Prévia do material em texto
FFIILLOOSSOOFFIIAA EE EEDDUUCCAAÇ AAPPRROOXXIIMMAAÇÇÕÕEESS EE CCOONNVVEERRGGÊÊNNCCIIAA Paulo Eduardo de Oliveira (organizador) AÇÇÃÃOO AASS 2 FFIILLOOSSOOFFIIAA EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO AAPPRROOXXIIMMAAÇÇÕÕEESS EE CCOONNVVEERRGGÊÊNNCCIIAASS Paulo Eduardo de Oliveira (organizador) Círculo de Estudos Bandeirantes 2012 3 Com a educação presente, o homem não atinge plenamente a finalidade da sua existência. [...] Podemos trabalhar num esboço de educação mais conveniente e deixar indicações aos pósteros, os quais poderão pô-las em prática pouco a pouco. Immanuel Kant 4 Copyright © 2012 Todos os direitos desta edição reservados ao CÍRCULO DE ESTUDOS BANDEIRANTES OLIVEIRA, Paulo Eduardo de (org.) Filosofia e educação: aproximações e convergências / Paulo Eduardo de Oliveira (org.). Curitiba: Círculo de Estudos Bandeirantes, 2012. ISBN 978-85-65531-01-6 1. Filosofia. 2. Educação. 3. História da Filosofia. 4. Filosofia da Educação. Inclui bibliografia. 5 CÍRCULO DE ESTUDOS BANDEIRANTES Afiliado à Pontifícia Universidade Católica do Paraná Rua XV de Novembro, 1050 - Curitiba – Paraná Fone: (41) 3222-5193 http://www.pucpr.br/circuloestudos/ Presidente: Prof. Dr. Clemente Ivo Juliatto Diretor: Prof. Sebastião Ferrarini Conselho Editorial Prof. Dr. Agemir de Carvalho Dias – FEPAR Prof. Dr. Edilson Soares de Souza – FTBP Prof. Dr. Eduardo Rodrigues Cruz – PUCSP Prof. Drª Etiane Caloy Bovkalovski – PUCPR Prof. Dr. Euclides Marchi – UFPR Prof. Dr. Gerson Albuquerque de Araújo Neto – UFPI Prof. Dr. Jean Lauand – USP Prof. Dr. Jean-Luc Blaquart – Universidade Católica de Lille (França) Prof. Dr. João Carlos Corso – UNICENTRO Prof. Dr. Joaquín Silva Soler – PUC-Chile Prof. Drª Karina Kosicki Bellotti – UFPR Prof. Dr. Lafayette de Moraes – PUCSP Prof. Drª Márcia Maria Rodrigues Semenov – UNISANTOS Prof. Drª Maria Cecília Barreto Amorim Pilla – PUCPR Prof. Dr. Paulo Eduardo de Oliveira – PUCPR Prof. Dr. Silas Guerriero – PUCSP Prof. Dr. Uipirangi Franklin da Silva Câmara – FTBP Prof. Drª Wilma de Lara Bueno – UTP 6 Nota do Organizador A sequência dos capítulos obedece, na medida do possível, a própria cronologia dos pensadores aqui contemplados. Esta mesma sequência é utilizada para a apresentação da breve biografia dos respectivos autores dos capítulos, na sessão Sobre os Autores. Procurou-se, ao longo de toda a obra, dar certa homogeneidade aos formatos das citações e referências bibliográficas utilizadas. Contudo, respeitou-se também o estilo de cada autor e, sobretudo, tomou-se o cuidado para manter as peculiaridades na forma de citação dos textos clássicos da Filosofia que, em muitos casos, não se alinham às normas técnicas vigentes. As notas de rodapé têm numeração sequencial em toda a obra, independentemente do capítulo, de modo a manter a unidade do trabalho. 7 SSUUMMÁÁRRIIOO AAPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO [[1100]] SSOOBBRREE OOSS AAUUTTOORREESS [[1133]] AA PPEEDDAAGGOOGGIIAA AANNTTEESS DDAA PPEEDDAAGGOOGGIIAA [[1199]] Barbara Botter SSÓÓCCRRAATTEESS EE AA FFOORRMMAAÇÇÃÃOO DDOO MMEESSTTRREE:: VVIIRRTTUUDDEE,, ÉÉTTIICCAA EE EESSPPIIRRIITTUUAALLIIDDAADDEE [[3322]] Ricardo Tescarolo AAGGOOSSTTIINNHHOO DDEE HHIIPPOONNAA:: AA VVEERRDDAADDEE,, OOSS SSEENNTTIIDDOOSS EE OO ““MMEESSTTRREE IINNTTEERRIIOORR”” [[4422]] Rogério Miranda de Almeida TTOOMMÁÁSS DDEE AAQQUUIINNOO:: FFIILLOOSSOOFFIIAA EE PPEEDDAAGGOOGGIIAA [[5577]] Jean Lauand BBOOAAVVEENNTTUURRAA EE AA FFIILLOOSSOOFFIIAA:: OO EENNSSIINNOO UUNNIIVVEERRSSIITTÁÁRRIIOO [[7744]] Eduardo Vieira da Cruz MMOONNTTAAIIGGNNEE:: CCEETTIICCIISSMMOO EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[110000]] Celso Martins Azar Filho DDEESSCCAARRTTEESS,, MMÉÉTTOODDOO EE CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO [[112211]] Ethel Menezes Rocha 8 LLOOCCKKEE,, OO CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO EE AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[114444]] Gustavo Araújo Batista KKAANNTT EE AA TTAARREEFFAA DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[116622]] Vera Cristina de Andrade Bueno RROOUUSSSSEEAAUU:: AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOOSS SSEENNTTIIMMEENNTTOOSS EE DDAASS VVIIRRTTUUDDEESS [[117788]] Ericson Falabretti HHEEGGEELL,, HHIISSTTÓÓRRIIAA DDAA FFIILLOOSSOOFFIIAA EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[119988]] Luiz Fernando Barrére Martin AASS CCRRÍÍTTIICCAASS DDEE MMAARRXX EE HHUUMMEE ÀÀ FFIILLOOSSOOFFIIAA CCOOMMOO FFUUNNDDAAMMEENNTTOOSS PPAARRAA AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[220088]] Samuel Mendonça GGOOTTTTLLOOBB FFRREEGGEE EE OO EENNSSIINNOO DDAA MMAATTEEMMÁÁTTIICCAA [[223399]] Lafayette de Moraes Carlos Roberto Teixeira Alves NNIIEETTZZSSCCHHEE:: PPAARRAA UUMMAA PPEEDDAAGGOOGGIIAA DDAA AAMMIIZZAADDEE [[225566]] Jelson Roberto de Oliveira FFRREEUUDD EE OO IIMMPPOOSSSSÍÍVVEELL OOFFÍÍCCIIOO DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[228866]] Fátima Caropreso EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO,, VVIIDDAA EE CCOOTTIIDDIIAANNOO:: UUMMAA LLEEIITTUURRAA AA PPAARRTTIIRR DDAA PPRRAAGGMMÁÁTTIICCAA DDEE LLUUDDWWIIGG WWIITTTTGGEENNSSTTEEIINN [[330000]] Bortolo Valle GGAASSTTOONN BBAACCHHEELLAARRDD:: EESSPPÍÍRRIITTOO DDEE EESSCCOOLLAA EE SSOOCCIIEEDDAADDEE [[332299]] Fábio Ferreira de Almeida 9 FFOOUUCCAAUULLTT,, AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO EE AASS RREESSIISSTTÊÊNNCCIIAASS AAGGOONNIIZZAANNDDOO AA MMÁÁQQUUIINNAA PPAANNÓÓPPTTIICCAA [[334455]] Gilmar José De Toni RREEFFLLEEXXÕÕEESS AA PPAARRTTIIRR DDOO TTEEXXTTOO ““RRAACCIIOONNAALLIIDDAADDEE EE RREEAALLIISSMMOO”” DDEE JJOOHHNN SSEEAARRLLEE [[336677]] Kleber Bez Birollo Candiotto SSAARRTTRREE,, EEXXIISSTTEENNCCIIAALLIISSMMOO EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[338899]] Daniela Ribeiro Schneider CCOONNSSIIDDEERRAAÇÇÕÕEESS SSOOBBRREE AA IINNFFLLUUÊÊNNCCIIAA DDAA FFIILLOOSSOOFFIIAA GGRRAAMMSSCCIIAANNAA NNOO PPEENNSSAAMMEENNTTOO DDEE DDEERRMMEEVVAALL SSAAVVIIAANNII [[440055]] Célia Kapuziniak ÉÉTTIICCAA EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO:: UUMMAA RREEFFLLEEXXÃÃOO AA PPAARRTTIIRR DDAA NNOOÇÇÃÃOO DDEE CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO FFAALLÍÍVVEELL EEMM KKAARRLL PPOOPPPPEERR [[442222]] Paulo Eduardo de Oliveira 10 AAPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO O empenho filosófico destina-se não somente à compreensão do mundo e do homem, mas também, ainda que implicitamente, à educação deste mesmo homem, cuja vida se desenrola na relação com o mundo. A prática educativa, por sua vez, encerra em seu interior uma determinada visão do homem e do mundo e, portanto, inclui uma posição filosófica definida, mesmo que tal posição nem sempre seja objeto da consciência dos atores envolvidos no processo educativo. Não se pode negar, portanto, as íntimas relações que se estabelecem entre Filosofia e Educação. Trata-se, certamente, não de sobreposições ou interferências arbitrárias, mas, isso sim, de mesclas teórico-conceituais que se foram tecendo juntas (o que corresponde ao sentido literal da palavra complexo ou complexidade), como os diferentes fios que se juntam para constituir uma única peça. Dos antigos gregos aos filósofos dos nossos dias, percebem-se muitas trilhas de aproximação entre os distintos campos do saber filosófico e da ciência pedagógica, evidenciando-se, desse modo, as possibilidades inauditas de entrecruzamento e de diálogo, de convergências e de aproximações entre os habitantes destes dois espaços de teorização-compreensão da vida, do homem e do mundo. Dos Pré-Socráticos a Popper, os mais destacados filósofos também se dedicaram, de uma forma ou de outra, a atividades de ensino e docência; por outro lado, a maior parteparadoxo fundamental: “O real, ou aquilo que é percebido como tal, é o que resiste absolutamente à simbolização” (LACAN, 1975, p. 80). Isto quer dizer que a nossa percepção dos fenômenos só se dá, ou só se escreve, através das próprias sinuosidades e ambiguidades que atravessam, marcam, pontilham e informam o mundo dos sentidos. A PERCEPÇÃO OU A VERDADE DOS SENTIDOS Não é, pois, fortuitamente que, no Terceiro Livro de Contra os acadêmicos, Agostinho desafia seus interlocutores quanto a saberem se este mundo realmente existe, porquanto se supõe que os sentidos enganam. Ora, este desafio é tanto mais importante quanto o retórico objeta que os argumentos que se evocam em torno da não fiabilidade dos sentidos jamais foram capazes de desmentir a força que eles exercem e, portanto, de levá-lo a convencer-se de que nada parece ou está como é. 10 No parágrafo 128 de Para além de bem e mal, Nietzsche dirá: “Quanto mais abstrata for a verdade que queres ensinar, tanto mais deverás seduzir para ela os sentidos” (NIETZSCHE, 1988, p. 95). 48 Consequentemente, a principal objeção que se poderia levantar contra os céticos consiste no seguinte: conquanto eles se empenhem em demonstrar que as coisas podem ser diferentes do modo como aparecem aos nossos sentidos, elas não podem deixar de parecer aquilo que parecem ser (Cf. ibid., p. 165). É certo, pois, dizer que os sentidos percebem o falso; certo não é, porém, afirmar que nada percebem, porquanto não há como negar que o universo aparece aos nossos olhos como aquilo que contém o céu e a terra, ou que é visto como sendo o céu e a terra. Portanto, forçoso é concluir que o erro não reside nos sentidos – na medida em que os sentidos sentem somente aquilo que sentem – mas no julgamento que se dá de maneira precipitada, irrefletida, sobre aquilo que nos aparece como tal. Inversamente, não haverá engano quando não se der o seu assentimento além do necessário para persuadir alguém de que uma determinada coisa parece ser deste ou daquele outro modo (Cf. ibid., p. 169)11. Para fundamentar a tese de que não se deve exigir dos sentidos mais do que eles podem perceber, Agostinho recorre à analogia que há entre o estado de vigília e o do sono. Sabe-se efetivamente que, no sono, as coisas se aproximam ainda mais do falso do que no estado de vigília. Se, pois, não se pode conhecer com certeza nem mesmo o fato de estarmos acordados, esta impossibilidade se revelará a fortiori quando se consideram os fenômenos do universo onírico. Todavia, retruca Agostinho, se os mundos se compõem de um mais seis, é patente que os mundos formam sete em qualquer situação ou estado em que nos encontrarmos. De igual modo, que nove sejam três vezes três e forme um quadrado de números inteligíveis, é necessariamente verdadeiro mesmo se toda a humanidade estivesse a ressonar. De sorte que os sentidos não devem ser acusados ao constatar-se que os 11 Convém, porém, lembrar que Agostinho não acusa os Acadêmicos de terem negado valor aos sentidos. O que ele ressalta é justamente não ter neles encontrado nenhuma crítica contra os sentidos (Cf. ibid., p. 167-169). 49 delirantes são afetados por falsas visões, nem tampouco pelo fato de, quando sonhamos, percebermos coisas falsas (Cf. ibid., p. 167). Essas ponderações nos conduzem quase irremediavelmente para as Meditationes de prima philosophia, de René Descartes, e, mais precisamente, para a Primeira Meditação, onde o filósofo francês realiza – deslavada e despudoramente – mais um de seus numerosos plágios sobre as intuições que, doze séculos antes, já havia avançado e desenvolvido o teólogo africano. Assim, baseando-se quase nos mesmos exemplos, Descartes assevera: “Seja que me encontre acordado ou dormindo, a soma de dois mais três é sempre cinco e o quadrado não tem mais que quatro lados” (DESCARTES, 1999, p. 408). Voltarei a esta problemática na terceira e última seção deste capítulo. Por enquanto, sublinhemos mais uma vez que, para Agostinho, o erro não reside nos órgãos dos sentidos, mas tão somente nos juízos que, irrefletidamente, emitimos sobre aquilo que parece ser. Donde o clássico exemplo da ilusão ótica, na qual o remo imerso na água parece quebrado ou oblíquo. Um epicureu – lembra Agostinho – poderia observar: “A respeito dos sentidos, nada tenho a lamentar, pois seria injusto deles exigir mais do que podem. Assim, tudo o que podem ver os olhos, estes veem algo verdadeiro. É então verdadeiro o que veem a respeito do remo na água?” (AGOSTINHO, 2006, p. 167). Para Agostinho, não há dúvida de que é verdadeiro aquilo que aparece aos nossos olhos como sendo um remo quebrado. Verdadeiro também é o fato de que, para os navegantes, as torres, vistas de longe, parecem mover-se. Verdadeiro igualmente é o fenômeno indicando que a plumagem de certas aves muda de cor conforme o ângulo do qual ela é observada. De sorte que não se poderia confutar aquele que declarasse: “Sei que isto me parece branco, sei que meu ouvido encontra deleite nisto, sei que para mim isto tem 50 um odor agradável, sei que para mim isto tem um doce sabor, sei que isto para mim é frio” (Ibid., p. 169). Moustapha Safouan, no livro, L’échec du principe du plaisir, chama a atenção para algumas consequências que o problema da percepção acarretou para três filósofos: Platão, Berkeley e Kant. Em Berkeley, a aparência ou a percepção se teria anexado ao próprio eu, de modo que, ao reduzir-se o ser a esta mesma percepção, não se poderia evitar a consequência de negar o ser e, destarte, desprover a percepção de sua própria realidade ou de seu caráter de ser real. Quanto ao autor da Crítica da razão pura, existiria também uma anexação da aparência ou da percepção, não ao eu, mas ao sujeito do conhecimento, cuja função, através da influência que exercem as formas puras da intuição sobre as percepções, é a de organizar ou constituir o objeto como tal. Com relação à coisa mesma, esta permanece como que subtraída ao nosso conhecimento e, portanto, como uma coisa em si, um não-objeto. Isto equivale a dizer que o ser, o não-eu, é mantido, mas sem nenhuma identidade verificável para nós. Em outros termos, embora mantido, este ser continua sendo indeterminado e indeterminável (Cf. SAFOUAN, 1979, p. 23). Em Platão, a percepção de que as coisas se apresentam numa perpétua instabilidade, mobilidade e mutabilidade – o mesmo remo, por exemplo, aparecendo ora inteiriço ora quebrado, ora mais longo ora mais curto, ora num lugar ora noutro – teria conduzido o filósofo a deslocar todos esses fenômenos, não para o percipiens, mas para as próprias coisas percebidas. Mas, assim fazendo, Platão as teria privado de todo status ontológico, de sorte que as realidades sensíveis – por se transformarem continuamente – não podem ser apreendidas pela razão enquanto conceitos. Quanto ao verdadeiro ser, este reside no reino das Ideias, ou das essências inteligíveis, que são divinas, porque inascíveis, imperecíveis, imutáveis, eternas. Assim, conclui Safouan, todo o problema do platonismo consiste em saber como é possível 51 situar o verdadeiro ser acima do mundo sensível e, portanto, fora de nós, reivindicando ao mesmo tempo – em contraste com a incognoscibilidade da coisa-em-si kantiana – a possibilidade mesma de conhecê-lo. Por conseguinte, a distinção entre a aparência e a realidade que, na perspectiva idealista, é assimilada à distinção entre o que pertence ao sujeito e o que reside fora do sujeito, ou do alcance de seu conhecimento, já se acharia enunciada em Platão. Todavia, ela se exprime aqui sob a modalidade de uma separação entre as mutações do mundo sensível – que encerram uma aparência de ser – e o ser verdadeiro (Cf. ibid., p. 23-24). Ora, na minha perspectiva, o que está em jogo, tanto em Platão quanto em Kant, não é –pelo menos em primeiro lugar – a cognoscibilidade ou a incognoscibilidade de uma dessas duas esferas, mas, sobretudo, o espaço por onde possam articular-se, melhor, entrelaçar-se, entressachar-se, imbricar-se, ou entre-mear-se, o inteligível e o sensível. Refiro-me, evidentemente, ao vínculo, ao meio ou ao entre-dois – Lacan diria a letra ou o real – pelo qual se efetua, ou não para de se efetuar, a significação e, consequentemente, a descarga da tensão que todo desejo encerra. É neste sentido que Roland Sublon afirma que a alma platônica e o esquema kantiano já se revelam como uma construção que tenta conjugar o idêntico e o diferente. De resto, é a manipulação da fita unilateral de Moebius que permite mostrar uma estrutura de borda, onde um registro não cessa de passar para o outro, ou pelo outro, no topos mesmo de uma linha sem ponto (Cf. SUBLON, 2004, p. 34). Mas o objetivo que Moustapha Safouan realmente visa alcançar parece ser este: em Freud – que não questiona nem a realidade nem a veracidade da percepção – assiste-se a uma reviravolta radical, na medida em que o princípio do erro é colocado não no objeto, mas no próprio sujeito. Um sujeito – convém lembrar – ao qual o inventor da psicanálise atribui uma tendência originária, primordial, para a alucinação. Eis a 52 razão pela qual a concepção freudiana da percepção estaria mais próxima daquela de Agostinho que daquelas de Platão, Berkeley e Kant. É o que deixa claramente pressupor o analista, ao explicar: Porque, a partir do momento em que ele é submisso a essa tendência, e à necessidade de uma função secundária que dela resulta, o sujeito é suscetível não somente, como diz Agostinho, de julgar como verdadeiro aquilo que é falso (com o risco para o eu de intervir demasiadamente cedo), mas também de julgar como falso aquilo que é verdadeiro (com o risco para o eu de intervir demasiadamente tarde) – (SAFOUAN, 1979, p. 25). Sem embargo, todo desejo é, por natureza, alucinatório, porquanto ele traz consigo uma carga de tensão que quer incondicionalmente, imperiosamente, ser descarregada, aplacada, apaziguada. A própria distorção da realidade, que aparece ora de uma maneira ora de outra, já poderia ser a expressão inconsciente de uma tentativa do sujeito para deslocar a angústia, que acompanha todo desejo. É paradoxal, portanto – para retornarmos à questão da fiabilidade ou não fiabilidade dos sentidos – o fato de que não se pode conceber a busca da verdade, ou daquilo que se considera verdade, sem pensar ao mesmo tempo na ilusão, na aparência, no engano, na mentira, na dúvida. A DÚVIDA E A VOZ DO “MESTRE INTERIOR” Com efeito, já no Contra os Acadêmicos, faz-se delinear a questão que nos diálogos posteriores – A vida feliz, Solilóquios, O livre-arbítrio – e, mais particularmente, nos tratados redigidos a partir de 399 – A Trindade e A Cidade de Deus – Agostinho explicitará como sendo a relação intrínseca entre o engano e a certeza, a razão e a hesitação, a dúvida e a existência. Deste modo, na Trindade e, mais especificamente, 53 na Cidade de Deus, a dúvida será surpreendentemente apresentada como a instância a partir da qual o sábio poderá finalmente afirmar: “Se me engano, então eu existo”, “Si enim fallor, sum” (AGOSTINHO, 2000, p. 564). Mas, como eu insinuei logo acima, essa questão se faz de certo modo presente já no Contra os Acadêmicos e, mais precisamente, no Livro III, onde Agostinho enfatiza que seria um absurdo afirmar: “O sábio não sabe por que vive, não sabe de que modo vive, não sabe se vive e, enfim – não se poderia dizer algo de mais errôneo, delirante e insano – que o sábio existe e, ao mesmo tempo, ignora a sapiência” (AGOSTINHO, 2006, p. 155, grifos meus). Difícil não é deduzir que a passagem sublinhada – não sabe se vive – foi a que deu ensejo para que se detectasse, já no Contra os Acadêmicos, um antecedente daquilo que, no século XVII, Descartes se apropriaria ao elaborar a sua teoria do “Cogito, ergo sum”. No diálogo seguinte, A vida feliz, essa questão será retomada e, nos Solilóquios, ela se tornará ainda mais explícita, na medida em que se trata aqui de um diálogo que Agostinho estabelece consigo mesmo ou, mais exatamente, entre si mesmo e a Razão. É a voz do “mestre interior” que indaga sobre o existir, o viver e o conhecer. A Razão lança esta interrogação: “Tu, que queres conhecer-te, sabes que existes?” A: “Eu o sei”. R: “Como o sabes?” A: “Não o sei”. R: “Tu te sentes simples ou múltiplo?” A: “Não o sei”. R: “Sabes que és movido?” A: “Não o sei”. R: “Sabes que pensas?” A: “Eu o sei”. R: “Logo, é verdade que pensas”. A: “É verdade” (Ibid., p. 533). Como se vê, o sujeito pode duvidar da maneira como sabe que existe, pode duvidar se é simples ou múltiplo, móvel ou fixo, mas não pode duvidar que existe, que pensa, que sabe, que conhece. Ele está, portanto, seguro que se sabe existente, vivente, pensante. A questão da dúvida como um componente essencial do conhecimento, ou da busca da verdade, encontrou a sua formulação emblemática no tratado da Trindade, onde 54 Agostinho, além de fazer uma espécie de balanço da filosofia pré-socrática, reitera o seu método fundamental do diálogo da alma consigo mesma. Assim, nesta passagem, o leitor poderá constatar não somente a dinâmica da introspecção agostiniana, mas também a apropriação ou, mais exatamente, o plágio direto e deslavado que Descartes sobre ela operou nas Meditações: Mas porque se trata da natureza do espírito, retiremos da nossa consideração todos os conhecimentos que nos provêm do exterior, por intermédio dos sentidos do corpo, e consideremos com mais diligência o que já havíamos estabelecido, isto é, que todos os espíritos se conhecem a si mesmos com certeza. Os homens duvidaram se deviam atribuir a faculdade de viver, de recordar, de entender, de querer, de pensar, de saber, de julgar, ao ar, ou ao fogo, ou ao cérebro, ou ao sangue, ou aos átomos, ou a um quinto elemento de natureza corpórea ignorada, além dos quatros elementos conhecidos. Ou também se a estrutura e a constituição de nosso corpo eram capazes de realizar todas essas operações. Uns se esforçaram por defender tal opinião, outros tal outra. Todavia, quem poderia duvidar que vive, que recorda, que compreende, que quer, que pensa, que sabe, que julga? Porque, mesmo se duvida, vive; se duvida, recorda-se de onde provém a sua dúvida; se duvida, compreende que duvida; se duvida, quer estar certo; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que não deve dar o seu assentimento temerariamente. Portanto, quem duvida de outras coisas não deve duvidar de todas estas, porque, se não existissem, não poderia duvidar de nenhuma coisa (AGOSTINHO, 1998, p. 320). Essa mesma ideia retornará na Cidade de Deus, livro que o teólogo africano compôs no tempo em que ainda redigia A Trindade e, mais precisamente, entre 413 e 426. Ei-la, pois, reformulada e condensada: Com respeito a essas verdades, não temo as objeções dos Acadêmicos. Eles dizem: “Supões que te enganas?” Eu replico: 55 “Se me engano, então eu existo (Si enim fallor, sum)”. Quem não existe não pode enganar-se; portanto, se me engano, existo. E porque existo, se me engano, como posso enganar-me pensando que existo, quando é certo que existo porque me engano? Logo, já que eu devo existir porque me engano, então, mesmo quando me engano, não há dúvida de que eu não me engano no conhecimento de que existo. Segue-se também que eu não me engano enquanto conheço que me conheço. Assim como conheço que existo, assim também conheço que conheço (AGOSTINHO, 2000, p. 564). Depois dessas considerações, urge, portanto, mais uma vez reiterar: o paradoxo fundamental da construção da verdade efetuada pelo “mestre interior” consiste justamente em que dela a dúvida não pode ser excluída. Afinal de contas, seria possível pensar a verdade sem a mentira, o lógicosem o ilógico, o racional sem o irracional, a vontade de verdade sem a vontade de engano, de aparência, de ilusão? Isto quer dizer que a dúvida é radicalmente inerente à busca da verdade, cuja realização só pode dar-se através da linguagem que, por natureza, é incompleta, dispersa, fragmentária, lacunar. Neste sentido, o texto – enquanto espaço através do qual a multiplicidade de significantes não cessa de se desdobrar e de se repetir – já é sintomático da impossibilidade mesma de se lançar a última palavra, a última interpretação, a última significação. Assim, o que está em jogo em Agostinho e, finalmente, em todo pensador é a tentativa mesma de se inscrever, de se dizer e de se significar o desejo na sua eterna, sempre renovada e sempre recomeçada satisfação–insatisfação... REFERÊNCIAS AGOSTINHO. Tutti i dialoghi. Milano: Bompiani, 2006. _______. La città di Dio. Roma: Città Nuova, 2000. _______. La Trinità. Roma: Città Nuova, 1998. 56 DESCARTES, René. Les méditations. In Oeuvres philosophiques, 3 v., Tome II. Paris: F. Alquié, 1999. LACAN, Jacques. Le Séminaire, Livre I, Les écrits techniques de Freud. Paris: Seuil, 1975. MARROU, Henri-Irénée. Saint Augustin et la fin de la culture antique. Paris: De Boccard, 1958. NIETZSCHE, Friedrich. Jenseits vont Gut und Böse. In Kritische Studienausgabe, 15 v. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988. SAFOUAN, Moustapha. L’échec du principe du plaisir. Paris: Seuil, 1979. SUBLON, Roland. L’éthique ou la question du sujet. Strasbourg: Le Portique, 2004. 57 Capítulo 4 TTOOMMÁÁSS DDEE AAQQUUIINNOO:: FFIILLOOSSOOFFIIAA EE PPEEDDAAGGOOGGIIAA Jean Lauand INTRODUÇÃO Tomás de Aquino (1224[5] – 1274) é, sem dúvida, o mais importante pensador medieval. Sua filosofia – indissociável da teologia, em sua época – tem importantes projeções pedagógicas, também para o educador de hoje, para além do interesse meramente histórico. Neste estudo, destacaremos três aspectos, de especial atualidade, do pensamento tomasiano: a valorização do mundo material; a afirmação da primazia da virtude da prudentia; e sua perspectiva negativa em filosofia. A vida de Tomás de Aquino está centrada no século XIII. Desde o século anterior – um século de renascimento cultural, após um longo período de aridez intelectual – já se estabeleciam as condições que possibilitariam as profundas inovações trazidas pelo pensamento do Aquinate. De fato, com a queda do Império Romano no Ocidente (consumada em 476) e consequente instalação de reinos bárbaros no espaço geográfico da extinta Roma, a primeira Idade Média encontrava-se em condições precárias de cultura e educação. O esplendor da cultura clássica foi substituído pela “idade das trevas”: tribos bárbaras, não só analfabetas, 58 mas (até há pouco) ágrafas, são a nova realidade dominante na Europa. Do ponto de vista cultural e pedagógico, alguns autores, como Josef Pieper, preferem estabelecer o ano 529 como marco inicial da Idade Média. Nesse ano, ocorrem dois fatos emblemáticos: o imperador Justiniano (o império romano no Oriente permanecerá até 1453) fecha a Academia de Atenas: já não haverá lugar para a cultura pagã. E São Bento funda o mosteiro de Monte Cassino: não por acaso, os primeiros séculos medievais são, na História da Educação, chamados de “Idade Beneditina”. Os mosteiros beneditinos serão, em meio à desolação cultural da primeira Idade Média, o refúgio onde se alojará e conservará o pouco conhecimento que restou do fim da Antiguidade, graças a educadores como Boécio e Cassiodoro. Boécio, o “último romano”, um dos mais importantes nomes da história da educação, foi encarregado pelo rei Teodorico de organizar a cultura no reino ostrogodo. Conhecedor profundo da ciência e da filosofia gregas, Boécio empreende um projeto pedagógico realista: uma cultura de resumos. Ele sabe que o esplendor das culturas grega e romana desapareceu e que a nova realidade são os ostrogodos, incapazes de ascenderem às alturas do mundo clássico. E empreende, na corte do rei, uma pedagogia de traduções e conteúdos mínimos: a imponente geometria de Euclides, a aritmética, a astronomia... são reduzidas a livrinhos super elementares e sumaríssimos. Embora suas ambições para a filosofia fossem muito maiores, sua trágica morte (em 525, quatro anos antes do aparecimento da ordem beneditina) deixou o Ocidente sem traduções de Platão e com muito pouco de Aristóteles. Boécio, uma inteligência superior, tinha talento para muito mais do que para resumos e traduções, mas, como grande educador, optou pela tarefa exigida por sua época: o trabalho obscuro e pouco original de elaboração de sementes 59 secas, que pudessem um dia, em futuro longínquo, germinar, florescer e frutificar. Cassiodoro, também um culto romano, colega de Boécio na corte de Teodorico, percebeu que não havia condições de cultivo do saber na tumultuada corte do reino bárbaro e, em 555, funda o mosteiro de Vivarium, marco importante na história da educação. Curiosamente, os bárbaros, em geral, respeitavam o espaço sagrado do mosteiro e Vivarium torna- se um paradigma para a Europa: a partir de então, o mosteiro será não só um lugar de oração, mas também de cultura: de estudo e cópia de livros e de ensino elementar. Nos séculos XII e XIII, ocorrem mudanças significativas: intensifica-se a urbanização e muda também o centro de gravidade da educação: das escolas monásticas para as escolas catedrais e as nascentes universidades. Surgem as ordens mendicantes, os dominicanos (à qual Tomás se filiará) e os franciscanos; renascem as ciências e redescobre-se Aristóteles (inicialmente por meio de traduções do árabe na Espanha reconquistada) etc. Se, na primeira Idade Média, o pensamento estivera praticamente limitado aos livros de Sentenças, compilação de pensamentos dos santos padres, e à preservação com pouco desenvolvimento daquela “cultura de resumos”, legada por Boécio, Cassiodoro ou Isidoro de Sevilha; agora, com o renascimento cultural do século XII, já podem ser elaboradas as Sumas, grandiosas sínteses pessoais, como a Suma Teológica de Tomás. Nesse ambiente de efervescência intelectual é que se desenvolve, contra a corrente, o pensamento de Tomás, um dos primeiros membros da ordem dominicana e um dos primeiros grandes professores da Universidade de Paris, ambas fundadas em 1215. Os três pontos do pensamento de Tomás que aqui destacaremos, por seu interesse pedagógico, estão, na verdade, interligados em torno do conceito central de Criação. Porque o 60 mundo é criação, o corpo, a matéria são essenciais ao ser que Deus deu ao homem. Tomás assume corajosamente o ser corporal do homem em todas as suas dimensões, que incluem, evidentemente, o conhecimento, a aprendizagem e a educação. Por ser criado, por ter recebido esse ser corpóreo, acentua-se o caráter negativo da filosofia e da teologia: nosso conhecimento (e nossa linguagem) não consegue abarcar Deus nem as coisas, que foram criadas pelo Logos, a Inteligência divina. Assim, se a realidade é mistério para o homem, suas decisões de ação, que ainda por cima estão inseridas na concretude do “aqui e agora”, não podem ser diretamente guiadas por certezas abstratas, mas pela virtude pessoal do discernimento da decisão certa: a prudentia. O HOMEM COMO INTRÍNSECA UNIÃO ESPÍRITO-MATÉRIA No centro da filosofia da educação de Tomás, encontra- se a tese fundamental de sua antropologia: anima forma corporis, a profunda unidade, no homem, entre espírito e matéria: a alma é forma substancial, em intrínseca união com a matéria. Essa tese, originariamente aristotélica, não era, como se sabe, bem vista nos meios teológicos da época: era considerada perigosa para um cristianismo que não valorizava a matéria e o corpo; a doutrina teológica dominante pretendia uma concepção demasiadamente espiritualista do homem:o homem possuiria três almas e a alma verdadeiramente importante seria a espiritual (e não as duas corpóreas: sensitiva e vegetativa) e a condição carnal era considerada antes um estorvo para a elevação do espírito. Contra essas antropologias “angelistas”, Tomás - corajosa e decididamente - afirma o homem total, com a intrínseca união espírito-matéria, pois a alma é forma: co- princípio ordenado para a intrínseca união com a matéria. Quando Tomás diz: “É evidente que o homem não é só a alma, 61 mas um composto de alma e de corpo” (I, 75, 4) esse “é evidente”, na verdade, refere-se à verdade das coisas e não às opiniões teológicas de seu tempo... Esse “materialismo” de Tomás está presente in- formando todo seu pensamento, por exemplo: quando discute o jejum excessivo nas questões de Quodlibet, dirá que o jejum é sem dúvida pecado (absque dubio peccat) quando debilita a natureza a ponto de impedir as ações devidas: que o pregador pregue, que o professor ensine, que o cantor cante..., que o marido tenha potência sexual para atender sua esposa! Aquele que assim se abstém de comer ou de dormir, oferece a Deus um holocausto que é fruto de um roubo12. Tomás aceita tão completamente o corpo como integrante essencial da realidade do ser humano que esta união se projeta até na operação espiritual que é o conhecimento intelectual: “A alma necessita do corpo para conseguir o seu fim, na medida em que é pelo corpo que adquire a perfeição no conhecimento e na virtude” (C. G. 3, 144). E contra aquela tradição teológica que afirmava a iluminação imediata da inteligência humana por Deus (para o Aquinate Deus nos deu sua luz, dando-nos o intelecto), Tomás afirma que só podemos chegar às ideias mais abstratas e às considerações mais espirituais a partir da realidade sensível, material, concreta: “O intelecto humano, que está acoplado ao corpo, tem por objeto próprio a natureza das coisas existentes corporalmente na matéria. E, mediante a natureza das coisas 12 Et ideo huiusmodi sunt adhibenda cum quadam mensura rationis: ut scilicet concupiscentia devitetur, et natura non extinguatur; secundum illud Ad Rom., XII, 1: “exhibeatis corpora vestra hostiam viventem; et postea subdit: rationabile obsequium vestrum. Si vero aliquis in tantum virtutem naturae debilitet per ieiunia et vigilias, et alia huiusmodi, quod non sufficiat debita opera exequi; puta praedicator praedicare, doctor docere, cantor cantare, et sic de aliis; absque dubio peccat; sicut etiam peccaret vir qui nimia abstinentia se impotentem redderet ad debitum uxori reddendum. unde Hieronymus dicit: “De rapina holocaustum offert qui vel ciborum nimia egestate vel somni penuria immoderate corpus affligit; et iterum rationalis hominis dignitatem amittit qui ieiunium caritati, vigilias sensus integritati praefert. (Quodl. 5, q. 9, a. 2, c). 62 visíveis, ascende a algum conhecimento das invisíveis” (I, 84, 7). Nesta afirmação resume-se a própria estrutura ontológica do homem. E, insistamos, mesmo as realidades mais espirituais só são alcançadas, por nós, através do sensível: “Ora - prossegue Tomás -, tudo o que nesta vida conhecemos, é conhecido por comparação com as coisas sensíveis naturais”. Esse voltar-se para o concreto, para o sensível, marca profundamente não só a pedagogia, mas é mesmo uma clave de interpretação de todo o pensamento de Tomás de Aquino. Outro exemplo: a autoridade de Agostinho havia estabelecido (como no De Trinitate, sobretudo no livro XV) a memória como a primeira realidade do espírito, da qual procedem o pensar e o querer: é portanto um reflexo de Deus Pai, do qual procedem o Verbo e o Espírito Santo. O jovem Tomás do Comentário às Sentenças ainda fala de três potências espirituais: memória, inteligência e vontade. Mas, na Summa e no De Veritate, rompe com essa visão, situando a memória como uma faculdade sensível. Por exemplo, quando na Suma explica que a memória é parte da Prudência, afirma: “A prudência aplica o conhecimento universal aos casos particulares, dos quais se ocupam os sentidos. Daí que a prudência requer muito da parte sensitiva, na qual se inclui a memória” (I-II, 49, 1 ad 1). Para além de todas as distinções (é evidente que há uma dimensão da memória que é intelectual - lembrar de um teorema - etc.) e tendo em conta que no homem tudo está integrado pela alma..., a memória é fundamentalmente sensorial. O sensorial perpassa a pedagogia de Tomás (como em ad 2 de II-II, 49,1) ao apontar as leis fundamentais da memória, diz que para nos lembrarmos devemos estabelecer semelhanças (similitudines) adequadas para o que se quer recordar. Mas, afirma, não semelhanças usuais, pois guardamos melhor o invulgar. E, assim, prossegue o Aquinate, é necessário encontrar semelhanças, metáforas ou imagens, 63 pois as realidades espirituais facilmente se esvaem se não estão “amarradas” a alguma semelhança corpórea (nisi quibusdam similitudinibus corporalis quasi alligentur). E isto, conclui, porque o conhecimento humano é mais forte com relação ao sensível. A PRIMAZIA DA VIRTUDE DA PRUDENTIA É difícil subestimar a importância da virtude da prudência, a principal das virtudes cardeais (prudência, justiça, fortaleza e temperança), no pensamento de Tomás: não é que ela seja a primeira inter pares, mas é principal em uma ordem superior, é a mãe das virtudes, genitrix virtutum (In III Sent., d 33, q 2, a 5, c) e a guia das virtudes, auriga virtutum (In IV Sent., d 17, q 2, a 2, dco). Por mais destacada, porém, que seja a importância histórica do Tratado da Prudência de Tomás, seu interesse transcende o âmbito da história das ideias e instala-se - superadas as naturais barreiras de linguagem dos 750 anos que nos separam do Aquinate - no diálogo direto com o homem do nosso tempo, como rica contribuição para alguns de seus mais urgentes problemas existenciais. Além do mais, a doutrina sobre a prudência tem o condão de expressar, de modo privilegiado, as diretrizes fundamentais de todo o filosofar de Tomás. Para bem avaliar o significado e o alcance do Tratado da Prudência é necessário, antes de qualquer coisa, atentar para o fato de que prudência é uma daquelas tantas palavras fundamentais que sofreram desastrosas transformações semânticas com o passar do tempo: aquela palavra, que originalmente designava uma qualidade positiva, esvazia-se de seu sentido inicial ou passa até a designar uma qualidade negativa. “Prudência” já não designa hoje a grande virtude, mas sim a conhecida cautela (um tanto oportunista, ambígua e 64 egoísta) ao tomar (ou ao não tomar...) decisões. Se hoje a palavra prudência tornou-se aquela egoísta cautela da indecisão “em cima do muro”, em Tomás, ao contrário, ela expressa exatamente o oposto da indecisão: é a arte de decidir-se corretamente, isto é, com base não em interesses oportunistas, não em sentimentos piegas, não em impulsos, não em temores, não em preconceitos etc., mas, unicamente, com base na realidade: em virtude do límpido conhecimento do ser. É este conhecimento do ser que é significado pela palavra ratio na definição de prudentia: recta ratio agibilium, “reta razão aplicada ao agir”, como repete, uma e outra vez, Tomás. Prudência é ver a realidade e, com base nessa visão, tomar a decisão certa. Por isso, como repete Tomás, não há nenhuma virtude moral sem a prudência, e mais: “sem a prudência, as demais virtudes, quanto maiores fossem, mais dano causariam” (In III Sent. d 33, q 2, a 5, sc 3). Com as alterações semânticas, porém, tornou-se intraduzível, para o homem de nosso tempo, uma sentença de Tomás como: “a prudentia é necessariamente corajosa e justa”13. Sem esse referencial, tomamos nossas decisões fundamentados em quê? Quando não há a simplicitas, a simplicidade da prudência que se volta para a realidade como único ponto decisivo na decisão, ela acaba sendotomada, como dizíamos, com base em diversos outros fatores: por preconceitos, por razões interesseiras, por impulso egoísta, pela opinião coletiva, pelo “politicamente correto”, por inveja ou por qualquer outro vício... Mas este ver a realidade é somente uma parte da prudência; a outra parte, ainda mais decisiva (literalmente) é transformar a realidade vista em decisão de ação, em comando: de nada adianta saber o que é bom, se não há a decisão de realizar este bem... 13 Nec prudentia vera est quae iusta et fortis non est (I-II, 65, 1). 65 O nosso tempo, que se esqueceu até do verdadeiro significado da clássica prudentia, atenta contra ela de diversos modos: em sua dimensão cognoscitiva (a capacidade de ver o real, por exemplo, aumentando o ruído - exterior e interior – que nos impede de “ouvir” a realidade) e em sua dimensão prescritiva, no ato de comandar: o medo de enfrentar o peso da decisão, que tende a paralisar os imprudentes (pois, insistamos, a prudência toma corajosamente a decisão boa!). A grande tentação da imprudência (sempre no sentido clássico) é a de delegar a outras instâncias o peso da decisão que, para ser boa, depende só da visão da realidade. Há diversas formas dessa abdicação: do abuso de reuniões desnecessárias à delegação das decisões a terapeutas, comissões, analistas e gurus, passando por toda sorte de consultas esotéricas. Uma das mais perigosas formas de renúncia a enfrentar a realidade (ou seja, a renúncia à prudentia) é trocar essa fina sensibilidade de discernir o que, naquela situação concreta, a realidade exige por critérios operacionais rígidos, como num “Manual de escoteiro moral” ou, no campo do direito, num estreito legalismo à margem da justiça. É também o caso do radicalismo adotado por certas propostas religiosas. Tal como o “Ministério do Vício e da Virtude” do antigo regime Taliban, algumas comunidades cristãs - em vez de afirmar o direito (e o dever) do fiel de discernir o que é bom em cada situação pessoal concreta - simplificam grosseiramente: em caso de dúvida, é pecado e pronto! O Tratado da Prudência de Tomás é o reconhecimento de que a direção da vida é competência da pessoa e o caráter dramático da prudência se manifesta claramente quando Tomás mostra que não há “receitas” de bem agir, não há critérios comportamentais operacionalizáveis, porque - e esta é outra constante no Tratado - a prudência versa sobre ações contingentes, situadas no “aqui e agora”. 66 É que a prudência é virtude da inteligência, mas da inteligência do concreto: a prudência não é a inteligência que versa sobre teoremas ou princípios abstratos e genéricos, não!; ela olha para o “tabuleiro de xadrez” da situação “aqui e agora”, sobre a qual se dão nossas decisões concretas, e sabe discernir o “lance” certo, moralmente bom. E o critério para esse discernimento do bem é: a realidade! Saber discernir, no emaranhado de mil possibilidades que esta situação me apresenta (que devo dizer a este aluno?, compro ou não compro?, caso-me ou não?, devo responder a este e-mail? etc.), os bons meios concretos que me podem levar a um bom resultado, à plenitude da minha vida, minha realização enquanto homem. E para isto é necessário ver a realidade concretamente. De nada adiantam os bons princípios abstratos, sem a prudentia que os aplica - como diz Tomás - ao “outro pólo”: o da realidade (que significa “amar o próximo” nesta situação concreta?). A condição humana é tal que - muitas vezes - não dispomos de regras operacionais concretas: sim, há um certo e um errado objetivos, um “to be or not to be” pendente de nossas decisões, mas não há regra operacional. Tal como para o bom lance no xadrez, há até critérios gerais objetivos... mas, não operacionais concretos! Por mais que nosso tempo insista em querer eliminar a verdade objetiva, no fundo sabemos que há certo e “errados” objetivos e que a decisão do agir é um problema de ratio, de recta ratio... Quando, diante de uma ação, perguntamos “por quê?”, estamos perguntando é pela razão (reason, raison...): “Por que razão você fez isto?”. E o mesmo ocorre quando, diante de uma ação, dizemos: “É, você tem razão...”, “está coberto de razão”, etc. E para uma ação que é um grave mal moral, dizemos: “Que absurdo!” (falta razão). Isto não quer dizer que a pessoa tenha sempre uma justificativa racional pronta, consciente para cada ato. A prudência decide bem, mas com a espontaneidade da virtude. 67 Aliás, segundo Tomás, a função da virtude (como a de todo hábito em geral) é precisamente a de permitir realizar o ato com facilidade, “espontaneamente”, com certo “automatismo” que não tira a liberdade, antes pelo contrário... (quem objetaria a espontaneidade adquirida - após árduos esforços - dos hábitos para extrair acordes do piano, falar uma língua estrangeira ou andar de bicicleta?). Trata-se, portanto, de uma “inteligência” moral, da insubornável fidelidade ao real, que aprende da experiência e, portanto, como víamos, requer a memória como virtude associada: a memória fiel ao ser. No artigo dedicado à virtude da memoria, Tomás observa que não pode o homem reger-se por verdades necessárias, mas somente pelo que acontece in pluribus (geralmente). Note-se que esta é também a razão da insegurança em tantas decisões humanas: a prudentia traz consigo aquele enfrentamento do peso da incerteza, que tende a paralisar os imprudentes. É dessa dramática imprudência da indecisão que falam alguns clássicos da literatura: do “to be or not to be...” de Hamlet aos dilemas kafkianos (o remorso impõe-se a qualquer decisão), passando pelo Grande Inquisidor de Dostoiévski, que descreve “o homem esmagado sob essa carga terrível: a liberdade de escolher” (DOSTOIÉVSKI, s.d., p. 226) e apresenta a massa que abdicou da prudência e se deixa escravizar, preferindo “até mesmo a morte à liberdade de discernir entre o bem e o mal” (Ibidem, p. 225). E, assim, os subjugados declaram de bom grado: “Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis” (Ibidem, p. 224). É interessante observar que, desde a tenra infância, o drama da decisão era-nos proposto sob diversas formas. Éramos advertidos de que a vida - fortuna velut luna... - era uma ciranda na qual “vamos todos cirandar”, e que junto com juras de amor eterno vinham anéis de vidro: 68 O anel que tu me deste era vidro e se quebrou. O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou. E a inveja e a eterna insatisfação humana eram ludicamente desmascaradas: a galinha do vizinho é que bota ovo amarelinho (e ainda por cima: bota um, dois,..., dez!). E aprendíamos que a prudência só vem com a experiência: “enganei um bobo, na casca do ovo...”. E mais: na ingenuidade da infância, assumíamos nossa incapacidade de realizar as escolhas fundamentais (como a de ter que decidir quem é que ia se encarregar da triste missão de jogar no gol...) e as confiávamos claramente à cega sorte (“lá em cima do piano tem um copo de veneno...” ou “minha mãe mandou escolher este daqui...”, ou ainda o “bem-me-quer”, “uni, duni, tê” etc.). Hoje, adultos, não adotamos mais esse critério (que, pelo menos, tinha a vantagem de sinceramente reconhecer a incapacidade de decidir). Nós pretendemos não necessitar de uma virtude (toda a profunda antropologia das virtudes cardeais nem sequer está mais em nosso campo de visão...), pois presumimos dispor de recursos técnicos ou científicos que permitam tornar dispensável o âmbito moral, a virtude cardeal da prudência. Mas, não por acaso, “cardeal” vem da palavra latina cardus, gonzo, eixo em torno do qual se abre a porta (a porta da realização humana, do to be). Abdicar da Prudentia, a cardeal das cardeais, significa perder o eixo, o gonzo, tornar-se des-engonçado existencialmente! Abdicar da prudência é abdicar da realidade e confiarmos a um Ersatz - como ao Grande Inquisidor- as decisões fundamentais da existência... 69 A PRUDENTIA NO PENSAMENTO “NEGATIVO” DE TOMÁS Neste tópico procuraremos mostrar como a doutrina da prudência tem um caráter revelador de todo o posicionamento filosófico-teológico de Tomás. Esse posicionamento é o de uma theologia negativa e de uma philosophia negativa. Precisamente pela ignorância desse decisivo caráter “negativo” no pensamento de Tomás é que ele tem sido frequentemente mal compreendido, até pelos tomistas. Aliás, o filosofar de Tomás é tal que é incompatível com um “tomismo”14, com um “sistema” filosófico ou com um racionalismo (e tantas vezes Tomás tem sido injustiçado com o rótulo de racionalista). Examinemos três instâncias desse caráter negativo no pensamento de Tomás. No que diz respeito ao conhecimento, Tomás assume uma philosophia negativa. Para a descrição desse posicionamento, recorremos à incomparável análise de Josef Pieper, em Unaustrinkbares Licht: Limitamo-nos a falar apenas da philosophia negativa - embora Tomás tenha formulado também os princípios de uma theologia negativa. Certamente este traço também não aparece com clareza nas interpretações usuais; frequentemente é até ocultado. Será raro encontrar menção do fato de a discussão sobre Deus da Summa Theologica15 começar com a sentença: ‘Não podemos saber o que Deus é, mas sim, o que Ele não é’. Não pude encontrar um só compêndio de filosofia tomista, no 14 Josef Pieper, talvez o melhor intérprete de Tomás em nosso tempo, afirma: “Não pode haver um ‘tomismo’ porque a grandiosa afirmação que representa a obra de S. Tomás é grande demais para isso (...). S. Tomás nega-se a escolher algo; empreende o imponente projeto de ‘escolher’ tudo (...). A grandeza e a atualidade de Tomás consistem precisamente em que não se lhe pode aplicar um ‘ismo’, isto é, não pode haver propriamente um ‘tomismo’ (‘propriamente’, isto é: não pode haver enquanto se entenda por ‘tomismo’ uma especial direção doutrinária caracterizada por asserções e determinações polêmicas, um sistema escolar transmissível de princípios doutrinais)” (Thomas von Aquin: Leben und Werk. München: DTV, 1981, p. 27). 15 Quia de Deo scire non possumus quid sit sed quid non sit, non possumus considerare de Deo quomodo sit, sed potius quomodo non sit - Summa Theologica I, 3 prologus. 70 qual se tenha dado espaço àquele pensamento, expresso por Tomás em seu Comentário ao De Trinitate de Boécio16: o de que há três graus do conhecimento humano de Deus. Deles, o mais fraco é o que reconhece Deus na obra da criação; o segundo é o que O reconhece refletido nos seres espirituais e o estágio superior reconhece-O como o Desconhecido: tamquam ignotum! E tampouco encontra-se aquela sentença das Quaestiones disputatae: ‘Este é o máximo grau de conhecimento humano de Deus: saber que não O conhecemos’, quod (homo) sciat se Deum nescire17. E, quanto ao elemento negativo da philosophia de Tomás, encontramos aquela sentença sobre o filósofo, cuja dedicação ao conhecimento não é capaz sequer de esgotar a essência de uma única mosca. Sentença que, embora esteja escrita em tom quase coloquial, num comentário ao Symbolum Apostolicum18, guarda uma relação muito íntima com diversas outras afirmações semelhantes. Algumas delas são espantosamente ‘negativas’ como, por exemplo, a seguinte: Rerum essentiae sunt nobis ignotae; ‘as essências das coisas nos são desconhecidas’19. E esta formulação não é, de modo algum, tão incomum e extraordinária, quanto poderia parecer à primeira vista. Seria facilmente possível equipará-la (a partir da Summa Theologica, da Summa contra Gentes, dos Comentários a Aristóteles, das Quaestiones disputatae) a uma dúzia de frases semelhantes: Principia essentialia rerum sunt nobis ignota20; formae substantiales per se ipsas sunt ignotae21; differentiae essentiales sunt nobis ignotae22. Todas elas afirmam que os ‘princípios da essência’, as ‘formas substanciais’, as ‘diferenças essenciais’ das coisas, não são conhecidas. Esse caráter “negativo” informa também seu modo de fazer teologia, teologia essencialmente bíblica. Contra as rationes necessariae de um Anselmo, contra a pretensão de deduzir logicamente as verdades da fé, Tomás afirma o mistério para o homem, contraponto da liberdade de Deus: 16 I, 2 ad 1. 17 Quaest. Disp. de potentia Dei, 7, 5 ad 14. 18 Cap. I. 19 Quaest. Disp. de veritate 10, 1. 20 In De Anima 1, 1, 15. 21 Quaest. disp. de spiritualibus criaturis, 11 ad 3. 22 Quaest. Disp. de veritate 4, I ad 8. 71 “Não há nenhum argumento de razão, naquelas coisas que são de fé23“. E na questão: “Se Deus teria se encarnado se não tivesse havido o pecado do homem”, Tomás recolhe como objeções os argumentos tradicionais na Escolástica: “Sim, a Encarnação necessariamente ocorreria, pois a perfeição pressupõe a união do primeiro - Deus - com o último, o homem”; ou: “Seria absurdo supor que o pecado tivesse trazido para o homem a vantagem da Encarnação e que, portanto, necessariamente, teria havido Encarnação, mesmo sem o pecado”... Tomás, em sua resposta, refuta categoricamente essas objeções, afirmando: “A verdade sobre esta questão só pode conhecê-la Aquele que nasceu e se entregou porque quis (In III Sent. d 1, q 1, a 3, c.)”24. Nesse quadro “negativo”, pode-se compreender melhor o significado da prudentia em Tomás: porque não conhecemos completamente as coisas, não podemos ter a certeza matemática nem critérios operacionais para discernir o bem; para a boa decisão moral, precisamos das (frágeis e incertas) luzes da prudentia: ter a memória do passado, examinar as circunstâncias (e as circunstâncias como fonte de moralidade detonam qualquer tentativa de espartilhar a conduta em “manuais de escoteiro” morais), recorrer ao conselho (não por acaso, com a supressão da prudentia na pregação da Igreja contemporânea, “conselho” deixou de significar aconselhar-se a si mesmo e passou só a significar conselho dado por outro), etc. E é que também no que se refere à prudentia, estão, como pano de fundo, os dois elementos-chave de Tomás: mistério e liberdade. Afirmar a prudentia é afirmar que cada pessoa é a protagonista de sua vida, só ela é responsável, em suas decisões livres, por encontrar os meios de atingir seu fim: a 23 In III Sent. d 1, q 1, a 2, c. 24 Este exemplo está em Josef Pieper. Scholastik. München: DTV, 1978. O capitulo XI é indispensável para este tema. 72 sua realização. Esses meios não são determináveis “a priori”; pertencem, pelo contrário, ao âmbito do contingente, do particular, do incerto, do futuro e, necessariamente, a prudentia se faz acompanhar da insegurança, da necessária insegurança que acompanha toda vida autenticamente humana. Afinal, para Tomás, o que o conceito de pessoa acrescenta à essência humana é precisamente a individualidade concreta: “alma, carne e osso, são configuradores do homem (sunt de ratione hominis); mas esta alma, esta carne e estes ossos são configuradores deste homem (sunt de ratione huius hominis) e assim ‘pessoa’ acrescenta à configuração da essência os princípios individuais” (I, 29, 2 ad 3). Qualquer atentado contra a prudentia tem como pressuposto a despersonalização, a falta de confiança na pessoa, considerada sempre “menor de idade” e incapaz de decidir e, portanto, devendo transferir a direção de sua vida para outra instância: a igreja, o estado etc. Em qualquer caso, isso é sempre muito perigoso. Como é perigoso que a educação não se lembre dessa virtude... REFERÊNCIAS LAUAND, Jean (org.) Cultura e Educação na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998. _______. “A mística da cozinha: de Heráclito a Adélia Prado”. International Studies on Law and Education. São Paulo: Cemoroc-Feusp, No.7, jan-abr 2011, pp. 55-68. Ed. on line: http://www.hottopos.com/isle7/55-68Jean.pdf _______. “Fingir para Germinar: Educação e Antropologia - I”. Revista Internacional d’Humanitats. São Paulo: Cemoroc-Feusp, No. 20, setn-dez 2010, pp. 29-34. Ed. on line: http://www.hottopos.com/rih20/jean.pdf PIEPER, Josef “Luz Inabarcável - o Elemento Negativo na Filosofia de Tomás de Aquino” (trad. G. Greggersen; rev. téc.: Jean Lauand). Convenit. São Paulo: Mandruvá, No. 1. Ed. on line: http://www.hottopos.com/convenit/jp1.htm. 73 TOMÁS DE AQUINO. A Prudência (trad. e estudos introdutórios Jean Lauand). São Paulo: Martins Fontes, 2005. _______. Sobre o ensino e os sete pecados capitais (trad. e estudos introdutórios Jean Lauand). São Paulo: Martins Fontes, 2004. _______. Verdade e conhecimento (trad. e estudos introdutórios Jean Lauand e M. B. Sproviero). São Paulo: Martins Fontes, 1999. 74 Capítulo 5 BBOOAAVVEENNTTUURRAA EE AA FFIILLOOSSOOFFIIAA:: OO EENNSSIINNOO UUNNIIVVEERRSSIITTÁÁRRIIOO Eduardo Vieira da Cruz Em 1273, Boaventura faz uma série de conferências na Universidade de Paris, onde adverte os presentes sobre os perigos que o estudo da filosofia poderia fazê-los correr25. Compreender os motivos que o levam a tal gesto é compreender, ao mesmo tempo, o contexto histórico-doutrinal em que se insere, o lugar que a filosofia ocupa no pensamento do doutor seráfico, assim como a função que o estudo da filosofia desempenha na construção do saber universitário de então. Comecemos por esse último aspecto. Como, atualmente, o estudo do pensamento medieval não goza de grande 25 Trata-se de sua última obra, as Collationes in Hexaemeron (Conferências sobre os seis dias da Criação). A collatio (conferência) é, ao lado da homilia e do sermão, uma das formas da praedicatio (pregação) medieval. Há dois tipos de collatio: a monástica e a universitária. Enquanto a primeira é um abade ou um eminente religioso que a pronuncia, na collatio universitária cabe a um mestre em teologia a tarefa de desenvolver um conteúdo mais doutrinal, perante uma audiência composta de mestres, licenciados, bacharéis e estudantes inscritos na faculdade (cf. POIREL, 2002, p. 1138 e LIBERA, 1997, p. 10). Em outras duas séries de conferências, Boaventura aponta o caráter problemático da filosofia – e daqueles que a propagam – para a compreensão das verdades reveladas: nas Collationes de decem praeceptis (Conferências sobre os dez mandamentos), proferidas em 1267; e nas Collationes de septem donis spiritus sancti (Conferências sobre os sete dons do Espírito Santo), realizadas no ano seguinte. Os três textos encontram-se no quinto volume das Opera Omnia de Boaventura (1882-1902). Os dois primeiros foram objeto de traduções francesas (BOAVENTURA, 1991 e 1992, respectivamente). 75 popularidade entre os estudantes de filosofia, é aconselhável relembrar algumas particularidades do ensino universitário deste período. O que se convencionou chamar de Universidade26 – e que se distingue, mais do que se costuma acreditar, daquilo que entendemos hoje por esse termo – constituía-se por quatro Faculdades, cuja importância, à primeira vista, estabelecia uma hierarquia pedagógica, reflexo das distinções de prestígio. Havia três Faculdades que encarnavam os estudos superiores: Direito (canônico e civil), Medicina e Teologia. Embora seja legítimo, por comodidade didática, reuni-las em uma mesma categoria, a scientia relativa a cada Faculdade não era por isso menos hierarquizada – a teologia, nesse aspecto, reinando absoluta. Entretanto, o que interessa à reflexão que aqui propomos não são as relações mais ou menos harmoniosas entre essas Faculdades, mas a relação comum em que se encontravam face à Faculdade de Artes27, responsável pelo ensino de disciplinas preparatórias e, desse ponto de vista, inferiores às que se ministravam nas outras28. Nesse sentido, parece-nos que o papel da Faculdade de Artes comportava certa ambiguidade, na medida em que essa inferioridade pode ser também, ou principalmente, entendida como anterioridade necessária. Com efeito, ela era passagem obrigatória no percurso estudantil daquele que ambicionasse ingressar em uma das outras três Faculdades. 26 Na Idade Média, o termo universitas evolui, a partir do seu sentido clássico de totalidade ou conjunto, e assume o valor de um termo jurídico, significando uma corporação ou comunidade com autonomia para, por exemplo, constituir estatutos próprios ou conferir graus acadêmicos. Aparece pela primeira vez em 1221, em um texto parisiense, na expressão “universitas magistrorum et scolarium”, para designar a comunidade de mestres e estudantes (cf. IMBACH, 2006, p. 1420). Para se adquirir uma noção geral da natureza e do funcionamento das universidades medievais, ver Verger, 1973. 27 O vocábulo ars (arte), quando usado no plural artes, significa as artes liberais (BLAISE, 1998). Com relação aos termos medievais, utilizamos, sempre que possível, o Lexicon de A. Blaise (1998) e, no que concerne especificamente a Boaventura, o Lexique de J. G. Bougerol (1969). 28 Em todas as quatro Faculdades, a trajetória estudantil findava pela obtenção da licença de ensino (licentia docendi). 76 Desse modo, embora a teologia significasse um saber situado além daqueles veiculados pelos artistae29, sua superioridade não a resguardava do fato de que, em função da estrutura universitária, o estudante tinha acesso a ela apenas quando já se encontrava formado, em seus hábitos de pensamento, pela destreza no exercício das disciplinas do trivium e do quadrivium. Mas é preciso circunscrever melhor o problema. As artes liberais – base do ensino no sistema educativo antigo e, depois, medieval – compunham-se, efetivamente, do trivium (gramática, retórica e dialética) e do quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia). É a Boécio (480-525 d.C.), inventor do termo quadrivium30, que se deve esta repartição, que reúne, de um lado, as ciências relativas à expressão do conhecimento, ou seja, as artes da linguagem e, de outro, as ciências “matemáticas”. Séculos depois, a ênfase dada a cada disciplina varia. O estudo da retórica será pouco a pouco relegado a um plano secundário. É possível, já no século XI, com Béranger de Tours, detectar o emprego do termo “dialética” como significando o “uso do pensamento racional”. Contudo, é apenas no segundo terço do século XII, com a redescoberta do pensamento de Aristóteles pelo ocidente cristão – nas traduções de Boécio dos Primeiros Analíticos, dos Tópicos e das Refutações Sofísticas (sem esquecer a tradução contemporânea dos Segundos Analíticos por Jacques de Veneza) –, que a dialética assume uma importância inigualável, extrapolando os limites das artes e qualificando-se como o método por excelência do pensamento (Cf. CHENU, 1957, p. 20ss; LEMOINE, 2006; SOLÈRE, 2006). Ao fim do século, a constatação se impõe: “A dialética ganha em autonomia: de simples instrumento (dialectica utens), ela se torna meio de conhecimento (dialectia docens)”(CESALLI, 2006, p. 411). 29 Assim eram denominados os mestres da Faculdade de Artes. 30 Já o termo trivium é posterior, sendo forjado na época carolíngia (cf. LEMOINE, 2006, p. 95). 77 Assim, a “destreza no exercício das disciplinas do trivium e do quadrivium” significa algo mais, diferente do que dizíamos há pouco. O século XIII conhece um novo estudante de Teologia, alguém cujo pensamento tem na dialética como que uma segunda natureza, alguém para quem só há de caber um único epíteto a Aristóteles, este mesmo pelo qual o estagirita passará, efetivamente, a ser designado: O Filósofo. COMO SE TORNAR UM MESTRE EM TEOLOGIA31 De fato, essa destreza – não as consequências– era condição sine qua non para a pretensão a uma carreira escolar. Embora encontremos algumas pequenas discrepâncias na historiografia, é consenso que tanto na Faculdade de Artes quanto na de Teologia os estudos eram longos e intensos, podendo perfazer, em alguns casos, dez anos na de Artes e outros quinze na de Teologia. Onde quer que esteja a verdade dos fatos, o que nos importa saber é que, uma vez apto a ingressar nos estudos de teologia, o postulante devia obter a aceitação de um mestre actu regens, isto é, um mestre que, além do título em teologia, pertencesse aos quadros ativos da Universidade. Vinha então o que se poderia chamar de aspecto passivo da trajetória recém-iniciada. Este consistia no acompanhamento (auditio) dos cursos do mestre durante um período de aproximadamente seis anos, ao final dos quais, se bem sucedido, o estudante obtinha o título de bacharel bíblico. Isto o credenciava a desenvolver a segunda parte de sua formação, em que se dedicava, durante um ou dois anos, à prática que estava na base da pedagogia medieval e, sobretudo, escolástica: a lectio. Cabia ao novo bacharel explicar – evitando, contudo, os problemas de interpretação ou de 31 Para aqueles que desejam aprofundar-se no tema da pedagogia medieval sob o ponto de vista técnico-metodológico, sugerimos a leitura do artigo de Glorieux, 1968. 78 doutrina – dois livros por ano, de sua escolha: um do Novo e outro do Antigo Testamento. Após esta fase, adquiria o grau de bacharel sentenciário e, enquanto tal, dedicava-se por mais dois anos à tarefa para a qual se preparara: a lectura. Tratava-se da leitura e explicação dos quatro livros das Sententiae de Pedro Lombardo. Redigido em torno de 1155-57, este texto de caráter enciclopédico – reunindo, segundo a técnica dialética, passagens bíblicas e patrísticas em aparente afrontamento, para, em seguida, reduzir as diferenças através de uma solução argumentada – se tornou o manual de base do ensino de teologia. Adotá-lo como objeto de um curso regular implicava em já possuir uma erudição considerável e uma disposição ainda maior para preencher as lacunas, nessa mesma erudição, que sua leitura, somada à tarefa de sua explicação, tornava evidente ao bacharel. Dois anos de curso sobre as Sententiae proporcionavam a ele duas coisas: primeiramente, tornar-se efetivamente um bacharel formado e, nessa condição, prosseguir sua atividade docente. Em segundo lugar, esta atividade o levava a multiplicar as pesquisas sobre as Sententiae, permitindo um acúmulo de notas que serviria como matéria prima para a redação do seu Comentário das Sentenças de Pedro Lombardo, obra cuja realização constituía uma das exigências para a obtenção da licença de ensino (licentia docendi) em Teologia32. Apesar desse verdadeiro parcours du combattant, o bacharel formado ainda deverá esperar mais quatro anos antes de se tornar mestre. Nesse período, acompanhará seu mestre nas disputationes, atividade pedagógica que está na origem de um gênero literário característico da escolástica: as Quaestiones 32 No final do século XII, já se encontram exemplares de Comentários das Sentenças de Pedro Lombardo, mas é no século XIII que a produção desses comentários se generaliza, tornando-se o gênero literário mais difundido neste século (cf. ROBERT, 1950, p. 40ss). Para o aprofundamento do tema acerca do funcionamento das universidades medievais, ver principalmente Weijers, 1996 e Maierù, 1994. 79 disputatae. Uma vez apto a desempenhar todas as funções constituintes da disputatio, inclusive a exercida pelo mestre, o bacharel recebe do Chanceler, em uma ocasião solene, sua Licentia Docendi. Doravante, exercerá a tríade que resume a atividade universitária do mestre em teologia: legere, disputare, praedicare33. A RECEPÇÃO DO ARISTOTELISMO GRECO-ÁRABE Durante a primeira parte da Idade Média, assistimos ao processo de adequação34, com maior ou menor sucesso, do neoplatonismo aos dogmas cristãos, resultando em um corpus teórico cujos paradigmas fundamentais, uma vez estabelecidos, permitiram uma coerência conceitual na abordagem de certo número de questões teológicas. Essa relativa estabilidade nas relações filosófico-teológicas parecia, ao menos sob o olhar panorâmico de longa duração, demorar mais do que a História costuma tolerar. Com o advento dos textos aristotélicos, é todo um equilíbrio que se encontra em xeque. Como vimos, o último terço do século XII conheceu um desenvolvimento pedagógico-metodológico sem precedentes, onde o estudo da dialética exerceu um papel central. A redescoberta dos libri naturales (Física, Metafísica, Da alma, etc.) de Aristóteles representará algo similar para o século XIII35. Mas esse acontecimento esconde outro: a rica tradição greco- 33 Lecionar, disputar, pregar. A tradução mais correta para disputatio seria, de acordo com Blaise (1998), o termo discussão. Preferimos, contudo, traduzir por disputa para manter o aspecto agonístico que caracterizava esta atividade, principalmente na sua forma “quodlibética”. De fato, enquanto nas questões disputadas, em suas duas formas, privada (privata ou in scholis) ou pública (publica ou ordinaria), há um único tema em discussão, normalmente escolhido pelo mestre, nas quaestiones de quodlibet os assuntos eram livres, variados e propostos por qualquer um dos presentes. Cf. Solère, 2006, p. 1304-1305; Ong-Van-Cung, 1998, p. 7-9 e Desbiens, 2009, p. 16-21. Este último está disponível na internet (ver referências bibliográficas). 34 Talvez o termo seja exagerado e devêssemos substituí-lo por combinação. 35 Com respeito à cronologia da recepção do corpus peripatético no ocidente cristão, ver os dois artigos de R. Gauthier, ambos publicados em 1982. 80 árabe do comentário. Pode-se dizer que, ao emergir da noite dos tempos, Aristóteles já não é mais tão somente aristotélico. Envoltos, camada sobre camada, por comentários, adendos, interpretações, interpolações, seus textos se tornam inseparáveis de tudo o que deles se disse; eles trazem consigo séculos de indagações, dúvidas, hesitações, recuos e convicções, toda a concordância e a divergência – de Temistius a Averróis – de que o gênero humano é capaz. É preciso compreender que a recepção de Aristóteles significa, ao mesmo tempo, a recepção da tradição interpretativa de seus comentadores gregos e árabes. E essa dupla recepção ainda guarda outra significação: com a organização e o desenvolvimento das Universidades, o corpus peripatético se torna objeto de uma sistematização – a partir da codificação dos gêneros literários – que determinará as perspectivas do ensino nos séculos XIII e XIV. Entretanto, já nos primeiros anos do século XIII, aparecem as primeiras restrições em relação ao pensamento aristotélico (Cf. BIANCHI, 1999, p. 89-128; ELDERS, 1988, p. 360-361; MANDONNET, 1911, p. 16-22). Tanto a proibição parisiense do ensino dos libri naturales, em 1210 e em 1215 (Cf. LIBERA, 2003, p. 27), quanto a consolidação do dogma da criação ex tempore pelo concílio de Latrão IV, em 121536, testemunham as dificuldades inerentes à inserção do aristotelismo greco-árabe no ocidente cristão. Embora essas 36 Opondo-se à tese aristotélica da eternidade do mundo, este concílio estabelece que o começo temporal do mundo deva ser definido como artigo de fé. O texto não deixa margem a dúvidas: “Firmiter credimus et simpliciter confitemur, quod unus solus est verus Deus, aeternus, (...) unum universorum principium: (...) qui sua omnipotenti virtute simul ab initio temporis utramque de nihilo condidit creaturam, spiritualem et corporalem”. [“Nós acreditamos firmemente e professamos absolutamente que há apenas um único Deus, eterno, (...)princípio único de todas as coisas, (...) que, por sua virtude onipotente, criou do nada e no começo do tempo a criatura espiritual e a corporal”] (tradução nossa). Concilium Laterense IV, 1215, De Trinitate, sacramentis, missione canonica, etc., cap. 1, De fide catholica in: Denzinger, Enchiridion Symbolorum, n. 800, apud MICHON, 2004, p. 353. 81 contrariedades – e restrições subsequentes37 – tenham inegavelmente obtido êxito em retardar a difusão, não foram capazes, todavia, de impedir que as ideias de Aristóteles e as de seus comentadores circulassem, cada vez mais, no interior da Universidade de Paris38, ao longo do segundo quarto do século XIII. De fato, certos mestres em teologia – de Alexandre de Halès a Alberto Magno – contribuíram, de maneira decisiva, para a superação da resistência de seus pares, trazendo para suas próprias reflexões algumas problemáticas originadas pela leitura do corpus peripatético. Graças a esse estudo sistemático, estabelece-se um conjunto de temas e de argumentações a partir dos textos de Aristóteles – comportando remissões e comparações às fontes greco-latinas e greco-árabes – sobre o qual se edificarão o debate e o ensino universitários da segunda metade do século39. Mas dessa efervescência conceitual, presente tanto na Faculdade de Artes40 quanto na de Teologia41, emergem dois problemas que estarão, mais tarde, implicados nas condenações promulgadas pelo Bispo de Paris, Étienne Tempier, em 1270 e 127742, e na gênese do estatuto da Faculdade de Artes, adotado em 1° de 37 Confirmação da proibição de Aristóteles, em 1231, por Gregório IX, e interdição de Aristóteles em Toulouse, em 1245. Cf. Aquino, 1997, p. 382-383. 38 Restringimo-nos à Universidade de Paris em razão da carreira de Boaventura ter se desenvolvido nesta instituição, mas é evidente que a assimilação do aristotelismo greco-árabe é um fenômeno do ocidente latino e não apenas parisiense. Cf. Wéber, 1991, p. 2-12. 39 A esse respeito, ver Michon, 2004, p. 41-47 e Libera, 2003, p. 177-186. 40 Em 19 de março de 1255, a Faculdade de Artes incluía em seu programa oficial o ensino dos libri naturales de Aristóteles (MICHAUD-QUANTIN, 1971, p. 9). Sobre o desenvolvimento e a evolução da Faculdade de Artes, em especial a partir dos anos 1250, os trabalhos de referência são: Weijers e Holtz, 1997; Weijers, 2002 e Glorieux, 1971. 41 Cf. Bazàn, 1985, p. 13-149. Para uma comparação entre as disputationes na Faculdade de Artes e na de Teologia, ver Weijers, 2009. 42 Com respeito às condenações, ver os trabalhos fundamentais de Hissete, 1977 e de Piché, 1999. Com relação à crise na Universidade de Paris, na década de 1270, cf. Libera, 2003, p. 191-220. 82 abril de 127243: a tese da eternidade do mundo, atribuída a Aristóteles44, e a tese da unidade do intelecto possível (dito material) em todos os homens, atribuída a Averróis45. Como veremos mais adiante, Boaventura não as poupará de suas críticas. BOAVENTURA E A FILOSOFIA Como o doutor seráfico considera a filosofia? Qual o seu estatuto perante outros tipos de conhecimento? Qual a sua 43 “O estatuto de 1272 inicialmente proíbe os mestres e bacharéis da Faculdade de Artes de determinar ou de disputar as questões ‘puramente teológicas’. Em seguida, fornece com precisão as disposições que concernem à maneira de se conduzir diante das questões que pertencem tanto ao domínio da fé quanto ao da filosofia. (...) o estatuto acrescenta que se ao dar uma aula sobre um texto ou disputar uma questão, mestres e bacharéis encontrarem passagens ou argumentos filosóficos que ‘parecem em certa medida destruir a fé’, eles devem se ater a adotar uma dessas três soluções: dar uma refutação cabal desses textos ou argumentos; declará-los ‘falsos absolutamente [simpliciter] e totalmente errados’; passar por eles em silêncio, recusando-se a explicá-los ou a discuti-los” (BIANCHI, 2008, p. 98-99). Sobre o debate historiográfico acerca da constituição e das consequências do estatuto de 1272, consultar principalmente Bianchi, 1999, p. 165-201; Putallaz e Imbach, 1997, p. 128-134 e Pluta, 2002, p. 563-585. 44 Com relação a estes acontecimentos sob a perspectiva dos debates sobre a eternidade do mundo, cf. Michon, 2004, p. 35-47. Cyrille Michon tem razão em remeter o leitor aos três trabalhos a seguir: a exposição mais detalhada do problema feita por Dales, 1990, p. 50-85; e os artigos de Brown, 1991 e de Long, 1998 (sobretudo p. 52-67), que tratam dessas discussões na Universidade de Oxford. Para o contexto parisiense, indicamos a obra clássica de Mandonnet, 1911, p. 23-39. 45 Com relação à história dessa questão e de seus desdobramentos filosóficos e teológicos, assim como das restrições dogmático-coercitivas, ver o excepcional trabalho de Libera, 2004. Esse comentário exaustivo do De Unitate Intellectus Contra Averroistas, de Tomás de Aquino, não se limita ao que parece propor. Ao longo de suas mais de 500 páginas, A. de Libera analisa todos os autores implicados no problema – tenham ou não sido do conhecimento do próprio Tomás – dos comentadores greco-árabes aos autores latinos, cujas posições permitiram a certa vertente historiográfica, da qual Libera discorda, a invenção da expressão “averroismo latino”. O ideal é a leitura integral do texto, mas se a ocasião não se apresentar, indicamos ao leitor as seguintes passagens: p. 13-61; 73-77; 81-103; 108-127; 138-141; 163-173; 189-200 e, principalmente, p. 343-525. Aconselhamos, igualmente, um texto mais acessível, do mesmo autor (LIBERA, 1997, p. 9-73), assim como Bianchi, 1996, 45- 93. 83 natureza? Em um opúsculo, cujo título – De reductione artium ad theologiam –, lhe foi atribuído séculos depois46, Boaventura expõe, ainda que sucintamente, sua concepção sobre o conhecimento, suas diversas formas e as conexões que estabelecem entre si (BOAVENTURA, 1971). Mas, para compreender o que é dito, é preciso partir de certas considerações que nem sempre se encontram suficientemente explícitas no texto. O pensamento de Boaventura pode ser resumido da seguinte maneira: Deus cria tudo o que há do nada (creatio de nihilo)47 e se manifesta em sua criação48. Assim, as criaturas carregam as marcas de Deus. Enquanto ser, o que existe se define por sua essência; mas, como criatura, é signo que remete a Deus49. Se tudo o que existe guarda em sua própria substância a marca que reluz, por que razão essa profusão de vestígios da ação divina, presente na natureza, não nos é visível? É porque não se trata da invisibilidade em si, mas para nós. Com efeito, a alma humana tem uma única natureza, 46 Embora tradicionalmente conhecido sob esse título, o conjunto de seus manuscritos (total de 34) apresenta 12 em que não há título algum e apenas 3, datados do século XV, adotam o nome em questão (MICHAUD-QUANTIN, 1971, p. 7). 47 Cf. Boaventura, 1967, p. 54-57 (c. 1, n. 1 e 2). Nas obras de Boaventura inserimos também, entre parêntesis, a referência tradicionalmente empregada quando se trata de autores medievais, para que o leitor a localize independentemente da edição consultada. No presente exemplo, sabemos, pela bibliografia, que se trata do Breviloquium, parte II; e pela referência entre parêntesis, que se trata do capítulo 1, números 1 e 2. 48 “Primum principium fecit mundum istum sensibilem ad declarandum se ipsum.” [“Le premier principe a fait ce monde sensibile pour se manifester lui- même”(BOAVENTURA, 1967, p. 118-119 (c. 11, n. 2)]. ”O primeiro princípio fez o mundo sensível para manifestar a si mesmo.” No caso do homem, Deus manifestou a sua potência ao fazê-lo a partir de naturezas distantes entre si, como é o caso do corpo e da alma no gênero da substância (uma corporal, outra espiritual) [cf. ibid., p. 112-113 (c. 10, n. 3)]; manifestou suasabedoria ao criá-lo com um corpo harmonizado à alma [cf. ibid., p. 112-113 (c. 10, n. 4)]; e manifestou sua bondade e benevolência ao criá-lo sem mácula ou culpa e sem nenhum castigo nem miséria [cf. ibid., p. 114-115 (c. 10, n. 5)]. 49 Existem quatro tipos de signos, revelando os graus de proximidade e de distanciamento no modo como cada criatura representa o Criador: a sombra, o vestígio, a imagem e a semelhança (Cf. GILSON, 1953, p. 170-182). 84 embora se defina de fato por dois estados: antes e depois do pecado original. Desse modo, a capacidade da alma deve ser avaliada em função do estado em que ela se encontra. Primitivamente, em seu estado de inocência, Adão conhecia através de espécies inatas, assim como é o caso dos anjos50. Isso significa que ele conhecia os modelos pelos quais Deus criou todas as coisas. De fato, a natureza da alma humana é como um espelho cuja perfeição é comparável à do anjo51. Por outro lado, Deus é potência, bondade e luz. A face de Deus é a fonte de toda luz. Nesse sentido, Deus é chamado de Pai das luzes52. Ao criar a alma, Deus a ilumina em intensidade máxima e esta – já que espelho – torna-se reflexo divino, passando a ser, ela mesma, capaz de iluminar. Como a verdade é a luz da alma, a luz divina lhe transmite o conhecimento das razões eternas. Em Deus, a ideia é o conhecimento e o modelo do que é criado. Na alma, o reflexo da ideia – ou seja, a espécie – se torna fundamento, condição e medida da inteligibilidade máxima possível, constituindo o campo do humanamente verdadeiro53. 50 “Anima Adae habuit species innatas, ut etiam Angelus”[BOAVENTURA, 1885, p. 50 (II, d. 1, p. 2, a. 3, q. 2, concl.)]: “A alma de Adão tinha espécies inatas, como o Anjo também [as tem]”(tradução nossa). 51 “Et sic ante lapsum homo perfecta habuit naturalia”[BOAVENTURA, 1967, p. 122 (c. 11, n. 6)]. “E assim, o homem tinha uma natureza perfeita, antes da queda”(tradução nossa). 52 Cf. Boaventura, 1966, p. 84-85 (prol. n. 2); 1971, p. 48-49 (prol. n. 1); 1994, p. 20-21 (prol. n. 1). 53 Com efeito, a inteligibilidade em si identifica-se com a inteligibilidade divina; a inteligibilidade propriamente humana define-se pelos limites do conhecimento de Adão no estado de inocência (por exemplo, Adão conhece perfeitamente todo o campo do criado, mas não conhece de maneira imediata e direta a essência divina, pois não vê Deus face a face; se tal fosse o caso, o pecado teria sido impossível) [cf. BOAVENTURA, 1885, p. 544-545 (II, d. 23, a. 2, q. 3, concl.)]; em contrapartida, a inteligibilidade para nós, isto é, após a queda, limita-se, por um lado, ao conhecimento abstrativo a partir das coisas sensíveis e, por outro, ao saber divino contido nas Escrituras e acessível a nós pelo duplo concurso da fé e do estudo do texto sagrado em seu sentido não literal ou espiritual (qualquer outro tipo de conhecimento implica uma ação divina, seja pela graça, seja pela iluminação da alma do bem-aventurado, após a morte, no estado de glória). Cf. Boaventura, 1967, p. 127 (c. 12, n. 5) e 1971, p. 60-61 (p. 1, n. 5); Gilson, 1953, p. 347-355. 85 Para Adão, o mundo era então pleno de inteligibilidade, não apenas ao nível do conhecimento das essências das coisas, mas, sobretudo, na compreensão da comunhão da criatura ao Criador, expressa na visibilidade inequívoca do mundo como vestígio de Deus. Percorria com facilidade toda a escala dos signos – passando por sua própria alma, imagem e semelhança de Deus – em direção à fonte de tudo e para onde tudo o que é da ordem do espiritual anseia retornar54. No entanto, o pecado original afetou a transparência que assegurava a limpidez do reflexo, tornando opaca a superfície da alma55 e parecendo varrer do mundo os vestígios da arte divina56. A queda de Adão é também a nossa. A nossa alma ainda é imagem de Deus, mas está deformada pelo pecado. Doravante, as razões eternas estão além de qualquer compreensão. Existe, em algum lugar, escondida pela nossa cegueira, a verdade que salva, ou só nos resta então suportar a existência, reféns do medo e da superstição? Não, para Boaventura ainda há esperança, porque Deus não nos abandonou. Longe disso. A vinda de Cristo é a prova. Resta- nos a luz reparadora, a iluminação que salva: a luz das Sagradas Escrituras57. Contudo, ela está escondida sob o manto das palavras em seu sentido literal. E tal como estamos cegos aos vestígios de Deus, somos como analfabetos face aos significados que se furtam à leitura. Reaprender a ler, tornar- 54 Todas as criaturas são vestígios, mas apenas as criaturas inteligentes ou espíritos racionais são imagens e somente as criaturas deiformes – isto é, o anjo, o homem no estado de inocência e a alma do bem-aventurado no estado de glória – são semelhanças de Deus. “Quasi per quosdam scalares gradus intellectus humanus natus est gradatim ascendere in summum principium, quod est Deus” [“Comme par les degrés d’une échelle, l’intelligence humaine est capable de s’élever graduellement jusqu’au principe souverain, qui est Dieu”] (BOAVENTURA, 1967, p. 122-123 [c. 12, n. 1]). ”Como pelos degraus de uma escada, a inteligência humana é capaz de elevar-se gradualmente até o princípio soberano, que é Deus” (tradução nossa). 55 Sobre a alma no estado de miséria (in statu miseriae), entendida como espelho obscurecido pelo pecado, ver Boaventura, 1885, p. 545 (II, d. 23, a. 2, q. 3, concl.). 56 Cf. Boaventura, 1967, p. 124-125 (c. 12, n. 4). 57 Cf. Boaventura, 1971, p. 48-49 e 60-61 (prol., n. 1 e p. 1, n. 5). 86 se capaz de descobrir os significados por trás dos signos que os escondem, reconquistar a sabedoria que as ciências teimam, em vão, substituir: essa é a tarefa que se impõe. A partir da condição humana em seu estado de pecado, como inventar os meios para se alcançar a iluminação que salva? A questão que Boaventura se coloca no De reductione artium ad theologiam e que repete até na última de suas Collationes é se a filosofia tem e qual seria o seu papel no caminho da reparação. No seu De reductione artium ad theologiam, Boaventura propõe uma classificação dos saberes, onde inicia de maneira clássica, referindo-se ao Didascalicon de Hugo de São Vitor, como se fosse estabelecer, a exemplo do que fora tradicional no século XII, uma lista das artes e scientiae de seu tempo. Com efeito, o doutor seráfico divide o conhecimento próprio às artes mechanicas – isto é, às técnicas inventadas pelo homem para compensar as deficiências inerentes ao corpo – em sete tipos, acompanhando assim a divisão anteriormente estabelecida por Hugo. Mas, as semelhanças entre as duas classificações terminam sem demora, logo suplantadas pelas diferenças de abordagens. Ao contrário de seus predecessores que se interessavam pela repartição criteriosa das artes e scientae existentes de maneira a formar um quadro coerente, quase escolar, Boaventura se interroga, sobretudo, pelas condições necessárias à existência de cada disciplina. Em outras palavras, que modo cognitivo está implicado na atividade formadora de tal ars ou tal scientia? Mas, essa orientação já estava de certa maneira presente no Prólogo do De reductione. Assim como em outras de suas obras58, Boaventura lembra Jacó e o tema da fonte de toda perfeição e excelência que caracteriza o dom: a figura do Pai das luzes (1971, p. 48-49). A identificação de Deus à luz incriada que ilumina é correlata àquela que une luz e 58 Cf. Boaventura, 1966, p. 84-85 (prol. n. 2) e 1994, p. 20-21 (prol. n. 1). 87 conhecimento59. Disso resulta que Boaventura distribui os saberes e os modos de conhecimento envolvidos conforme uma escala de iluminações. A primeira, relativa ao conhecimento implicado na produção de bens para suprir as deficiências do corpo, é chamada de luz exteriordos grandes pensadores da educação, como Rousseau, Vygotsky, Piaget, 11 Gramsci e Paulo Freire, por exemplo, também se revestiu de uma bagagem filosófica significativa. Os ensaios reunidos neste volume estão assentados, precisamente, nesta perspectiva dialógica e convergente entre Filosofia e Educação. Objetivam, desse modo, servir aos intelectuais que se dedicam aos dois campos do saber, porque são filósofos-educadores ou educadores-filósofos. Destinam- se, ainda, aos estudantes de Filosofia e de Educação que, no esforço rigoroso e específico de suas áreas de investigação, sentem a necessidade de compreender sempre mais as interconexões entre o amor ao saber e a dedicação em educar. Não se trata de uma obra que encerra todas as questões nem que apresenta uma visão exaustiva de toda a história do pensamento filosófico em suas relações com o saber pedagógico. Mesmo assim, tem-se aqui uma abordagem bastante ampla de toda a filosofia, dos filósofos pré-socráticos aos pensadores atuais, em 22 diferentes perspectivas. Como o leitor poderá verificar, na sessão Sobre os Autores, os co-autores desta obra têm a mais alta qualificação em seus respectivos campos de investigação, o que confere a este trabalho um elevado grau de profundidade dos temas tratados. Quero ressaltar, ainda, que todos estes co-autores são profissionais profundamente comprometidos ao mesmo tempo com a Filosofia e com a Educação, não só na tarefa de elaboração teórica destes dois campos, mas na própria atividade profissional de pesquisa e de ensino. A cada um dos co-autores, quero manifestar minha mais profunda gratidão por todo o empenho na construção desta obra coletiva. Sem a presença generosa de cada um deles, este livro seria apenas mais um habitante do mundo da utopia. Mas, em razão de seu comprometimento, esta obra tornou-se realidade e, hoje, pode ser oferecida ao público brasileiro. Agradeço também ao Círculo de Estudos Bandeirantes, Órgão Cultural afiliado à Pontifícia Universidade Católica do 12 Paraná, que acolheu este trabalho para publicação. Ressalto, com esta referência, que o Círculo de Estudos Bandeirantes, nas primeiras horas do século XX, foi a instituição responsável pelo surgimento das primeiras escolas superiores de Filosofia em Curitiba e no Estado do Paraná, contribuindo para fazer nascer a Universidade Federal do Paraná e a Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Esta entidade é um exemplo vivo do quanto a Filosofia e a Educação andam de mãos dadas nas trilhas da história. Fazemos votos de que as propostas aqui apresentadas sejam como sementes plantadas em terreno fértil, permitindo que brotem novos horizontes para a Filosofia e para a Educação neste nosso país, tão carente de ambas. Prof. Paulo Eduardo de Oliveira Pontifícia Universidade Católica do Paraná 13 SSOOBBRREE OOSS AAUUTTOORREESS BBAARRBBAARRAA BBOOTTTTEERR Licenciada em Filosofia e Doutorado em Filosofia Antiga pela Universidade Ca’Foscari de Veneza, desenvolvido em co-tutel na Universidade Charles de Gaulle-Lille III. Pós-doutoramento na Universidade de São Paulo. Foi Professora da PUC-Rio entre os anos de 2008 a 2010. RRIICCAARRDDOO TTEESSCCAARROOLLOO Possui doutorado em Educação pela USP, mestrado em Educação pela PUC-SP, graduação em Letras Português-Inglês e em Pedagogia. É professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCPR, onde também exerce o cargo de Pró- Reitor Comunitário. RROOGGÉÉRRIIOO MMIIRRAANNDDAA DDEE AALLMMEEIIDDAA Doutor em filosofia pela Universidade de Metz e em teologia pela Universidade de Estrasburgo, ambas na França. É professor no programa de Pós-Graduação de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, professor de filosofia na FASBAM (Faculdade São Basílio Magno) e de teologia sistemática no Studium Theologicum, em Curitiba. 14 JJEEAANN LLAAUUAANNDD Professor Titular Sênior da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Professor do Programa de Pós- Graduação em Educação da FEUSP. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de São Paulo. Fundador e Presidente do CEMOrOc – Centro de Estudos Medievais Oriente e Ocidente, do EDF-FEUSP. EEDDUUAARRDDOO VVIIEEIIRRAA DDAA CCRRUUZZ Possui doutorado em Filosofia e mestrado em História da Filosofia pela Université de Paris IV; tem ainda mestrado em Filosofia pela Universidade de São Paulo e graduação em Ciências Biológicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, é Professor na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. CCEELLSSOO MMAARRTTIINNSS AAZZAARR FFIILLHHOO Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense e Professor Colaborador no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalhou como Pesquisador Convidado pela École Normale Supérieure de Lyon em 2009 e em 2011, e é líder do Laboratório de Estudos Renascentistas (LERen-UFF). EETTHHEELL MMEENNEEZZEESS RROOCCHHAA Possui graduação pela PUC-Rio, mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutorado pela Boston University e pós-doutorado pela Yale University. Atualmente é Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro de corpo editorial e revisora de periódico da Revista Analytica (UFRJ). 15 GGUUSSTTAAVVOO AARRAAÚÚJJOO BBAATTIISSTTAA Professor do Programa de Mestrado em Educação da Universidade de Uberaba-MG. Professor titular da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Fundação Carmelitana Mário Palmério, em Monte Carmelo-MG. Possui graduação nas áreas de Letras e Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), pela qual também é Mestre em Educação; Doutor em Educação pela UNICAMP, tem pós-doutorado em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. VVEERRAA CCRRIISSTTIINNAA DDEE AANNDDRRAADDEE BBUUEENNOO Possui graduação em Filosofia e mestrado em Filosofia pela PUC-Rio; tem doutorado em Filosofia e Estética das Formas pela Université de Paris X, Nanterre, e pós-doutorado na University of Pennsylvania. Atualmente é professora assistente da PUC-Rio. EERRIICCSSOONN FFAALLAABBRREETTTTII Possui graduação em Filosofia pela UFPR, mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos. Atualmente é Professor Titular e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-PR. LLUUIIZZ FFEERRNNAANNDDOO BBAARRRRÉÉRREE MMAARRTTIINN Possui graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo, graduação em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestrado em Filosofia e doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, é professor da Universidade Federal do ABC. 16 SSAAMMUUEELL MMEENNDDOONNÇÇAA Samuel Mendonça tem doutorado em Educação (Filosofia da Educação) pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, é Professor Pesquisador e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-Campinas. É assessor científico da FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. LLAAFFAAYYEETTTTEE DDEE MMOORRAAEESS Possui graduação em Física pela Universidade de São Paulo, graduação em Matemática pela Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, especialização em Filosofia e mestrado em Filosofia (Lógica) pela Universidade de São Paulo. Tem doutorado em Filosofia (Lógica) pela PUC- SP e pós-doutorado pela Universidade de Munchen. Atualmente, é professor titular da PUC-SP e da Faculdade São Bento. CCAARRLLOOSS RROOBBEERRTTOO TTEEIIXXEEIIRRAA AALLVVEESS Mestre em Filosofia pela PUC-SP, pesquisando na área de lógica, em especial “semântica da verdade” de Alfred Tarski. Atualmente, é professor no Colégio de São Bento, no Colégioe se divide, como já dissemos, em sete, formando as sete artes mechanicas [Ibid., p. 50-55 (P. 1, n. 2)]. A segunda se refere ao conhecimento das coisas sensíveis e, nesse sentido, é chamada de inferior [Ibid., 54-57 (P. 1, n. 3)]60. A terceira nos permite alcançar o domínio das verdades inteligíveis e diz respeito ao conhecimento filosófico. Ela é chamada de interior porque a investigação filosófica busca as causas íntimas, utilizando os princípios inatos das ciências e da verdade natural. Ela comporta por sua vez uma tripla subdivisão, correlata da divisão da filosofia em racional, natural e moral, ocupando-se a primeira da verdade do discurso, a segunda da verdade das coisas e a última da verdade da conduta [Ibid., p. 56-61 (P. 1, n. 4)]. A quarta é a das Sagradas Escrituras e sua iluminação nos aproxima do que nosso estado de miseria impede de alcançar: a 59 Não se trata, evidentemente, da luz corporal. Ao contrário do que nos sugere o senso comum, Boaventura – a exemplo de Agostinho – pensa, com efeito, que se podemos dizer habitualmente que o sol ilumina, é porque a natureza da linguagem nos permite predicar metaforicamente. Na verdade, só Deus é luz no sentido próprio e absoluto. A criatura espiritual, anjo ou alma humana, visto que é ontologicamente dependente do Criador, só é relativamente a Deus e, portanto, é luz no sentido próprio, mas não absoluto. Assim, entre a luz incriada e as luzes criadas há uma analogia de proporção, ou seja, estas se distribuem em graus de acordo com a maior ou menor proximidade em relação a Deus. O sol, por sua vez, não é luz no sentido próprio, mas apenas metaforicamente. O sol é luz segundo uma atribuição fundamentada em uma analogia de proporcionalidade, uma vez que a luz corporal, apesar de radicalmente diferente da luz espiritual, ilumina os corpos assim como Deus ilumina as naturezas espirituais. Em vez de hierarquia de graus, temos uma semelhança de relação ou função (Cf. GILSON, 1953, p. 221-223). Com relação à luz física, sua criação, sua natureza e seu papel enquanto forma substancial comum a todos os corpos [cf. BOAVENTURA, 1885, p. 312-313; 317-318; 320-321 (II, d. 13, a. 1, q. 1, concl.; a. 2, q. 1, concl.; a. 2, q. 2, concl.)]. 60 Sobre o conhecimento sensível e do caráter ativo inerente ao tema da sensação, segundo Boaventura, em oposição à passividade que lhe deve ser atribuída de acordo com Tomás de Aquino, ver Wéber, 1974, p. 52-60, assim como o texto clássico de Gilson, 1953, p. 275-291. 88 verdade que salva [Ibid., p. 60-63 (P. 1, n. 5)]. Assim, essas quatro luzes cobrem a totalidade do conhecimento humano. Mas, como a iluminação do conhecimento filosófico divide-se em três, a classificação final de Boaventura estabelece seis iluminações [Ibid., p. 62-63 (P. 1, n. 6)]. Embora cada uma das iluminações e seus respectivos conhecimentos não pareçam estar necessariamente interconectados, Boaventura considera que, na verdade, cada uma delas representa uma etapa e, enquanto tal, prepara-nos para a seguinte. Mas, essa complementaridade – expressão de uma ordem e de um sentido mais profundos – não nos é evidente, em razão do pecado original. Por isso, o estudo das Escrituras é fundamental. Entretanto, não adianta saber as passagens de cor, não basta conhecer a intimidade das palavras, pois de certo modo a letra é muda. É preciso ir além, tornar-se capaz de ler o texto através do seu sentido literal, para apreendê-lo em seu triplo sentido espiritual: o alegórico nos ensina em que acreditar; o moral, o modo correto de viver; o anagógico, a recuperar o que nos liga a Deus. Ao termo desse processo, constata-se que todos os outros conhecimentos já se encontram de alguma forma contidos no texto sagrado. Desse modo, cada um deles só exprime o seu verdadeiro sentido quando entendemos que ele espera, desde a noite dos tempos, pelo olhar espiritual capaz de reconhecê-lo61. Por outro lado, o estudo das Escrituras requer, da parte do leitor, o domínio dos outros saberes, em especial o da filosofia. Mas, o aliado pode se transformar em traidor se não compreende a sua verdadeira razão de ser, colocando-se então como fim em vez de meio, recusando-se a prosseguir nessa jornada que ultrapassa os limites de sua própria 61 Cf. Boaventura, 1971, p. 60-63, 84-85 (P. 1, n. 5 e 7; P. 2, n. 26). Em relação a como os cinco conhecimentos já se encontram incluídos nas Sagradas Escrituras, ver, na mesma obra: sobre o conhecimento sensível, p. 64-69 (P. 2, n. 8-10); sobre o técnico, p. 68-73 (P. 2, n. 11-14); sobre o da filosofia racional, p. 72-77 (P. 2, n. 15-18); sobre o da filosofia natural, p. 76-81 (P. 2, n. 19-22); sobre o da filosofia moral, p. 80-85 (P. 2, n. 23-25). 89 inteligibilidade, negando-se a continuar a experiência que substituiria as inquietações do filósofo pelo êxtase místico. Talvez isso explique o posicionamento adotado por Boaventura em seus últimos anos de vida. A partir dos anos 1260, o doutor seráfico parece se preocupar menos com a filosofia do que com esse papel de recusa que ela poderia desempenhar. Ao invés de etapa, a filosofia assumiria ares de obstáculo. Mas de que forma a passividade da recusa adquire contornos de ameaça? Esse é o problema que ainda nos resta tratar. BOAVENTURA CONTRA A FILOSOFIA? Como vimos, a recepção do aristotelismo greco-árabe significa um avanço sem precedentes na história do pensamento medieval. A exploração sistemática desse conjunto de saberes transforma tanto as modestas concepções filosóficas, até então veiculadas pelo quadrivium, quanto a maneira como se percebe a natureza e a conduta humanas, implicadas nas doutrinas religiosas. Desde o ano de 1240, os novos textos de Aristóteles são objeto de análises e sínteses que integram os cursos dos mestres em artes. Esta prática é finalmente institucionalizada, em 1255, com a inclusão de toda a obra do estagirita no programa regular da Faculdade de Artes. Por outro lado, a declaração de Alberto Magno, em 1254, de que, ao empreender o seu conjunto de paráfrases explicativas sobre a filosofia de Aristóteles, tinha o objetivo de torná-la inteligível aos latinos, testemunha, por si só, o enfraquecimento da resistência ao aristotelismo, no interior da própria Faculdade de Teologia (WÉBER, 1991, p. 3 e 10-11). Entretanto, no meio da década de 1260, surge uma polêmica, envolvendo mestres em teologia e em artes. A historiografia pouco conhece sobre os bastidores da controvérsia de Paris, mas esta parece estar ligada a dois fenômenos subsequentes: primeiro, a mudança do corpus sobre 90 o qual o mestre em artes se debruça cotidianamente resulta em tal proximidade e compreensão dos problemas filosóficos que não há por que não o reconhecer enquanto filósofo. Em segundo lugar, seu novo estatuto significa também – e não há por que ser diferente – a possibilidade de adotar uma vida filosófica autônoma e de aspirar a uma beatitude própria, como a descrita no fim da Ética a Nicômaco, que a seus olhos suplantaria a visão beatífica (cf. MICHON, 2004, p. 95-97). Embora não seja possível determinar as verdadeiras razões do conflito, os textos mostram que duas teses presentes nesse corpus estão diretamente implicadas nos acontecimentos que antecederam e, em certa medida, determinaram as condenações e restrições que se multiplicam a partir de 1270. Na década de 1260, as duas teses em questão, a saber, a da eternidade do mundo e a do intelecto único para todos os homens, são objeto de duras críticas, por parte de Boaventura, desde suas Collationes de decem praeceptis, proferidas em 1267. Na verdade, a crítica não se dirige somente às teses, mas também – ou sobretudo – àqueles que as divulgam em sala de aula ou em disputationes e sophismata62. É interessante notar que Boaventura não se preocupa exatamente em refutá-las atravésde uma argumentação bem fundamentada, mas visa principalmente denunciá-las pelo que “são”: erros da filosofia. A posição de Boaventura pode ser resumida da seguinte forma: a filosofia é certamente útil para auxiliar na resolução de certas questões de fé, mas deve ser elevada pela fé, uma vez que, se permanecer em seu próprio nível, arrastará inevitavelmente ao erro aquele que dela faz uso. Com efeito, não existe verdade de fé que seja perfeitamente compreensível ao infiel, assim como não há 62 Sobre a história dos sophismata e de sua similaridade com as disputationes, cf. Libera, 2006. 91 filósofo que não incorra em erro se não contar com o auxílio da luz da fé63. Mas, estas teses ou erros Boaventura os conhece há muitos anos. No seu Comentário das Sentenças de Pedro Lombardo, escrito nos anos 1250-52, ele os estuda para melhor refutá-los. Sua argumentação é filosófica e fundamenta-se em considerações sobre o infinito. Dos seis argumentos apresentados, quatro remetem diretamente a Aristóteles (arg. 1, 2, 3 e 5)64. Entre estes, um é especialmente importante para o entendimento da correlação entre as duas teses e de suas consequências, muitas vezes inaceitáveis, para a organização das crenças inerentes à espiritualidade cristã do período. Trata-se do argumento de número 5, onde Boaventura se inspira na objeção aristotélica relativa ao infinito em ato [Física 63 Esta é uma convicção que o acompanha desde 1250: “Necesse est enim, philosophantem in aliquem errorem labi, nisi adiuvetur per radium fidei.” (“Com efeito, aquele que filosofa cai necessariamente em algum erro, exceto se ajudado pelo raio [de luz] da fé”) [tradução nossa]. Boaventura, 1885, p. 448 (II, d. 18, a. 2, q. 1, ad 6). 64 O primeiro afirma que é impossível acrescentar ao infinito [Do céu I, 12, 283a 9-10]. Assim, se o mundo fosse eterno, a duração do passado seria igualmente infinita e, consequentemente, o número de revoluções do sol também. Mas, a cada revolução solar correspondem doze lunares, o que leva à conclusão absurda de um infinito maior que outro. O segundo argumento começa com a proposição: “É impossível que os infinitos sejam ordenados” [Física VIII, 5, 256a 17-19]. Com efeito, toda ordem decorre do primeiro princípio em direção a um intermediário. Objeta-se, no entanto, que essa regra não se aplicaria a todo tipo de ordenação – logo não diria respeito à ordem temporal dos dias, em anterior e posterior – mas apenas ao caso da ordem causal. Mas, o animal é engendrado pelo animal segundo a ordem da causa, havendo então a necessidade de um primeiro princípio. E, como não há revolução do céu sem que ocorra uma geração de um animal por outro animal, é preciso admitir uma primeira revolução para salvaguardar a ordem da geração animal. O terceiro argumento fundamenta-se na impossibilidade de se atravessar os infinitos [Metafísica XI, 10, 1066a 35]. Bem, se o mundo não teve início, o passado deveria atravessar sua duração infinita para que o hoje lhe seja contíguo. Além disso, um evento passado infinitamente distante do presente, mas anterior a outro evento passado também infinitamente distante do presente, recoloca o problema da impossibilidade de haver diferenças de grandeza entre dois infinitos. Portanto, a rigor, os dois eventos em questão não podem ser entre si nem anterior nem posterior, o que os torna simultâneos. E, nesse caso, é a própria noção de tempo que entra em colapso. [Cf. BOAVENTURA, 1885, p. 20-21 (II, d. 1, p. 1, a. 1, q. 2, sc 1, 2, 3) e MICHON, 2004, p. 59-61]. 92 III, 5, 206a 8] e afirma que é impossível a existência simultânea de um número infinito de realidades [Física III, 5, 204a 20-25; Metafísica XI, 10, 1066b 11]. Admitamos a eternidade do mundo. Como, de certo modo, todas as coisas existem para o homem, os homens sempre habitaram o mundo. Isso significa que as sucessivas gerações humanas são também infinitamente numerosas e que o número de homens que existiram é igualmente infinito. Mas, não se trata aqui do infinito atual, pois o homem é um ser corruptível e sua vida tem uma duração finita. Todavia, cada homem possui uma alma racional. Visto que esta última é uma forma incorruptível, é preciso admitir a existência atual de um número infinito de almas racionais, o que é impossível. Logo, existem três consequências possíveis: o mundo foi criado do nada e no tempo, havendo assim um primeiro princípio, isto é um primeiro dia, um primeiro homem, etc.; o mundo é eterno, existiram infinitos homens, mas só há um número finito de almas que habitam sucessiva e alternadamente a infinidade de corpos corruptíveis; ou, então, o mundo é eterno, infinitos homens já o habitaram, porém há somente uma única alma racional para todos os homens. A segunda hipótese instaura a circulação das almas e é um erro filosófico refutável através do próprio Aristóteles. Mas, a última consegue ser um erro filosófico ainda pior, mais absurdo, mais incompreensível, pelo fato de seu autor, Averróis, pretender havê-la encontrado nos textos aristotélicos. Nesse mesmo livro, mais à frente, Boaventura se interroga sobre a unidade ou a pluralidade da alma humana (racional) segundo o modo da substância. Nessa questão, critica a posição de que a alma humana, enquanto intelecto, é uma única em todos os homens, não somente com relação ao intelecto agente, mas também no que concerne o intelecto possível. Assinala a origem averroísta da posição e critica a tentativa do Comentador (Averróis) de impô-la a Aristóteles, como se ela estivesse presente no De anima e fosse 93 necessariamente complementar à afirmação do estagirita a propósito da eternidade do mundo e do número infinito de homens que nos precederam. Termina sua conclusão com um duplo repúdio à posição averroísta: por ser falsa do ponto de vista da razão e por seu caráter herético. Com efeito, se a alma racional é única, nossa individualidade desaparece inevitavelmente com a morte, o que impede a imortalidade pessoal e a retribuição do mérito65. Mas, no final dos anos 1260, o contexto mudou inteiramente. Não é tempo para análises e minúcias, é tempo de ir direto ao essencial. O ambiente universitário está tomado, para usar uma expressão de A. de Libera (1997, p. 19), por uma “urgência teológica”. Em 1267, Boaventura previne os estudantes e mestres em Artes contra os erros dos filósofos, mas sem citar nomes. É evidente que não os ignora. Os textos do Comentário das Sentenças o atestam. É como se isso não tivesse tanta importância, visto que a sedução exercida pelos textos aristotélicos e os de seus comentadores conduziria o leitor, cedo ou tarde, aos erros e à heresia. A investigação filosófica sem a luz da fé é presunçosa e inconsequente. Agrada-nos tanto com a limpidez dos raciocínios lógicos que nos esquecemos de polir o espelho da alma no estudo do texto sagrado. Boaventura não argumenta mais, mas denuncia. Afirmar a unicidade do intelecto equivale a negar a verdade da fé, a salvação das almas, a obediência aos mandamentos e a aceitar que o pior homem será salvo e ao melhor caberá a danação (cf. BOAVENTURA, 1992, p. 72). Boaventura previne, denuncia, mas também adverte. Referindo-se à Universidade, afirma daquele que concebe, sustenta e reproduz as duas teses de que tratávamos a pouco, que ele comete um grave erro e que, por isso, “tanto o autor, quanto o defensor e o imitador 65 Cf. Boaventura, 1885, p. 446-447 (II, d. 18, a. 2, q. 1, concl.). Sobre a individuação em Averróis, as origens de sua concepção da alma e o problema que a sua tese da unidade do intelecto material (possível) representou para a promessa cristã da salvação pessoal, na segunda metade do século XIII, ver Cruz, 2008, p. 318-353. 94 estão, todos, proibidos aqui”(Ibid., p. 72). Em 1268, retomao problema, ainda sem citar nomes, num tom menos enfático, mas com a escolha da imagem certa, aquela que toca a quem escuta e reforça a autoridade de quem a profere: a tese da unidade do intelecto postula a identidade substancial da alma de Cristo e da alma de Judas [cf. BOAVENTURA, 1891, p. 497 (coll. 8, n. 16)]. Não se pode imaginar maior injustiça. Já em 1273, na última de suas Collationes, Boaventura reencontra as duas teses, mas desta vez, não denuncia nem comove: argumenta. Retoma o raciocínio empregado no Comentário e aponta as possíveis consequências de um mundo eterno: infinidade de almas, almas corruptíveis, transmigração de almas de corpo em corpo, ou então a unidade do intelecto em todos. Mas, diferentemente de 1267 e 1268, ele afirma, sem hesitação, mais enfaticamente que há vinte anos, que a tese da eternidade do mundo é genuinamente aristotélica e que a da unicidade do intelecto é o erro atribuído ao Filósofo (Aristóteles) segundo a interpretação do Comentador (Averróis)[Cf. BOAVENTURA, 1991, p. 213 (coll. 6, n. 4)]. Mas, é apenas no fim dessas conferências que Boaventura parece revelar a natureza de sua relação à filosofia. Para ele, não se chega a compreender toda a riqueza das Escrituras sem proceder a um estudo sério, ordenado e assíduo. É preciso então abordar os dois Testamentos antes de passar aos trabalhos da Patrística, às sumas e aos filósofos. Primeiro, deve-se conhecer bem o texto das Escrituras. O estudo da Patrística ajuda nesse trabalho, mas nela encontramos temas difíceis que exigem o auxílio das sumas e dos filósofos. Nas sumas não é difícil se perder, então é melhor se restringir às opiniões mais comuns. Mas, no estudo dos filósofos, a prudência é boa companhia. Embora indispensável, a filosofia constitui o maior perigo, porque a beleza dos discursos dos filósofos pode nos tirar o gosto pela 95 leitura das Escrituras. A prudência aconselha, então, a restringir seu estudo ao estritamente necessário66. Por tudo o que vimos, podemos concluir que a relação do doutor seráfico com a filosofia é tão complexa quanto ambígua. Ora etapa, ora obstáculo, parece-nos que a filosofia tem nessa oscilação uma das principais características do seu estatuto no pensamento de Boaventura. E embora nós, pós- modernos, pós-morte de Deus, tenhamos pouco em comum com suas aspirações, acreditamos que, ao menos em um ponto, Boaventura tenha sido atemporal: a filosofia realmente nos seduz. REFERÊNCIAS AQUINO, T. L’Unité de l’intellect contre les averroïstes, suivi des Textes contre Averroès antérieurs à 1270 (Texte latin. Traduction, introduction, bibliographie, chronologie, notes et index par Alain de Libera). Paris : Flammarion, 1997. _______. Questions disputées sur la vérité. Question X. L’esprit (De mente)(Texte latin de l’édition Léonine. Introduction, traduction, notes et postface par Kim Sang Ong-Van-Cung). Paris: Vrin, 1998. BAKKER, P. J. J. M. (ed.) Chemins de la pensée médiévale. Mélanges Zénon Kaluza. Turnhout: Brepols, 2002. BAZÀN, B. C. [et al.] Les Questions disputées et les questions quodlibétiques dans les facultés de théologie, de droit et de médecine. Turnhout: Brepols, 1985. BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité”. Paris: Vrin, 2008. _______. Censure et liberté intellectuelle à l’Université de Paris (XIIIe-XIVe siècle). Paris: Les Belles Lettres, 1999. 66 Cf. Boaventura, Collationes in Hexaemeron, 1891, p. 421-422 (coll. 19, n. 6-15). 96 _______. “Censure, liberté et progrès intellectuel à l’université de Paris au XIIIe siècle”, Archives d’histoire doctrinale et littéraire du Moyen Âge 63 (1996), 45-93. BLAISE, A. Lexicon Latinitatis Medii Aevi. Turnhout: Brepols, 1998. BOAVENTURA. Opera Omnia. Ad Claras Aquas: éd. Collegii S. Bonaventurae (Quaracchi), 1882-1902. 10 vol. _______. Commentaria in Quatuor Libros Sententiarum Petri Lombardi. in: Opera Omnia, vol. I, 1882; vol. II, 1885; vol. III, 1887 e vol. IV, 1889 (cada um dos 4 livros está num volume). _______.Collationes in Hexaemeron. In: Opera Omnia, vol. V, 1891, p. 327- 454. _______.Collationes de septem donis Spiritus Sancti. In: Opera Omnia, vol. V, 1891, p. 455-503. _______.Collationes de decem praeceptis. In: Opera Omnia, vol. V, 1891, p. 505-532. _______.Les six jours de la Création (traduction, introduction et notes de M. Ozilou)(L’Œuvre de saint Bonaventure). Paris: Desclée/Cerf, 1991. _______.Les Dix Commandements (traduction, introduction et notes de M. Ozilou)(L’Œuvre de saint Bonaventure). Paris: Desclée/Cerf, 1992. _______.Les six lumières de la connaissance humaine. De reductione artium ad theologiam (éd. bilingue; introduction, traduction et notes par Pierre Michaud-Quantin). Paris: Éditions Franciscaines, 1971. _______.Breviloquium. Prologue (éd. bilingue; introduction générale, introduction au prologue et notes par Jacques-Guy Bougerol). Paris: Éditions Franciscaines, 1966. _______.Breviloquium. partie 2. Le monde créature de Dieu (éd. bilingue; introduction et notes par Trophime Mouiren). Paris: Editions Franciscaines, 1967. _______. Itinéraire de l’esprit vers Dieu (éd. bilingue; introduction, traduction et notes par Henry Duméry). Paris: Éditions Franciscaines, 1994. 97 BOUGEROL, J. G. Lexique Saint Bonaventure. Paris: Éditions Franciscaines, 1969. BROWN, S. F. “The Eternity of the World Discussion at Early Oxford”, Miscellanea Medievalia, 21/1 (1991), 259-280. CESALLI, L. “Dialectique” in: GAUVARD, C., LIBERA, A., ZINK, M. (dir.), 2006. CHENU, M.-D. La Théologie comme science au XIIIe siècle. Paris: Vrin, 1957. CRUZ, E. V. La question de la matière, source de conflit entre les doctrines au XIIIe siècle. Tese de doutorado em filosofia defendida na Université Paris IV – Sorbonne, 2008, 2 vol., 487 p. DALES, R. C. Medieval Discussions on the Eternity of the World. New York: Brill, 1990. DESBIENS, J.-P. Du Maître. De Veritate, q. XI (traduction du texte de Saint- Thomas d’Aquin, De Magistro. Thèse de licence de philosophie, 1958. Source : revue Cahiers de Cap-Rouge, vol. 2, n° 2, 1974, p. 13-73.). Disponível, desde fevereiro de 2009, em http://classiques.uqac.ca/. ELDERS, L. “Saint Thomas d’Aquin et Aristote”, Revue thomiste 88 (1988), 357-376. GAUTHIER, R. “Notes sur les débuts [1225-1240] du premier ‘Averroïsme’“, Revue des sciences philosophiques et théologiques, 66 (1982), 321-373. _______. “Le traité ‘De anima et de potenciis eius’“, Revue des sciences philosophiques et théologiques, 66 (1982), 3-55. GAUVARD, C., LIBERA, A., ZINK, M. (dir.) Dictionnaire du Moyen Âge. Paris: Quadrige/PUF, 2006. GILSON, E. La Philosophie de Saint Bonaventure. Paris: Vrin, 1953. GLORIEUX, P. “L’enseignement au Moyen Âge. Techniques et méthodes en usage à la Faculté de Théologie de Paris au XIIIe siècle”, Archives d’histoire doctrinale et littéraire du Moyen Âge 35 (1968), 65-186. _______.La Faculté des arts et ses maîtres au XIIIe siècle. Paris: Vrin, 1971. 98 HISSETTE, R. Enquête sur les 219 articles condamnés à Paris le 7 mars 1277. Louvain/Paris: Publications Universitaires/Vander-Oyez, 1977. IMBACH, R. “Université” in: GAUVARD, C., LIBERA, A., ZINK, M. (dir.), 2006. LEMOINE, M. “Arts Libéraux” in: GAUVARD, C., LIBERA, A., ZINK, M. (dir.), 2006. LIBERA, A. L’Unité de l’intellect. Commentaire du De unitate intellectus contra averroistas de Thomas d’Aquin. Paris: Vrin, 2004. _______. Raison et Foi. Archéologie d’une crise d’Albert le Grand à Jean- Paul II. Paris: Seuil, 2003. _______. “Introduction” in: AQUINO, 1997, p. 9-73. _______. “Sophismata” in: GAUVARD, C., LIBERA, A., ZINK, M. (dir.), 2006. LOMBARDO, P. Sententiae in IV Libris distinctae. Ad Claras Aquas/Romae: Collegii S. Bonaventurae, 1971. LONG, R. J. “The First Debate on the Eternity of the World”, Recherches de théologie et philosophiemédiévales, 65/1 (1998),52-96. MAIERÙ, A. University Training in Medieval Europe. Leyden: Brill, 1994. MANDONNET, P. Siger de Brabant et l’averroïsme latin au XIIIe siècle (I. Partie. Etude critique). Louvain: Institut Supérieur de Philosophie de L’Université, 1911. MICHAUD-QUANTIN, P. “Introduction” in: BOAVENTURA, 1971, p. 5-37. MICHON, C. Thomas d’Aquin et la controverse sur l’éternité du monde. Traités sur L’Éternité du monde de Bonaventure, Thomas d’Aquin, Peckham, Boèce de Dacie, Henri de Gand et Guillaume d’Ockham (Traduction, présentation et notes par Cyrille Michon, avec la collaboration d’Olivier Boulnois et de Nathanaël Dupré La Tour). Paris: GF Flammarion, 2004. ONG-VAN-CUNG, K. S. “Introduction” in: AQUINO, 1998, p. 7-15. 99 PICHÉ, D. La condamnation parisienne de 1277. Texte latin, traduction, introduction et commentaire. Paris: Vrin, 1999. PLUTA, O. “Persecution and the Art of Writing. The Parisian Statute of April 1, 1272, and Its Philosophical Consequences” in: BAKKER, P. J. J. M. (ed.), 2002, p. 563-585. POIREL, D. “Prédication” in: GAUVARD, C., LIBERA, A., ZINK, M. (dir.), 2006. PUTALLAZ, F.-X.e IMBACH, R. Profession: philosophe. Siger de Brabant. Paris: Cerf, 1997. ROBERT, P. Genèse et Formation de la Philosophie Scolastique. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1950. SOLÈRE, J.-L. “Scolastique” in: GAUVARD, C., LIBERA, A., ZINK, M. (dir.), 2006. WÉBER, E.-H. Dialogue et dissentions entre saint Bonaventure et saint Thomas d’Aquin à Paris (1252-1273). Paris: Vrin, 1974. _______.La personne humaine au XIIIe siècle. L’avènement chez les maîtres parisiens de l’acception moderne de l’homme. Paris: Vrin, 1991. VERGER, J. Les universités au moyen âge. Paris: PUF, 1973. WEIJERS, O. Le Maniement du Savoir. Pratiques intellectuelles à l’époque des premières universités (XIIIe-XIVe siècles). Turnhout: Brepols, 1996. _______.La ‘disputatio’ dans les Facultés des arts au Moyen âge. Turnhout: Brepols, 2002. _______.Quaeritur utrum. Recherches sur la ‘disputatio’ dans les universités médiévales (Studia Artistarum. Études sur la Faculté des arts dans les universités médiévales, 20). Turnhout: Brepols, 2009. WEIJERS, O., HOLTZ, L. (éd.). L’Enseignement des disciplines à la Faculté des arts. Paris et Oxford, XIIIe et XIVe siècles (Studia Artistarum. Études sur la Faculté des arts dans les universités médiévales, 4). Turnhout: Brepols, 1997. 100 Capítulo 6 MMOONNTTAAIIGGNNEE:: CCEETTIICCIISSMMOO EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO Celso Martins Azar Filho Os Ensaios sempre foram vistos pela tradição como contendo ideias importantes sobre a educação67: com efeito, um de seus temas mais constantes. E como Montaigne, a maior parte dos grandes humanistas preocupou-se em propor uma teoria pedagógica68. Trata-se de um dos motivos dominantes da cultura renascentista, com o qual a organização sócio- política e a ciência constituem questões solidárias e interdependentes. Para avaliar a ambiência histórica de tal interesse, deve- se atentar para o quanto foi inaugural a época de transição entre o Medievo e Modernidade, e contemplar a revolução cultural sem precedentes que o período atravessa: uma ruptura radical que ocasiona tanto dúvida e prudência com relação a toda espécie de conhecimento e visão estabelecida do funcionamento e disposição do mundo, da sociedade e do 67 Porque a educação constitui um tema central para compreender a filosofia renascentista, boa parte do que aqui se lê já foi dito em meus escritos publicados: tento fazer aqui uma espécie de resumo dos pontos mais importantes relativos ao tema, mas gostaria de reenviar àqueles com relação a explicações que não pude detalhar aqui por falta de espaço. A edição dos Ensaios utilizada como referência é a de Pierre Villey (2004), e as citações desta obra serão daqui em diante marcadas pela abreviatura ‘E.’. As traduções são de minha responsabilidade. 68 Há mesmo quem afirme (TERDJMAN, 1986, p. 77) que o ideal educativo reivindicado por nossa sociedade contemporânea teria se originado em grande parte na Renascença. 101 corpo, da alma ou da mente humanas, quanto reclama novas construções teóricas. Devemos partir daqui também para compreender como o ensaísta pode ter sido, além de um pedagogo, também um cético69, embora não se trate aí apenas de uma resposta a condições históricas determinadas, porém de algo que orienta sua obra; até o ponto em que, para melhor compreender seu ceticismo, precisamos nos voltar para sua pedagogia, e vice-versa. Pois temos aqui uma questão de método que fazendo parte essencial do projeto filosófico montaigniano, reflui sobre a própria forma do texto: além de destruir ou negar, no mesmo passo aí se afirma e constrói. É preciso não apenas indicar o que deve ou não ser feito, que não somente se discurse sobre um pretenso conhecimento já adquirido e comprovado, mas que o dito sirva de veículo pedagógico para o saber em causa. Que a linguagem mesma, apontando para além de si, sirva como gesto liberador abrindo tanto quanto mostrando as possibilidades e preparando o caminho, bem como também para ele: no ensaio, método e verdade, meios e fins, estão ligados. E se nos Ensaios, os conceitos além de polissêmicos, se estruturam em rede, de forma relacional se “entredefinindo” e modelando segundo as circunstâncias, formas e objetivos da meditação em curso, é porque se experimenta assim refletir o curso das coisas em sua experimentação por leitores e autor, ou a própria dinâmica do que chamamos realidade em seus múltiplos aspectos de representação, isto é, de construção. Ética, política, estética, fisiologia, história, psicologia, poesia, etc. – as “humanidades”, se pudermos evitar a separação estanque, então inexistente, entre ciências humanas e naturais – envolvem cada uma todas as outras em um discurso que tem o homem, não como centro, mas como ideal que se delineia pela busca do verdadeiro 69 Lembremos que, se Montaigne pode ser considerado, sem grandes ressalvas, um humanista ou um cético, com relação à sua filosofia, como é comum acontecer com as obras dos grandes pensadores, as comparações, venham de onde vierem, nunca serão completamente válidas. 102 conhecimento: aquele capaz de reunir virtude e felicidade. Mesmo se este saber só possa se oferecer como probabilidade e nunca como algo dado, pois somente por meio de um esforço de formação simultâneo de si mesmo e do aluno/leitor segundo uma perspectiva que considera experiência, compreensão e comunicação como interdependentes pode ser realizado: e por isso a centralidade do problema educacional. Quando Montaigne expõe suas ideias acerca da sabedoria, da verdadeira cultura e da autêntica virtude, o faz, como é comum em seu tempo, sob a forma de princípios pedagógicos. Todavia, o ensaísta não quis criar uma filosofia da educação como tal ou uma teoria pedagógica em si mesma. Nos Ensaios, o conhecimento do homem é mais importante que sua formação, esta advindo daquele: “Os outros formam o homem; eu o recito” (E. III, 2, 804). E poder-se-ia resumir em uma frase toda a intenção montaigniana neste sentido: educar pela filosofia (E. I, 26, 158 e seq.). O ensaísta não é um pedagogo, como também não é especialista em nenhum domínio, e não se cansa de dizê-lo: “Meu ofício e minha arte é viver” (E. II, 6, 379). Isto, aliás, talvez forme a exigência central de suas convicções sobre a educação: evitar, em primeiro lugar, o constrangimento e a limitação de qualquer especialização e/ou saber determinado e estático. Sempre tomando como base as singularidades individuais em sua permanente evolução, Montaigne busca a formação do homem como um todo; não de um guerreiro, de um teórico, de um diplomata, de um artista ou de um príncipe, mas de todos estes juntos em uma só personalidade,segundo o ideal do homem universal70 renascentista. Ao contrário, porém, da aspiração enciclopédica humanista característica da época, a ênfase deve ser posta na liberdade, na ideia de uma educação liberal que prepara o indivíduo para o mundo, seja este um 70 Como ilustração apenas, veja-se o clássico de Burckhardt, 1991, p. 115 e seq. 103 campo de batalha, um palco, um baile, um julgamento ou uma biblioteca. A censura aos especialistas nos Ensaios possui um alvo bastante concreto: a estrutura social do século XVI não permitindo a realização plena do modelo do homem cultivado em todos os sentidos, a estratificação social reproduz-se na esfera da atividade intelectual (AUERBACH, 1987, p. 271). De um lado, o volume de trabalho requerido pela redescoberta da herança antiga cria um novo tipo de especialista: o humanista – e, em relação à Idade Média, começa a prevalecer a especialização no trabalho científico. Porém, por outro lado, o crescente bem-estar de um número paulatinamente maior de pessoas pertencentes à aristocracia e à burguesia urbana, em paralelo a uma maior difusão de conhecimentos elementares (fruto do próprio movimento humanista), favorece a formação de uma nova camada “culta” que, embora exigindo uma maior participação na vida espiritual, necessita de um saber de gênero diferente da erudição especializada. Notemos, entretanto, que Montaigne não ataca a especialização, o pedantismo, ou o saber puramente livresco em nome desta camada emergente ou em defesa de seu programa ideológico. Mesmo ocupando um lugar de destaque na constituição de sua ideologia – o modelo do honnête homme, que atingirá pleno florescimento sob o absolutismo francês do século XVIII –, o ensaísta não faz parte desta classe, mas de sua pré-história. Mesmo porque algumas características essenciais de sua obra – o empirismo, a concretude da expressão de suas observações e impressões, a proximidade da realidade mundana e popular, a aparente desordem da composição, a mistura de estilos, etc. –, não encontrariam boa acolhida na atmosfera cultural do honnête homme. 104 Todavia, se a camada culta especializa-se, a nobreza francesa permanece em sua maior parte ignorante71. E o ensaísta – que em função de sua posição, de seus encargos diplomáticos e das viagens feitas também por escolha pessoal pela Europa, pôde observar e conviver com o conjunto da nobreza da época – julga-a inculta repetidas vezes: “e esses aos quais a minha condição mais ordinariamente me reúne, são pessoas que, na maior parte, cuidam pouco da cultura da alma” (E. II, 17, 658). E isso lhe parecerá tanto mais claro por sua própria educação clássica, incomum em seu meio, e pelo seu conhecimento pessoal da civilidade dos nobres italianos como exceção. A cultura, o cultivo da alma, opõe-se à especialização ou à limitação e ao estreitamento do campo de atividades de um homem (seja seu ramo de trabalho intelectual ou não), e assim também ao militarismo que distinguia a aristocracia francesa de então72. Entretanto, o programa educativo montaigniano dirige-se à nobreza, como é comum na literatura pedagógica renascentista. Daqui já um primeiro paradoxo: Montaigne, que foi educado entre os camponeses de sua Gasconha natal, forjará uma educação para os infantes nobres73. Mas, o ideal educativo dos Ensaios, bem como suas concepções de honnête e de honnête homme, não são aristocráticos no sentido meramente classista da palavra: o decisivo aí, tal como para os humanistas em geral, é o aperfeiçoamento das qualidades morais do indivíduo, as quais não estão necessariamente ligadas ao seu nível social – e muito frequentemente o ensaísta tomará como 71 Schonberger, 1975, p. 495; Villey, 2004, p. 145. Para outro testemunho da época, que Montaigne conheceu bem, ver Castiglione, 1991, p. 81. 72 A continuação mesma da última citação, como muitas outras passagens, refere-se a isto: et ceux ausquels ma condition me mesle plus ordinairement, sont, pour la pluspart, gens qui ont peu de soing de la culture de l’ame, et ausquels on ne propose pour toute beatitude que l’honneur, et pour toute perfection que la vaillance. 73 Cf. Nakam, 1993, p. 77. Os detalhes da educação primorosa que em seguida recebeu Montaigne, como sua alfabetização em latim ou os instrumentos musicais com que era despertado, são por demais conhecidos para que nos alonguemos sobre eles. Acerca disto pode-se consultar Trinquet (1972) e Frame (1965), entre outros. 105 modelos de conduta os camponeses (E. II, 17, 660, por exemplo). Além da especialização, o dogmatismo é o outro grande inimigo de uma boa educação (E. III, 11, 1030). Contudo, se até mesmo os céticos têm seus “dogmas” (E. II, 12, 502), o que se recusa aqui não são exatamente princípios metodológicos ou definições estritas em si mesmas, mas em geral uma maneira de pensar que impeça a pesquisa contínua que deve ser toda ciência e toda filosofia. A má educação nos Ensaios é principalmente definida como aquela que toma como matéria um conhecimento baseado em princípios ou definições pré- estabelecidos e inquestionáveis para meramente fixá-los pela memória, conteúdo vazio sem aplicação prática. Para inverter tal tendência, Montaigne não vai apenas preconizar uma educação voltada para prática: a própria educação clássica então em voga regurgita de preceitos acerca do valor de um saber prático. O que se vai recomendar e empreender nos Ensaios é uma verdadeira revolução pedagógica em que prática e teoria nunca se separam. A pedagogia renascentista é determinada pela admiração do mundo greco-romano enquanto experiência humana exemplar: a Antiguidade é tomada então como modelo. Nisto, o que costumamos chamar hoje de “humanismo”, desempenhou um papel fundamental. Um humanista74 é um homem ocupado com os studia humanitatis, as quais incluíam grammatica, rhetorica, poetica, historia e philosophia moralis (na forma em que tais designativos eram então entendidos), sempre caminhando a par da renovação da compreensão da Antiguidade; um estudioso das maneiras de usar a linguagem e de viver – e das implicações entre uma coisa e outra. No alto Renascimento – sob o impacto fascinante da redescoberta da verdadeira amplitude e profundidade do 74 O termo ‘humanista’ foi cunhado em fins do século XV para designar um professor e um estudante das ‘humanidades’: Cf. Kristeller, 1992, p. 113; Garin, 1995, p. 28 e 41. 106 saber antigo – muitas vezes serão confundidas sabedoria, eloquência e mera repetição dos autores antigos. O colégio em que Montaigne estudou a partir dos seis anos era dedicado à tarefa de ensinar o latim; visava-se a assimilação do estilo e do espírito dos antigos. Para tanto, a técnica pedagógica central envolvia o uso de cadernos de anotações conhecidos como “livros de lugares-comuns”, nos quais o vasto corpo da literatura antiga era gradualmente posto à disposição, filtrada e organizadamente. O lugar-comum, espécie de provérbio útil, servindo como guia de conduta e referencial retórico, constituía-se como fio condutor, tanto para a escrita, como para a vida. É uma hipótese plausível a de que o ensaísta tenha composto os Ensaios com a ajuda de seus próprios cadernos de lugares-comuns (cf. VILLEY, 1933). No entanto, seu autor emprega suas anotações menos como recurso mnemônico do que como instrumento de uma filosofia na qual pensamento e ação, arte e vida, ética e estética não cessam de interagir. O ensaísta subverte a noção de lugar-comum em virtude de uma maneira de argumentar que lhe era peculiar trabalhando com a justaposição de oposições, arguindo “de ambos os lados” ou “em ambos os sentidos” – in utramque partem75. O resultado final é a transformação, no ensaio, deste instrumento do ceticismo acadêmico no de um ceticismoainda mais radical, e que possibilita a Montaigne reformular o programa humanista de educação. A principal serventia do modo in utramque partem de raciocínio consistia em ensinar a aplicar normas relativas à conduta humana em situações particulares. Metamorfoseando-o, Montaigne irá, em vez de construir lugares-comuns, destruí-los, para observar e expor seus mecanismos de formação. Em síntese, o ensaísta transforma um instrumento de estabelecimento e exploração de verdades 75 Sobre os loci communes e o modo de argumentação in utramque partem, sua origem aristotélica, sua história, sua voga na Renascença, sua assimilação e transformação por Montaigne, ver Schiffman, 1984, p. 163. 107 em uma maneira de procurar a verdade. O movimento de crítica e aprofundamento simultâneos que perfaz o ensaio remodela o ceticismo para fazer deste um instrumento de pesquisa. Note-se que a própria concepção do ensaio já trazia em si o ensejo de um refazer constante em vistas de seu aperfeiçoamento contínuo, a composição dos Ensaios tendo se realizado segundo um processo de “aluvionamento” (segundo a expressão consagrada pela crítica), ou seja, de adições e remanejamentos ao longo dos 20 anos em que foi escrito. Já aqui encontramos o exemplo fundamental de como o ensaísta procura tornar concreto seu saber, fazendo com que forma e conteúdo se relacionem sempre muito intimamente para unir a teoria à prática. Através de uma autocrítica constante, que traz para o movimento da escrita o tempo vivido, fazendo de seu próprio texto o lugar e o instrumento do aprimoramento de suas ideias76. Pois que se trata de criar uma educação que seja voltada para a prática (que por meio desta e para esta se realize, portanto), isto exige criar formas de arrancar seus atores da alienação em que se encontram mergulhados com relação tanto ao seu verdadeiro papel social, como quanto àquele que deveria ser o seu papel como educadores e pesquisadores – o que deve acontecer paralelamente à busca de uma nova forma de propor os fins e os meios de seus esforços. Já o título de um dos grandes textos dos Ensaios versando sobre este assunto – o capítulo Du pedantisme (I, 25) – é importante para entender como uma disposição cética com relação às formas da educação então tradicional se impôs para que se pudesse cunhar uma nova pedagogia: no francês 76 Nos dois grandes ensaios sobre a educação – E. I, 25 e 26 –, temos dois bons exemplos de como o ensaio é um método que se experimenta sem cessar colocando em questão seus procedimentos no mesmo passo em que caminha em direção ao aprofundamento de suas noções diretoras (no caso, relativas à pedagogia): p. 136 e 148. Método de pesquisa e estilo literário, filosofia e retórica, enfim, ética, estética e política, aí se combinam, e com finalidades bem claras e definidas, como veremos. 108 médio, a denominação ‘pedante’ significava preceptor, mestre- escola, pedagogo, em suma, professor77; se a língua francesa retém hoje apenas, como no português, o sentido pejorativo do termo, esta acepção começa a tomar forma no Renascimento – e no texto em questão podemos ver como isto aconteceu: pela reprovação do saber afastado da vida e das preocupações e necessidades cotidianas, e daí negligente com relação à sua dimensão moral ou à sua utilidade no aprimoramento da pessoa humana (LOGAN, 1975, p. 615-622; VINCENT, 1997). Atente-se para o fato de que Montaigne ataca, assim, tanto a educação escolástica, quanto certas tendências da pedagogia humanista (seu “gramaticismo”, por exemplo, mas especialmente o recomendar uma educação descuidada das particularidades das suas aplicações, das situações e de seus receptores). Os humanistas criaram o conceito de uma espécie de nobreza, de aristocracia do espírito para a qual o “vulgar” deixa de ser uma questão de nível social e de nascimento para tornar-se uma pecha da ignorância e da incultura. Não se trata mais apenas do reconhecimento, comum na Antiguidade e na Idade Média, e renovado nos séculos XIII e XIV (quando a burguesia citadina retoma por conta própria, com fins de legitimação de seu novo status, o ideal cavalheiresco), de que a nobreza da alma não é um privilégio de nascimento, porém apanágio daqueles que agem nobremente (CURTIUS, 1991, p. 296; BAURMANN, 1939, p. 55). Trata-se, ao contrário, de uma valorização da boa educação que, tendo também raízes antigas, não encontra paralelo de igual intensidade na Idade Média78. Todo inculto chama-se agora, para os humanistas franceses, vulgaire, seja qual for sua classe social. Concorrem 77 O termo é emprestado, primeiro sob a forma pedante (1558), do italiano pedante, de origem grega. Em Montaigne, encontramos a primeira ocorrência de pédantisme (1580). Cf. Greimas e Keane, 1992; Dauzat, Dubois e Mitterand, 1971; Rey, 1992; Huguet, 2010. 78 Muito embora não seja algo de inaudito no medievo: veja-se o exemplo do Romance da Rosa. 109 para isso a prosperidade da pré-burguesia emergente e, notadamente, a projeção dos humanistas e sua importância política79 nas cortes renascentistas – fatos que devem ser justificados pela formação de uma nova ideologia acerca da noção de nobreza. Assistimos no Renascimento a um novo arranjo das ciências e dos saberes, e – claro – das classes sociais e seus ideais80. Logo no início de Do pedantismo, Montaigne cita um provérbio medieval que também se encontra em Rabelais (Gargântua, XXXIX): “magis magnos clericos non sunt magis magnos sapientes”. Traduzindo: “os maiores letrados não são os maiores sábios”. Notemos a ambiguidade do termo clericos que pode significar tanto clérigos, monges, como eruditos, letrados, sabedores; este duplo sentido é medieval (BLAISE, 1994) – embora a palavra seja de origem grega (ERNOUT e MEILLET, 1994) – e foi preservado pela língua francesa – mantendo até mesmo um caráter irônico no francês moderno (clerc). Ora, a ciência foi, ao longo da Idade Média, e era então ainda na maior parte, afazer do clero, de onde também saem, em primeiro lugar, os homens ocupados com o ensino (CHATEAU, 1971, p. 122, n. 4). Logo, não é de surpreender aquela identificação linguística; e aqui temos mais um elemento da crítica social montaigniana. Mas o que mais importa aí é a determinação da diferença, corriqueira nos Ensaios, entre erudição e sabedoria, onde o sçavant (que se pode traduzir por ‘erudito’ ou, mais diretamente, ‘sabedor’) não se confunde com o sage, o ‘sábio’. Toda a filosofia montaigniana é um esforço de compreensão e expressão simultâneos do que seja a sabedoria – conceito fundamental 79 Cf. Kristeller, 1992, p. 123. Note-se, de novo, que especialmente na França acontece uma espécie de identificação ideológica entre escritores burgueses e círculos aristocráticos: cf. Auerbach, 1987; Elias, 1990, vol. 1, p. 87. 80 A importância que assume então o problema educacional na literatura humanista pode ser explicada como um dos sintomas da transição sofrida pelo sistema de valores nas sociedades renascentistas, marcadamente no século XVI: cf. Elias, 1990, vol.1, p. 91 e 94. 110 para a filosofia do Renascimento (RICE, 1958) –, frequentemente através da marcação de suas diferenças com relação à pura e simples cultura livresca que não conduz, por si só, a agir ou a pensar melhor. Este afastamento de um saber, agora percebido como presunçoso, debilitante e estéril, corre em paralelo à tentativa de obter um conhecimento que aproxime da virtude, do bem-viver, da felicidade. Vejamos um exemplo deste ensaio mesmo: Embora pudéssemos ser sabedores pelo saber de outrem, ao menos sábios não podemos ser senão pela nossa própria sabedoria. “Detesto o sábio que não é sábio para si mesmo”. Como Ennius tambémdiz: Não sabe nada que preste o sábio cuja ciência não lhe aproveita, se ele é avarento, gabola, efeminado, mais mole que uma ovelhinha. Pois adquirir a sapiência não basta: é preciso usufruir dela. Dionísio zombava dos gramáticos que têm o cuidado de se indagarem dos males de Ulisses e ignoram os próprios; dos músicos que afinam suas flautas e não afinam seus costumes; dos oradores que estudam para dizer a justiça, não para fazê-la. Se nossa alma não se movimenta melhor, se nosso julgamento não se faz mais são, tanto se me daria que meu colegial tivesse passado o tempo a jogar pelota: ao menos o corpo tornar-se-ia mais ágil (E. I, 25, 138). E aqui lemos o sentido básico da investida contra o pedantismo, na qual se visa, ao mesmo tempo, uma concepção da ciência e uma da educação, que são inseparáveis e igualmente falsas (CHATEAU, 1971, p. 124-125), ambas fruto de uma confusão do verdadeiro conhecimento com o enciclopedismo, o vão eruditismo e a ostentação de cultura inútil. E boa parte da ciência, como da educação, medieval, renascentista e de todos os tempos, tem sua parcela de culpa nisto. Ao contrário, no pensamento montaigniano e na própria ideia de ensaio, é evidente a importância do cultivo do espírito crítico, da capacidade de avaliar, pesar, apreciar a ciência – e o ensaísta diria mesmo ‘degustar’ (por exemplo, E. I, 25, 150). 111 Uma postura passiva perante o saber, apenas armazenadora dos pensamentos e juízos de outrem, ainda que fossem dos mais excelentes espíritos, torna-os nocivos: é preciso julgar por e para si mesmo os julgamentos alheios e fazer assim nosso seu saber. Nós sabemos dizer: Cícero diz assim; eis a moral de Platão; estas são as palavras mesmas de Aristóteles. Mas nós, que dizemos nós mesmos? Que julgamos? Que fazemos? Um papagaio faria tão bem quanto nós. [...] Conheço alguém que quando pergunto o que ele sabe, ele me pede um livro para aí o mostrar; e não ousaria dizer que tem o traseiro sarnento, sem ir imediatamente estudar em seu léxico, o que é sarnento, e o que é traseiro. Tomamos em nossa guarda as opiniões e o saber de outrem, e é tudo. É preciso torná-los nossos. [...] De que nos serve ter a pança cheia de comida se não a digerimos? Se ela não se transforma em nós? Se ela não nos faz crescer e fortifica? [...] Tanto nos deixamos levar nos braços de outros, que aniquilamos nossas forças (E. I, 25, 137). Assim acontece que amiúde uma alma rica dos mais variados conhecimentos nem por isso torne-se mais viva ou desperta, e que um espírito grosseiro e vulgar possa alojar em si, sem se emendar, os discursos e os julgamentos dos mais excelentes espíritos (E. I, 25, 134). Como disse uma princesa81 a Montaigne, os cérebros destes homens encolhem-se e amesquinham-se para dar lugar ao saber que não lhes pertence verdadeiramente. Nosso autor vai contrapor a esta forma equivocada outra que lhe é diametralmente oposta, respondendo à princesa com as seguintes palavras: “Mas outra 81 Notemos a referência constante à nobreza. “A primeira de nossas princesas” seria, segundo Villey (Ed. dos Ensaios, pg. 1240), Catarina de Bourbon, irmã de Henrique de Navarra. É interessante como o ensaísta com frequência refere-se e endereça-se às mulheres em meio a desenvolvimentos relativos à educação (aqui, na dedicatória do De l’institution des enfans e no maior e talvez o mais cético dos ensaios, a Apologia de Raimond Sebond). Com isso, aliás, opondo-se tacitamente ao preconceito contra as mulheres bem instruídas (criticado na página 140 do mesmo Du pedantisme). 112 coisa acontece: pois nossa alma tanto mais se alarga quanto mais se enche” (E. I, 25, 134). Assim podemos nos aplicar à ciência, tanto de maneira que esta nos seja formadora e enobrecedora, quanto de modo deformador e prejudicial: mas mesmo que haja uma forma errada de se ocupar da ciência e do conhecimento em geral cujas consequências são nocivas, o estudo e a cultura não são o mal em si (como poderia parecer significar a opinião da princesa). [...] e creio que vale mais dizer que o mal provém da maneira ruim com que eles se aplicam às ciências; e que, pelo modo como somos instruídos, não é de maravilhar se nem os estudantes nem os mestres se tornem mais capazes, embora se façam mais doutos. A dizer a verdade, o cuidado e as despesas de nossos pais não visa senão a nos mobiliar a cabeça de ciência; do julgamento e da virtude, poucas notícias. Apregoai de um passante ao nosso povo: ‘Olha o homem sabedor!’ E de um outro: ‘Olha o homem bom!’ Não faltará quem torne os olhos e seu respeito para o primeiro. Seria preciso um terceiro pregão: ‘Olha os cabeças pesadas!’ Gostamos de perguntar: ‘Sabe ele grego ou latim ? Escreve em verso ou em prosa?’ Mas se tornou melhor ou mais avisado, que era o principal, isso fica para trás. Seria preciso se perguntar quem sabe melhor e não quem sabe mais. Esforçamo-nos unicamente para encher a memória, e deixamos o entendimento e a consciência vazios (E. I, 25, 136). Se Montaigne ataca a ciência (termo que, como é comum na época, significa o saber em geral), não é para se recusar a ela, mas para compreendê-la melhor: em diversos pontos dos Ensaios, e também no Do Pedantismo, Montaigne testemunhará a favor das ciências e de seu valor. À busca do verdadeiro conhecimento serve o ensaio, experimentando e educando nosso julgamento82. Aperfeiçoar-se na conduta e no julgar são 82 O “julgamento” (jugement) constitui, na filosofia montaigniana, a instância intelectual superior, que avalia e decide com base na razão e na sensação realizando sua síntese, ou combinando suas operações e dados, no juízo. Ele estabelece uma 113 tarefas interdependentes e ligadas pela noção de sabedoria. E isto não se consegue empregando apenas a memória: não se trata, como está dito na última citação, de “mobiliar a cabeça”, mas de se formar corretamente, ou melhor, de forjar: “Prefiro forjar minha alma que mobiliá-la”(E. III, 3, 819). Melhor uma “cabeça bem feita que bem cheia” (E. I, 26, 150). Precisamente esta distinção confundiu os leitores dos Ensaios: pois qual a diferença entre a douta ignorância que serve de travesseiro suave, doce e saudável para repousar uma cabeça bem-feita (E. III, 13, 1073) e a ignorância pura e simples? A melhor resposta vem de outro cético (ou que pelo menos foi julgado também frequentemente como tal), Diderot: “A ignorância e a despreocupação são dois travesseiros muito doces: mas para julgá-los como tais é preciso ter a cabeça tão bem feita quanto Montaigne” (apud P. Villey na edição dos Ensaios tomada aqui como referência, p. 1199). Tratamos de uma educação que visa o talento: “Um homem erudito não é erudito em tudo; mas o homem de talento é em tudo capaz, e mesmo em ignorar” (E. III, 2, 806). Daí a recusa montaigniana em assumir uma postura professoral: ele próprio está preocupado em aprender – os Ensaios perfazem a história de seu aprendizado –, e é seguindo o seu caminho que ele lança luz sobre o nosso. Porque neste campo, no domínio da filosofia moral, tal como a estuda o ensaísta, pensamento e ação são inseparáveis na letra, como no espírito; na escrita, como na vida. Julgar é agir. Como, porém, chegar à condição de bem agir? O que é aquele “saber melhor” mencionado acima – este saber que nos permite, inclusive, bem ignorar – e de que maneira se alcança tal conhecimento? Esta questão está em jogo no bojo da concepção de uma espécie de critério formal, sempre local e contingente, não necessariamente engajado em normas ou referido a valores obrigatórios, e que por isso não entra em contradição com a dúvida contínua inerente ao ensaio. “O julgamento é um utensílio para todos os propósitose em tudo se intromete. Por este motivo, nos ensaios que dele aqui faço, emprego toda sorte de ocasião” (E. I, 50, 301). 114 filosofia ensaística, quer dizer, entendida como busca constante de sua possibilidade. À ciência, ou ao conhecimento puro e simples dos fatos e letras, deve-se juntar o ensaio do senso83, isto é, a experimentação do julgamento ou do bom- senso – que só se pode constituir no ensaio da ação (E. I, 25, 142). E ainda: Ora, o saber não deve ser pregado na alma, mas deve ser incorporado a esta; não deve regá-la, deve tingi-la; e, se não a muda, nem melhora seu estado imperfeito, mais vale certamente que o deixemos onde está. É um gládio perigoso, que embaraça e fere o dono, quando empunhado por mão fraca e que não lhe sabe manejar, “de sorte que fora melhor nada ter aprendido84. Bem pensar e bem fazer: tal deve ser o fruto do verdadeiro conhecimento (E. I, 25, 141). O crucial para tanto é a maneira de travar contato com a ciência, de lidar e de se relacionar com o conhecimento: o ensaísta enfatiza, sobretudo, a inter-relação entre o método pedagógico correto, a situação e a natureza do aluno (E. I, 25, 142-143). A Renascença, vimos, retoma o saber greco-romano, e este prescreve em geral subordinação à medida natural. Não se trata de crer que a educação tem pouco valor, tendência cuja radicalização por motivos religiosos levara anteriormente até a condenação de todo ensinamento e de toda cultura “humana” (GARIN, 1995, p. 45 e seq.; CHATEAU, 1971, p. 134). Muito diversa é a motivação da corrente anti-intelectualista que atravessa o humanismo desde Petrarca – e que, em Montaigne, 83 L’essay du sens (E. I, 25, 140). Note-se como, neste trecho mesmo, o ensaísta joga com o duplo sentido francês de sens: senso e sentido. 84 E. I, 25, 140. Atenção aqui para a equiparação, frequente nos Ensaios do processo de conhecimento ao processo digestivo. Note-se que incorporar não significa lá aceitar, mas transformar. É importante marcar a maneira pela qual a linguagem ensaística serve não só de veículo às ideias montaignianas, porém as exprime em si mesma, através de seus termos, ritmos, imagens, etc. Desta forma, à análise conceitual “descarnada”, escolástica, vêm juntar-se poderosos instrumentos literários de expressão. 115 entre outros, emprega o arsenal argumentativo do ceticismo antigo em seu favor –, a qual tem por fundamento a exigência de que todo aprendizado deva ser justificado por sua contribuição para a melhora do caráter do aprendiz85. Portanto, é precisamente uma diretriz educativa que assim se impõe com o fim de otimizar o próprio processo pedagógico, de acordo com os objetivos então acreditados essenciais. Por outro lado, o intento de seguir a natureza não serve mais apenas de suporte ideológico à manutenção de uma hierarquia social cristalizada: os humanistas pensavam no homem como construtor de si mesmo e de seu destino. A boa educação é aquela que considera a natureza individual de seus sujeitos e as ocasiões, e a estas se adapta para tentar transformá-las segundo suas interações. Uma das características da sabedoria montaigniana é facultar ao homem o reconhecimento de sua própria condição; ou o saber que para cada homem há um afazer e conhecimento apropriado à sua disposição pessoal e às oportunidades que se lhe oferecem. Neste sentido, também um camponês, se sabe e faz o que lhe é devido, será considerado sábio. E se os nobres devem ser educados, isto não significa esquecer o lugar que lhes cabe: a guerra e o governo, não as letras, devem ser suas principais ocupações. Não há aqui contradição: o combate humanista contra o conceito de nobreza hereditária e a ligação ideológica de raça e 85 Logan, 1975, p. 621. É bem verdade que tal crítica do saber deita suas raízes na Idade Média e permanece paralela à revalorização da cultura no Renascimento Carolíngio como uma espécie de exigência de medida que seria inerente ao verdadeiro conhecimento (GARIN, 1995, 57-58); mas é verdade também que aí o fim moral consiste basicamente na salvação e na fé que devem, não somente orientar o saber, porém dominá-lo (GILSON, 1986, p. 41). Note-se ainda que os humanistas são normalmente cristãos e por vezes atacam o saber e a cultura em geral com disposição, senão idêntica, vizinha à medieval. A originalidade montaigniana, aliás, é precisamente não recusar o saber como um todo, de maneira obscurantista, mas desenvolver suas dúvidas pelo raciocínio cuidadoso, chegando, com método, a algumas dificuldades filosóficas cruciais: isto o torna, segundo Popkin (1979, p. 53-54) diferente dos outros céticos do século XVI, e mais importante do que qualquer um deles. 116 virtude não impedem que os Ensaios, e o Renascimento como um todo, continuem bastante sensíveis a tais ideias (cf. E. III, 5, 850-851; BAURMANN, 1939, p. 58). Igualmente, mesmo que a identificação de virtude e coragem guerreira seja recusada, o humanismo fará concessões à virtude bélica. E Montaigne chegará a dizer, no final de Do Pedantismo, que “o estudo das ciências amolece e efemina as coragens mais do que as endurece e viriliza” (E. I, 25, 143); e termina por relatar a opinião dos nobres do séquito de Charles VIII – então conquistador sem esforço de Nápoles e de boa parte da Toscana, berço do Renascimento – os quais culparam precisamente o refinamento da nobreza italiana (que o ensaísta, vimos, tinha em alta conta) por sua fatídica derrota. Mas há aqui também uma ironia evidente dirigida contra seus compatriotas. É preciso repetir: não estamos frente a uma pura e simples recusa da educação ou da ciência, mas lemos a crítica de uma formação mal feita conjugada com recomendações acerca da maneira correta de educar, maneira esta que deve estar intimamente relacionada à natureza e condição do aluno. Mas há mais que isso: que se insista que a compreensão correta, não só da pedagogia, mas da filosofia ensaística, depende de se perceber como seu lado prático efetivamente se articula em função de sua elaboração teórica e/ou vice-versa. Montaigne tenta fazer já no seu texto justamente aquilo que ele recomenda: sua busca do saber pretende ter um efeito prático sobre autor e leitores, ou seja, à pedagogia deve se seguir um resultado ético e sócio-político. Para estimular os nobres à verdadeira cultura, o ensaísta vai atacar aquela apenas aparente, inútil e prejudicial, e mostrar que há uma filosofia que lhes seria benéfica. Ao invés de tentar fazer do nobre um filósofo (como por vezes parecem pretender os humanistas), Montaigne vai apresentar a filosofia à corte (BOUCHARD, 2007, p. 65). E com isso ainda – e agora seguindo os humanistas – faz da nobreza um ideal para todos os homens. 117 Logo, não se trata de uma espécie de casuística da educação, porém de uma, digamos, especialização de sua aplicação. Seria um erro reduzir todo alcance e fim da mensagem montaigniana à classe aristocrática. O objeto da filosofia ensaística é o homem, e seu objetivo mais lato, sua formação. Montaigne procura através de exemplos e situações particulares atingir o universal. Daí o interesse, não por uma classe ou grupo determinados, mas por cada caso singular – que se expressa já no fato do ensaísta pretender através de si mesmo, no auto-retrato que são os Ensaios, retratar a condição humana86. O esforço para definir o que é saber e educar bem se refere tanto às classes sociais como à natureza dos indivíduos: ora, uma e outra coisa estão ligadas no imaginário da época. A resposta de Montaigne é fazer uma crítica de tal injunção conectada com o exame do saber. Por exemplo: se não requeremos muita ciência das mulheres e dos nobres, não é porque toda ciência seja nociva ou inútil, mas porque esta nossa ciência o é, reflexo de uma situação sócio-política perversa (E. I, 25, 140-141). A separaçãoentre teoria e prática espelha uma divisão social que atribui o trabalho intelectual a certas classes (clérigos, humanistas, professores). O pedante é resultado desta divisão. O que Montaigne percebe muito bem é que esta divisão é apenas aparente, dado que jamais poderia se constituir realmente: os caminhos pelos quais teoria e prática se unem podem até escapar ao senso comum, mas jamais à realidade de sua integração necessária. Assim este saber inútil se encaixa em uma situação em que a nobreza está mais preocupada em defender seus interesses familiares ou partidários do que a França; e em que os professores estão mais preocupados com sua difícil sobrevivência do que com seus alunos ou com o verdadeiro saber. O pedante é então 86 Veja-se o começo do ensaio Du Repentir (III, 2) que serviu de modelo a Auerbach (1987, cap. 12) em sua famosa análise do método montaigniano. 118 uma espécie de parasita social, porque o pedantismo tornou-se uma espécie de doença social (PANICHI, 2007, p. 890) que não toca apenas a uma classe determinada: de um lado, temos o pedante em pessoa, aquele que professa um conhecimento sem valor e sem sentido, de outro a atitude pedante do nobre que crê que o status por si só (e nisto se visa também a noblesse de robe, pré-burguesia emergente, a qual Montaigne pertencia) confere um saber inspirado cuja prova se encontra, seja pelo nascimento, seja pelo triunfo social, em um momento em que tais coisas, como hoje talvez, tornaram-se muito próximas. REFERÊNCIAS AUERBACH, E. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 1987. BAURMANN, W. Vertu – Die Bedeutungen des Wortes in der französischen Renaissance. Romanische Studien, Berlin, nº 51, 1939. BLAISE, A. Lexicon Latinitatis Medii Aevi. Turnhout: Brepols, 1994. BOUCHARD, M. «Pour une philosophie “illustre”. L’honnesteté cardinale des Essais de Montaigne». Tangence, n° 84, 2007, p. 63-86. BURCKHARDT, J. A Cultura do Renascimento na Itália. Trad. de S. Tellaroli. São Paulo: Schwarcz, 1991. CASTIGLIONE, B. Le Livre du Courtisan. Trad. de A. Pons (seguindo a versão de Gabriel Chapuis de 1580). Paris: Flammarion, 1991. CHATEAU, J. Montaigne Psychologue et Pédagogue. Paris: Vrin, 1971. CURTIUS, E. R. La littérature européenne et le Moyen Âge latin. Trad. de J. Bréjoux. Paris: PUF, 1991. DAUZAT, A., DUBOIS, J. e MITTERAND, H. Nouveau Dictionnaire Étymologique et Historique. Paris: Larousse, 1971. ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. 119 ERNOUT e MEILLET. Dictionnaire Etymologique de la Langue Latine. Paris: Klincksieck, 1994. FRAME, D. M. Montaigne, A Biography. New York: Harcourt, Brace and World inc., 1965. FRIEDRICH, H. Montaigne. Trad. De R. Rovini. Paris: Gallimard, 1984. GARIN, E. L’éducation de l’homme moderne (1400-1600). Trad. de J. Humbert. Paris: Fayard, 1995. GILSON, É. La philosophie au Moyen Age. Paris: Payot, 1986. GREIMAS, A.J. e KEANE, T.M. Dictionnaire du moyen français. Paris: Larousse, 1992. HUGUET, E. Dictionnaire de la langue française du seizième siècle. Genebra: Slatkine, 2010. KRISTELLER, P. O. «Humanism». In SCHMITT, C.B. (Ed.). The Cambridge History of Renaissance Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. LOGAN, G.M. «The relation of Montaigne to Renaissance Humanism». Journal of the History of Ideas, vol. XXXVI, out.-dez. 1975. MONTAIGNE, M. de. Les Essais. Ed de P. Villey. Paris: PUF, 2004. NAKAM, G. Montaigne et son temps. Paris: Gallimard, 1993. PANICHI, N. «Pédantisme». In P. Desan (Dir.), Dictionnaire de Michel de Montaigne. Paris: Honoré Champion, 2007. POPKIN, R. The history of scepticism from Erasmus to Spinoza. California: University of California Press, 1979. RABELAIS, F. Oeuvres Complètes. Paris: Gallimard, 1994. REY, A. (Dir.) Dictionnaire Historique de la Langue Française. Paris: Le Robert, 1992. RICE Jr., E. F. The Renaissance Idea of Wisdom. Cambridge, Harvard University Press, 1958. 120 SCHIFFMAN, Z. S. «Montaigne and the rise of skepticism in early modern Europe: a reappraisal», Journal of the History of Ideas, vol. XLV, nº 4, oct.- déc. 1984. SCHONBERGER, V. L. La conception de l’honneste homme chez Montaigne. Revue de l’Université d’Ottawa, vol. 45, n. 4, 1975. TERDJMAN, E. «Montaigne, précurseur des sciences de l’homme a travers ses propositions éducatives». Bulletin de la Societé des Amis de Montaigne, Paris, 7a série, nº 5-6, 1986. TRINQUET, R. La jeunesse de Montaigne. Paris: Nizet, 1972. VILLEY, P. Les sources & l’évolution des Essais de Montaigne. Paris: Hachette, 1933. VINCENT, H. Éducation et scepticisme chez Montaigne. Paris: L’Harmattan, 1997. 121 Capítulo 7 DDEESSCCAARRTTEESS,, MMÉÉTTOODDOO EE CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO Ethel Menezes Rocha* Os primeiros esforços de Descartes foram dedicados, juntamente com o filósofo da natureza Isaac Beeckman, a problemas de matemática, musicologia, cinemática e hidrostática. Como resultado, no final de 1618, Descartes completa seu primeiro livro (que só será publicado em 1650), Compedium Musicae, que dedica a Beeckman. O trabalho inicial de Descartes em matemática, como era o caso de um modo geral nas matemáticas, não é formulado sob a estrutura lógica silogística aprendida com seus professores escolásticos. Além do fato de, no século dezessete, as matemáticas de um modo geral não utilizarem a lógica silogística, o que só ocorre no século dezenove, quando a lógica passa a ser considerada o núcleo das matemáticas, Descartes considerava a lógica formal inadequada para as ciências. Na Parte II do Discurso sobre o Método, no Prefácio à edição francesa dos Princípios da Filosofia, nas Regras para a Direção do Espírito e mesmo em seu último escrito A Procura da Verdade, Descartes expressamente se opõe aos dois objetivos centrais da teoria aristotélica referente à lógica: tanto à ideia aristotélica de fornecer uma explicação sistemática de silogismos demonstrativos, quanto à ideia de fornecer uma teoria normativa do pensamento, isto é, à ideia de que é tarefa da filosofia fornecer um conjunto de regras * Pesquisadora do CNPq e PRONEX/CNPQ/FAPERJ. 122 para pensar corretamente. Descartes sustenta que inferência é algo que os homens, por serem criaturas racionais, fazem naturalmente e de modo correto, considerando, portanto, vazia e inútil a constituição de um conjunto de regras externas que regulariam o acesso à verdade. Em suas palavras: “Além disso, as cadeias com as quais os dialéticos87 supõem regular a razão humana [para alcançar o conhecimento das coisas] me parecem de pouca utilidade...”(Regra II)88. Mais ainda, segundo ele, a lógica formal silogística quase sempre constitui um obstáculo ao exercício da função natural da razão, impedindo-a de funcionar do modo que lhe é próprio, isto é, como afirma no Prefácio dos os Princípios, “... a lógica dos escolásticos corrompe o bom senso no lugar de ampliá-lo”. Que sua crítica ao formalismo da lógica silogística se baseia na essência da razão e seu funcionamento natural fica claro, por exemplo, na obra Regras para Direção do Espírito, quando Descartes opõe o fato de a razão trabalhar quando se empenha em perceber claramente uma inferência com o fato dela entrar de férias quando dispensa essa operação e segue cegamente preceitos formais. Em suas palavras: Alguns espantar-se-ão, talvez, que neste lugar em que procuramos os meios de nos tornarmos mais aptos para deduzir as verdades umas das outras, omitamos todos os preceitos dos Dialéticos, com os quais julgam eles governar a razão. Eles prescrevem certas formas de raciocínio nas quais as conclusões se seguem com tal necessidade irresistível que se a razão nelas confia, embora de certa maneira entre de férias dispensando considerarclara e atentamente uma inferência particular, pode, todavia, concluir por vezes algo de acertado meramente em virtude da forma (Regra X). Mesmo em seu último escrito, A Procura da Verdade, provavelmente escrito em 1641, mas só publicado após sua 87 “Dialética” é o termo utilizado por Descartes para se referir à lógica escolástica. 88 Ver também Discurso sobre o Método, Parte II, AT VI:17. 123 morte, Descartes mantém sua oposição à lógica formal em favor do uso natural da razão e a tese de que esta é corrompida por aquela. Nesse texto, Eudoxus, personagem que no diálogo veicula as teses cartesianas, afirma: Todos esses pontos foram afirmados e desenvolvidos não por meio da lógica, ou de uma regra ou modelo de argumento, mas apenas pela luz da razão e bom senso. Quando essa luz opera por si mesma, é menos provável que erre do que quando se esforça ansiosamente para seguir as inúmeras e diferentes regras, invenções do engenho e ócio humanos, que servem mais para corrompê-la do que para torná-la mais perfeita (AT X: 521). Em alternativa ao modelo lógico silogístico formal, Descartes adota em seus trabalhos em matemática o que tipicamente no século dezessete considera-se o modelo matemático de raciocínio: prova de teoremas a partir de axiomas, definições e postulados. Seu trabalho em geometria e álgebra, juntamente com um conjunto de três sonhos na noite de 10 de novembro de 161989, o convencem de seu dever de estender a clareza dessas ciências às outras ciências, sobretudo à filosofia, já que, segundo ele, os princípios que fundam todas as outras ciências derivam da filosofia. A noite do sonho foi, portanto, uma noite de descoberta da sua missão: reformar as ciências. Em oposição a formular um conjunto de regras externas ao pensamento que o module, essa reforma envolve a sistematização em regras das “primeiras sementes depositadas pela natureza nos espírito humano” que consistem, portanto, no modo como naturalmente pensamos. Como fica claro na Regra VI das Regras, a sistematização desses modos naturais 89 O conteúdo dessa série de três sonhos é narrado por Adrienne Baillet, biógrafo de Descartes, em seu livro La vie de M. Des-Cartes (Paris: Horthemels, 1691). O que ainda restou do texto original, está publicado em AT X, 213 [C. Adam e P. Tannery (orgs.), Oeuvres de Descartes (Paris: Vrin/CNRS, 1964-76)]. 124 de pensar que seria uma disciplina contendo “os primeiros rudimentos da razão humana” e que deveria “se estender à descoberta de verdades em qualquer que seja o campo teórico”, é a matemática universal. Essa disciplina, entretanto, não consiste nas matemáticas particulares como a aritmética e a geometria, que são apenas exemplos de como o método é aplicado, mas sim em uma ciência mais universal que expressa a própria natureza da razão. O método universal não é uma generalização das matemáticas particulares, mas a expressão em regras da natureza do pensamento, cuja clareza se manifesta nas matemáticas particulares, e deve se aplicar a todo tipo de conhecimento. Há uma identidade entre o método – a matemática universal – e a razão, e não entre o método e as matemáticas. Nas palavras de Descartes (Regra IV), esses pensamentos me fizeram desviar dos estudos particulares de aritmética e geometria para uma investigação geral das matemáticas [...] Quando considerei o assunto mais de perto percebi que a única preocupação da matemática é com questões de ordem e medida [...] Isso me fez perceber que deve haver uma ciência geral que explique tudo que pode ser questionado acerca de ordem e medida [...] e essa ciência deve ser chamada mathesis universalis (AT X: 378). Assim, o raciocínio matemático (e, como vimos, não a lógica silogística) é um exemplo de raciocínio que, segundo Descartes, deve ser adotado pelas outras ciências, em particular a filosofia, na medida em que na matemática os princípios inatos do método são naturalmente aplicados. Apesar disso, como veremos, embora compartilhasse do encantamento com o ideal geométrico com muitos filósofos - tais como Espinosa, Hobbes, Russell e Platão – Descartes, com base em uma distinção entre o método matemático sintético e o método matemático analítico, não assume para a investigação da verdade de um modo geral um modelo 125 dedutivista de ciência, isto é, um modelo que envolva um sistema formal baseado em axiomas e definições. As declarações oficiais de Descartes acerca do método para investigação da verdade estão nas Regras para Direção do Espírito (principalmente entre as Regras II e VIII) e, mais tarde, em seu sumário no Discurso sobre o Método (principalmente Parte II). Em termos gerais as regras do método para conhecer são: a) só aceitar como verdadeiro o que é indubitável; b) analisar o máximo possível os problemas em partes mais simples; c) mover-se do simples para o mais complexo e d) rever e verificar completamente as conclusões a que chegar. Visto que é através da razão que se dá o conhecimento, nas Regras Descartes examina a natureza da razão e como esta funciona. Nesse exame, fica claro que as operações cognitivas da razão são as operações da intuição e dedução que consistem “nas vias mais certas para o conhecimento” e “as únicas em que devemos confiar na aquisição de nosso conhecimento” (Regra VIII). A razão adquire conhecimento através das operações da intuição e da dedução, portanto, porque estas são as operações que consistem em seu funcionamento natural. Em algumas passagens das Regras, Descartes descreve o que entende por intuição e dedução. Por exemplo, na Regra III, ele afirma: Por intuição [...] designo a concepção de uma mente clara e atenta que é tão fácil e distinta que não há espaço para dúvida acerca do que por ela compreendemos [...] e [por] dedução [...] a inferência de alguma coisa que segue-se necessariamente de alguma outra proposição que é conhecida com certeza [...] visto serem inferidas de princípios verdadeiros e conhecidos através de um movimento contínuo e ininterrupto do pensamento no qual cada proposição individual é claramente intuída. 126 Isto é, a princípio, a operação da intuição é o ato pelo qual o intelecto apreende o objeto simples que lhe é imediatamente dado e, por isso mesmo, o produto dessa operação é uma evidência. E a operação da dedução, por sua vez, que também resulta em um produto evidente, é um ato complexo que supõe uma sequência intuitiva de atos intuitivos. Segundo Descartes, portanto, a natureza da razão se expressa pelas operações da intuição e dedução conjuntamente e não apenas pela intuição, na medida em que o conhecimento não é apenas do simples e imediatamente dado, mas sim de um corpo sistemático. As duas operações se complementam, formando um único processo “graças a um tipo de movimento do pensamento que considera por intuição cada objeto em particular, ao mesmo tempo em que vai passando aos outros” (Regra XI). A intuição apreende dados evidentes e a dedução conecta dados evidentes por meio de elos evidentes. A dedução, portanto, além de depender da memória que permite reter os dados a conectar, depende da intuição para ter os dados e para estabelecer os elos de conexão. Sendo assim, dedução no sentido introduzido por Descartes é a operação cognitiva que, ao contrário da intuição, envolve a memória e que permite um tipo de movimento da razão de inferência de uma coisa a partir de outra. Como veremos, entretanto, Descartes admite que mesmo na operação da intuição ocorre um tipo de inferência, uma inferência direta, que diferentemente da dedução, não exige a memória. O fato do método, segundo Descartes, ser a expressão do modo como naturalmente a razão funciona, explica por que Descartes, na Regra IV, afirma que “o método não pode ir tão longe a ponto de nos ensinarMundo Atual e da Escola Estadual Joaquim Eugênio Lima Neto, em São Paulo. JJEELLSSOONN RROOBBEERRTTOO DDEE OOLLIIVVEEIIRRAA Doutor em Filosofia, professor do Programa de Pós- Graduação em Filosofia da PUC-PR, onde é coordenador do Curso de Licenciatura em Filosofia. Autor de vários artigos publicados em revistas especializadas e dos livros A solidão como virtude moral em Nietzsche (Curitiba: Champagnat, 2010) e Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche (Rio de Janeiro: 7Letras, 2011), entre outros. 17 FFÁÁTTIIMMAA CCAARROOPPRREESSOO Professora do Curso de Psicologia e do Programa de Pós- Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bacharel em Psicologia e Psicóloga pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); Mestre em Filosofia e Metodologia das Ciências e Doutora em Filosofia pela mesma instituição. Realizou estágio de pós-doutoramento no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. BBOORRTTOOLLOO VVAALLLLEE Possui graduação em Filosofia e Especialização em Filosofia da Educação e em Didática do Ensino Superior pela PUC-PR. Tem mestrado em Filosofia e doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Atualmente, é Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR, e docente do UNICURITIBA e da FAVI. FFÁÁBBIIOO FFEERRRREEIIRRAA DDEE AALLMMEEIIDDAA Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás. Possui graduação em Filosofia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás; doutorado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, desenvolvido em co-tutel com a Université de Bourgogne- França. GGIILLMMAARR JJOOSSÉÉ DDEE TTOONNII Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba, Bacharel e Licenciado em Filosofia e Licenciado em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Atualmente é professor da Universidade Federal da Integração Latino Americana. 18 KKLLEEBBEERR BBEEZZ BBIIRROOLLLLOO CCAANNDDIIOOTTTTOO Possui graduação em Filosofia e Especialização em Ética pela PUCPR; mestrado em Educação pela mesma universidade e doutorado em Filosofia pela UFSCar. Co-autor dos livros Filosofia da linguagem, Filosofia da Ciência e Fundamentos da pesquisa científica, pela Editora Vozes, e do livro Da psicologia às ciências cognitivas, pela editora CRV. Atualmente, é professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-PR. DDAANNIIEELLAA RRIIBBEEIIRROO SSCCHHNNEEIIDDEERR Psicóloga, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Mestre em Educação, Doutora em Psicologia Clínica, Pós-Doutora pela Universidade de Valência (Espanha), autora de vários capítulos de livros e artigos sobre psicologia existencialista, saúde mental, álcool e outras drogas. Autora do livro Sartre e a Psicologia Clínica (Editora da UFSC, 2011). CCÉÉLLIIAA KKAAPPUUZZIINNIIAAKK Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestrado em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. Foi professora de Filosofia da PUCPR. É co-autora de Docência: uma construção ético-profissional (Papirus). PPAAUULLOO EEDDUUAARRDDOO DDEE OOLLIIVVEEIIRRAA Doutor e Mestre em Filosofia das Ciências Humanas pela PUCSP, com Pós-Doutorado pela UFPR. Graduado em Filosofia pela PUCPR e especialista em Filosofia Política pela UFPR. Atualmente, é professor titular do Departamento de Filosofia da PUCPR. Autor de Introdução ao pensamento de Karl Popper (Champagnat, 2010, em parceria com o Prof. Bortolo Valle); Da ética à ciência: uma nova leitura de Karl Popper (Paulus, 2011). 19 Capítulo 1 AA PPEEDDAAGGOOGGIIAA AANNTTEESS DDAA PPEEDDAAGGOOGGIIAA Barbara Botter FILOSOFIA, PEDAGOGIA E POLÍTICA: UMA UNIDADE O título deste capítulo carrega uma ambiguidade: ao falar da pedagogia antes da pedagogia, falamos de que exatamente? Pretendemos tratar de uma pedagogia que, afastada de nós o suficiente para ser considerada só filosofia, ainda assim não abandona as características peculiares que a definem como pedagogia, compartilhando conosco um mesmo ethos e um mesmo território conceitual? Ou, antes, vamos nos ocupar de um conjunto de ideias, de noções, de sentidos e de valores que nasceram na Grécia Antiga e que serão utilizados para definir e delimitar o âmbito conceitual da hodierna pedagogia? Na verdade, uma e outra coisa: ao falar da pedagogia na primeira ocorrência do termo mencionado no título, falamos da paideia grega que se sobrepõe à filosofia e continua a viver na pedagogia contemporânea (segunda acepção do termo) como repertório de pensamentos e ações. No período da Grécia clássica, filosofia, educação, antropologia e política coincidem. A filosofia grega não precisou criar uma nova disciplina chamada pedagogia, pois a convergência entre os dois pensamentos era algo natural. A filosofia é pedagógica e a pedagogia é filosófica, assim como a filosofia-pedagogia é política e a política é filosófico- 20 pedagógica. A educação de um indivíduo perpassa as finalidades da retórica ou da matemática, pois o objetivo maior concentra-se no desenvolvimento das potencialidades do homem em si e como indivíduo da Polis. Esta convicção pode ser vista neste trecho da República de Platão. - A presente discussão indica a existência dessa faculdade na alma e de um órgão pelo qual se aprende. Como um olho que não fosse possível voltar das travas para a luz, senão juntamente com todo o corpo, do mesmo modo esse órgão deve ser desviado juntamente com a alma toda das coisas que se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do Ser e da parte mais brilhante do Ser. A isso chamamos o bem. Ou não? - Chamamos. - A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de fazer obter a visão, pois já a tem, mas uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso (PLATÃO, 1993, 518 C-D). Somente na época atual a filosofia e a pedagogia se definem como processos distintos. Na sua origem, a filosofia é propriamente um projeto educativo; num segundo momento, a filosofia fornece os fundamentos do projeto pedagógico e a pedagogia vira uma consequência do progresso filosófico; num terceiro momento, a filosofia assume a tarefa crítica relativa às teorias educacionais (PAVIANI, 2008, p. 5-25). Para entender esta evolução da relação entre filosofia e educação, é necessário voltar ao passado e à figura dos antigos filósofos. É importante compreender em que grau dependemos dos conhecimentos herdados dos antigos, ao invés de achar que o passado, por simples necessidade cronológica, não vive conosco. Na realidade, nosso entendimento do passado, além de ser um acontecimento cristalizado no tempo, é também a vivência do passado em nós, através do nosso jeito de pensar e 21 se comportar. Dessa maneira, a paideia1 dos antigos se manifesta em nós como atitude de agir e de raciocinar. Herdamos uma forma de reflexão que foi inaugurada pela filosofia, isto é, um jeito de procurar as respostas para aquelas questões “relevantes” que os gregos também consideraram importantes. Em primeiro lugar, destaca-se a importância que damos à razão, considerada pelos filósofos o instrumento para buscar e compreender o elemento responsável (aitia) pelos acontecimentos naturais e pelas ações humanas. É importante lembrar que o exercício da razão rende o homem independente do recurso à tradição, a qual tem autoridade apenas pelo fato mesmo de ser tradição e por não aceitar ser colocada em dúvida. A relevância da tradição perde progressivamente a supremacia com as invasões dos povos vindos do norte da península balcânica, por volta do século XII antes de Cristoa realizar as operações da intuição e dedução”. Se a razão conhece apenas através da intuição e dedução, não pode aprender um conjunto de regras acerca de como intuir ou deduzir a não ser já intuindo e/ou deduzindo. Sendo assim, o modo como se aprende o método é 127 aplicando-o. As regras do método cartesiano não são meramente normativas no sentido de serem formuladas independentemente de sua aplicação, mas, ao contrário, são constitutivas do método de tal modo que não é possível compreendê-las independentemente de segui-las. As Meditações satisfazem estritamente as regras do método: através da dúvida, e ao longo das meditações seguintes, busca algo simples (cogito), movendo-se para o mais complexo, incluindo revisões e verificações das teses avançadas a partir disso. Sendo assim, o conteúdo das Meditações torna o método manifesto e o exame desse conteúdo envolve o conhecimento das regras do método que, por sua vez, envolvem a aplicação do próprio método. Sendo assim, a leitura das Meditações, além de resultar no conhecimento acerca das teses ali defendidas, resulta no conhecimento e na aplicação do próprio método. Portanto, embora não se possa ensinar a intuir e deduzir, o exame do procedimento de Descartes das Meditações pode nos levar a compreender essas operações. Ainda que nas Meditações Descartes tenha abandonado a terminologia introduzida nas Regras para designar as operações cognitivas (intuição e dedução), o modo como Descartes responde a uma objeção que consta no conjunto das Segundas Objeções às Meditações, recolhidas por Mersenne, torna explícito que o argumento do Cogito tem um caráter intuitivo e que este é oposto ao silogismo: Mas, quando percebemos que somos coisas pensantes, trata-se de uma primeira noção que não é extraída de nenhum silogismo; e quando alguém diz “Penso, logo sou ou existo”, ele não concluiu sua existência de seu pensamento por meio de um silogismo, mas reconhece ser evidente por uma intuição simples da mente. Em outras palavras, segundo Descartes, o argumento do Cogito é uma verdade primitiva, isto é, uma verdade adquirida por uma intuição simples da mente, pois “... se a deduzisse 128 por meio de silogismo, deveria antes conhecer esta premissa maior: Tudo que pensa é ou existe”. Apesar de, segundo essa resposta, o argumento do Cogito não supor o conhecimento da premissa maior, Descartes parece admitir um tipo de relação entre esta premissa e a verdade da proposição “Penso, logo existo”, como fica claro pelo que se segue na resposta: “Mas ao contrário, esta [a premissa maior “Tudo que pensa é ou existe”] lhe é ensinada por ele experimentar em seu próprio caso que não é possível que ele pense sem existir” (AT VII: 140). Descartes, entretanto, não explica nessa resposta como isso ocorre. É em Conversações com Burman, com base em uma distinção entre conhecimento implícito e conhecimento explícito que Descartes explica a relação entre o princípio primitivo “penso, logo existo” e o princípio universal “tudo que pensa é”, e essa explicação permite um passo adiante na compreensão do que Descartes entende pela operação da intuição. A tese defendida nesse texto é a de que, embora o conhecimento do cogito dependa da verdade da noção de que “Tudo que pensa é”, não depende, entretanto, de seu conhecimento explícito. Assim, a verdade da instância (Eu penso, logo existo) não independe da verdade do princípio universal (Tudo que pensa é), mas o conhecimento explícito da verdade desse princípio não é necessário para o reconhecimento da indubitabilidade da instância. Ao contrário, como diz Descartes a Burman, é a experiência interna da evidência da instância “Eu penso, logo existo” que permite tornar explícito a verdade e, portanto, tornar conhecida a verdade do princípio geral “Tudo que pensa é”. Em seus termos: Antes da conclusão “estou pensando, logo existo”, a maior “tudo aquilo que pensa, existe” pode ser conhecida pois é uma realidade anterior à minha inferência, e minha inferência depende dela […] Mas não se segue que eu sempre esteja 129 expressa e explicitamente consciente dessa anterioridade, ou que eu a conheça antes da minha inferência (AT V: 147). Em outras palavras, Descartes introduz aqui uma distinção entre o conhecimento implícito de certas noções comuns e universais em cuja verdade não se pensa a não ser no momento em que pensamos em suas instâncias particulares. Embora tenhamos um conhecimento implícito dessas noções comuns e universais, esse conhecimento só é tornado explícito e, nesse sentido, é tornado de fato um conhecimento, no momento em que a verdade da instância é experimentada ou intuída. Em suas palavras, imediatamente a seguir, na mesma passagem acima citada: “Não presto atenção [...] à noção geral ‘tudo aquilo que pensa existe’ [...] em vez disso, é nas instâncias particulares que as encontramos.” Essa afirmação de que o princípio universal é conhecido quando temos a experiência internamente da verdade de uma (ou mais) de suas instâncias é ainda confirmada na resposta que Descartes dá a um novo conjunto de objeções feitas por Gassendi (publicado juntamente com suas objeções originais, em 1644, em um volume intitulado Disquisitio Metaphysica sive Dubitationes et Instantiae) após este ter lido as respostas de Descartes ao primeiro conjunto de suas objeções. Diz Descartes: o autor afirma que quando digo “Estou pensando logo existo” pressuponho a premissa maior “Tudo que pensa existe” [...] O erro mais importante que nosso crítico faz aqui é supor que o conhecimento de proposições particulares deve sempre ser extraído de proposições universais, seguindo a mesma ordem do silogismo. Imediatamente antes dessa passagem, nessa mesma resposta, Descartes afirma: Quanto ao princípios comuns e axiomas, [...] os homens que são criaturas dos sentidos, como todos somos em um nível 130 pré-filosófico, não pensam neles ou prestam atenção a eles. Ao contrário, visto que estão em nós desde o nascimento com tamanha clareza, e visto que os experimentamos em nós mesmos, negligenciamo-los e só pensamos neles de modo confuso e nunca em abstrato ou separadamente das coisas materiais e instâncias particulares. Podemos dizer, portanto, que no que diz respeito ao estabelecimento do princípio que fundamenta a metafísica segundo Descartes, a operação cognitiva da intuição não só me permite perceber imediatamente a verdade da proposição “penso, logo existo”, independentemente de qualquer outro conhecimento explícito, mas, além disso, permite conhecer a verdade do princípio universal e comum, de cuja verdade sua verdade é dependente, através de um movimento interno na razão de explicitação de noções comuns. Parece ser possível então, a partir da explicação do argumento do Cogito, inferir que, segundo Descartes, há um movimento interno da razão ainda no momento de sua operação mais simples, a intuição, em que noções comuns e primeiros princípios são explicitados a partir da consciência da verdade de alguma proposição. Esse movimento interno da razão, através do qual os princípios e as noções comuns são explicitados, consiste num tipo de inferência, uma inferência direta, nos termos de Descartes, na medida em que consiste em um movimento da mente que vai da compreensão implícita de noções simples e princípios universais para a apreensão filosófica intuitiva de certas proposições particulares e destas de volta para a compreensão, agora explícita, do que a condiciona. Apesar de consistir em uma inferência, entretanto, esse movimento não se confunde nem com o que na tradição silogística chama-se de dedução lógica, nem com a dedução considerada por Descartes como uma das operações fundamentais da razão. Por um lado, trata-se de uma inferência pré-discursiva e, portanto, uma inferência não silogística. Por outro lado, na medida em que ocorre no 131 interior do ato de intuirque, por uma atenção cuidadosa explicita princípios e noções implícitas na apreensão da verdade de proposições particulares, essa inferência não consiste em uma dedução, mas antes numa preparação de dados que poderão ou não ser conectados com outros em uma dedução. Assim, o processo pelo qual a razão compreende noções primitivas e primeiros princípios com base no conhecimento de particulares revela, em parte, a natureza da razão, na medida em que revela um movimento interno à razão, isto é, um movimento interno à operação da intuição, cujo produto evidente é condição para que se realize a outra operação cognitiva natural da razão, a dedução. Segundo Descartes, exceto pela limitação da razão humana, todos os objetos de dedução podem ser objetos de intuição. Sendo assim, embora as duas operações não sejam idênticas, porque a intuição tem uma natureza tal que instantaneamente apreende seu objeto e a dedução consiste em um processo que envolve a memória, na medida em que a diferença entre elas tem como base apenas a limitação da mente humana que não pode perceber verdades complexas de uma só vez, a compreensão da operação da intuição lança alguma luz para a compreensão da dedução. A dedução no sentido cartesiano é a operação cognitiva que, como a intuição, produz evidências mas que, diferentemente da intuição, infere essas evidências a partir de evidências (alcançadas por intuição) e por elos também evidentes (apreendidos também por intuição). Parece plausível, portanto, afirmar que segundo Descartes, no ato cognitivo podem operar dois tipos de inferência que, nos termos de Descartes na Regra VI (AT X: 387) consistiriam em uma dedução “direta” ou “indireta”: a inferência direta, operada no ato da intuição de verdades particulares para a explicitação de princípios e noções comuns, e a inferência indireta, operada pela dedução que consiste em um movimento contínuo e ininterrupto do pensamento de uma intuição para outra. 132 Na Regra VII, Descartes ocupa-se com a explicação do que ele entende pela operação cognitiva da inferência indireta, isto é, a dedução, operação necessária visto que admitimos “como certas as verdades que, como dissemos acima, não são deduzidas imediatamente a partir de primeiros princípios evidentes”. Se a ciência não se constitui apenas de verdades simples, mas sim de um complexo articulado de verdades simples, cabe à operação de inferir indiretamente, isto é, deduzir, a função de expandir o conhecimento. A dedução é a inferência indireta em oposição à dedução direta realizada na intuição e pode ser chamada também de “enumeração”ou “indução” (Regra XI, AT X: 408). Na dedução, o intelecto, que não pode apreender ao mesmo tempo todo o conteúdo, com auxílio da memória, retém as partes individuais da enumeração, permitindo combiná-las todas depois em um todo. A dedução, portanto, segundo Descartes, é o meio pelo qual a partir das noções comuns e primeiros princípios fazemos composição de modo a alcançarmos verdades mais complexas. Assim, pode-se afirmar que Descartes concebe que por intuição descobrimos as conexões simples entre noções comuns e princípios, seja entre eles mesmos, seja entre instâncias dos princípios e eles, e que por dedução (que, diferentemente da dedução silogística depende de conteúdos conhecidos já que depende da intuição de verdades e de elos conectivos) descobrimos as conexões mais complexas entre verdades, expandindo assim o conhecimento. Paralelamente ao método da matemática universal de descoberta de novos conteúdos de conhecimento, Descartes expressamente se preocupa com o modo adequado para expor os conteúdos de conhecimento. Com essa preocupação em mente, Descartes retoma, em suas Respostas às Segundas Objeções, a questão da justificação ou explicitação dos axiomas e princípios universais, quando faz distinção entre as exposições de conteúdos via análise e síntese. É interessante notar que, ao longo de sua obra, Descartes experimenta 133 diferentes métodos de exposição de sua doutrina. Ele se serve da narrativa autobiográfica no Discurso, da fábula no Mundo, da exposição em forma de diálogo em A Procura da Verdade, do formato de texto didático (ao menos intencionalmente) nos Princípios da Filosofia e, ao menos aparentemente, de uma adaptação das disputas escolásticas nas Objeções e Respostas publicadas juntamente com as Meditações Metafísicas. No caso específico das Meditações, entretanto, o método da descoberta via intuição-dedução exposto nas Regras e resumido no Discurso, se expressa segundo um novo aspecto: a ordem analítica de exposição de conhecimento. Como veremos, a disciplina que contém os “rudimentos da razão humana”, isto é, a matemática universal apresentada nas Regras, visto sistematizar o modo como naturalmente os homens pensam, de certa forma antecipa o método analítico de exposição de conhecimento e é nesse sentido que é possível então afirmar que a via analítica, segundo Descartes é um método de exposição e de descoberta de conteúdos cognitivos. Em resposta aos autores das Segundas Objeções, que o instam a apresentar sua doutrina segundo o modelo geométrico, isto é, partindo de definições, axiomas e postulados, Descartes apresenta alguns de seus argumentos segundo esse método dos geômetras, mas não sem antes introduzir uma discussão geral onde apresenta uma distinção interna ao método matemático: a ordem e a maneira de demonstrar conteúdos. A ordem, diz Descartes, consiste na organização da exposição de tal modo que aquilo que é apresentado antes pode ser conhecido sem recurso às proposições que se seguem e que estas que se seguem devem ser conhecidas apenas por recurso às que a precedem. Nos termos de Descartes “consiste apenas em que as coisas propostas em primeiro devem ser conhecidas sem a ajuda das seguintes, e que as seguintes devem ser dispostas de tal forma que sejam demonstradas só pelas coisas que as precedem”. 134 Essa foi a ordem seguida nas Meditações, como afirma o próprio Descartes no Resumo das Meditações: tendo procurado nada escrever nesse tratado de que não tivesse demonstrações muito exatas, vi-me obrigado a seguir uma ordem semelhante àquela de que se servem os geômetras, a saber, adiantar todas as coisas das quais depende a proposição que se busca, antes de concluir algo dela. Visto que tanto a via sintética quanto a analítica são “aquelas de que se servem os geômetras”, ambas estão, portanto, de acordo com essa ordem, a ordem das razões. No que diz respeito à ordem, portanto, não há distinção entre a via sintética e a via analítica. Entretanto, ao prosseguir, Descartes explica que é quanto ao modo como demonstram que a via analítica e a via sintética se distinguem. A via sintética de exposição parte de uma longa série de definições, axiomas, postulados, teoremas e problemas, movendo-se em uma cadeia contínua de raciocínios e demonstrações para provar teoremas, demonstrando assim o que está contido nas conclusões. A via analítica, por outro lado, não supõe nada como previamente dado. Ela começa de um problema que vai sendo analisado em questões mais simples até que alguma verdade mais simples e evidente seja percebida, a partir da qual é possível solucionar o problema. Na via sintética, portanto, o ponto de partida são as coisas consideradas como primeiras na cadeia de raciocínio e estas são assim consideradas expressamente por definições, axiomas e postulados. Essa via, segundo Descartes, convém à Geometria, na medida em que as primeiras noções supostas, a partir das quais se demonstram as proposições geométricas, estão de acordo com o que é dado aos sentidos, sendo portanto facilmente aceitas como axiomas por todos. O interlocutor é levado a assentir porque percebe como cada passo se segue do que foi dado anteriormente. 135 A via sintética de exposição, entretanto, não convém às questões da Metafísica. A principal dificuldade resultado fato de que não é possível conceber as primeiras noções da metafísica como axiomas, pois, ainda que por sua própria natureza sejam noções muito claras, elas não acordam com o que recebemos dos sentidos. Visto que em metafísica os diferentes autores discordam mesmo quanto às proposições mais básicas (tais como se o mundo é criado ou não, se há espaço vazio, etc.) e visto que as primeiras noções são distintas (e muitas vezes opostas) do que nos fornecem os sentidos, faz- se necessária a via analítica para que cada um possa alcançar por ele mesmo os primeiros princípios. Sendo assim, um primeiro aspecto em que a via analítica e a via sintética de demonstração são distintas é o fato de que, na primeira e não na segunda, as primeiras noções e princípios são justificados e explicitados. O método analítico, em oposição ao sintético, não considera coisa alguma como previamente dada. Uma exposição segundo esse método começa por um problema particular e o divide em questões mais simples até chegar a alguma verdade evidente. Nessa via, o interlocutor só se convence se ele próprio tem insights das primeiras noções e princípios de tal modo que “a análise mostra o verdadeiro caminho pelo qual uma coisa foi metodicamente descoberta [...] de sorte que [...] o leitor [...] não entenderá menos perfeitamente a coisa assim demonstrada e não a tornará menos sua do que se ele próprio a houvesse descoberto”. Visto que nas Meditações o conhecimento é obtido não apenas por intuição do simples, mas também por dedução do mais complexo, e visto que Descartes, nas Respostas às Segundas Objeções afirma que nas Meditações seguiu apenas a via analítica, é necessário admitir que a via analítica envolve as operações da intuição e da dedução. Descartes acreditava que com seu método analítico tinha reconstituído o método secreto dos matemáticos gregos da antiguidade. Apesar de não esclarecer em que medida seu 136 método é uma variação ou generalização do método dos antigos matemáticos, Descartes deixa claro que a semelhança entre os dois métodos diz respeito à própria natureza da operação cognitiva da mente humana, como fica claro, por exemplo, na Regra IV das Regras para direção do Espírito, onde ele afirma: Com efeito, a mente humana tem não sei quê de divino, em que as primeiras sementes dos pensamentos úteis foram lançadas de tal modo que, muitas vezes, ainda que descuradas e abafadas por estudos feitos indiretamente, produzem um fruto espontâneo. É o que experimentamos, nas ciências mais fáceis, a Aritmética e a Geometria: de fato, vemos bastante bem que os antigos Geômetras utilizaram uma espécie de análise que estendiam à solução de todos os problemas, ainda que não a tenham transmitido à posteridade. E agora floresce um gênero de Aritmética, que se chama Álgebra, que permite fazer para os números o que os Antigos faziam para as figuras. Estas duas coisas não passam de frutos espontâneos dos princípios naturais do nosso método. Descartes, portanto, em algum aspecto importante se filia à tradição analítica de matemáticos como o grego Pappus. Pappus de Alexandria, cuja descrição do método de análise dos gregos antigos é considerada a mais “completa e informativa” (BATTISTI, 2010) e a “única explícita e extensiva” (HINTIKKA,1978), a esse respeito afirma: A análise é o caminho que parte do que é buscado – como se tivesse sido admitido – e através de seus concomitantes, em sua ordem, segue até algo suposto na síntese. Pois na análise supomos como já tendo sido feito aquilo que é buscado, e nos perguntamos de que resulta, e de novo o que é o antecedente desse último, até que em nosso caminho de trás para frente possamos lançar luz sobre algo já conhecido e o primeiro na ordem [...] Na síntese, por outro lado, supomos como já tendo sido feito o que foi alcançado por último na análise, e ordenando em sua ordem natural como consequente o que antes era antecedente, e relacionando-os uns aos outros, ao 137 final chegamos à construção da coisa buscada (PAPPUS, 1876- 1877, in HINTIKKA, 1978, p. 76). Uma primeira coisa a ser notada é que, na descrição de Pappus, a síntese aparece como uma complementação da análise e que a análise não faria sentido se não fosse seguida pela síntese, na busca de conhecimento. Pode-se dizer, portanto, que o método descrito por Pappus é um método analítico-sintético. Mas, se é assim, não caberia buscar a semelhança entre o método de Descartes e a dos matemáticos antigos considerando o método em sua totalidade já que, como vimos, Descartes pretende, nas Meditações, ter seguido somente a via analítica. Admitindo então que na descrição de Pappus não há um método de análise, e sim um método composto de análise e síntese para a descoberta e exposição do conhecimento e que para Descartes o método de descoberta e de exposição é apenas analítico, talvez seja possível encontrar a semelhança entre os dois métodos voltando-se para o aspecto direcional da análise e da síntese. Aparentemente, tanto para Pappus quanto para Descartes as duas vias seguem direções inversas, sendo a síntese um raciocínio direto, linear ascendente, e a análise um raciocínio de direção oposta. Apesar disso, ao menos à primeira vista, no caso de Descartes, esse não parece ser de fato o caso se considerarmos, por exemplo, o texto das Respostas às Segundas Objeções, onde Descartes apresenta sua argumentação exposta nas Meditações transformada para a via sintética. Apesar de uma seguir a via sintética e, a outra, a analítica, percebe-se que as principais linhas da argumentação são as mesmas e na mesma direção. Tanto a prova da existência de Deus quanto a distinção real entre corpo e alma seguem nessas respostas exatamente a mesma ordem das Meditações: a partir da ideia de Deus, existente em nós, Descartes mostra que Deus existe e a partir do conhecimento 138 de que a alma pode existir independentemente da existência do corpo mostra que a alma é distinta do corpo. Seguindo a linha interpretativa exposta em Hintikka e Remes (1974) e em Hintikka (1978) parece mais plausível afirmar que a semelhança entre o método moderno de análise e a via analítica do método analítico-sintético utilizado pelos matemáticos gregos na antiguidade reside no aspecto de intercalações e interdependências entre os elementos conhecidos com relação ao todo do conhecimento almejado: a conexão entre os objetos geométricos que são partes de uma figura, no caso da geometria, e a conexão entre proposições simples verdadeiras e verdades mais complexas, no caso da filosofia. Segundo Hintikka, o aspecto mais importante do método antigo recuperado por Descartes e seus contemporâneos é a ideia de que a análise é uma análise de configuração e não de provas. Isto é, na geometria dos gregos antigos, o início e o final da análise eram objetos geométricos e não verdades geométricas. Os passos da análise, portanto, eram de um objeto geométrico para a construção de outro ou outros. Esses passos de um objeto para outro eram mediados por sua interdependência num contexto do todo da configuração da figura cujos elementos eram objetos construídos. As construções auxiliares de objetos teriam, portanto, um papel fundamental: seriam elas as responsáveis pela explicitação das intercalações e interdependências das partes da figura relevantes para a resolução do problema. Assim, a análise de uma figura geométrica mostraria ou explicitaria as inter-relações entre diferentes objetos geométricos na figura. Ainda segundo Hintikka, os predecessores de Descartes gradativamente introduziram o uso de métodos algébricos para a expressar as interdependências entre os objetos de uma figura geométrica de tal modo que coube a Descartes a geometria analítica propriamente dita, na qual qualquer dependência entre 139 quaisquer objetos geométricos pode ser algebricamente representada bem como a matematização da física, segundoo que os diferentes fatores de uma configuração física podem, por análise, ser expressos matematicamente. Segundo Hintikka, portanto, “o método de Descartes pode ser considerado como o resultado desse tipo de extensão do método de análise das configurações geométricas para todo complexo de elementos interdependentes”. Assim, a semelhança entre o método cartesiano de análise e a via analítica do método de Pappus parece residir no fato de que a análise é uma análise de configurações e inter-relações. Se, como vimos acima, é pelas operações da intuição e da dedução que, segundo Descartes, a razão naturalmente chega a verdades descobrindo suas conexões diretas ou indiretas, então o método analítico de Descartes é aquele segundo o qual por intuição e por dedução obtemos uma verdade particular e “lançamos os olhos sobre tudo o que ela contem”(Resposta às Segundas Objeções). Para concluir, gostaria de lembrar ainda três pontos que parecem relevantes para a questão da educação segundo a filosofia de Descartes. Primeiro, que no sistema cartesiano, a via analítica é mais adequada ao ensino. Apesar disso, Descartes mostra que essa via não é eficaz em todos os casos. Depois que, para o sistema cartesiano, o conhecimento depende mais do desenvolvimento das operações cognitivas do que da aquisição de conteúdos cognitivos. Apesar disso, em consequência do que, como vimos, ele considera problemático na lógica silogística, Descartes distingue sua busca por tornar o raciocínio mais perspicaz dos preceitos da lógica silogística. Em terceiro lugar, que nos sistema cartesiano a erudição não é sinônimo de educação. Nas Respostas às Segundas Objeções, Descartes expressamente afirma que a via analítica é a “mais verdadeira e a mais própria ao ensino”, mas não a recomenda a qualquer um. A via analítica, em princípio, é a via mais adequada na 140 medida em que, como vimos, “mostra o verdadeiro caminho pelo qual uma coisa foi metodicamente descoberta”. Ao permitir que o leitor lance os olhos sobre tudo o que está envolvido em um determinado conhecimento, permite que ele compreenda “perfeitamente a coisa assim demonstrada” e a torne sua como “se ele próprio a tivesse descoberto (Respostas às Segundas Objeções). Apesar disso, Descartes faz uma ressalva: essa via não é adequada para um leitor desatento ou preguiçoso, já que não oferece uma cadeia ininterrupta de raciocínio. Embora Descartes caracterize a operação cognitiva da dedução como “movimento ininterrupto e contínuo do pensamento”, como vimos, esse movimento depende dos resultados obtidos por intuição. Intuição e dedução são complementares. E se, como vimos, a intuição consiste não só na consciência imediata da verdade de um conteúdo, mas também na consciência de uma rede de noções simples e primeiros princípios imediatamente apreendidos a partir dela, a exposição do conhecimento pela via analítica não pode se limitar a uma cadeia linear de raciocínios. Sendo assim, essa via “não é capaz de convencer os leitores teimosos e pouco atentos”. Para estes, a via sintética é a mais adequada, pois envolve apenas um raciocínio linear, conseguindo assim “arrancar o consentimento do leitor, por mais obstinado e opiniático que seja”, embora “não dê inteira satisfação aos espíritos que desejam aprender porque não ensina o método pelo qual a coisa foi descoberta” (Repostas às Segundas Objeções). Além disso, Descartes considera a importância de desenvolver as operações cognitivas e sua relação com a aquisição de conteúdos cognitivos. Na Regra IX, Descartes afirma que “é preciso dirigir toda a acuidade do espírito para as coisas menos importantes e mais fáceis e nelas nos determos tempo suficiente até nos habituarmos a ver a verdade por intuição de uma maneira distinta e clara” e, na Regra X, afirma que 141 para que o espírito se tome perspicaz, deve exercitar-se em procurar o que já por outros foi encontrado, e em percorrer metodicamente até mesmo os mais insignificantes ofícios e artes dos homens, mas sobretudo os que manifestam ou supõem ordem. Isto, segundo Descartes, é possível e necessário para o conhecimento cultivar as operações cognitivas e este cultivo se dá cultivando a perspicácia, ao intuir cada coisa em particular, e a sagacidade, ao deduzir com arte umas das outras. Descartes explicita o que entende por cultivo da intuição através de uma analogia com os artesãos que, segundo ele, adquirem a capacidade de distinguir com precisão coisas muito delicadas e pequenas porque são acostumados a fixar o olhar em um único ponto. Do mesmo modo, diz ele, visto que a atenção voltada para muitas coisas ao mesmo tempo é sempre confusa, tornar nossas mentes mais claras e, nesse sentido, propícias ao conhecimento, depende de dedicarmos nossa atenção para o mais simples e fácil. E, para explicar o cultivo da dedução, Descartes sugere que se considere atentamente as artes mais simples, especialmente aquelas onde a ordem prevalece, como a tecelagem, cujas linhas se entrelaçam em infinitos padrões, ou os jogos que envolvem aritmética, porque são atividades onde “nada permanece escondido e que correspondem inteiramente à capacidade do conhecimento humano”. Note-se que, apesar da ênfase no refinamento das operações cognitivas, Descartes pretende ainda assim observar uma certa distância com relação à lógica silogística. Diz ele ainda, na Regra X: Alguns espantar-se-ão, talvez, que neste lugar em que procuramos os meios de nos tornarmos mais aptos para deduzir as verdades umas das outras, omitamos todos os preceitos dos Dialéticos, com os quais julgam eles governar a razão, prescrevendo-lhe certas formas de raciocínio [...] é sobretudo para evitar que nossa razão entre de férias quando 142 investigamos a verdade de alguma coisa, que rejeitamos estas formas lógicas como contrárias ao nosso objetivo. E por fim, ao distinguir educação de erudição, Descarte parece sugerir que, no que diz respeito à educação, a quantidade de conteúdos aprendidos, escritos ou pensados não é relevante. Em carta a Voetius, de maio de 164390, Descartes afirma: Digo “educação” e não “erudição”. Pois se no significado do termo “erudição” você pretende incluir tudo o que é aprendido dos livros, independentemente da qualidade, de bom grado concordo que você é o homem mais erudito de todos... Por “educado” quero dizer o homem que apurou sua inteligência e caráter por estudo e cultivo cuidadosos. Estou convencido que se adquire essa educação não pela leitura indiscriminada de qualquer livro, mas pela leitura frequente e repetida apenas do melhor, pela discussão com os já educados, quando se tem oportunidade e, finalmente, pela contínua contemplação das virtudes e busca da verdade. REFERÊNCIAS BATTISITI, Cesar. “O Método de Análise Cartesiano e o seu Fundamento”. In: Scientiæ Studia, São Paulo, v. 8, n. 4, p. 571-96, 2010. BEHBOUD, Ali. “Greek Geometrical Analysis”. In: Centaurus, v. 37, p. 52- 86, 1994. DESCARTES, R. Adam, C. and Tannery, P (ed.). Oeuvres de Descartes (rev. edn., 12 vols. Paris: Vrin/CNRS, 1964-76). HINTIKKA, J. e REMES, U. The method of analysis. Dordretch: Publishing Company, 1974. 90 AT VIIIB 25-194. Carta resposta de Descartes a dois escritos de Voetius (Confraternitas Mariana – 1642 e Admiranda Methodus – 1643), onde este ataca violentamente as teses de Descartes. Antes disso, Voetius garantiu a condenação formal da filosofia cartesiana na Universidade de Utrecht, da qual era reitor. 143 HINTIKKA, J., “A discourse on Descartes’ method” in Hooker, M., Descartes: critical and interpretive essays. Baltmore: The Johns Hopkins University Press, 1978, pp. 74-88. 144 Capítulo 8 LLOOCCKKEE,, OO CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO EE AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO Gustavo Araújo Batista CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS Neste capítulo,nós nos encarregaremos de elaborar uma explanação pontual sobre algumas categorias pelas quais o filósofo inglês John Locke (1632-1704) estrutura o seu pensamento filosófico-educacional, razão pela qual se torna imperativa a necessidade de explicitar de que maneira teria sido feito o desenvolvimento de tais categorias, pois a compreensão da sua articulação é de fundamental importância para se compreender melhor a forma e o conteúdo dos quais este eminente pensador ter-se-ia servido, à guisa de conferir maior consistência, coerência e coesão, tanto à sua teoria filosófica, em geral, quanto à sua proposta pedagógica, em particular. Outrossim, aqui foram selecionados alguns dos conceitos-chave presentes na obra Ensaio sobre o Entendimento Humano91 (1690), obra capital da epistemologia lockeana, a qual, por sua vez, constitui a síntese magna de suas elucubrações acerca da origem, dos fundamentos, dos princípios, dos limites, da extensão, da possibilidade, da validade e da finalidade do conhecimento em geral e, em particular, do conhecimento filosófico-científico, sob a 91 Denominada, doravante, Ensaio. 145 perspectiva empirista. De igual modo, foram extraídas algumas categorias da sua principal obra pedagógica, qual seja: Alguns Pensamentos sobre Educação92 (1692/3), que estabelece critérios para a educação dos filhos das classes nobiliárquicas de sua época. Para facilitar a exposição das categorias escolhidas, que foram destacadas conforme a sua capacidade de fornecer uma percepção sumária e esquemática da epistemologia e da pedagogia arquitetadas por Locke, aqui faremos algumas subdivisões, apostando, igualmente, que isso propiciará um vislumbrar mais claro e distinto do ideário utilizado pelo pensador britânico para compor o seu legado intelectual. DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA EXPERIÊNCIA Entendendo-se por categorias epistemológicas os elementos que fundamentam o pensamento acerca de questões sobre o conhecimento. A epistemologia que se encontra em Locke permite enquadrar tais elementos na corrente filosófica conhecida como ‘empirismo’93 que, sumariamente, defende a tese de que a origem, o fundamento, a extensão, as condições de possibilidade e de validade do conhecimento estão determinados a partir da experiência. Consequentemente, o empirismo refuta todo e qualquer tipo de conhecimento que não tenha a experiência como sua pedra de toque, ou seja, sua base. Sendo assim, a categoria experiência é a primeira que 92 Denominada, doravante, Pensamentos. 93 A palavra ‘Empirismo’ deriva da palavra grega zzzzzzzz (empeiria ou empiria), que significa ‘experiência’. Estabelecendo o primado da experiência, “o empirismo é a afirmação de que o conhecimento humano está confinado dentro das fronteiras da experiência e que para lá destas fronteiras o que existe são unicamente problemas insolúveis ou sonhos arbitrários” (ABBAGNANO e VISALBERGHI, 1981, p. 418). Trata-se, pois, de um movimento filosófico que tem entre as suas finalidades emancipar epistemologicamente o ser humano, isto é, dar-lhe inteira, total, completa e plena autoridade e responsabilidade sobre as questões que dizem respeito ao conhecimento. 146 deve ser abordada, à guisa de explicitação da epistemologia lockeana. De acordo com a seguinte citação, extraída do Ensaio, tem-se o que Locke entende por experiência: Suponhamos então que a mente seja, como se diz, um papel em branco, vazio de todos os caracteres, sem quaisquer ideias. Como chega a recebê-las? De onde obtém esta prodigiosa abundância de ideias, que a activa e ilimitada fantasia do homem nele pintou, com uma variedade quase infinita? De onde tira todos os materiais da razão e do conhecimento? A isto respondo com uma só palavra: da EXPERIÊNCIA. Aí está o fundamento de todo o nosso conhecimento; em última instância daí deriva todo ele. São as observações que fazemos sobre os objectos exteriores e sensíveis ou sobre as operações internas da nossa mente, de que nos apercebemos e sobre as quais nós próprios reflectimos, que fornecem à nossa mente a matéria de todos os seus pensamentos. Estas são as duas fontes de conhecimento, de onde brotam todas as ideias que temos ou podemos naturalmente ter (LOCKE, 2005, p. 106- 107, grifos do autor). Experiência é, segundo tal perspectiva, tanto a observação do contato feito entre os sentidos e os objetos externos à mente (observação tal que pode ser resumidamente denominada ‘sensação’ ou ‘experiência externa’) quanto a observação que a mente faz das suas próprias atividades a partir dos dados fornecidos pela sensação (observação que, por seu turno, pode ser sumariamente reconhecida como ‘reflexão’ ou ‘experiência interna’). A educação, pensada a partir de tal ótica, não será outra coisa senão uma atividade por meio da qual se colocará o indivíduo em condições de realizar, por si próprio, mas não sem orientação, suas experiências, razão pela qual a experiência constitui, portanto, uma categoria imprescindível não somente para se compreender o que Locke pensa acerca do conhecimento, mas também para se apropriar do seu pensamento pedagógico, haja vista que ela tem primazia no 147 processo educativo, pelo fato de que a sua ausência simplesmente inviabilizaria a existência da atividade pedagógica, porquanto a educação está orientada para o conhecimento que, por sua vez, não será possível, conforme o empirismo, se não houver o concurso da experiência. DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA MENTE Em se tratando da categoria mente, Locke elabora uma concepção sobre ela de maneira extensiva. Ele se serve de algumas metáforas para defini-la, dentre as quais a mais conhecida é a da tabula rasa94. As outras metáforas das quais se tem notícia são: a) a folha de papel em branco; b) o quarto escuro; e c) o armário vedado contra a luz, com pequenas aberturas, pelas quais imagens das coisas visíveis no exterior podem entrar. Conforme testemunha Yolton, a expressão tabula rasa [távola vazia] aparece nos primeiros Ensaios sobre a lei da natureza, de Locke, onde diz que os “recém-nascidos são simplesmente rasae tabulae [távolas vazias]” (p. 137). Também usou a frase no Rascunho B do Ensaio: “Parecendo-me provável, pois, que não existe noção, ideia ou conhecimento de qualquer coisa originalmente na alma, mas que no início ela é perfeitamente rasa tabula, inteiramente vazia, mas capaz de receber aquelas noções ou ideias que são os objetos apropriados do nosso entendimento” (Drafts, org. Nidditch e Rogers, § 12, p. 128). No próprio Ensaio, inicia o seu programa de aquisição de ideias dizendo: Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, uma folha de papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer ideias (2.1.2). Uma outra passagem refere-se à mente 94 Távola rasa, ou seja, mesa vazia. Tal metáfora não é originalmente lockeana, já que pertence ao jargão filosófico desde Aristóteles (384-322 a.C.), que, provavelmente, empregou-a, pela primeira vez, na história do pensamento filosófico ocidental. O sentido de tal metáfora é afirmar que a mente é, em princípio, uma instância desprovida de todo e qualquer conteúdo, razão pela qual não se lhe deve imputar como inato o que quer que seja, a não ser, obviamente, as suas faculdades ou capacidades, que são as suas formas, porém, não os seus conteúdos, adquiridos, pois, somente pelas duas vias supracitadas, a saber: a sensação e a reflexão. 148 como um quarto escuro: “sensação e reflexão”, diz ele, são “as janelas pelas quais a luz é introduzida nesse quarto escuro. Pois parece-me que o entendimento [isto é, uma das principais operações da mente] não difere muito de um armário totalmente vedado contra a luz, com apenas algumas pequenas aberturas que permitema entrada de imagens visíveis externas, ou ideias de coisas existentes do lado de fora” (YOLTON, 1996, p. 271-272). Por tais metáforas, conclui-se que Locke tinha como escopo fazer entender que a mente não é, em sua origem, dotada de elementos inatos, afirmação fundamental em sua argumentação contra o ‘inatismo’, sobretudo o de matriz cartesiana95. Ao atacar dessa forma o racionalismo, o anti- inatismo defendido por Locke constitui, sob a perspectiva dialética adotada nesta pesquisa, uma antítese que procurava abalar até aos últimos fundamentos a tese racionalista, apresentando argumentos que advogam a veracidade dessa antítese empirista. Os três primeiros capítulos do Ensaio são destinados a destruir a tese de que existem princípios inatos, sejam eles teóricos ou práticos. Os argumentos apresentados para tal vão no sentido de que é possível, apenas pelo simples emprego das faculdades mentais do ser humano, que lhe são naturais, chegar ao conhecimento da verdade sem a intermediação de ideias inatas, motivo pelo qual não há necessidade de, tampouco razoabilidade em, admiti-las, sendo até mesmo um absurdo fazê-lo. A seguinte citação exemplifica como Locke refuta os argumentos dos racionalistas: De facto, nem as crianças nem os idiotas têm delas o menor conhecimento. E tanto bastará para destruir o consenso universal exigido pelas verdades inatas. Efectivamente, 95 O inatismo (também conhecido como racionalismo) cartesiano leva tal epíteto por causa de seu fundador, René Descartes (1596-1650), cujo nome, em latim, é Renatus Cartesius. De acordo com ele, a mente é dotada de três tipos de ideias, a saber: ideias inatas, ideias adventícias e ideias fictícias: “Mas dessas ideias umas me parecem inatas, outras adventícias, outras feitas por mim” (DESCARTES, 1993, p. 13-14). 149 afigura-se-me quase uma contradição dizer que há verdades impressas na alma que podem não ser conhecidas: imprimir, neste caso, se significa alguma coisa, significa precisamente tornar conhecido; pois a impressão, no espírito, de verdades que o espírito ignore, dificilmente terá algum sentido. E assim, se as crianças e os idiotas têm alma (ou espírito), com os tais princípios nela impressos terão forçosamente de se aperceber deles, e de conhecer e aceitar, necessariamente, a sua verdade. Ora, como tal não acontece, é evidente que não existem impressões desse gênero (LOCKE, 2005, p. 33, grifo do autor). Outra observação tecida por Locke no que se refere ao argumento racionalista ainda em questão é aquela que, se tal argumento fosse válido, então nada de novo se aprenderia, o que Locke nega, pois “algo de que éramos ignorantes se aprende de facto” (LOCKE, 2005, p. 45). Desse modo, Locke defende que a mente procede gradualmente, partindo da percepção das ideias, bem como de seus nomes, até chegar às conexões que estabelecem entre si. Exemplificando sua argumentação, Locke novamente recorre ao comportamento da mente da criança, cujo raciocínio procede de elementos mais simples e particulares para, posteriormente, chegar a questões mais complexas e gerais: Assim, por exemplo, uma criança rapidamente concordará com que “uma maçã não é o fogo”, depois de ter aprendido no convívio familiar as distintas ideias dessas duas diferentes coisas, e de ter aprendido também que as palavras maçã e fogo servem para designar; mas só muito mais tarde, por certo, a mesma criança verá a verdade da seguinte afirmação: “É impossível que a mesma coisa seja e não seja”. E isso porque, sendo embora as suas palavras igualmente fáceis de aprender, já o mesmo se não passa com o seu significado, mais amplo e abstracto do que aquelas coisas sensíveis de que a criança teve experiência directa muito antes de aprender o seu exacto sentido; na verdade, a aquisição dessas ideias gerais requer muito mais tempo. E até que tal se verifique, será debalde que tentaremos fazer compreender a uma criança qualquer proposição formada com ideias desse género; todavia, à medida que as for apreendendo, e que apreender os seus 150 nomes, logo dará o seu assentimento tão facilmente a essas proposições como às anteriores; e tanto a umas como a outras, pelo mesmo motivo: por verificar que as ideias que tinha na cabeça concordam ou discordam, consoante as palavras que as designam são afirmadas ou negadas umas das outras (LOCKE, 2005, p. 46, grifos do autor). Depois de empenhar-se em discorrer acerca da sua repugnância em admitir princípios especulativos inatos, Locke dedicar-se-á, em sequência, a argumentar contra a existência de princípios inatos práticos (ou morais). Ele não negou a evidência, tampouco a validade, dos princípios teóricos, apesar de negar-lhes o inatismo; em relação às máximas (princípios) morais, verificar-se-á que o procedimento adotado será o mesmo, haja vista que, assim como para com os princípios teoréticos, “as máximas morais requerem a aplicação do entendimento para poder descobrir-se a certeza das verdades que encerram” (LOCKE, 2005, p. 53). DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA ENTENDIMENTO O entendimento é, segundo Locke, a principal faculdade mental, uma vez que ele é responsável pela elevação do gênero humano em relação aos demais seres terrenos, motivo pelo qual dedica o seu Ensaio à tarefa de investigar essa capacidade mental, com o intuito de desvelar o seu poder, o seu alicerce, o seu limite e a sua extensão. Assim se expressa na Introdução de sua referida obra: Uma vez que é o Entendimento que eleva o homem acima dos outros seres sensíveis, lhe dá as vantagens de que goza e lhe permite o domínio que sobre eles tem – certamente que o seu estudo é merecedor de todo o interesse e digno da maior aplicação. O entendimento, tal como os olhos, embora nos permita ver e compreender todas as coisas, não se apercebe a si próprio; e é preciso muita arte e esforço para colocá-lo à distância que lhe permita constituir-se um objecto para si 151 mesmo. Mas, quaisquer que sejam as dificuldades que barrem o caminho desta investigação, e haja o que houver capaz de nos ocultar teimosamente a nós próprios, estou certo de que toda a luz com que pudermos iluminar os nossos próprios espíritos, todo o conhecimento que obtivermos sobre o nosso próprio entendimento, nos dará a maior alegria e nos permitirá ainda grandes progressos no conhecimento das restantes coisas (LOCKE, 2005, p. 21, grifo do autor). Sendo o entendimento a faculdade mais nobre do ser humano (pela qual o mesmo conduz-se a si próprio), é preciso, portanto, discipliná-lo para que faça jus a tal atributo, a fim de que conduza as demais faculdades mentais corretamente, levando o indivíduo à senda da virtude, uma vez que, quando mal orientado, o entendimento produz o danoso efeito de uma conduta imprópria para o ser humano, qual seja, um comportamento repleto de vícios. Assim, a proposta pedagógica lockeana consiste em fazer com que o entendimento humano seja educado de forma a buscar o conhecimento para a virtude, sem a qual o homem não se tornaria senhor de si mesmo. Logo no começo de sua obra intitulada Sobre a Conduta do Entendimento, Locke não poupa esforços no sentido de argumentar acerca da supremacia que o entendimento exerce sobre a vontade humana que, por mais rebelde que seja, acaba seguindo-o em última instância, motivo pelo qual a educação do entendimento requer tanto cuidado: O último recurso ao qual um homem tem a recorrer na conduta de si mesmo é seu entendimento, o qual nós distinguimos entre as faculdades da mente e damos o supremo comando da vontade como o de um agente, embora a verdade seja que o homem que é o agente determina a si mesmo para esta ou aquela ação voluntária sobre algum conhecimento precedente, ou aparência de conhecimento, no entendimento. Nenhum homem nunca se posicionou sobre qualquer coisa exceto sobre alguma visão ou outra coisa que lheservisse de razão para aquilo que faz; e quaisquer 152 faculdades que ele empregue, o entendimento, com tal luz que tenha, bem ou mal informado, constantemente lidera; e através daquela luz, verdadeira ou falsa, todos seus poderes operativos são dirigidos. A própria vontade, por mais absoluta e incontrolável no que quer que possa ser pensado, nunca falha em sua obediência aos ditados do entendimento. Os templos têm as suas imagens sacras, e nós vemos que influência elas sempre têm tido sobre uma grande parte da humanidade. Mas em verdade as ideias e imagens nas mentes dos homens são os poderes invisíveis que constantemente os governam, aos quais eles todos universalmente tributam uma pronta submissão. É, portanto, da mais alta preocupação que grande cuidado deveria ser tomado acerca do entendimento, para conduzi-lo correto na busca do conhecimento e nos julgamentos que ele faça (LOCKE, 1996, p. 167, tradução nossa). DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA RAZÃO Ao tratar da categoria razão, Locke incumbe-se de precisar os diferentes significados que tal palavra possui. Devido, pois, à polissemia de tal vocábulo, o filósofo inglês esmera-se em dar-lhe um significado mais exato, a fim de, com isso, conferir maior inteligibilidade a seus escritos. No Capítulo XVII do IV Livro do seu Ensaio, assim se expressa: A palavra razão tem diferentes significados na língua inglesa. Às vezes, aplica-se a princípios verdadeiros e claros; outras vezes, a deduções claras e justas desses princípios; e outras, aplica-se à causa, e particularmente à causa final. Mas considerá-la-ei aqui com um significado diferente de todos estes, e esse significa a faculdade do homem pela qual se supõe que ele se distingue dos animais e os ultrapassa em muito (LOCKE, 2005, p. 929, grifos nossos). Através do supracitado significado dado à palavra ‘razão’, nota-se que Locke não a distingue rigorosamente daquilo que concebe como ‘entendimento’, motivo pelo qual podem ser tratados, sob a sua perspectiva, como sinônimos, 153 haja vista que ambos (entendimento e razão) são as faculdades mentais responsáveis pela diferenciação e pela elevação da natureza humana em relação aos demais seres presentes no mundo sensível. Todavia, poder-se-ia fazer uma objeção a Locke no tocante ao fato de que, sendo a razão e o entendimento sinônimos, que motivo haveria, então, para se falar de uma e de outro? Em resposta a tal objeção que lhe pudesse ser feita, esta citação, extraída do mesmo capítulo ao qual se fez menção no final do parágrafo anterior, lança luzes no que diz respeito à necessidade da parte de Locke em explicitar a importância da atividade racional, uma vez que, através dela, torna-se possível ao ser humano ter o seu conhecimento ampliado e o seu assentimento organizado, o que o entendimento sozinho não conseguiria. Consequentemente, entendimento e razão seriam, assim, quase sinônimos, uma vez que, embora a ambos se deva o fato do ser humano ser superior aos demais seres terrestres, é a razão a faculdade que coroa o entendimento, conferindo-lhe a magnitude que se lhe tributa e auxiliando as demais faculdades mentais. A presente citação faz-se útil para um melhor esclarecimento quanto ao papel desempenhado pela razão: Se o conhecimento geral, como se mostrou, consiste numa percepção de acordo ou desacordo das nossas próprias ideias, e o conhecimento da existência de todas as coisas fora de nós (com a única excepção de Deus, cuja existência todo o homem pode certamente conhecer e demonstrar a si próprio a partir da sua própria existência96) unicamente se obtém pelos sentidos – então, que lugar fica para o exercício de qualquer outra faculdade que não seja a percepção exterior e a percepção interior? Que necessidade há de razão? Muita: tanto para o desenvolvimento do nosso conhecimento como para regular o 96 Note-se aqui a aproximação de Locke com Descartes, para o qual a certeza da existência de Deus pode ser deduzida a partir da certeza da existência que o indivíduo tem de si mesmo. 154 nosso assentimento, porque tem que ver tanto com o conhecimento como com a opinião, e é necessária para auxiliar todas as nossas outras faculdades intelectuais, e na verdade contém duas delas, a saber: sagacidade e ilação (LOCKE, 2005, p. 929, grifos do autor). Além de sua importância em âmbito gnosiológico, Locke confere à razão a tarefa de tornar o ser humano virtuoso, uma vez que somente um comportamento racional seria compatível com uma conduta virtuosa e vice-versa, ou seja, razão e virtude precisam caminhar pari passu, haja vista que somente assim o ser humano seria liberto de suas inclinações97, as quais, via de regra, rebaixam-no à pura animalidade; consequentemente, pensar aqui a educação significa afirmar tratar-se de uma atividade cujo encargo supremo é consolidar, por intermédio de hábitos, a obediência à razão, posto ser isso a única maneira de estabelecer a virtude, finalidade máxima de todo o processo educacional e conditio sine qua non para a emancipação humana do nível da simples bestialidade. DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA IDEIA A ideia é a categoria fundamental da qual Locke utiliza- se para designar todo e qualquer conteúdo que se encontre na 97 Aqui tomadas como sinônimas de ‘tendências’, tratam-se, segundo Abbagano (que também admite a sinonímica desses termos), em seu verbete TENDÊNCIA, de “todo impulso habitual e constante para a ação. Nisso a [tendência] distingue-se do impulso [...], que é a ação súbita e temporária” (ABBAGNANO, 2003, p. 948, grifo do autor). O termo ‘inclinação’ é de extrema relevância para o pensamento lockeano, principalmente em se tratando de compreender a finalidade mais importante da educação, que é, para Locke, a virtude, que consiste no hábito de ser racional, ainda que os desejos e inclinações se oponham a tal, conforme se verifica na Seção 33 dos seus Pensamentos: “Como a resistência do corpo repousa principalmente em ser capaz de suportar privações, assim também o é em relação à mente. E o grande princípio e fundação de toda virtude e valor está colocado nisto, que um homem seja capaz de negar-se a si mesmo os seus próprios desejos, contrariar suas próprias inclinações, e puramente seguir aquilo que a razão ordena como o melhor, apesar do apetite inclinar-se para o outro caminho” (LOCKE, 1996, p. 25, grifos do autor; tradução nossa). 155 mente, ou seja, a ideia é a matéria-prima com a qual a mente constrói o pensamento; destarte: “Se todo o homem tem por si mesmo consciência de que pensa e se aquilo a que o seu espírito se aplica, quando pensa, são as ideias que aí estão, não há dúvida de que os homens têm no seu espírito várias ideias” (LOCKE, 2005, p.105, grifo do autor). Em outra passagem do Ensaio, Locke apresenta uma concepção mais precisa daquilo que denomina ‘ideia’: “Chamo ideia a tudo aquilo que a mente percebe em si mesma, tudo o que é objecto imediato de percepção, de pensamento ou de entendimento” (LOCKE, 2005, p. 156). Ao investigar a origem das ideias, sem as quais não pode haver objeto da percepção, do pensamento ou do entendimento, Locke argumenta que, no tocante à sua origem, existe, a rigor, uma só fonte que origina as ideias, qual seja: a experiência; esta, por sua vez, bifurca-se em: sensação (experiência externa) e reflexão (experiência interna)98. DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA CONHECIMENTO Depois de ser passada em revista a categoria ideia, torna- se momento oportuno discorrer acerca da categoria conhecimento, porquanto se trata de uma das peças mais importantes para se montar o curioso quebra-cabeça que constitui o pensamento filosófico e pedagógico lockeano; afinal, todos e quaisquer esforços envidados por Locke em seu Ensaio convergem para um só fim: tratar da problemática do conhecimento(que, por sua vez, conflui para a problemática educacional). Assim sendo, faz-se necessário apresentar a definição saída da pena do próprio filósofo sobre o que ele entende por conhecimento: 98 “Estas duas fontes, isto é, as coisas externas materiais, como objectos de SENSAÇÃO, e as operações internas da nossa mente, como objectos da REFLEXÃO, são, para mim, os únicos princípios de onde todas as nossas ideias originariamente procedem” (LOCKE, 2005, p. 108, grifos do autor). 156 Parece-me que o conhecimento não é outra coisa senão a percepção da conexão e do acordo, ou do desacordo e da oposição em quaisquer das nossas ideias. É só nisto que ele consiste. Onde esta percepção estiver, há conhecimento, e onde não estiver, nós não poderemos chegar ao conhecimento, embora possamos imaginar, conjecturar ou acreditar (LOCKE, 2005, p. 719, grifos do autor). Conforme essa passagem, Locke, além de distinguir o conhecimento da imaginação, da conjectura e da crença, define-o principiando pela categoria percepção, a qual já foi abordada pelo presente estudo; em seguida, o filósofo recorre a outros quatro termos (conexão ou acordo, desacordo ou oposição), tratando os dois primeiros como sinônimos entre si, bem como os dois últimos. Apesar de não se preocupar em defini-los, ele, por um lado, trata de explicitar de quais tipos podem ser, ocupando-se, por outro lado, de definir tal tipologia, constituindo-os, assim, em categorias do seu pensamento. Além de sugerir a sua própria definição de conhecimento, Locke também se empenha em examinar outras acepções desse termo. Assim, antes de expor os graus de conhecimento defendidos por ele, eis que o mesmo se dedica a explanar sobre outras formas pelas quais o conhecimento é concebido; são elas: conhecimento atual e conhecimento habitual. Conhecimento atual é a categoria pela qual Locke designa “a percepção presente que o espírito tem do acordo ou do desacordo de algumas das suas ideias ou da relação que elas têm umas com as outras” (LOCKE, 2005, p. 725), isto é, trata-se do conhecimento que consiste na percepção que a mente tem em um dado momento atual ou presente de sua atividade. Em relação ao conhecimento habitual, tem-se que tal categoria expressa, segundo Locke, aquele conhecimento que ocorre quando 157 um homem conhece uma proposição quando esta proposição esteve uma vez presente no seu espírito e ele percebeu evidentemente o acordo ou o desacordo das ideias de que ela é composta e a fixou de tal maneira na sua memória que, todas as vezes que volte a reflectir sobre esta proposição, e a vê-la sempre sob o seu verdadeiro ponto de vista, sem dúvida, nem hesitação, lhe dá o seu assentimento, e está seguro da verdade que ela contém. É o que se pode chamar, segundo a minha opinião, conhecimento habitual (LOCKE, 2005, p. 725, grifos do autor). Assim sendo, nota-se que o conhecimento habitual é o conhecimento que consiste no registro que a mente faz através da memorização da percepção, ou seja, é o conhecimento que é franqueado à mente através da sua faculdade mnemônica, o que leva à conclusão de que, sem a memória, não seria possível falar em tal acepção de conhecimento. Prosseguindo em sua tarefa de discorrer acerca do conhecimento, Locke expõe que o mesmo possui três graus, que são por ele designados pelas seguintes categorias: conhecimento intuitivo (ou, simplesmente, intuição), conhecimento demonstrativo (ou, simplesmente, demonstração) e conhecimento sensitivo. Em se tratando do conhecimento intuitivo, tem-se a declarar que tal grau de conhecimento ocorre, conforme Locke, nas seguintes circunstâncias: Se reflectirmos sobre a nossa maneira de pensar, veremos que algumas vezes o espírito se apercebe do acordo ou desacordo de duas ideias imediatamente por elas próprias sem a intervenção de uma outra, o que, eu penso, se pode chamar conhecimento intuitivo (LOCKE, 2005, p. 729, grifos do autor). Em se considerando o conhecimento demonstrativo, percebe-se que se trata do grau de conhecimento no qual a mente percebe mediatamente a conexão ou a desconexão entre duas ou mais ideias, ou seja, em se percebendo o acordo ou o desacordo entre duas ou mais ideias, há o intermédio de uma 158 ideia ou até mesmo mais de uma. Tal grau de conhecimento ocorre devido à insuficiência da mente em sempre perceber o acordo ou o desacordo entre as suas ideias de forma imediata. Assim sendo, quando o espírito não pode juntar as suas ideias para perceber o seu acordo ou desacordo, por meio de uma imediata comparação, e por assim dizer justapondo-as ou aplicando-as umas às outras, é então obrigado a servir-se da intervenção de outras ideias (uma ou mais, conforme o caso) para descobrir o acordo ou o desacordo que procura; e isto é o que chamamos demonstração (LOCKE, 2005, p. 730-731, grifos do autor). Considerando-se o conhecimento sensitivo, tem-se que se trata de uma categoria que expressa o grau de conhecimento que consiste na percepção da existência particular de objetos externos, percepção essa que se encontra entre a certeza imediata da intuição e a probabilidade mediata da demonstração, sendo, pois, diferente de ambas. Ao se referir ao conhecimento sensitivo, Locke fá-lo nos seguintes termos: Na realidade, o espírito tem ainda da existência particular dos seres finitos fora de nós uma outra percepção, que indo para além da simples probabilidade, mas não atingindo perfeitamente nenhum dos precedentes graus de certeza, passa sob o nome de conhecimento. [...] É por isso que, julgo eu, podemos acrescentar às duas espécies anteriores de conhecimento também a que diz respeito à existência de objectos particulares exteriores, em virtude desta percepção e conhecimento que temos da entrada das ideias que nos vêm destes objectos, e, assim, podemos admitir estes três graus de conhecimento, a saber: o intuitivo, o demonstrativo e o sensitivo, em cada um dos quais há diferentes graus e meios de evidência e de certeza (LOCKE, 2005, p. 738-739, grifos do autor). À luz dessa citação, verifica-se que, no que tange ao fato de estar mais próximo da certeza (estado em que a percepção torna-se conhecimento indubitável) e da evidência (estado em 159 que a percepção torna-se conhecimento claro e distinto), o conhecimento sensitivo encontra-se entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento demonstrativo, pois sendo o conhecimento sensitivo, por um lado, inferior à intuição (pelo fato de não possuir os mesmos níveis de certeza e de evidência que ela), é, por outro lado, superior à demonstração (considerando-se que se encontra em um patamar no qual a sua certeza e a sua evidência são superiores àquelas que se fazem presentes na demonstração). CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo, apontamos algumas das mais relevantes categorias epistemológicas do pensamento de John Locke, selecionadas com o intuito de prover uma concepção panorâmica e introdutória em relação ao pensamento deste egrégio filósofo empirista que, por sua vez, apresenta ideias acerca da educação iluminadas por suas ideias acerca do conhecimento. Em suma, ao discorrer sobre a experiência, a mente, o entendimento, a razão e a ideia, Locke elabora a sua concepção de conhecimento de maneira a estabelecer uma hierarquia entre os seus três modos, de acordo com o seu grau de certeza mais ou menos imediata, hierarquia essa que poderia ser expressa nestes termos: no supremo patamar, a intuição, cuja certeza é incontestável, por ser imediatamente evidente; no patamar intermediário, o conhecimento sensitivo, cuja característica é ser mais incerto que a intuição e menos duvidoso que a demonstração, não sendo mais tão imediato quanto a intuição, nem carecendo de tantas provas quanto a demonstração; no ínfimo patamar, a demonstração, cuja certeza é a menos imediata em relação aos demais(intuição e conhecimento sensitivo), já que se trata do tipo de conhecimento que mais necessita de provas, dele fazendo o tipo de conhecimento que não é imediatamente evidente. 160 Por ser um dos principais teóricos do empirismo britânico, Locke advoga em todo o processo de construção do conhecimento o primado da experiência, porquanto sem ela não há ideias e, sem elas, não há conteúdos mentais, o que, ipso facto, paralisa toda e qualquer atividade mental e, portanto, todo o conhecimento. Por este motivo e em decorrência de tal perspectiva, é impossível conceber a educação prescindindo da experiência, por tratar-se de uma atividade por meio da qual o corpo e a mente do ser humano devem ser disciplinados para conhecer e agir, nunca se perdendo de vista, é claro, a virtude, elemento indispensável para a formação do ser humano, o qual é materializado por Locke em seus escritos sobre educação na figura do gentil-homem, cuja nobreza de caráter e de conduta apenas terá a virtude por prova inconteste. Assim, a superioridade humana só poderá ser garantida ou legitimada se houver um comportamento racional o bastante para demonstrar a sua capacidade de superar os obstáculos impostos por suas inclinações animalescas, ou seja, em Locke, pode-se admitir que, em se tratando de educação: Nulla salus ex virtute99! REFERÊNCIAS ABBAGNANO, N. e VISALBERGHI, A. História da Pedagogia. Lisboa: Livros Horizonte, 1981. ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003. DESCARTES, R. Meditationes De Prima Philosophia: Meditatio Tertia. Campinas: IFCH-UNICAMP: 1993. LOCKE, J. Some Thoughts Concerning Education and Of the Conduct of the Understanding. Indianapolis, Indiana, USA: Hackett Publishing Company, Inc, 1996. 99 Fora da virtude não há salvação. 161 _______. Ensaio sobre o Entendimento Humano. Lisboa: Fundação Calouste-Gulbenkian, 2005. 2 vols. YOLTON, J. W. Dicionário Locke. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. 162 Capítulo 9 KKAANNTT EE AA TTAARREEFFAA DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO Vera Cristina de Andrade Bueno I – INTRODUÇÃO Embora não seja um dos fatos mais discutidos pelos comentadores de sua filosofia, Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo que, ao longo de sua vida, ocupou-se, ora de forma mais explícita ora de forma menos explícita, com questões e temas ligados à educação. Em geral, ele é mais lembrado por sua preocupação inicial com questões ligadas à ciência e à metafísica, o que o levou à elaboração de suas obras pré-críticas e críticas. Mas, diferentemente de muitos filósofos que o antecederam, Kant foi professor durante toda a sua vida e viveu do ensino que praticava, seja como tutor nas casas das famílias abastadas (1748-1754), seja como Privatdozent - título que se dava àqueles que ensinavam nas universidades, mas cujo ensino era pago diretamente pelos alunos que frequentavam os cursos e não pela Universidade – seja, finalmente, como Professor da Universidade de Königsberg, o que aconteceu a partir de 1770. Além de ter sido professor durante toda a sua vida, Kant ministrou quatro cursos sobre pedagogia, o que o levou a tratar explicitamente de temas ligados à educação. As anotações feitas para esses cursos foram dadas a T. Rink, seu amigo e ex-aluno, para que ele as editasse e publicasse, o que foi feito em 1803, um ano antes da 163 morte do filósofo, com o título Über Pedagogik100. Kant ainda escreveu outros textos nos quais explicita suas posições a respeito da educação. Num deles, em que apresenta sua proposta para seus cursos de inverno de 1765 e 1766, faz uma crítica da educação dada aos jovens101; em outros dois, publicados em 1766 e 1767, refere-se, elogiando, à educação dada no Instituto Philantropinium102. Em suas obras críticas de filosofia prática, aborda temas que vão influenciar profundamente sua concepção de educação: o de liberdade e o de autonomia103. Segundo Foley Rhys Davids, o fato de a educação ter tido um destaque especial no ensino universitário na época de Kant, razão pela qual foram introduzidos na universidade os cursos de pedagogia, se deve à atenção crescente dada à questão dos direitos humanos e à crença no valor do indivíduo e da criança, temas que ganharam força no final do século XVIII. No que concerne aos direitos da criança, é incontestável a influência de Rousseau. Este chamou a atenção para a 100 Über Pedagogik. In: Kant´s gesammelte Schriften, Königlich Preussichen Akademie der Wissenschaften, Berlin-Leipzig, 1923, Ak, 9: 441-499. As letras Ak indicam o volume e a página da edição da Academia de Ciências de Berlim. Em português, Sobre a pedagogia. Tradução para a língua portuguesa de Franscisco Cock Fontanella. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2006. Daqui em diante, SP. 101 Nachricht von der Einrichtung seiner Vorlesungen in dem Winterhalbenjahre von 1765- 1766. Ak, 2:306-307. Há uma tradução desse texto para a língua inglesa com o título “M. Immanuel Kant´s announcement of the programme of his lectures for de winter semester 1765-1766”. In: Theoretical Philosophy. Cambridge: Cambridege University Press, 1992, p. 291-2. 102 “Essays regarding the Philanthropinum”. In: Anthropology, History and Education. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 98-104; Ak, 2:447-452. O Instituto Philantropinium, fundado por Johann Bernhard Basedow, em 1774, em Dessau, tem uma concepção educacional fortemente influenciada por Rousseau. 103 Dentre essas obras, as mais fundamentais são: a Fundamentação da metafísica dos costumes, tradução de Guido Antônio de Almeida. Edição bilíngüe. São Paulo: Discurso editorial e Editora Barcarolla Ltda, 2009, daqui em diante, FMC; Crítica da razão prática, tradução de Valério Rohden. Edição bilíngüe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, daqui em diante, CRPr; Crítica da faculdade do juízo, tradução de Valério Rohden. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, daqui em diante, CFJ; A Metafísica dos costumes, tradução de Edson Bini, São Paulo: Edipro, 2003. 164 necessidade de se levar em conta o que a criança é em si mesma enquanto criança, deixando provisoriamente de lado o homem no qual ela vai se tornar. Mesmo que não se possa negar que a criança seja um ser em constante mudança, ela tem seu modo próprio de ser, diferente daquele do adulto. Na formação da criança, valores antigos como o individualismo, os privilégios, as convenções tinham de ser ultrapassados para que a sua natureza racional e supra-sensível pudesse ser resgatada. Esse resgate é possível em função das disposições naturais do ser racional, que trazem consigo o sentido moral que precisa ser incentivado pelo exemplo e pela educação104. II – A INFLUÊNCIA DE ROUSSEAU NA FILOSOFIA PRÁTICA KANTIANA E A IMPORTÂNCIA DESSA FILOSOFIA PARA A EDUCAÇÃO A leitura das obras de Rousseau foi de suma importância para a formação da filosofia prática kantiana e é nessa filosofia que Kant vai buscar os fundamentos determinantes para sua concepção de educação105. No entanto, se, no que concerne à filosofia prática, Kant procede de uma forma inteiramente a priori, ou seja, levando em conta o que vale universal e necessariamente para todos os seres racionais, 104 Ver: Kant and Education. Source: Introduction to Kant on Education (Ueber Pedagogik), trans. Annete Churton, introduction by C.A. Foley Rhys Davids (Boston: DC. Heath and Co., 1900). 105 A respeito da influência recebida de Rousseau, Kant diz o seguinte: “Sou um investigador por inclinação. Tenho uma sede insaciável (consuming) de conhecimento [...]. Houve um tempo em que acreditei que isso constituía a honra da humanidade e desprezava as pessoas que não sabiam nada. Rousseau me corrigiu nisso. Essepreconceito ao qual estava preso desapareceu. Aprendi a honrar a humanidade e eu me acharia mais inútil dos trabalhadores comuns, se não acreditasse que essa minha atitude pode dar valor a todas as outras ao estabelecer os direitos da humanidade” (Ak, 20:44, apud Allen Wood, “General introduction” in: Practical Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p.xvii). Kant refletiu intensamente sobre a moralidade por volta da metade dos anos sessenta, do século XVIII, época em que leu Sobre o contrato social e o Emílio. 165 independentemente da situação de cada um deles, no que concerne à sua preocupação com a educação, e na aplicação a ela do que é válido universal e necessariamente, Kant vai proceder empiricamente. Nessa ótica, Kant vê a educação consistindo no aperfeiçoamento da raça humana. A educação, para Kant, tem de levar em conta o aperfeiçoamento da espécie com todas as suas subespécies, a saber, todas as raças e não apenas o indivíduo em seu contexto mais restrito. “O destino final da raça humana é o aperfeiçoamento moral [...] Como, então, poderemos lutar por esse aperfeiçoamento e de onde ele pode ser esperado? De nenhuma outra parte a não ser da educação”106. Mas, o que entende Kant por “raça” e por “aperfeiçoamento moral”? O conceito de raça, como dito acima, tem a ver com o de espécie humana; por sua vez, Kant conceitua a espécie humana como aquilo que no ser humano é infalivelmente hereditário: “As propriedades que pertencem essencialmente à espécie humana em si mesma, e que são comuns a todos os seres humanos, são, na verdade, enquanto tais infalivelmente hereditárias”107. Os conceitos de raça e de espécie humana trazem consigo o conceito de alguma coisa que é submetida a uma regularidade, a saber, a uma lei. Se, para Kant, o conceito de natureza implica uma submissão à lei, o conceito de natureza humana pode ser visto, nesse caso, como sendo análogo, do ponto de vista filosófico, aos de raça e de espécie humana108. O conceito de aperfeiçoamento moral, ou de moralidade, tem a ver com a razão humana e, em especial, com a razão que 106 Moralphilosophie Collins, Ak, 27:470-1, apud Robert Louden, Anthropology, History and Education. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 15. 107 “Determination of the concept of human race”. In: Anthropology History and Education. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 153-154; Ak, 8: 99-100. 108 O conceito de raça e de espécie, como contendo aquilo que é invariavelmente hereditário, tem uma conotação empírica, mas está relacionado àquele de natureza, que tem uma conotação mais filosófica. Na FMC Kant afirma que “toda coisa na natureza atua segundo leis” (p. 183; Ak, B36; 4:412). 166 se relaciona imediatamente com a vontade, a razão prática. Esse conceito, segundo Kant, leva-nos a pressupor a ideia de liberdade109. A ideia de liberdade foi sendo paulatinamente formada; ela é decorrente da filosofia crítica kantiana, que investiga a possibilidade de certos conceitos e ideias. Em sua filosofia crítica, Kant justifica a possibilidade de pensarmos a liberdade sem o risco de contradição em relação ao determinismo da natureza física, pois ela é uma ideia que pertence ao domínio do pensamento, que concerne ao supra- sensível110. Não há na modernidade, segundo Kant, uma concepção de moralidade que tome a liberdade como uma ideia, isto é, como um tipo de representação que possibilita ao ser humano determinar suas escolhas em função da lei da razão111, e que faça, por sua vez, dessa mesma lei uma máxima112 para sua vida independentemente de outras influências que ele possa sofrer113. A razão, tomada de um modo geral, é a faculdade pela qual o ser humano procura princípios e conceitos suficientes para justificar a possibilidade de certos fatos. Do ponto de 109 Kant estabelece a distinção entre conceito e ideia da seguinte maneira: conceito é uma representação universal por meio da qual podemos pensar as coisas e também conhecê-las. A ideia é uma representação por meio da qual podemos apenas pensar certas coisas, mas não podemos conhecê-las. Para haver conhecimento de um objeto é preciso que tenhamos experiência sensível desse objeto. A ideia é um conceito cujo objeto representado não pode ser encontrado na experiência. Nesse sentido, não podemos encontrar a liberdade na experiência. A respeito da distinção entre conceito e ideia, ver de I. Kant, Prolegômenos, §40. Tradução para a língua portuguesa de Tânia Maria Bernkopf. São Paulo: Coleção Os pensadores. Editora Abril Cultural, 1974. Ak, 4:328. 110 Crítica da razão pura, tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, A532/B560. As letras A e B referem-se, respectivamente, à primeira e a segunda edição da obra. Daqui em diante, a referência à obra será feita com as iniciais CRP, seguidas das letras A e B. 111 CRPr, p. 331; A, 168; Ak, 5:94. 112 Segundo Bittner, “máximas são regras de vida: elas expressam que tipo de ser humano quero ser [...]. Elas contêm o sentido de minha vida; [...] Nesse sentido, como regra de vida, está sua procurada universalidade (Allgemeinheit). [...] [A máxima é o] princípio determinante de uma vida”. “Máximas”. In: Studia kantiana 5 (2003):14-15. 113 CRPr, p. 97-103; A, 51-54; Ak, 5: 29-30. 167 vista meramente lógico, a razão é a faculdade por meio da qual, de proposições mais gerais, inferimos proposições menos gerais, ou que, inversamente, das menos gerais, buscamos aquelas mais gerais. Do ponto de vista prático, ou seja, do ponto de vista da determinação da vontade, ela é a faculdade dos princípios em função dos quais podemos realizar coisas as quais, sem esses princípios, não poderiam ser realizadas. Os princípios da razão pura se manifestam a nós como deveres114. O dever determinado pela própria razão é a autonomia115. Nesse sentido, ao afirmar que o fim da educação é o aperfeiçoamento moral da raça humana, Kant está propondo que o fim da educação seja ensinar àqueles que pertencem à raça humana, em especial as crianças e os jovens, a fazerem uso de sua liberdade e autonomia. A concepção de razão prática significa uma ampliação do uso da razão, pois por meio dessa concepção, Kant acabou se dando conta de que a razão humana não tem apenas uma função cognitiva, como se costuma admitir. E é justamente a concepção prática da razão que dá a Kant a possibilidade de considerar a educação como aperfeiçoamento moral. O papel final da educação é levar o ser humano a reconhecer o valor de sua vida como ser racional. O reconhecimento desse valor contribui para a formação do seu caráter. O caráter do ser humano é formado não só pelos princípios que ele adota, mas também pelo propósito que faz para mantê-los. O caráter é, segundo Kant, “uma consequente maneira de pensar prática segundo máximas imutáveis”116. Isso quer dizer que o caráter não concerne apenas à escolha dos princípios, mas também à 114 FMC, p. 115-119; Ak, 4:397-98. 115 CRPr, p. 139; A, 72; Ak, 5:42. 116 CRPr, p. 535; A, 271; Ak, 5:152. 168 proposta de se ater a eles. Ele é um modo consequente de pensar e de agir117. Em função dos conceitos de razão prática, de vontade e de liberdade, o fim almejado para a educação não é o treinamento mecânico, como muitas vezes acontece, mas a prática do pensamento. O projeto de educação até então adotado, segundo Kant, é o da disciplina, da cultura e da civilização. Para ele, a moralização ainda não faz parte do projeto educacional vigente. E, no entanto, enquanto não se levar em conta a prática da moralização, a educação não estará atendendo à realização dos fins últimos dos homens. Parece que a educação vigente leva em conta apenase, com isso, perde importância a figura do basileus, o rei, exaltada nos versos da Ilíada e da Odisséia. Uma vez emudecidas as palavras do rei, e com elas a verdade depositada na tradição, os discursos míticos, poéticos e religiosos deixam de satisfazer as exigências pedagógicas dos gregos. Essa carência é o que fará os homens procurarem outros caminhos e buscarem perguntas que nunca precisaram ser feitas antes: qual é a origem de todas as coisas? O que é o homem? Como o homem deve se comportar na cidade? Os pré-socráticos e os sofistas contribuíram para a formação do novo homem, nascido das cinzas da tradição, o qual repõe a fé apenas na autoridade do logos, na dúplice acepção que este termo possui, isto é, de razão e de discurso. Enquanto detentor da razão, o homem não recorre à palavra indiscutida dos deuses; enquanto detentor do discurso, o homem compartilha a sua palavra com os outros homens e se torna animal politicus. 1 A palavra paideia foi criada pelos Sofistas para indicar a natureza do seu ensino. 22 O NOVO JEITO DE OLHAR PARA O MUNDO Os pré-socráticos descobriram aquela maneira de olhar para o mundo que é a maneira científica ou racional. Viam o mundo como algo ordenado e inteligível, cuja história obedecia a um desenvolvimento explicável, organizado, compreensível. O mundo não é considerado um conjunto arbitrário de partes ou de eventos, nem responde a uma ordem determinada apenas pela vontade e pelo capricho da divindade. O mundo natural tem a sua ordem intrínseca, a qual é suficiente para explicar a sua estrutura. As explicações dos pré-socráticos são marcadas por três características: são internas, isto é, explicam o universo a partir das características que o constituem; são sistemáticas, isto é, explicam todos os eventos empregando os mesmos termos e métodos; são econômicas, isto é, empregam poucos conceitos e poucas operações. Os filósofos pré-socráticos não são personagens inúteis na gênese da elaboração de uma nova imagem do homem. Com isso, não estamos dizendo que todos os argumentos que eles apresentaram foram bons argumentos, nem isso nos parece algo relevante. O que nos parece relevante é que os pré-socráticos apresentaram “argumentos” sobre o cosmo, o homem e o convívio dos homens na cidade. Os primeiros filósofos enfatizaram o domínio da faculdade racional. A razão é a faculdade capaz de estabelecer relações lógicas, isto é, de dar conta dos fenômenos naturais e antropológicos através da busca pelas causas. Ao alcançar este objetivo, a razão produz inferências. A inferência manifesta em primeiro lugar as razões, revela as causas e indica o responsável pelo efeito experimentado. Da inferência deriva a ciência demonstrativa, a saber, o processo de conhecimento que não se satisfaz apenas com a apreensão da existência dos fatos, mas também toma conta do porquê, dos motivos de sua existência. 23 Embora seja exato afirmar que a filosofia introduz os fundamentos da paideia, do ethos e da episteme ocidentais, ou seja, do jeito de viver, de portar-se e de compreender característicos do Ocidente europeu, ela mantém um atributo que lhe é essencial e que desapareceu na época atual. A filosofia é a apreensão desinteressada da natureza. O historiador Heródoto, que viveu no século V a.C., narra uma primeira manifestação da atividade filosófica da seguinte forma. Heródoto narra o encontro de Sólon, o legislador de Atenas (VII-VI a.C.), um dos que são denominados Sete Sábios, com Creso, o rei de Lídia. Creso dirige-se a Sólon nestes termos: “Meu caro ateniense, a notícia da tua sabedoria e de tuas viagens chegou até nós. Não ignoro absolutamente que, por amar a sabedoria (philosopheon), percorreste muitos países, por causa de teu desejo de conhecer”. Naquele momento, o que representava a filosofia eram as viagens que Sólon realizou e que tinham como fim conhecer, adquirir vasta experiência da realidade e dos homens, descobrir países e costumes diferentes. Tal experiência pode fazer daquele que a possui um bom juiz nas coisas humanas e um homem apto ao convívio social. Filosofia é o desejo pelo saber em si mesmo de uma maneira desinteressada e engloba tudo o que se refere à cultura intelectual. A filosofia é um bios, um estilo de vida e uma opção que não se situa no momento conclusivo da atividade filosófica, como uma consequência de um percurso de conversão. Ao contrário, esta escolha existencial se posiciona logo no começo, em uma complexa relação e interação entre a crítica a outras atitudes existenciais, a visão global do mundo, e a própria decisão voluntária e responsável. É a opção escolhida que determina até certo ponto a doutrina filosófica professada e o jeito de transmiti-la para os discípulos (HADOT, 1999, p. 167). As mutações que a filosofia produz aparecem em quem a pratica, no filósofo, ou seja, naquele que vive no estilo filosófico. A filosofia não possui nenhuma 24 utilidade prática: ela é livre, pois não se submete a qualquer fim que lhe seja alheio. “Todas as outras ciências serão mais necessárias do que esta, diz Aristóteles, mas nenhuma lhe será superior”. Isto pelo fato de que a tarefa da filosofia é uma tarefa essencialmente pedagógica: a produção do homem. Hoje em dia parece estranho falar deste jeito, pelo fato de que na época atual o que impõe a sua força é justamente o interesse, o útil. A partir do pensamento marxista, a filosofia tem como escopo a transformação da realidade; a filosofia se propõe a mudar e fazer mudar a realidade. O ato de transformar não é em si mesmo ruim: com efeito, pode ser considerado um empenho político ou mesmo educativo (HÜHNE, 2006, p. 54). Porém, o filósofo grego objetaria que tudo isso não pode ser o fim último da filosofia. Quem filosofa tendo o útil como objetivo perde a liberdade. A ânsia de transformar perturba o momento do conhecimento. A filosofia, o amor desinteressado ao saber, se submeteria à prática e deixaria de ser filosofia. Contudo, o que é mais novo na filosofia está em relação ao jeito particular de viver que é a escolha própria do filósofo. Existe uma enorme diferença entre a representação que os antigos faziam da filosofia e a representação hodierna da mesma disciplina, pelo menos na imagem transmitida aos estudantes por conta das necessidades do ensino universitário. Normalmente, os estudantes têm a impressão de que todos os filósofos esforçam-se sucessivamente para arquitetar, cada um de uma maneira original, uma nova construção sistemática e abstrata, destinada a explicar, de uma maneira ou de outra, o universo. O “jogo das interpretações” parece um conjunto de movimentos arbitrários no qual o sujeito, conscientemente ou até abandonando-se ao próprio inconsciente criativo, cria imagens da “realidade” para opor às dos outros. Isso não entra na perspectiva do discurso filosófico antigo. Evidentemente, não estamos negando a extraordinária capacidade dos filósofos antigos de desenvolver uma reflexão 25 sobre os problemas mais sutis da realidade natural e humana. Porém, essa atividade teórica deve ser situada em uma perspectiva diferente daquela que a filosofia indica hoje. Em primeiro lugar, a opção pelo modo de vida filosófico se situa na origem do caminho de pesquisa, e isso determina o processo educativo do filósofo e dos seus discípulos (HADOT, 1999, p. 169). “A Escola Eleata, fundada por Parmênides, e a Escola Pitagórica foram dois focos importantes do desenvolvimento e da transmissão deste tipo de saber” (FERREIRA, 1993, p. 34-35.). No domínio educativo interessa de modo especial a Escola Pitagórica, seja pelo seu ideal de vida que reveste a procura do saber com um caráter iniciático e religioso, seja pela sua contribuição na criação do currículo de estudos que foi considerado o fundamento das artes liberais, ou artes do trivium e do quadrivium, como foram chamadas na Idadeo interesse dos Estados, pois a “felicidade dos estados cresce na medida da infelicidade dos homens”. Como os homens poderão ser felizes se aquilo que têm de mais digno não é levado em conta? É verdade que a felicidade para os seres racionais depende em grande parte do cumprimento de leis, mas não se trata de qualquer lei. As leis dos Estados não são suficientemente abrangentes para que os homens vislumbrem sua felicidade apenas pelo cumprimento delas. Não é que elas não devam ser cumpridas. Mas, além delas, são necessárias também as condições para que os indivíduos possam seguir a lei da razão pura, a lei que eles mesmos se dão, por meio de suas máximas, fundadas na ideia de liberdade. Se essas condições são suprimidas, se não houver a preocupação com a ideia de liberdade, eles não poderão nem ao menos almejar a felicidade, pois o que há de mais valioso no ser humano não foi levado em conta. Nesse sentido, o processo da educação não deve priorizar o ser humano como cidadão pertencendo a um Estado, ou mesmo o indivíduo pertencendo a uma família, mas sim o ser racional que está acima das distinções de país e de família. Kant entende que a tarefa da educação é ajudar o 117 Kant se refere ao modo de pensar consequente no §40 da Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rohden. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 140-141; B, 158; Ak, 5:294. 169 ser humano a se tornar não apenas um cidadão (Burger), mas também, e principalmente, um cidadão do mundo (Weltburger). Ele parece adotar, em relação à educação, uma posição análoga a que adota em relação à filosofia: a valorização de uma concepção cósmica de educação, assim como valoriza a concepção cósmica de filosofia118. III – O PAPEL DA HISTÓRIA DA NATUREZA HUMANA E A EDUCAÇÃO Porém, o desenvolvimento do ser humano não é visto apenas como resultante dos progressos provenientes do uso razão. O desenvolvimento é visto também como resultante do papel que a natureza desempenha em relação a ele. Se levarmos em conta o que Kant propõe em seu primeiro ensaio sobre a história humana, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, publicada em 1784119, veremos o quanto o progresso da humanidade depende de uma superação das dificuldades postas pela natureza. Essas dificuldades são vistas com uma finalidade. É como se, por meio delas, a natureza contribuísse para o desenvolvimento do ser humano, pois é pela superação das dificuldades que encontra que o ser humano se desenvolve e se aperfeiçoa120. Assim, o desenvolvimento inicial do ser humano no decorrer 118 Lógica. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 42. Ak, 16:24; CRP, A838/B866. 119 A palavra Ideia que aparece no título deve ser entendida em seu uso regulativo (CRP, A644-45/B672-73). Uma ideia em seu uso regulativo não vale para o conhecimento de objeto algum, mas vale para nos orientar numa maneira de lidar com certos dados. Nesse texto, Kant não está atribuindo valor cognitivo ao seu conteúdo, mas apenas oferecendo um modo possível de se lidar com a história da humanidade de um ponto de vista filosófico. Cf. Lewis White Beck, Kant Selections. New York: Macmillan Publishing Company, 1988, p. 413. 120 Essa concepção de uma natureza que contribui para o desenvolvimento da espécie humana, ou seja, a concepção teleológica da natureza, é tratada também, especialmente, no §83 da “Metodologia da faculdade do juízo teleológico”, da Crítica da faculdade do juízo, p. 270-274; B, 388-395; Ak, 5:430-434. 170 da história não é o resultado de uma deliberação intencional, mas sim o resultado de uma natureza que o estimula a desenvolver suas potencialidades até que ele se dê conta do poder que tem, poder que é inteiramente diferente daquele da natureza121. A “Quarta proposição” da Ideia tem como enunciado: “O homem quer a concórdia, mas a natureza sabe mais o que é melhor para a espécie: ela quer a discórdia”122. É só a partir da decisão do indivíduo de enfrentar e superar os antagonismos da natureza, e, em especial, os da própria natureza humana, que ele vai conseguir progredir em sua espécie. Pelo fato de pertencer à natureza e pela necessidade de superar essa mesma natureza, o ser humano precisa de outro ser humano. Isso porque ele é dependente da natureza na qual está inserido e a qual lhe impõe obstáculos, mas ele também é dependente de outros seres humanos, não apenas enquanto seres naturais, mas enquanto seres que já superaram algumas dificuldades e já estão num grau de racionalidade mais desenvolvido. Sem outros seres de sua espécie, o ser humano não sobreviveria nos primeiros anos de sua vida. Os animais, logo que começam a sentir alguma força, usam-na com regularidade, isto é, de tal maneira que não prejudicam a si mesmos. [...] Mas o homem tem necessidade da própria razão. Não tem instinto e precisa formar por si mesmo o projeto de sua própria conduta. Entretanto, por ele não ter a capacidade imediata de o realizar, [...] outros devem fazê-lo por ele123. A proposta kantiana para a educação tem, portanto, como pano de fundo uma concepção segundo a qual a 121 Os textos em que Kant trata do conceito do sublime vão nessa direção. Ver especialmente o §28 da CFJ, p.106, B102; Ak, 5:260. 122 Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução de Rodrigo Neves e Ricardo Terra. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 9. 123 Sobre a pedagogia, p.11; Ak, 9:441. 171 natureza desempenha inicialmente um papel preponderante na vida humana, não só como natureza física, mas também como natureza especificamente humana, a qual traz em germe todo o potencial que a razão humana representa. A natureza física é trazida à baila por conta de um modelo de interpretação kantiano da história, segundo o qual a natureza tem como fim o aperfeiçoamento do ser humano. Mas, para que a natureza atinja seu fim, outros seres humanos, em função do desenvolvimento que conseguiram atingir, precisam ser atuantes. Nesse sentido, Kant chama a atenção para a ideia de que, para cada etapa do desenvolvimento humano, além da natureza física, está envolvida também toda a espécie humana. Ou seja, o grau de aperfeiçoamento que o ser humano atingiu não é apenas o resultado de seu progresso e empenho pessoal, mas daquele de toda raça humana. De fato, os conhecimentos dependem da educação e esta, por sua vez, depende daqueles. Por isso a educação não poderia dar um passo à frente a não ser pouco a pouco, e somente pode surgir um conceito da arte de educar na medida em que cada geração transmite suas experiências e seus conhecimentos à geração que lhe segue124. IV. AS PRÁTICAS A SEREM DESENVOLVIDAS NA EDUCAÇÃO Segundo Kant, se podemos pensar na educação como uma arte, seu procedimento teria de se orientar por quatro práticas que nada mais fariam do que desabrochar gradativamente “os germens que residem no ser humano”: a da disciplina, a da cultura, a da civilidade e a da moralidade. No entanto, ainda que essa divisão esteja presente em Sobre a pedagogia, ela não é mantida com muito rigor no decorrer do texto. O que foi tratado como pertencendo a uma prática é 124 SP, p. 20; Ak, 9:446. 172 retomado como pertencendo também à outra. Podemos dizer, levando em conta a preocupação principal de Kant, que nessa obra a divisão principal é estabelecida entre educação física e educação moral. Isso quer dizer que certos aspectos da cultura e mesmo da civilização acabam fazendo parte da educação física e deixando para a prática da moral aquilo que tem a ver mais diretamente com o desenvolvimento da autodeterminação e da formação do caráterda criança. Assim, as três primeiras práticas caem sob a rubrica da educação física e vão levar em conta os elementos corporais, intelectuais e emocionais da criança. A passagem de uma prática para a outra tem a ver com a passagem de uma atitude mais receptiva para uma mais ativa e autônoma. A prática da disciplina leva em conta principalmente a natureza animal do ser humano. Segundo Kant, a educação deve impedir que o que há nele de animal não o prejudique quando criança tanto em sua vida individual quanto em sua vida social. Para isso, no entanto, “seria melhor usar poucos instrumentos e deixar que as crianças aprendam muitas coisas por si mesmas; dessa forma aprenderiam mais eficazmente”125. Aqui, já estaria presente, ainda de forma embrionária nesse primeiro estágio da educação, a ideia de liberdade. Na medida em que se pressupõe livre, é possível para o educador estabelecer uma relação com a criança em que ela perceba seus limites, sem que com isso se sinta oprimida. “É preciso, diz Kant, sobretudo cuidar para que a disciplina não trate as crianças como escravos, mas sim que faça que elas sintam sempre a sua liberdade, mas de modo a não ofender a dos demais: daí que devam encontrar resistência”126. Ou seja, há de se pôr limites à vontade da criança, mas esse limite deve vir de uma forma que faça sentido para ela e que venha da forma mais natural possível: o limite de sua liberdade está no 125 SP, p.46; Ak, 9:462. 126 SP, p.50; Ak, 9:464. 173 respeito à liberdade dos demais. Esse limite é algo que ela tem de sentir como uma resistência à sua vontade. A prática da cultura é aquela na qual o ser humano não é visto principalmente em função de sua natureza animal, mas sim em função de sua natureza humana. Aqui, Kant insiste, mais uma vez, para que se preste atenção à natureza e ao que ela pode oferecer em favor do ser humano. Por meio da educação física, a criança é levada a se exercitar por si mesma para que tenha força, habilidade, rapidez e segurança, o que, por sua vez, a ajudará a lidar com situações da natureza que lhe são desfavoráveis. No desenvolvimento físico, os jogos desempenham um papel fundamental, pois eles “além de desenvolver a habilidade, provocam exercício dos sentidos; por exemplo, o exercício da visão, ao julgar com exatidão a distância, a grandeza e a proporção, ao descobrir posições dos lugares do céu com a ajuda do Sol, e assim por diante”127. Os jogos também mostram para a criança um pouco da vida em sociedade, pois, por meio deles é possível o exercício de não se ser inoportuno para com os outros e nem tampouco tirar vantagem deles. É preciso, por parte dos adultos, “não prejudicá-la em nada, não inspirar noções de comportamento que servirão apenas para torná-la acanhada e tímida, ou que, ao contrário, lhe sugiram o desejo de se fazer prevalecer”128. A prática da civilidade promove habilidades que possibilitam ao ser humano atingir os fins que ele quer para si. Kant dá como exemplo de habilidade o saber ler e escrever, ter condições de praticar alguma arte, como tocar algum instrumento. A prática da civilidade forma mais diretamente o indivíduo para a vida em sociedade. O indivíduo deve ser querido e influente em sua vida social. Isso requer dele o hábito da gentileza e da prudência. 127 SP, p.55-56; Ak, 9:467. 128 SP, p. 58; Ak, 9:469. 174 O último estágio da prática educacional é a da moralidade. Essa prática tem a ver com as escolhas que o ser humano faz. Nesse estágio do processo educacional, o foco não é a habilidade para se alcançar fins, mas a educação para que o homem possa escolher fins que possam ser considerados bons. Fins bons, diz Kant, são aqueles “necessariamente aprovados por todos e podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um”129. Um fim aprovado por todos tem de ter origem naquilo que todos os seres racionais têm em comum: a razão humana. Um fim bom é um fim determinado pela razão, sem a influência de nada sensível. Ter a vontade determinada pela razão pura significa recusar a influência que os sentidos têm sobre essa mesma vontade, o que gera desprazer. Pela prática da moralização vai sendo dada à criança a oportunidade para que ela saiba lidar com o desprazer em vista de um bem maior. Essa prática possibilita que a criança comece a reconhecer que o desprazer inicial acaba resultando num sentimento positivo de auto-satisfação, uma vez que ela agiu de acordo com um fim bom. Essa prática indica o caminho da autodeterminação e da autonomia, pois ser autônomo é fazer da lei da razão a sua máxima. Kant diz o seguinte a respeito do papel das máximas para o ser humano: A cultura da moral deve-se fundar sobre máximas, não sobre a disciplina. Esta impede os defeitos; aquelas formam a maneira de pensar. É preciso proceder de tal forma que a criança se acostume a agir segundo máximas e não segundo certos motivos. A disciplina não gera senão um hábito, que desaparece com os anos. É necessário que a criança aprenda a agir segundo certas máximas, cuja equidade ela própria distinga. Vê-se facilmente ser difícil desenvolver tal coisa nas crianças, e que por isso a cultura moral requer muitos conhecimentos por parte dos pais e mestres130. 129 SP, p.21; Ak, 9:450. 130 SP, p. 75; Ak, 9:480. 175 A dificuldade que Kant vê no processo de moralização reside no fato de que não basta que a criança, o jovem e o adulto sigam as leis da razão pura. É preciso que eles as sigam porque escolheram segui-las por elas mesmas e não por alguma recompensa que possam usufruir ou por alguma punição que possam sofrer. Embora Kant entenda que, em certas ocasiões, a criança deva ser punida, quando, por exemplo, mente, a educação moral consiste em fazer com que a criança aprenda gradativamente a respeitar a lei pela lei, o que na verdade representa o respeito pela razão pura. Seguir a lei gera, naquele que a segue, o sentimento de autocontentamento, resultante do fato de se ter feito o que devia ser feito. Esse sentimento, no entanto, não pode ser visto como algo análogo à felicidade, pois ele tem de acompanhar necessariamente a consciência da virtude131. Assim, toda prática da moralização envolve a adoção de máximas que determinam o que queremos ser. A adoção de uma máxima pressupõe que o ser humano seja capaz de pensar por si mesmo e decidir o que ele quer fazer de si. Talvez possamos dizer que a educação consiste na passagem da inteira dependência de um ser humano, a criança, em relação a outro ser humano, o adulto, até a sua independência em relação a esse. Daí Kant ter como o objetivo da educação o incentivo à prática da autonomia e da autodeterminação. V – A TÍTULO DE CONCLUSÃO Pelo tratamento que dá às questões levantadas pelos pensadores da modernidade; pelo fato de ter sido professor durante toda a sua vida; e, especialmente, pelos conceitos que formou no decorrer de sua filosofia crítica, conceitos de razão, de natureza humana, de história, de progresso, e especialmente, aqueles de liberdade e de autonomia, que 131 CRPr, p. 417; A,211; Ak, 5:117. Virtude para Kant é seguir a lei da razão. 176 possibilitam que a razão humana seja considerada de uma forma ampliada, Kant foi um filósofo que contribuiu para o reconhecimento do valor e da dignidade que os homens podem alcançar por serem racionais. Esses valores, por tudo aquilo que trazem consigo, dizem respeito à educação humana e ao fim mais importante que ela visa atingir: a formação do caráter e a prática da virtude. REFERÊNCIAS BITTNER, R. “Máximas”. Studia Kantiana 5 (2003):17-25. FOLEY RHYS DAVIDS, C.A. Kant and Education. Source: Introduction to Kant on Education (UeberPedagogik), trans. Annete Churton, (Boston: DC. Heath and Co., 1900). KANT, I. “M. Immanuel Kant´s announcement of the programme of his lectures for de winter semester 1765-1766”. In Theoretical Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1992 _______. “Essays regarding the Philanthropinum” (1776). In Anthropology, History and Education. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. _______. Crítica da razão pura (A1781; B1787). Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. _______. Prolegômenos (1783). Tradução de Tânia Maria Bernkopf. São Paulo: Coleção Os pensadores. Editora Abril Cultural, 1974. AA, 4:328. _______. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (1784). Tradução de Rodrigo Neves e Ricardo Terra. São Paulo: Martins Fontes, 2004. _______. Fundamentação da metafísica dos costumes (1785). Tradução de Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial e Editora Barcarolla Ltda, 2009. 177 _______. “Determination of the concept of human race” (1785). In Anthropology History and Education. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 153-154; 8: 99-100. _______. Crítica da razão prática (1788). Tradução de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2003. _______. Crítica da faculdade do juízo (1790). Tradução de Valério Rohden. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. _______. Metafísica dos costumes (1797), tradução de Edson Bini, São Paulo: Edipro, 2003. _______. Lógica. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. _______. Sobre a pedagogia (1803). Tradução para a língua portuguesa de Franscisco Cock Fontanella. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2006. LOUDEN, R. Anthropology, History and Education. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. WHITE BECK, L. Kant Selections. New York: Macmillan Publishing Company, 1988. WOOD, A. “General introduction” in: Practical Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. 178 Capítulo 10 RROOUUSSSSEEAAUU:: AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOOSS SSEENNTTIIMMEENNTTOOSS EE DDAASS VVIIRRTTUUDDEESS Ericson Falabretti Para formar um homem raro o que devemos fazer? Muito sem dúvida: impedir que nada seja feito. Rousseau Rousseau abre o Emílio reafirmando um princípio da sua filosofia sobre a relação entre cultura e natureza: “Tudo é certo em saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos do homem” (1992, p. 9). Degenerar, como a sequência do texto indica, significa mudar, transformar, desfigurar, moldar e, também podemos dizer, educar. Todavia, a educação, como a saída do estado de natureza em direção ao estado social, se impõe ao indivíduo e à espécie como uma das consequências de uma cadeia de relações historicamente estabelecidas: “... e o gênero humano, se não mudasse de vida, pereceria” (ROUSSEAU, 1978a, p. 31). No Discurso sobre a Desigualdade e no Contrato Social, a degeneração está antecipada nas próprias coisas e é colocada em curso pela associação entre os obstáculos à manutenção da vida e a capacidade própria da natureza humana em realizar progressos psicológicos e morais como reposta a esses obstáculos. No entanto, isso não significa dizer que a sociedade já estava presente no estado de natureza ou, mesmo, que no comportamento do homem natural já encontramos hábitos e disposições típicas do homem social; 179 mas, tão somente, enuncia a ideia de que a natureza carrega em si a possibilidade de uma condição não natural. Como na obra política, a educação pública e doméstica, nascida das mãos dos homens, é necessária para a continuidade da vida, pois a criança não educada – abandonada somente aos ensinamentos espontâneos da natureza – jamais chegaria a ser um homem: Nascemos fracos, precisamos de força, nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência, nascemos estúpidos precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos adultos, é-nos dado pela educação (ROUSSEAU, 1992, p. 10). Educar esse ser fraco e incompleto, na perspectiva de Rousseau, pode significar preservar e, ao mesmo tempo, transformar. A diferença entre a boa e a má educação, entre a boa e a má política, está na combinação desses dois princípios, na intervenção, seja coletiva ou individual, que coloca em curso um processo ambíguo com finalidades antitéticas: mudar para conservar ou para desfigurar. Mas conservar exatamente o quê? Mudar para qual direção? Na perspectiva rousseauniana, não apenas a vida, mas certo estilo ou princípio de vida precisa ser conservado e orientado para o seu fim. Para suprir a necessidade de continuidade de vida não é preciso transformar o homem retirando-o do seu curso natural. Seja na política ou na educação, tudo deve começar pela compreensão da natureza e pelo entendimento do homem: “Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana” (ROUSSEAU, 1992, p. 16). O pacto social deve garantir os direitos naturais – liberdade e igualdade – e a educação deve permitir que a criança passe à condição de homem, realizando as virtudes que estão previamente dadas na sua natureza. Desse modo, Rousseau, no Emílio, retoma o sentido de perfectibilidade como abertura e potência, conceito chave da 180 antropologia e da teoria da história construída no Discurso sobre a Desigualdade. O estudo da antropologia deve guiar a educação e a política, pois é fundamental conhecer os homens para educá-los e para determinar os seus direitos. No Segundo Discurso, Rousseau estabeleceu que no homem, somente no homem, podemos encontrar a liberdade e a perfectibilidade, marcas essenciais da natureza humana. Diferente dos animais, o homem pode se desviar do caminho traçado pela natureza ou pelo hábito, responder livremente, por exemplo, diante de uma situação qualquer e escolher um comportamento inédito e inesperado. Enquanto o animal age por instinto, o homem age por vontade, pode aprender com o meio e modificar o seu comportamento, desviando-se do caminho traçado pela natureza. Essa potência inventiva e adaptativa, exclusiva da natureza humana, é o que em Rousseau podemos denominar perfectibilidade: “É a faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra em nós, tanto na espécie quanto no indivíduo” (ROUSSEAU, 1978c, p. 243). Desse modo, para educar um homem, é preciso conhecer a natureza humana e entender até onde ele pode progredir sem deixar o seu centro natural, isto é, mudar de acordo com o que já está previamente dado como possibilidade, realizar a face virtuosa da sua perfectibilidade. Assim, a educação proposta por Rousseau não objetiva a invenção ou a transformação do homem em função de um modelo social ou metafísico; ao contrário, a boa educação deve permitir que o homem amadureça – tal como ocorre com as plantas - conforme a inclinação e as leis da sua própria ordem genuína. Nesse sentido, é preciso harmonizar o tempo da educação à lógica da própria natureza: “Observai a natureza e segui o caminho que ela vos indica” (ROUSSEAU, 1992, p. 22). No Livro I do Emílio, Rousseau apresenta como deve ser a educação de uma criança na sua primeira fase da vida, do nascimento aos dois anos de idade, e estabelece um princípio para guiar todo o processo de educação pensado para o 181 Emílio132 até a fase adulta: a liberdade. Rousseau quer atacar os preconceitos, os medos, as superstições e manias colocadas em prática na educação tradicional: “Trata-se de impedi-la de morrer que de fazê-la viver” (ROUSSEAU, 1992, p. 16). Com receio de acidentes e de uma morte prematura - como aquelas provocadas por quedas – ou incomodados pelo exercício ingênuo da liberdade infantil, o costume das mães e dos médicos era enfaixar as crianças como se fossem múmias. Na perspectiva de Rousseau, estamos diante de uma práticausual que fornece um importante elemento significativo do sentido da educação, não apenas para o corpo como, também, para o espírito: a dependência. Por isso, o maior problema, desde o início, não está em descobrir os cuidados mais importantes que devem ser dedicados à criança, para isso basta seguir a natureza e deixar a criança livre, nesse caso, literalmente solta. Nessa primeira fase, mais do que as crianças, são os pais, as amas, os médicos, os preceptores que devem ser vigiados e combatidos, isto é, educados. A criança é frágil e os cuidados para garantir a sua vida são aqueles solicitados pelo próprio corpo. A alimentação, por exemplo, não deve estragar o paladar, enfraquecer o físico e, por isso mesmo, deve ser a mais natural possível. Rousseau, falando principalmente para as mulheres nobres e burguesas, discute como as mulheres fundam o vínculo inicial com seus filhos, não recusando o primeiro ato que faz de uma mulher uma verdadeira mãe: a amamentação. E, nessa mesma direção, totalmente diferente dos preceitos da época, é a liberdade do corpo, dos movimentos que deve ser preservada e garantida para que o desenvolvimento físico e motor não sejam comprometidos: Toda a nossa sabedoria consiste em preconceitos servis; todos os nossos usos não são senão sujeição, embaraço e constrangimento. O homem civil nasce, vive e morre na 132 Utilizamos a palavra Emílio, em itálico, para designar a obra de Rousseau, e Emílio, sem itálico, para as referências ao personagem da obra. [Nota do organizador]. 182 escravidão; ao nascer, envolvem-no em um cueiro; ao morrer, encerram-no em um caixão; enquanto conserva sua figura humana está acorrentado às nossas instituições (ROUSSEAU, 1992, p. 17). Esses preceitos de uma má-educação, antes de serem descritos no Emílio, encontram a sua expressão política no Discurso Sobre as Ciências e as Artes. Na sua primeira obra, Rousseau critica o sistema de educação responsável por perverter o espírito e enfraquecer o corpo e, o mais importante, constata que esse processo de corrupção é uma imposição das relações de poder – hábitos, instituições políticas e sociais – historicamente estabelecidas. Em nossa sociedade, a educação, enquanto um fenômeno de cultura, atende somente à cultura e à sociedade, não ao homem: “Vossos filhos ignoram a própria língua, mas falarão outras que em lugar algum se usam: saberão compor versos que dificilmente compreenderão; sem saber distinguir o erro da verdade...” (ROUSSEAU, 1978d, p. 347). No caso do homem social, a educação está intimamente associada ao processo histórico de relações de dependência e alienação. Educar, no contexto da história factual descrita no primeiro Discurso, significa valorativamente conduzir mal, degenerar para transformar contra a natureza. Semelhante ao papel desempenhado pelas letras e pelas artes, a educação faz com que os homens amem a sua condição de escravos. Cria, para tanto, a uniformidade do gosto, o conformismo estético e molda a conduta moral no decoro e nas regras de polidez: “Se a cultura das ciências é prejudicial às qualidades guerreiras, ainda o é mais às qualidades morais. Já desde os primeiros anos, uma educação insensata orna nosso espírito e corrompe nosso julgamento” (ROUSSEAU, 1978d, p. 347). Na avaliação de Rousseau, essa má condução se realiza integralmente como um processo de desnaturação, que faz com que os homens adquiram a condição de civilizados: viver em função da 183 aparência, do reconhecimento público. Portanto, como está descrito no Discurso sobre as ciências e as artes, a educação assim como as ciências e as letras, sempre servindo aos interesses do poder político, suplantam a natureza para instaurar e conservar os homens obedientes a uma ordem e condição artificiais: “Temos físicos, geômetras, químicos, astrônomos, poetas, músicos, pintores; não temos mais cidadãos ou, se nos restam alguns deles dispersos pelos nossos campos abandonados, lá perecem indigentes e desprezados” (ROUSSEAU, 1978d, p. 348). Como resposta a esse processo de alienação, ao desprezo pelas virtudes e pelo cidadão, encontramos em Rousseau as alternativas da obra política e da educação articuladas em torno de duas perspectivas que já adiantamos: a transformação e a preservação. Com o Contrato Social, temos a formação de uma ordem civil que oferece aos homens a condição de viverem em sociedade conservando, do ponto de vista do direito político, as mesmas relações que dispunham no estado de natureza. No entanto, paradoxalmente, para realizar o pacto social os homens devem ser desnaturados. Para formar uma sociedade de homens livres, sob o governo da vontade geral, não servem nem os selvagens e, muito menos, os homens policiados acostumados ao gosto da servidão. É fundamental romper radicalmente com o estado de natureza – transformar as condições de vida - para que o pacto social possa garantir – preservar – os direitos naturais. Assim, é a própria condição do cidadão - autônomo sem ser selvagem - juntamente com os princípios do direito político, que determinam como deve ser a educação no interior de um estado legítimo: desnaturar o homem para preservar os seus direitos. Aquele que, na ordem civil, deseja conservar a primazia da natureza, não sabe o que quer. Sempre em contradição consigo mesmo, hesitando entre as suas inclinações e os seus 184 deveres, nunca será nem homem nem cidadão; não será bom nem para si nem para outrem. Será um dos homens de nossos dias, um francês, um inglês, um burguês; não será nada (ROUSSEAU, 1992, p. 13). Essa lógica ambígua do pensamento rousseauniano – transformar para preservar - não parece nada estranha, seja no interior do Contrato Social ou mesmo como resultado de uma sociedade corrompida. Nesse último caso, a nossa própria experiência testemunha os prejuízos à liberdade que resultam do nosso sistema educacional. Nesse aspecto, como já indicamos na análise acerca do Discurso sobre as Ciências e as Artes, a educação forma o homem sempre em função dos interesses da sociedade politicamente estabelecida: “Tais foram os antigos persas, nação singular no seio da qual se apreendia a virtude, como entre nós se aprende a ciência” (ROUSSEAU, 1978d, p. 338). Na dimensão do Contrato Social, podemos dizer, a desnaturação é necessária e boa. Já para a sociedade de fato – constituída historicamente – ela é instrumento do poder – de dominação – e se caracteriza como meio de degeneração: “Se nossas ciências são inúteis no objeto que se propõem, são ainda mais perigosas pelos efeitos que produzem” (ROUSSEAU, 1978d, p. 343). Mas, então, podemos nos perguntar: fora do Contrato Social estamos condenados a uma educação alienante? Na sociedade forjada historicamente é possível uma boa educação que respeite a condição essencial do homem, a sua autonomia? Ainda mais: quando a possibilidade de uma boa educação, no interior dessa sociedade ilegítima, também deve desnaturar? De imediato, podemos dizer sim para as duas primeiras questões. Primeiro, porque não há espaço na sociedade para que o homem se comporte conforme os seus impulsos naturais. Isso significaria a ruína do homem e, ainda, do próprio liame social. Depois, a ordem social supõe um homem social, não tem sentido lógico pensar em constituir uma 185 sociedade para selvagens ou, ainda, educar um homem para ser um selvagem. Mas, então, como desnaturar o homem sem fazê-lo perder a sua autonomia? Esse, sem dúvida alguma, é o problema fundamental com que a obra Emílio se depara. Como educar o Emílio para o mundo e, ainda, conservá-lo livre? O caminho indicado por Rousseau supõe uma opção pela educação doméstica ou privada. Primeiro, é preciso considerar que a educação pública, no sentido que encontramos na República de Platão, somente seria indicada se ainda pudéssemos contar com cidadãos e com pátria, masessas palavras, como diz Rousseau (1992, p. 14), “devem ser riscadas das línguas modernas”. Depois – retomando a mesma perspectiva crítica construída no primeiro Discurso – todas as instituições educacionais abertas ou públicas, sempre colaborando com o espírito de sociabilidade da modernidade, “somente servem para fazer homens de duas caras, parecendo sempre tudo subordinar aos outros e não subordinando nada senão a si mesmos” (ROUSSEAU,1992, p. 14). Mas, então, em que consiste essa educação doméstica? E como, de modo geral, ela pode responder positivamente às exigências de autonomia e transparência numa sociedade que recusa essas condições aos seus cidadãos? O princípio geral da educação doméstica, completamente contrário à direção formativa da educação pública, está orientado para a conservação da liberdade e da autonomia natural como modelo do homem a ser formado: “O homem deve ser educado para si mesmo” (ROUSSEAU, 1992, p. 23). O que significa isso? Ao enunciar esse princípio – “ser educado para si mesmo” – Rousseau, nesse caso, não estaria reproduzindo os valores e as orientações de uma educação individualista, muito próxima, por exemplo, ao modelo de educação burguesa? Toda nossa educação aberta – institucional - está fundada na realização de um projeto de vida individual, porém sem qualquer fundamento com a nossa subjetividade, com a realização de um homem autônomo, pois 186 esse projeto está estruturado em um arquétipo exterior, em um modelo de homem construído pela sociedade. Desde a infância, somos educados para sermos professores, médicos, engenheiros, políticos ou, até mesmo, para sermos nada. O que importa nesse processo massificante é ser capaz de atender ao chamado pré-determinado dos pais ou da sociedade e, desse modo, constituir uma carreira, ou, ainda, realizar um projeto que, em última instância, se sobrepõe à nossa condição existencial originária e aos nossos verdadeiros interesses. Ao criticar a educação, Rousseau (nós podemos generalizar a sua análise) identifica uma crise que se revela moral. Esse projeto individualista que conduz a educação significa, entre outras coisas, desaparecimento da virtude e da vontade originária do sujeito. A opção por essa educação pública burguesa, individualista e massificante, é a opção pela não virtude e, além disso, pela supressão de uma vida guiada pela própria vontade: Na ordem social onde todos os lugares estão marcados, cada um deve ser educado para o seu. Se um indivíduo, formado para o seu, dele sai, para nada mais serve. A educação só é útil na medida em que a carreira acorde com a vocação dos pais; em qualquer outro caso ela é nociva ao aluno, nem que seja apenas em virtude dos preceitos que lhe dá. No Egito, onde o filho era obrigado a abraçar a profissão do pai, a educação tinha, pelo menos, um fim certo. Mas entre nós, quando somente as situações existem e os homens mudam sem cessar de estado, ninguém sabe se, educando o filho para o seu, não trabalha contra ele (ROUSSEAU, 1992, p. 15). No sentido contrário desse processo dominante, ser educado para si mesmo significa, na perspectiva rousseauniana da educação doméstica, atender ao chamado da natureza: apreender a viver, isto é, apreender a guiar a vida em função daquelas virtudes reconhecidas no homem antes do processo de corrupção e degeneração suplantá-las. No Emílio, Rousseau pensa a educação a partir de virtudes 187 complementares e inseparáveis presentes no homem natural: resignação, autodeterminação, transparência e reconhecimento. Primeiro, ser virtuosamente instruído – educado – é verdadeiramente apreender a viver. Nesse sentido, antes de ser formado para seguir uma determinada profissão, antes de apreender as virtudes cívicas, Emílio, como todo aluno, deve conhecer a sua própria natureza – o corpo e o espírito – e os deveres e sentimentos necessários para se conservar na condição de homem: Na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação comum é o estado de homem (...) Que se destine meu aluno à carreira militar, à eclesiástica ou à advocacia pouco importa. Antes da vocação dos pais, a natureza chama-o para a vida humana. Viver é o ofício que lhe quero ensinar (ROUSSEAU, 1992, p. 15). Na perspectiva da pedagogia rousseauniana, apreendemos a viver quando não saímos do curso na natureza e, sobretudo, quando elevamos a autodeterminação ao seu grau mais extremo: a nossa felicidade independe de tudo o que nos é estranho. É preciso considerar que fora do estado de natureza ou do contrato social quase não há possibilidade de autodeterminação, ou somos educados para reproduzir o mesmo estilo de vida – agradar aos outros – e, nesse caso, integramos o “rebanho chamado sociedade” ou, ao contrário, resistimos à corrupção e nos tornamos anômalos em relação aos homens em sociedade. Aí está o grande problema a ser enfrentado pelo preceptor do Emílio: como se conservar, apreender a viver – ser chamado a si mesmo – e, ao mesmo tempo, viver em sociedade e interagir com os homens? Emílio viverá numa sociedade real, obedecerá às leis do Estado e, inevitavelmente, se entregará ao convívio social. Apreender a aceitar que a vida é dolorosa, triste e solitária é seu primeiro desafio, é o passo inicial para ser educado como homem e a viver em si mesmo: 188 O destino do homem é sofrer em qualquer época. O próprio cuidado da sua conservação está ligado à dor. Felizes os que só conhecem na infância os males físicos, males bem menos cruéis, bem menos dolorosos do que os outros e que bem mais raramente do que eles nos fazem renunciar à vida! Ninguém se mata com dores de gota; somente as da alma suscitam o desespero. Temos dó da sorte da infância, mas é da nossa que deveríamos ter. Nossos maiores males vêm de nós mesmos (ROUSSEAU, 1992, p. 23). Depois de ser educado para aprender a sofrer, para aceitar que mesmo sendo bom dificilmente será feliz, um desafio ainda maior será saber viver entre os homens sociáveis sem, contudo, reconhecer-se neles. O Emílio deve ser solidário e, ao mesmo tempo, independente. Nesse sentido, se ele precisa ser educado para suportar as agruras da vida, também deve evitar sucumbir aos maiores vícios que nascem do próprio sujeito e, de certa forma, não deixam de ter relação direta com a miserabilidade da vida: o medo da morte e da dor. Mas quais seriam esses males descendentes diretos da consciência da morte e do medo da dor? Na perspectiva da pedagogia rousseauniana, o amor próprio e a indiferença estão na origem dos vícios e das falsas virtudes sociais e devem o seu nascimento principalmente às nossas fraquezas e aos nossos medos. Depois de ensinar ao Emílio que o sofrimento é inevitável, combater o amor próprio e a indiferença, sentimentos que formam a alma e o caráter do homem social, é, sem dúvida alguma, o principal desafio da pedagogia rousseauniana. No segundo Discurso e no Ensaio sobre a origem das línguas, Rousseau concebe, no homem selvagem, dois preceitos que governam o seu comportamento e que são anteriores à razão; um referente à autodefesa (que interessa somente à preservação do indivíduo) e outro definido como piedade. Com isso, Rousseau tematiza como o comportamento do 189 homem selvagem era imediato, e ao mesmo tempo, com a definição de piedade (atributo que confere ao homem selvagem a disponibilidade de agir com violência somente quando está em jogo a sua sobrevivência), procura refutar todos aqueles filósofos, como Aristóteles, por exemplo, que confundiram, na interpretação de Rousseau, o homem selvagem com o homem social. A sociabilidade para Rousseau, como já adiantamos no início desse texto, não está de modo algum inscrita na natureza humana como pensava Aristóteles: pois se, por um lado, a piedade conduz o homem em direção a outro semelhante, por outro lado, o sentimento de autodefesa, para equilibrar, insiste em afastá-lo. A piedade funciona como umaespécie de paixão reguladora, normatizadora do sentimento de autodefesa, impedindo, desse modo, que o homem selvagem seja tomado por uma individualidade sem limites, guiado unicamente por um sentimento egoísta, suscetível de cometer atos de violência gratuitos, como no estado de natureza que Rousseau entendeu ser aquele que Hobbes defendia em suas obras: “Hobbes pretende que o homem é naturalmente intrépido e não procura senão atacar e combater” (ROUSSEAU, 1978c, p. 239). No Ensaio sobre a origem das línguas, Rousseau nos apresenta a ideia de que um homem, para realmente entender a natureza dos seus sentimentos e das paixões que se passam no seu interior, precisa travar contatos com outros homens. O próprio desenvolvimento das paixões, da piedade natural, por exemplo, pressupõe uma relação de proximidade entre os homens. Não é a piedade natural, descrita no segundo Discurso e no Ensaio, aquele sentimento que - ao contrário da piedade característica dos homens civilizados, que consiste em separá-los - nasce no selvagem de uma relação de identidade com o seu semelhante? Relação que o impede, sobretudo, de ser agressivo com outro homem, não por temer vingança, represálias ou, ainda, por algum imperativo moral que abomine a violência. Mas, fundamentalmente, a piedade 190 natural conduz esse homem a sair de si, a se colocar no lugar do outro e, nesse instante, a compreender, em primeiro lugar, o significado e as consequências da violência para o outro. Somente, então, depois de se colocar no lugar do outro, depois de experimentar o sentimento de identidade, o homem natural era capaz de formar a ideia do que é um ato de agressão em si mesmo. Nesse sentido, uma das condições essenciais para que o sujeito possa realmente conhecer os seus estados subjetivos, formar novas ideias e sentimentos é que ele já tenha observado e comparado estados semelhantes em outros homens. Como nos deixamos emocionar pela piedade? Transportando- nos para fora de nós mesmos, identificando-nos com o sofredor. Só sofremos enquanto pensamos que ele sofre; não é em nós, mas nele que sofremos. Figuremo-nos quanto de conhecimentos adquiridos supõe tal transposição. Como poderia eu imaginar males dos quais não formo ideia alguma? Como poderia sofrer vendo outro sofrer, se nem soubesse que ele sofre? Se ignoro o que existe de comum entre ele e mim? Aquele que nunca refletiu, não pode ser clemente, justo, ou piedoso, nem tampouco mau e vingativo. Quem nada imagina não sente mais do que a si mesmo: encontra-se só no meio do gênero humano (ROUSSEAU, 1978b, p. 175). A piedade natural é, sobretudo, reconhecimento, transparência, negação da indiferença. No homem natural o que impera é o equilíbrio entre o amor de si e a visão do outro. No segundo Discurso, a piedade natural se explica, conforme as palavras de Rousseau, pela seguinte máxima: “Procure o teu bem causando o menor mal possível e outrem” (ROUSSEAU, 1978c, p. 254) É a experiência da piedade natural que deve ser preservada pela educação, esse sentimento inato e anterior a todo ato de reflexão, capaz de espontaneamente produzir no homem uma aversão de ver sofrer dor ou morte, qualquer outro ser sensível, sobretudo quando se trata de um semelhante. Desse modo, no livro IV do Emílio, Rousseau 191 retoma a piedade como sentimento moral que deve reforçar os laços entre os homens civilizados, verdadeiro antídoto contra o individualismo e o amor próprio, sentimentos reforçados pelo projeto individualista da educação pública historicamente estabelecida: Em uma palavra, ensinai a vosso aluno a amar todos os homens, inclusive os que os desdenham; fazei com que ele não se coloque em nenhuma classe, mas que se encontre em todas; falai diante dele, e com ternura, do gênero humano, com piedade até, mas nunca com desprezo. Homem, não desonres o homem (ROUSSEAU, 1992, p. 253). A piedade, independente do fundamento no estado natural, na sociedade depende de uma educação adequada dos nossos sentimentos, seja através da razão ou da imaginação. No Emílio, Rousseau quer dar continuidade a esse sentimento inato, pois a piedade, agora pensada na educação do homem social, converte-se, primeiro, na consciência de que o sofrimento domina a vida social e, depois, produz em nós o sentimento de vergonha da ausência de resposta. Para existir a piedade, no contexto de fato pensado no Emílio, não se depende de uma sociedade livre e constituída de homens transparentes. No Emílio, ela é uma alternativa ao projeto da vontade geral e constitui o elo natural entre as pessoas que não realizaram nenhum pacto. É o liame mudo – não dito, não pactuado – instituído pela própria natureza, agora reforçado pela educação. É o sentimento que torna possível estabelecer relações de reconhecimento numa sociedade orientada para a indiferença. Ao atribuir à piedade essa força de aproximação e transparência, Rousseau encontra um aspecto novo na política, agora distinto das operações de direito. No Emílio, a piedade é o fator mais importante de aliança entre as pessoas, o único sentimento que torna possíveis as relações cooperativas e benévolas entre os homens em escala individual e social. Pois ela permite aos homens encontrar uma base segura para si 192 mesmos na vida: o reconhecimento. Não é, portanto, o direito e, por consequência, não é o Estado que produz a justiça, mas um sentimento que deve ser desenvolvido pela educação. Apesar de ser inata, a piedade, fundamentalmente na sociedade, não é espontânea, é preciso ser cultivada, precisamos ser educados para a compaixão. Nesse sentido, antes de tudo, é preciso discutir como a piedade opera no homem: combatendo o amor próprio e restaurando o equilíbrio e, finalmente, aproximando os homens. Primeiro, a piedade natural não apenas combate os ímpetos egoístas do amor-próprio, mas garante a continuidade do equilíbrio pela oposição das paixões: o amor de si e a piedade. O amor de si é uma paixão primitiva, que nunca deixa o homem, fonte de todas as outras; visa antes de tudo garantir a própria conservação; mas inclina-se para o outro; satisfaz-se quando as necessidades estão saciadas. O amor de si é o sentimento do querer, a boa intenção é a base desse amor que não separa o ato de realizar o bem do sentimento de querer o bem: “O que nos serve, nós o procuramos; mas o que nos quer servir, nós o amamos. O que nos prejudica nós evitamos; mas o que nos quer prejudicar nós o odiamos” (ROUSSEAU, 1992, p. 236). Já o amor próprio, nascido dos nossos vícios, fonte de conflitos, é integralmente egoísta e está na origem das paixões “odientas e irascíveis”: a inveja e a necessidade de honra desmedida. O amor próprio não opera com o reconhecimento, mas com a comparação; exige sempre do outro preferência e distinção. O amor próprio é o sentimento da aparência, da vida social, da honra etc. Diferente do amor próprio, a piedade está na origem de todos os sentimentos que aproximam as pessoas. É natural, por exemplo, que uma pessoa ajudada sinta gratidão por quem a ajudou. A gratidão, nesse caso, é apreciação, avaliação e valoração do outro. Quem ajuda, sente compaixão, apreende que tem valor, assim como aquele que é ajudado: 193 reciprocidade de valoração, o amor de si se realiza na compaixão pelo outro. Para manter o equilíbrio entre a piedade e o amor de si é preciso, através da educação, primeiro na criança, conservar a sua disposição natural para a piedade: “o primeiro sentimento de uma criança é amar a si mesma; o segundo é amar aos que dela se aproximam” (ROUSSEAU, 1992, p. 236). Depois, no caso do adolescente, é preciso educá-lo para o reconhecimento do outro, ampliando a sua ideia de sofrimento: “Aos dezesseis anos o adolescente sabe o que é sofrer [...] mal sabe, porém, que os outros seres também sofrem” (ROUSSEAU, 1992, p. 248). Portanto, a piedade nasce da consciência da semelhança e do sofrimento, é a saída desi mesmo; é a identificação com o outro: Com efeito, como nos comoveremos até a piedade, senão em nos transportando para fora de nós mesmos e nos identificando com o animal sofredor, abandonando, por assim dizer, nosso ser para pegar o dele? Nós só sofremos na medida em que julgamos que ele sofre; não em nós é nele que sofremos (ROUSSEAU, 1992, p. 249). No Emílio, Rousseau pensa a educação a partir de um ponto de vista restritivo. É preciso que o progresso do Emílio se conforme aos limites da espécie e das paixões naturais. Ser instruído – educado - verdadeiramente é aprender a suportar os bens e os males desta vida sem se curvar, conservando-se autônomo. O Emílio é educado fora do Contrato Social, cercado de pessoas egoístas, dissimuladas e corrompidas nas suas vontades, ele deve se constituir em um ser moral que, ao mesmo tempo, preserve a sua autonomia e se permita viver entre essas mesmas pessoas. Quando pensamos na piedade, o maior desafio enfrentado pelo Emílio, portanto, num sentido contrário do cidadão que aderiu ao Contrato Social, é se conservar e aprender a viver entre os homens como um cidadão livre e, ao mesmo tempo, realizar o estilo de vida dos 194 homens do seu tempo - casar por exemplo – e participar politicamente da vida de seu país. No livro quinto do Emílio, parte final da obra, Rousseau debate esse problema de maneira muito pontual. Após viajar por diversas nações, aprender as línguas mais faladas na Europa, apreciar espetáculos e obras de arte, conhecer diferentes costumes e sistemas de governo, Emílio responde ao seu preceptor o que aprenderá, o que fixará dessa etapa necessária do seu processo de educação. Primeiro, responde indicando uma espécie de inação política: “Parece-me que para se tornar livre nada se tem que fazer; basta não deixar de sê-lo” (ROUSSEAU, 1992, p. 570). Depois, na mesma linha, manifestando um sentimento de letargia diante dos bens materiais e do próprio futuro, diz ao seu mestre: “Que farei com a minha fortuna? [...] Não me atormentarei para retê-la, mas ficarei firmemente no meu lugar” (ROUSSEAU, 1992, p. 570). Finalmente, decepcionado com o mundo que conheceu de perto em sua diversidade, Emílio expressa a liberdade como conformismo, apatia, aceitação diante do próprio destino: “Que me importa a minha condição na terra? Que me importa onde esteja?” (ROUSSEAU, 1992, p. 570). A esse “desinteresse extremado” - novamente é o problema da indiferença que está em causa - nascido da decepção com os costumes dos homens e com as sociedades e governos, Rousseau contrapõe o apelo à consciência das leis naturais, verdadeiros princípios de ordem e de moral que “servem de lei positiva para o sábio” (ROUSSEAU, 1992, p. 571). Emílio realmente não encontrou essas leis em nenhuma forma governo ou sociedade que visitou, pois elas não dependem de convenções, mas estão, como Rousseau quer finalmente ensinar ao Emílio, “no coração do homem livre, ele as carrega por toda parte consigo” (ROUSSEAU, 1992, p. 571). Um homem virtuoso, que conserva em si mesmo intactos a paixão da piedade e o sentimento de liberdade, recusa a inação política e o projeto de uma vida consagrada unicamente 195 aos seus interesses privados. O homem virtuoso é capaz de reconhecer e encontrar nas leis positivas e nos costumes, mesmo entre o caos e a injustiça, princípios de justiça e ordem: “A simples aparência de ordem leva-o a conhecê-la e amá-la [...] Não é verdade que não tire nenhum proveito das leis, elas lhe dão a coragem de ser justo entre os maus [...] Não digas portanto: que me importa onde esteja? Importa estares onde podes cumprir teus deveres” (ROUSSEAU, 1992, p. 572). O Emílio e o cidadão do Contrato Social, semelhante ao selvagem, devem ser auto-suficientes e solitários; devem cultivar o amor de si e a piedade; devem participar das assembleias púbicas e, mesmo assim, votar com a própria consciência, devem reconhecer, amar e reforçar na própria pátria as virtudes cívicas que se escondem sob o espesso manto da corrupção e da aparência. O dilema do Emílio se converteu no drama do próprio Rousseau. Na sua narrativa autobiográfica dos Devaneios de um caminhante solitário, é o princípio de educação do Emílio – piedade e resignação - e a sua condição de vida – a solidão – que animam o texto da primeira à última página. A resignação e a piedade – apreender a aceitar os males da vida e a amar a humanidade – são os sentimentos de um homem livre capaz de reconhecer a sua natureza, ainda que desfigurada pela história e pelas convenções: Teria amado os homens a despeito deles próprios. Cessando de sê-lo, não puderam senão furtar-se ao meu afeto. Ei-los, portanto, estranhos, desconhecidos, inexistentes enfim para mim, visto que o quiseram. Mas eu, afastado de tudo e de todos, que sou eu mesmo? (ROUSSEAU, 1986, p. 23). Na busca do autoconhecimento – educação para si mesmo - é impossível para o sujeito não reconhecer a oposição de um jogo de forças que moldam o seu comportamento, a sua disposição moral. A autonomia, nesse caso, não remete mais a uma unidade, mas ao reconhecimento de uma divisão que 196 opõe a força das normas do instinto moral diante dos imperativos ditados pela sociabilidade. O rompimento como a unidade histórica, a tentativa de resgate da unidade essencial perdida supõe uma nova pedagogia. A autonomia, no Emílio encontra, enfim, o seu lugar na educação dos sentimentos, no cultivo do deslocamento do eu em direção ao outro. Na obra Emílio Rousseau segue, de certo modo, a estrutura argumentativa do segundo Discurso. Como o homem natural, o Emílio – o educando – está fora do tempo, não tem pai, não tem mãe, é o modelo universal da criança, não representa nenhuma criança singularmente, representa a criança em essência. Nesse caso, é a criança antes da corrupção dos costumes e da educação: é preciso, pois, “considerar nosso aluno o homem abstrato, o homem exposto a todos os acidentes da vida humana” (ROUSSEAU, 1992, p. 16). A educação rousseauniana tem como desafio preparar a criança para viver em sociedade, cumprir os seus deveres de cidadão e, ao mesmo tempo, conservar-se livre. Nesse sentido, o Emílio deve ser educado para ser um sábio, no entanto, totalmente distinto da forma corrompida do sábio, aquele com respostas para todas as dúvidas. O Emílio tem mais perguntas do que respostas, ele é educado com vistas ao autodomínio, à compreensão do sentido aberto do seu tempo e da vida dos seus semelhantes. Outro ponto, que explica essa condição de sábio, é que o Emílio, desde a sua infância, não é visto como aluno, mas como discípulo da natureza. O Emílio não está diante de um professor, mas de um mestre que é, como ele próprio, abstrato e impessoal. O professor trabalha com um conjunto de conteúdos que precisam ser apreendidos pelo aluno num determinado tempo. O mestre está sempre voltado para o próprio discípulo, para a realização de uma essência: no caso do Emílio, para a formação do homem e do cidadão. A pedagogia rousseauniana, portanto, enquanto educação dos sentimentos e das virtudes, procura unir o que a história 197 separou: cultura e natureza. No Emílio, Rousseau aponta para uma pedagogia que busca o desenvolvimento de um homem que permanece ligado ao seu centro natural para continuar a ser, verdadeiramente, um homem. REFERÊNCIAS ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1978a. _______. Ensaio sobre a origem das línguas. São Paulo: Abril Cultural, 1978b. _______. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Abril Cultural, 1978c. _______. Discurso sobre as ciências e as artes. São Paulo: Abril Cultural, 1978d. _______. Considerações sobre o governo da Polônia e sua reforma projetada. São Paulo: Brasiliense, 1982. _______. Os Devaneios de um caminhante solitário. Brasília: Editora da Universidade deBrasília, 1986. _______. Emílio ou da Educação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992. _______. Carta a D’Alembert. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. _______. Júlia ou a nova Heloísa. Campinas: Editoras da Universidade de Brasília e da Unicamp, 1994. 198 Capítulo 11 HHEEGGEELL,, HHIISSTTÓÓRRIIAA DDAA FFIILLOOSSOOFFIIAA EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO Luiz Fernando Barrére Martin Desde a publicação de suas primeiras obras, Hegel já demonstra preocupação com o papel da história da filosofia para a filosofia. A solução hegeliana para a relação da filosofia com sua história trará como consequência um certo modo de considerar o estudo da história da filosofia e, além disso, seu ensino. Dessa perspectiva, surgem questões como a seguinte: de que maneira se deve ler um filósofo? Qual a relevância efetiva da história da filosofia para a filosofia? O estudo da história da filosofia consistiria numa abdicação da própria filosofia? Teria apenas um caráter de erudição o conhecimento e o estudo da história da filosofia? Questões como essas podem ser feitas quando pretendemos debater a respeito do papel da história da filosofia para a filosofia e, além disso, que espécie de ensino da filosofia podemos esperar a partir dessa relação. Hegel pode ser considerado talvez o primeiro filósofo a explicitamente se referir a esse relacionamento da filosofia com sua história de maneira positiva. Dessa maneira, o passado da filosofia começa, segundo Hegel, a ter relevância para a filosofia. O que buscamos tão somente neste estudo é voltarmos os olhos para o ensaio de Hegel no qual aparece pela primeira vez essa temática. Trata-se de sua primeira publicação, a saber, o escrito Diferença entre o sistema da filosofia de Fichte e de 199 Schelling (HEGEL, 1968). Nele já se desenha de modo bastante nítido essa exigência de relevância da história da filosofia para a filosofia. Mas, antes de efetivamente se dedicar a expor essa relação entre a filosofia e sua história, Hegel primeiro procura criticar duas maneiras de compreensão desse relacionamento existentes em sua época. Assim, o filósofo desenvolve uma crítica ao que ele denomina de visão histórica dos sistemas filosóficos a partir de uma dupla divisão dessa forma de abordagem da história da filosofia. Num primeiro momento, Hegel criticará uma forma geral de visão histórica. Segundo o que preconiza essa visão, a história da filosofia consistiria numa mera doxografia, ou seja, numa história das opiniões filosóficas aparecidas no decorrer da história. Já o segundo momento da crítica é dirigido a uma concepção histórica que parte de uma representação da filosofia como uma espécie de ofício (Handwerkskunst) que se aperfeiçoa com o passar do tempo (HEGEL, 1968, p. 10). Poderia então ser incorporada à filosofia a noção de progresso. Com referência à visão propriamente histórica das filosofias, é característico da mesma o distanciamento que ela toma em relação aos sistemas filosóficos, na medida em que por eles se interessa apenas como um conhecimento sem importância. Ela não estabelece nenhum vínculo com os sistemas. É como se apenas tomasse ciência de que eles existem e isso fosse suficiente. Existem os sistemas A, B, C, D etc. Desta perspectiva, nenhum pode ser mais interessante do que o outro. A rigor, é indiferente para a vista histórica interessar-se por este ou por aquele sistema. À maneira de uma erudição vazia, ela cuida apenas de acrescentar à sua coleção este sistema, aquele sistema, mais aquele outro, de acordo com o ritmo descompassado de sua curiosidade. A visão histórica, portanto, não passa de um acumular de conhecimentos mumificados. Nas palavras de Hegel, trata-se de uma “curiosidade que coleciona conhecimentos” (HEGEL, 1968, p. 9). E no caso da filosofia, um conhecimento de pouco 200 valor, uma mera opinião: “ela [a visão histórica] não pode estabelecer outra forma de relacionamento com os sistemas filosóficos do que a seguinte: que eles são opiniões; e tais acidentes, como opiniões, não podem nada contra ela”133. Um conhecimento, não uma ciência (Wissenschaft), esse é o destino da filosofia segundo a visão histórica. É somente numa época em que a potência da vida cada vez mais se enfraquece que a enfastiada visão histórica pode surgir. E não há como não pensar num fenecer da vida quando se lê a descrição hegeliana da atitude histórica. A todo momento se associa a mesma à ideia de morte. Veja-se este trecho: “Uma época que tem atrás de si jazendo como um passado (morto) uma tal quantidade de sistemas filosóficos, parece dever chegar àquela indiferença, que a vida chega, após ter se experimentado em toda sorte de formas” (HEGEL, 1968, p. 9). Em primeiro lugar, é significativo que Hegel utilize o verbo liegen para se referir aos sistemas filosóficos considerados segundo a perspectiva de uma época que adotou a visão histórica a respeito dos mesmos: esse verbo (liegen) pode ter o sentido de jazer, e jazer significa estar morto, o que bem casa com a ideia que Hegel quer exprimir no trecho supracitado. No contexto em questão, no qual se pretende mostrar que a vida está no antípoda do que preconiza a visão histórica, ter o verbo liegen o sentido há pouco indicado, ressalta essa ideia de que os sistemas filosóficos do passado são apenas objetos de curiosidade a respeito de algo que não tem mais importância, que está morto134. Ao contrário, e é isso 133 Nas suas considerações sobre a noção de história da filosofia, diz Hegel a respeito da opinião: “O que nós podemos em primeiro lugar considerar como consequência daquilo que precede, é que em história da filosofia nós não lidamos com opiniões. Na vida comum, é verdade, temos opiniões, isto é, ideias a respeito das coisas exteriores; um pensa isso, o outro pensa aquilo. Mas o trabalho do espírito do universo é mais sério; lá se encontra a universalidade. Trata-se aqui das determinações gerais do espírito; não é questão aqui de opiniões referentes a isso ou aquilo” (HEGEL, 1990, p. 145). 134 Ainda contra a visão histórica, veja-se o seguinte comentário de Hegel: “Aquilo que é histórico, a saber, do passado, não é mais, está morto. A tendência histórica abstrata, 201 que Hegel quer afirmar em contraponto à atitude histórica, “o espírito vivo, que habita numa filosofia, requer, para se revelar, ser gerado por um espírito de mesma família (verwandt)” (HEGEL, 1968, p. 9). Uma filosofia não é um conhecimento morto, objeto de uma curiosidade indiferente, pois, como acabamos de ver, ela é dotada de vida, e para que haja o reconhecimento daquilo que existe de vivo nela, é preciso assumir uma outra atitude – da qual somente é capaz um espírito que reconhece o espírito vivo de uma filosofia – no que concerne ao relacionamento a ser estabelecido com essa filosofia. No que respeita ao segundo momento da crítica à visão histórica, Hegel se dirige fundamentalmente a Reinhold. Vejamos, agora, por que a concepção filosófica de Reinhold pode ser considerada uma forma de atitude histórica. Segundo a exposição hegeliana, trata-se na filosofia (de Reinhold) de um desenvolvimento contínuo da mesma mediante o surgimento, a cada vez, de um novo sistema filosófico que, com maior abrangência, prolonga a tarefa que os anteriores sistemas começaram. Cada sistema é uma visão particular que busca realizar a tarefa que os anteriores não conseguiram. O êxito da nova visão particular na sua tarefa de “penetração na realidade do conhecimento humano” (HEGEL, 1968, p. 10) está vinculado ao estudo das tentativas (Versuche) anteriores, talvez para ver o que pode ser aproveitado e o que não pode, e onde acertaram de modo que se evite o que se ocupa de objetos inanimados, expandiu-se bastante nosúltimos tempos. É um coração defunto que encontra sua satisfação no ocupar-se daquilo que está morto, de cadáveres. O espírito vivo diz: deixai os mortos enterrar seus mortos e me siga (cf. Mateus 8,22). Os pensamentos, as verdades, os conhecimentos que eu possuo somente segundo a forma histórica, estão fora do meu espírito, quer dizer, mortos para mim; meu pensamento, meu espírito não estão aí presentes, minha consciência daí está ausente. A posse de conhecimentos puramente históricos assemelha-se à possessão jurídica de coisas, das quais eu não sei o que fazer”. Ou ainda: “Todavia, quando uma época trata tudo historicamente, ocupando-se sempre de um mundo que não existe mais, vagando por entre tumbas, o espírito renuncia à sua vida própria, que consiste em pensar a si” (HEGEL, 1990, p. 156 e p. 156-7). 202 cometimento dos mesmos erros, permitindo-se que seja possível de outro modo realizar a tarefa da filosofia. Cada novo sistema que busca completar a tarefa não realizada pelo anterior seria como um acréscimo, que vem a se justapor ao que já possuímos. O novo sistema continua o anterior na tentativa de concluir a tarefa almejada. Diferentemente da primeira espécie de visão histórica, existe aqui um interesse pelas filosofias do passado, e que não se configura numa mera curiosidade despretensiosa com relação ao que de vivo ainda poderia haver numa filosofia qualquer. Todavia, esse interesse, que se traduz num conhecimento das filosofias passadas, vai somente até certo limite. Segundo Hegel, a concepção de filosofia que funda tal espécie de ponto de vista a respeito da filosofia e da história da filosofia é a de que a filosofia seria uma forma de ofício que se aperfeiçoa mediante a descoberta de novas técnicas (HEGEL, 1968, p. 10). O termo desse processo de aperfeiçoamento seria então a invenção da técnica que realize de uma vez por todas a tarefa primordial da filosofia, e tudo que até então se efetuou com vistas a esse intento deve ser considerado como “exercícios preliminares de grandes cabeças” (HEGEL, 1968, p. 10). Diante, então, da visão particular que resolve o problema da filosofia, o passado da mesma não teria mais relevância. O passado era digno de interesse enquanto não se havia ainda obtido êxito na tarefa da filosofia. A partir do momento que se alcançou esse êxito, o passado da filosofia mereceria, caso houvesse ainda interesse, ser conhecido, nos termos de Hegel, apenas como “exercícios preliminares de grandes cabeças”. As diversas filosofias aparecidas no decurso histórico, a partir desse momento, não são mais fonte de conhecimentos com vistas à realização da tarefa da filosofia. Tornam-se simplesmente uma fonte de curiosidade: um saber morto que nada mais nos diz além do que o fato de terem um dia tentado realizar a tarefa da filosofia. 203 Mas, contudo, a história da filosofia não é para Hegel um arquivo do que se tornou obsoleto: “Não se trata tampouco na filosofia nem de aperfeiçoamentos constantes nem de visões particulares” (HEGEL, 1968, p. 10). O absoluto, diz Hegel, e sua manifestação, a razão, são eternamente uma e a mesma coisa. Toda razão que se dirige a si mesma e se reconhece como tal, produz uma filosofia verdadeira e resolve sua tarefa, que é sempre a mesma em todos os tempos135 (HEGEL, 1968, p. 10). Vemos aqui, então, Hegel afastar-se da concepção histórica e mostrar aquilo que o distingue da mesma, ao considerar a possibilidade de toda razão que se dirige a si mesma e se reconhece como razão produzir uma filosofia verdadeira. Cada filosofia, produzida pela razão particular de uma época determinada, é o que já podemos observar, é digna de valor, pois é uma filosofia verdadeira. O que distingue uma filosofia da outra, sua particularidade, não alcança a essência da mesma. É na forma do sistema que a particularidade se expressa. O historiador que não vê a essência de uma filosofia como algo particular não terminará como aquele outro historiador, que diante de um sem número de filosofias essencialmente diferentes sente-se frustrado por não ter como assentir a qualquer uma delas. “Quem está enredado por uma peculiaridade, vê no outro nada mais do que peculiaridades” (HEGEL, 1968, p. 11). É o caso da atitude histórica, tanto na sua feição mais geral, quanto na sua feição reinholdiana, para a qual todo sistema filosófico constitui uma peculiaridade estranha a outras peculiaridades. Para se chegar à essência da filosofia, observa Hegel, é preciso que a especulação filosófica se eleve a si mesma e ao absoluto. A especulação é a própria atividade da razão sobre si mesma, que, como manifestação do absoluto, fundamenta-se a 135 A tarefa da filosofia “consiste nisto, unificar as pressuposições, pôr o ser no não-ser como vir-a-ser; a cisão no absoluto – como seu fenômeno; o finito no infinito – como vida” (HEGEL, 1968, p. 16). Ou ainda: “O absoluto deve ser construído para a consciência, [tal] é a tarefa da filosofia” (HEGEL, 1968, p. 16). 204 si mesma (HEGEL, 1968, p. 11-12). A essência racional da filosofia está presente em toda filosofia verdadeira. Assim, cada filosofia não pode ser tomada como essencialmente diferente da outra. A especulação filosófica, partindo desse pressuposto, qual seja, do reconhecimento do espírito vivente que habita toda filosofia verdadeira (cf. HEGEL, 1968, p. 9), não vê cada sistema como uma particularidade essencialmente diferente de outras particularidades. A especulação “deve encontrar a si mesma através das formas particulares” (HEGEL, 1968, p. 12). Podemos dizer, então, que cada filosofia assume uma forma particular e, assim, difere, no plano da forma, das outras filosofias particulares, ao mesmo tempo que, na sua essência, todas elas se identificam, pois são obras da mesma razão una desdobrando-se no processo histórico e que as reconhece como seus frutos. O espírito da filosofia pode então encontrar a si mesmo em cada filosofia, na forma que ele toma segundo a época na qual se originou. Segundo tal concepção da essência da filosofia, não é sua história um conjunto de opiniões mortas, que nada mais têm a nos dizer. Todo sistema é digno de interesse filosófico porque expressa a forma em que a razão se organizou numa figura com o material fornecido por uma época particular. Interessar-se por uma filosofia particular significa querer compreender de que maneira o absoluto nela se exprimiu. Tal como uma autêntica obra de arte, que se basta a si mesma, devemos interessar-nos por ela. Já Lukács salientava a importância filosófica que, em Hegel, tinha a história da filosofia para a filosofia: “Ele é o primeiro no qual a história da filosofia ultrapassou o nível da simples enumeração dos fatos ou a crítica abstrata. Uma tal superação já se encontra conscientemente consumada na Diferença”136. Para Hegel, “a filosofia possui uma longa história 136 Lukács ainda nota que Hegel foi o primeiro a tomar a sério a questão da história da filosofia, que para tornar mais contundente seu ponto de vista, o recurso à história da filosofia servia para iluminar todos os aspectos possíveis do problema que o 205 unitária na qual ela se desenvolve, história que representa o desdobramento da razão unitária” (LUKÁCS, 1981, p. 419- 420). Também Martial Guéroult atentou para essa importância da dimensão filosofante da história da filosofia em Hegel: O interesse dessa primeira concepção hegeliana é o de conferir a cada doutrina encarada nela mesma um valor em si, de se recusar aplicar ao mundo das filosofias a noção de verdade corrente no conhecimento comum ou na ciência dos fenômenos. Por essa presença da razão, da verdade, da ideia da filosofia em cada filosofia, Hegel funda a perenidade das filosofias como objetos eternamente válidos para a filosofia e para a história (GUEROULT, 1979, p. 443).Dentro desse quadro, a verdade que cada filosofia propõe não envelheceria em virtude de poder ser objeto de estudo numa época posterior à que surgiu. Nas suas Lições sobre a história da filosofia, Hegel assinala que o passado filosófico encontra seu valor e significado como um momento particular no desenvolvimento da história da filosofia. Se uma filosofia de uma época anterior à nossa não é capaz de responder a questionamentos que nos fazemos hoje, este fato não significa que ela não tenha mais nada a nos dizer. Apenas indica que o aprendizado que dela podemos extrair não deve comportar exigências que extrapolem aquilo que seria o esperado na sua época de surgimento (Cf. HEGEL, 1974, p. 352ss). O mundo de Platão não é o mesmo que o nosso: Não devemos alimentar a pretensão de encontrar presentes na filosofia antiga os problemas da nossa consciência e os interesses do nosso mundo, visto que tais questões concernia, além de torná-lo mais convincente, graças à argumentação a mais ampla possível. Assim, nos escritos críticos de Iena, “na polêmica contra Schulze, ele faz uma comparação detalhada entre o ceticismo antigo e o ceticismo moderno; na sua exposição sobre o direito natural, ele opõe as concepções filosófico-sociais de Platão e de Aristóteles às ideias modernas...” (LUKÁCS, 1981, p. 420). 206 pressupõem um determinado desenvolvimento do pensamento. Desta maneira, toda a filosofia, precisamente por ser expressão dum especial grau de desenvolvimento, pertence ao seu tempo e está circunscrita aos seus próprios limites (HEGEL, 1974, p. 355). De acordo com a concepção hegeliana, o estudo da história da filosofia torna possível que tenhamos contato com formas de organização do pensamento filosófico que servirão para alimentar o pensamento filosófico da atualidade. Dessa perspectiva, o passado da filosofia não constituiria verdadeiramente um passado, pois trata-se de nos ocuparmos com formas de pensamento que determinaram aquilo que a filosofia é hoje. Hegel não acredita, portanto, que o passado da filosofia envelheça. Se há algo que envelhece é a pretensão das diversas filosofias em ser a determinação última e absoluta do pensamento filosófico (Cf. HEGEL, 1974, p. 351-352). A história da filosofia é, para o filósofo, capaz de nos fazer melhor compreender aquilo que somos hoje. Nesse sentido, o ensino da história da filosofia é vital para que os estudantes possam, ao tomar contato com esse passado, ter condições de apreender a articulação do pensamento filosófico do presente a partir do conhecimento de formas filosóficas que, segundo Hegel, contribuíram para o que a filosofia é hoje. REFERENCIAS GUEROULT, M. Histoire de l’Histoire de la Philosophie, en Allemagne de Leibniz a nos jours. Paris: Aubier, 1979. HEGEL, G. W. F. Differenz des Fichte’schen und Schelling’schen Systems der Philosophie. Hamburg: Felix Meiner, 1968. _______. Leçons sur l’histoire de la philosophie, Introduction: Système et histoire de la philosophie. vol. 1, Paris: Gallimard, 1990. _______. Introdução à história da filosofia. Sao Paulo: Ed. Abril, 1974. 207 LUKÁCS, G. Le Jeune Hegel, sur les rapports de la dialectique et de l’économie. vol. I. Paris: Gallimard, 1981. 208 Capítulo 12 AASS CCRRÍÍTTIICCAASS DDEE MMAARRXX EE HHUUMMEE ÀÀ FFIILLOOSSOOFFIIAA CCOOMMOO FFUUNNDDAAMMEENNTTOOSS PPAARRAA AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO Samuel Mendonça INTRODUÇÃO Embora muito se tenha produzido no Brasil sobre Marx e a educação, nos últimos anos, Saviani (2008 e 2010), Lombardi (2008), Sanfelice (2008), Duarte (2008 e 2010), Sousa Junior (2010), nem por isto o autor de O Capital deixou de ser uma referência importante para a educação. O esforço de diversos intelectuais brasileiros e de outros países tem evidenciado a atualidade de Marx para as questões da educação nos tempos hodiernos. Então, a crise do capitalismo, especialmente a de Wall Street, em 2008, revelou a atualidade dos escritos de Marx para a compreensão da dinâmica da vida social (HOBSBAWN, 2011). David Hume (1999), por sua vez, tem sido fonte de estudos em filosofia e diversas áreas do conhecimento sistemático, especialmente em virtude dos pressupostos do empirismo. A ciência da educação recepciona os pressupostos do empirismo quando em relação ao pragmatismo e, embora não se pretenda discorrer sobre autores desta corrente educacional, é preciso reconhecer em Dewey (1985) sua maior expressão. 209 Com efeito, a nossa preocupação, neste capítulo, gira em torno da crítica de Marx à filosofia, que se dá por meio da crítica à ideologia alemã, da mesma forma que a ponderação de David Hume em relação à filosofia será objeto de investigação. Isto posto, pretendemos argumentar que tanto a crítica de Marx ao idealismo alemão quanto a de Hume à filosofia e, neste caso, à metafísica, constituem-se fundamentos da educação, na medida em que, por educação, entendemos as possibilidades de intervenção do homem na contínua transformação da sociedade e, neste sentido, as construções abstrusas não parecem auxiliar neste processo. De forma específica, formulamos a pergunta deste capítulo nos seguintes termos: as críticas de Marx e Hume à filosofia constituem-se elementos para a fundamentação da educação? É preciso dizer que Marx e Hume não possuem posições sequer próximas sobre o Estado, a Política a Economia ou a Educação, e não é pelo fato de que faremos a aproximação pontual quanto à questão da metafísica e da ideologia que isto possa significar a aproximação teórica dos referidos autores. Embora em contextos distintos, veremos que as críticas destes pensadores às formulações abstrusas são as razões da ausência de uma perspectiva mais efetiva na educação, na consideração da vida humana. Embora não tenha sido este o olhar deles, então, utilizamos de seus argumentos para fundamentar a nossa posição de que os fundamentos da educação devem ser repensados. Dito de outro modo, não se encontram em Marx ou em Hume elementos da construção que pretendem fundamentar a educação a partir da crítica da metafísica e da ideologia e, portanto, o risco de equívocos desta aproximação é exclusivo do autor137. 137 Os estudos de Marx e de Hume foram feitos em contextos distintos. Hume e Marx foram lidos na graduação em filosofia, mas Hume foi lido enfaticamente por ocasião do mestrado, também em filosofia, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. No doutorado em educação, reli Marx, especialmente com professores do 210 Uma concepção de educação que tenha como ponto de partida o ‘ideal’ de educação já evidencia – embora não se tenha definido que ideal é este – a ausência de ações concretas, seja quanto à concepção de educador e mesmo quanto ao perfil do aluno que está em formação. Fala-se em ideal de educação e este posicionamento é, muitas vezes, apolítico, no sentido de que não inclui as vicissitudes da vida social. Por concepção ‘ideal’ de educação concebe-se a comodidade: afinal, que ações concretas são reivindicadas a partir de um ideal de educação? Ações ideais, ou seja, mais uma vez a ausência das contradições sociais, dado que, no plano ideal, elas são equacionadas e equacionáveis. Não queremos com isto afirmar que não se pode ter ideal por educação. O que argumentamos é que o ideal que não aponta para o mundo humano e material certamente será insuficiente para equacionar os problemas determinados e concretos da educação. Enquanto o filósofo escocês terá a metafísica como alvo, Marx, por outro lado, terá Hegel como o seu principal foco de crítica. Com estes elementos propedêuticos, que dizem respeito à concepção de homem e de mundo, isto é, a partir da definição de conhecimentoMédia. A filosofia como opção de vida determina a doutrina adotada pelo pensador e seu modo de ensino. Esta escolha não é tomada na solidão: nunca houve filosofia nem filósofos fora de um grupo, de uma comunidade, de uma escola filosófica e, precisamente, uma escola filosófica corresponde, na época antiga, a uma maneira de viver, a uma atitude de pensamento e de vida (hairesis2), um desejo de ser e de viver de certa maneira. Essa conversão existencial implica, por seu turno, certa visão do mundo, e será tarefa do discurso filosófico revelar e justificar racionalmente tanto essa opção de vida quanto essa representação do mundo. O discurso filosófico teórico, que normalmente se encontra na “História da Filosofia” não está na origem, mas no final dessa opção existencial (HADOT, 1999, p. 172). O discurso filosófico deve ser compreendido na perspectiva do modo de vida e a escolha de vida particular do filósofo determina o seu ensino, sua paideia. Esta apuração nos leva a dizer que não se pode considerar o discurso filosófico 2 O termo significa propriamente “eleição”, “escolha”. 26 como uma realidade existente em si e por si mesma, como uma disciplina a ser transmitida do alto de um púlpito. Não é possível estudar Sócrates separando o discurso de Sócrates da vida e da pedagogia de Sócrates. Claro, hoje o filósofo, ou talvez fosse melhor se contentar em dizer o professor de filosofia, não pode retomar exatamente o modelo da filosofia antiga. Hoje parece impossível fazer de uma universidade uma comunidade pedagógica no sentido filosófico do termo, na qual mestres e discípulos vivem juntos experiências em comum num comum ideal. Mas, hoje, o discurso do professor de filosofia ainda pode se apresentar sob uma forma tal que o estudante possa percorrer um caminho de amadurecimento intelectual e espiritual e transformar-se interiormente. LUGARES E MESTRES DA PAIDEIA Como vimos, a nova definição de homem que aparece na Grécia, depois das invasões dos povos vindos da península balcânica, carrega o advento de um novo modo de pensar, alicerçado na racionalidade. O exercício da razão, antes de tudo, é um discurso público e compartilhado. A grande escola dos antigos é o convívio social, e isso é particularmente evidente em Atenas. O novo arquétipo da cidade grega, a polis, criada depois do desaparecimento do basileus, pressupõe novas instituições e a autoridade é espalhada entre diferentes delegados. “A autoridade não repousa mais na tradição, mas na lei, nomos, fruto da ação do homem, regida pelo discurso elaborado, argumentado e persuasivo” (PAGOTTO-EUZEBIO, 2010, p. 199). A mudança política carrega a necessidade de formar um homem diferente. A polis não necessita do chefe guerreiro ou do sacerdote que encarna a voz da verdade. Com esta mudança política, os gregos criam uma nova definição de 27 homem e uma nova paideia, que dita os parâmetros daquilo que deve ser um homem: o homem politicus (PAGOTTO- EUZEBIO, 2010, p. 199). Aristóteles esclarece na sua Política que o homem é essencialmente ser da cidade3 e isso não indica apenas um lugar físico particular mas, antes, o caráter próprio do homem: o homem se faz tal só ao participar das práticas e das experiências dos outros homens. Aristóteles não é nem original nem pretende ser original com esta afirmação: ele somente constata e reafirma o que aparecia como verdade ao grego do seu tempo. O homem é fruto da cidade, da sua paideia, e por decorrência toda criação humana terá a cidade como origem e – é importante não esquecer – como propósito ou, pelo menos, referência (PAGOTTO- EUZEBIO, 2010, p. 201). Nesta cidade, a educação se transmite na Ágora, nos banquetes e nos ginásios4. O symposion, ou banquete, tem um sentido cultural de grande valor. Ao redor de uma mesa rica em vinho e comida, os gregos discutiam assuntos elevados e cantavam os versos dos poetas (HERÓDOTO 6. 129; ARISTÓFANES, Nuvens, 1353-1379). O symposion é descrito na homônima obra de Platão como um lugar que possui alto poder educativo. No Banquete platônico, cinco figuras de relevo, Sócrates, Aristófanes, Fedro, Pausânias e Alcibíades se reúnem na casa do tragediógrafo Ágaton, para comemorar a sua vitória nas Grandes Dionísias. A antiga educação aristocrática é baseada no conhecimento dos poetas antigos e só será reformada com o advento dos Sofistas, em Atenas. Os ginásios constituem um segundo pólo educativo. Eles, além de serem frequentados pelos jovens que querem praticar 3 Aristóteles, Política, 1253a: “É evidente que a polis é natural, e que o homem é por natureza um animal político e que o apolide por natureza e não por acidente é menos ou mais que um homem” (tradução nossa). 4 Para uma panorâmica exaustiva do assunto, ver Ferreira (1993). 28 exercícios físicos, são procurados por muitos adultos que gozam da beleza e do espetáculo oferecidos pelos mais novos, e lhes dão dicas de vida. Sócrates escolhia frequentemente estes lugares para ensinar5. Finalmente, a Ágora é um importante centro cívico e comercial. Lá ficam os mais importantes edifícios públicos, vários templos, altares e estátuas. Lá se realizam as sessões da Ecclesia, a Assembleia, da Boulê, o Conselho dos Quinhentos, e dos Tribunais da Helieia. No edifício do Pritaneu, encontram-se gravados na pedra diversos documentos, o mais notório dos quais é o código de Sólon. A Ágora é, portanto, um local de grande afluxo, que os atenienses usam para conversar e transmitir a cultura (FERREIRA, 1993, p. 32). É evidente que esta evolução da política ateniense do regime monárquico ao regime democrático permitiu a participação nos órgãos coletivos de governo a um número infinitamente maior de cidadãos e por isso as técnicas de argumentação se tornaram de grande importância. A essa exigência responderam prontamente aqueles filósofos que podem ser considerados mestres do discurso e professores de homens, visto que erigiam o homem em alvo de seu ensinamento: os Sofistas6. Embora os sofistas tenham sido considerados por muito tempo personagens negativos e falsos pedagogos, eles despertaram considerável entusiasmo entre os jovens da Atenas democrática (PLATÃO, Protágoras, 310a- 311a; 314b-315d). Finalmente, foram eles que cunharam a palavra paideia para indicar a natureza essencialmente pragmática de seu ensino, o qual permitiu a muitos jovens atenienses intervir nas relações públicas graças à habilidade dialética e retórica. Na época da Grécia clássica, os Sofistas 5 Os seguintes diálogos de Platão, Laques, Lísis e Cármides, se passam no ginásio. 6 Protágoras, fr. Diels: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto existem, e das que não são, enquanto não existem”. Tradução de Rocha Pereira, 2005, p. 289. 29 eram personagens suspeitos7 e seu nome é utilizado ainda hoje para designar aqueles que buscam perturbar o interlocutor com assuntos cavilosos. No século de Péricles, a palavra “sofista” era empregada sempre num sentido pejorativo por causa do tipo específico de saber que os Sofistas transmitiam e pelo fato deles serem itinerantes e remunerados (PLATÃO, Apologia 19e-20a; ISÓCRATES, Antídosis 3). Entre as duas características, a mais perigosa do ponto de vista político é a primeira, isto é, ensinar um tipo específico de saber; do ponto de vista filosófico, a segunda, pois para filósofos como Sócrates, Platão ou Aristóteles, e o mesmo pode ser dito para as Escolas helenísticas, a filosofia é um fim em si e não pode ser vista como meio em vista de uma finalidade alheia. Basta ler a Apologia de Sócrates, um dos primeiros escritos de Platão, para descobrir no diálogo entre Sócrates e os Sofistas um jogo ético, político e pedagógico, uma crítica açulada e intransigente aosque considera a experiência o seu leitmotiv, para o primeiro autor, e também considerando a concepção de trabalho para Marx, então, a nossa concepção de educação será apresentada no contexto da práxis social. Do ponto de vista formal, investigaremos os termos crítica e superação em Descartes (1983) e em Kant (1999), justamente com o propósito de oferecer ao leitor elementos de nossa compreensão daquilo que julgamos ser o essencial para a fundamentação da educação, isto é, a noção de crítica. Podemos afirmar que o racionalismo de Descartes é superado pelo empirismo de Hume. Kant ‘acorda’ do sono dogmático consagrado Departamento de História, Filosofia e Educação da Universidade Estadual de Campinas. 211 com Hume. O autor das três críticas influencia Hegel que, por sua vez, é o maior alvo de Marx. Estas conexões evidenciam a interlocução entre os autores selecionados neste capítulo. Em seguida, faremos a análise minuciosa de Hume (1999) quanto à sua crítica à filosofia abstrusa e, posteriormente, junto da crítica de Marx à Ideologia Alemã, obra de 1845[6], dissecaremos a questão da origem das ideias de Hume, assim, teremos elementos para fundamentar a educação sem rodeios e a partir da vivência humana. O exame de elementos da Ideologia Alemã evidenciará a concepção de educação de Marx que deve partir da práxis social. Com estes elementos, exploraremos o conceito de trabalho ao longo da história do pensamento, de forma propedêutica, porquanto trata-se de tema central do pensamento marxiano, de modo a constituir mais um aspecto daquilo que nomeamos fundamentos da educação. Em sentido lato, entendemos o educador como um sujeito dotado de valores e hábitos, que busca transformar a vida social e elabora o seu sentido na história por meio do trabalho. Não existe papel do educador a priori, mas, se existem desafios para fundamentar a educação a partir da crítica do idealismo e da metafísica, por certo dentre esses desafios podemos incluir o de compreender a contribuição dos clássicos para a fundamentação da educação. Como construir fundamentos da educação sem a contribuição dos clássicos do pensamento, neste caso, Marx e Hume? É preciso considerar que os escritos de Marx sobre a educação não se circunscrevem no âmbito de práticas pedagógicas, no entanto, mesmo que ele não tenha publicado escritos específicos sobre a educação, é possível derivar elementos que estão presentes na educação, seja na perspectiva de fundamentos, de política ou, mais especificamente, de concepção de educação. Ora, não é por acaso que a recente obra de Sousa Junior (2010) explicita, em seu primeiro capítulo: “como e por que as formulações 212 marxianas podem ser consideradas uma contribuição importante para o pensamento educacional” (p. 20). A nossa expectativa não é a de inovação das ideias de Marx ou de Hume em torno da educação, mas, antes, de apontar para perspectivas que coloquem em relevo a crítica da metafísica e da ideologia como base para a construção de fundamentos da educação para os tempos hodiernos. CONSIDERAÇÕES SOBRE CRÍTICA E SUPERAÇÃO NA BUSCA DE FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO É necessário explicar o que entendemos por superação e crítica. Os pensadores da Ilustração, como Kant, por exemplo, já falavam de superação, da mesma forma que o racionalista francês Descartes138 tratava da necessidade de vencer-se a si mesmo. Com o propósito de alcançar o primeiro objetivo, isto é, a elucidação dos termos crítica e superação, examinaremos as concepções de Descartes e Kant com o propósito de construir elementos que fundamentem a educação. A crítica sugere a autocrítica que reivindica a superação, então, em se tratando daquilo que é essencial para a educação, eis o nosso primeiro desafio. Não se trata de revisitar o conceito de superação tal como já foi pensado no século XVII, mas de considerar os paradoxos existentes na vida humana e de explicitar a 138 Descartes, na obra Discurso do Método, especialmente na terceira parte, quando trata das máximas da moral provisória, anuncia a necessidade de uma espécie de superação. Ele chama a atenção para o vencer-se a si mesmo, mas em relação à fortuna. “[...] acostumar-me a crer que nada há que esteja inteiramente em nosso poder, exceto os nossos pensamentos, de sorte que, depois de termos feito o melhor possível no tocante às coisas que nos são exteriores, tudo em que deixamos de nos sair bem é, em relação a nós, absolutamente impossível” (DESCARTES, 1983, p. 43). A superação anunciada aqui, mesmo indiretamente, não está de acordo com a que vemos em Marx. Antes, diz respeito à tentativa de buscar na razão a plenitude do conhecimento, desconsiderando inclusive as conquistas externas e os bens materiais. Em Marx, a perspectiva de superação parte exatamente das condições materiais como balizas da transformação social. 213 necessidade dela para a possibilidade da crítica. Dito de outro modo, devemos enfatizar a natureza do próprio homem na tentativa da sua superação, na medida em que não existe uma essência do humano em Marx e nem tampouco em Hume, mas o homem é o resultado das relações sociais vividas na história a partir do trabalho ou o produto da experiência sensível. Saviani (2010) reforça o que temos elaborado ao longo destas reflexões, isto é, o que distingue o ser humano de outras espécies é fundamentalmente o trabalho: No caso dos seres humanos, sua atividade vital, que é o trabalho, distingue-se daquelas de outras espécies vivas por ser uma atividade consciente que se objetiva em produtos que passam a ter funções definidas pela prática social. Por meio do trabalho, o ser humano incorpora, de forma historicamente universalizadora, a natureza ao campo dos fenômenos sociais. Neste processo, as necessidades humanas ampliam-se, ultrapassando o nível das necessidades de sobrevivência e surgindo necessidades propriamente sociais (p. 426). Por conseguinte, se o processo de humanização aponta o trabalho como propulsor do homem, então, elaboramos a possibilidade de crítica do sujeito que trabalha; afinal, Marx concebe o trabalho consciente – e não o trabalho alienado – como base da transformação social. Por trabalho consciente não entendemos a abstração do conceito de trabalho, mas sua experiência na práxis social. Quais as razões que justificam a escolha de Descartes e Kant para a análise da superação e crítica neste capítulo que tem Marx e Hume como referenciais teóricos? Embora já tenhamos tratado de algumas relações entre os autores, por ocasião da introdução, vale reforçar que Kant influenciou Hegel no que se refere à crítica do conhecimento; todavia, Hegel passou a fundamentar a sua crítica a partir da dialética, inserindo a perspectiva da história em sua filosofia, mas, ainda assim, trabalhou com a noção do absoluto, alvo preciso de 214 Marx. Desde 1844, com a obra Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, é notável o reconhecimento de Marx a Hegel, mesmo que tenhamos esta observação a partir da crítica do primeiro em relação ao segundo. Descartes foi uma das referências importantes de Kant na construção da filosofia do sujeito, visto ter construído as bases do racionalismo, escola filosófica do século XVII, que estabelecia a razão humana como fonte e método para a construção do conhecimento. Kant vai além de Descartes, considerando também a experiência como base do conhecimento e foi Hume o autor que despertou Kant do sono dogmático; afinal, “embora todo o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isto todo ele se origina justamente da experiência” (KANT, 1999, p. 53). Este excerto da Crítica da Razão Pura evidencia a síntese que Kant promove a partir do racionalismo e do empirismo. Portanto, temos Descartes como precursorsofistas e à face corrupta da sociedade ateniense. Os aristocratas, por fim, achavam os Sofistas personagens ameaçadores, pelo fato de serem peritos na arte reputada necessária aos membros de uma democracia e perigosa para o governo aristocrata. Ocupados em ensinar de que forma a racionalidade podia ser utilizada eficientemente, isto é, produzindo a persuasão e levando à derrota a argumentação do adversário, os sofistas se tornaram assim os primeiros professores da technê politiké, que com uma palavra atual podemos designar “cidadania”. “O discurso é plástico, dirão eles, e pode ser moldado de inúmeras formas, mais ou menos adequadas para o momento (kairós), que era o que de mais importante havia: perder ou não notar o kairós, a ocasião, impedia o sucesso do discurso” (PAGOTTO-EUZEBIO, 2010, p. 206). 7 Sobre as razões do escândalo que o ensino dos Sofistas provocou ver Rocha Pereira 2003, p. 448 e nota 7, citado por Ferreira 1993, p. 37 nota 32. 30 Desta forma, o homem instruído pelos Sofistas consegue prever as reações dos membros da Assembleia, do Tribunal e dos outros órgãos. Devido à sua habilidade dialética e retórica, o cidadão educado na democracia alcança influir na tomada de decisão dos ouvintes pela sua competência comunicativa, pela sua capacidade de persuadir e consequentemente dominar o demos. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Política. Brasília: Editora da UnB, 1997. CAMBI, F. História da Pedagogia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. COLLI, G. O Nascimento da Filosofia. Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 1992. CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae. As origens do Pensamento Filosófico Grego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d. DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: Editora da UnB, 1987. DUMONT, J. P. Les Sophistes. Fragments et Témoignages. Paris: PUF, 1969. DUPRÉEL, E. Les Sophistes. Protagoras, Gorgias, Prodicus, Hippias. Neuchatel: Edition du Griffon, 1948. FERREIRA, J. R. Educação em Esparta e em Atenas. Dois métodos e dois paradigmas. In: LEÃO, D. F; FERREIRA, J.R; FIALHO, M. do Céu (ed.). Cidadania e Paideia na Grécia Antiga. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1993. GÓRGIAS. Testemunhos e Fragmentos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. HADOT, P. O que é a filosofia antiga. São Paulo: Loyola, 1999. 31 HÜHNE, M. Filosofia, Introdução ao pensar. Rio de Janeiro: Editora UAPE, 2006. ISÓCRATES. Discours. trad. G. Mathieu et A. Brémond. Paris: Les Belles Lettres, 1928. JAEGER, W. Paideia. Los ideales de la cultura griega. México-Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 1957 (a tradução brasileira é: Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1986). LORAUX, N. Invenção de Atenas. São Paulo: Editora 34, 1994. MARROU, H. I. História da Educação na Antiguidade. São Paulo: EPU, 1990. MOSSÉ, C. Atenas: a História de uma Democracia. Brasília: Editora da UnB, 1982. PAGOTTO-EUZEBIO, M. S. A Filosofia, a cidade, a Paideia: os antigos contemporâneos. São Paulo: Revista Páginas de Filosofia, v. 2, n. 1, 2010. PAVIANI, J. Filosofia e educação, filosofia da educação: aproximações e distanciamentos. In: DALBOSCO, C. A; MUHL, E. H; CASAGRANDE, E. A. (ed.). Filosofia e Pedagogia. Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 2008. PLATÃO. A República. Trad. Maria helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. PROTÁGORAS. Fragmentos y Testimonios. Buenos Aires: Aguilar, 1965. VERNANT, J. P. As Origens do Pensamento Grego. Rio de Janeiro: DIFEL, 1992. 32 Capítulo 2 SSÓÓCCRRAATTEESS EE AA FFOORRMMAAÇÇÃÃOO DDOO MMEESSTTRREE:: VVIIRRTTUUDDEE,, ÉÉTTIICCAA EE EESSPPIIRRIITTUUAALLIIDDAADDEE Ricardo Tescarolo SÓCRATES, A ARTE DA MAIÊUTICA E O MESTRE VIRTUOSO A despeito de não haver registro de qualquer produção escrita de sua autoria, a súbita transformação que atingiu a filosofia após Sócrates, “confirma-o de maneira que não tem comparação com os filósofos precedentes” (REALE, 1993, p. 253). Sem dúvida, “a filosofia socrática mostra ter tido peso decisivo no pensamento grego e, em geral, do pensamento ocidental” (ibidem). A partir desta inferência, adotar-se-á como iluminação o pensamento atribuído a Sócrates, mais precisamente a maiêutica, para refletir sobre a educação escolar e o papel decisivo do mestre, a partir da perspectiva da prática pedagógica. A arte da maiêutica baseia-se na ideia de que o conhecimento está latente8 na mente do sujeito como razão inata e que, para se tornar consciente, precisa ser “parido” (“dado à luz”) mediante sequência lógica de perguntas. 8 Michael Polany, por exemplo, refere-se a essa razão latente como “conhecimento tácito” (The Tacit Dimension. The University of Chicago Press, 1996, p. 4), na medida em que “we can know more than we can tell” (“sabemos mais do que reconhecemos”). 33 O primeiro texto dos diálogos de Platão, em ordem cronológica, a mencionar a maiêutica de Sócrates é o Simpósio. Neste diálogo, relatado por Platão, Sócrates repete as palavras da sábia sacerdotisa Diotima de Mantinéia, que sugere que a alma dos homens está grávida e quer dar à luz. No entanto, o parto não pode se realizar. Por essa razão, o mestre, tal qual o obstetra, deve ajudar o educando a dar à luz a verdade (aleteia). Portanto, o mestre não é o que enche a mente do discípulo com informações, como se sua mente fosse uma caixa vazia. Na maiêutica, o mestre ajuda o discípulo a alcançar o conhecimento mediante um diálogo questionador. Foucault (2004) adverte que o mestre não pode mais se limitar a ser “o mestre da memória”, mas o mediador “na formação do indivíduo como sujeito” (p. 160), em que “o ato do conhecimento permanece ligado às exigências da espiritualidade” que vincula este ato à conversão do sujeito (idem, p. 267), condição que será atingida pela prática da aretê (virtude). Por conseguinte, o mestre de virtudes pressupõe o mestre virtuoso. Mas será a virtude ensinável? A virtude pode ser ensinada, sim, mas menos pelos discursos e textos do que pelo exemplo, que se funda na ética e se nutre da sabedoria dedicada à construção da reciprocidade e do respeito à alteridade e à diversidade. A ética deve se constituir, pois, na sustentação da ação humana, integrada pela vontade e pelo livre-arbítrio, assumindo sentido mais radical como responsabilidade pelas consequências das iniciativas humanas e servindo de referência para o diálogo de cada pessoa com a própria consciência e com as consciências dos outros, despertando-os de uma eventual indiferença em relação à agressão à vida e à dignidade da pessoa. Assiste-se hoje à substituição do paradigma social por outro que decorre de um processo de “dessocialização” (TOURAINE, 2007, p. 23), acompanhado por uma “penetração 34 generalizada de uma violência de mil formas e faces, que rejeita todas as normas e os valores sociais” e a “escalada das reivindicações culturais, tanto sob a forma neocomunitária como sob a forma de apelo a um sujeito pessoal e à reivindicação de direitos culturais” (ibidem). E, no esforço de criação de “instituições e regras de direito que sustentarão a liberdade e a criatividade das pessoas, estão em jogo a família e a escola” e, em seu centro, os modelos educacionais (idem, p. 240). Por isso, a atualização dos mestres na concepção da ética assume atualmente importância crucial. De fato, a eficácia da escola será principalmente resultado da virtuosidade da intervenção docente em seu interior. E apenas no contexto mais amplo da função social de formação do mestre é que as questões da sua intervenção ética terão sentido. Sua formação priorizará, destarte, o manejo mais amplo dos saberes, como projeto solidário e construçãocoletiva, alimentado pela profundidade e pelo confronto constante e convergente e considerando a aprendizagem em suas implicações emocionais, afetivas e relacionais. A formação do mestre passa, então, a ser afetada pela natureza complexa do paradigma emergente, implicando o desenvolvimento das capacidades de identificar, analisar e operacionalizar sua ação tendo em conta, de um lado, as complexas circunstâncias contemporâneas. Os mestres, assim, aptos a elaborar e atualizar os saberes pedagógicos, não ficarão reduzidos a executores de projetos alheios ou planos acabados. Enfim, a visão do mestre não pode se limitar a fixar o olhar no dedo que aponta, mas estender sua perspectiva para aquilo que o dedo aponta: a constelação das novas possibilidades nascidas no interior das novas, ricas, complexas e dinâmicas circunstâncias contemporâneas, mas que também se alimenta de perplexidade e consternação. 35 Impõe-se, pois, a articulação de novos conhecimentos com novos objetivos e formas de aprendizagem e de ensino, pelo desenvolvimento de uma cartografia de relevâncias que funcione como um radar capaz de perscrutar uma nova epistemé fundada em dois eixos: a ética planetária e a espiritualidade. A ÉTICA E A ÉTICA PLANETÁRIA A ética planetária, segundo O’Sullivan (2004), manifesta- se no seio de uma racionalidade industrial como um movimento transformador que transcende ao modernismo progressista, ainda que o inclua, e se empenha para favorecer um “habitat planetário sustentável para seres vivos interdependentes, além e contra o apelo disfuncional do mercado competitivo global” (p. 26). Isso implica parâmetros visionários e transformadores baseados em um desenvolvimento sustentável que se coloca contra os mitos do otimismo ilimitado no crescimento e na abundância e da produção industrial, da expansão tecnológica e do consumo a qualquer custo (idem, p. 28-39). Embora as pessoas aparentemente tenham preservado e mobilizem sua capacidade de desencadear processos de intervenção transformadora, tal intervenção acabou se tornando uma prerrogativa dos cientistas que, sem “a textura das relações humanas”, ampliaram a esfera dos negócios humanos a tal ponto que extinguiram “a consagrada linha divisória e protetora entre a natureza e o ser humano” (ARENDT, 2001, p. 337), transformando-o no predador mais voraz da natureza. A cosmovisão exclusivamente antropocêntrica e inter- humana, em sua natureza analítica, cientificista e instrumentalmente racionalista da realidade universal, separou a Noosfera — termo teilhardiano que corresponde à camada humana reflexiva da Terra, em vias de unificação 36 física e união espiritual, que ele denominou ‘unanimização’ — da Biosfera, a camada viva não reflexiva que alimenta e sustenta a Noosfera, que por sua vez depende de sua preservação, numa simbiose cheia de energia, mas complexa e delicada (CHARDIN, 2003, p. 210). Nesse contexto, é urgente que se desenvolva, em todas as instâncias da sociedade — e aqui colocamos em destaque a escola — uma ética planetária que se empenhe pela integridade da “realidade sagrada primordial” do universo (O’SULLIVAN, 2004, p. 379), estabelecendo um novo contrato de solidariedade com a terra, com a vida e com o outro, superando o relativismo moral e a privatização de valores ofertados ao deus-mercado. Neste caso, o uso ético da razão questiona esses valores e se move em torno da questão da justiça, representando fenômeno interpessoal que passa a se constituir no conjunto dos princípios que só ocorrem no diálogo. Assim, quando a razão prática se pauta pelos princípios éticos, a vontade e a razão se amalgamam nos sujeitos humanos. O uso ético, portanto, leva em conta o que é bom para a sociedade como um todo e se questiona sobre a coerência do agir individual em relação ao projeto coletivo, representando, assim, atitude baseada em virtudes. Os princípios éticos, nesse caso, assumem natureza racional garantida por sua universalidade. Todas as iniciativas humanas, portanto, precisam assumir forma de valor e integrar determinada ética (cf. HABERMAS, 1989). Tal condição nos reporta ao contrato ético imprescindível à educação, na medida em que é ela que recebe a responsabilidade coletiva de contribuir para a inclusão das crianças e dos jovens em um mundo em permanente metamorfose. Conforme entende Hannah Arendt (2002, p. 239), essa responsabilidade assume, na educação, uma forma de autoridade diferente da competência — certamente necessária, porém não suficiente —, decorrente dos saberes 37 pedagógicos. Tal autoridade, delegada e legitimada pelo poder social, repousa na responsabilidade ética que os educadores assumem pelo mundo. É como se representassem, perante a criança e o jovem, todos os adultos. Acontece, porém, que a autoridade pública e política, em que se baseia a autoridade da escola e dos educadores, ou perdeu quase todo o sentido, ou tem o seu papel contestado — em razão da violência, da arbitrariedade, da impunidade e da corrupção nas esferas política e social. É nesse cenário contemporâneo de crise que o mestre virtuoso deverá ser capaz, pelo testemunho de sua ação educativa, de ensinar os alunos a agirem eticamente em favor da dignidade humana e a responder pelo mundo e pela vida, cuja finalidade confunde-se com a própria finalidade da educação. E é exatamente a escola, ocupando o ‘lugar’ de uma consciência mais ampla sobre toda a cultura e o pensamento humanos, que se encontra hoje entre a tradição e a inovação, a conservação e a mudança, entre o passado e o futuro, e diante do seguinte dilema ético: se, como pessoas, amamos ou não o mundo e a vida o suficiente para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos e, tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT, 2002, p. 247). O contexto contemporâneo de crise também causa profunda repercussão na história de cada pessoa, ao revelar ‘quem’ ela de fato é. A identidade real da pessoa se coloca, então, em oposição à sua personagem social, isto é, ao ‘que’ ela é, que se manifesta nos talentos, habilidades e serviços que ela 38 pode exibir ou ocultar, conforme isso for útil ou necessário aos seus interesses particulares. Se a pessoa se limitar ao ‘que’ ela é, sua ação perde o caráter genuinamente humano e torna-se uma realização ordinária, sem a revelação da pessoalidade, reduzindo-se ao labor para satisfazer suas necessidades de sobrevivência ou ao trabalho que a reduz a instrumento ou mecanismo (recurso?) dedicado à fabricação de alguma coisa. A ação comunicativa, então, limitar-se-á a uma conversa vazia e insignificante para iludir o adversário. Enfim, a revelação e a emancipação humanas só ocorrem a partir da identidade única e singular de ‘quem’ é a pessoa, e não do ‘que’ ela é (idem, 2001, p. 193). Nesse processo, a consciência, sob inspiração ética, é instada a assumir como princípio que toda pessoa é essencialmente livre e solidária, capaz de um protagonismo responsável. Tal princípio, entretanto, pode parecer improvável, por depender muitas vezes de valores submetidos à perspectiva e ao interesse de quem, consciente ou inconscientemente, muitas vezes deles se serve desumanamente. Como a convivência humana se baseia na necessidade histórica de estabelecer contratos de longo prazo que evoluem em leis, regimentos, normas e preceitos morais, a ética passa, então, a ser o princípio catalisador que garante a dignidade da vida humana, fundamentando as normas de respeito de todos por todos e a responsabilidadesolidária de cada um pelo outro e pelo mundo. Não obstante, considera-se aqui a ética que se funda também na “atribuição objetiva por parte da natureza do todo, [...] de tal espécie que mesmo o último membro de uma humanidade moribunda, em sua última solidão, lhe poderia ainda ser fiel” (JONAS, 2004, p. 272). Será, pois, na perspectiva da intervenção humana iluminada pelas virtudes que deve ser considerada a história de todas as pessoas. 39 A ESPIRITUALIDADE A espiritualidade é a sabedoria que concilia a razão, a emoção e a experiência com a consciência e a ética com a reflexão, a sensibilidade e a intuição, cuja condição central é o amor, mas não em sentido qualquer. O amor, na espiritualidade, é “a afinidade do ser com o ser”, não exclusivo do ser humano, mas, como coloca Chardin, “uma propriedade geral da Vida [...] e, sob todos os seus matizes, o sinal mais ou menos direto marcado no âmago do elemento pela Convergência psíquica do Universo sobre si mesmo”. Só o amor nos vincula, reúne, integra, identifica e prende a todos os seres na Terra pelo mais fundo de nós mesmos através de uma ‘vibração fundamental’ que nos impele inexoravelmente para a Unidade, “no Sentido do Universo, Sentido do Todo: diante da Natureza, perante a Beleza, na Música, a nostalgia se apossa de nós — a expectação e o sentimento de uma grande Presença” (CHARDIN, 1986, p. 301). Como seremos íntegros sem o mundo, a nossa ‘circunstância’, e sem a cumplicidade de todos os seres viventes e de todas as coisas existentes, nessa tessitura vital que se nutre do Espírito da Terra? Como seremos humanos sem essa “força primordial do espírito dotado de atividade volitiva, força animadora e criadora de valores”? Como seremos solidários e sensíveis ao outro sem o amor “que nos arranca do nosso isolamento individual e nos integra ao Real e ao convívio na comunidade humana”? (Idem, p. 348). A espiritualidade é o amor reflexivo pela Vida que promove a transformação do self como autoconsciência, auto- reflexão e altruísmo em conexão com o universo, um viver além de nós mesmos, que não apresenta natureza nem racional, nem emocional, mas as duas amalgamadas. Daí a necessidade de se ter “sobre a natureza um ponto de vista, um conhecimento, um saber amplo e detalhado que nos permita 40 precisamente conhecer não apenas sua organização global, mas seus detalhes” (FOUCAULT, 2004, p. 339). A espiritualidade é reverência, uma espécie de confiança em nossa capacidade de usar amplamente o poder das virtudes; não de uma virtuosidade apenas inter-humana, mas uma virtuosidade planetária, o que “pressupõe um compromisso com a bondade do mundo, uma bondade que pode ser infinitamente multifacetada e plural, mas que reconhecemos como sendo muito maior e mais poderosa que nós mesmos” (SOLOMON, 2003, p. 100). Tornamo-nos dessa forma sagrados, porque participamos, “como membros da comunidade universal que nos produz com a substância das estrelas” (O’SULLIVAN, 2004, p. 379), da dimensão sagrada de todo o universo. E a percepção da grandeza numinosa e inefável da vida conduz, na revelação de Teilhard de Chardin (1986), o nosso espírito ao ‘êxtase’, como o arrebatamento íntimo, o enlevo, o arroubo “que transporta para fora do mundo exterior e leva a participar de uma realidade superior e universal”, o Espírito da Terra (idem, p. 335). Por isso, nossa luta não pode mais se limitar apenas pela sobrevivência, mas pela ‘supervida’ universal que, no dizer de Chardin, é o nosso “acesso à vida consciente coletiva que ultrapassa a vida consciente individual [...], engendrada pela união dos centros pessoais entre si e pela união de todas as pessoas num foco ‘hiperpessoal’ de amor e de irreversibilidade” (p. 269). Impõe-nos, pois, a espiritualidade que propicia a contemplação “da maravilha e do mistério do universo”; da “promoção do processo de criação de significado”; da concepção de “unidade da natureza e da humanidade”; “de um mito cultural que sirva de base para a fé na capacidade humana de participar de um mundo de justiça, compaixão”; além “do cuidado com o outro, amor e felicidade”, “de ideais de comunidade e interdependência”, “de atitudes de indignação e responsabilidade diante da injustiça, da 41 indignidade, da violência e da opressão” (PURPEL apud O’SULLIVAN, 2004, p. 393-396). Por isso, a espiritualidade catalisa as manifestações reveladoras do sagrado, como amor pela Vida, que se realiza na utopia de um mundo justo e fraterno. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10 ed. São Paulo: Forense Universitária, 2001. _______. Entre o Passado e o Futuro. Coleção Debates. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. BORGES, Jorge Luis. História da Eternidade. Trad. Carmen Cirne Lima. 4.ed. São Paulo: Globo, 1997. CHARDIN, Teilhard de. O Fenômeno Humano. [1955]. 6.ed. São Paulo: Cultrix, 2003. FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. JONAS, Hans. O Princípio Vida – Fundamentos para uma biologia filosófica. Trad. Carlos Almeida Pereira. Petrópolis/RJ: Vozes, 2004. O’SULLIVAN, Edmund. Aprendizagem Transformadora - Uma visão educacional para o século XXI. São Paulo: Cortez Editora; Instituto Paulo Freire, 2004. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. 1. São Paulo: Loyola, 1993. SOLOMON, Robert C. Espiritualidade para Céticos – Paixão, verdade cósmica e racionalidade no século XXI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 42 Capítulo 3 AAGGOOSSTTIINNHHOO DDEE HHIIPPOONNAA:: AA VVEERRDDAADDEE,, OOSS SSEENNTTIIDDOOSS EE OO ““MMEESSTTRREE IINNTTEERRIIOORR”” Rogério Miranda de Almeida Ao iniciar a construção de sua teoria do conhecimento, na obra intitulada Contra os acadêmicos, Agostinho ataca igualmente as teorias céticas da “média” e da “nova” Academia de Platão. A primeira teve como chefe de fila, ou como diretor, Arcesilau de Pitane (c. 315–c. 240 a.C.), enquanto que a “nova” Academia foi comandada por Carnéades de Cirene (c. 214–c. 128 a.C.), seguido por Clitômaco de Cartago, Filão de Larissa e Antíoco de Ascalona. Foi, sobretudo, graças às leituras de Cícero que o teólogo africano se familiarizou com a história e as principais ideias da Academia. Do ponto de vista formal, a obra Contra os acadêmicos se divide em três livros e se apresenta como a primeira produção dos “diálogos de Cassiciaco” que se desenrolaram durante o chamado período de conversão do professor de retórica. Este período se acha compreendido entre o fim do verão de 386 e as primeiras semanas de 387. Cassiciaco era uma propriedade de um amigo de Agostinho, situada não muito distante de Milão, onde ele transcorreu esses meses discutindo questões filosóficas juntamente com a sua mãe, Mônica, com o filho, Adeodato, com o irmão, Navígio, o amigo, Alípio, alguns discípulos e mais dois parentes. Certo, os primeiros escritos agostinianos não derivam todos da convivência que tiveram 43 esses personagens em Cassiciaco. Não são dessa época, por exemplo, A potencialidade da alma, O livre-arbítrio, A música e O mestre. Não obstante, com exceção de A imortalidade da alma e dos Solilóquios – que é propriamente um monólogo ou, mais exatamente, um diálogo de Agostinho consigo mesmo – todos os demais textos foram redigidos sob a forma de diálogo, inclusive o Contra os acadêmicos, A vida feliz e A ordem. A tônica que atravessa e caracteriza esses escritos é a questão da linguagem, da “iluminação interior”, da fiabilidade ou não fiabilidade dos sentidos e, em suma, a busca da verdade. Retenha-se, contudo, que esta busca é paradoxal, na medida em que o “mestre interior” não pode prescindir nem dos sentidos nem da linguagem que a exprime. É, pois, esta problemática que pautaráas reflexões que se seguem, as quais têm como ponto de partida e referência principal a obra Contra os acadêmicos. O CETICISMO E A BUSCA DA VERDADE Não é por acaso que Agostinho põe na boca de seu discípulo Licêncio, já no Primeiro Livro de Contra os acadêmicos, a declaração de Cícero segundo a qual nada pode ser conhecido com certeza e que o sábio deve dedicar-se incansavelmente à busca da verdade, porquanto, mesmo na hipótese de que as coisas incertas possam eventualmente revelar-se como verdadeiras, o sábio não estaria isento de erro. Esta última possibilidade, prossegue o discípulo, estaria em total desacordo com a sua condição ou sua pretensão de sábio. Por conseguinte, e em contraste com a conclusão de seu interlocutor Trigésio, a opinião de Licêncio é a de que se se deve aceitar que o sábio é necessariamente feliz, e se o papel da sabedoria consiste tão somente na busca da verdade, forçoso é admitir que uma vida é feliz na medida mesma em que dura a investigação ou a procura da verdade (Cf. AGOSTINHO, 2006, p. 31). Melhor dizendo, a felicidade reside 44 na busca contínua, incessante e infatigável da verdade, pois – pondera o defensor dos Acadêmicos – aquele que busca a verdade com menos tenacidade do que convém à finalidade do homem, jamais poderá atingir este fim, que é justamente a busca perfeita da verdade. Aquele, porém, que a procura sem trégua nem descanso pode considerar-se feliz, mesmo se não a encontra jamais (Cf. ibid., p. 35). A partir dessas afirmações, não se pode senão chegar a esta constatação, ou a esta problemática: se todo filosofar é busca ou investigação, é o próprio conceito de filosofia, enquanto ciência, que agora deve ser questionado. Pois, com a obtenção desta ciência, cessa simultaneamente a sua busca e, por conseguinte, o processo filosofante, que se verá na necessidade de reconhecer o seu próprio termo, ou os seus próprios limites. Todavia, e conforme as declarações de Licêncio, se a felicidade e o fim da alma racional consistem no filosofar, a filosofia estaria paradoxalmente destinada a jamais atingir a verdade que procura. De sorte que o filosofar – e a felicidade que lhe está inerentemente vinculada – se resolveriam não propriamente na meta a que se propuseram, mas no vir-a-ser que conduziria a esta meta. O Primeiro Livro de Contra os acadêmicos termina, portanto, numa suspensão de sentido, e esta suspensão é tanto mais relevante quanto é o próprio Agostinho quem sublinha, numa tradição que remonta a Platão e a Aristóteles, que todos aspiram à felicidade, mas que a felicidade só será possível se a verdade for encontrada ou – ajunta o retórico – se ela for diligentemente procurada. Com efeito, afirma, “devemos colocar em segundo plano todo o resto e dar-nos inteiramente à busca da verdade, se quisermos ser felizes” (Ibid., p. 63). No Segundo Livro, é o próprio Agostinho quem exporá, mas de maneira difusa, as características principais da filosofia acadêmica, segundo a qual não se deve aderir a qualquer doutrina ou a qualquer enunciado para não se incorrer em erro. Porém, o retórico ironiza esta atitude cética ao afirmar 45 que os acadêmicos dizem seguir na vida prática a semelhança (similitudo) do verdadeiro (verum), quando na realidade ignoram a própria natureza do verdadeiro. Segue-se então uma análise crítica dessas noções e se demonstra – tanto da parte de Agostinho quanto da de Licêncio – que o cético é paradoxalmente obrigado a pressupor e a fazer uso da verdade. É que a própria escolha de excluir o “verdadeiro” para dar lugar ao “verossímil” não pode ser feita senão a partir do próprio conceito de “verdade” (Cf. ibid., p. 99, 109, 111). Ao invés, portanto, de admitir a noção de verossímil, os convivas aderiram à sugestão de Agostinho, que se propôs demonstrar estas duas possibilidades: 1) é muito mais provável que o sábio possa atingir a verdade; 2) não se deva manter para sempre o juízo em suspensão. O Terceiro Livro se desenvolve como uma retomada e, ao mesmo tempo, um aprofundamento da problemática do paradoxo do ato de filosofar que, como vimos no Primeiro Livro, pressupõe a não apropriação total da verdade. Aqui também Agostinho examina – embora não mais sob a forma de diálogo, mas de exposição – uma passagem de Cícero sobre os acadêmicos e a definição estoica de Zenão acerca do “verdadeiro”. De suas análises resulta que o filosofar consiste essencialmente não na posse da verdade, mas na possibilidade mesma de se conhecer a verdade. É, todavia, curioso o fato de Agostinho evocar, pela boca de seu interlocutor Alípio, a divindade marinha Proteu, que gozava da reputação de se metamorfosear e de conhecer o presente, o passado e o futuro. No entanto, este “velho do mar” – cuja residência Homero situava na ilha de Faros e Virgílio na de Cárpatos – não revelava facilmente seus presságios a quem o fosse consultar. Quem dele, pois, desejasse extrair profecias devia ir encontrá-lo na hora do repouso meridiano, quando seria possível amarrá-lo e, assim, coagi-lo a proferir seus vaticínios. Surpreendido, porém, e pleno de cólera, Proteu se transformava numa série de 46 monstros, chegando mesmo a revestir as aparências da água e do fogo. Caso, contudo, não conseguisse suplantar seu adversário, o adivinho retomava sua forma primitiva e, então, consentia em falar. Sintomático é, pois, ver Alípio – após recapitular a doutrina dos Acadêmicos, segundo a qual não se deve dar o seu assentimento irrefletidamente – assimilar esta suspensão de juízo àquela imagem de Proteu que – diz ele – se deixava amarrar tão somente para melhor fugir à tentativa de apreendê-lo (Cf. ibid., p. 141). Mais curioso ainda é constatar que também Agostinho faz apelo – certo, de maneira irônica – à mitologia e aos poetas que apresentam Proteu “como a figura da verdade”; esta verdade que ninguém poderá reter caso, “enganado por falsas imagens, tenha afrouxado ou deixado partir os nós da compreensão” (Ibid., p. 143). A compreensão a que se refere Agostinho remete obviamente à esfera da razão, que na tradição platônica, e neoplatônica, é a única capaz de apreender a essência dos objetos, mas desde que, à diferença da imaginação – que não cessa de deambular pelo mundo da sensibilidade e da efemeridade – não se deixe seduzir pela aparência e pelas transformações que o caracterizam. Ora, não esqueçamos de que o próprio Agostinho, além de sua formação retórica e musical, recorre frequentemente à mitologia e à literatura romanas9. De sorte que esta aversão e depreciação vis-à-vis da imaginação e da sensibilidade – que só tenderão a se acentuar ao longo de sua obra – já poderiam revelar-se como sintomas de um conflito ou de duas tendências que caracterizam um escritor em cujo estilo se fazem ressaltar a plasticidade, os jogos de palavras, as 9 Para a formação de Agostinho, veja a obra clássica de H.-I. MARROU, Saint Augustin et la fin de la culture antique. Paris: E. De Boccard, 1958 (1ª. ed. 1938), capítulos I-III. 47 imagens, as metáforas, as metonímias, a verve, a erótica e, enfim, a sedução e a beleza do dizer, ou do como dizer10. Com relação à figura de Proteu que Agostinho evoca nessa passagem, não se pode deixar de pensar naquele registro do real que Lacan amarrará borromeanamente com os outros registros do imaginário e do simbólico. O real não pode ser concebido sem um e sem outro, todavia, ele permanece hostil a toda tentativa de captação, porquanto é de natureza proteiforme. Com efeito, pela experiência da fala e, portanto, da falha, da falta, dos ditos e dos inter-ditos que não cessam de reenviar a este impossível, o real se manifesta como aquele dado bruto que está continuamente a retornar e a se oferecer à simbolização, na medida mesma em que escapa, se elide e se a subtrai à significação enquanto tal. É o próprio Lacan quem chama a atenção para este