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O livro das perguntas JULIANA DAHER E FABÍOLA FARIAS O livro das perguntas JULIANA DAHER E FABÍOLA FARIAS Coordenação geral: Juliana Daher Coordenação editorial: Fabíola Farias e Juliana Daher Consultoria para acessibilidade: Cleide Fernandes Ilustração da capa: Marilda Castanha Projeto gráfico: Samara Coutinho Revisão: Fabíola Farias Audiodescrição: Cleide Fernandes (roteiro) e Gabriel Aquino (consultoria). Projeto LEITURA E FORMAÇÃO DE LEITORES: QUEM PERGUNTA QUER SABER! (1942/2021) - Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte. Catalogação na Publicação (CIP) Daher, Juliana D129l O livro das perguntas / Juliana Daher e Fabíola Farias. – Belo Horizonte : Ed. das Autoras, 2023. 116 p. Inclui bibliografia. ISBN 978-65-00-70445-7 1. Leitura 2. Mediação de leitura 3. Bibliotecas 4. Literatura infantojuvenil I. Farias, Fabíola II. Título. CDD: 027 Bibliotecária responsável: Cleide A. Fernandes CRB6/2334 O livro das perguntas JULIANA DAHER E FABÍOLA FARIAS Belo Horizonte | 2023 Um grande livrinho Sobre este livro Onde meus pés pisam Eu “mexo” com livros Por que ler com e para bebês e crianças pequenas? Como escolher livros com e para as crianças? Como e por quem são feitos os livros? O que é mediação de leitura? Que importância têm as famílias na formação leitora das crianças? O que é preciso saber para ler e contar histórias para as crianças? 7 11 13 15 19 34 37 27 23 30 O que eu posso fazer para as crianças gostarem de ler? Existem livros específicos para meninas e para meninos? Os livros ajudam as crianças a lidar com temas dolorosos? Os livros de literatura devem ensinar intencionalmente bons modos ou valores morais para as crianças? Que contribuições os livros para crianças podem oferecer na construção de sociedades mais justas? Como garantir o direito das crianças com deficiência à leitura? 40 43 46 49 52 56 Por que as crianças deixam de ler quando chegam à adolescência? O que é biblioteca pública? O que é biblioteca comunitária? Quem trabalha na biblioteca? O que são políticas públicas para a garantia do direito à leitura? Os leitores e suas leituras por eles mesmos: Francisco Souza Daher Thereza da Silva Chagas Souza Santos Teresa Farias Santos Nino Cruz Castanha Tomás Farias Dandara Lessa Isabella Reis Rodrigues Sugestões de leitura Quem somos? O que é biblioteca escolar? 77 80 84 89 89 91 92 94 96 98 102 107 115 63 73 69 8 Um grande livrinho Cleide Fernandes Bibliotecária e Coordenadora do Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas de Minas Gerais Ah, como eu gostaria de estar no início da minha atuação como bibliotecária só para ter esse “livri- nho” como guia! Digo “livrinho” com carinho, porque ele está carregado de afeto. Fabíola Farias e Juliana Daher nos entregam um conteúdo que raramente se encontra nas estantes, seja nas bibliotecas aca- dêmicas, seja nas bibliotecas públicas, comunitárias ou escolares. À primeira vista, o sumário revela uma lista de perguntas simples, que são feitas e ouvidas diariamente por quem trabalha na área de Educa- ção e Cultura. Mas essas perguntas trazem respos- tas com potencial de muitos deslocamentos, permi- tindo repensar nossas crenças e hábitos, e buscar novas formas de compreender e lidar mais critica- mente com questões com as quais nos deparamos com frequência. As respostas oferecidas pelas pes- quisadoras fogem do senso comum que geralmente prevalece, e muitas vezes passa despercebido, nos espaços de formação de leitores. Meu primeiro trabalho como bibliotecária foi na Escola da Serra, uma escola construtivista. Foram anos de intenso aprendizado e busca frenética por modelos que me ajudassem na formação das crianças que corriam pela biblioteca. A inexperi- 9 ência intensificava minha ânsia por receitas pron- tas, que pudessem ser aplicadas imediatamente na rotina da escola. Claro que não obtive êxito nessa busca, porque a formação de leitores é um processo muito mais complexo, que lida com sub- jetividades distintas e, naquele caso, com crianças curiosas para conhecer o mundo. Na Escola da Serra aprendi uma importante lição: as crianças existem agora, no presente, e não são apenas seres que “serão alguém no futuro”. Eu acredito que um papel importante que nós podemos desempenhar com as crianças, em qualquer espaço, é ampliar cada vez mais as suas fronteiras. Nossa sociedade é bastante cruel com as crianças, que são tratadas como seres humanos incompletos. Nós que atuamos nos equipamentos públicos deve- mos reconhecer bebês e crianças pequenas como cidadãos com direito à Cultura e aos bens cultu- rais, como o livro e a literatura, criando, executando e promovendo políticas públicas para garantir o acesso à literatura de qualidade, principalmente nas bibliotecas públicas, comunitárias e escolares. Para que possamos construir, efetivamente, o direito à leitura em nosso país precisamos lutar para que nossos espaços de leitura (escolas, creches, biblio- tecas, centros culturais) sejam adequados e que as políticas públicas para a área alcancem TODAS as pessoas. Precisamos também estudar e trocar experiências, aprendendo coletivamente umas com as outras. Fabíola e Juliana, generosamente, compartilham conosco seus estudos, suas refle- xões, algumas angústias e as experiências vividas ao longo dos anos, em projetos de ler para e com bebês e crianças de todas as idades. Do lado de cá, a melhor forma de seguir nessa tarefa de pro- 10 mover a leitura, os livros e a literatura na cultura da infância é lendo e compartilhando esses textos. Boa leitura a todos e todas! 12 Sobre este livro Juliana Daher e Fabíola Farias Este livro reúne perguntas que, ao longo de anos, temos ouvido em oficinas, seminários, cursos e encontros sobre leitura, literatura e educação literá- ria na infância, em Belo Horizonte e em outras cida- des brasileiras. Algumas das questões são comuns a professoras, bibliotecárias, agentes culturais, gestoras públicas, mães, pais, tias, avós e cuidadoras de crian- ças, o que nos leva a acreditar que há nelas, em seu conjunto, algo que revela preocupações duradouras. Desde que começamos a trabalhar na seleção das perguntas, muitas vezes juntando em uma as indaga- ções que nos pareceram afins, e na escrita de “res- postas”, sabíamos que a falta de alguns temas seria percebida. Mas mulheres, mães, pesquisadoras e pro- fessoras que somos, nos confortamos nos lembrando uma à outra de nossa incompletude, do tanto que as coisas pequenas e poucas que conseguimos realizar em momentos e espaços distintos de nossas vidas se somam aos esforços de muitas como nós, comprome- tidas com a construção, sempre em marcha, de vidas justas e promissoras para as crianças brasileiras. Além de nossos textos, deste livro fazem parte depoi- mentos que mostram como o que tentamos organizar em perguntas e respostas se realiza na experiência 13 de jovens leitores. Convidamos Francisco, Thereza, Teresa, Nino, Tomás, Dandara e Isabella para conta- rem suas histórias e memórias de leitura. Seus depoi- mentos não devem ser tomados como verificação do que “funciona” ou não na tarefa de formar leitores, mas sim como relatos que ampliam, aprofundam e até mesmo contestam nossas pesquisas. Da publicação também faz parte uma lista de obras que nos ajudam a refletir sobre as crianças e sua relação com livros, leitura, literatura e a cultura da infância. Sabemos que logo sentiremos falta de alguns títulos, mas toda seleção está, invariavel- mente, marcada por lacunas. Desejamos que este livro, que tem distribuição gra- tuita e também está disponívelimportante que sigamos atuando em distin- tos espaços de participação social para a garantia de direitos e ao mesmo tempo criando condições para ações imediatas em escolas, bibliotecas e cen- tros culturais, dentre outras instituições que se dedi- cam às crianças. Isso significa que precisamos nos dispor ao encon- tro com as pessoas, compreendendo suas necessi- dades específicas e aprendendo a encontrar meios que reduzam os obstáculos existentes para que elas 63 possam ler. O primeiro deles são as barreiras atitudi- nais, aquelas que nos impedem de considerar sujei- tos com direito aos mesmos bens que as pessoas aparentemente sem deficiência quem é diferente de um padrão arbitrariamente construído. Obviamente, o desenvolvimento de tecnologias assistivas amplia as possibilidades de acesso a livros e de leitura por crianças com deficiência. Assim, é fundamental que os recursos tecnológicos e os equi- pamentos necessários para sua utilização estejam disponíveis em escolas, bibliotecas e instituições cul- turais. Para que isso aconteça, é muito importante a visibilidade da causa das pessoas com deficiência e a pressão social para que os direitos desse grupo sejam efetivos. E, passadas mais de duas décadas da lei que esta- belece normas para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, ainda precisamos cobrar portas largas, banheiros adaptados, rampas, pisos táteis, elevado- res e sinalização que permitam a presença digna de todas as pessoas nos espaços públicos. Garantir o direito à leitura para crianças com defi- ciência, com condições que permitam uma potente experiência com os livros, é um compromisso a ser assumido coletivamente. Conhecer as limitações e as possibilidades existentes nos ajuda a construir caminhos e orienta a caminhada. 64 Por que as crianças deixam de ler quando chegam à adolescência? Existem muitas respostas a essa pergunta que, com variações, é frequente em cursos, oficinas e seminá- rios sobre leitura e formação de leitores. De imediato, as explicações se apresentam na ordem do senso comum: os adolescentes não leem ou leem pouco porque são capturados por telefones celulares, jogos eletrônicos e séries de TV. Ou não leem porque não tiveram o exemplo dos pais em casa. Essas afirmações não deixam de ser verdadeiras, mas são limitadas para dar conta da questão que se coloca. Para tentar responder a essa angústia – sim, uma angústia –, apresentada reiteradamente por professoras, bibliotecárias, mães e pais de ado- lescentes e jovens, precisamos primeiro compreen- der o que está contido nesse aligeirado e abran- gente prognóstico. Quando reproduzimos o discurso de que as crianças que adoravam ouvir e ler histórias abandonam com- pletamente e, às vezes, até mesmo ostensivamente, as práticas de leitura a partir da pré-adolescência, alguns entendimentos implícitos nessa afirmação podem ser iluminados e tomados como objeto de reflexão. O primeiro deles é nossa concepção de lei- tura, essa coisa que parece não agradar e não atrair 65 adolescentes que na infância gostavam de ouvir as histórias contadas e lidas pela professora, pela bibliotecária e pela família. Dito de outra maneira, do que falamos quando falamos de leitura? Não cabe aqui uma ampla e aprofundada discus- são teórica sobre leitura, que conta com vasta e diversa produção sobre o tema, como apresentam as sugestões de livros e artigos que fecham este livro. Mas ressaltamos que o termo assume muitos signi- ficados em nossa sociedade. A reclamação de falta de interesse pela leitura se refere, na grande maioria das vezes, à leitura de livros, revistas, jornais e textos considerados importantes por instituições, intelectu- ais, críticos, educadores e especialistas na área. Nós, os adultos, desejamos legitimamente que os adolescentes leiam romances, contos, peças de teatro, poemas e narrativas visuais que elege- mos como importantes para sua formação, que os ajudem a indagar o mundo, o tempo e as relações humanas. Queremos que conheçam a cultura escrita e que dela participem de maneira menos ingênua e mais potente. E isso, acreditamos, é mais possível com a leitura de obras consideradas de qualidade. Mas precisamos considerar as singularidades desse momento da vida, observando anseios que, de maneira geral, parecem marcar a adolescência. É essencial desconstruirmos a ideia de etapa de pas- sagem, em que o sujeito não é mais criança porém não chegou à vida adulta, trazendo o entendimento de não-lugar para vidas que se realizam, como todas as demais, concretamente, no presente. Mais que um tempo de superação da infância e de pre- paração para a vida adulta, a adolescência deve ser compreendida e tratada em sua existência concreta, 66 que contempla mudanças no corpo, na sexualidade, nas maneiras de relacionamento com pessoas e espaços, na experimentação de limites e contesta- ção de autoridades, nas emoções e sentimentos e, também, em expectativas de futuro. As descobertas e as tentativas de descolamento da família e de outras instituições, como escola e igreja, tumultuadas e desestabilizadoras em função da contestação da ordem estabelecida, causam incô- modo e insegurança nos adolescentes e adultos. Os primeiros tentam, à sua maneira e nas condições existentes, reinterpretar e organizar o mundo e suas relações – com a família, a escola, os amigos -, dados o desejo e a necessidade de alargamento de limites, de afirmação da não-infância, da construção de um lugar para si. Os segundos tentam garantir controles, sob a sensação de que têm a responsabilidade de cuidado com o adolescente, a partir de idealizações e expectativas para os filhos e alunos. É nesse contexto que precisamos localizar a reflexão que propomos. Os livros e a leitura, especialmente os que julgamos relevantes, tornam-se também objeto de tensionamento. O exercício de crescer implica a construção de autonomia, mesmo que de forma ingênua em muitos casos. Muito do que é conside- rado importante e inadiável pelos adultos – estudar, ler determinados livros, assistir a filmes consagrados, ver peças de teatro elogiadas pela crítica – torna-se ponto de inflexão. Ao mesmo tempo que contestam autoridades consti- tuídas – família, escola, igreja, dentre outras –, os ado- lescentes se mostram alvos fáceis da indústria cultural. Produtos, pessoas, equipamentos e tecnologias, sob o signo de uma desejada rebeldia e da crítica ao status 67 quo, tornam-se referência para muitos. Como em um passe de mágica, canais no Youtube substituem pro- fessores, livros didáticos e veículos de imprensa, ensi- nando conteúdos disciplinares e divulgando notícias. Influencers, muitos deles remunerados por selos edi- toriais, alcançam leitores sequer sonhados pela crítica tradicional e raramente tocados pelas análises literá- rias de professores e bibliotecários. Em tudo isso há perdas e ganhos. Muitos estudos defendem a ampliação dos espaços para a circu- lação de informações, incluindo seu protagonismo – quem se coloca contra a ideia de um jovem que consegue dialogar com adolescentes, estimulando seu interesse por livros? Livros que inspiraram séries televisivas ou jogos eletrônicos movimentam signifi- cativamente o mercado editorial, figurando em listas de “mais vendidos” e se consolidando na preferência de muitos adolescentes e jovens. O mesmo acontece com narrativas de fantasia ou de terror, em diversas experimentações formais e estéticas. Os números divulgados por editoras e instituições de classe mostram grande crescimento na publicação e na comercialização de livros para este público, fora do ambiente escolar. Ao mesmo tempo, surgem clubes do livro, clubes de leitura, páginas em redes sociais, canais no Youtube e muitas outras iniciativas que se reinventam todos os dias em torno dos livros e dos adolescentes, atingindo considerável interação com o segmento buscado. Diante disso, a afirmação de que os adolescentesnão leem e não se interes- sam por livros parece questionável. É preciso destacar que todo esse movimento se refere, majoritariamente, a adolescentes e jovens de classes média e alta, pois aos oriundos de famílias 68 muito pobres faltam condições objetivas de acesso aos livros e às leituras que escapam à escola. Mas existem também as vozes dissonantes, que problematizam os horizontes desse movimento de massa dos adolescentes e suas leituras. A crítica está ancorada no questionamento do potencial forma- tivo dessas leituras e mediações, uma vez que tais livros, em sua maioria, apresentam narrativas des- dobradas de fórmulas de sucesso, que reproduzem modelos e estereótipos. E as mediações apenas confirmam a ordem estabelecida. As perdas esta- riam na experiência superficial com a cultura escrita, uma vez que tais livros costumam ter linguagem pobre e pouco exigente; na conformação de visões de mundo em função das repetições de enredos, personagens e formas; na restrição a temas e auto- res de um mesmo nicho. Obviamente, os leitores cumprem percursos singu- lares, marcados por suas experiências e práticas culturais. As tendências e os modismos também são constituídos por desvios que levam a caminhos não previstos. Alguns seguirão lendo e tendo nos livros um instrumento de compreensão e de indagação da vida, como na infância, mesmo que com alguns intervalos. Outros lerão esporadicamente, sem tanta paixão. E há os que buscarão outras formas de conhecer o mundo, sem passar pelas leituras. Não há como prever, nem como controlar as trajetórias de nossos filhos, sobrinhos, netos e alunos. Podemos insistir na oferta de livros e nos convites à leitura, sem fazer disso instrumento de pressão, nem moeda de troca, junto aos adolescentes. Ler junto, conversar sobre livros, trocar impressões sobre leituras, buscar aproximações da literatura 69 com outras artes e frequentar bibliotecas e livrarias é algo a ser feito. Também é preciso controlar a angús- tia e a ânsia competitiva e produtiva (“você tem que ler para escrever melhor”, “seu primo lê muito mais que você”, “na minha época os livros eram valoriza- dos”), respeitando e considerando as escolhas dos adolescentes – não podemos nos esquecer de que nesse momento da vida as leituras são também exercícios de socialização, de trocas entre colegas e amigos, de formação de turmas. Os convites aos adolescentes para ler uma obra que admiramos ou conhecer um autor que consideramos importante tem que ser apenas um convite, não uma pressão insistente. É claro que na formação escolar as coisas são diferentes, pois há propostas curricula- res e objetivos a serem cumpridos, mas os professo- res sempre podem encontrar caminhos para que os livros considerados chatos ou difíceis sejam interes- santes e façam sentido para os estudantes. E, claro, é fundamental a criação e a consolidação de políticas estruturais, que garantam escolas, bibliote- cas e profissionais com infraestruturas adequadas e boas condições de trabalho, para que todas as pes- soas – crianças, jovens e adultos – compreendam a leitura como bem e possam ter acesso a livros. 70 O que é biblioteca pública? As bibliotecas públicas podem ser definidas de várias maneiras e encontram, na bibliografia sobre o tema e no entendimento do senso comum sobre suas fun- ções, pontos de consenso. Independentemente de sua ênfase, distintas concepções estão ancoradas em aspectos que podem ser considerados eixos de suas formas de realização no Brasil: organização, guarda e disponibilização de materiais bibliográfi- cos e documentais; preservação da memória local; prestação de serviços de informação à comunidade na qual está inserida; realização de atividades de promoção da leitura e de inclusão digital; oferta de programação cultural; apoio a pesquisas escolares e de interesse geral. Com algumas variações, estes são os eixos mais comuns de atuação de bibliotecas públicas no Brasil. As bibliotecas públicas são criadas e geridas pelo poder público municipal, estadual ou federal. A manutenção de seu espaço e o pagamento dos pro- fissionais que nelas trabalham são de responsabi- lidade da prefeitura, do governo do Estado ou da União. De maneira geral, elas estão vinculadas às secretarias de Educação e de Cultura, mas acontece, em função da organização das esferas de poder, de 71 estarem também em pastas de Assistência Social, Lazer e Turismo. Seus serviços são gratuitos e direcionados a toda a comunidade, devendo, por isso, ser abrangentes e diversos. Os mais comuns são o apoio à pesquisa e o empréstimo domiciliar, além, é claro, do aten- dimento e das orientações oferecidos pelos profis- sionais aos usuários (os frequentadores de bibliote- cas também são chamados de usuários) a partir de suas demandas. O acervo bibliográfico das bibliotecas públicas deve atender a demandas de crianças, jovens e adultos, garantindo recursos de acessibilidade para pessoas com deficiências, além de oferecer ao seu público sugestões de leituras que ampliem e aprofundem seus interesses, ainda que estas não tenham sido explicitamente solicitadas – muitas vezes, as pessoas não se sentem à vontade para perguntar, para con- versar. É importante que em suas coleções de livros e de outros materiais de leitura estejam títulos de litera- tura e de não ficção, obras de referência, periódicos. E que eles contemplem a multiplicidade de forma- tos, incluindo os acessíveis, a pluralidade de autorias, de sistemas de pensamento e de experimentações estéticas que representam a diversidade da pro- dução cultural e científica humana. A depender de especificidades locais ou conceituais, as bibliotecas públicas podem formar coleções especiais. A Biblio- teca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte, por exemplo, conta com uma coleção especial de livros sobre a infância e a juventude, reunindo publicações de várias áreas do conhecimento sobre o tema. Já a Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais, de cujas funções faz parte a guarda da memória, da cultura e da história mineiras, desenvolve perma- 72 nentemente a Coleção Mineiriana, com obras sobre Minas Gerais e escritas por autores mineiros. As atividades propostas pela biblioteca pública refle- tem seus objetivos e seus horizontes, pois servem para promover experiências culturais, principal- mente as vinculadas à cultura escrita, e para dar visi- bilidade a práticas e temas considerados importan- tes. Atualmente, um dos principais compromissos das bibliotecas públicas no Brasil tem sido a formação de leitores, especialmente crianças e adolescentes. Para isso, elas oferecem atividades as mais diversas – oficinas de sensibilização e de formação, rodas e clubes de leitura, narrações de histórias, encontros com escritores e ilustradores, saraus – para crianças, jovens e adultos. Seus espaços devem ser acolhedores e refletir o caráter aberto e democrático da instituição. Ainda que simples e resultado de muitas adaptações (lamentavelmente, são poucos os prédios original- mente projetados e construídos para abrigar biblio- tecas no Brasil), o imóvel precisa permitir a circulação das pessoas, considerando o conforto e a segurança das crianças e as necessidades específicas das pes- soas com deficiência. A disposição do mobiliário, a sinalização de informações e toda a lógica espa- cial devem ser pensadas em favor dos leitores, dos já frequentes e dos que vêm pela primeira vez. E, claro, o ideal é que nas grandes cidades a biblioteca pública esteja localizada em espaço de grande cir- culação de pessoas e com fácil acesso, considerado o transporte público. Nas pequenas, em local que seja acessível para a população. O adequado é que todas as bibliotecas públicas contem com bibliotecárias em sua equipe, dispondo 73 de conhecimentos técnicos específicos para sua gestão, organização, desenvolvimento de acervos, oferta de serviços e promoção de atividades. É muito importantetambém a presença de profissionais de outras áreas, ampliando os repertórios e as experi- ências para a construção diária de uma biblioteca aberta, democrática, inclusiva e acessível, de todas as pessoas e para todas as pessoas. 74 O que é biblioteca escolar? Como o próprio nome indica, biblioteca escolar é aquela que está na escola. Todas as pessoas, espe- cialmente as crianças e os adolescentes e suas famí- lias, deveriam conhecê-la, uma vez que o direito à educação formal, que compreende o período da Educação Básica no Brasil, deve ser obrigatoria- mente cumprido nas escolas. O entendimento mais comum sobre a função das bibliotecas escolares está marcado pela oferta de uma coleção de livros e serviços em torno do cur- rículo e do projeto pedagógico da escola, com foco no ensino-aprendizagem, incluindo também pers- pectivas que contemplam a formação de leitores e o acesso a novas tecnologias. Não há dúvidas de que as bibliotecas escolares devem estar a serviço do que se pretende ensinar e aprender nas escolas. Essa concepção pode ser tomada de maneira objetiva e restrita, com a oferta pela biblioteca dos conteúdos previstos nas grades curriculares de diferentes disciplinas – língua portu- guesa, literatura, geografia, história, filosofia, artes, matemática, física, química... –, aprofundando o conhecimento das matérias estudadas nas salas de aula. Isso inclui, claro, as leituras de livros de literatura 75 e atividades delas derivadas, como leituras públicas de textos, reescrita das histórias, apresentações para famílias e outras turmas, dentre outras. Mas as bibliotecas escolares podem mais, muito mais que incrementar as atividades pedagógicas da escola. Sem desconsiderar seu compromisso institu- cional, elas podem convidar os estudantes de todas as idades, da Educação Infantil ao Ensino Médio, a olhar para o mundo e para o espaço em que vive- mos de maneira mais ampla e elaborada, menos marcada pelas tarefas escolares, ainda que indubi- tavelmente produtiva em sua formação acadêmica. O trabalho educativo, cerne da educação escolar, deve ter no horizonte a formação dos estudantes como um todo, tanto para a compreensão de sua vida social, política, cultural e econômica, como para a preparação para o mercado de trabalho. E a biblioteca deve estar comprometida com esse pro- cesso. Mas como? Em primeiro lugar, é preciso que ela seja compre- endida pela comunidade escolar (estudantes, edu- cadores, famílias) como espaço de formação, e não apenas como lugar para empréstimo de livros e realização de pesquisas. Em suas estantes, à dis- posição dos estudantes, e também dos professores, devem estar livros e materiais de leitura que permi- tam o aprofundamento dos conteúdos disciplinares, ampliando e diversificando as vozes e pontos de vista sobre um mesmo tema, ainda que de maneira conflitante. Esse é um aspecto importante: para que os estudantes possam efetivamente pesquisar e estudar um tema (e isso é diferente de apenas buscar respostas para perguntas previamente esta- belecidas), é necessário que lidem com distintas fontes de informação sobre o mesmo, incluindo con- 76 tradições. Essa diversidade deve estar contemplada nas abordagens teóricas (autores que pensam um mesmo assunto por perspectivas distintas, por exem- plo) e nos gêneros textuais: manuais, enciclopédias, almanaques, atlas, ensaios, biografias, histórias... O conhecimento humano é formado por manei- ras diferentes de explicação e de compreensão da natureza, da vida social e da história e isso deve ser um convite ao pensamento. A educação literária também deve fazer parte desse compromisso da biblioteca escolar com o traba- lho educativo. Para além dos discursos de prazer e encantamento que cercam as iniciativas para a promoção da leitura de livros de literatura, a leitura literária deve ser tomada como uma forma de com- preensão do tempo, do mundo e do espaço em que vivemos. Saber como outras pessoas pensam, expe- rimentar o que elas sentem, entender formas de vida distintas da nossa, construir narrativas com palavras e imagens, tomar os livros como objetos de cultura que nos ajudam a saber quem somos e como vive- mos são experiências indispensáveis na formação humana. Criar condições para que os estudan- tes conheçam e se disponham às narrativas literá- rias faz parte das tarefas das bibliotecas escolares. Para isso, elas devem primar pela diversidade de gêneros textuais em seu acervo – romances, nove- las, poemas, crônicas, textos dramáticos, narrativas ilustradas, histórias em quadrinhos –, assim como de autorias e experimentações estéticas. Além disso, devem realizar atividades, em parceria com profes- sores ou autonomamente, para ler com os estudan- tes: rodas e clubes de leitura, encontros com escrito- res, oficinas, narrações de histórias... A construção de bibliotecas escolares comprometi- 77 das com o trabalho educativo não é tarefa fácil, mas constitui uma exigência para quem compreende a educação formal como direito de todas as pessoas a acesso ao conhecimento artístico e científico pro- duzido pela humanidade ao longo do tempo e no espaço. Nas bibliotecas, e especialmente nas esco- lares, isso se materializa em práticas lentas mas perenes de oferecer aos estudantes muitos jeitos de conhecer o mundo, seja através de respostas a per- guntas que outros, em momentos distintos, fizeram, seja nas indagações que nos parecem, individual e coletivamente, necessárias hoje. Cada um dos livros que compõe o acervo, a orga- nização dos serviços (dias, horários e regras de fun- cionamento, formas de empréstimo, orientações para a pesquisa, dentre outros aspectos) e a oferta de atividades devem funcionar organicamente em torno da concepção de biblioteca escolar que se deseja. E o que se deseja, neste caso, está indis- sociavelmente atrelado ao que pensamos sobre escola e formação. Importante: a Lei 12.244/10 estabeleceu que no prazo máximo de dez anos, isto é, em 2020, todas as instituições de ensino do país, públicas e privadas, deveriam contar, obrigatoriamente, com bibliote- cas escolares. O prazo para cumprimento desta Lei foi ampliado por outra, a 9.484/18, para 2024, mas ainda são pouco perceptíveis os movimentos das instituições para seu cumprimento. É importante que haja um documento como esse, que cria instrumen- tos legais para a garantia de bibliotecas nas escolas, mas tão importante quanto sua existência é a refle- xão sobre a pertinência e a relevância das bibliote- cas no ambiente escolar. 78 O que é biblioteca comunitária? Há muitas formas de definir uma biblioteca comuni- tária. Podemos tratar de seu público, trabalhadores, espaço, acervo e serviços para fazer uma apresenta- ção inicial. Mas optamos por começar por uma ideia que parece central nas iniciativas dessa natureza em todo o país: o compromisso com a democratização do acesso aos livros e à leitura em espaços, em sua maioria urbanos, onde o poder público é ausente. Criadas, mantidas e geridas por pessoas ou insti- tuições da sociedade civil, as bibliotecas comunitá- rias surgem da compreensão de que a leitura é um direito de todas as pessoas, que deve ser garantido de forma descentralizada e gratuita. E porque o poder público – prefeituras, estados e governo fede- ral – não cumpre suas obrigações, principal e con- traditoriamente em regiões periféricas e de grande vulnerabilidade social, outros caminhos precisam ser construídos. Esses caminhos não costumam ser fáceis e exigem o trabalho de muitas pessoas, mesmo em iniciativas individuais, muitas vezes em espaços domésticos, em salas e tempo cedidos pela dona da casa. Há biblio- tecas comunitárias que são resultado de pequenos projetos de promoção da leitura, que em função da 79 mobilização da comunidade ganham visibilidade e conseguem apoio local – um espaço para funcionar, doação de livros e pessoas que se oferecem para trabalhar voluntariamente. Algumas delas surgem em,ou posteriormente se vinculam a instituições já existentes, como igrejas, creches, associações de bairro e centros culturais. Os acervos bibliográficos são, de maneira geral, for- mados por doações, tanto de pessoas que querem contribuir para a manutenção da biblioteca, quanto de instituições públicas e privadas, por meio de pro- gramas específicos de apoio a bibliotecas comunitá- rias e a projetos de promoção da leitura desenvolvi- dos pela sociedade civil. As trabalhadoras e os trabalhadores das bibliote- cas comunitárias, autointitulados “mediadores de leitura”, são, sem dúvida, o coração da ação. Enga- jados e comprometidos com a garantia do direito à leitura, criam as condições materiais e simbóli- cas para a existência das bibliotecas comunitárias. Voluntariamente ou com remuneração viabilizada por projetos apoiados via leis de incentivo à Cultura e por ações de responsabilidade social de empre- sas, os mediadores de leitura escrevem projetos, cuidam da gestão da biblioteca, promovem ativi- dades, atendem os leitores, realizam seminários e eventos de formação e ainda participam da elabo- ração, do acompanhamento e do controle de polí- ticas públicas, marcando presença em espaços de participação social, como conselhos, grupos de tra- balho setoriais e audiências públicas. A articulação em redes tem se mostrado funda- mental para a organização e o fortalecimento das bibliotecas comunitárias brasileiras. Reunindo insti- 80 tuições e pessoas de várias regiões em seminários, grupos de trabalho e movimentos de reivindicação por políticas públicas, as redes divulgam as biblio- tecas, a ação comunitária, o trabalho dos mediado- res de leitura e sua relevância sociocultural, dando visibilidade à causa e à mobilização em seu favor. Além disso, se colocam como objeto de atenção das universidades, que são convocadas a considerá-las em suas pesquisas. Muitas vezes, são as bibliotecas comunitárias e suas redes que provocam o poder público para a reflexão sobre e a criação de políticas setoriais. No que toca a serviços e atividades, as ofertas das bibliotecas comunitárias são semelhantes às das escolares e públicas, uma vez que são instadas a ocupar as lacunas deixadas, muitas vezes como projeto, pelo poder público. Aos seus leitores são oferecidos empréstimos de livros, orientações para a realização de pesquisas escolares, atividades de convite à leitura e à escrita (rodas de leitura, nar- ração de histórias, oficinas, saraus...), programação cultural envolvendo distintas linguagens artísticas. Não restam dúvidas sobre a relevância social, cul- tural e educacional das bibliotecas comunitárias no Brasil. Com caminhos e métodos diversos, compar- tilhando um horizonte comum, elas criam e viabili- zam, perene e coletivamente, modos de ampliar o direito à leitura no país. E, claro, alteram as formas de pensar as bibliotecas e a ação cultural brasileiras. 81 Quem trabalha na biblioteca? Muitas pessoas, com formações e experiências distin- tas, trabalham nas bibliotecas comunitárias, escolares e públicas. Juntas, se esforçam para oferecer às suas comunidades uma ação bibliotecária que garanta acesso a livros e a materiais de leitura e mediações que ampliem seus horizontes para a compreensão de suas existências, individual e coletivamente. Para muita gente, são “bibliotecárias” todas as pes- soas que trabalham em bibliotecas, organizando o acervo e atendendo os leitores. Apesar de generoso, porque cria uma identidade afetiva e certa organi- cidade junto às trabalhadoras da instituição, nesse entendimento há algumas especificidades que pre- cisam ser ressaltadas para que as singularidades de cada atuação sejam valorizadas. A bibliotecária é uma profissional de nível supe- rior, graduada em Biblioteconomia, um campo de conhecimento que se dedica aos estudos sobre bibliotecas, à reflexão sobre a informação e também à organização e à gestão de documentos. Esses dados são breves e resumidos sobre a área, mas suficientes para localizar a formação da bibliotecá- ria no campo que nos interessa: bibliotecas comu- 82 nitárias, escolares e públicas, promoção da cultura escrita, formação de leitores e ação cultural. São muitas as tarefas desenvolvidas por bibliotecá- rias: planejamento e gestão dos serviços e ativida- des de bibliotecas, desenvolvimento e tratamento de seu acervo bibliográfico, elaboração e execução de projetos para a promoção da leitura, pesquisa e escrita de textos sobre a área e, claro, atendimento aos leitores. Em resumo, as bibliotecárias são pro- fissionais com formação específica para participar, coordenando, em muitos casos, de todo o processo de planejamento, de funcionamento e de gestão de uma biblioteca. Lamentavelmente, nem todas as bibliotecas comu- nitárias, escolares e públicas brasileiras contam com os serviços de bibliotecárias, por motivos os mais diversos – pequeno número de profissionais dis- poníveis no mercado, poucos cursos de graduação em Biblioteconomia, recursos públicos limitados ou inexistentes para investimento em bibliotecas... Isso faz com que muitas se organizem a partir conheci- mento que pessoas que nela trabalham têm sobre a instituição, com muitas experiências exitosas nessas formas de realização. O desejo e a necessidade de professoras, educa- doras, agentes comunitárias e culturais de traba- lhar com leitores, livros e leituras (o primeiro muitas vezes descoberto quando uma professora, por motivos diversos, é deslocada da sala de aula para esse espaço, por exemplo) criaram as condições para que muitas profissionais desenvolvessem com excelência seu trabalho em bibliotecas. Em todo o país temos bons exemplos disso. Quanto mais diversa e multidisciplinar a equipe que trabalha na 83 biblioteca, mais referências culturais estarão dispo- níveis para os leitores. O essencial é que toda a equipe da biblioteca esteja comprometida com um projeto democrático e inclusivo, que acolha as demandas dos leitores e contribua para a ampliação de seu repertório para compreender o mundo, o tempo e o espaço em que vivemos, incluindo as relações de que par- ticipamos. Nesse sentido, perguntas, olhares e con- versas devem ser tomados como oportunidades de diálogo, de interações que permitam sugestões mútuas de leituras e trocas de impressões sobre livros, autorias, sistemas de pensamento e expe- rimentações estéticas. Nessa visada, as pessoas fazem da biblioteca um espaço para encontros em torno de ideias e de questões, pontuais ou perenes, que nos tocam coletivamente. Além disso, para que a biblioteca seja efetivamente de todos e para todos, é necessário que seus ser- viços, acervos, atividades e espaços estejam dis- poníveis para pessoas com características distintas. Sabemos que existem muitas limitações objetivas, de ordem material, nas bibliotecas brasileiras – imóveis adaptados, muitas vezes precariamente; inexistên- cia de recursos financeiros para aquisição de livros selecionados pela equipe; mobiliário inadequado, porque aproveitado de outras instituições; equi- pamentos ultrapassados... – e algumas constituem obstáculos intransponíveis. No entanto, sem deixar em segundo plano as reivindicações de condições adequadas para o funcionamento das bibliotecas, a equipe pode encontrar soluções atitudinais que acolham da melhor maneira possível as demandas de seus usuários. Muitas vezes, a percepção sensí- vel de situações específicas e o compromisso com 84 cada leitor já são parte da solução do que poderia se tornar um problema. Em resumo: são as pessoas, com suas visões de mundo, atitudes e propostas, que constroem as bibliotecas e seus horizontes. 85 O que são políticas públicas para a garantia do direito à leitura? A conquista e a manutenção de direitos são tarefas permanentes, de responsabilidade de toda a socie- dade. Direitos básicos de que hoje dispomos, como o acesso gratuito à Educação e o atendimento no Sistema Único de Saúde, ouaté mesmo o direito de votar e de ser votado, que nos parecem naturais, são resultado de muitas e longas lutas de partidos políti- cos, movimentos sociais, servidores públicos, pesqui- sadores, estudantes e profissionais de distintas áreas. No campo da leitura não é diferente. Coisas básicas como ter livros didáticos para todos os estudantes e acesso a livros de literatura nas escolas públicas, por meio de programas específicos para isso, são resul- tado de construções coletivas feitas a muitas mãos e marcadas por muitos conflitos. As políticas públicas, que se realizam em programas, projetos e ações, existem para sanar problemas da população – garantir o direito de todas as crianças à Educação Infantil, por exemplo – e para promover o desenvolvimento humano, isto é, para criar condições de vidas dignas e justas para todas as pessoas, ainda que iniciativas dessa natureza não se apresentem, à primeira vista, como uma questão a ser resolvida. 86 Um bom exemplo de política pública que não se apre- senta como solução imediata aos muitos problemas existentes e visíveis em nossa sociedade é a lei que dispõe sobre a universalização de bibliotecas esco- lares nas instituições de ensino brasileiras. Lamen- tavelmente, ter bibliotecas nas escolas ainda não constitui uma reivindicação popular, nem mesmo de educadores, considerados de maneira ampla. Mas a legislação que obriga as escolas a terem bibliote- cas contribui para a garantia do direito de crianças, adolescentes e jovens à leitura e para a melhoria de condições para a realização do trabalho educativo nas escolas. E isso, claro, concorre para que os estu- dantes tenham ampliados seus instrumentos para o conhecimento e a indagação do mundo, ancoragem de uma Educação emancipadora. Em uma sociedade como a brasileira, em que tantos direitos são cotidianamente negados à população, especialmente a quem mais precisa ser assistido, a tendência é lidarmos com urgências, buscando solu- ções para situações emergenciais. No entanto, as pessoas têm direito a viver dignamente, para além da sobrevivência comezinha, e outras construções se mostram necessárias. Assim, as políticas públicas precisam ser pensadas organicamente no enfrenta- mento de carências existentes e na proposição de avanços sociais. As políticas públicas para a garantia do direito à lei- tura estão localizadas, principalmente, nas pastas da Educação e da Cultura, embora ações de outras áreas sejam importantes para a criação de con- dições para que as crianças, os adolescentes e os jovens acessem instituições educacionais e equi- pamentos culturais. Estruturadas em leis, planos, programas e ações, elas têm como objetivo apon- 87 tar diretrizes, criar normativas e indicar/garantir os recursos simbólicos e materiais para sua realização. É fundamental que a legislação estabeleça respon- sabilidades para Municípios, Estados e a União e oriente seu cumprimento, mostrando os caminhos a serem percorridos em cada instância. Porque vivemos em uma democracia representa- tiva (elegemos os nossos representantes nos pode- res executivo e legislativo) e participativa (conta- mos com instâncias de participação social para a elaboração, implementação, acompanhamento e avaliação de políticas públicas), podemos nos apro- priar, individual e coletivamente, de muitos proces- sos de planejamento e de decisão públicos. Conse- lhos, audiências e consultas públicas, instâncias de participação social conquistadas com a Constitui- ção Federal de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, são importantes instrumentos que devem ser fortalecidos pela sociedade civil, ainda que seu funcionamento pareça moroso e burocrático. Preci- samos não perder de vista que todos os nossos direi- tos são produto de construções, nem sempre consen- suais, que não se deram do dia para a noite. Ainda que pareçam insatisfatórias frente às necessidades existentes e os horizontes almejados, as conquistas legais são importantes como ancoragem para uma tarefa que seguirá sempre em marcha, uma vez que os direitos precisam ser reafirmados e aprimorados todos os dias, sem pausas. Mesmo que ainda frágeis em sua execução, as políticas públicas devem orientar o cumprimento do direito constitucional à Educação e à Cultura para todas as pessoas, construindo caminhos para, por exemplo, a existência de bibliotecas escolares e públicas em todo o país e para que haja livros 88 nas escolas, e estabelecendo especificidades para atuação na área, viabilizando, especialmente nas universidades públicas, a formação de profissio- nais (professores, bibliotecários, educadores) e de pesquisadores. Também cabe às políticas públi- cas reconhecer a ação da sociedade civil em favor da democratização do acesso à leitura, apoiando objetivamente iniciativas que concorrem para este fim, como a criação e a manutenção de bibliotecas comunitárias em todo o território nacional. São muitas as demandas e as proposições que devem ser contempladas pelas políticas públicas para a garantia das condições materiais e sub- jetivas para a participação na cultura escrita em nossa sociedade, abarcadas na legislação atinente ao tema. Para que as diretrizes e recomendações sejam efetivamente cumpridas, é fundamental que nos organizemos e nos mobilizemos para, nas devi- das instâncias de participação social, contribuir na construção do direito à leitura. 90 Os leitores e suas leituras por eles mesmos - depoimentos Francisco Souza Daher, 9 anos A lembrança mais antiga que eu tenho de mim lendo é bem pequenininho com a minha mãe. Esses livros eram E você?, Ops!, a coleção do Pum, a coleção do Grúfalo. Eu pedia pra ler muito o mesmo livro. O Ops! eu pedia muito. Gostava dos jeitos diferentes de falar "ops"! Quando eu sentava pra ler junto com a minha mãe sentia uma alegria. E eu li tanto com a minha mãe que eu acabei aprendendo a ler sozinho! E depois que a gente aprende a ler sozinho, a gente pode ler até pra mãe! Pode ler pra irmãzinha, pra outra irmã, pro pai... Mas mesmo assim eu gosto muito de ler com a minha mãe. Porque quando eu leio com a minha mãe eu sinto um amor no coração. Eu amo ler com a minha mãe. É muito mais divertido porque a minha mãe entra na aventura também. O filho entra na aventura do livro, ele dá a mão e puxa a mãe e ela entra junto. É assim que acontece quando a minha mãe lê comigo. Agora eu leio pra minha irmãzinha. Ela faz igual eu fazia, pede pra ler os mesmos livros! E quando pego um livro pra ler eu acabo entrando dentro do livro, eu exploro dentro do livro as aventu- 91 ras. E eu gosto das imagens e de conhecer sobre os autores. Ler é muito legal! Não faz ficar entediado, faz o cérebro saber mais coisas. Eu gosto de muitos autores e ilustradores. Gosto da J.K.Rowling, do Dav Pilkey, da Marilda Castanha. Tem alguns que eu conheço até pessoalmente! Eu fico muito feliz quando isso acontece. Por exem- plo, quando eu fui conhecer a Marilda Castanha eu fiquei muito, muito feliz! Eu gosto muito de pegar livros na biblioteca da escola. Pego alguns livros que aparecem no livro didático, alguns que não tem na minha casa. Não são todos os colegas que gostam de ler, sabe? Eu comecei a ler com quatro anos. Mas antes de saber ler eu lia com a minha mãe. E a cada ano eu fui me acostumando mais e gostando mais e mais da leitura. E hoje eu dou o exemplo pra minha irmã- zinha, porque ela gosta muito de mim, então eu leio com ela, e vou passar meus livros favoritos pra ela. A Iolanda gosta muito quando eu leio pra ela. E eu quero que todas as crianças do Brasil tenham direito a ter livros, assim como eu tenho livros, porque a gente quando lê aprende um montão de coisas. Pra mim a leitura é um coração gigante! Todos deveriam ler! 92 Thereza da Silva Chagas Souza Santos, 12 anos Meu nome é Thereza e tenho 12 anos. Comecei a ler sozinha, aos 5 anos, mas antes disso sempre li livros junto com a minha mãe. Meu pai e minha madrastatambém sempre me levavam quando iam fazer apresentações ou ouvir contações de histórias. Por isso, sempre gostei muito desse mundo de livros e pra mim é muito impressionante como eles podem levar a gente para muitos lugares, descobertas e fatos. É uma coisa totalmente mágica toda vez que você pega um livro e acompanha tudo que o perso- nagem vive, sente aquela emoção de um jeito que faz você ficar tão imersa e fixada e ansiosa para saber tudo que pode acontecer. Na literatura que você aprende outras perspectivas do que está ao seu redor, sobre você e sobre sua visão das coisas. Eu sempre adorei ler livros em biblioteca, então acho muito importante ter bibliotecas nas escolas, com várias opções pra ler. Eu adoro passar parte do recreio conhecendo autores e universos, novas histó- rias. É uma coisa tão boa de se fazer que realmente me encanto por saber que tem tanta coisa para des- cobrir! Tem tanta coisa para ler, tantas histórias que podem mudar o meu jeito de ver o mundo e de pensar! Acho que quanto mais as pessoas se interessarem pela leitura e quanto mais a gente espalhar o poder da leitura, mais ela vai fazer parte de várias vidas e trazer o bem. 93 Teresa Farias Santos, 16 anos Minha mãe me deu a ideia de começar esse texto com um caso de quando eu era menor, mas o pro- blema é que não me lembro dele. Como vou escre- ver sobre algo que não lembro? Por isso, decidi começar por uma memória. Parece mais uma memória sensorial e afetiva de uma biblioteca. As portas eram enormes, todas de vidro. Quando você entrava, conseguia ver a biblioteca. Ao lado da entrada tinha uma bancada gigante. Ali sempre tinha um sorriso junto das teclas de um computador e de uma antiga máquina de escrever que costu- mávamos usar como brinquedo, meu irmão e eu. A biblioteca parecia que não ia acabar nunca, um corredor gigante (eu lembro até hoje do lugar dos gibis da Turma da Mônica), cheio de livros. Se você atravessasse ele, via mais e mais livros, e pufes. Essa foi uma das bibliotecas que nunca esqueci, das his- tórias ali contadas e de cada sorriso dado. Admito que quando era menor lia mais. Afinal tinha sempre alguém me empurrando um livro, sendo filha de quem sou. Nada para reclamar disso. Porém, quando fui crescendo perdi o hábito, mas não o gosto. Acho que não dá muito para perder o gosto se você cresce lendo, se cresce com várias referên- cias bibliográficas. O livro que lembro que mais lia era sobre um suposto monstro que tinha um destino, o livro girava em torno disso. Não lembro de ter me divertido tanto lendo outro. Devia ser bom mesmo, levando em consideração a quantidade de vezes 94 lido. Mas entendo que gostos mudam, bastante inclusive. Antes gostava de monstros imaginários, já hoje gosto de monstros reais. Aqueles que estão ali, esperando para dar o bote. Hoje em dia a leitura me atrai mais. Mas quando falo isso não quer dizer que eu vá ler todo dia, afinal o maior mal do adolescente é a procrastinação. E, querendo ou não, nesse âmbito sou igual a todos os outros milhares. Pessoalmente, minhas leituras têm tempos. Tem mês que eu leio quatro livros de uma vez, porém muitas vezes por dois ou mais meses eu não quero nem olhar para um livro. A tal da res- saca literária. Tenho que aprender a conciliar ainda. Gosto muito do que minha mãe chama de best- -sellers, mas não acho que seja totalmente por seu conteúdo e sim por ser uma leitura fácil: na maio- ria das vezes eu não preciso pensar muito e o livro não me faz refletir sobre o assunto. E essa é a tal da procrastinação, mas tudo bem. Eu vou parar de procrastinar um dia, quando a vontade de ler sobre os assuntos sobressair. 95 Nino Cruz Castanha, 19 anos Meu nome é Nino Cruz Castanha e tenho 19 anos. Quando era menor, por volta de 3 a 5 anos, meus pais liam muitos livros pra mim na hora de dormir. Alguns que me marcaram bastante foram Pinguim, de Polly Dunbar (nele eu aprendi a ler), Capitão Cueca, de Dav Pilkey, O livro da Nina para guardar pequenas coisas, de Keith Haring, Clifford, o cachor- rão vermelho, de Norman Bridwell. Também fizeram parte muito importante da minha infância as revistas em quadrinhos do Maurício de Sousa. Eu lia desde a Turma da Mônica até as edições especiais da his- tória (Turma da Mônica Jovem e Lendas Brasileiras, por exemplo). Praticamente a todo lugar que ia ou onde estava, eu levava uma “revistinha” (como eu chamava na época) para ler, mesmo que já tivesse terminado sua leitura. O meu acesso aos livros nunca foi muito difícil. Como os meus pais são ilustradores e autores de livros infantis, vivia em livrarias para seus lançamentos e em bibliotecas para encontros. Lá conhecia vários gêneros de livros, o que me ajudou a criar o meu gosto pessoal de hoje em dia. Durante essa minha criação do hábito leitor, sempre me afeiçoei mais aos estilos de histórias que abordavam um ambiente com mais suspense e drama mais tranquilos, como por exemplo a coleção do Chris Colfer, Terra de Histórias, Manuelzão e Miguilim, do grande escri- tor Guimarães Rosa. Porém, desde os meus 16 anos comecei a ter um grande interesse por livros de 96 contos de terror ficcionais, como por exemplo os do Edgar Allan Poe e do H. P. Lovecraft. Com toda certeza os meus pais são fundamentais na minha formação, seja leitora ou de intelecto. Sempre estiveram “na minha cola” para estar lendo e hoje entendo que são muito importantes para tudo. Além disso, o ambiente escolar também colaborou muito nessa formação; quando entrei no Coleguium (onde estudo atualmente) tive acesso a livros de qualidade que não tive em outros colégios. Minha professora de literatura, Lilian Vaz, sempre colocava os alunos para ler literatura tradicional: Henriqueta Lisboa, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, entre outros. Foi com ela, inclusive, que tive o prazer de ler Manuelzão e Miguilim. Entretanto, acho que não cheguei a ter autores e livros que foram importantes nesse processo, já que sempre estive lendo diversos livros e gêneros. 97 Tomás Farias, 19 anos Eu não quero falar das minhas memórias de leitura na infância. Eu não quero falar de memórias de lei- tura na infância se falar de memórias for reduzi-las à nostalgia intacta do que um dia já foi, se falar de infância significa indicar um processo de evolução até o que um dia será. Naturalmente eu não quero pensar nos livros como instrumentos de aprendi- zado, se por aprendizado se atribui um valor utili- tário a eles, para o que está fora deles. Olho para aquela criança com carinho e com o estranhamento de quem ama, de quem está aprendendo a amar a si mesmo. Então olho para mim mesmo, para a criança formadora do eu, para a criança formadora do mundo como o conheço. A criança que sentiu o mundo para que eu pudesse desconhecê-lo cada vez mais. A criança que abriu os caminhos mais tor- tuosos para que eu pudesse me perder em encon- tros. A criança rodeada de livros. A criança que nos livros se sentia. Viva. Conectada. E desconectada. Eu enxergo na minha infância o que na minha infância eu enxergava. Os desconfortos e os livros que envol- vem meu corpo agora abraçam o mistério da infân- cia. O mistério de forma alguma intacto, fruído como a literatura, o mistério da linguagem, da memória. Uma condição permanente, um mergulho no que nunca se tem dimensão, em todas as coisas. Nunca lembramos simultaneamente, agora, de todos os livros, todos os autores que amamos. Lembramos ou sentimos? A memória escorrega, nos assalta. Se 98 dissolve e se concentra nela mesma, em sua força da magnitude da impenetrabilidade dos livros. Costumamos chamar de repertório um fragmento de nossas experiências. A distância que sentimos daquilo que sentimos. Da minha infância a distância alimenta o mistério em torno da presença que, sim, um dia já fui, e dessa presença a distância também escancara suas marcas no mundo, na presença que exerço agora. Na minhainfância a distância me força a enxergar, também, sim, um esboço. Pelas bibliotecas e pelas noites sozinho, pelos momentos de leitura com a minha família. Um esboço, porque a vida, a minha, a vida em qualquer fase e em qual- quer lugar é vivida em rascunho mesmo. Que leia- mos os rascunhos então. 99 Dandara Lessa, 19 anos Minha relação com a leitura se inicia a partir de um desconforto profundo que sentia em relação a uma realidade que se apresentava tão dura. Naquela época, era difícil para mim conceber modos de lidar com tudo o que acontecia à minha volta, então os livros, principalmente os fantásticos, eram uma pos- sibilidade de escape. Eram bons aqueles pequenos momentos em que me perdia em ilustrações cheias de vida e, no final, tudo ficava bem. Essas primeiras leituras se deram ainda nos primeiros anos do Ensino Fundamental, por meio de um projeto de incentivo à leitura. Lembro-me, ainda que de maneira um pouco vaga, de que na primeira vez que peguei um dos livros que esse projeto oferecia, pouco me impor- tei com o conteúdo da obra, pois me encantei com cores, formas, cheiros e algumas palavras soltas. De início, lê-los me foi cansativo, pois a leitura era tida como uma tarefa obrigatória, mas, aos poucos, as histórias foram tomando um espaço especial na minha casa. Sendo a criança muito travessa que eu era, podiam saber que se estava quieta demais era porque estava lendo. Um questionamento pequenino, feito um bichinho- -de-pé, crescia a cada leitura: cadê os corpos como o meu? A quantidade irrisória de livros que mostra- vam outras crianças pretas me deixava uma sen- sação de que aquele mundo fantástico, onde tudo era possível e havia finais felizes, não me perten- cia. Aliado a isso, também passei a perceber que 100 as infâncias mostradas naquelas páginas não eram iguais à minha e daí veio uma outra inconformidade, o fato da minha infância não ser perfeita. O mito da "infância perfeita" acaba por formatar a própria e, deixando muitas outras em uma espécie de não-lu- gar, não abarca a pluralidade do infantil. Se, num primeiro momento, essas leituras me ajudavam a fugir da minha realidade, com o passar do tempo passaram a escancará-la, mostrando suas tantas disparidades. Foi mais ou menos nessa época que, por causa de outros acontecimentos, decidi que "ser criança" me deixava vulnerável demais a vida e tudo nela machucava muito. Talvez fosse o corpo pequeno que não suportasse tanta coisa ou o peso era grande demais para qualquer um levar. Mas foi em um processo de desistir da minha infância que passei a ser compreendida como uma menina velha demais pra ser criança e minhas leituras cessaram por um tempo. Após alguns poucos anos, encontro um filósofo que me reintroduz a literatura e também me provoca a pensar mais sobre as coisas que aconteciam à minha volta. Acredito que foi um dos momentos em que mais me propus a tecer diversos porquês sobre tudo. Foi através dessas novas leituras que não só redes- cobri minha paixão pela literatura, como também estabeleci uma relação mais profunda com o objeto de minhas leituras: o livro. Para além da sensação de contato físico, passei a firmar uma relação afe- tiva com o livro e o ato da leitura. Essa minha nova perspectiva da literatura me dava ferramentas para pensar a vida em seus múltiplos aspectos, e, prin- cipalmente, minha própria subjetividade. Esse não era o objetivo direto dos textos, mas essas novas lei- turas serviram como propulsores para novos ques- 101 tionamentos e descobertas. Leio meu primeiro livro escrito por um autor negro, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; só mais tarde me contaram que ele era negro. À medida que lia, mais se acumulavam meus porquês e minhas inconformidades, especialmente sobre qual era lugar do meu corpo nesse espaço. Era preciso externá-los de alguma forma e foi na escrita, em um pedaço de papel vazio e receptivo, que me encon- trei confortável para dizê-los. Tomando gosto pelo ofício, passei a colecionar diversos outros pequenos textos que expressavam minha subjetividade e pen- savam meu lugar no mundo. Não entendia o meu fazer como literário (o que, na época, era um título quase sagrado), já que não tinha sido apresentada a muitos textos de autores negros e também não podia ousar compará-los aos de Machado. A literatura se apresenta mais uma vez como uma ferramenta poderosa de entendimento do mundo quando, no ensino médio, encontro corpos e vivên- cias como a minha sendo apresentados e narrados por esses próprios corpos. Conceição Evaristo, Chi- mamanda Ngozi Adichie, Carolina Maria de Jesus e outras tantas autoras que propõem novas narrati- vas e experiências às quais não estava acostumada começam a enriquecer meu repertório e a me esti- mular a refletir sobre a literatura. É nessas várias leituras e discussões dentro de sala de aula que também começo a acreditar na potência daquilo que posso dizer e criar através do meu próprio corpo e punho. A partir de diversas provocações, comecei a pensar nas possibilidades de uma literatura demo- crática, no sentido de que literatura é um direito de todos de ocupação e/ou obtenção, o que me moveu a continuar lendo e escrevendo. 102 Fico feliz de, hoje, poder descobrir vários autores comprometidos em trazer novas perspectivas, múl- tiplas e plurais, sobre a infância e em mostrar as possibilidades de existência da criança. Acredito que quando crescemos, nossa criança permanece nos habitando e nada faz a minha mais risonha do que ver corpos como o seu compondo as mais interes- santes e belas narrativas. Durante minha trajetória entendi que a literatura, propondo um olhar sensível, pode produzir e potencializar afetos. Ler - para uma criança - é um ato de afeto! 103 Isabella Reis Rodrigues, 24 anos Livros como companheiros de jornada: meu percurso de formação leitora Nascida e criada em Belo Horizonte/MG, venho de uma família que não possui intensos hábitos de lei- tura. Me recordo de que em minha casa nunca fal- tavam jornais: era algo de que meus pais gostavam e compravam todos os dias. Lembro do cheirinho de café pela manhã e do meu pai lendo jornal assen- tado à mesa. Gostava de observar ele lendo, e não perdia a oportunidade de perguntar sobre o que tratava a leitura. Num futuro não tão distante dali, a leitura de jornais também se tornou um hábito meu. Minhas lembranças de vivências literárias na escola durante a Educação Infantil são pouquíssi- mas, minhas experiências leitoras foram escassas nesse período. As recordações dessa época são de um processo intenso e sistemático de alfabetização. Considero que a minha relação com os livros começou por volta dos seis anos de idade, quando ingressei no Ensino Fundamental. Só frequentei escolas públicas e, como estudante dessa institui- ção, reconheço e valorizo a sua enorme contribui- ção para a minha formação como mulher, leitora e professora. Foi lá que minha paixão pela litera- tura começou. Foi onde eu conheci minha primeira biblioteca, onde eu descobri novos mundos possí- veis, onde tive acesso sem limites à imaginação, à criatividade e às artes. Sou apaixonada pela Educação e, em especial, pela Educação Infantil. Sou uma defensora incansá- 104 vel dos direitos das crianças e considero o direito à literatura dos nossos pequenos inegociável. Sei que, assim como eu, muitas outras crianças tiveram ou têm acesso a livros e a espaços destinados à litera- tura apenas quando estão na escola. Muitas dessas crianças sofrem, diariamente, violações e têm os seus direitos à infância, à brincadeira e à fantasia roubados. Lendo literatura podem encontrar novas possibilidades de viver o período da infância de uma forma que respeite seus tempos e singularidades. Me alegra saber que nossa sociedade tem avançado na promoção de políticas públicas que visam garan- tir esses direitos a esses sujeitos. Eu sei, por experi- ência própria, que políticas com esseobjetivo abrem portas na vida das crianças. Pensando nisso, não posso deixar de citar o Programa Nacional do Livro Didático Literário (PNLD Literário), que substituiu o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), que distribui obras literárias para as bibliotecas das esco- las públicas do Brasil e vem promovendo a demo- cratização do acesso à literatura em nosso país. Na cidade de Belo Horizonte, temos a política dos kits literários, que desde 2004 distribui obras literárias aos estudantes da Rede Municipal de Educação e das creches conveniadas com a Secretaria Municipal de Educação. Foi através deste recurso que recebi as primeiras obras que compõem o meu acervo pessoal de livros de literatura. Elas me acompanham até os dias de hoje e são muito presentes em minha prática, seja atuando diretamente com as crianças ou como formadora de docentes da Educação Infantil. Todo ano, a ansiedade para receber o kit literário era grande. Lembro da euforia das crianças da turma nos momentos que antecediam a entrega das caixas do kit. Com os livros em mãos, nos aventurávamos 105 naquelas novidades. Os livros que ganhei são muito especiais para mim, mas um se destaca devido às recordações que tenho com ele. É um livro chamado "111 poemas para crianças", do Sérgio Capparelli. Ele me proporcionou boas risadas com minha família. Fui uma criança que brincava muito na rua e me lembro de levar esse livro para lá. Me juntava aos meus amigos para ler os poemas, alguns nós já sabí- amos de cor, mas, mesmo assim, sempre parecia a primeira vez. Ainda consigo me lembrar das nossas altas gargalhadas. Em casa, os kits literários eram recebidos por mim e minha irmã e, com isso, nosso acervo foi crescendo a cada ano. Nós líamos muito juntas e me lembro da nossa felicidade quando nossos pais participavam conosco desses momentos. Devido à rotina pesada de trabalho, nem sempre era possível, mas quando acontecia, era pura alegria. Gostava e ainda gosto muito de viver experiências literárias com a minha família. Me recordo de esperar ansiosa pela festa da família na escola, pois era um dia em que nós podía- mos participar da contação de histórias que aconte- cia na biblioteca. Era a minha oportunidade de viver esse momento tão especial com minha família ao meu lado. Como era bom! Lembro de procurar pelos olhos dos meus pais e da minha irmã, para garan- tir que estávamos compartilhando do mesmo senti- mento - e eu tinha certeza que sim. Nós ouvíamos histórias, dançávamos, cantávamos. Nos conectáva- mos através daquelas narrativas, que eram media- das de forma tão potente, qualificada e cuidadosa. Na adolescência, fui uma frequentadora assídua da biblioteca da escola. Os gostos mudaram. Lembro que era um ambiente pequeno, mas bem aconche- gante. Conversava muito com a bibliotecária, que 106 sempre me fazia ótimas indicações. Já no Ensino Médio as leituras como fruição foram substituídas por leituras técnicas e sistematizadas. Minhas visi- tas à biblioteca diminuíram, mas vez ou outra eu fazia empréstimos de livros que me interessavam para ler nos meus momentos livres. Aos dezessete anos comecei a trabalhar e, com isso, as aquisições de livros se tornaram mais frequentes. Confesso que sou uma incansável compradora de livros, gosto de tê-los comigo. Em 2018, iniciei a graduação em Peda- gogia na Universidade Federal de Minas Gerais e lá meu amor pela literatura só cresceu, principalmente pela literatura infantil. Como uma boa e curiosa lei- tora, visitei e explorei muitas bibliotecas no campus. Ao recordar meu percurso leitor, fica ainda mais evi- dente para mim o quanto as minhas vivências refle- tem e têm um importante papel em minha prática docente. Minha relação com os livros me permitiu viver as delícias e as descobertas proporcionadas pela literatura e eu desejo muito que as crianças e professoras com as quais eu atuo também vivam essa experiência. Uma experiência que seja inteira, carregada de afeto, fantasia e possibilidades. Sei que os livros não conseguem dar conta de solucio- nar todos os conflitos sociais da nossa cidade ou do nosso país, mas acredito fortemente que eles são, sim, um caminho viável, uma possibilidade que nos direciona ao novo, uma ferramenta que nos permite reconquistar direitos perdidos e lutar contra desi- gualdades que ainda persistem em nossa realidade. Faço desse relato uma oportunidade para reafir- mar o meu compromisso, como professora e estu- dante de escola e universidade públicas, de conti- nuar lutando e defendendo os direitos das crianças e contribuindo para a democratização do acesso à 107 literatura de qualidade. Que os livros e os pequenos tomem conta da nossa cidade! Tenho certeza de que dessa forma o nosso horizonte ficará ainda muito mais belo! 108 Sugestões de leitura ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020. ANDRADE, Carlos Drummond de. Literatura infantil. In: Confissões de Minas. São Paulo: Cosac Naify, 2011. ANDRUETTO, MarÍa Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. São Paulo: Pulo do Gato, 2012. ANDRUETTO, María Teresa. A leitura, outra revolu- ção. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017. ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Editora Unesp, 2011. BAJOUR, Cecilia. Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura. São Paulo: Pulo do Gato, 2012. BARBIERI, Stela. Territórios em transformação. São Paulo: Jujuba, 2022. BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1980. BERTOLO, Constantino. O banquete dos notáveis: sobre leitura e crítica. São Paulo: Livros da Matriz, 2014. BERTRAND, Sara. Patos e lobos-marinhos: conversas sobre literatura e juventude. Lauro de Freitas: Solis- luna Editora; São Paulo: Selo Emília, 2021. BOJUNGA, Lygia. Livro - um encontro. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2004. 109 BRITTO, Luiz Percival Leme. Inquietudes e desacor- dos: a leitura além do óbvio. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2012. BRITTO, Luiz Percival Leme. Ao revés do avesso: lei- tura e formação. São Paulo: Pulo do Gato, 2015. CADEMARTORI, Ligia. O professor e a literatura: para pequenos, médios e grandes. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milê- nio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. CASTRILLÓN, Silvia. O direito de ler e de escrever. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Pulo do Gato, 2011. CHAPELA, Luz María. Quem conta um conto... Os menores de sete anos como leitores e autores. São Paulo: Edições SM, 2015. COELHO, Isabel Lopes. A representação da criança na literatura infantojuvenil. São Paulo: Perspectiva, 2020. COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da lite- ratura infantil/juvenil. Barueri, SP: Manole, 2010. COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira. São Paulo: Edusp, 1995. COLASANTI, Marina. Fragatas para terras distantes. Rio de Janeiro: Record, 2004. COLASANTI, Marina. Como se fizesse um cavalo. São Paulo: Pulo do Gato, 2012. COLEÇÃO LEITURA E ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFAN- 110 TIL. Ministérios da Educação / Secretaria de Educa- ção Básica. Brasília: MEC/SEB, 2016. Disponível em: https://lepi.fae.ufmg.br/publicacoes/colecao/ COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário. 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QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Sobre ler, escre- ver e outros diálogos. São Paulo: Global, 2019. RANZ, Olalla Hernández. Isto não é uma novela grá- fica, é um cachimbo. São Paulo: Livros da Matriz, 2023. (Cadernos Hexágono; 3) REYES, Yolanda. A casa imaginária: leitura e litera- tura na primeira infância. São Paulo: Global, 2010. REYES, Yolanda. Ler e brincar, tecer e cantar: literatura, escrita e educação. São Paulo: Pulo do Gato, 2012. REYES, Yolanda. A substância oculta dos contos: as vozes que nos constituem. São Paulo: Pulo do Gato, 2021. 115 RIBEIRO, Ana Elisa. Como nasce uma editora. Belo Horizonte: Entretantas, 2023. ROMEU, Gabriela; PERET, Marlene. Lá no meu quin- tal: o brincar de meninas e meninos de norte a sul. São Paulo: Peirópolis, 2019. SALISBURY, Martin; STYLES, Morag. Livro infan- til ilustrado: a arte da narrativa visual. São Paulo: Rosari, 2013. SANDRONI, Laura. De Lobato a Bojunga: as reina- ções renovadas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. SANJUÁN, Beatriz. Era uma voz. O primeiro livro do bebê. São Paulo: Livros da Matriz, 2023. (Cadernos Hexágono; 4) SOARES, Gabriela Pellegrino; RAFFAINI, Patricia Tavares (orgs.). Livros infantis velhos e esquecidos. São Paulo: Publicações BBM, 2022. SQUILLONI, Arianna. No labirinto da palavra. Guia de viagem. São Paulo: Livros da Matriz, 2023. (Cader- nos Hexágono; 1) TAVARES, Cristiane; WEISZ, Telma (orgs.). Literatura e educação. Porto Alegre: Zouk, 2021. TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2009. TURIÓN, Celia. O contrato fantástico. São Paulo: Livros da Matriz, 2023. (Cadernos Hexágono; 5) ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. São Paulo: Objetiva, 2005. 116 Quem somos? Juliana Daher é bacharel em Terapia Ocupacio- nal pela FCMMG e graduanda em Pedagogia pela Liberdade pela UniBF. É mestre em Estudos de Lin- guagens pelo Posling/CEFET-MG. Artista da Cia. Pé de Moleque e produtora cultural. Integrante do grupo de pesquisa da Bebeteca- FAE/UFMG e da equipe do Curso Leitura e Escrita na Educação Infan- til-LEEI-FAE/UFMG. Fabíola Farias é graduada em Letras, mestre e dou- tora em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais, com pós-doutorado em Educação pela Universidade Federal do Oeste do Pará. Foi Diretora de Ações de Incentivo à Leitura da Superintendência de Bibliotecas Públicas / Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais (2007-2010) e Gerente de Coordenação de Bibliotecas e Promoção da Leitura da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte (2010-2018). Desde 2010 é leitora-votante da Fundação Nacionaldo Livro Infantil e Juvenil. Atual- mente desenvolve pesquisa de pós-doutorado sobre a história da leitura das crianças em Belo Horizonte no CEFET-MG. Livro composto nas fontes Larken e Sofia. Impresso em junho de 2023 na Gráfica Formato em papel Avena 80g/m2. Este livro (projeto 1942/2021) foi realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte / Edital Descentra. Versão acessívelem formato eletrônico com recursos de acessibilidade para pessoas com deficiência visual, chegue às mãos de muitas pessoas e que possa se tornar convite para novas perguntas, inclusive para respostas que já parecem dadas. Agradecemos pelas sugestões temáticas e bibliográ- ficas que nos chegaram pelas redes sociais e aju- daram na estruturação do livro: Betzaida Mata, Bia Mom, Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Hori- zonte, Clecio Bunzen Júnior, Cris Abreu, Dilaine Pereira, Eliane Lopes, Guilherme Lentz, Jéssica Rodrigues, Luana Alves Ferreira, Malu Carvalho, Marilda Casta- nha, Marilia Pirillo, Rosa Walcacer, Sarah Lima, Sônia Travassos e Val Armanelli. E pelas leituras preciosas feitas por Ana Amélia Lage Martins, Cleide Fernandes, Daniela Figueiredo, Isaac Luís e Sérgio Abritta. E, claro, reconhecemos a importância da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte / Edital Des- centra na vida cultural da cidade, viabilizando projetos que só são possíveis na ordem do interesse público. 14 Onde meus pés pisam Juliana Daher Território dos afetos. É o que são os livros de litera- tura para mim. Neles, quando criança, encontrei espaço para a imaginação criar enredos, em sua maioria protago- nizados por mim. Porque eu me misturava com os personagens (eu era eles), ficção e realidade cami- nhavam de mãos dadas. À medida que fui crescendo, os livros para as infân- cias seguiram como companheiros. Neles encontrei espaço para sempre voltar às lembranças que me faziam reconhecer que num vasto mundo, repleto de gente, aquelas narrativas me uniam ao coração mais precioso para mim: o do meu irmão Rodrigo, que, assim como eu, também amava a chamada literatura infantil. Quando me tornei mãe, os livros foram o espaço para o encontro com meu filho, cujo olhar se encon- trava com o meu, quando juntos olhávamos aquele objeto. Construímos, nos incontáveis momentos de leitura compartilhada, o amor delicado, tecido com imagens, palavras e silêncios. De pouco menos de uma década pra cá, os livros se tornaram espaço de fazer junto, de sonhar com 15 uma sociedade mais justa e menos desigual. Nesses espaços tenho caminhado com minha querida Fabíola Farias, que generosamente me acolhe, me ensina e me convida a realizar feitos como este livro, que não tem a pretensão de ser fechado nas respos- tas apresentadas, e sim de despertar mais e mais perguntas a partir delas. Esses são os territórios aos quais pertenço e onde meus pés pisam. 16 Eu “mexo” com livros Fabíola Farias Este livro, com suas perguntas e tentativas de res- postas, começou a ser gestado há muito tempo. À primeira vista, quando eu ainda era uma jovem livreira e tentava encontrar bons livros para crian- ças, no início dos anos 2000. Encantada com a beleza das histórias que o mercado editorial pro- duzia para os pequenos e guiada pelas aulas da professora Ana Maria Clark Peres no curso de Letras na UFMG, eu olhava com jeito de primeira vez para o que então chamávamos de literatura infantil. Foi na disciplina Criança e suas leituras, com vinte e poucos anos, que compreendi que os livros escritos e publicados para crianças poderiam ser mais que distração pedagógica, com transmissão de valores morais, e instrumento para o ensino da leitura e da escrita. Foi ainda nessas aulas que ouvi falar pela primeira vez do escritor, de quem depois me tornei leitora, admiradora e amiga, nessa ordem, Bartolo- meu Campos de Queirós. Em 2003, quando nasceu meu filho Tomás, os livros para crianças se tornaram muito importantes em minha vida. Desde a gravidez eu escolhia nossas leituras, guardando para quando ele chegasse os livros que considerava imperdíveis. Lemos muitos 17 e muitos livros juntos – como eu, ele se encantou pelas histórias – e, aos poucos, Tomás compôs sua própria coleção de livros amados: Macaquinho, de Ronaldo Simões Coelho e Eva Furnari, Bruxa, bruxa, venha à minha festa, de Arden Druce e Pat Ludlow, Joaquim, o rei pinguim, de Armelle Boy, Amigos, de Helme Heine... Teresa nasceu em 2006 e nossas lei- turas continuaram, noite a noite. Quando Tomás e Teresa ainda eram pequenos, Sérgio se juntou a nós e às nossas leituras, e como nós se rendeu às obras criadas e publicadas para crianças, apaixonantes também para os adultos. Em 2010, Elizabeth Serra me convidou para compor o grupo de leitoras votantes da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ. Nos primeiros anos, eu ficava perdida entre centenas de livros que che- gavam todos os anos à minha casa – que alegria abrir as caixas, ver os livros, escolher os que leríamos primeiro! Não tenho dúvidas de que a FNLIJ foi cen- tral em minha formação como leitora e como pes- quisadora. Inicialmente de maneira errante e meio à deriva, descobri um mundo de beleza e poesia nesses livros. Aprendi a ver as ilustrações, o livro como objeto, e a entender o que Marilda Castanha e Nelson Cruz, autores e amigos queridos que conheci nos primeiros anos de livraria, me diziam em muitas conversas e faziam tão lindamente em suas obras. O que aprendi nas livrarias – na Siciliano, na Travessa e na minha pequena Capitu – levei comigo quando fui trabalhar com bibliotecas. Hoje considero impos- sível separar minha experiência acadêmica, livreira, docente e como trabalhadora de bibliotecas, além, é claro, da militância pelo direito à leitura no Brasil, da presença dos livros para crianças em minha vida. Ciente das muitas limitações existentes, eu me junto 18 às pessoas e às instituições que consideram os livros e a leitura uma experiência bonita e potente de ler, ver, ouvir e contar histórias com as crianças. Não vou me alongar no discurso sobre o direito à leitura, já feito em muitos espaços. Esta publicação é mais uma celebração dos livros em minha vida e, especialmente, do meu encontro e da minha amizade com Juliana, ancorada no amor pelas crianças e no compromisso com a cultura da infância, no exercício cotidiano de construir, na pequenez das nossas possibilidades, um horizonte de vidas mais justas em nosso maltratado país. Talvez este livro tenha sua origem na minha infância, quando na garagem de casa, na pequena Carlos Chagas, brincava de escolinha escrevendo com giz nas paredes e sonhava com o dia de comprar o material escolar – lápis de cor, canetinhas, tesoura, cola, uma tabuada e alguns cadernos, já que os livros didáticos recebíamos gratuitamente e os de literatura eram, para mim, coisa da biblioteca. Teresa, minha filha, sempre me conta que não sabe dizer qual é minha profissão quando alguém a per- gunta sobre isso. Mas ela não se aperta e fala que eu “mexo com livros”. Talvez seja só isso mesmo. 20 Por que ler com e para bebês e crianças pequenas? Os bebês e as crianças pequenas têm direito a bens culturais, como estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente, com especificidades positivadas por sua alteração pela Lei 13.257/2016, que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância. Mas para que esses direitos sejam efetivados, é necessário que a sociedade compreenda sua importância e se mobilize, em segmentos e atuações diversas, para garanti-los. Alguns direitos, como à Educação e à Saúde, pare- cem simbolicamente consolidados, pois figuram entre as principais e mais imediatas demandas da população brasileira. Mas outros, como o direito à Cultura, ainda não são vistos como prioridade em nosso país. Isso porque suas ofertas parecem secun- dárias frente às muitas faltas enfrentadas pelas crianças e suas famílias. No entanto, todas as crian- ças devem ser assistidas integralmente, com o aten- dimento a todas as suas necessidades e a promoção de seus direitos, mesmo aqueles que podem parecer secundários sob determinados pontos de vista, con- correndo para seu pleno desenvolvimento. Quando falamos em livro e leitura, os questionamen- tos se avolumam. Perguntas que soam ultrapassa- 21 das para pesquisadoras, educadoras e profissionaisque atuam especificamente na área se apresentam de forma recorrente em muitos espaços e precisam ser respondidas. Não podemos perder de vista que a construção de direitos, que é mais complexa que a formulação de leis, requer envolvimento e mobiliza- ção social e tem como primeira exigência a compre- ensão da pauta em questão. Dito de outra maneira, as pessoas precisam entender por que o direito ao livro e à leitura é importante para bebês e crianças pequenas para que possam contribuir, cada uma à sua maneira, na efetivação do direito. Constantemente somos indagadas sobre a raciona- lidade existente na oferta de livros para crianças que ainda não sabem ler e para bebês que sequer con- seguem prestar a devida atenção ao que falamos com eles. Embora a questão pareça simples, não podemos desconsiderá-la. Ao contrário, devemos tomar sua simplicidade e recorrência como oportu- nidade para tratar do tema de forma clara, convi- dando as pessoas a se aproximarem da questão. Como as brincadeiras, as parlendas, as narrati- vas orais da tradição popular, os trava-línguas, as canções, o teatro, as artes visuais e tantas outras expressões culturais, os livros oferecem aos peque- nos elementos simbólicos para a compreensão do mundo. Seus personagens, produzidos com pala- vras e ilustrações no espaço das páginas, compõem narrativas que apresentam experiências de criação que extrapolam o uso pragmático da linguagem. Ao ver e ouvir as histórias guardadas pelos livros, os bebês e as crianças pequenas compreendem que as palavras escritas e as imagens, trabalha- das pela invenção humana, podem muitas coisas: além de comunicar, de orientar e de organizar o 22 cotidiano, elas criam histórias, sons, silêncios, ritmos e melodias, inventam o que ainda não existe, dila- tam e comprimem o tempo e o espaço. Esses são poderosos convites aos pequenos, em muitos sentidos. O primeiro deles é, sem dúvidas, a usos mais sofisticados da língua, à apropriação de mais elementos para perceber suas sutilezas e possi- bilidades e, claro, para expressar pensamentos, sen- timentos e impressões sobre experiências distintas. O segundo diz respeito à partilha dos imaginários de uma sociedade, isto é, das histórias que, desde o nosso nascimento, ouvimos e contamos para saber quem somos, para reconhecer nossos medos, para estruturar nossos desejos, para lidar com conflitos e para sustentar a vida comunitária. O terceiro é a compreensão da escrita e do livro como construções sociais e culturais importantes na formação intelec- tual, acadêmica e profissional ao longo da vida. Tudo isso nos faz acreditar que desde muito cedo podemos oferecer livros aos bebês e às crianças pequenas. Não há idade previamente determinada para isso, cabendo a cada adulto – mãe, pai, avós, tios... –, no ambiente familiar, a iniciativa de come- çar a ler e a oferecer livros para os seus pequenos. Inicialmente, é provável que não compreendam, tomando como referência as nossas expectativas, o que lemos para eles, mas, a princípio, isso é o menos importante. À sua maneira e a seu tempo, cada um vai se relacionar com histórias, palavras, objetos e com as experiências de manuseio dos livros, de escuta de suas leituras, de exposição das imagens e, principalmente, da presença do outro, mais comu- mente um adulto, que com ele forma o que Yolanda Reyes chama de “triângulo amoroso” (um bebê ou criança pequena, um leitor adulto e o livro), desta- 23 cando que o mais relevante nesse encontro é a afe- tividade vivenciada. É importante, muito importante, ressaltar que, na pri- meira infância, os livros e a literatura não devem ser utilizados como instrumentos para o ensino de letras ou para a preparação para o processo de alfabeti- zação. Muitas pesquisas nos campos da Pedagogia, da Psicologia e da Sociologia da Educação consta- tam que o acesso a bens culturais na primeira infân- cia, dentre eles os livros e suas histórias, favorecem a alfabetização das crianças, mas que este processo só deve ser intencional e sistematicamente iniciado na educação escolar após a etapa da Educação Infantil, isto é, no Ensino Fundamental. Na primeira infância, os livros e a leitura não são para ensinar, embora as crianças aprendam com eles. Aprendem que o livro, como objeto de cultura, é produto do trabalho humano. Que as histórias ali guardadas, feitas de textos e ilustrações, foram cria- das por pessoas. Que a literatura, mesmo que ainda não nomeada, pode criar fissuras na ordem das coisas. Que bebês e crianças podem ser autores de suas próprias narrativas, incluindo impressões sobre o que veem e ouvem. Que existe o tempo de ver e de ouvir, e também o de falar, de perguntar. E isso é muita coisa. 24 Que importância têm as famílias na formação leitora das crianças? As relações mais afetivas e significativas das crian- ças acontecem no ambiente familiar, com as pes- soas que delas cuidam e com elas convivem, que dia a dia se tornam suas referências. Hábitos, costumes, valores e tradições vivenciados na família ganham contornos de maior relevância para as crianças do que em outros contextos. As histórias, cantigas, brincadeiras, memórias e diá- logos familiares são narrativas que nos constituem e nos acolhem desde o nascimento, criando o sen- timento de pertencimento a um grupo no qual con- fiamos. Tudo o que os adultos – mães, pais, irmãos, tios, avós, cuidadoras – dizem, contam e fazem é muito importante na construção da identidade das crianças, em sua compreensão sobre o que sentem e como percebem o mundo e a si mesmas. No cotidiano, os pequenos aprendem, inclusive, usos mais sofisticados da língua, para além de suas propriedades comunicativas e pragmáticas. Eles percebem que as mesmas palavras e os mesmos gestos que orientam e comunicam a hora de comer, de tomar banho e de dormir, que apontam coisas que não devem ser feitas e comportamentos indesejados, também brincam e contam histórias, 25 indagam sobre pensamentos e sentimentos, pro- põem silêncios. O adulto empresta sua voz às narrativas guardadas pelos livros e convida as crianças a experimenta- rem a imaginação, explorando palavras e imagens, fazendo descobertas e elaborando hipóteses e senti- mentos vivenciados e muitas vezes não expressados. Pequenos e grandes partilham todas as experiências de ler, contar, ver e ouvir histórias juntos. As narrativas, incluindo as imagens, que estão nos livros e as histórias da tradição oral, assim como as cantigas populares, ampliam o repertório simbólico dos bebês e das crianças e, por este motivo, sua pre- sença ou ausência no ambiente familiar pode fazer diferença na formação dos pequenos. Mais que enredos e personagens, ler e contar histórias para as crianças no ambiente familiar, independentemente de sua composição, diz a elas que essas são coisas importantes, pois ocupam parte do tempo que os adultos e crianças passam juntos. Sempre que falamos em crianças e livros no espaço doméstico, algumas imagens nos vêm à cabeça, sendo as mais comuns as do quarto na hora de dormir. Não há dúvidas de que esse momento é especial, pois costuma estar envolto em tentativas de calmaria na preparação para um sono tranquilo. As histórias antes de dormir, especialmente se lidas ou contadas com e por alguém que tenha ligação afetiva com as crianças, tornam-se companhia noite adentro, com personagens, episódios e imagens embalando o sono. A escolha do livro pode ser feita pelos pequenos ou sugerida pelos adultos. Não há regras sobre o tipo de livro a ser lido: há crianças que gostam 26 de contos de fadas, outras apreciam os de terror e assombração, algumas preferem humor, poemas, narrativas de imagem... O importante é que a leitura constitua um momento de prazer e de acolhimento para os pequenos. Podemos ler de diferentes maneiras com e para as crianças, em horários e espaços distintos. E, muitas vezes, infelizmente, não podemos parar para fazer isso, em função do trabalhoe das pressões que inú- meras famílias experimentam cotidianamente para garantir seu sustento. Não temos como nos esquecer de que vivemos em um país brutalmente desigual e que as famílias dispõem de condições diversas de existência. Sabemos que viver em uma casa em que as pessoas têm acesso a bens culturais, frequentam teatros, salas de cinema e museus, assistem a con- certos musicais e têm tempo para conversar, descan- sar e estar juntas favorece a formação das crianças. Por outro lado, não é justo com mães, pais, irmãos, avós, tios e demais adultos cuidadores que não dis- põem das mesmas condições o discurso inclemente, e muitas vezes esvaziado, sobre como a família deve dar exemplo para os seus pequenos, comportando- -se assim ou assado, fazendo isto ou aquilo. Obviamente, todas nós que nos dedicamos à pro- moção da cultura da infância e que temos a leitura e os livros como um bem desejamos que todas as crianças possam ler com as suas famílias. E é por isso mesmo que escrevemos e publicamos um livro como este. Mas para que possamos construir este que entendemos ser um direito de todas as pessoas, desde a primeira infância, precisamos saber que aspectos sociais, econômicos, culturais, históricos, raciais, de gênero e religiosos, assim como a esco- laridade, dentre outros, nos fazem quem somos e 27 como vivemos. Assim, a questão não se encerra em querer ou não dar exemplos, mas se abre à reflexão sobre as condições materiais e simbólicas que per- mitem ou interditam a leitura em família. Campanhas publicitárias, discursos escolares e recomendações de especialistas vão ao encontro do nosso desejo e, algumas vezes, nos criam arma- dilhas. Muito comumente eles nos fazem acreditar que tudo depende de boa vontade e de compre- ensão da importância que os livros podem ter na vida das crianças. Sabendo que as coisas não são exatamente assim, colocamo-nos em marcha de maneira mais potente no compromisso que assu- mimos com a infância. 28 O que é mediação de leitura? Nos últimos anos, um dos termos mais recorrentes em textos, cursos, seminários e debates sobre leitura e formação de leitores tem sido “mediação de leitura”. Agregando muitos sentidos e fazeres, diz de distin- tas intenções, atividades e comportamentos que têm como horizonte a aproximação entre leitores e livros. A concepção que pode ser apreendida mais comu- mente nessas ocasiões é a da mediação como uma ponte que liga dois pontos – leitores e livros –, criando condições e propondo caminhos para a leitura: apre- sentação de autorias e de informações prévias sobre o livro, acompanhamento do enredo, observação das ilustrações, interpretações possíveis da história que está sendo contada, dentre outros aspectos. No entanto, a ideia de mediação pode ser pensada de maneira mais complexa e potente que a sim- ples ligação entre uma coisa e outra. Quando uma professora lê para crianças, junto com a história ela oferece sua visão de mundo e escolhas de trabalho com o livro, que vão além da leitura em si mesma. As mediações propostas definem, por exemplo, o tipo de experiência que as crianças podem ter com a escrita como instrumento de criação e de constru- ção de sentido e com o livro como objeto de cultura. 29 Não existem receitas ou mediações corretas, mas sim modos de ler com e para crianças. Na perspectiva de “ponte”, as mediações podem apenas reproduzir comportamentos, induzindo as reações e interpre- tações dos pequenos para uma leitura fechada – a do adulto –, independentemente de suas formas de realização. Dito de outra maneira, as crianças leem, ouvem, veem e compreendem um universo previa- mente organizado, tendo sua agência até mesmo interditada, em muitos casos, se suas intervenções destoarem da ordem construída. Esse tipo de ação costuma ser marcado por perguntas e destaques que guiam a atenção das crianças, conduzindo-as por caminhos já trilhados, ainda que o livro seja novo e desconhecido da turma. Uma abordagem emancipadora, que tem no hori- zonte a leitura como instrumento de formação, constrói mediações menos regradas, apostando na experiência de ler junto (com e para crianças) como exercício de compreensão da narrativa em ques- tão, sob vários aspectos. Tanto quanto a história que está sendo lida ou contada, importam a forma como ela foi criada e os diálogos que propõe com quem somos em um mundo grande e complexo, para sempre em descoberta. Isso pode se dar de distintas maneiras: na exploração dos sentidos criados com palavras e imagens no objeto livro; na escuta respei- tosa sobre o que espontaneamente dizem as crian- ças, mesmo que suas intervenções pareçam estra- nhas ao que está sendo tratado; na lembrança e na partilha de outros livros e de bens culturais que por algum motivo se aproximam do que está sendo lido; nas relações entre o que vem à fala dos pequenos e a narrativa; na afirmação de que existem muitas e distintas percepções sobre uma mesma coisa ou 30 um mesmo fato; e, principalmente, na acolhida do desejo de conhecer outras histórias, ideias e criações que apresentam, explicam e indagam a cultura, a história, a natureza, as artes, as ciências e as religi- ões, marcadas por muitas contradições entre si. Leituras e leitores se renovam e se descobrem a cada encontro. Na escola, na biblioteca, em casa ou em outros ambientes onde os livros se oferecem, o mais importante é que as mediações, quando necessá- rias – muitas vezes as crianças desejam e precisam estar sozinhas com os livros, mesmo que ainda não saibam ler –, sejam tomadas como convite para o mediato, para a indagação e a ressignificação da vida cotidiana e do moto-contínuo que se realiza e se encerra em si mesmo, sem que sequer perceba- mos, tão embalados estamos. Entender e indagar a vida pode parecer algo dis- tante das crianças, mas não é. Os livros de literatura, especialmente, convidam os pequenos a ampliar sua percepção da língua, mostrando a eles que as mesmas palavras que organizam e orientam o coti- diano também criam melodias e histórias, sussurram sentimentos, subvertem ordens, silenciam segredos. O mesmo acontece com as ilustrações, que, em con- certação com os textos, guardam sutilezas, gestam o não dito. Isso, sem dúvida, opera deslocamen- tos e adensa o repertório simbólico das crianças, ampliando suas possibilidades de ver, interpretar, analisar e contemplar o mundo. Por fim, mas não menos importante, é preciso apos- tar nas crianças, em sua inteligência e sensibilidade. E também nos livros, nos convites que fazem aos lei- tores. Isso significa que nem sempre as mediações são necessárias. 31 O que é preciso saber para ler e contar histórias para as crianças? Contar ou ler histórias para as crianças é uma expe- riência de partilha em que quem conta ou lê e quem ouve e vê estão juntos, mas em lugares diferentes. Nesse encontro, é fundamental que o adulto - mãe, pai, tio, irmão, professora, bibliotecária, agente cul- tural - se reconheça como quem divide algo com as crianças (a narrativa a ser contada ou lida) e delas recebe suas impressões, opiniões, comentá- rios. Não deve haver nessa relação qualquer tenta- tiva de controle sobre o entendimento das crianças, que precisam ser ouvidas, mesmo se o que dizem parece desconectado da história que está sendo contada ou lida. Em casa, a leitura pode se tornar uma experiência de encontro entre pequenos e grandes. Não há receitas e nem mesmo recomendações, com exceção da pre- sença efetiva e da escuta atenta, pois nesse momento o que importa é o que crianças e adultos dividem ao ler um livro ou ao contar e ouvir histórias. Nesse ambiente, dos adultos não é exigido qualquer pre- paro para ler com filhos, netos, sobrinhos e irmãos; basta que se disponham a oferecer seu tempo e sua atenção às crianças. Em qualquer lugar e momento em que adultos e crianças possam estar juntos, as 32 histórias e os livros podem ser conhecidos, explora- dos e descobertos sem exigênciasprévias. Na escola e na biblioteca, algumas exigências se apresentam em função dos compromissos atribuídos a essas instituições. Nesses espaços são relevantes práticas que sustentem o livro como objeto de cultura, que guarda histórias, narrativas tradicionais, experiên- cias artísticas, saberes científicos e crenças religiosas, produzidos pelo trabalho e pela invenção humana ao longo do tempo e no espaço. Assim, é importante que educadoras, professoras, bibliotecárias e agentes cul- turais convidem as crianças, desde muito pequenas, a uma aproximação com a cultura escrita e com o universo editorial. Isso não significa que devam criar situações para que os pequenos aprendam letras ou para que reconheçam palavras. A participação na cultura escrita (compreender que a escrita é um ins- trumento de criação e de registro, que as histórias podem ser lidas sempre da mesma maneira porque estão escritas e desenhadas, que as pessoas que escreveram e desenharam não precisam estar pre- sentes no momento que lemos o livro…) é muito mais que aprender a ler e a escrever, o que deve ser feito no momento certo, sem antecipações ou ansiedades. Para isso, as crianças podem ser chamadas a manu- sear o livro, observando texto, imagens, formato e outros elementos que compõem a publicação: quem escreveu, quem ilustrou, se o livro foi traduzido (e o que é tradução), quem publicou... E ser convidadas a conversar sobre a história que ouviram ou leram e o que veem nas páginas. É necessário que sejam ouvidas atentamente e sem pressa pelo adulto que lê para e com elas. Em uma turma, é importante que haja tempo para que todas falem sobre suas impressões e façam seus comentários, se assim 33 desejarem, sendo ouvidas pelo grupo. Em leituras posteriores de um mesmo livro (os pequenos costu- mam gostar muito de ouvir e ler a mesma história várias vezes), elementos não percebidos em um pri- meiro momento podem ficar mais expostos, criando novas experiências para e com as crianças. Na contramão de um exercício de educação literária que reivindica a leitura das e com as crianças como experiências de construção de sentidos com pala- vras e imagens, algumas práticas que consideramos equivocadas, mesmo que imbuídas de boas inten- ções, podem ser facilmente observadas em salas de aula e bibliotecas. Precisamos estar atentas a situa- ções que podem ocorrer quando lemos ou contamos histórias para os pequenos, esvaziando considera- velmente sua potência de fruição artística e imagi- nativa. Alguns exemplos: - alteração da narrativa original para o atendimento de demandas específicas (abordagens temáticas e transmissão de valores, por exemplo); - imposição de interpretações ou valores pessoais do adulto que conta ou lê a história; - utilização de elementos ou emissão de comentários que reproduzem imagens prontas e estereótipos; - apresentação de objetos cênicos (adereços, figuri- nos, cenários) que acabam aparecendo mais que a própria história. Essas ações deixam evidentes as intenções de con- trole sobre as crianças, tirando delas as possibi- lidades de compreensão e invenção guardadas pela leitura ou escuta de narrativas, que na mesma história que contam a todos se tornam, para cada leitor, um território de liberdade. 34 É importante compreender que a boa literatura e a arte de narrar histórias não estão atreladas a fun- ções utilitaristas, como muitas vezes demandam o mercado do entretenimento, escolar e pedagó- gico, e muitos especialistas em comportamento e desenvolvimento infantil. As histórias humanizam e proporcionam às crianças possibilidades únicas de pertencimento ao grande coletivo humano do qual fazemos parte e nos singularizam a partir das vivên- cias objetivas e subjetivas que cada uma de nós tem a partir delas. Portanto, para se contar e ler histórias para as crian- ças são fundamentais adultos disponíveis, boas nar- rativas, orais e em livros, e respeito pelo tempo e desejo de cada uma. 35 Como escolher livros com e para as crianças? Listas, listas e mais listas. Prêmios, muitos prêmios. Sem falar nos blogues, youtubers e clubes do livro, que ofe- recem assinaturas em que os consumidores recebem um ou mais títulos por mês, escolhidos por uma cura- doria e sempre acompanhados por brindes, muitas vezes mais destacados que os títulos em questão. Não há dúvidas de que toda essa movimentação em torno dos livros para crianças tem sido importante para a valorização e para a economia do negócio editorial, na medida em que divulga e promove títu- los e autores, estimula a crítica sobre essa produção e convida professoras, bibliotecárias, agentes cul- turais e famílias a conhecerem obras que já foram apreciadas por especialistas. No entanto, esse fenômeno, chamemos assim, pre- cisa ser observado em perspectivas distintas. Se por um lado cria um ambiente fecundo e de visibi- lidade para a produção editorial para crianças, por outro aponta um movimento de mercado que vem engolindo muitas boas intenções. E, principalmente, toca numa questão fundamental do processo de formação de leitores: a aprendizagem, sempre em marcha, da escolha. 36 Sabemos que nosso gosto e desejo são formados por condições objetivas e subjetivas e que o acesso a bens culturais, o poder econômico e os ambien- tes familiar e escolar os determinam, em grande medida. Assim, escolher não é um gesto espontâneo e neutro, como muitos pensam. As listas de livros premiados do ano, assim como os clubes do livro, oferecem conforto e segurança na aquisição de títulos para os pequenos e acabam escolhendo por nós. Assim como as seções temáticas publicadas diariamente em perfis nas redes sociais, funcionam como um guia pretensamente competente para as leituras com as crianças. Aparentemente sem riscos, as listas nos dizem o que ler com os pequenos e nos eximem do trabalho e da responsabilidade da escolha, além de economizar nosso tempo na livraria e na biblioteca, quando não optamos pela seleção que chega pelos correios por assinatura. É claro que há muito trabalho, compromisso e serie- dade na elaboração de listas e que muitos desses processos contam com profissionais experientes e sensíveis. Também há serviços de qualidade em alguns dos muitos clubes do livro que surgiram no Brasil nos últimos anos. Mas queremos chamar a atenção para a importância da experiência de esco- lher um livro para e com as crianças. Visitas a livrarias ou a bibliotecas de acesso público podem ser boas oportunidades para conhecer auto- rias e experimentações estéticas distintas, gêneros textuais diversos, produções de momentos anterio- res, que já não são novidades, e também os livros destacados pelas listas de melhores do ano. Em um ambiente acolhedor, com muitas opções disponíveis, as crianças podem expressar seus interesses e dese- jos (que devem ser escutados!), experimentando cri- 37 térios para escolher os livros que querem ler e ver sozinhas ou com outras pessoas. O encontro com um bom livreiro, uma professora, uma bibliotecária ou uma mediadora de leitura pode fazer muita diferença nessa experiência, trans- formando a busca por um livro premiado em uma abertura para vozes, traços, rimas e ideias que, por motivos distintos, nunca estiveram em listas. Dito de outra maneira, aprender a escolher e saber por que escolhemos isto ou aquilo faz parte do processo de formação de todas nós. O tempo que investimos nisso com as crianças é um tempo de estar junto em torno de algo que importa a pequenos e grandes e que não pode ser terceirizado: as narrativas, as palavras e as imagens que nos ajudarão a compre- ender e indagar o mundo. 38 Como e por quem os livros são feitos? Os livros não são objetos mágicos e sagrados, mas sim produto da invenção e do trabalho humano e, como tal, carregam suas marcas. Seus valores sociais e culturais muitas vezes deixam na sombra seus pro- cessos de criação, produção e circulação, bem como os pesquisadores, artistas e profissionaisque deles participam. É importante que as crianças saibam que muito trabalho é necessário para que uma ideia ou uma história se transforme em um livro. Na origem de um livro está o desejo de contar uma história, de registrar pensamentos, de partilhar des- cobertas, de difundir crenças ou de transmitir conhe- cimentos. Qualquer pessoa pode escrever um livro e contribuir com a construção de saberes e narrativas sobre a humanidade, a natureza, as relações sociais, as ciências, as artes e as religiões. Quanto mais diver- sas as autorias, mais potentes serão os livros como objeto de cultura. E maiores serão as possibilidades de organização, sistematização, registro e guarda de nossas histórias, memórias e conhecimentos. As pessoas que escrevem livros são chamadas de autoras. Entre elas estão escritores, artistas, cientistas, pesquisadores e pensadores. Do processo de criação dos livros também fazem parte os ilustradores, que 39 podem criar imagens para textos previamente escritos por outras pessoas ou trabalhar sozinhos, produzindo textos e ilustrações (e, claro, o escritor também pode produzir suas próprias imagens). Há os casos de livros que foram escritos em outras línguas e que para serem publicados no Brasil, alcançando grande número de leitores, precisam ser traduzidos para a língua portuguesa. Os profissio- nais que se dedicam a esta tarefa são os tradutores. Na produção de um livro, é muito importante o cui- dado com a língua. Por isso, no processo de edição também trabalham os revisores, que cuidam do uso mais adequado da língua portuguesa, conside- rando o tipo de publicação em questão. Há regras gramaticais que são exigência em determinados gêneros textuais, mas que se mostram mais flexíveis em outros. Os critérios de revisão de um texto literá- rio não são os mesmos de um artigo acadêmico, por exemplo. O mais importante na revisão é oferecer aos leitores textos bem cuidados. Para que o livro fique bonito e seja atraente para os leitores (fonte e cores adequadas, bom espaça- mento entre linhas, diagramação agradável à lei- tura, formato favorável ao conteúdo, dentre outros aspectos), é necessário o trabalho do designer, que se dedica à criação do projeto gráfico, contem- plando os vários elementos que o compõem. Na condução de todo o processo de publicação de um livro, desde o início, estão os editores, que são aqueles que trabalham como um maestro, avaliando ideias, discutindo textos, articulando imagens e for- matos e até mesmo, em muitos casos, as estratégias de divulgação do livro. Apesar de terem pouca visi- bilidade por atuarem nos bastidores, os editores são 40 fundamentais em todo o processo de publicação de um livro. E porque são centrais nas escolhas das vozes, histórias e ideias que serão ou não publicadas em uma casa editorial, têm lugar importantíssimo na história cultural e científica do país, pois contribuem com a divulgação de sistemas de pensamento e de experimentações estéticas, criam espaços para novas autorias. E, pronto o livro, há mais pessoas envolvidas com sua história: os leitores, os educadores (professoras, bibliotecárias, mediadoras de leitura, divulgadores) que promovem sua circulação em escolas e biblio- tecas, os livreiros que os comercializam em livrarias, os críticos que analisam e escrevem sobre os livros publicados, os pesquisadores que se dedicam a conhecer e a refletir sobre os processos de edição… Mencionamos os principais profissionais que traba- lham na produção de livros, mas há muitos outros envolvidos em cada uma de suas etapas. E, claro, há a parte de produção material mesmo, cuidada pelas empresas gráficas. Essas são as principais informações sobre o livro como objeto. Apesar de parecerem óbvias, nem sempre são apresentadas às crianças. 41 O que eu posso fazer para as crianças gostarem de ler? Uma das perguntas que ouvimos com mais frequência é “o que fazer para que o meu filho leia?”, com variações sobre o mesmo tema: “minha filha não gosta de ler”, “meus alunos não se interessam pelos livros”, “a leitura não atrai as crianças”. A questão também está presente no meio acadêmico e mobiliza muitos estudos e livros publicados, numa tentativa permanente e quase sempre angustiada de encontrar caminhos para a promoção da leitura com crianças e, especialmente, com adolescentes. Aparentemente validando o senso comum, afirmamos que receitas existem. Não aquelas com passo a passo e medidas exatas, com marcações de relógio, tempo aproximado de preparo e estimativa de rendimento, além da famigerada classificação de fácil, médio ou difícil de se fazer. Tomadas na perspectiva da experiência e no entendimento de que nascemos em um mundo velho, as receitas podem ser compreendidas como o relato de algo que já foi feito, experimentado e que merece ser compartilhado. Garantia de resultado (essa coisa que sequer sabemos se existe e o que é) não há, claro, especialmente se o horizonte for de produtividade. Mas algumas certezas, mesmo que 42 permanentemente provisórias, como a vida, nos acompanham e pensamos que podem contribuir para pensar a leitura, especialmente a literária, com crianças, sejam elas nossas filhas, sobrinhas, netas, alunas ou leitoras nas bibliotecas. A primeira delas é de que a leitura não pode ser pensada como um ato isolado, que depende exclusivamente do desejo de quem lê ou não lê e de quem deve oferecer livros - mãe, pai, avó, professora, bibliotecária, agentes culturais. A leitura exige condições materiais para sua realização: alimentação, saúde, segurança, tempo. Parece estranho mencionar itens tão básicos, porém, se pensarmos numa perspectiva ampla, eles precisam ser considerados. Muitas das crianças que temos como alunas e que gostaríamos que estivessem mais presentes em nossas bibliotecas estão inseridas em realidades de muitas privações, que funcionam como impedimento para a leitura e para tanto mais. Nossa segunda aposta é de que a leitura precisa ser, efetivamente, uma partilha em vários sentidos: do tempo que os adultos dedicam a estar junto às crianças e aos livros para ler, ouvir e falar sobre as leituras; da presença de outras referências que iluminam e são iluminadas por textos e ilustrações, como livros lidos anteriormente, filmes, canções, recordações, questões do cotidiano; da compreensão do que são e de como são formados nossos gostos e valores de leitura, que sintetizam os convites e as exigências que as letras nos fazem. Por fim, é preciso que crianças descubram, explorem e se apropriem dos livros, com suas narrativas, ilustrações, formatos, escolhas editoriais. É claro que as mediações são importantes em muitas situações, 43 mas não devem ser maiores que o livro, que por si só, no que é, nas histórias que conta e nas palavras e imagens que apresenta, é uma promessa generosa aos leitores. Dito de outra maneira, é preciso acreditar que os livros falam direto aos leitores e que estes, aos poucos, educam sua escuta. 44 Existem livros específicos para meninas e para meninos? É comum que alguns livros sejam classificados como “para meninas” ou “para meninos”. Isso acontece com mais frequência em função do tipo de histó- ria que é contada e de seus protagonistas. As nar- rativas de aventura, com personagens masculinos, por exemplo, são recorrentemente compreendidas como livros para meninos. Já as histórias que tratam de sentimentos e emoções, mais introspectivas, são destinadas às meninas. Que sentido há nessas orien- tações, que muitas vezes sequer são percebidas por professoras, bibliotecárias, educadoras, mediadoras de leitura, mães, pais, avós, tias, mas que impactam na formação do repertório simbólico das crianças e, consequentemente, na construção de direitos no nosso país? Nós vivemos em uma sociedade que, arbitrariamente, estabelece características e papéis sociais para meninas e meninos, atribuindo a sexo e gênero questões que nada têm a ver comessa condição. Somos seres biológicos, mas também históricos, sociais, culturais e econômicos, atravessados por experiências concretas de existência que nos fazem quem somos e quem podemos ser. 45 Os bons livros e as melhores leituras são aqueles que nos ajudam a compreender nossa humanidade e a indagar o mundo e o tempo em que vivemos, as relações de que participamos. Nesse sentido, a princípio, todas as questões que estão presentes em qualquer narrativa podem interessar a meninas e a meninos, pois sentimentos de medo, angústia, tristeza e alegria, assim como sonhos e anseios, são comuns a todas as pessoas, bem como a fruição na leitura ou na escuta de uma história de aventura ou de terror, por exemplo. Uma das tarefas mais urgentes do nosso tempo é desconstruir estruturas simbólicas que limitam as condições de existência de meninas e meninos, tirando de todos oportunidades de vidas dignas e justas. Embora os livros de literatura não estejam a serviço de ensinar valores e regras sociais às crianças, as leituras são sempre um exercício de aprendizagem, uma vez que mobilizam pensamentos e deslocam verdades. Palavras e imagens confirmam visões de mundo, mas também subvertem a ordem estabelecida, criam novos e muitas vezes inusitados sentidos para questões que pareciam dadas e consolidadas. Assim, não existem livros específicos e exclusivos para meninas e para meninos. Em função de nossa formação cultural, alguns títulos podem parecer mais propícios para uns ou outras. Mas em um horizonte emancipador, que professa a construção de vidas justas para todas as pessoas, as crianças devem ter direito a livros e a leituras que narram e celebram o mundo em sua diversidade e complexidade, sem prescrições desprovidas de sentido, com a reprodução de preconceitos e a produção de discriminações. Aos adultos – professoras, bibliotecárias, educadoras, 46 mediadoras de leitura, mães, pais, avós, tias – cabe o compromisso de promover a igualdade de direitos e de recusar qualquer tipo de interdição e de violência de gênero. 47 Os livros ajudam as crianças a lidar com temas dolorosos? Com frequência somos indagadas por colegas e amigas com pedidos de sugestões de livros para crianças que perderam alguma pessoa querida, com quem tinham ligação muito forte. A busca por livros que tratem de temas relacionados a situações dolorosas ou delicadas é muito comum, acontece com frequência em livrarias e bibliotecas. Em um dia o bullying, no outro a pedofilia, depois a separa- ção dos pais e sempre, de maneira bastante recor- rente, a morte. Diante da dor e do desamparo, buscamos nos pro- teger, e especialmente às crianças, em um colo quente, macio e, de preferência, seguro. Espera- mos que os livros consigam tratar de algo que nos escapa ou amedronta, quase sempre com expec- tativa de ludicidade – parece haver necessidade de tornar a dor e o incômodo mais palatáveis, como se isso fosse possível. Não é necessária uma pesquisa muito complexa para descobrir que há livros, bons e ruins, sobre tudo e, por estranho que pareça, sob medida até mesmo para o que desconhecemos. Mas nos perguntamos se, por melhores que sejam, aplicados como remé- dio “funcionam” como esperado por quem os busca. 48 Não temos dúvidas de que narrativas – livros, filmes, canções – que tratam de algo que nos toca nos ajudam, muitas vezes, a compreender um pou- quinho o que vivemos em momentos específicos. Nessas situações, entendemos que nosso sofrimento e nosso medo fazem parte da vida e são, em grande medida, o que nos liga às outras pessoas, que sofrem e temem como nós; ao saber do outro, sabemos um pouco mais de nós mesmos e isso nos permite voltar ao outro com menos fissuras. O importante é que, nesses casos, os livros se tornem uma abertura para a criança pensar, falar (se quiser) e elaborar a dor, a perda e, assim, viver a experiência da tristeza. Apesar de parecer pequena a oferta para quem, inconscientemente, busca uma solução imediata em um momento difícil, esse já é um grande convite. São muitos os caminhos que trilhamos na tentativa de aplacar a dor, especialmente a das crianças. Para elas, que nascem em um mundo velho e desigual e carregam o fardo de construir um futuro melhor, ten- tamos, amorosa e inutilmente, construir atalhos. Mas se pensamos fora da lógica produtiva, aquela que nos obriga a ganhar tempo em tudo para competir e a estar sempre bem, talvez não seja bom encurtar as distâncias. E onde dizemos “talvez”, certamente por delicadeza de linguagem, cabe uma daque- las poucas certezas que colocamos em marcha ao longo da vida: precisamos viver nossas experiências no tempo que elas exigem. Os livros nos oferecem e convidam a esse tempo dilatado, em que vivemos cem anos em algumas horas ou um único dia em quinhentas páginas, sub- vertendo o tempo do tempo. Para além de livros sobre morte quando alguém querido morre ou sobre separação quando o casamento dos pais chega ao 49 fim, a oferta mais generosa que podemos fazer às crianças e a nós mesmos são histórias, imagens e palavras que ampliem nosso repertório para com- preender e organizar o mundo, num exercício de autoconhecimento e de encontro com o outro. 50 Os livros de literatura devem ensinar intencionalmente bons modos ou valores morais para as crianças? A literatura é uma manifestação artística, assim como a música, a dança, o teatro, o cinema, a pintura e a escultura, entre outras. Sua fruição é um convite a experiências estéticas, a vivências envolvendo refle- xão, sensações, sentimentos e emoções. A arte cria relações singulares entre nossos mundos exterior e interior. Diante de obras artísticas, somos convocados a interpretar, ressignificar e transformar as impressões sobre o que tomamos como reali- dade, indagando nossa existência e a relação com o outro. A sensibilidade é sempre subjetiva, variando de pessoa para pessoa. Diante de uma mesma reali- dade, artistas criam obras diversas, que provocam reações também diversas em seus espectadores e, no caso da literatura, leitores. A partir de seu reper- tório simbólico e de sua experiência, as pessoas se colocam diante das obras de arte, experimentando o encontro entre a criação artística e o que ela sus- cita em cada um. Nos encontros e até mesmo nos desencontros com as artes podemos aprender muitas coisas, ainda que elas não estejam sendo objetivamente ensinadas. 51 Isso vale também para os livros de literatura e para sua leitura pelas crianças. Existe um entendimento, infelizmente naturalizado, de que as crianças, por estarem em formação (e todos, de todas as idades, estamos), devem ter maximizados, a todo instante e em tudo, seus pro- cessos de aprendizagem. Assim sendo, o cotidiano dos pequenos e tudo o que o constitui, como brinca- deiras, jogos, momentos de autocuidado, atividades culturais e de lazer, frequentemente são revestidos de caráter pedagógico. Ainda que de forma lúdica, as crianças devem estar sempre aprendendo, numa lógica de que sua existência é sempre uma expecta- tiva de futuro, nessa perspectiva. Em uma sociedade em que as crianças ainda são desconsideradas em sua potência de pensar, dese- jar e agir, em seus saberes, esse processo violento e invisível acontece com total controle dos adultos. Sob o pretexto de proteção e cuidado, a cultura da infância professada em muitos ambientes exclui as crianças de seus próprios processos, tomando-as como objeto, quase nunca como sujeitos. Os livros de literatura para crianças desde sempre são impactados por essa lógica. Mesmo quando nossas pesquisas e reflexões avançam na descons- trução da ideia de que os pequenos precisam ser objetivamente ensinados em todas as situações e de que a literatura não deve estar a serviço da transmis- são de conteúdos disciplinares e de valores morais, nossas práticas - em casa, na escola, na biblioteca - ainda revelam contradições. Isso é potencializado por produtoseditoriais de qualidade duvidosa, que desprezam a natureza artística da literatura e priori- zam as demandas de mercado, em muitos momen- 52 tos intensamente pautadas por exigências de grupos específicos, que buscam nos livros boas histórias para a orientação moral das crianças. Embora não se prestem a ensinar, com os bons livros de literatura as crianças, e também os adultos, aprendem. Neles não há respostas a perguntas pré- vias, mas convites a novas questões, inclusive para respostas que já estão dadas. Com eles as crianças aprendem, ainda, formas mais complexas e sofisti- cadas de uso da língua e das imagens, diferentes gêneros textuais, símbolos e referências culturais. Estabelecem relações entre as narrativas e suas próprias experiências, ampliando sua compreensão da vida e das relações com outras pessoas, com o espaço e com o tempo. Por isso, as crianças devem ter garantido seu direito à literatura e à experiência de fruição artística, sem definições e expectativas prévias de aprendizados. E nós, adultos, precisamos confiar em suas leituras, nos caminhos que constroem para si mesmas, equi- librando cuidados, proteção e responsabilidades com respeito à infância. 53 Que contribuições os livros para crianças podem oferecer na construção de sociedades mais justas? São muito comuns na esfera pública os discursos de valorização da Educação, especialmente quando o que está na pauta é a construção de vidas mais justas e prósperas para a população brasileira. Em escala menor, mas significativa, também se atribui à leitura um caráter de salvação, que pode nos arrancar da ignorância e nos fazer cidadãos mais conscientes de nossos direitos e deveres. O que nem sempre é dito é que a Educação, que no senso comum equivale à escola, e os livros podem muito pouco em uma sociedade brutalmente desigual como a nossa. Mas, claro, podem alguma coisa. Ainda que não altere significativamente, por si só, as estruturas sociais desiguais, a educação escolar, em seus distintos campos disciplinares, pode contribuir para expor suas causas, criando movimentos de luta por equidade e gerando oportunidades de mobili- dade social para grupos até então limitados às tra- jetórias de suas próprias famílias - as últimas déca- das brasileiras mostram isso com clareza. De maneira menos objetiva, mas bastante potente, os livros e as leituras criam fissuras no cotidiano, pos- sibilitando que nossa atenção seja deslocada da vida imediata - trabalho, rotina - para algo que promova 54 a suspensão do tempo produtivo. Desde a primeira infância, a leitura, como as artes, faz às crianças um convite para experiências sofisticadas com a língua, mostrando a elas que além de comunicar e orien- tar o cotidiano também conta histórias, rima, brinca, cria sentidos inusitados e até mesmo silêncios. E usar a língua de maneira mais ampla e menos ingênua, sabendo, cada um à sua maneira e no seu tempo, de seus exercícios de poder, garante a cada um mais elementos para compreender e indagar a vida. Por isso, entendemos que, em sua essência, a leitura pode contribuir para a construção de vidas mais justas em nosso país. Mas essa afirmativa não pode ser tomada de maneira ingênua e idealizada, pois as histórias que lemos e contamos para os pequenos são produto da criação humana e, assim, carregam crenças, valores e costumes de nossa sociedade, nem sempre justos e muitas vezes impregnados de ideias opressivas e discriminatórias. Ainda que à primeira vista não percebamos, muitas das narrativas nos livros para crianças são mar- cadas por discursos que reproduzem estereótipos e, com eles, preconceitos, tornando determinados grupos sociais simbolicamente mais vulneráveis e objetivamente expostos a riscos. Feitas essas considerações, duas respostas amplas, que se desdobram em muitas outras, se oferecem à pergunta que dá título a este texto. Embora pare- çam simples, ambas são complexas e marcadas por contradições. Em primeiro lugar, precisamos recusar radicalmente os discursos que reproduzem ódio e preconceitos, que discriminam pessoas e grupos. Não se trata de eliminar dos textos literários características e compor- 55 tamentos humanos que não nos pareçam corretos ou desejáveis, pois a literatura trata da vida humana e, gostemos ou não, somos produto do tempo e do espaço em que vivemos, das relações sociais de que participamos. Personagens com atitudes e pensa- mentos condenáveis de um ponto de vista democrá- tico e justo vão sempre fazer parte das histórias que nos constituem, especialmente porque elas retratam nossa sociedade, nossos conflitos e modos de vida, nossas visões de mundo. Mas precisamos denun- ciar e rejeitar discursos subliminares, tanto em textos quanto em imagens, que fazem parecer naturais discursos capacitistas, racistas, machistas, misógi- nos, homofóbicos, transfóbicos, gordofóbicos e de aversão a pessoas pobres ou jeitos de viver distintos do que um grupo considera “normal”. A segunda resposta é complementar à primeira: tão importante quanto combater a reprodução de estereótipos que violentam e discriminam pessoas, grupos e modos de vida é ampliar os espaços para a afirmação e a visibilidade do que escapa ao auto- ritário e excludente discurso normativo que quer determinar o que é certo e errado, feio e bonito, bom e mau. Nessa tarefa, os livros para crianças são muito potentes, pois podem mostrar aos pequenos que o mundo é complexo, que as histórias são con- tadas por muitas e contraditórias vozes e traços, que a construção e a disseminação do conhecimento serão sempre marcadas por disputas. Para além da diversidade de autorias e representa- ções nos livros, é fundamental que a multiplicidade da produção editorial também esteja presente em escolas, bibliotecas e livrarias. Muitas vezes, são as pequenas casas editoriais que acolhem temas, experimentações estéticas, autoras e autores que 56 escapam às demandas do mercado, que publicam narrativas e poemas que dificilmente encontrariam espaço em grandes selos. A diversidade nos livros oferece aos pequenos leitores elementos que favorecem a construção do pensa- mento crítico-reflexivo que pode mobilizar transfor- mações individuais e coletivas; amplia o repertório cultural e estético, contribuindo para que as crianças percebam espaços sociais e culturais distintos dos seus. A leitura de livros de literatura, especialmente, oferece às crianças histórias que as colocam diante de si mesmas, sensibilizando-as em relação ao outro e iluminando proximidades e distâncias. Assim como a Educação, os livros não salvam nin- guém, não mudam nada por sua simples presença na vida das pessoas. Mas podem contribuir, à sua maneira, para a construção de sociedades mais justas. 57 Como garantir o direito das crianças com deficiência à leitura? A leitura é um direito de todas as crianças e todas significa exatamente isso: TODAS. Mas, lamenta- velmente, ainda vivemos em uma sociedade, no mínimo, indiferente a demandas que não sejam individualmente suas e, por esse motivo, excludente. Poderíamos começar esse texto apresentando os marcos legais que garantem e promovem os direi- tos das pessoas com deficiência no Brasil, em uma militância ainda necessária em nosso país. Também poderíamos seguir refletindo em uma perspectiva ética e política sobre o direito a direitos, tendo como horizonte a construção de vidas justas e com opor- tunidades iguais para todas as pessoas. E, claro, haveria o legítimo e urgente caminho de denún- cia de discursos e atitudes capacitistas que tentam impor um inexistente padrão de normalidade, con- vocando os leitores deste texto à observação do que cotidianamente vemos e ouvimos, muitas vezes acri- ticamente. Optamos, no entanto, por tratar especificamente do direito à leitura e a bens culturais das crianças, con- siderando que há uma produção potente, embora ainda limitada, sobre aspectos históricos, sociais, políticos, culturais,econômicos e psicológicos dos 58 direitos das pessoas com deficiência. Ressaltamos que nossa abordagem não é médica e não tem a pretensão de lidar com aspectos clínicos da questão. Partimos do princípio de que a leitura e os bens cultu- rais são direitos de todas as pessoas e que a garan- tia desses direitos é um exercício coletivo e sempre em marcha. Assim, destacamos alguns pontos que devem ancorar nossa reflexão sobre o tema e nossa atuação na garantia e na promoção dos direitos das pessoas com deficiência, especialmente das crianças, à leitura. E, é importante dizer, não existem coisas mais ou menos importantes nessa tarefa, mas sim interdependência entre elas. Em primeiro lugar, precisamos refletir sobre os livros que são ou devem ser oferecidos para as crianças com deficiência, a partir das seguintes perguntas: existem temas previamente definidos nos livros para crianças com deficiência? Para cada deficiência – visual, auditiva, intelectual – deve haver um livro específico? Nós pensamos que não. Assim como todas as crianças sem deficiência apa- rente, as crianças com deficiência têm interesses os mais diversos e devem ser convidadas e estimuladas a conhecer o mundo, a natureza, a história, as artes e tudo o que estiver disponível nos livros. Também é importante que elas se vejam representadas nas histórias que leem, mas de maneira que possam se sentir genuinamente parte dessas histórias, e não como estereótipos que têm como único propósito, muitas vezes bem intencionados, expor isolada- mente as características da deficiência. Os livros criados, editados e publicados para as crian- ças devem ser para todas. Para que elas possam ter o acesso mais ampliado possível a seu conteúdo, é necessário que distintos recursos de acessibilidade 59 estejam disponíveis, pois assim como os sujeitos são diversos, os modos de ler também são. Orientadas por um compromisso ético, devemos pressupor que diante de nós temos uma criança que pode ler. Assim sendo, a partir da observação sen- sível e de uma interação qualificada por respeito e empatia, estaremos mais abertas a apoiar a criança com deficiência em sua experiência leitora. Como conhecer as demandas de uma criança que não consegue verbalizar suas necessidades? Per- guntemos, pois! Sem receios do que escutaremos como resposta. Observemos! Que características físicas, motoras, cognitivas, sensoriais e psíquicas apresenta aquela criança que está diante de nós? Como podemos promover o encontro dessa criança com o livro, com a experiência da leitura? Uma criança cega ou com baixa visão, por exemplo, deve contar com livros impressos em braille ou dis- poníveis em gravação de áudio. Para que possam experimentar as ilustrações e aspectos visuais do projeto gráfico, é fundamental que o livro conte com audiodescrição (tradução de imagens em palavras). Para uma criança com deficiência auditiva não alfabetizada em língua portuguesa, será necessária a tradução em libras, que pode ser disponibilizada presencialmente ou em vídeos acessados por QR Codes ou endereços de páginas eletrônicas infor- mados no livro. As crianças com deficiência intelectual podem preci- sar de uma simplificação do texto verbal, o que pode ser feito com a fragmentação de parágrafos longos em frases curtas e diretas, a substituição de metáfo- ras por termos de significação literal, a apresenta- ção de glossários com palavras pouco usuais, dentre 60 outros aspectos. Quando utilizados em conjunto com o objetivo de ampliar o acesso de pessoas com defi- ciência intelectual aos livros, esses recursos recebem o nome de “leitura fácil”. Existem formatos que reúnem muitos recursos de acessibilidade em uma única iniciativa: o “dese- nho universal”. Em experiências mais abrangentes e inclusivas, um mesmo suporte – no caso, um vídeo – pode disponibilizar o texto em áudio, exibir janela de libras, apresentar audiodescrição das imagens, ofe- recer legendas de texto e explicar termos e imagens que possam dificultar a compreensão de pessoas com deficiência intelectual. É importante destacar que a criação de recursos de acessibilidade exige formação e técnicas específi- cas e deve ser acompanhada e validada por uma pessoa ou um grupo de pessoas com deficiência. A audiodescrição de ilustrações, por exemplo, deve ser aprovada por uma pessoa cega ou com baixa visão com conhecimento do recurso, pois apenas alguém nessas condições pode dizer se as imagens criadas com palavras por um audiodescritor enxergante são potentes na criação de imagens por leitores com deficiência visual. Mas, infelizmente, ainda são poucos os profissionais dedicados à inclusão e à oferta de recursos de aces- sibilidade no Brasil, mesmo em escolas e instituições culturais, onde os direitos das pessoas com deficiên- cia deveriam ser intransigentemente defendidos. O que nos leva ao segundo ponto: a formação de pro- fissionais para o adequado atendimento a pessoas com deficiência. Em uma situação ideal, todos os professores, biblio- tecários, educadores e agentes culturais deveriam 61 ter formação que os permitisse atender adequada- mente as crianças com deficiência em instituições educacionais e culturais. Mas sabemos que isso está longe de ser uma realidade no Brasil. Quando tudo parece faltar, o que nos sobra? O desejo de educar e de incluir, marcado por peque- nos, mas significativos - e, por isso, revolucionários - gestos. Podemos segurar ou aproximar o livro da criança para favorecer o contato visual com suas páginas e com quem lê com e para ela. Podemos ler em voz alta. Prestamos atenção à qualidade do timbre e volume da voz durante a leitura, visto que algumas crianças são sensíveis a determinados sons e ruídos. Podemos descrever as ilustrações para aquelas crianças que não enxergam ou têm baixa visão. Podemos ofertar livros com maior contraste entre as cores. Podemos, durante a leitura, substi- tuir palavras de difícil compreensão por outras mais simples, se estivermos diante de uma criança com deficiência intelectual. Intervenções relativamente simples são possíveis. Estamos falando de recursos de acessibilidade não onerosos, à disposição de muitas pessoas, que são efetivos na leitura com crianças com deficiência, obviamente considerando as necessidades especí- ficas de cada uma. O mais importante é considerar, sempre, que cada sujeito é único. Na relação que estabelecemos com cada criança construímos com ela um percurso leitor em que ela apontará do que precisa e como pode- mos ajudá-la. É comum que as limitações financeiras sejam utiliza- das como argumento para justificar a violação dos direitos das crianças com deficiência na escola e em 62 instituições de atendimento a este público, inclusive pelo Estado, que deveria prioritariamente garantir e promover o acesso à leitura e aos bens culturais para todos. O discurso pronto, que não deixa de ser verdadeiro (os equipamentos, as tecnologias e a formação das pessoas para a oferta de recursos de acessibilidade ainda são caros mesmo), é de que tudo é muito oneroso e de que não existe orçamento para isso. Mas outras ações, de naturezas as mais diversas, também são dispendiosas e não passam pelo constrangimento de tal alegação. Promover a inclusão de pessoas com deficiência e garantir os recursos materiais e simbólicos para tal é urgente no Brasil. Enquanto a Educação e a Cultura não forem tomadas como condição para a constru- ção de uma sociedade justa e igualitária, em uma perspectiva emancipatória, os argumentos finan- ceiros continuarão a interditar o acesso à leitura de crianças com deficiência. Este direito, como qualquer outro estabelecido pela Constituição Federal, não pode ser restrito às famílias que dispõem de recur- sos financeiros para sua garantia - a maioria das famílias brasileiras não tem condições para adquirir equipamentos e dispor de tecnologias necessárias para muitas crianças com deficiência. Assim, é