente literário; estamos diante de uma produção artística híbrida e intertextual, que conjuga poesia, prosa, imagem, design gráfico e música. No Brasil, alguns dos nomes mais importantes dessa poética híbrida e intertextual são os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e Arnaldo Antunes. Vejamos alguns aspectos da poesia concreta para que possamos discutir suas relações de inter e transdisciplinaridade, hibridismo e intertextualidade artísticos. No Plano-piloto para a poesia concreta, publicado na revista Noigrandes n. 4, em 1958, os irmãos Campos e Décio Pignatari (1965) estabelecem, em forma de manifesto, algumas diretrizes dessa poética de vanguarda. Nesse manifesto, a poesia concreta é designada como uma evolução crítica de formas, como um debate interdisciplinar que envolve a teoria e a história da poesia, a semiótica e a teoria da tradução. A poesia passa a ser vista e criada como uma tensão de palavras-coisas no espaço-tempo, em que a palavra deixa de ser simples veículo de comunicação para se tornar um ideograma que se expande para além da mera comunicação verbal. Dessa maneira, a poesia concreta não abdicaria das virtualidades da palavra, mas avançaria a um domínio não-verbal imagético e fonético, criando o poema como um poema-produto ou objeto verbivocovisual. As referências intertextuais da poesia concreta são notáveis. As formas mais antigas de escrita não eram verbais ou fonéticas. O concretismo resgata, portanto, uma dimensão esquecida desde os primórdios da escrita para fazer a palavra retornar ao status de ideograma, de símbolo visual. Ao mesmo tempo, ao ligarem o som à escrita, os poetas concretistas dialogam com a experiência originária da palavra poética. Nas línguas antigas, num tempo anterior ao do 11 aparecimento da escrita, a poesia não era algo para ser lido, mas, sim, uma experiência cantada. Nesse sentido, o poema O pulsar, de Augusto de Campos, originalmente publicado em Caixa Preta (1975) e relançado na coletânea Viva vaia (1979), nos fornece um interessante exemplo. O poema é composto de palavras-ideogramasque não são formadas apenas por letras, mas também por símbolos visuais (pontos e estrelas). O cantor e compositor Caetano Veloso, próximo dos poetas concretistas, interpretou o poema como uma partitura, musicando-o em seu álbum Velô, de 1984. O poema, de fato, era um experimento verbivocovisual que podia ser lido como partitura de uma composição ou um código a ser decifrado. Saiba mais Confira o texto Augusto de Campos e a interpretação de Caetano Veloso em . Acesso em: 21 out. 2020. Os conceitos de jogo e de símbolo são especialmente interessantes para interpretar as poéticas híbridas da poesia concreta. O aspecto do jogo fica evidente no caso do debate com a tradição da poesia e das artes visuais. Os poemas concretos propõem outra maneira de ver e lidar com as palavras, solicitando do leitor-espectador que ele encontre um caráter de artefato ou de objeto naquilo que normalmente vemos como simples meio de comunicação. Essa poética nos convida, enfim, a jogar um jogo diferente do habitual com a própria linguagem. O símbolo também é um conceito rico de possibilidades no caso da poesia concreta, uma vez queessa poética pretende justamente conferir à palavra o status de símbolo. A palavra, nesses poemas, significa sempre mais do que uma simples palavra. Ela desvela um horizonte imagético e sonoro decisivo na experiência da linguagem nos primórdios da humanidade. TEMA 5 – BREVE REFLEXÃO DE CONJUNTO SOBRE POÉTICAS HÍBRIDAS E INTERTEXTUAIS Ao longo dessa disciplina, estudamos as poéticas híbridas e intertextuais. Nosso objetivo não era, evidentemente, tratar de modo exaustivo o assunto, mas, sim, introduzi-lo. Se depois de ter estudado essas seis aulas você consegue reconhecer elementos de transdisciplinaridade, intertextualidade e hibridismo nas artes visuais, então o principal objetivo foi atingido. Numa área de https://youtu.be/NoEiSnuK70c 12 estudos complexa e vasta como a das poéticas híbridas e intertextuais, nunca poderemos abarcar de uma vez por todas todo o assunto. Essas poéticas continuam se desenvolvendo, de modo que compreendê-las adequadamente é uma tarefa infinita. Em arte e no estudo da arte, nunca é suficiente ter conceitos e conhecer teorias. A arte sempre desafia nossos conceitos, sempre desafia nossa maneira de compreender as coisas. Se quisermos estudar artes visuais, precisamos estar abertos para o fato de que tudo o que fizermos será eternamente um esforço provisório de compreensão. Todas as teorias e todos os autores que lemos e discutimos são apenas caminhos provisórios para tentar entender o que é arte e o que são poéticas híbridas e intertextuais, mas a tarefa sempre estará longe de se encontrar concluída ou finalizada. Você pode prosseguir seus estudos buscando artistas que trabalhem com linguagens híbridas e intertextuais. Há muitos que produzem instalações artísticas atualmente, há muitos performers etc. Na época atual, conseguimos pela internet ter farto acesso a catálogos, livros e sites que documentam um acervo artístico tão vasto que dificilmente conseguiremos conhecer em sua totalidade. Por fim, é importante recordarmos o que Guattari (2011) dizia sobre transdisciplinaridade, como vimos anteriormente. Não existem fórmulas prontas para a transdisciplinaridade; é importante que tenhamos gosto pelo risco e pela aventura caso queiramos nos aventurar por ela. Sendo as poéticas híbridas e intertextuais modos transdisciplinares de compreender a arte, o mesmo vale para elas: se quisermos entender o que é arte, se quisermos entender o que são poéticas híbridas e intertextuais, então é importante que tenhamos gosto pelo risco e pela aventura. Caso você queira também fazer ou criar arte, essa recomendação vale ainda mais fortemente. A arte nunca é uma operação lógica de aplicação de conceitos prontos para enquadrar, categorizar ou classificar as coisas. A arte, como vimos nesta aula, é jogo, é símbolo, é festa. Ela é uma operação muito mais complexa, sutil e delicada, uma operação na qual nos colocamos em jogo e jogamos com os outros; uma operação na qual simbolizamos mundos possíveis, sendo remetidos para além de nós mesmos; uma operação na qual festejamos, de maneira que deixamos o tempo escasso do relógio e do calendário para trás e passamos a nos dedicar à construção de outro tempo, de um tempo vindouro e promissor. 13 A arte não pode deixar nunca de ser uma promessa de felicidade. A alegria que experimentamos com ela é exatamente essa promessa que ela nos dá ao contemplar obras, ao criá-las ou ao participar de uma performance. NA PRÁTICA A artista sérvia Marina Abramovic é uma performer contemporânea muito importante, uma das mais famosas da atualidade. Uma performance muito importante da artista foi realizada em parceria com seu então companheiro Ulay, artista performático alemão com quem viveu por muitos anos. Em Rest Energy (1980), o casal posicionou-se um diante do outro, mediados por um arco carregado com uma flecha. Por pouco mais de quatro minutos ambos ficaram pendentes, com Abramovic segurando o arco e Ulay segurando a corda e a flecha, que estava perigosamente apontada para o coração da performer. Os artistas simbolizavam assim, problematizando por meio da arte, a confiança e a vulnerabilidade. FINALIZANDO Nesta aula, exploramos as poéticas híbridas e intertextuais utilizando todo o arsenal conceitual que empregamos ao longo desta disciplina. Iniciamos examinando a proposta de Gadamer de utilizar os conceitos de jogo, símbolo e festa para entender a arte contemporânea. Vimos que o conceito de jogo aponta para o movimento de interação próprio da vida humana, de modo que a arte nos convida a jogar e interagir com os outros (com artistas, com outros espectadores e com a tradição). O conceito de símbolo mostra que a arte é parte de um todo, que ela simboliza, ou seja, que ela nos remete para além de nós mesmos e para além da obra que temos diante de nós. Já o conceito de festa trata da temporalidade específica que a arte cria: um tempo fora do calendário, um tempo distinto do tempo cronológico escasso dos afazeres cotidianos, um tempo que nos pede apenas para que nos demoremos e contemplemos. Em seguida, passamos a considerar alguns exemplos de arte híbrida. Primeiramente examinamos as instalações, que são um modo de produção artístico que conjuga diferentes linguagens e mídias. Os conceitos de jogo e de festa são interessantes para se compreender as instalações, que são produções híbridas e intertextuais. 14 O happening e a performance também foram considerados. Vimos que o primeiro consiste num convite para interação entre artistas e espectadores, valorizando a espontaneidade, o acaso e a improvisação, sendo uma ação irrepetível e fugaz que subverte o conceito tradicional de obra. Já a arte performática costuma seguir um roteiro mais elaborado, distinguindo-se sobretudo pelo papel central que confere ao corpo do artista como material de exploração estética. Ela é um verdadeiro manifesto inscrito na carne do artista. As noções de jogo, símbolo e festa são valiosas para interpretação dessas poéticas. A poesia concreta une artes visuais, música e poesia principalmente para a construção de objetos verbivocovisuais. É um caso interessante de poética híbrida que mantém fortes relações intertextuais sobretudo com a tradição da literatura. As noções de jogo e símbolo são especialmente importantes para essas poéticas. Concluindo, dissemos que o trabalho de compreender a arte e as poéticas híbridas e intertextuais é sempre provisório. Se essa disciplina serviu para abrir o apetite estético para pesquisas futuras, então ela cumpriu bem sua tarefa. 15 REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. BUENO, L. E. B. Linguagem das artes visuais. Curitiba: InterSaberes, 2013. CAMPOS, A. et al. Plano-piloto para a poesia concreta. In: Teoria da poesia concreta. São Paulo: Edições Invenção, 1965. CUNHA, A. S. T. Caminhos em poéticas visuais bidimensionais. Curitiba: InterSaberes, 2017. ITAÚ CULTURAL. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: