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FFIILLOOSSOOFFIIAA EE EEDDUUCCAAÇ
AAPPRROOXXIIMMAAÇÇÕÕEESS EE CCOONNVVEERRGGÊÊNNCCIIAA
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Paulo Eduardo de Oliveira 
(organizador) 
 
 
AÇÇÃÃOO 
AASS 
 
 2 
 
 
 
 
FFIILLOOSSOOFFIIAA EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO 
AAPPRROOXXIIMMAAÇÇÕÕEESS EE CCOONNVVEERRGGÊÊNNCCIIAASS 
 
 
 
Paulo Eduardo de Oliveira 
(organizador) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Círculo de Estudos Bandeirantes 
2012 
 
 
 
 
 3 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Com a educação presente, o homem não atinge 
plenamente a finalidade da sua existência. [...] 
Podemos trabalhar num esboço de educação mais 
conveniente e deixar indicações aos pósteros, os 
quais poderão pô-las em prática pouco a pouco. 
 
Immanuel Kant 
 
 
 4 
 
 
 
Copyright © 2012 
 
Todos os direitos desta edição reservados ao 
CÍRCULO DE ESTUDOS BANDEIRANTES 
 
 
 
OLIVEIRA, Paulo Eduardo de (org.) 
 
Filosofia e educação: aproximações e convergências / 
Paulo Eduardo de Oliveira (org.). Curitiba: Círculo de 
Estudos Bandeirantes, 2012. 
 
ISBN 
978-85-65531-01-6 
 
1. Filosofia. 2. Educação. 3. História da Filosofia. 
4. Filosofia da Educação. 
 
Inclui bibliografia. 
 
 
 5 
 
 
 
CÍRCULO DE ESTUDOS BANDEIRANTES 
Afiliado à Pontifícia Universidade Católica do Paraná 
Rua XV de Novembro, 1050 - Curitiba – Paraná 
Fone: (41) 3222-5193 
http://www.pucpr.br/circuloestudos/ 
 
 
Presidente: Prof. Dr. Clemente Ivo Juliatto 
Diretor: Prof. Sebastião Ferrarini 
 
 
Conselho Editorial 
Prof. Dr. Agemir de Carvalho Dias – FEPAR 
Prof. Dr. Edilson Soares de Souza – FTBP 
Prof. Dr. Eduardo Rodrigues Cruz – PUCSP 
Prof. Drª Etiane Caloy Bovkalovski – PUCPR 
Prof. Dr. Euclides Marchi – UFPR 
Prof. Dr. Gerson Albuquerque de Araújo Neto – UFPI 
Prof. Dr. Jean Lauand – USP 
Prof. Dr. Jean-Luc Blaquart – Universidade Católica de Lille (França) 
Prof. Dr. João Carlos Corso – UNICENTRO 
Prof. Dr. Joaquín Silva Soler – PUC-Chile 
Prof. Drª Karina Kosicki Bellotti – UFPR 
Prof. Dr. Lafayette de Moraes – PUCSP 
Prof. Drª Márcia Maria Rodrigues Semenov – UNISANTOS 
Prof. Drª Maria Cecília Barreto Amorim Pilla – PUCPR 
Prof. Dr. Paulo Eduardo de Oliveira – PUCPR 
Prof. Dr. Silas Guerriero – PUCSP 
Prof. Dr. Uipirangi Franklin da Silva Câmara – FTBP 
Prof. Drª Wilma de Lara Bueno – UTP 
 
 
 
 
 6 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Nota do Organizador 
 
A sequência dos capítulos obedece, na medida do 
possível, a própria cronologia dos pensadores aqui 
contemplados. Esta mesma sequência é utilizada para a 
apresentação da breve biografia dos respectivos autores 
dos capítulos, na sessão Sobre os Autores. 
 
Procurou-se, ao longo de toda a obra, dar certa 
homogeneidade aos formatos das citações e referências 
bibliográficas utilizadas. Contudo, respeitou-se também 
o estilo de cada autor e, sobretudo, tomou-se o cuidado 
para manter as peculiaridades na forma de citação dos 
textos clássicos da Filosofia que, em muitos casos, não 
se alinham às normas técnicas vigentes. 
 
As notas de rodapé têm numeração sequencial em toda 
a obra, independentemente do capítulo, de modo a 
manter a unidade do trabalho. 
 
 7 
 
 
 
 
 
 
 
SSUUMMÁÁRRIIOO 
 
AAPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO [[1100]] 
 
SSOOBBRREE OOSS AAUUTTOORREESS [[1133]] 
 
AA PPEEDDAAGGOOGGIIAA AANNTTEESS DDAA PPEEDDAAGGOOGGIIAA [[1199]] 
Barbara Botter 
 
SSÓÓCCRRAATTEESS EE AA FFOORRMMAAÇÇÃÃOO DDOO MMEESSTTRREE:: VVIIRRTTUUDDEE,, ÉÉTTIICCAA EE 
EESSPPIIRRIITTUUAALLIIDDAADDEE [[3322]] 
Ricardo Tescarolo 
 
AAGGOOSSTTIINNHHOO DDEE HHIIPPOONNAA:: AA VVEERRDDAADDEE,, OOSS SSEENNTTIIDDOOSS EE OO 
““MMEESSTTRREE IINNTTEERRIIOORR”” [[4422]] 
Rogério Miranda de Almeida 
 
TTOOMMÁÁSS DDEE AAQQUUIINNOO:: FFIILLOOSSOOFFIIAA EE PPEEDDAAGGOOGGIIAA [[5577]] 
Jean Lauand 
 
BBOOAAVVEENNTTUURRAA EE AA FFIILLOOSSOOFFIIAA:: OO EENNSSIINNOO UUNNIIVVEERRSSIITTÁÁRRIIOO [[7744]] 
Eduardo Vieira da Cruz 
 
MMOONNTTAAIIGGNNEE:: CCEETTIICCIISSMMOO EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[110000]] 
Celso Martins Azar Filho 
 
DDEESSCCAARRTTEESS,, MMÉÉTTOODDOO EE CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO [[112211]] 
Ethel Menezes Rocha 
 8 
 
LLOOCCKKEE,, OO CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO EE AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[114444]] 
Gustavo Araújo Batista 
 
KKAANNTT EE AA TTAARREEFFAA DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[116622]] 
Vera Cristina de Andrade Bueno 
 
RROOUUSSSSEEAAUU:: AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOOSS SSEENNTTIIMMEENNTTOOSS EE 
DDAASS VVIIRRTTUUDDEESS [[117788]] 
Ericson Falabretti 
 
HHEEGGEELL,, HHIISSTTÓÓRRIIAA DDAA FFIILLOOSSOOFFIIAA EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[119988]] 
Luiz Fernando Barrére Martin 
 
AASS CCRRÍÍTTIICCAASS DDEE MMAARRXX EE HHUUMMEE ÀÀ FFIILLOOSSOOFFIIAA CCOOMMOO 
FFUUNNDDAAMMEENNTTOOSS PPAARRAA AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[220088]] 
Samuel Mendonça 
 
GGOOTTTTLLOOBB FFRREEGGEE EE OO EENNSSIINNOO DDAA MMAATTEEMMÁÁTTIICCAA [[223399]] 
Lafayette de Moraes 
Carlos Roberto Teixeira Alves 
 
NNIIEETTZZSSCCHHEE:: PPAARRAA UUMMAA PPEEDDAAGGOOGGIIAA DDAA AAMMIIZZAADDEE [[225566]] 
Jelson Roberto de Oliveira 
 
FFRREEUUDD EE OO IIMMPPOOSSSSÍÍVVEELL OOFFÍÍCCIIOO DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[228866]] 
Fátima Caropreso 
 
EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO,, VVIIDDAA EE CCOOTTIIDDIIAANNOO:: UUMMAA LLEEIITTUURRAA AA PPAARRTTIIRR DDAA 
PPRRAAGGMMÁÁTTIICCAA DDEE LLUUDDWWIIGG WWIITTTTGGEENNSSTTEEIINN [[330000]] 
Bortolo Valle 
 
GGAASSTTOONN BBAACCHHEELLAARRDD:: EESSPPÍÍRRIITTOO DDEE EESSCCOOLLAA EE SSOOCCIIEEDDAADDEE [[332299]] 
Fábio Ferreira de Almeida 
 
 9 
FFOOUUCCAAUULLTT,, AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO EE AASS RREESSIISSTTÊÊNNCCIIAASS AAGGOONNIIZZAANNDDOO AA 
MMÁÁQQUUIINNAA PPAANNÓÓPPTTIICCAA [[334455]] 
Gilmar José De Toni 
 
RREEFFLLEEXXÕÕEESS AA PPAARRTTIIRR DDOO TTEEXXTTOO ““RRAACCIIOONNAALLIIDDAADDEE EE 
RREEAALLIISSMMOO”” DDEE JJOOHHNN SSEEAARRLLEE [[336677]] 
Kleber Bez Birollo Candiotto 
 
SSAARRTTRREE,, EEXXIISSTTEENNCCIIAALLIISSMMOO EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[338899]] 
Daniela Ribeiro Schneider 
 
CCOONNSSIIDDEERRAAÇÇÕÕEESS SSOOBBRREE AA IINNFFLLUUÊÊNNCCIIAA DDAA FFIILLOOSSOOFFIIAA 
GGRRAAMMSSCCIIAANNAA NNOO PPEENNSSAAMMEENNTTOO DDEE DDEERRMMEEVVAALL SSAAVVIIAANNII [[440055]] 
Célia Kapuziniak 
 
ÉÉTTIICCAA EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO:: UUMMAA RREEFFLLEEXXÃÃOO AA PPAARRTTIIRR DDAA NNOOÇÇÃÃOO DDEE 
CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO FFAALLÍÍVVEELL EEMM KKAARRLL PPOOPPPPEERR [[442222]] 
Paulo Eduardo de Oliveira 
 
 
 
 
 
 10 
 
 
 
 
 
 
 
AAPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO 
 
O empenho filosófico destina-se não somente à 
compreensão do mundo e do homem, mas também, ainda que 
implicitamente, à educação deste mesmo homem, cuja vida se 
desenrola na relação com o mundo. A prática educativa, por 
sua vez, encerra em seu interior uma determinada visão do 
homem e do mundo e, portanto, inclui uma posição filosófica 
definida, mesmo que tal posição nem sempre seja objeto da 
consciência dos atores envolvidos no processo educativo. Não 
se pode negar, portanto, as íntimas relações que se 
estabelecem entre Filosofia e Educação. Trata-se, certamente, 
não de sobreposições ou interferências arbitrárias, mas, isso 
sim, de mesclas teórico-conceituais que se foram tecendo 
juntas (o que corresponde ao sentido literal da palavra 
complexo ou complexidade), como os diferentes fios que se 
juntam para constituir uma única peça. 
Dos antigos gregos aos filósofos dos nossos dias, 
percebem-se muitas trilhas de aproximação entre os distintos 
campos do saber filosófico e da ciência pedagógica, 
evidenciando-se, desse modo, as possibilidades inauditas de 
entrecruzamento e de diálogo, de convergências e de 
aproximações entre os habitantes destes dois espaços de 
teorização-compreensão da vida, do homem e do mundo. Dos 
Pré-Socráticos a Popper, os mais destacados filósofos também 
se dedicaram, de uma forma ou de outra, a atividades de 
ensino e docência; por outro lado, a maior parteparadoxo fundamental: “O real, ou 
aquilo que é percebido como tal, é o que resiste absolutamente 
à simbolização” (LACAN, 1975, p. 80). Isto quer dizer que a 
nossa percepção dos fenômenos só se dá, ou só se escreve, 
através das próprias sinuosidades e ambiguidades que 
atravessam, marcam, pontilham e informam o mundo dos 
sentidos. 
 
 
A PERCEPÇÃO OU A VERDADE DOS SENTIDOS 
Não é, pois, fortuitamente que, no Terceiro Livro de 
Contra os acadêmicos, Agostinho desafia seus interlocutores 
quanto a saberem se este mundo realmente existe, porquanto se 
supõe que os sentidos enganam. Ora, este desafio é tanto mais 
importante quanto o retórico objeta que os argumentos que se 
evocam em torno da não fiabilidade dos sentidos jamais foram 
capazes de desmentir a força que eles exercem e, portanto, de 
levá-lo a convencer-se de que nada parece ou está como é. 
 
10 No parágrafo 128 de Para além de bem e mal, Nietzsche dirá: “Quanto mais 
abstrata for a verdade que queres ensinar, tanto mais deverás seduzir para ela os 
sentidos” (NIETZSCHE, 1988, p. 95). 
 48 
Consequentemente, a principal objeção que se poderia 
levantar contra os céticos consiste no seguinte: conquanto eles 
se empenhem em demonstrar que as coisas podem ser 
diferentes do modo como aparecem aos nossos sentidos, elas 
não podem deixar de parecer aquilo que parecem ser (Cf. ibid., 
p. 165). É certo, pois, dizer que os sentidos percebem o falso; 
certo não é, porém, afirmar que nada percebem, porquanto 
não há como negar que o universo aparece aos nossos olhos 
como aquilo que contém o céu e a terra, ou que é visto como 
sendo o céu e a terra. Portanto, forçoso é concluir que o erro 
não reside nos sentidos – na medida em que os sentidos 
sentem somente aquilo que sentem – mas no julgamento que 
se dá de maneira precipitada, irrefletida, sobre aquilo que nos 
aparece como tal. Inversamente, não haverá engano quando 
não se der o seu assentimento além do necessário para 
persuadir alguém de que uma determinada coisa parece ser 
deste ou daquele outro modo (Cf. ibid., p. 169)11. 
Para fundamentar a tese de que não se deve exigir dos 
sentidos mais do que eles podem perceber, Agostinho recorre 
à analogia que há entre o estado de vigília e o do sono. Sabe-se 
efetivamente que, no sono, as coisas se aproximam ainda mais 
do falso do que no estado de vigília. Se, pois, não se pode 
conhecer com certeza nem mesmo o fato de estarmos 
acordados, esta impossibilidade se revelará a fortiori quando se 
consideram os fenômenos do universo onírico. Todavia, 
retruca Agostinho, se os mundos se compõem de um mais 
seis, é patente que os mundos formam sete em qualquer 
situação ou estado em que nos encontrarmos. De igual modo, 
que nove sejam três vezes três e forme um quadrado de 
números inteligíveis, é necessariamente verdadeiro mesmo se 
toda a humanidade estivesse a ressonar. De sorte que os 
sentidos não devem ser acusados ao constatar-se que os 
 
11 Convém, porém, lembrar que Agostinho não acusa os Acadêmicos de terem negado 
valor aos sentidos. O que ele ressalta é justamente não ter neles encontrado nenhuma 
crítica contra os sentidos (Cf. ibid., p. 167-169). 
 49 
delirantes são afetados por falsas visões, nem tampouco pelo 
fato de, quando sonhamos, percebermos coisas falsas (Cf. ibid., 
p. 167). 
Essas ponderações nos conduzem quase 
irremediavelmente para as Meditationes de prima philosophia, de 
René Descartes, e, mais precisamente, para a Primeira 
Meditação, onde o filósofo francês realiza – deslavada e 
despudoramente – mais um de seus numerosos plágios sobre 
as intuições que, doze séculos antes, já havia avançado e 
desenvolvido o teólogo africano. Assim, baseando-se quase 
nos mesmos exemplos, Descartes assevera: “Seja que me 
encontre acordado ou dormindo, a soma de dois mais três é 
sempre cinco e o quadrado não tem mais que quatro lados” 
(DESCARTES, 1999, p. 408). Voltarei a esta problemática na 
terceira e última seção deste capítulo. Por enquanto, 
sublinhemos mais uma vez que, para Agostinho, o erro não 
reside nos órgãos dos sentidos, mas tão somente nos juízos 
que, irrefletidamente, emitimos sobre aquilo que parece ser. 
Donde o clássico exemplo da ilusão ótica, na qual o remo 
imerso na água parece quebrado ou oblíquo. Um epicureu – 
lembra Agostinho – poderia observar: “A respeito dos 
sentidos, nada tenho a lamentar, pois seria injusto deles exigir 
mais do que podem. Assim, tudo o que podem ver os olhos, 
estes veem algo verdadeiro. É então verdadeiro o que veem a 
respeito do remo na água?” (AGOSTINHO, 2006, p. 167). 
Para Agostinho, não há dúvida de que é verdadeiro 
aquilo que aparece aos nossos olhos como sendo um remo 
quebrado. Verdadeiro também é o fato de que, para os 
navegantes, as torres, vistas de longe, parecem mover-se. 
Verdadeiro igualmente é o fenômeno indicando que a 
plumagem de certas aves muda de cor conforme o ângulo do 
qual ela é observada. De sorte que não se poderia confutar 
aquele que declarasse: “Sei que isto me parece branco, sei que 
meu ouvido encontra deleite nisto, sei que para mim isto tem 
 50 
um odor agradável, sei que para mim isto tem um doce sabor, 
sei que isto para mim é frio” (Ibid., p. 169). 
Moustapha Safouan, no livro, L’échec du principe du 
plaisir, chama a atenção para algumas consequências que o 
problema da percepção acarretou para três filósofos: Platão, 
Berkeley e Kant. Em Berkeley, a aparência ou a percepção se 
teria anexado ao próprio eu, de modo que, ao reduzir-se o ser a 
esta mesma percepção, não se poderia evitar a consequência 
de negar o ser e, destarte, desprover a percepção de sua 
própria realidade ou de seu caráter de ser real. Quanto ao 
autor da Crítica da razão pura, existiria também uma anexação 
da aparência ou da percepção, não ao eu, mas ao sujeito do 
conhecimento, cuja função, através da influência que exercem as 
formas puras da intuição sobre as percepções, é a de organizar 
ou constituir o objeto como tal. Com relação à coisa mesma, 
esta permanece como que subtraída ao nosso conhecimento e, 
portanto, como uma coisa em si, um não-objeto. Isto equivale a 
dizer que o ser, o não-eu, é mantido, mas sem nenhuma 
identidade verificável para nós. Em outros termos, embora 
mantido, este ser continua sendo indeterminado e 
indeterminável (Cf. SAFOUAN, 1979, p. 23). 
Em Platão, a percepção de que as coisas se apresentam 
numa perpétua instabilidade, mobilidade e mutabilidade – o 
mesmo remo, por exemplo, aparecendo ora inteiriço ora 
quebrado, ora mais longo ora mais curto, ora num lugar ora 
noutro – teria conduzido o filósofo a deslocar todos esses 
fenômenos, não para o percipiens, mas para as próprias coisas 
percebidas. Mas, assim fazendo, Platão as teria privado de 
todo status ontológico, de sorte que as realidades sensíveis – 
por se transformarem continuamente – não podem ser 
apreendidas pela razão enquanto conceitos. Quanto ao 
verdadeiro ser, este reside no reino das Ideias, ou das 
essências inteligíveis, que são divinas, porque inascíveis, 
imperecíveis, imutáveis, eternas. Assim, conclui Safouan, todo 
o problema do platonismo consiste em saber como é possível 
 51 
situar o verdadeiro ser acima do mundo sensível e, portanto, 
fora de nós, reivindicando ao mesmo tempo – em contraste 
com a incognoscibilidade da coisa-em-si kantiana – a 
possibilidade mesma de conhecê-lo. Por conseguinte, a 
distinção entre a aparência e a realidade que, na perspectiva 
idealista, é assimilada à distinção entre o que pertence ao 
sujeito e o que reside fora do sujeito, ou do alcance de seu 
conhecimento, já se acharia enunciada em Platão. Todavia, ela 
se exprime aqui sob a modalidade de uma separação entre as 
mutações do mundo sensível – que encerram uma aparência de 
ser – e o ser verdadeiro (Cf. ibid., p. 23-24). 
Ora, na minha perspectiva, o que está em jogo, tanto em 
Platão quanto em Kant, não é –pelo menos em primeiro lugar 
– a cognoscibilidade ou a incognoscibilidade de uma dessas 
duas esferas, mas, sobretudo, o espaço por onde possam 
articular-se, melhor, entrelaçar-se, entressachar-se, imbricar-se, 
ou entre-mear-se, o inteligível e o sensível. Refiro-me, 
evidentemente, ao vínculo, ao meio ou ao entre-dois – Lacan 
diria a letra ou o real – pelo qual se efetua, ou não para de se 
efetuar, a significação e, consequentemente, a descarga da 
tensão que todo desejo encerra. É neste sentido que Roland 
Sublon afirma que a alma platônica e o esquema kantiano já se 
revelam como uma construção que tenta conjugar o idêntico e 
o diferente. De resto, é a manipulação da fita unilateral de 
Moebius que permite mostrar uma estrutura de borda, onde 
um registro não cessa de passar para o outro, ou pelo outro, no 
topos mesmo de uma linha sem ponto (Cf. SUBLON, 2004, p. 
34). 
Mas o objetivo que Moustapha Safouan realmente visa 
alcançar parece ser este: em Freud – que não questiona nem a 
realidade nem a veracidade da percepção – assiste-se a uma 
reviravolta radical, na medida em que o princípio do erro é 
colocado não no objeto, mas no próprio sujeito. Um sujeito – 
convém lembrar – ao qual o inventor da psicanálise atribui 
uma tendência originária, primordial, para a alucinação. Eis a 
 52 
razão pela qual a concepção freudiana da percepção estaria 
mais próxima daquela de Agostinho que daquelas de Platão, 
Berkeley e Kant. É o que deixa claramente pressupor o 
analista, ao explicar: 
 
Porque, a partir do momento em que ele é submisso a essa 
tendência, e à necessidade de uma função secundária que dela 
resulta, o sujeito é suscetível não somente, como diz 
Agostinho, de julgar como verdadeiro aquilo que é falso (com 
o risco para o eu de intervir demasiadamente cedo), mas 
também de julgar como falso aquilo que é verdadeiro (com o 
risco para o eu de intervir demasiadamente tarde) – 
(SAFOUAN, 1979, p. 25). 
 
Sem embargo, todo desejo é, por natureza, alucinatório, 
porquanto ele traz consigo uma carga de tensão que quer 
incondicionalmente, imperiosamente, ser descarregada, 
aplacada, apaziguada. A própria distorção da realidade, que 
aparece ora de uma maneira ora de outra, já poderia ser a 
expressão inconsciente de uma tentativa do sujeito para 
deslocar a angústia, que acompanha todo desejo. É paradoxal, 
portanto – para retornarmos à questão da fiabilidade ou não 
fiabilidade dos sentidos – o fato de que não se pode conceber a 
busca da verdade, ou daquilo que se considera verdade, sem 
pensar ao mesmo tempo na ilusão, na aparência, no engano, 
na mentira, na dúvida. 
 
 
A DÚVIDA E A VOZ DO “MESTRE INTERIOR” 
 Com efeito, já no Contra os Acadêmicos, faz-se delinear a 
questão que nos diálogos posteriores – A vida feliz, Solilóquios, 
O livre-arbítrio – e, mais particularmente, nos tratados 
redigidos a partir de 399 – A Trindade e A Cidade de Deus – 
Agostinho explicitará como sendo a relação intrínseca entre o 
engano e a certeza, a razão e a hesitação, a dúvida e a 
existência. Deste modo, na Trindade e, mais especificamente, 
 53 
na Cidade de Deus, a dúvida será surpreendentemente 
apresentada como a instância a partir da qual o sábio poderá 
finalmente afirmar: “Se me engano, então eu existo”, “Si enim 
fallor, sum” (AGOSTINHO, 2000, p. 564). Mas, como eu 
insinuei logo acima, essa questão se faz de certo modo 
presente já no Contra os Acadêmicos e, mais precisamente, no 
Livro III, onde Agostinho enfatiza que seria um absurdo 
afirmar: “O sábio não sabe por que vive, não sabe de que 
modo vive, não sabe se vive e, enfim – não se poderia dizer algo 
de mais errôneo, delirante e insano – que o sábio existe e, ao 
mesmo tempo, ignora a sapiência” (AGOSTINHO, 2006, p. 
155, grifos meus). 
Difícil não é deduzir que a passagem sublinhada – não 
sabe se vive – foi a que deu ensejo para que se detectasse, já no 
Contra os Acadêmicos, um antecedente daquilo que, no século 
XVII, Descartes se apropriaria ao elaborar a sua teoria do 
“Cogito, ergo sum”. No diálogo seguinte, A vida feliz, essa 
questão será retomada e, nos Solilóquios, ela se tornará ainda 
mais explícita, na medida em que se trata aqui de um diálogo 
que Agostinho estabelece consigo mesmo ou, mais 
exatamente, entre si mesmo e a Razão. É a voz do “mestre 
interior” que indaga sobre o existir, o viver e o conhecer. A Razão 
lança esta interrogação: “Tu, que queres conhecer-te, sabes que 
existes?” A: “Eu o sei”. R: “Como o sabes?” A: “Não o sei”. R: 
“Tu te sentes simples ou múltiplo?” A: “Não o sei”. R: “Sabes 
que és movido?” A: “Não o sei”. R: “Sabes que pensas?” A: 
“Eu o sei”. R: “Logo, é verdade que pensas”. A: “É verdade” 
(Ibid., p. 533). Como se vê, o sujeito pode duvidar da maneira 
como sabe que existe, pode duvidar se é simples ou múltiplo, 
móvel ou fixo, mas não pode duvidar que existe, que pensa, 
que sabe, que conhece. Ele está, portanto, seguro que se sabe 
existente, vivente, pensante. 
A questão da dúvida como um componente essencial do 
conhecimento, ou da busca da verdade, encontrou a sua 
formulação emblemática no tratado da Trindade, onde 
 54 
Agostinho, além de fazer uma espécie de balanço da filosofia 
pré-socrática, reitera o seu método fundamental do diálogo da 
alma consigo mesma. Assim, nesta passagem, o leitor poderá 
constatar não somente a dinâmica da introspecção agostiniana, 
mas também a apropriação ou, mais exatamente, o plágio 
direto e deslavado que Descartes sobre ela operou nas 
Meditações: 
 
Mas porque se trata da natureza do espírito, retiremos da 
nossa consideração todos os conhecimentos que nos provêm 
do exterior, por intermédio dos sentidos do corpo, e 
consideremos com mais diligência o que já havíamos 
estabelecido, isto é, que todos os espíritos se conhecem a si 
mesmos com certeza. Os homens duvidaram se deviam 
atribuir a faculdade de viver, de recordar, de entender, de 
querer, de pensar, de saber, de julgar, ao ar, ou ao fogo, ou ao 
cérebro, ou ao sangue, ou aos átomos, ou a um quinto 
elemento de natureza corpórea ignorada, além dos quatros 
elementos conhecidos. Ou também se a estrutura e a 
constituição de nosso corpo eram capazes de realizar todas 
essas operações. Uns se esforçaram por defender tal opinião, 
outros tal outra. Todavia, quem poderia duvidar que vive, que 
recorda, que compreende, que quer, que pensa, que sabe, que 
julga? Porque, mesmo se duvida, vive; se duvida, recorda-se 
de onde provém a sua dúvida; se duvida, compreende que 
duvida; se duvida, quer estar certo; se duvida, pensa; se 
duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que não deve dar 
o seu assentimento temerariamente. Portanto, quem duvida 
de outras coisas não deve duvidar de todas estas, porque, se 
não existissem, não poderia duvidar de nenhuma coisa 
(AGOSTINHO, 1998, p. 320). 
 
Essa mesma ideia retornará na Cidade de Deus, livro que 
o teólogo africano compôs no tempo em que ainda redigia A 
Trindade e, mais precisamente, entre 413 e 426. Ei-la, pois, 
reformulada e condensada: 
 
Com respeito a essas verdades, não temo as objeções dos 
Acadêmicos. Eles dizem: “Supões que te enganas?” Eu replico: 
 55 
“Se me engano, então eu existo (Si enim fallor, sum)”. Quem 
não existe não pode enganar-se; portanto, se me engano, 
existo. E porque existo, se me engano, como posso enganar-me 
pensando que existo, quando é certo que existo porque me 
engano? Logo, já que eu devo existir porque me engano, 
então, mesmo quando me engano, não há dúvida de que eu 
não me engano no conhecimento de que existo. Segue-se 
também que eu não me engano enquanto conheço que me 
conheço. Assim como conheço que existo, assim também 
conheço que conheço (AGOSTINHO, 2000, p. 564). 
 
Depois dessas considerações, urge, portanto, mais uma 
vez reiterar: o paradoxo fundamental da construção da 
verdade efetuada pelo “mestre interior” consiste justamente 
em que dela a dúvida não pode ser excluída. Afinal de contas, 
seria possível pensar a verdade sem a mentira, o lógicosem o 
ilógico, o racional sem o irracional, a vontade de verdade sem 
a vontade de engano, de aparência, de ilusão? Isto quer dizer 
que a dúvida é radicalmente inerente à busca da verdade, cuja 
realização só pode dar-se através da linguagem que, por 
natureza, é incompleta, dispersa, fragmentária, lacunar. Neste 
sentido, o texto – enquanto espaço através do qual a 
multiplicidade de significantes não cessa de se desdobrar e de 
se repetir – já é sintomático da impossibilidade mesma de se 
lançar a última palavra, a última interpretação, a última 
significação. Assim, o que está em jogo em Agostinho e, 
finalmente, em todo pensador é a tentativa mesma de se 
inscrever, de se dizer e de se significar o desejo na sua eterna, 
sempre renovada e sempre recomeçada satisfação–insatisfação... 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
AGOSTINHO. Tutti i dialoghi. Milano: Bompiani, 2006. 
 
_______. La città di Dio. Roma: Città Nuova, 2000. 
 
_______. La Trinità. Roma: Città Nuova, 1998. 
 56 
 
DESCARTES, René. Les méditations. In Oeuvres philosophiques, 3 v., 
Tome II. Paris: F. Alquié, 1999. 
 
LACAN, Jacques. Le Séminaire, Livre I, Les écrits techniques de Freud. 
Paris: Seuil, 1975. 
 
MARROU, Henri-Irénée. Saint Augustin et la fin de la culture antique. 
Paris: De Boccard, 1958. 
 
NIETZSCHE, Friedrich. Jenseits vont Gut und Böse. In Kritische 
Studienausgabe, 15 v. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988. 
 
SAFOUAN, Moustapha. L’échec du principe du plaisir. Paris: Seuil, 1979. 
 
SUBLON, Roland. L’éthique ou la question du sujet. Strasbourg: Le 
Portique, 2004. 
 
 57 
 
 
 
 
 
 
 
Capítulo 4 
TTOOMMÁÁSS DDEE AAQQUUIINNOO:: FFIILLOOSSOOFFIIAA EE PPEEDDAAGGOOGGIIAA 
 
Jean Lauand 
 
 
INTRODUÇÃO 
Tomás de Aquino (1224[5] – 1274) é, sem dúvida, o mais 
importante pensador medieval. Sua filosofia – indissociável da 
teologia, em sua época – tem importantes projeções 
pedagógicas, também para o educador de hoje, para além do 
interesse meramente histórico. Neste estudo, destacaremos 
três aspectos, de especial atualidade, do pensamento 
tomasiano: a valorização do mundo material; a afirmação da 
primazia da virtude da prudentia; e sua perspectiva negativa em 
filosofia. 
A vida de Tomás de Aquino está centrada no século XIII. 
Desde o século anterior – um século de renascimento cultural, 
após um longo período de aridez intelectual – já se 
estabeleciam as condições que possibilitariam as profundas 
inovações trazidas pelo pensamento do Aquinate. 
De fato, com a queda do Império Romano no Ocidente 
(consumada em 476) e consequente instalação de reinos 
bárbaros no espaço geográfico da extinta Roma, a primeira 
Idade Média encontrava-se em condições precárias de cultura 
e educação. O esplendor da cultura clássica foi substituído 
pela “idade das trevas”: tribos bárbaras, não só analfabetas, 
 58 
mas (até há pouco) ágrafas, são a nova realidade dominante na 
Europa. 
Do ponto de vista cultural e pedagógico, alguns autores, 
como Josef Pieper, preferem estabelecer o ano 529 como marco 
inicial da Idade Média. Nesse ano, ocorrem dois fatos 
emblemáticos: o imperador Justiniano (o império romano no 
Oriente permanecerá até 1453) fecha a Academia de Atenas: já 
não haverá lugar para a cultura pagã. E São Bento funda o 
mosteiro de Monte Cassino: não por acaso, os primeiros 
séculos medievais são, na História da Educação, chamados de 
“Idade Beneditina”. 
Os mosteiros beneditinos serão, em meio à desolação 
cultural da primeira Idade Média, o refúgio onde se alojará e 
conservará o pouco conhecimento que restou do fim da 
Antiguidade, graças a educadores como Boécio e Cassiodoro. 
Boécio, o “último romano”, um dos mais importantes 
nomes da história da educação, foi encarregado pelo rei 
Teodorico de organizar a cultura no reino ostrogodo. 
Conhecedor profundo da ciência e da filosofia gregas, Boécio 
empreende um projeto pedagógico realista: uma cultura de 
resumos. Ele sabe que o esplendor das culturas grega e 
romana desapareceu e que a nova realidade são os ostrogodos, 
incapazes de ascenderem às alturas do mundo clássico. E 
empreende, na corte do rei, uma pedagogia de traduções e 
conteúdos mínimos: a imponente geometria de Euclides, a 
aritmética, a astronomia... são reduzidas a livrinhos super 
elementares e sumaríssimos. Embora suas ambições para a 
filosofia fossem muito maiores, sua trágica morte (em 525, 
quatro anos antes do aparecimento da ordem beneditina) 
deixou o Ocidente sem traduções de Platão e com muito pouco 
de Aristóteles. 
Boécio, uma inteligência superior, tinha talento para 
muito mais do que para resumos e traduções, mas, como 
grande educador, optou pela tarefa exigida por sua época: o 
trabalho obscuro e pouco original de elaboração de sementes 
 59 
secas, que pudessem um dia, em futuro longínquo, germinar, 
florescer e frutificar. 
Cassiodoro, também um culto romano, colega de Boécio 
na corte de Teodorico, percebeu que não havia condições de 
cultivo do saber na tumultuada corte do reino bárbaro e, em 
555, funda o mosteiro de Vivarium, marco importante na 
história da educação. Curiosamente, os bárbaros, em geral, 
respeitavam o espaço sagrado do mosteiro e Vivarium torna-
se um paradigma para a Europa: a partir de então, o mosteiro 
será não só um lugar de oração, mas também de cultura: de 
estudo e cópia de livros e de ensino elementar. 
Nos séculos XII e XIII, ocorrem mudanças significativas: 
intensifica-se a urbanização e muda também o centro de 
gravidade da educação: das escolas monásticas para as escolas 
catedrais e as nascentes universidades. Surgem as ordens 
mendicantes, os dominicanos (à qual Tomás se filiará) e os 
franciscanos; renascem as ciências e redescobre-se Aristóteles 
(inicialmente por meio de traduções do árabe na Espanha 
reconquistada) etc. 
Se, na primeira Idade Média, o pensamento estivera 
praticamente limitado aos livros de Sentenças, compilação de 
pensamentos dos santos padres, e à preservação com pouco 
desenvolvimento daquela “cultura de resumos”, legada por 
Boécio, Cassiodoro ou Isidoro de Sevilha; agora, com o 
renascimento cultural do século XII, já podem ser elaboradas 
as Sumas, grandiosas sínteses pessoais, como a Suma Teológica 
de Tomás. 
Nesse ambiente de efervescência intelectual é que se 
desenvolve, contra a corrente, o pensamento de Tomás, um 
dos primeiros membros da ordem dominicana e um dos 
primeiros grandes professores da Universidade de Paris, 
ambas fundadas em 1215. 
Os três pontos do pensamento de Tomás que aqui 
destacaremos, por seu interesse pedagógico, estão, na verdade, 
interligados em torno do conceito central de Criação. Porque o 
 60 
mundo é criação, o corpo, a matéria são essenciais ao ser que 
Deus deu ao homem. Tomás assume corajosamente o ser 
corporal do homem em todas as suas dimensões, que incluem, 
evidentemente, o conhecimento, a aprendizagem e a educação. 
Por ser criado, por ter recebido esse ser corpóreo, acentua-se o 
caráter negativo da filosofia e da teologia: nosso conhecimento 
(e nossa linguagem) não consegue abarcar Deus nem as coisas, 
que foram criadas pelo Logos, a Inteligência divina. Assim, se a 
realidade é mistério para o homem, suas decisões de ação, que 
ainda por cima estão inseridas na concretude do “aqui e 
agora”, não podem ser diretamente guiadas por certezas 
abstratas, mas pela virtude pessoal do discernimento da 
decisão certa: a prudentia. 
 
 
O HOMEM COMO INTRÍNSECA UNIÃO ESPÍRITO-MATÉRIA 
No centro da filosofia da educação de Tomás, encontra-
se a tese fundamental de sua antropologia: anima forma 
corporis, a profunda unidade, no homem, entre espírito e 
matéria: a alma é forma substancial, em intrínseca união com a 
matéria. 
Essa tese, originariamente aristotélica, não era, como se 
sabe, bem vista nos meios teológicos da época: era considerada 
perigosa para um cristianismo que não valorizava a matéria e 
o corpo; a doutrina teológica dominante pretendia uma 
concepção demasiadamente espiritualista do homem:o 
homem possuiria três almas e a alma verdadeiramente 
importante seria a espiritual (e não as duas corpóreas: 
sensitiva e vegetativa) e a condição carnal era considerada 
antes um estorvo para a elevação do espírito. 
Contra essas antropologias “angelistas”, Tomás - 
corajosa e decididamente - afirma o homem total, com a 
intrínseca união espírito-matéria, pois a alma é forma: co-
princípio ordenado para a intrínseca união com a matéria. 
Quando Tomás diz: “É evidente que o homem não é só a alma, 
 61 
mas um composto de alma e de corpo” (I, 75, 4) esse “é 
evidente”, na verdade, refere-se à verdade das coisas e não às 
opiniões teológicas de seu tempo... 
Esse “materialismo” de Tomás está presente in-
formando todo seu pensamento, por exemplo: quando discute 
o jejum excessivo nas questões de Quodlibet, dirá que o jejum é 
sem dúvida pecado (absque dubio peccat) quando debilita a 
natureza a ponto de impedir as ações devidas: que o pregador 
pregue, que o professor ensine, que o cantor cante..., que o 
marido tenha potência sexual para atender sua esposa! Aquele 
que assim se abstém de comer ou de dormir, oferece a Deus 
um holocausto que é fruto de um roubo12. 
Tomás aceita tão completamente o corpo como 
integrante essencial da realidade do ser humano que esta 
união se projeta até na operação espiritual que é o 
conhecimento intelectual: “A alma necessita do corpo para 
conseguir o seu fim, na medida em que é pelo corpo que 
adquire a perfeição no conhecimento e na virtude” (C. G. 3, 
144). 
E contra aquela tradição teológica que afirmava a 
iluminação imediata da inteligência humana por Deus (para o 
Aquinate Deus nos deu sua luz, dando-nos o intelecto), Tomás 
afirma que só podemos chegar às ideias mais abstratas e às 
considerações mais espirituais a partir da realidade sensível, 
material, concreta: “O intelecto humano, que está acoplado ao 
corpo, tem por objeto próprio a natureza das coisas existentes 
corporalmente na matéria. E, mediante a natureza das coisas 
 
12 Et ideo huiusmodi sunt adhibenda cum quadam mensura rationis: ut scilicet 
concupiscentia devitetur, et natura non extinguatur; secundum illud Ad Rom., XII, 1: 
“exhibeatis corpora vestra hostiam viventem; et postea subdit: rationabile obsequium 
vestrum. Si vero aliquis in tantum virtutem naturae debilitet per ieiunia et vigilias, et 
alia huiusmodi, quod non sufficiat debita opera exequi; puta praedicator praedicare, 
doctor docere, cantor cantare, et sic de aliis; absque dubio peccat; sicut etiam peccaret 
vir qui nimia abstinentia se impotentem redderet ad debitum uxori reddendum. unde 
Hieronymus dicit: “De rapina holocaustum offert qui vel ciborum nimia egestate vel 
somni penuria immoderate corpus affligit; et iterum rationalis hominis dignitatem 
amittit qui ieiunium caritati, vigilias sensus integritati praefert. (Quodl. 5, q. 9, a. 2, c). 
 62 
visíveis, ascende a algum conhecimento das invisíveis” (I, 84, 
7). Nesta afirmação resume-se a própria estrutura ontológica 
do homem. E, insistamos, mesmo as realidades mais 
espirituais só são alcançadas, por nós, através do sensível: 
“Ora - prossegue Tomás -, tudo o que nesta vida conhecemos, 
é conhecido por comparação com as coisas sensíveis naturais”. 
Esse voltar-se para o concreto, para o sensível, marca 
profundamente não só a pedagogia, mas é mesmo uma clave 
de interpretação de todo o pensamento de Tomás de Aquino. 
Outro exemplo: a autoridade de Agostinho havia 
estabelecido (como no De Trinitate, sobretudo no livro XV) a 
memória como a primeira realidade do espírito, da qual 
procedem o pensar e o querer: é portanto um reflexo de Deus 
Pai, do qual procedem o Verbo e o Espírito Santo. 
O jovem Tomás do Comentário às Sentenças ainda fala de 
três potências espirituais: memória, inteligência e vontade. 
Mas, na Summa e no De Veritate, rompe com essa visão, 
situando a memória como uma faculdade sensível. Por 
exemplo, quando na Suma explica que a memória é parte da 
Prudência, afirma: “A prudência aplica o conhecimento 
universal aos casos particulares, dos quais se ocupam os 
sentidos. Daí que a prudência requer muito da parte sensitiva, 
na qual se inclui a memória” (I-II, 49, 1 ad 1). 
Para além de todas as distinções (é evidente que há uma 
dimensão da memória que é intelectual - lembrar de um 
teorema - etc.) e tendo em conta que no homem tudo está 
integrado pela alma..., a memória é fundamentalmente 
sensorial. 
O sensorial perpassa a pedagogia de Tomás (como em 
ad 2 de II-II, 49,1) ao apontar as leis fundamentais da memória, 
diz que para nos lembrarmos devemos estabelecer 
semelhanças (similitudines) adequadas para o que se quer 
recordar. Mas, afirma, não semelhanças usuais, pois 
guardamos melhor o invulgar. E, assim, prossegue o Aquinate, 
é necessário encontrar semelhanças, metáforas ou imagens, 
 63 
pois as realidades espirituais facilmente se esvaem se não 
estão “amarradas” a alguma semelhança corpórea (nisi 
quibusdam similitudinibus corporalis quasi alligentur). E isto, 
conclui, porque o conhecimento humano é mais forte com 
relação ao sensível. 
 
 
A PRIMAZIA DA VIRTUDE DA PRUDENTIA 
É difícil subestimar a importância da virtude da 
prudência, a principal das virtudes cardeais (prudência, 
justiça, fortaleza e temperança), no pensamento de Tomás: não 
é que ela seja a primeira inter pares, mas é principal em uma 
ordem superior, é a mãe das virtudes, genitrix virtutum (In III 
Sent., d 33, q 2, a 5, c) e a guia das virtudes, auriga virtutum (In 
IV Sent., d 17, q 2, a 2, dco). 
Por mais destacada, porém, que seja a importância 
histórica do Tratado da Prudência de Tomás, seu interesse 
transcende o âmbito da história das ideias e instala-se - 
superadas as naturais barreiras de linguagem dos 750 anos 
que nos separam do Aquinate - no diálogo direto com o 
homem do nosso tempo, como rica contribuição para alguns 
de seus mais urgentes problemas existenciais. 
Além do mais, a doutrina sobre a prudência tem o 
condão de expressar, de modo privilegiado, as diretrizes 
fundamentais de todo o filosofar de Tomás. 
Para bem avaliar o significado e o alcance do Tratado da 
Prudência é necessário, antes de qualquer coisa, atentar para o 
fato de que prudência é uma daquelas tantas palavras 
fundamentais que sofreram desastrosas transformações 
semânticas com o passar do tempo: aquela palavra, que 
originalmente designava uma qualidade positiva, esvazia-se 
de seu sentido inicial ou passa até a designar uma qualidade 
negativa. 
“Prudência” já não designa hoje a grande virtude, mas 
sim a conhecida cautela (um tanto oportunista, ambígua e 
 64 
egoísta) ao tomar (ou ao não tomar...) decisões. Se hoje a 
palavra prudência tornou-se aquela egoísta cautela da indecisão 
“em cima do muro”, em Tomás, ao contrário, ela expressa 
exatamente o oposto da indecisão: é a arte de decidir-se 
corretamente, isto é, com base não em interesses oportunistas, 
não em sentimentos piegas, não em impulsos, não em temores, 
não em preconceitos etc., mas, unicamente, com base na 
realidade: em virtude do límpido conhecimento do ser. É este 
conhecimento do ser que é significado pela palavra ratio na 
definição de prudentia: recta ratio agibilium, “reta razão aplicada 
ao agir”, como repete, uma e outra vez, Tomás. 
Prudência é ver a realidade e, com base nessa visão, 
tomar a decisão certa. Por isso, como repete Tomás, não há 
nenhuma virtude moral sem a prudência, e mais: “sem a 
prudência, as demais virtudes, quanto maiores fossem, mais 
dano causariam” (In III Sent. d 33, q 2, a 5, sc 3). Com as 
alterações semânticas, porém, tornou-se intraduzível, para o 
homem de nosso tempo, uma sentença de Tomás como: “a 
prudentia é necessariamente corajosa e justa”13. 
Sem esse referencial, tomamos nossas decisões 
fundamentados em quê? Quando não há a simplicitas, a 
simplicidade da prudência que se volta para a realidade como 
único ponto decisivo na decisão, ela acaba sendotomada, 
como dizíamos, com base em diversos outros fatores: por 
preconceitos, por razões interesseiras, por impulso egoísta, 
pela opinião coletiva, pelo “politicamente correto”, por inveja 
ou por qualquer outro vício... 
Mas este ver a realidade é somente uma parte da 
prudência; a outra parte, ainda mais decisiva (literalmente) é 
transformar a realidade vista em decisão de ação, em 
comando: de nada adianta saber o que é bom, se não há a 
decisão de realizar este bem... 
 
13 Nec prudentia vera est quae iusta et fortis non est (I-II, 65, 1). 
 65 
O nosso tempo, que se esqueceu até do verdadeiro 
significado da clássica prudentia, atenta contra ela de diversos 
modos: em sua dimensão cognoscitiva (a capacidade de ver o 
real, por exemplo, aumentando o ruído - exterior e interior – 
que nos impede de “ouvir” a realidade) e em sua dimensão 
prescritiva, no ato de comandar: o medo de enfrentar o peso 
da decisão, que tende a paralisar os imprudentes (pois, 
insistamos, a prudência toma corajosamente a decisão boa!). 
A grande tentação da imprudência (sempre no sentido 
clássico) é a de delegar a outras instâncias o peso da decisão 
que, para ser boa, depende só da visão da realidade. Há 
diversas formas dessa abdicação: do abuso de reuniões 
desnecessárias à delegação das decisões a terapeutas, 
comissões, analistas e gurus, passando por toda sorte de 
consultas esotéricas. 
Uma das mais perigosas formas de renúncia a enfrentar 
a realidade (ou seja, a renúncia à prudentia) é trocar essa fina 
sensibilidade de discernir o que, naquela situação concreta, a 
realidade exige por critérios operacionais rígidos, como num 
“Manual de escoteiro moral” ou, no campo do direito, num 
estreito legalismo à margem da justiça. É também o caso do 
radicalismo adotado por certas propostas religiosas. Tal como 
o “Ministério do Vício e da Virtude” do antigo regime Taliban, 
algumas comunidades cristãs - em vez de afirmar o direito (e o 
dever) do fiel de discernir o que é bom em cada situação 
pessoal concreta - simplificam grosseiramente: em caso de 
dúvida, é pecado e pronto! 
O Tratado da Prudência de Tomás é o reconhecimento de 
que a direção da vida é competência da pessoa e o caráter 
dramático da prudência se manifesta claramente quando 
Tomás mostra que não há “receitas” de bem agir, não há 
critérios comportamentais operacionalizáveis, porque - e esta é 
outra constante no Tratado - a prudência versa sobre ações 
contingentes, situadas no “aqui e agora”. 
 66 
É que a prudência é virtude da inteligência, mas da 
inteligência do concreto: a prudência não é a inteligência que 
versa sobre teoremas ou princípios abstratos e genéricos, não!; 
ela olha para o “tabuleiro de xadrez” da situação “aqui e 
agora”, sobre a qual se dão nossas decisões concretas, e sabe 
discernir o “lance” certo, moralmente bom. E o critério para 
esse discernimento do bem é: a realidade! Saber discernir, no 
emaranhado de mil possibilidades que esta situação me 
apresenta (que devo dizer a este aluno?, compro ou não 
compro?, caso-me ou não?, devo responder a este e-mail? etc.), 
os bons meios concretos que me podem levar a um bom 
resultado, à plenitude da minha vida, minha realização 
enquanto homem. E para isto é necessário ver a realidade 
concretamente. De nada adiantam os bons princípios 
abstratos, sem a prudentia que os aplica - como diz Tomás - ao 
“outro pólo”: o da realidade (que significa “amar o próximo” 
nesta situação concreta?). 
A condição humana é tal que - muitas vezes - não 
dispomos de regras operacionais concretas: sim, há um certo e 
um errado objetivos, um “to be or not to be” pendente de nossas 
decisões, mas não há regra operacional. Tal como para o bom 
lance no xadrez, há até critérios gerais objetivos... mas, não 
operacionais concretos! 
Por mais que nosso tempo insista em querer eliminar a 
verdade objetiva, no fundo sabemos que há certo e “errados” 
objetivos e que a decisão do agir é um problema de ratio, de 
recta ratio... Quando, diante de uma ação, perguntamos “por 
quê?”, estamos perguntando é pela razão (reason, raison...): “Por 
que razão você fez isto?”. E o mesmo ocorre quando, diante de 
uma ação, dizemos: “É, você tem razão...”, “está coberto de 
razão”, etc. E para uma ação que é um grave mal moral, 
dizemos: “Que absurdo!” (falta razão). 
Isto não quer dizer que a pessoa tenha sempre uma 
justificativa racional pronta, consciente para cada ato. A 
prudência decide bem, mas com a espontaneidade da virtude. 
 67 
Aliás, segundo Tomás, a função da virtude (como a de todo 
hábito em geral) é precisamente a de permitir realizar o ato 
com facilidade, “espontaneamente”, com certo “automatismo” 
que não tira a liberdade, antes pelo contrário... (quem objetaria 
a espontaneidade adquirida - após árduos esforços - dos 
hábitos para extrair acordes do piano, falar uma língua 
estrangeira ou andar de bicicleta?). 
Trata-se, portanto, de uma “inteligência” moral, da 
insubornável fidelidade ao real, que aprende da experiência e, 
portanto, como víamos, requer a memória como virtude 
associada: a memória fiel ao ser. No artigo dedicado à virtude 
da memoria, Tomás observa que não pode o homem reger-se 
por verdades necessárias, mas somente pelo que acontece in 
pluribus (geralmente). 
Note-se que esta é também a razão da insegurança em 
tantas decisões humanas: a prudentia traz consigo aquele 
enfrentamento do peso da incerteza, que tende a paralisar os 
imprudentes. 
É dessa dramática imprudência da indecisão que falam 
alguns clássicos da literatura: do “to be or not to be...” de Hamlet 
aos dilemas kafkianos (o remorso impõe-se a qualquer 
decisão), passando pelo Grande Inquisidor de Dostoiévski, que 
descreve “o homem esmagado sob essa carga terrível: a 
liberdade de escolher” (DOSTOIÉVSKI, s.d., p. 226) e 
apresenta a massa que abdicou da prudência e se deixa 
escravizar, preferindo “até mesmo a morte à liberdade de 
discernir entre o bem e o mal” (Ibidem, p. 225). E, assim, os 
subjugados declaram de bom grado: “Reduzi-nos à servidão, 
contanto que nos alimenteis” (Ibidem, p. 224). 
É interessante observar que, desde a tenra infância, o 
drama da decisão era-nos proposto sob diversas formas. 
Éramos advertidos de que a vida - fortuna velut luna... - era 
uma ciranda na qual “vamos todos cirandar”, e que junto com 
juras de amor eterno vinham anéis de vidro: 
 
 68 
O anel que tu me deste 
era vidro e se quebrou. 
O amor que tu me tinhas 
era pouco e se acabou. 
 
E a inveja e a eterna insatisfação humana eram 
ludicamente desmascaradas: a galinha do vizinho é que bota 
ovo amarelinho (e ainda por cima: bota um, dois,..., dez!). 
E aprendíamos que a prudência só vem com a 
experiência: “enganei um bobo, na casca do ovo...”. 
E mais: na ingenuidade da infância, assumíamos nossa 
incapacidade de realizar as escolhas fundamentais (como a de 
ter que decidir quem é que ia se encarregar da triste missão de 
jogar no gol...) e as confiávamos claramente à cega sorte (“lá 
em cima do piano tem um copo de veneno...” ou “minha mãe 
mandou escolher este daqui...”, ou ainda o “bem-me-quer”, 
“uni, duni, tê” etc.). 
Hoje, adultos, não adotamos mais esse critério (que, pelo 
menos, tinha a vantagem de sinceramente reconhecer a 
incapacidade de decidir). Nós pretendemos não necessitar de 
uma virtude (toda a profunda antropologia das virtudes 
cardeais nem sequer está mais em nosso campo de visão...), 
pois presumimos dispor de recursos técnicos ou científicos que 
permitam tornar dispensável o âmbito moral, a virtude 
cardeal da prudência. Mas, não por acaso, “cardeal” vem da 
palavra latina cardus, gonzo, eixo em torno do qual se abre a 
porta (a porta da realização humana, do to be). Abdicar da 
Prudentia, a cardeal das cardeais, significa perder o eixo, o 
gonzo, tornar-se des-engonçado existencialmente! Abdicar da 
prudência é abdicar da realidade e confiarmos a um Ersatz - 
como ao Grande Inquisidor- as decisões fundamentais da 
existência... 
 
 
 
 69 
A PRUDENTIA NO PENSAMENTO “NEGATIVO” DE TOMÁS 
Neste tópico procuraremos mostrar como a doutrina da 
prudência tem um caráter revelador de todo o posicionamento 
filosófico-teológico de Tomás. 
Esse posicionamento é o de uma theologia negativa e de 
uma philosophia negativa. Precisamente pela ignorância desse 
decisivo caráter “negativo” no pensamento de Tomás é que ele 
tem sido frequentemente mal compreendido, até pelos 
tomistas. Aliás, o filosofar de Tomás é tal que é incompatível 
com um “tomismo”14, com um “sistema” filosófico ou com um 
racionalismo (e tantas vezes Tomás tem sido injustiçado com o 
rótulo de racionalista). 
Examinemos três instâncias desse caráter negativo no 
pensamento de Tomás. 
No que diz respeito ao conhecimento, Tomás assume 
uma philosophia negativa. Para a descrição desse 
posicionamento, recorremos à incomparável análise de Josef 
Pieper, em Unaustrinkbares Licht: 
 
Limitamo-nos a falar apenas da philosophia negativa - embora 
Tomás tenha formulado também os princípios de uma 
theologia negativa. Certamente este traço também não aparece 
com clareza nas interpretações usuais; frequentemente é até 
ocultado. Será raro encontrar menção do fato de a discussão 
sobre Deus da Summa Theologica15 começar com a sentença: 
‘Não podemos saber o que Deus é, mas sim, o que Ele não é’. 
Não pude encontrar um só compêndio de filosofia tomista, no 
 
14 Josef Pieper, talvez o melhor intérprete de Tomás em nosso tempo, afirma: “Não 
pode haver um ‘tomismo’ porque a grandiosa afirmação que representa a obra de S. 
Tomás é grande demais para isso (...). S. Tomás nega-se a escolher algo; empreende o 
imponente projeto de ‘escolher’ tudo (...). A grandeza e a atualidade de Tomás 
consistem precisamente em que não se lhe pode aplicar um ‘ismo’, isto é, não pode 
haver propriamente um ‘tomismo’ (‘propriamente’, isto é: não pode haver enquanto 
se entenda por ‘tomismo’ uma especial direção doutrinária caracterizada por 
asserções e determinações polêmicas, um sistema escolar transmissível de princípios 
doutrinais)” (Thomas von Aquin: Leben und Werk. München: DTV, 1981, p. 27). 
15 Quia de Deo scire non possumus quid sit sed quid non sit, non possumus considerare de Deo 
quomodo sit, sed potius quomodo non sit - Summa Theologica I, 3 prologus. 
 70 
qual se tenha dado espaço àquele pensamento, expresso por 
Tomás em seu Comentário ao De Trinitate de Boécio16: o de que 
há três graus do conhecimento humano de Deus. Deles, o mais 
fraco é o que reconhece Deus na obra da criação; o segundo é 
o que O reconhece refletido nos seres espirituais e o estágio 
superior reconhece-O como o Desconhecido: tamquam ignotum! 
E tampouco encontra-se aquela sentença das Quaestiones 
disputatae: ‘Este é o máximo grau de conhecimento humano de 
Deus: saber que não O conhecemos’, quod (homo) sciat se Deum 
nescire17. E, quanto ao elemento negativo da philosophia de 
Tomás, encontramos aquela sentença sobre o filósofo, cuja 
dedicação ao conhecimento não é capaz sequer de esgotar a 
essência de uma única mosca. Sentença que, embora esteja 
escrita em tom quase coloquial, num comentário ao Symbolum 
Apostolicum18, guarda uma relação muito íntima com diversas 
outras afirmações semelhantes. Algumas delas são 
espantosamente ‘negativas’ como, por exemplo, a seguinte: 
Rerum essentiae sunt nobis ignotae; ‘as essências das coisas nos 
são desconhecidas’19. E esta formulação não é, de modo 
algum, tão incomum e extraordinária, quanto poderia parecer 
à primeira vista. Seria facilmente possível equipará-la (a partir 
da Summa Theologica, da Summa contra Gentes, dos Comentários 
a Aristóteles, das Quaestiones disputatae) a uma dúzia de frases 
semelhantes: Principia essentialia rerum sunt nobis ignota20; 
formae substantiales per se ipsas sunt ignotae21; differentiae 
essentiales sunt nobis ignotae22. Todas elas afirmam que os 
‘princípios da essência’, as ‘formas substanciais’, as ‘diferenças 
essenciais’ das coisas, não são conhecidas. 
 
Esse caráter “negativo” informa também seu modo de 
fazer teologia, teologia essencialmente bíblica. Contra as 
rationes necessariae de um Anselmo, contra a pretensão de 
deduzir logicamente as verdades da fé, Tomás afirma o 
mistério para o homem, contraponto da liberdade de Deus: 
 
16 I, 2 ad 1. 
17 Quaest. Disp. de potentia Dei, 7, 5 ad 14. 
18 Cap. I. 
19 Quaest. Disp. de veritate 10, 1. 
20 In De Anima 1, 1, 15. 
21 Quaest. disp. de spiritualibus criaturis, 11 ad 3. 
22 Quaest. Disp. de veritate 4, I ad 8. 
 71 
“Não há nenhum argumento de razão, naquelas coisas que são 
de fé23“. 
E na questão: “Se Deus teria se encarnado se não tivesse 
havido o pecado do homem”, Tomás recolhe como objeções os 
argumentos tradicionais na Escolástica: “Sim, a Encarnação 
necessariamente ocorreria, pois a perfeição pressupõe a união 
do primeiro - Deus - com o último, o homem”; ou: “Seria 
absurdo supor que o pecado tivesse trazido para o homem a 
vantagem da Encarnação e que, portanto, necessariamente, 
teria havido Encarnação, mesmo sem o pecado”... Tomás, em 
sua resposta, refuta categoricamente essas objeções, 
afirmando: “A verdade sobre esta questão só pode conhecê-la 
Aquele que nasceu e se entregou porque quis (In III Sent. d 1, q 
1, a 3, c.)”24. 
Nesse quadro “negativo”, pode-se compreender melhor 
o significado da prudentia em Tomás: porque não conhecemos 
completamente as coisas, não podemos ter a certeza 
matemática nem critérios operacionais para discernir o bem; 
para a boa decisão moral, precisamos das (frágeis e incertas) 
luzes da prudentia: ter a memória do passado, examinar as 
circunstâncias (e as circunstâncias como fonte de moralidade 
detonam qualquer tentativa de espartilhar a conduta em 
“manuais de escoteiro” morais), recorrer ao conselho (não por 
acaso, com a supressão da prudentia na pregação da Igreja 
contemporânea, “conselho” deixou de significar aconselhar-se 
a si mesmo e passou só a significar conselho dado por outro), 
etc. 
E é que também no que se refere à prudentia, estão, como 
pano de fundo, os dois elementos-chave de Tomás: mistério e 
liberdade. Afirmar a prudentia é afirmar que cada pessoa é a 
protagonista de sua vida, só ela é responsável, em suas 
decisões livres, por encontrar os meios de atingir seu fim: a 
 
23 In III Sent. d 1, q 1, a 2, c. 
24 Este exemplo está em Josef Pieper. Scholastik. München: DTV, 1978. O capitulo XI é 
indispensável para este tema. 
 72 
sua realização. Esses meios não são determináveis “a priori”; 
pertencem, pelo contrário, ao âmbito do contingente, do 
particular, do incerto, do futuro e, necessariamente, a prudentia 
se faz acompanhar da insegurança, da necessária insegurança 
que acompanha toda vida autenticamente humana. Afinal, 
para Tomás, o que o conceito de pessoa acrescenta à essência 
humana é precisamente a individualidade concreta: “alma, 
carne e osso, são configuradores do homem (sunt de ratione 
hominis); mas esta alma, esta carne e estes ossos são 
configuradores deste homem (sunt de ratione huius hominis) e 
assim ‘pessoa’ acrescenta à configuração da essência os 
princípios individuais” (I, 29, 2 ad 3). 
Qualquer atentado contra a prudentia tem como 
pressuposto a despersonalização, a falta de confiança na 
pessoa, considerada sempre “menor de idade” e incapaz de 
decidir e, portanto, devendo transferir a direção de sua vida 
para outra instância: a igreja, o estado etc. Em qualquer caso, 
isso é sempre muito perigoso. Como é perigoso que a 
educação não se lembre dessa virtude... 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
LAUAND, Jean (org.) Cultura e Educação na Idade Média. São Paulo: 
Martins Fontes, 1998. 
 
_______. “A mística da cozinha: de Heráclito a Adélia Prado”. International 
Studies on Law and Education. São Paulo: Cemoroc-Feusp, No.7, jan-abr 
2011, pp. 55-68. Ed. on line: http://www.hottopos.com/isle7/55-68Jean.pdf 
 
_______. “Fingir para Germinar: Educação e Antropologia - I”. Revista 
Internacional d’Humanitats. São Paulo: Cemoroc-Feusp, No. 20, setn-dez 
2010, pp. 29-34. Ed. on line: http://www.hottopos.com/rih20/jean.pdf 
 
PIEPER, Josef “Luz Inabarcável - o Elemento Negativo na Filosofia de Tomás 
de Aquino” (trad. G. Greggersen; rev. téc.: Jean Lauand). Convenit. São 
Paulo: Mandruvá, No. 1. Ed. on line: 
http://www.hottopos.com/convenit/jp1.htm. 
 73 
 
TOMÁS DE AQUINO. A Prudência (trad. e estudos introdutórios Jean 
Lauand). São Paulo: Martins Fontes, 2005. 
 
_______. Sobre o ensino e os sete pecados capitais (trad. e estudos 
introdutórios Jean Lauand). São Paulo: Martins Fontes, 2004. 
 
_______. Verdade e conhecimento (trad. e estudos introdutórios Jean 
Lauand e M. B. Sproviero). São Paulo: Martins Fontes, 1999. 
 
 74 
 
 
 
 
 
 
 
Capítulo 5 
BBOOAAVVEENNTTUURRAA EE AA FFIILLOOSSOOFFIIAA:: OO EENNSSIINNOO UUNNIIVVEERRSSIITTÁÁRRIIOO 
 
Eduardo Vieira da Cruz 
 
Em 1273, Boaventura faz uma série de conferências na 
Universidade de Paris, onde adverte os presentes sobre os 
perigos que o estudo da filosofia poderia fazê-los correr25. 
Compreender os motivos que o levam a tal gesto é 
compreender, ao mesmo tempo, o contexto histórico-doutrinal 
em que se insere, o lugar que a filosofia ocupa no pensamento 
do doutor seráfico, assim como a função que o estudo da 
filosofia desempenha na construção do saber universitário de 
então. 
Comecemos por esse último aspecto. Como, atualmente, 
o estudo do pensamento medieval não goza de grande 
 
25 Trata-se de sua última obra, as Collationes in Hexaemeron (Conferências sobre os seis 
dias da Criação). A collatio (conferência) é, ao lado da homilia e do sermão, uma das 
formas da praedicatio (pregação) medieval. Há dois tipos de collatio: a monástica e a 
universitária. Enquanto a primeira é um abade ou um eminente religioso que a 
pronuncia, na collatio universitária cabe a um mestre em teologia a tarefa de 
desenvolver um conteúdo mais doutrinal, perante uma audiência composta de 
mestres, licenciados, bacharéis e estudantes inscritos na faculdade (cf. POIREL, 2002, 
p. 1138 e LIBERA, 1997, p. 10). Em outras duas séries de conferências, Boaventura 
aponta o caráter problemático da filosofia – e daqueles que a propagam – para a 
compreensão das verdades reveladas: nas Collationes de decem praeceptis (Conferências 
sobre os dez mandamentos), proferidas em 1267; e nas Collationes de septem donis 
spiritus sancti (Conferências sobre os sete dons do Espírito Santo), realizadas no ano 
seguinte. Os três textos encontram-se no quinto volume das Opera Omnia de 
Boaventura (1882-1902). Os dois primeiros foram objeto de traduções francesas 
(BOAVENTURA, 1991 e 1992, respectivamente). 
 75 
popularidade entre os estudantes de filosofia, é aconselhável 
relembrar algumas particularidades do ensino universitário 
deste período. O que se convencionou chamar de 
Universidade26 – e que se distingue, mais do que se costuma 
acreditar, daquilo que entendemos hoje por esse termo – 
constituía-se por quatro Faculdades, cuja importância, à 
primeira vista, estabelecia uma hierarquia pedagógica, reflexo 
das distinções de prestígio. Havia três Faculdades que 
encarnavam os estudos superiores: Direito (canônico e civil), 
Medicina e Teologia. Embora seja legítimo, por comodidade 
didática, reuni-las em uma mesma categoria, a scientia relativa 
a cada Faculdade não era por isso menos hierarquizada – a 
teologia, nesse aspecto, reinando absoluta. Entretanto, o que 
interessa à reflexão que aqui propomos não são as relações 
mais ou menos harmoniosas entre essas Faculdades, mas a 
relação comum em que se encontravam face à Faculdade de 
Artes27, responsável pelo ensino de disciplinas preparatórias e, 
desse ponto de vista, inferiores às que se ministravam nas 
outras28. Nesse sentido, parece-nos que o papel da Faculdade 
de Artes comportava certa ambiguidade, na medida em que 
essa inferioridade pode ser também, ou principalmente, 
entendida como anterioridade necessária. Com efeito, ela era 
passagem obrigatória no percurso estudantil daquele que 
ambicionasse ingressar em uma das outras três Faculdades. 
 
26 Na Idade Média, o termo universitas evolui, a partir do seu sentido clássico de 
totalidade ou conjunto, e assume o valor de um termo jurídico, significando uma 
corporação ou comunidade com autonomia para, por exemplo, constituir estatutos 
próprios ou conferir graus acadêmicos. Aparece pela primeira vez em 1221, em um 
texto parisiense, na expressão “universitas magistrorum et scolarium”, para designar a 
comunidade de mestres e estudantes (cf. IMBACH, 2006, p. 1420). Para se adquirir 
uma noção geral da natureza e do funcionamento das universidades medievais, ver 
Verger, 1973. 
27 O vocábulo ars (arte), quando usado no plural artes, significa as artes liberais 
(BLAISE, 1998). Com relação aos termos medievais, utilizamos, sempre que possível, o 
Lexicon de A. Blaise (1998) e, no que concerne especificamente a Boaventura, o Lexique 
de J. G. Bougerol (1969). 
28 Em todas as quatro Faculdades, a trajetória estudantil findava pela obtenção da 
licença de ensino (licentia docendi). 
 76 
Desse modo, embora a teologia significasse um saber situado 
além daqueles veiculados pelos artistae29, sua superioridade 
não a resguardava do fato de que, em função da estrutura 
universitária, o estudante tinha acesso a ela apenas quando já 
se encontrava formado, em seus hábitos de pensamento, pela 
destreza no exercício das disciplinas do trivium e do 
quadrivium. 
Mas é preciso circunscrever melhor o problema. As artes 
liberais – base do ensino no sistema educativo antigo e, depois, 
medieval – compunham-se, efetivamente, do trivium 
(gramática, retórica e dialética) e do quadrivium (aritmética, 
geometria, música e astronomia). É a Boécio (480-525 d.C.), 
inventor do termo quadrivium30, que se deve esta repartição, 
que reúne, de um lado, as ciências relativas à expressão do 
conhecimento, ou seja, as artes da linguagem e, de outro, as 
ciências “matemáticas”. Séculos depois, a ênfase dada a cada 
disciplina varia. O estudo da retórica será pouco a pouco 
relegado a um plano secundário. É possível, já no século XI, 
com Béranger de Tours, detectar o emprego do termo 
“dialética” como significando o “uso do pensamento racional”. 
Contudo, é apenas no segundo terço do século XII, com a 
redescoberta do pensamento de Aristóteles pelo ocidente 
cristão – nas traduções de Boécio dos Primeiros Analíticos, dos 
Tópicos e das Refutações Sofísticas (sem esquecer a tradução 
contemporânea dos Segundos Analíticos por Jacques de Veneza) 
–, que a dialética assume uma importância inigualável, 
extrapolando os limites das artes e qualificando-se como o 
método por excelência do pensamento (Cf. CHENU, 1957, p. 
20ss; LEMOINE, 2006; SOLÈRE, 2006). Ao fim do século, a 
constatação se impõe: “A dialética ganha em autonomia: de 
simples instrumento (dialectica utens), ela se torna meio de 
conhecimento (dialectia docens)”(CESALLI, 2006, p. 411). 
 
29 Assim eram denominados os mestres da Faculdade de Artes. 
30 Já o termo trivium é posterior, sendo forjado na época carolíngia (cf. LEMOINE, 
2006, p. 95). 
 77 
Assim, a “destreza no exercício das disciplinas do 
trivium e do quadrivium” significa algo mais, diferente do que 
dizíamos há pouco. O século XIII conhece um novo estudante 
de Teologia, alguém cujo pensamento tem na dialética como 
que uma segunda natureza, alguém para quem só há de caber 
um único epíteto a Aristóteles, este mesmo pelo qual o 
estagirita passará, efetivamente, a ser designado: O Filósofo. 
 
 
COMO SE TORNAR UM MESTRE EM TEOLOGIA31 
De fato, essa destreza – não as consequências– era 
condição sine qua non para a pretensão a uma carreira escolar. 
Embora encontremos algumas pequenas discrepâncias na 
historiografia, é consenso que tanto na Faculdade de Artes 
quanto na de Teologia os estudos eram longos e intensos, 
podendo perfazer, em alguns casos, dez anos na de Artes e 
outros quinze na de Teologia. Onde quer que esteja a verdade 
dos fatos, o que nos importa saber é que, uma vez apto a 
ingressar nos estudos de teologia, o postulante devia obter a 
aceitação de um mestre actu regens, isto é, um mestre que, além 
do título em teologia, pertencesse aos quadros ativos da 
Universidade. Vinha então o que se poderia chamar de 
aspecto passivo da trajetória recém-iniciada. Este consistia no 
acompanhamento (auditio) dos cursos do mestre durante um 
período de aproximadamente seis anos, ao final dos quais, se 
bem sucedido, o estudante obtinha o título de bacharel bíblico. 
Isto o credenciava a desenvolver a segunda parte de sua 
formação, em que se dedicava, durante um ou dois anos, à 
prática que estava na base da pedagogia medieval e, 
sobretudo, escolástica: a lectio. Cabia ao novo bacharel explicar 
– evitando, contudo, os problemas de interpretação ou de 
 
31 Para aqueles que desejam aprofundar-se no tema da pedagogia medieval sob o 
ponto de vista técnico-metodológico, sugerimos a leitura do artigo de Glorieux, 1968. 
 78 
doutrina – dois livros por ano, de sua escolha: um do Novo e 
outro do Antigo Testamento. 
Após esta fase, adquiria o grau de bacharel sentenciário 
e, enquanto tal, dedicava-se por mais dois anos à tarefa para a 
qual se preparara: a lectura. Tratava-se da leitura e explicação 
dos quatro livros das Sententiae de Pedro Lombardo. Redigido 
em torno de 1155-57, este texto de caráter enciclopédico – 
reunindo, segundo a técnica dialética, passagens bíblicas e 
patrísticas em aparente afrontamento, para, em seguida, 
reduzir as diferenças através de uma solução argumentada – 
se tornou o manual de base do ensino de teologia. Adotá-lo 
como objeto de um curso regular implicava em já possuir uma 
erudição considerável e uma disposição ainda maior para 
preencher as lacunas, nessa mesma erudição, que sua leitura, 
somada à tarefa de sua explicação, tornava evidente ao 
bacharel. Dois anos de curso sobre as Sententiae 
proporcionavam a ele duas coisas: primeiramente, tornar-se 
efetivamente um bacharel formado e, nessa condição, 
prosseguir sua atividade docente. Em segundo lugar, esta 
atividade o levava a multiplicar as pesquisas sobre as 
Sententiae, permitindo um acúmulo de notas que serviria como 
matéria prima para a redação do seu Comentário das Sentenças 
de Pedro Lombardo, obra cuja realização constituía uma das 
exigências para a obtenção da licença de ensino (licentia 
docendi) em Teologia32. 
Apesar desse verdadeiro parcours du combattant, o 
bacharel formado ainda deverá esperar mais quatro anos antes 
de se tornar mestre. Nesse período, acompanhará seu mestre 
nas disputationes, atividade pedagógica que está na origem de 
um gênero literário característico da escolástica: as Quaestiones 
 
32 No final do século XII, já se encontram exemplares de Comentários das Sentenças de 
Pedro Lombardo, mas é no século XIII que a produção desses comentários se generaliza, 
tornando-se o gênero literário mais difundido neste século (cf. ROBERT, 1950, p. 40ss). 
Para o aprofundamento do tema acerca do funcionamento das universidades 
medievais, ver principalmente Weijers, 1996 e Maierù, 1994. 
 79 
disputatae. Uma vez apto a desempenhar todas as funções 
constituintes da disputatio, inclusive a exercida pelo mestre, o 
bacharel recebe do Chanceler, em uma ocasião solene, sua 
Licentia Docendi. Doravante, exercerá a tríade que resume a 
atividade universitária do mestre em teologia: legere, disputare, 
praedicare33. 
 
 
A RECEPÇÃO DO ARISTOTELISMO GRECO-ÁRABE 
Durante a primeira parte da Idade Média, assistimos ao 
processo de adequação34, com maior ou menor sucesso, do 
neoplatonismo aos dogmas cristãos, resultando em um corpus 
teórico cujos paradigmas fundamentais, uma vez 
estabelecidos, permitiram uma coerência conceitual na 
abordagem de certo número de questões teológicas. Essa 
relativa estabilidade nas relações filosófico-teológicas parecia, 
ao menos sob o olhar panorâmico de longa duração, demorar 
mais do que a História costuma tolerar. Com o advento dos 
textos aristotélicos, é todo um equilíbrio que se encontra em 
xeque. Como vimos, o último terço do século XII conheceu um 
desenvolvimento pedagógico-metodológico sem precedentes, 
onde o estudo da dialética exerceu um papel central. A 
redescoberta dos libri naturales (Física, Metafísica, Da alma, etc.) 
de Aristóteles representará algo similar para o século XIII35. 
Mas esse acontecimento esconde outro: a rica tradição greco-
 
33 Lecionar, disputar, pregar. A tradução mais correta para disputatio seria, de acordo 
com Blaise (1998), o termo discussão. Preferimos, contudo, traduzir por disputa para 
manter o aspecto agonístico que caracterizava esta atividade, principalmente na sua 
forma “quodlibética”. De fato, enquanto nas questões disputadas, em suas duas formas, 
privada (privata ou in scholis) ou pública (publica ou ordinaria), há um único tema em 
discussão, normalmente escolhido pelo mestre, nas quaestiones de quodlibet os assuntos 
eram livres, variados e propostos por qualquer um dos presentes. Cf. Solère, 2006, p. 
1304-1305; Ong-Van-Cung, 1998, p. 7-9 e Desbiens, 2009, p. 16-21. Este último está 
disponível na internet (ver referências bibliográficas). 
34 Talvez o termo seja exagerado e devêssemos substituí-lo por combinação. 
35 Com respeito à cronologia da recepção do corpus peripatético no ocidente cristão, 
ver os dois artigos de R. Gauthier, ambos publicados em 1982. 
 80 
árabe do comentário. Pode-se dizer que, ao emergir da noite 
dos tempos, Aristóteles já não é mais tão somente aristotélico. 
Envoltos, camada sobre camada, por comentários, adendos, 
interpretações, interpolações, seus textos se tornam 
inseparáveis de tudo o que deles se disse; eles trazem consigo 
séculos de indagações, dúvidas, hesitações, recuos e 
convicções, toda a concordância e a divergência – de Temistius 
a Averróis – de que o gênero humano é capaz. É preciso 
compreender que a recepção de Aristóteles significa, ao 
mesmo tempo, a recepção da tradição interpretativa de seus 
comentadores gregos e árabes. E essa dupla recepção ainda 
guarda outra significação: com a organização e o 
desenvolvimento das Universidades, o corpus peripatético se 
torna objeto de uma sistematização – a partir da codificação 
dos gêneros literários – que determinará as perspectivas do 
ensino nos séculos XIII e XIV. 
Entretanto, já nos primeiros anos do século XIII, 
aparecem as primeiras restrições em relação ao pensamento 
aristotélico (Cf. BIANCHI, 1999, p. 89-128; ELDERS, 1988, p. 
360-361; MANDONNET, 1911, p. 16-22). Tanto a proibição 
parisiense do ensino dos libri naturales, em 1210 e em 1215 (Cf. 
LIBERA, 2003, p. 27), quanto a consolidação do dogma da 
criação ex tempore pelo concílio de Latrão IV, em 121536, 
testemunham as dificuldades inerentes à inserção do 
aristotelismo greco-árabe no ocidente cristão. Embora essas 
 
36 Opondo-se à tese aristotélica da eternidade do mundo, este concílio estabelece que o 
começo temporal do mundo deva ser definido como artigo de fé. O texto não deixa 
margem a dúvidas: “Firmiter credimus et simpliciter confitemur, quod unus solus est verus 
Deus, aeternus, (...) unum universorum principium: (...) qui sua omnipotenti virtute simul ab 
initio temporis utramque de nihilo condidit creaturam, spiritualem et corporalem”. [“Nós 
acreditamos firmemente e professamos absolutamente que há apenas um único Deus, 
eterno, (...)princípio único de todas as coisas, (...) que, por sua virtude onipotente, 
criou do nada e no começo do tempo a criatura espiritual e a corporal”] (tradução 
nossa). Concilium Laterense IV, 1215, De Trinitate, sacramentis, missione canonica, etc., 
cap. 1, De fide catholica in: Denzinger, Enchiridion Symbolorum, n. 800, apud MICHON, 
2004, p. 353. 
 81 
contrariedades – e restrições subsequentes37 – tenham 
inegavelmente obtido êxito em retardar a difusão, não foram 
capazes, todavia, de impedir que as ideias de Aristóteles e as 
de seus comentadores circulassem, cada vez mais, no interior 
da Universidade de Paris38, ao longo do segundo quarto do 
século XIII. De fato, certos mestres em teologia – de Alexandre 
de Halès a Alberto Magno – contribuíram, de maneira 
decisiva, para a superação da resistência de seus pares, 
trazendo para suas próprias reflexões algumas problemáticas 
originadas pela leitura do corpus peripatético. Graças a esse 
estudo sistemático, estabelece-se um conjunto de temas e de 
argumentações a partir dos textos de Aristóteles – 
comportando remissões e comparações às fontes greco-latinas 
e greco-árabes – sobre o qual se edificarão o debate e o ensino 
universitários da segunda metade do século39. Mas dessa 
efervescência conceitual, presente tanto na Faculdade de 
Artes40 quanto na de Teologia41, emergem dois problemas que 
estarão, mais tarde, implicados nas condenações promulgadas 
pelo Bispo de Paris, Étienne Tempier, em 1270 e 127742, e na 
gênese do estatuto da Faculdade de Artes, adotado em 1° de 
 
37 Confirmação da proibição de Aristóteles, em 1231, por Gregório IX, e interdição de 
Aristóteles em Toulouse, em 1245. Cf. Aquino, 1997, p. 382-383. 
38 Restringimo-nos à Universidade de Paris em razão da carreira de Boaventura ter se 
desenvolvido nesta instituição, mas é evidente que a assimilação do aristotelismo 
greco-árabe é um fenômeno do ocidente latino e não apenas parisiense. Cf. Wéber, 
1991, p. 2-12. 
39 A esse respeito, ver Michon, 2004, p. 41-47 e Libera, 2003, p. 177-186. 
40 Em 19 de março de 1255, a Faculdade de Artes incluía em seu programa oficial o 
ensino dos libri naturales de Aristóteles (MICHAUD-QUANTIN, 1971, p. 9). Sobre o 
desenvolvimento e a evolução da Faculdade de Artes, em especial a partir dos anos 
1250, os trabalhos de referência são: Weijers e Holtz, 1997; Weijers, 2002 e Glorieux, 
1971. 
41 Cf. Bazàn, 1985, p. 13-149. Para uma comparação entre as disputationes na Faculdade 
de Artes e na de Teologia, ver Weijers, 2009. 
42 Com respeito às condenações, ver os trabalhos fundamentais de Hissete, 1977 e de 
Piché, 1999. Com relação à crise na Universidade de Paris, na década de 1270, cf. 
Libera, 2003, p. 191-220. 
 82 
abril de 127243: a tese da eternidade do mundo, atribuída a 
Aristóteles44, e a tese da unidade do intelecto possível (dito 
material) em todos os homens, atribuída a Averróis45. Como 
veremos mais adiante, Boaventura não as poupará de suas 
críticas. 
 
 
BOAVENTURA E A FILOSOFIA 
Como o doutor seráfico considera a filosofia? Qual o seu 
estatuto perante outros tipos de conhecimento? Qual a sua 
 
43 “O estatuto de 1272 inicialmente proíbe os mestres e bacharéis da Faculdade de 
Artes de determinar ou de disputar as questões ‘puramente teológicas’. Em seguida, 
fornece com precisão as disposições que concernem à maneira de se conduzir diante 
das questões que pertencem tanto ao domínio da fé quanto ao da filosofia. (...) o 
estatuto acrescenta que se ao dar uma aula sobre um texto ou disputar uma questão, 
mestres e bacharéis encontrarem passagens ou argumentos filosóficos que ‘parecem 
em certa medida destruir a fé’, eles devem se ater a adotar uma dessas três soluções: 
dar uma refutação cabal desses textos ou argumentos; declará-los ‘falsos 
absolutamente [simpliciter] e totalmente errados’; passar por eles em silêncio, 
recusando-se a explicá-los ou a discuti-los” (BIANCHI, 2008, p. 98-99). Sobre o debate 
historiográfico acerca da constituição e das consequências do estatuto de 1272, 
consultar principalmente Bianchi, 1999, p. 165-201; Putallaz e Imbach, 1997, p. 128-134 
e Pluta, 2002, p. 563-585. 
44 Com relação a estes acontecimentos sob a perspectiva dos debates sobre a 
eternidade do mundo, cf. Michon, 2004, p. 35-47. Cyrille Michon tem razão em 
remeter o leitor aos três trabalhos a seguir: a exposição mais detalhada do problema 
feita por Dales, 1990, p. 50-85; e os artigos de Brown, 1991 e de Long, 1998 (sobretudo 
p. 52-67), que tratam dessas discussões na Universidade de Oxford. Para o contexto 
parisiense, indicamos a obra clássica de Mandonnet, 1911, p. 23-39. 
45 Com relação à história dessa questão e de seus desdobramentos filosóficos e 
teológicos, assim como das restrições dogmático-coercitivas, ver o excepcional 
trabalho de Libera, 2004. Esse comentário exaustivo do De Unitate Intellectus Contra 
Averroistas, de Tomás de Aquino, não se limita ao que parece propor. Ao longo de 
suas mais de 500 páginas, A. de Libera analisa todos os autores implicados no 
problema – tenham ou não sido do conhecimento do próprio Tomás – dos 
comentadores greco-árabes aos autores latinos, cujas posições permitiram a certa 
vertente historiográfica, da qual Libera discorda, a invenção da expressão “averroismo 
latino”. O ideal é a leitura integral do texto, mas se a ocasião não se apresentar, 
indicamos ao leitor as seguintes passagens: p. 13-61; 73-77; 81-103; 108-127; 138-141; 
163-173; 189-200 e, principalmente, p. 343-525. Aconselhamos, igualmente, um texto 
mais acessível, do mesmo autor (LIBERA, 1997, p. 9-73), assim como Bianchi, 1996, 45-
93. 
 83 
natureza? Em um opúsculo, cujo título – De reductione artium 
ad theologiam –, lhe foi atribuído séculos depois46, Boaventura 
expõe, ainda que sucintamente, sua concepção sobre o 
conhecimento, suas diversas formas e as conexões que 
estabelecem entre si (BOAVENTURA, 1971). Mas, para 
compreender o que é dito, é preciso partir de certas 
considerações que nem sempre se encontram suficientemente 
explícitas no texto. 
 O pensamento de Boaventura pode ser resumido da 
seguinte maneira: Deus cria tudo o que há do nada (creatio de 
nihilo)47 e se manifesta em sua criação48. Assim, as criaturas 
carregam as marcas de Deus. Enquanto ser, o que existe se 
define por sua essência; mas, como criatura, é signo que 
remete a Deus49. Se tudo o que existe guarda em sua própria 
substância a marca que reluz, por que razão essa profusão de 
vestígios da ação divina, presente na natureza, não nos é 
visível? É porque não se trata da invisibilidade em si, mas para 
nós. Com efeito, a alma humana tem uma única natureza, 
 
46 Embora tradicionalmente conhecido sob esse título, o conjunto de seus manuscritos 
(total de 34) apresenta 12 em que não há título algum e apenas 3, datados do século 
XV, adotam o nome em questão (MICHAUD-QUANTIN, 1971, p. 7). 
47 Cf. Boaventura, 1967, p. 54-57 (c. 1, n. 1 e 2). Nas obras de Boaventura inserimos 
também, entre parêntesis, a referência tradicionalmente empregada quando se trata de 
autores medievais, para que o leitor a localize independentemente da edição 
consultada. No presente exemplo, sabemos, pela bibliografia, que se trata do 
Breviloquium, parte II; e pela referência entre parêntesis, que se trata do capítulo 1, 
números 1 e 2. 
48 “Primum principium fecit mundum istum sensibilem ad declarandum se ipsum.” [“Le 
premier principe a fait ce monde sensibile pour se manifester lui-
même”(BOAVENTURA, 1967, p. 118-119 (c. 11, n. 2)]. ”O primeiro princípio fez o 
mundo sensível para manifestar a si mesmo.” No caso do homem, Deus manifestou a 
sua potência ao fazê-lo a partir de naturezas distantes entre si, como é o caso do corpo 
e da alma no gênero da substância (uma corporal, outra espiritual) [cf. ibid., p. 112-113 
(c. 10, n. 3)]; manifestou suasabedoria ao criá-lo com um corpo harmonizado à alma 
[cf. ibid., p. 112-113 (c. 10, n. 4)]; e manifestou sua bondade e benevolência ao criá-lo 
sem mácula ou culpa e sem nenhum castigo nem miséria [cf. ibid., p. 114-115 (c. 10, n. 
5)]. 
49 Existem quatro tipos de signos, revelando os graus de proximidade e de 
distanciamento no modo como cada criatura representa o Criador: a sombra, o 
vestígio, a imagem e a semelhança (Cf. GILSON, 1953, p. 170-182). 
 84 
embora se defina de fato por dois estados: antes e depois do 
pecado original. Desse modo, a capacidade da alma deve ser 
avaliada em função do estado em que ela se encontra. 
Primitivamente, em seu estado de inocência, Adão 
conhecia através de espécies inatas, assim como é o caso dos 
anjos50. Isso significa que ele conhecia os modelos pelos quais 
Deus criou todas as coisas. De fato, a natureza da alma 
humana é como um espelho cuja perfeição é comparável à do 
anjo51. Por outro lado, Deus é potência, bondade e luz. A face 
de Deus é a fonte de toda luz. Nesse sentido, Deus é chamado 
de Pai das luzes52. Ao criar a alma, Deus a ilumina em 
intensidade máxima e esta – já que espelho – torna-se reflexo 
divino, passando a ser, ela mesma, capaz de iluminar. Como a 
verdade é a luz da alma, a luz divina lhe transmite o 
conhecimento das razões eternas. Em Deus, a ideia é o 
conhecimento e o modelo do que é criado. Na alma, o reflexo 
da ideia – ou seja, a espécie – se torna fundamento, condição e 
medida da inteligibilidade máxima possível, constituindo o 
campo do humanamente verdadeiro53. 
 
50 “Anima Adae habuit species innatas, ut etiam Angelus”[BOAVENTURA, 1885, p. 50 (II, 
d. 1, p. 2, a. 3, q. 2, concl.)]: “A alma de Adão tinha espécies inatas, como o Anjo 
também [as tem]”(tradução nossa). 
51 “Et sic ante lapsum homo perfecta habuit naturalia”[BOAVENTURA, 1967, p. 122 (c. 11, 
n. 6)]. “E assim, o homem tinha uma natureza perfeita, antes da queda”(tradução 
nossa). 
52 Cf. Boaventura, 1966, p. 84-85 (prol. n. 2); 1971, p. 48-49 (prol. n. 1); 1994, p. 20-21 
(prol. n. 1). 
53 Com efeito, a inteligibilidade em si identifica-se com a inteligibilidade divina; a 
inteligibilidade propriamente humana define-se pelos limites do conhecimento de 
Adão no estado de inocência (por exemplo, Adão conhece perfeitamente todo o 
campo do criado, mas não conhece de maneira imediata e direta a essência divina, 
pois não vê Deus face a face; se tal fosse o caso, o pecado teria sido impossível) [cf. 
BOAVENTURA, 1885, p. 544-545 (II, d. 23, a. 2, q. 3, concl.)]; em contrapartida, a 
inteligibilidade para nós, isto é, após a queda, limita-se, por um lado, ao conhecimento 
abstrativo a partir das coisas sensíveis e, por outro, ao saber divino contido nas 
Escrituras e acessível a nós pelo duplo concurso da fé e do estudo do texto sagrado em 
seu sentido não literal ou espiritual (qualquer outro tipo de conhecimento implica 
uma ação divina, seja pela graça, seja pela iluminação da alma do bem-aventurado, 
após a morte, no estado de glória). Cf. Boaventura, 1967, p. 127 (c. 12, n. 5) e 1971, p. 
60-61 (p. 1, n. 5); Gilson, 1953, p. 347-355. 
 85 
Para Adão, o mundo era então pleno de inteligibilidade, 
não apenas ao nível do conhecimento das essências das coisas, 
mas, sobretudo, na compreensão da comunhão da criatura ao 
Criador, expressa na visibilidade inequívoca do mundo como 
vestígio de Deus. Percorria com facilidade toda a escala dos 
signos – passando por sua própria alma, imagem e semelhança 
de Deus – em direção à fonte de tudo e para onde tudo o que é 
da ordem do espiritual anseia retornar54. No entanto, o pecado 
original afetou a transparência que assegurava a limpidez do 
reflexo, tornando opaca a superfície da alma55 e parecendo 
varrer do mundo os vestígios da arte divina56. 
A queda de Adão é também a nossa. A nossa alma ainda 
é imagem de Deus, mas está deformada pelo pecado. 
Doravante, as razões eternas estão além de qualquer 
compreensão. Existe, em algum lugar, escondida pela nossa 
cegueira, a verdade que salva, ou só nos resta então suportar a 
existência, reféns do medo e da superstição? Não, para 
Boaventura ainda há esperança, porque Deus não nos 
abandonou. Longe disso. A vinda de Cristo é a prova. Resta-
nos a luz reparadora, a iluminação que salva: a luz das 
Sagradas Escrituras57. Contudo, ela está escondida sob o 
manto das palavras em seu sentido literal. E tal como estamos 
cegos aos vestígios de Deus, somos como analfabetos face aos 
significados que se furtam à leitura. Reaprender a ler, tornar-
 
54 Todas as criaturas são vestígios, mas apenas as criaturas inteligentes ou espíritos 
racionais são imagens e somente as criaturas deiformes – isto é, o anjo, o homem no 
estado de inocência e a alma do bem-aventurado no estado de glória – são 
semelhanças de Deus. “Quasi per quosdam scalares gradus intellectus humanus natus est 
gradatim ascendere in summum principium, quod est Deus” [“Comme par les degrés d’une 
échelle, l’intelligence humaine est capable de s’élever graduellement jusqu’au principe 
souverain, qui est Dieu”] (BOAVENTURA, 1967, p. 122-123 [c. 12, n. 1]). ”Como pelos 
degraus de uma escada, a inteligência humana é capaz de elevar-se gradualmente até 
o princípio soberano, que é Deus” (tradução nossa). 
55 Sobre a alma no estado de miséria (in statu miseriae), entendida como espelho 
obscurecido pelo pecado, ver Boaventura, 1885, p. 545 (II, d. 23, a. 2, q. 3, concl.). 
56 Cf. Boaventura, 1967, p. 124-125 (c. 12, n. 4). 
57 Cf. Boaventura, 1971, p. 48-49 e 60-61 (prol., n. 1 e p. 1, n. 5). 
 86 
se capaz de descobrir os significados por trás dos signos que 
os escondem, reconquistar a sabedoria que as ciências teimam, 
em vão, substituir: essa é a tarefa que se impõe. A partir da 
condição humana em seu estado de pecado, como inventar os 
meios para se alcançar a iluminação que salva? A questão que 
Boaventura se coloca no De reductione artium ad theologiam e 
que repete até na última de suas Collationes é se a filosofia tem 
e qual seria o seu papel no caminho da reparação. 
No seu De reductione artium ad theologiam, Boaventura 
propõe uma classificação dos saberes, onde inicia de maneira 
clássica, referindo-se ao Didascalicon de Hugo de São Vitor, 
como se fosse estabelecer, a exemplo do que fora tradicional 
no século XII, uma lista das artes e scientiae de seu tempo. Com 
efeito, o doutor seráfico divide o conhecimento próprio às artes 
mechanicas – isto é, às técnicas inventadas pelo homem para 
compensar as deficiências inerentes ao corpo – em sete tipos, 
acompanhando assim a divisão anteriormente estabelecida por 
Hugo. Mas, as semelhanças entre as duas classificações 
terminam sem demora, logo suplantadas pelas diferenças de 
abordagens. Ao contrário de seus predecessores que se 
interessavam pela repartição criteriosa das artes e scientae 
existentes de maneira a formar um quadro coerente, quase 
escolar, Boaventura se interroga, sobretudo, pelas condições 
necessárias à existência de cada disciplina. Em outras palavras, 
que modo cognitivo está implicado na atividade formadora de 
tal ars ou tal scientia? 
Mas, essa orientação já estava de certa maneira presente 
no Prólogo do De reductione. Assim como em outras de suas 
obras58, Boaventura lembra Jacó e o tema da fonte de toda 
perfeição e excelência que caracteriza o dom: a figura do Pai 
das luzes (1971, p. 48-49). A identificação de Deus à luz 
incriada que ilumina é correlata àquela que une luz e 
 
58 Cf. Boaventura, 1966, p. 84-85 (prol. n. 2) e 1994, p. 20-21 (prol. n. 1). 
 87 
conhecimento59. Disso resulta que Boaventura distribui os 
saberes e os modos de conhecimento envolvidos conforme 
uma escala de iluminações. A primeira, relativa ao 
conhecimento implicado na produção de bens para suprir as 
deficiências do corpo, é chamada de luz exteriordos grandes 
pensadores da educação, como Rousseau, Vygotsky, Piaget, 
 11 
Gramsci e Paulo Freire, por exemplo, também se revestiu de 
uma bagagem filosófica significativa. 
Os ensaios reunidos neste volume estão assentados, 
precisamente, nesta perspectiva dialógica e convergente entre 
Filosofia e Educação. Objetivam, desse modo, servir aos 
intelectuais que se dedicam aos dois campos do saber, porque 
são filósofos-educadores ou educadores-filósofos. Destinam-
se, ainda, aos estudantes de Filosofia e de Educação que, no 
esforço rigoroso e específico de suas áreas de investigação, 
sentem a necessidade de compreender sempre mais as 
interconexões entre o amor ao saber e a dedicação em educar. Não 
se trata de uma obra que encerra todas as questões nem que 
apresenta uma visão exaustiva de toda a história do 
pensamento filosófico em suas relações com o saber 
pedagógico. Mesmo assim, tem-se aqui uma abordagem 
bastante ampla de toda a filosofia, dos filósofos pré-socráticos 
aos pensadores atuais, em 22 diferentes perspectivas. 
Como o leitor poderá verificar, na sessão Sobre os 
Autores, os co-autores desta obra têm a mais alta qualificação 
em seus respectivos campos de investigação, o que confere a 
este trabalho um elevado grau de profundidade dos temas 
tratados. Quero ressaltar, ainda, que todos estes co-autores são 
profissionais profundamente comprometidos ao mesmo 
tempo com a Filosofia e com a Educação, não só na tarefa de 
elaboração teórica destes dois campos, mas na própria 
atividade profissional de pesquisa e de ensino. 
A cada um dos co-autores, quero manifestar minha 
mais profunda gratidão por todo o empenho na construção 
desta obra coletiva. Sem a presença generosa de cada um 
deles, este livro seria apenas mais um habitante do mundo da 
utopia. Mas, em razão de seu comprometimento, esta obra 
tornou-se realidade e, hoje, pode ser oferecida ao público 
brasileiro. 
Agradeço também ao Círculo de Estudos Bandeirantes, 
Órgão Cultural afiliado à Pontifícia Universidade Católica do 
 12 
Paraná, que acolheu este trabalho para publicação. Ressalto, 
com esta referência, que o Círculo de Estudos Bandeirantes, 
nas primeiras horas do século XX, foi a instituição responsável 
pelo surgimento das primeiras escolas superiores de Filosofia 
em Curitiba e no Estado do Paraná, contribuindo para fazer 
nascer a Universidade Federal do Paraná e a Pontifícia 
Universidade Católica do Paraná. Esta entidade é um exemplo 
vivo do quanto a Filosofia e a Educação andam de mãos dadas 
nas trilhas da história. 
Fazemos votos de que as propostas aqui apresentadas 
sejam como sementes plantadas em terreno fértil, permitindo 
que brotem novos horizontes para a Filosofia e para a 
Educação neste nosso país, tão carente de ambas. 
 
Prof. Paulo Eduardo de Oliveira 
Pontifícia Universidade Católica do Paraná 
 
 
 
 
 13 
 
 
 
 
 
 
 
SSOOBBRREE OOSS AAUUTTOORREESS 
 
 
BBAARRBBAARRAA BBOOTTTTEERR 
Licenciada em Filosofia e Doutorado em Filosofia Antiga pela 
Universidade Ca’Foscari de Veneza, desenvolvido em co-tutel 
na Universidade Charles de Gaulle-Lille III. Pós-doutoramento 
na Universidade de São Paulo. Foi Professora da PUC-Rio 
entre os anos de 2008 a 2010. 
 
RRIICCAARRDDOO TTEESSCCAARROOLLOO 
Possui doutorado em Educação pela USP, mestrado em 
Educação pela PUC-SP, graduação em Letras Português-Inglês 
e em Pedagogia. É professor do Programa de Pós-Graduação 
em Educação da PUCPR, onde também exerce o cargo de Pró-
Reitor Comunitário. 
 
RROOGGÉÉRRIIOO MMIIRRAANNDDAA DDEE AALLMMEEIIDDAA 
Doutor em filosofia pela Universidade de Metz e em teologia 
pela Universidade de Estrasburgo, ambas na França. É 
professor no programa de Pós-Graduação de Filosofia da 
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, professor de 
filosofia na FASBAM (Faculdade São Basílio Magno) e de 
teologia sistemática no Studium Theologicum, em Curitiba. 
 
 
 
 
 14 
 
JJEEAANN LLAAUUAANNDD 
Professor Titular Sênior da Faculdade de Educação da 
Universidade de São Paulo. Professor do Programa de Pós-
Graduação em Educação da FEUSP. Professor do Programa de 
Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de 
São Paulo. Fundador e Presidente do CEMOrOc – Centro de 
Estudos Medievais Oriente e Ocidente, do EDF-FEUSP. 
 
EEDDUUAARRDDOO VVIIEEIIRRAA DDAA CCRRUUZZ 
Possui doutorado em Filosofia e mestrado em História da 
Filosofia pela Université de Paris IV; tem ainda mestrado em 
Filosofia pela Universidade de São Paulo e graduação em 
Ciências Biológicas pela Universidade do Estado do Rio de 
Janeiro. Atualmente, é Professor na Universidade Federal do 
Estado do Rio de Janeiro. 
 
CCEELLSSOO MMAARRTTIINNSS AAZZAARR FFIILLHHOO 
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de 
Janeiro. Atualmente é Professor do Departamento de Filosofia 
da Universidade Federal Fluminense e Professor Colaborador 
no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade 
Federal do Rio de Janeiro. Trabalhou como Pesquisador 
Convidado pela École Normale Supérieure de Lyon em 2009 e 
em 2011, e é líder do Laboratório de Estudos Renascentistas 
(LERen-UFF). 
 
EETTHHEELL MMEENNEEZZEESS RROOCCHHAA 
Possui graduação pela PUC-Rio, mestrado em Filosofia pela 
Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutorado pela 
Boston University e pós-doutorado pela Yale University. 
Atualmente é Professora da Universidade Federal do Rio de 
Janeiro, membro de corpo editorial e revisora de periódico da 
Revista Analytica (UFRJ). 
 
 15 
 
GGUUSSTTAAVVOO AARRAAÚÚJJOO BBAATTIISSTTAA 
Professor do Programa de Mestrado em Educação da 
Universidade de Uberaba-MG. Professor titular da Faculdade 
de Ciências Humanas e Sociais da Fundação Carmelitana 
Mário Palmério, em Monte Carmelo-MG. Possui graduação 
nas áreas de Letras e Filosofia pela Universidade Federal de 
Uberlândia (UFU), pela qual também é Mestre em Educação; 
Doutor em Educação pela UNICAMP, tem pós-doutorado em 
Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. 
 
VVEERRAA CCRRIISSTTIINNAA DDEE AANNDDRRAADDEE BBUUEENNOO 
Possui graduação em Filosofia e mestrado em Filosofia pela 
PUC-Rio; tem doutorado em Filosofia e Estética das Formas 
pela Université de Paris X, Nanterre, e pós-doutorado na 
University of Pennsylvania. Atualmente é professora 
assistente da PUC-Rio. 
 
EERRIICCSSOONN FFAALLAABBRREETTTTII 
Possui graduação em Filosofia pela UFPR, mestrado e 
doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de São 
Carlos. Atualmente é Professor Titular e coordenador do 
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-PR. 
 
LLUUIIZZ FFEERRNNAANNDDOO BBAARRRRÉÉRREE MMAARRTTIINN 
Possui graduação em Filosofia pela Universidade de São 
Paulo, graduação em Direito pela Universidade Presbiteriana 
Mackenzie, mestrado em Filosofia e doutorado em Filosofia 
pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, é 
professor da Universidade Federal do ABC. 
 
 
 
 
 
 16 
SSAAMMUUEELL MMEENNDDOONNÇÇAA 
Samuel Mendonça tem doutorado em Educação (Filosofia da 
Educação) pela Universidade Estadual de Campinas. 
Atualmente, é Professor Pesquisador e Coordenador do 
Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-Campinas. 
É assessor científico da FAPESP - Fundação de Amparo à 
Pesquisa do Estado de São Paulo. 
 
LLAAFFAAYYEETTTTEE DDEE MMOORRAAEESS 
Possui graduação em Física pela Universidade de São Paulo, 
graduação em Matemática pela Faculdade Nacional de 
Filosofia da Universidade do Brasil, especialização em 
Filosofia e mestrado em Filosofia (Lógica) pela Universidade 
de São Paulo. Tem doutorado em Filosofia (Lógica) pela PUC-
SP e pós-doutorado pela Universidade de Munchen. 
Atualmente, é professor titular da PUC-SP e da Faculdade São 
Bento. 
 
CCAARRLLOOSS RROOBBEERRTTOO TTEEIIXXEEIIRRAA AALLVVEESS 
Mestre em Filosofia pela PUC-SP, pesquisando na área de 
lógica, em especial “semântica da verdade” de Alfred Tarski. 
Atualmente, é professor no Colégio de São Bento, no Colégioe se divide, 
como já dissemos, em sete, formando as sete artes mechanicas 
[Ibid., p. 50-55 (P. 1, n. 2)]. A segunda se refere ao 
conhecimento das coisas sensíveis e, nesse sentido, é chamada 
de inferior [Ibid., 54-57 (P. 1, n. 3)]60. A terceira nos permite 
alcançar o domínio das verdades inteligíveis e diz respeito ao 
conhecimento filosófico. Ela é chamada de interior porque a 
investigação filosófica busca as causas íntimas, utilizando os 
princípios inatos das ciências e da verdade natural. Ela 
comporta por sua vez uma tripla subdivisão, correlata da 
divisão da filosofia em racional, natural e moral, ocupando-se 
a primeira da verdade do discurso, a segunda da verdade das 
coisas e a última da verdade da conduta [Ibid., p. 56-61 (P. 1, n. 
4)]. A quarta é a das Sagradas Escrituras e sua iluminação nos 
aproxima do que nosso estado de miseria impede de alcançar: a 
 
59 Não se trata, evidentemente, da luz corporal. Ao contrário do que nos sugere o 
senso comum, Boaventura – a exemplo de Agostinho – pensa, com efeito, que se 
podemos dizer habitualmente que o sol ilumina, é porque a natureza da linguagem 
nos permite predicar metaforicamente. Na verdade, só Deus é luz no sentido próprio e 
absoluto. A criatura espiritual, anjo ou alma humana, visto que é ontologicamente 
dependente do Criador, só é relativamente a Deus e, portanto, é luz no sentido 
próprio, mas não absoluto. Assim, entre a luz incriada e as luzes criadas há uma 
analogia de proporção, ou seja, estas se distribuem em graus de acordo com a maior 
ou menor proximidade em relação a Deus. O sol, por sua vez, não é luz no sentido 
próprio, mas apenas metaforicamente. O sol é luz segundo uma atribuição 
fundamentada em uma analogia de proporcionalidade, uma vez que a luz corporal, 
apesar de radicalmente diferente da luz espiritual, ilumina os corpos assim como 
Deus ilumina as naturezas espirituais. Em vez de hierarquia de graus, temos uma 
semelhança de relação ou função (Cf. GILSON, 1953, p. 221-223). Com relação à luz 
física, sua criação, sua natureza e seu papel enquanto forma substancial comum a 
todos os corpos [cf. BOAVENTURA, 1885, p. 312-313; 317-318; 320-321 (II, d. 13, a. 1, q. 
1, concl.; a. 2, q. 1, concl.; a. 2, q. 2, concl.)]. 
60 Sobre o conhecimento sensível e do caráter ativo inerente ao tema da sensação, 
segundo Boaventura, em oposição à passividade que lhe deve ser atribuída de acordo 
com Tomás de Aquino, ver Wéber, 1974, p. 52-60, assim como o texto clássico de 
Gilson, 1953, p. 275-291. 
 88 
verdade que salva [Ibid., p. 60-63 (P. 1, n. 5)]. Assim, essas 
quatro luzes cobrem a totalidade do conhecimento humano. 
Mas, como a iluminação do conhecimento filosófico divide-se 
em três, a classificação final de Boaventura estabelece seis 
iluminações [Ibid., p. 62-63 (P. 1, n. 6)]. 
Embora cada uma das iluminações e seus respectivos 
conhecimentos não pareçam estar necessariamente 
interconectados, Boaventura considera que, na verdade, cada 
uma delas representa uma etapa e, enquanto tal, prepara-nos 
para a seguinte. Mas, essa complementaridade – expressão de 
uma ordem e de um sentido mais profundos – não nos é 
evidente, em razão do pecado original. Por isso, o estudo das 
Escrituras é fundamental. Entretanto, não adianta saber as 
passagens de cor, não basta conhecer a intimidade das 
palavras, pois de certo modo a letra é muda. É preciso ir além, 
tornar-se capaz de ler o texto através do seu sentido literal, 
para apreendê-lo em seu triplo sentido espiritual: o alegórico 
nos ensina em que acreditar; o moral, o modo correto de viver; 
o anagógico, a recuperar o que nos liga a Deus. Ao termo 
desse processo, constata-se que todos os outros conhecimentos 
já se encontram de alguma forma contidos no texto sagrado. 
Desse modo, cada um deles só exprime o seu verdadeiro 
sentido quando entendemos que ele espera, desde a noite dos 
tempos, pelo olhar espiritual capaz de reconhecê-lo61. 
Por outro lado, o estudo das Escrituras requer, da parte 
do leitor, o domínio dos outros saberes, em especial o da 
filosofia. Mas, o aliado pode se transformar em traidor se não 
compreende a sua verdadeira razão de ser, colocando-se então 
como fim em vez de meio, recusando-se a prosseguir nessa 
jornada que ultrapassa os limites de sua própria 
 
61 Cf. Boaventura, 1971, p. 60-63, 84-85 (P. 1, n. 5 e 7; P. 2, n. 26). Em relação a como os 
cinco conhecimentos já se encontram incluídos nas Sagradas Escrituras, ver, na mesma 
obra: sobre o conhecimento sensível, p. 64-69 (P. 2, n. 8-10); sobre o técnico, p. 68-73 (P. 
2, n. 11-14); sobre o da filosofia racional, p. 72-77 (P. 2, n. 15-18); sobre o da filosofia 
natural, p. 76-81 (P. 2, n. 19-22); sobre o da filosofia moral, p. 80-85 (P. 2, n. 23-25). 
 89 
inteligibilidade, negando-se a continuar a experiência que 
substituiria as inquietações do filósofo pelo êxtase místico. 
Talvez isso explique o posicionamento adotado por 
Boaventura em seus últimos anos de vida. A partir dos anos 
1260, o doutor seráfico parece se preocupar menos com a 
filosofia do que com esse papel de recusa que ela poderia 
desempenhar. Ao invés de etapa, a filosofia assumiria ares de 
obstáculo. Mas de que forma a passividade da recusa adquire 
contornos de ameaça? Esse é o problema que ainda nos resta 
tratar. 
 
 
BOAVENTURA CONTRA A FILOSOFIA? 
 Como vimos, a recepção do aristotelismo greco-árabe 
significa um avanço sem precedentes na história do 
pensamento medieval. A exploração sistemática desse 
conjunto de saberes transforma tanto as modestas concepções 
filosóficas, até então veiculadas pelo quadrivium, quanto a 
maneira como se percebe a natureza e a conduta humanas, 
implicadas nas doutrinas religiosas. Desde o ano de 1240, os 
novos textos de Aristóteles são objeto de análises e sínteses 
que integram os cursos dos mestres em artes. Esta prática é 
finalmente institucionalizada, em 1255, com a inclusão de toda 
a obra do estagirita no programa regular da Faculdade de 
Artes. Por outro lado, a declaração de Alberto Magno, em 
1254, de que, ao empreender o seu conjunto de paráfrases 
explicativas sobre a filosofia de Aristóteles, tinha o objetivo de 
torná-la inteligível aos latinos, testemunha, por si só, o 
enfraquecimento da resistência ao aristotelismo, no interior da 
própria Faculdade de Teologia (WÉBER, 1991, p. 3 e 10-11). 
 Entretanto, no meio da década de 1260, surge uma 
polêmica, envolvendo mestres em teologia e em artes. A 
historiografia pouco conhece sobre os bastidores da 
controvérsia de Paris, mas esta parece estar ligada a dois 
fenômenos subsequentes: primeiro, a mudança do corpus sobre 
 90 
o qual o mestre em artes se debruça cotidianamente resulta em 
tal proximidade e compreensão dos problemas filosóficos que 
não há por que não o reconhecer enquanto filósofo. Em 
segundo lugar, seu novo estatuto significa também – e não há 
por que ser diferente – a possibilidade de adotar uma vida 
filosófica autônoma e de aspirar a uma beatitude própria, 
como a descrita no fim da Ética a Nicômaco, que a seus olhos 
suplantaria a visão beatífica (cf. MICHON, 2004, p. 95-97). 
Embora não seja possível determinar as verdadeiras razões do 
conflito, os textos mostram que duas teses presentes nesse 
corpus estão diretamente implicadas nos acontecimentos que 
antecederam e, em certa medida, determinaram as 
condenações e restrições que se multiplicam a partir de 1270. 
Na década de 1260, as duas teses em questão, a saber, a da 
eternidade do mundo e a do intelecto único para todos os 
homens, são objeto de duras críticas, por parte de Boaventura, 
desde suas Collationes de decem praeceptis, proferidas em 1267. 
Na verdade, a crítica não se dirige somente às teses, mas 
também – ou sobretudo – àqueles que as divulgam em sala de 
aula ou em disputationes e sophismata62. 
 É interessante notar que Boaventura não se preocupa 
exatamente em refutá-las atravésde uma argumentação bem 
fundamentada, mas visa principalmente denunciá-las pelo que 
“são”: erros da filosofia. A posição de Boaventura pode ser 
resumida da seguinte forma: a filosofia é certamente útil para 
auxiliar na resolução de certas questões de fé, mas deve ser 
elevada pela fé, uma vez que, se permanecer em seu próprio 
nível, arrastará inevitavelmente ao erro aquele que dela faz 
uso. Com efeito, não existe verdade de fé que seja 
perfeitamente compreensível ao infiel, assim como não há 
 
62 Sobre a história dos sophismata e de sua similaridade com as disputationes, cf. Libera, 
2006. 
 91 
filósofo que não incorra em erro se não contar com o auxílio da 
luz da fé63. 
Mas, estas teses ou erros Boaventura os conhece há 
muitos anos. No seu Comentário das Sentenças de Pedro 
Lombardo, escrito nos anos 1250-52, ele os estuda para melhor 
refutá-los. Sua argumentação é filosófica e fundamenta-se em 
considerações sobre o infinito. Dos seis argumentos 
apresentados, quatro remetem diretamente a Aristóteles (arg. 
1, 2, 3 e 5)64. Entre estes, um é especialmente importante para o 
entendimento da correlação entre as duas teses e de suas 
consequências, muitas vezes inaceitáveis, para a organização 
das crenças inerentes à espiritualidade cristã do período. 
Trata-se do argumento de número 5, onde Boaventura se 
inspira na objeção aristotélica relativa ao infinito em ato [Física 
 
63 Esta é uma convicção que o acompanha desde 1250: “Necesse est enim, philosophantem 
in aliquem errorem labi, nisi adiuvetur per radium fidei.” (“Com efeito, aquele que filosofa 
cai necessariamente em algum erro, exceto se ajudado pelo raio [de luz] da fé”) 
[tradução nossa]. Boaventura, 1885, p. 448 (II, d. 18, a. 2, q. 1, ad 6). 
64 O primeiro afirma que é impossível acrescentar ao infinito [Do céu I, 12, 283a 9-10]. 
Assim, se o mundo fosse eterno, a duração do passado seria igualmente infinita e, 
consequentemente, o número de revoluções do sol também. Mas, a cada revolução 
solar correspondem doze lunares, o que leva à conclusão absurda de um infinito 
maior que outro. O segundo argumento começa com a proposição: “É impossível que 
os infinitos sejam ordenados” [Física VIII, 5, 256a 17-19]. Com efeito, toda ordem 
decorre do primeiro princípio em direção a um intermediário. Objeta-se, no entanto, 
que essa regra não se aplicaria a todo tipo de ordenação – logo não diria respeito à 
ordem temporal dos dias, em anterior e posterior – mas apenas ao caso da ordem 
causal. Mas, o animal é engendrado pelo animal segundo a ordem da causa, havendo 
então a necessidade de um primeiro princípio. E, como não há revolução do céu sem 
que ocorra uma geração de um animal por outro animal, é preciso admitir uma 
primeira revolução para salvaguardar a ordem da geração animal. O terceiro 
argumento fundamenta-se na impossibilidade de se atravessar os infinitos [Metafísica 
XI, 10, 1066a 35]. Bem, se o mundo não teve início, o passado deveria atravessar sua 
duração infinita para que o hoje lhe seja contíguo. Além disso, um evento passado 
infinitamente distante do presente, mas anterior a outro evento passado também 
infinitamente distante do presente, recoloca o problema da impossibilidade de haver 
diferenças de grandeza entre dois infinitos. Portanto, a rigor, os dois eventos em 
questão não podem ser entre si nem anterior nem posterior, o que os torna 
simultâneos. E, nesse caso, é a própria noção de tempo que entra em colapso. [Cf. 
BOAVENTURA, 1885, p. 20-21 (II, d. 1, p. 1, a. 1, q. 2, sc 1, 2, 3) e MICHON, 2004, p. 
59-61]. 
 92 
III, 5, 206a 8] e afirma que é impossível a existência simultânea 
de um número infinito de realidades [Física III, 5, 204a 20-25; 
Metafísica XI, 10, 1066b 11]. Admitamos a eternidade do 
mundo. Como, de certo modo, todas as coisas existem para o 
homem, os homens sempre habitaram o mundo. Isso significa 
que as sucessivas gerações humanas são também infinitamente 
numerosas e que o número de homens que existiram é 
igualmente infinito. Mas, não se trata aqui do infinito atual, 
pois o homem é um ser corruptível e sua vida tem uma 
duração finita. Todavia, cada homem possui uma alma 
racional. Visto que esta última é uma forma incorruptível, é 
preciso admitir a existência atual de um número infinito de 
almas racionais, o que é impossível. Logo, existem três 
consequências possíveis: o mundo foi criado do nada e no 
tempo, havendo assim um primeiro princípio, isto é um 
primeiro dia, um primeiro homem, etc.; o mundo é eterno, 
existiram infinitos homens, mas só há um número finito de 
almas que habitam sucessiva e alternadamente a infinidade de 
corpos corruptíveis; ou, então, o mundo é eterno, infinitos 
homens já o habitaram, porém há somente uma única alma 
racional para todos os homens. A segunda hipótese instaura a 
circulação das almas e é um erro filosófico refutável através do 
próprio Aristóteles. Mas, a última consegue ser um erro 
filosófico ainda pior, mais absurdo, mais incompreensível, 
pelo fato de seu autor, Averróis, pretender havê-la encontrado 
nos textos aristotélicos. 
Nesse mesmo livro, mais à frente, Boaventura se 
interroga sobre a unidade ou a pluralidade da alma humana 
(racional) segundo o modo da substância. Nessa questão, 
critica a posição de que a alma humana, enquanto intelecto, é 
uma única em todos os homens, não somente com relação ao 
intelecto agente, mas também no que concerne o intelecto 
possível. Assinala a origem averroísta da posição e critica a 
tentativa do Comentador (Averróis) de impô-la a Aristóteles, 
como se ela estivesse presente no De anima e fosse 
 93 
necessariamente complementar à afirmação do estagirita a 
propósito da eternidade do mundo e do número infinito de 
homens que nos precederam. Termina sua conclusão com um 
duplo repúdio à posição averroísta: por ser falsa do ponto de 
vista da razão e por seu caráter herético. Com efeito, se a alma 
racional é única, nossa individualidade desaparece 
inevitavelmente com a morte, o que impede a imortalidade 
pessoal e a retribuição do mérito65. 
Mas, no final dos anos 1260, o contexto mudou 
inteiramente. Não é tempo para análises e minúcias, é tempo 
de ir direto ao essencial. O ambiente universitário está 
tomado, para usar uma expressão de A. de Libera (1997, p. 19), 
por uma “urgência teológica”. Em 1267, Boaventura previne os 
estudantes e mestres em Artes contra os erros dos filósofos, 
mas sem citar nomes. É evidente que não os ignora. Os textos 
do Comentário das Sentenças o atestam. É como se isso não 
tivesse tanta importância, visto que a sedução exercida pelos 
textos aristotélicos e os de seus comentadores conduziria o 
leitor, cedo ou tarde, aos erros e à heresia. A investigação 
filosófica sem a luz da fé é presunçosa e inconsequente. 
Agrada-nos tanto com a limpidez dos raciocínios lógicos que 
nos esquecemos de polir o espelho da alma no estudo do texto 
sagrado. Boaventura não argumenta mais, mas denuncia. 
Afirmar a unicidade do intelecto equivale a negar a verdade 
da fé, a salvação das almas, a obediência aos mandamentos e a 
aceitar que o pior homem será salvo e ao melhor caberá a 
danação (cf. BOAVENTURA, 1992, p. 72). Boaventura previne, 
denuncia, mas também adverte. Referindo-se à Universidade, 
afirma daquele que concebe, sustenta e reproduz as duas teses 
de que tratávamos a pouco, que ele comete um grave erro e 
que, por isso, “tanto o autor, quanto o defensor e o imitador 
 
65 Cf. Boaventura, 1885, p. 446-447 (II, d. 18, a. 2, q. 1, concl.). Sobre a individuação em 
Averróis, as origens de sua concepção da alma e o problema que a sua tese da unidade 
do intelecto material (possível) representou para a promessa cristã da salvação 
pessoal, na segunda metade do século XIII, ver Cruz, 2008, p. 318-353. 
 94 
estão, todos, proibidos aqui”(Ibid., p. 72). Em 1268, retomao 
problema, ainda sem citar nomes, num tom menos enfático, 
mas com a escolha da imagem certa, aquela que toca a quem 
escuta e reforça a autoridade de quem a profere: a tese da 
unidade do intelecto postula a identidade substancial da alma 
de Cristo e da alma de Judas [cf. BOAVENTURA, 1891, p. 497 
(coll. 8, n. 16)]. Não se pode imaginar maior injustiça. 
Já em 1273, na última de suas Collationes, Boaventura 
reencontra as duas teses, mas desta vez, não denuncia nem 
comove: argumenta. Retoma o raciocínio empregado no 
Comentário e aponta as possíveis consequências de um mundo 
eterno: infinidade de almas, almas corruptíveis, transmigração 
de almas de corpo em corpo, ou então a unidade do intelecto 
em todos. Mas, diferentemente de 1267 e 1268, ele afirma, sem 
hesitação, mais enfaticamente que há vinte anos, que a tese da 
eternidade do mundo é genuinamente aristotélica e que a da 
unicidade do intelecto é o erro atribuído ao Filósofo 
(Aristóteles) segundo a interpretação do Comentador 
(Averróis)[Cf. BOAVENTURA, 1991, p. 213 (coll. 6, n. 4)]. 
Mas, é apenas no fim dessas conferências que 
Boaventura parece revelar a natureza de sua relação à filosofia. 
Para ele, não se chega a compreender toda a riqueza das 
Escrituras sem proceder a um estudo sério, ordenado e 
assíduo. É preciso então abordar os dois Testamentos antes de 
passar aos trabalhos da Patrística, às sumas e aos filósofos. 
Primeiro, deve-se conhecer bem o texto das Escrituras. O 
estudo da Patrística ajuda nesse trabalho, mas nela 
encontramos temas difíceis que exigem o auxílio das sumas e 
dos filósofos. Nas sumas não é difícil se perder, então é melhor 
se restringir às opiniões mais comuns. Mas, no estudo dos 
filósofos, a prudência é boa companhia. Embora 
indispensável, a filosofia constitui o maior perigo, porque a 
beleza dos discursos dos filósofos pode nos tirar o gosto pela 
 95 
leitura das Escrituras. A prudência aconselha, então, a 
restringir seu estudo ao estritamente necessário66. 
Por tudo o que vimos, podemos concluir que a relação 
do doutor seráfico com a filosofia é tão complexa quanto 
ambígua. Ora etapa, ora obstáculo, parece-nos que a filosofia 
tem nessa oscilação uma das principais características do seu 
estatuto no pensamento de Boaventura. E embora nós, pós-
modernos, pós-morte de Deus, tenhamos pouco em comum 
com suas aspirações, acreditamos que, ao menos em um 
ponto, Boaventura tenha sido atemporal: a filosofia realmente 
nos seduz. 
 
 
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66 Cf. Boaventura, Collationes in Hexaemeron, 1891, p. 421-422 (coll. 19, n. 6-15). 
 96 
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 100 
 
 
 
 
 
 
 
Capítulo 6 
MMOONNTTAAIIGGNNEE:: CCEETTIICCIISSMMOO EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO 
 
Celso Martins Azar Filho 
 
Os Ensaios sempre foram vistos pela tradição como 
contendo ideias importantes sobre a educação67: com efeito, 
um de seus temas mais constantes. E como Montaigne, a maior 
parte dos grandes humanistas preocupou-se em propor uma 
teoria pedagógica68. Trata-se de um dos motivos dominantes 
da cultura renascentista, com o qual a organização sócio-
política e a ciência constituem questões solidárias e 
interdependentes. 
Para avaliar a ambiência histórica de tal interesse, deve-
se atentar para o quanto foi inaugural a época de transição 
entre o Medievo e Modernidade, e contemplar a revolução 
cultural sem precedentes que o período atravessa: uma 
ruptura radical que ocasiona tanto dúvida e prudência com 
relação a toda espécie de conhecimento e visão estabelecida do 
funcionamento e disposição do mundo, da sociedade e do 
 
67 Porque a educação constitui um tema central para compreender a filosofia 
renascentista, boa parte do que aqui se lê já foi dito em meus escritos publicados: tento 
fazer aqui uma espécie de resumo dos pontos mais importantes relativos ao tema, mas 
gostaria de reenviar àqueles com relação a explicações que não pude detalhar aqui por 
falta de espaço. A edição dos Ensaios utilizada como referência é a de Pierre Villey 
(2004), e as citações desta obra serão daqui em diante marcadas pela abreviatura ‘E.’. 
As traduções são de minha responsabilidade. 
68 Há mesmo quem afirme (TERDJMAN, 1986, p. 77) que o ideal educativo 
reivindicado por nossa sociedade contemporânea teria se originado em grande parte 
na Renascença. 
 101 
corpo, da alma ou da mente humanas, quanto reclama novas 
construções teóricas. Devemos partir daqui também para 
compreender como o ensaísta pode ter sido, além de um 
pedagogo, também um cético69, embora não se trate aí apenas 
de uma resposta a condições históricas determinadas, porém 
de algo que orienta sua obra; até o ponto em que, para melhor 
compreender seu ceticismo, precisamos nos voltar para sua 
pedagogia, e vice-versa. Pois temos aqui uma questão de 
método que fazendo parte essencial do projeto filosófico 
montaigniano, reflui sobre a própria forma do texto: além de 
destruir ou negar, no mesmo passo aí se afirma e constrói. É 
preciso não apenas indicar o que deve ou não ser feito, que 
não somente se discurse sobre um pretenso conhecimento já 
adquirido e comprovado, mas que o dito sirva de veículo 
pedagógico para o saber em causa. Que a linguagem mesma, 
apontando para além de si, sirva como gesto liberador abrindo 
tanto quanto mostrando as possibilidades e preparando o 
caminho, bem como também para ele: no ensaio, método e 
verdade, meios e fins, estão ligados. E se nos Ensaios, os 
conceitos além de polissêmicos, se estruturam em rede, de 
forma relacional se “entredefinindo” e modelando segundo as 
circunstâncias, formas e objetivos da meditação em curso, é 
porque se experimenta assim refletir o curso das coisas em sua 
experimentação por leitores e autor, ou a própria dinâmica do 
que chamamos realidade em seus múltiplos aspectos de 
representação, isto é, de construção. Ética, política, estética, 
fisiologia, história, psicologia, poesia, etc. – as “humanidades”, 
se pudermos evitar a separação estanque, então inexistente, 
entre ciências humanas e naturais – envolvem cada uma todas 
as outras em um discurso que tem o homem, não como centro, 
mas como ideal que se delineia pela busca do verdadeiro 
 
69 Lembremos que, se Montaigne pode ser considerado, sem grandes ressalvas, um 
humanista ou um cético, com relação à sua filosofia, como é comum acontecer com as 
obras dos grandes pensadores, as comparações, venham de onde vierem, nunca serão 
completamente válidas. 
 102 
conhecimento: aquele capaz de reunir virtude e felicidade. 
Mesmo se este saber só possa se oferecer como probabilidade e 
nunca como algo dado, pois somente por meio de um esforço 
de formação simultâneo de si mesmo e do aluno/leitor 
segundo uma perspectiva que considera experiência, 
compreensão e comunicação como interdependentes pode ser 
realizado: e por isso a centralidade do problema educacional. 
Quando Montaigne expõe suas ideias acerca da 
sabedoria, da verdadeira cultura e da autêntica virtude, o faz, 
como é comum em seu tempo, sob a forma de princípios 
pedagógicos. Todavia, o ensaísta não quis criar uma filosofia 
da educação como tal ou uma teoria pedagógica em si mesma. 
Nos Ensaios, o conhecimento do homem é mais importante que 
sua formação, esta advindo daquele: “Os outros formam o 
homem; eu o recito” (E. III, 2, 804). E poder-se-ia resumir em 
uma frase toda a intenção montaigniana neste sentido: educar 
pela filosofia (E. I, 26, 158 e seq.). O ensaísta não é um 
pedagogo, como também não é especialista em nenhum 
domínio, e não se cansa de dizê-lo: “Meu ofício e minha arte é 
viver” (E. II, 6, 379). Isto, aliás, talvez forme a exigência central 
de suas convicções sobre a educação: evitar, em primeiro 
lugar, o constrangimento e a limitação de qualquer 
especialização e/ou saber determinado e estático. Sempre 
tomando como base as singularidades individuais em sua 
permanente evolução, Montaigne busca a formação do homem 
como um todo; não de um guerreiro, de um teórico, de um 
diplomata, de um artista ou de um príncipe, mas de todos 
estes juntos em uma só personalidade,segundo o ideal do 
homem universal70 renascentista. Ao contrário, porém, da 
aspiração enciclopédica humanista característica da época, a 
ênfase deve ser posta na liberdade, na ideia de uma educação 
liberal que prepara o indivíduo para o mundo, seja este um 
 
70 Como ilustração apenas, veja-se o clássico de Burckhardt, 1991, p. 115 e seq. 
 103 
campo de batalha, um palco, um baile, um julgamento ou uma 
biblioteca. 
A censura aos especialistas nos Ensaios possui um alvo 
bastante concreto: a estrutura social do século XVI não 
permitindo a realização plena do modelo do homem cultivado 
em todos os sentidos, a estratificação social reproduz-se na 
esfera da atividade intelectual (AUERBACH, 1987, p. 271). De 
um lado, o volume de trabalho requerido pela redescoberta da 
herança antiga cria um novo tipo de especialista: o humanista 
– e, em relação à Idade Média, começa a prevalecer a 
especialização no trabalho científico. Porém, por outro lado, o 
crescente bem-estar de um número paulatinamente maior de 
pessoas pertencentes à aristocracia e à burguesia urbana, em 
paralelo a uma maior difusão de conhecimentos elementares 
(fruto do próprio movimento humanista), favorece a formação 
de uma nova camada “culta” que, embora exigindo uma 
maior participação na vida espiritual, necessita de um saber de 
gênero diferente da erudição especializada. 
Notemos, entretanto, que Montaigne não ataca a 
especialização, o pedantismo, ou o saber puramente livresco 
em nome desta camada emergente ou em defesa de seu 
programa ideológico. Mesmo ocupando um lugar de destaque 
na constituição de sua ideologia – o modelo do honnête homme, 
que atingirá pleno florescimento sob o absolutismo francês do 
século XVIII –, o ensaísta não faz parte desta classe, mas de 
sua pré-história. Mesmo porque algumas características 
essenciais de sua obra – o empirismo, a concretude da 
expressão de suas observações e impressões, a proximidade da 
realidade mundana e popular, a aparente desordem da 
composição, a mistura de estilos, etc. –, não encontrariam boa 
acolhida na atmosfera cultural do honnête homme. 
 104 
Todavia, se a camada culta especializa-se, a nobreza 
francesa permanece em sua maior parte ignorante71. E o 
ensaísta – que em função de sua posição, de seus encargos 
diplomáticos e das viagens feitas também por escolha pessoal 
pela Europa, pôde observar e conviver com o conjunto da 
nobreza da época – julga-a inculta repetidas vezes: “e esses aos 
quais a minha condição mais ordinariamente me reúne, são 
pessoas que, na maior parte, cuidam pouco da cultura da 
alma” (E. II, 17, 658). E isso lhe parecerá tanto mais claro por 
sua própria educação clássica, incomum em seu meio, e pelo 
seu conhecimento pessoal da civilidade dos nobres italianos 
como exceção. 
A cultura, o cultivo da alma, opõe-se à especialização ou 
à limitação e ao estreitamento do campo de atividades de um 
homem (seja seu ramo de trabalho intelectual ou não), e assim 
também ao militarismo que distinguia a aristocracia francesa 
de então72. Entretanto, o programa educativo montaigniano 
dirige-se à nobreza, como é comum na literatura pedagógica 
renascentista. Daqui já um primeiro paradoxo: Montaigne, que 
foi educado entre os camponeses de sua Gasconha natal, 
forjará uma educação para os infantes nobres73. Mas, o ideal 
educativo dos Ensaios, bem como suas concepções de honnête e 
de honnête homme, não são aristocráticos no sentido meramente 
classista da palavra: o decisivo aí, tal como para os humanistas 
em geral, é o aperfeiçoamento das qualidades morais do 
indivíduo, as quais não estão necessariamente ligadas ao seu 
nível social – e muito frequentemente o ensaísta tomará como 
 
71 Schonberger, 1975, p. 495; Villey, 2004, p. 145. Para outro testemunho da época, que 
Montaigne conheceu bem, ver Castiglione, 1991, p. 81. 
72 A continuação mesma da última citação, como muitas outras passagens, refere-se a 
isto: et ceux ausquels ma condition me mesle plus ordinairement, sont, pour la pluspart, gens 
qui ont peu de soing de la culture de l’ame, et ausquels on ne propose pour toute beatitude que 
l’honneur, et pour toute perfection que la vaillance. 
73 Cf. Nakam, 1993, p. 77. Os detalhes da educação primorosa que em seguida recebeu 
Montaigne, como sua alfabetização em latim ou os instrumentos musicais com que era 
despertado, são por demais conhecidos para que nos alonguemos sobre eles. Acerca 
disto pode-se consultar Trinquet (1972) e Frame (1965), entre outros. 
 105 
modelos de conduta os camponeses (E. II, 17, 660, por 
exemplo). 
Além da especialização, o dogmatismo é o outro grande 
inimigo de uma boa educação (E. III, 11, 1030). Contudo, se até 
mesmo os céticos têm seus “dogmas” (E. II, 12, 502), o que se 
recusa aqui não são exatamente princípios metodológicos ou 
definições estritas em si mesmas, mas em geral uma maneira 
de pensar que impeça a pesquisa contínua que deve ser toda 
ciência e toda filosofia. A má educação nos Ensaios é 
principalmente definida como aquela que toma como matéria 
um conhecimento baseado em princípios ou definições pré-
estabelecidos e inquestionáveis para meramente fixá-los pela 
memória, conteúdo vazio sem aplicação prática. Para inverter 
tal tendência, Montaigne não vai apenas preconizar uma 
educação voltada para prática: a própria educação clássica 
então em voga regurgita de preceitos acerca do valor de um 
saber prático. O que se vai recomendar e empreender nos 
Ensaios é uma verdadeira revolução pedagógica em que 
prática e teoria nunca se separam. 
A pedagogia renascentista é determinada pela 
admiração do mundo greco-romano enquanto experiência 
humana exemplar: a Antiguidade é tomada então como 
modelo. Nisto, o que costumamos chamar hoje de 
“humanismo”, desempenhou um papel fundamental. Um 
humanista74 é um homem ocupado com os studia humanitatis, as 
quais incluíam grammatica, rhetorica, poetica, historia e 
philosophia moralis (na forma em que tais designativos eram 
então entendidos), sempre caminhando a par da renovação da 
compreensão da Antiguidade; um estudioso das maneiras de 
usar a linguagem e de viver – e das implicações entre uma 
coisa e outra. No alto Renascimento – sob o impacto fascinante 
da redescoberta da verdadeira amplitude e profundidade do 
 
74 O termo ‘humanista’ foi cunhado em fins do século XV para designar um professor 
e um estudante das ‘humanidades’: Cf. Kristeller, 1992, p. 113; Garin, 1995, p. 28 e 41. 
 106 
saber antigo – muitas vezes serão confundidas sabedoria, 
eloquência e mera repetição dos autores antigos. O colégio em 
que Montaigne estudou a partir dos seis anos era dedicado à 
tarefa de ensinar o latim; visava-se a assimilação do estilo e do 
espírito dos antigos. Para tanto, a técnica pedagógica central 
envolvia o uso de cadernos de anotações conhecidos como 
“livros de lugares-comuns”, nos quais o vasto corpo da 
literatura antiga era gradualmente posto à disposição, filtrada 
e organizadamente. O lugar-comum, espécie de provérbio útil, 
servindo como guia de conduta e referencial retórico, 
constituía-se como fio condutor, tanto para a escrita, como 
para a vida. 
É uma hipótese plausível a de que o ensaísta tenha 
composto os Ensaios com a ajuda de seus próprios cadernos de 
lugares-comuns (cf. VILLEY, 1933). No entanto, seu autor 
emprega suas anotações menos como recurso mnemônico do 
que como instrumento de uma filosofia na qual pensamento e 
ação, arte e vida, ética e estética não cessam de interagir. O 
ensaísta subverte a noção de lugar-comum em virtude de uma 
maneira de argumentar que lhe era peculiar trabalhando com 
a justaposição de oposições, arguindo “de ambos os lados” ou 
“em ambos os sentidos” – in utramque partem75. O resultado 
final é a transformação, no ensaio, deste instrumento do 
ceticismo acadêmico no de um ceticismoainda mais radical, e 
que possibilita a Montaigne reformular o programa humanista 
de educação. A principal serventia do modo in utramque 
partem de raciocínio consistia em ensinar a aplicar normas 
relativas à conduta humana em situações particulares. 
Metamorfoseando-o, Montaigne irá, em vez de construir 
lugares-comuns, destruí-los, para observar e expor seus 
mecanismos de formação. Em síntese, o ensaísta transforma 
um instrumento de estabelecimento e exploração de verdades 
 
75 Sobre os loci communes e o modo de argumentação in utramque partem, sua origem 
aristotélica, sua história, sua voga na Renascença, sua assimilação e transformação por 
Montaigne, ver Schiffman, 1984, p. 163. 
 107 
em uma maneira de procurar a verdade. O movimento de 
crítica e aprofundamento simultâneos que perfaz o ensaio 
remodela o ceticismo para fazer deste um instrumento de 
pesquisa. Note-se que a própria concepção do ensaio já trazia 
em si o ensejo de um refazer constante em vistas de seu 
aperfeiçoamento contínuo, a composição dos Ensaios tendo se 
realizado segundo um processo de “aluvionamento” (segundo 
a expressão consagrada pela crítica), ou seja, de adições e 
remanejamentos ao longo dos 20 anos em que foi escrito. Já 
aqui encontramos o exemplo fundamental de como o ensaísta 
procura tornar concreto seu saber, fazendo com que forma e 
conteúdo se relacionem sempre muito intimamente para unir a 
teoria à prática. Através de uma autocrítica constante, que traz 
para o movimento da escrita o tempo vivido, fazendo de seu 
próprio texto o lugar e o instrumento do aprimoramento de 
suas ideias76. 
Pois que se trata de criar uma educação que seja voltada 
para a prática (que por meio desta e para esta se realize, 
portanto), isto exige criar formas de arrancar seus atores da 
alienação em que se encontram mergulhados com relação 
tanto ao seu verdadeiro papel social, como quanto àquele que 
deveria ser o seu papel como educadores e pesquisadores – o 
que deve acontecer paralelamente à busca de uma nova forma 
de propor os fins e os meios de seus esforços. 
Já o título de um dos grandes textos dos Ensaios 
versando sobre este assunto – o capítulo Du pedantisme (I, 25) – 
é importante para entender como uma disposição cética com 
relação às formas da educação então tradicional se impôs para 
que se pudesse cunhar uma nova pedagogia: no francês 
 
76 Nos dois grandes ensaios sobre a educação – E. I, 25 e 26 –, temos dois bons 
exemplos de como o ensaio é um método que se experimenta sem cessar colocando 
em questão seus procedimentos no mesmo passo em que caminha em direção ao 
aprofundamento de suas noções diretoras (no caso, relativas à pedagogia): p. 136 e 
148. Método de pesquisa e estilo literário, filosofia e retórica, enfim, ética, estética e 
política, aí se combinam, e com finalidades bem claras e definidas, como veremos. 
 108 
médio, a denominação ‘pedante’ significava preceptor, mestre-
escola, pedagogo, em suma, professor77; se a língua francesa 
retém hoje apenas, como no português, o sentido pejorativo do 
termo, esta acepção começa a tomar forma no Renascimento – 
e no texto em questão podemos ver como isto aconteceu: pela 
reprovação do saber afastado da vida e das preocupações e 
necessidades cotidianas, e daí negligente com relação à sua 
dimensão moral ou à sua utilidade no aprimoramento da 
pessoa humana (LOGAN, 1975, p. 615-622; VINCENT, 1997). 
Atente-se para o fato de que Montaigne ataca, assim, tanto a 
educação escolástica, quanto certas tendências da pedagogia 
humanista (seu “gramaticismo”, por exemplo, mas 
especialmente o recomendar uma educação descuidada das 
particularidades das suas aplicações, das situações e de seus 
receptores). 
Os humanistas criaram o conceito de uma espécie de 
nobreza, de aristocracia do espírito para a qual o “vulgar” 
deixa de ser uma questão de nível social e de nascimento para 
tornar-se uma pecha da ignorância e da incultura. Não se trata 
mais apenas do reconhecimento, comum na Antiguidade e na 
Idade Média, e renovado nos séculos XIII e XIV (quando a 
burguesia citadina retoma por conta própria, com fins de 
legitimação de seu novo status, o ideal cavalheiresco), de que a 
nobreza da alma não é um privilégio de nascimento, porém 
apanágio daqueles que agem nobremente (CURTIUS, 1991, p. 
296; BAURMANN, 1939, p. 55). Trata-se, ao contrário, de uma 
valorização da boa educação que, tendo também raízes 
antigas, não encontra paralelo de igual intensidade na Idade 
Média78. Todo inculto chama-se agora, para os humanistas 
franceses, vulgaire, seja qual for sua classe social. Concorrem 
 
77 O termo é emprestado, primeiro sob a forma pedante (1558), do italiano pedante, de 
origem grega. Em Montaigne, encontramos a primeira ocorrência de pédantisme (1580). 
Cf. Greimas e Keane, 1992; Dauzat, Dubois e Mitterand, 1971; Rey, 1992; Huguet, 2010. 
78 Muito embora não seja algo de inaudito no medievo: veja-se o exemplo do Romance 
da Rosa. 
 109 
para isso a prosperidade da pré-burguesia emergente e, 
notadamente, a projeção dos humanistas e sua importância 
política79 nas cortes renascentistas – fatos que devem ser 
justificados pela formação de uma nova ideologia acerca da 
noção de nobreza. Assistimos no Renascimento a um novo 
arranjo das ciências e dos saberes, e – claro – das classes sociais 
e seus ideais80. 
Logo no início de Do pedantismo, Montaigne cita um 
provérbio medieval que também se encontra em Rabelais 
(Gargântua, XXXIX): “magis magnos clericos non sunt magis 
magnos sapientes”. Traduzindo: “os maiores letrados não são os 
maiores sábios”. Notemos a ambiguidade do termo clericos que 
pode significar tanto clérigos, monges, como eruditos, 
letrados, sabedores; este duplo sentido é medieval (BLAISE, 
1994) – embora a palavra seja de origem grega (ERNOUT e 
MEILLET, 1994) – e foi preservado pela língua francesa – 
mantendo até mesmo um caráter irônico no francês moderno 
(clerc). Ora, a ciência foi, ao longo da Idade Média, e era então 
ainda na maior parte, afazer do clero, de onde também saem, 
em primeiro lugar, os homens ocupados com o ensino 
(CHATEAU, 1971, p. 122, n. 4). Logo, não é de surpreender 
aquela identificação linguística; e aqui temos mais um 
elemento da crítica social montaigniana. Mas o que mais 
importa aí é a determinação da diferença, corriqueira nos 
Ensaios, entre erudição e sabedoria, onde o sçavant (que se 
pode traduzir por ‘erudito’ ou, mais diretamente, ‘sabedor’) 
não se confunde com o sage, o ‘sábio’. Toda a filosofia 
montaigniana é um esforço de compreensão e expressão 
simultâneos do que seja a sabedoria – conceito fundamental 
 
79 Cf. Kristeller, 1992, p. 123. Note-se, de novo, que especialmente na França acontece 
uma espécie de identificação ideológica entre escritores burgueses e círculos 
aristocráticos: cf. Auerbach, 1987; Elias, 1990, vol. 1, p. 87. 
80 A importância que assume então o problema educacional na literatura humanista 
pode ser explicada como um dos sintomas da transição sofrida pelo sistema de valores 
nas sociedades renascentistas, marcadamente no século XVI: cf. Elias, 1990, vol.1, p. 91 
e 94. 
 110 
para a filosofia do Renascimento (RICE, 1958) –, 
frequentemente através da marcação de suas diferenças com 
relação à pura e simples cultura livresca que não conduz, por 
si só, a agir ou a pensar melhor. Este afastamento de um saber, 
agora percebido como presunçoso, debilitante e estéril, corre 
em paralelo à tentativa de obter um conhecimento que 
aproxime da virtude, do bem-viver, da felicidade. Vejamos um 
exemplo deste ensaio mesmo: 
 
Embora pudéssemos ser sabedores pelo saber de outrem, ao 
menos sábios não podemos ser senão pela nossa própria 
sabedoria. “Detesto o sábio que não é sábio para si mesmo”. 
Como Ennius tambémdiz: Não sabe nada que preste o sábio 
cuja ciência não lhe aproveita, se ele é avarento, gabola, 
efeminado, mais mole que uma ovelhinha. Pois adquirir a 
sapiência não basta: é preciso usufruir dela. Dionísio zombava 
dos gramáticos que têm o cuidado de se indagarem dos males 
de Ulisses e ignoram os próprios; dos músicos que afinam 
suas flautas e não afinam seus costumes; dos oradores que 
estudam para dizer a justiça, não para fazê-la. Se nossa alma 
não se movimenta melhor, se nosso julgamento não se faz 
mais são, tanto se me daria que meu colegial tivesse passado o 
tempo a jogar pelota: ao menos o corpo tornar-se-ia mais ágil 
(E. I, 25, 138). 
 
E aqui lemos o sentido básico da investida contra o 
pedantismo, na qual se visa, ao mesmo tempo, uma concepção 
da ciência e uma da educação, que são inseparáveis e 
igualmente falsas (CHATEAU, 1971, p. 124-125), ambas fruto 
de uma confusão do verdadeiro conhecimento com o 
enciclopedismo, o vão eruditismo e a ostentação de cultura 
inútil. E boa parte da ciência, como da educação, medieval, 
renascentista e de todos os tempos, tem sua parcela de culpa 
nisto. Ao contrário, no pensamento montaigniano e na própria 
ideia de ensaio, é evidente a importância do cultivo do espírito 
crítico, da capacidade de avaliar, pesar, apreciar a ciência – e o 
ensaísta diria mesmo ‘degustar’ (por exemplo, E. I, 25, 150). 
 111 
Uma postura passiva perante o saber, apenas armazenadora 
dos pensamentos e juízos de outrem, ainda que fossem dos 
mais excelentes espíritos, torna-os nocivos: é preciso julgar por 
e para si mesmo os julgamentos alheios e fazer assim nosso 
seu saber. 
 
Nós sabemos dizer: Cícero diz assim; eis a moral de Platão; 
estas são as palavras mesmas de Aristóteles. Mas nós, que 
dizemos nós mesmos? Que julgamos? Que fazemos? Um 
papagaio faria tão bem quanto nós. [...] Conheço alguém que 
quando pergunto o que ele sabe, ele me pede um livro para aí 
o mostrar; e não ousaria dizer que tem o traseiro sarnento, 
sem ir imediatamente estudar em seu léxico, o que é sarnento, 
e o que é traseiro. Tomamos em nossa guarda as opiniões e o 
saber de outrem, e é tudo. É preciso torná-los nossos. [...] De 
que nos serve ter a pança cheia de comida se não a digerimos? 
Se ela não se transforma em nós? Se ela não nos faz crescer e 
fortifica? [...] Tanto nos deixamos levar nos braços de outros, 
que aniquilamos nossas forças (E. I, 25, 137). 
 
Assim acontece que amiúde uma alma rica dos mais 
variados conhecimentos nem por isso torne-se mais viva ou 
desperta, e que um espírito grosseiro e vulgar possa alojar em 
si, sem se emendar, os discursos e os julgamentos dos mais 
excelentes espíritos (E. I, 25, 134). Como disse uma princesa81 a 
Montaigne, os cérebros destes homens encolhem-se e 
amesquinham-se para dar lugar ao saber que não lhes 
pertence verdadeiramente. Nosso autor vai contrapor a esta 
forma equivocada outra que lhe é diametralmente oposta, 
respondendo à princesa com as seguintes palavras: “Mas outra 
 
81 Notemos a referência constante à nobreza. “A primeira de nossas princesas” seria, 
segundo Villey (Ed. dos Ensaios, pg. 1240), Catarina de Bourbon, irmã de Henrique de 
Navarra. É interessante como o ensaísta com frequência refere-se e endereça-se às 
mulheres em meio a desenvolvimentos relativos à educação (aqui, na dedicatória do 
De l’institution des enfans e no maior e talvez o mais cético dos ensaios, a Apologia de 
Raimond Sebond). Com isso, aliás, opondo-se tacitamente ao preconceito contra as 
mulheres bem instruídas (criticado na página 140 do mesmo Du pedantisme). 
 112 
coisa acontece: pois nossa alma tanto mais se alarga quanto 
mais se enche” (E. I, 25, 134). 
Assim podemos nos aplicar à ciência, tanto de maneira 
que esta nos seja formadora e enobrecedora, quanto de modo 
deformador e prejudicial: mas mesmo que haja uma forma 
errada de se ocupar da ciência e do conhecimento em geral 
cujas consequências são nocivas, o estudo e a cultura não são o 
mal em si (como poderia parecer significar a opinião da 
princesa). 
 
[...] e creio que vale mais dizer que o mal provém da maneira 
ruim com que eles se aplicam às ciências; e que, pelo modo 
como somos instruídos, não é de maravilhar se nem os 
estudantes nem os mestres se tornem mais capazes, embora se 
façam mais doutos. A dizer a verdade, o cuidado e as 
despesas de nossos pais não visa senão a nos mobiliar a cabeça 
de ciência; do julgamento e da virtude, poucas notícias. 
Apregoai de um passante ao nosso povo: ‘Olha o homem 
sabedor!’ E de um outro: ‘Olha o homem bom!’ Não faltará 
quem torne os olhos e seu respeito para o primeiro. Seria 
preciso um terceiro pregão: ‘Olha os cabeças pesadas!’ 
Gostamos de perguntar: ‘Sabe ele grego ou latim ? Escreve em 
verso ou em prosa?’ Mas se tornou melhor ou mais avisado, 
que era o principal, isso fica para trás. Seria preciso se 
perguntar quem sabe melhor e não quem sabe mais. 
Esforçamo-nos unicamente para encher a memória, e 
deixamos o entendimento e a consciência vazios (E. I, 25, 136). 
 
Se Montaigne ataca a ciência (termo que, como é comum na 
época, significa o saber em geral), não é para se recusar a ela, 
mas para compreendê-la melhor: em diversos pontos dos 
Ensaios, e também no Do Pedantismo, Montaigne testemunhará 
a favor das ciências e de seu valor. À busca do verdadeiro 
conhecimento serve o ensaio, experimentando e educando 
nosso julgamento82. Aperfeiçoar-se na conduta e no julgar são 
 
82 O “julgamento” (jugement) constitui, na filosofia montaigniana, a instância 
intelectual superior, que avalia e decide com base na razão e na sensação realizando 
sua síntese, ou combinando suas operações e dados, no juízo. Ele estabelece uma 
 113 
tarefas interdependentes e ligadas pela noção de sabedoria. E 
isto não se consegue empregando apenas a memória: não se 
trata, como está dito na última citação, de “mobiliar a cabeça”, 
mas de se formar corretamente, ou melhor, de forjar: “Prefiro 
forjar minha alma que mobiliá-la”(E. III, 3, 819). 
Melhor uma “cabeça bem feita que bem cheia” (E. I, 26, 
150). Precisamente esta distinção confundiu os leitores dos 
Ensaios: pois qual a diferença entre a douta ignorância que 
serve de travesseiro suave, doce e saudável para repousar uma 
cabeça bem-feita (E. III, 13, 1073) e a ignorância pura e 
simples? A melhor resposta vem de outro cético (ou que pelo 
menos foi julgado também frequentemente como tal), Diderot: 
“A ignorância e a despreocupação são dois travesseiros muito 
doces: mas para julgá-los como tais é preciso ter a cabeça tão 
bem feita quanto Montaigne” (apud P. Villey na edição dos 
Ensaios tomada aqui como referência, p. 1199). 
Tratamos de uma educação que visa o talento: “Um 
homem erudito não é erudito em tudo; mas o homem de 
talento é em tudo capaz, e mesmo em ignorar” (E. III, 2, 806). 
Daí a recusa montaigniana em assumir uma postura 
professoral: ele próprio está preocupado em aprender – os 
Ensaios perfazem a história de seu aprendizado –, e é seguindo 
o seu caminho que ele lança luz sobre o nosso. Porque neste 
campo, no domínio da filosofia moral, tal como a estuda o 
ensaísta, pensamento e ação são inseparáveis na letra, como no 
espírito; na escrita, como na vida. Julgar é agir. Como, porém, 
chegar à condição de bem agir? O que é aquele “saber melhor” 
mencionado acima – este saber que nos permite, inclusive, 
bem ignorar – e de que maneira se alcança tal conhecimento? 
Esta questão está em jogo no bojo da concepção de uma 
 
espécie de critério formal, sempre local e contingente, não necessariamente engajado 
em normas ou referido a valores obrigatórios, e que por isso não entra em contradição 
com a dúvida contínua inerente ao ensaio. “O julgamento é um utensílio para todos os 
propósitose em tudo se intromete. Por este motivo, nos ensaios que dele aqui faço, 
emprego toda sorte de ocasião” (E. I, 50, 301). 
 114 
filosofia ensaística, quer dizer, entendida como busca 
constante de sua possibilidade. À ciência, ou ao conhecimento 
puro e simples dos fatos e letras, deve-se juntar o ensaio do 
senso83, isto é, a experimentação do julgamento ou do bom-
senso – que só se pode constituir no ensaio da ação (E. I, 25, 
142). E ainda: 
 
Ora, o saber não deve ser pregado na alma, mas deve ser 
incorporado a esta; não deve regá-la, deve tingi-la; e, se não a 
muda, nem melhora seu estado imperfeito, mais vale 
certamente que o deixemos onde está. É um gládio perigoso, 
que embaraça e fere o dono, quando empunhado por mão 
fraca e que não lhe sabe manejar, “de sorte que fora melhor 
nada ter aprendido84. 
 
Bem pensar e bem fazer: tal deve ser o fruto do 
verdadeiro conhecimento (E. I, 25, 141). O crucial para tanto é 
a maneira de travar contato com a ciência, de lidar e de se 
relacionar com o conhecimento: o ensaísta enfatiza, sobretudo, 
a inter-relação entre o método pedagógico correto, a situação e 
a natureza do aluno (E. I, 25, 142-143). 
A Renascença, vimos, retoma o saber greco-romano, e 
este prescreve em geral subordinação à medida natural. Não 
se trata de crer que a educação tem pouco valor, tendência cuja 
radicalização por motivos religiosos levara anteriormente até a 
condenação de todo ensinamento e de toda cultura “humana” 
(GARIN, 1995, p. 45 e seq.; CHATEAU, 1971, p. 134). Muito 
diversa é a motivação da corrente anti-intelectualista que 
atravessa o humanismo desde Petrarca – e que, em Montaigne, 
 
83 L’essay du sens (E. I, 25, 140). Note-se como, neste trecho mesmo, o ensaísta joga com 
o duplo sentido francês de sens: senso e sentido. 
84 E. I, 25, 140. Atenção aqui para a equiparação, frequente nos Ensaios do processo de 
conhecimento ao processo digestivo. Note-se que incorporar não significa lá aceitar, 
mas transformar. É importante marcar a maneira pela qual a linguagem ensaística 
serve não só de veículo às ideias montaignianas, porém as exprime em si mesma, 
através de seus termos, ritmos, imagens, etc. Desta forma, à análise conceitual 
“descarnada”, escolástica, vêm juntar-se poderosos instrumentos literários de 
expressão. 
 115 
entre outros, emprega o arsenal argumentativo do ceticismo 
antigo em seu favor –, a qual tem por fundamento a exigência 
de que todo aprendizado deva ser justificado por sua 
contribuição para a melhora do caráter do aprendiz85. 
Portanto, é precisamente uma diretriz educativa que assim se 
impõe com o fim de otimizar o próprio processo pedagógico, 
de acordo com os objetivos então acreditados essenciais. Por 
outro lado, o intento de seguir a natureza não serve mais 
apenas de suporte ideológico à manutenção de uma hierarquia 
social cristalizada: os humanistas pensavam no homem como 
construtor de si mesmo e de seu destino. A boa educação é 
aquela que considera a natureza individual de seus sujeitos e 
as ocasiões, e a estas se adapta para tentar transformá-las 
segundo suas interações. Uma das características da sabedoria 
montaigniana é facultar ao homem o reconhecimento de sua 
própria condição; ou o saber que para cada homem há um 
afazer e conhecimento apropriado à sua disposição pessoal e 
às oportunidades que se lhe oferecem. Neste sentido, também 
um camponês, se sabe e faz o que lhe é devido, será 
considerado sábio. E se os nobres devem ser educados, isto 
não significa esquecer o lugar que lhes cabe: a guerra e o 
governo, não as letras, devem ser suas principais ocupações. 
Não há aqui contradição: o combate humanista contra o 
conceito de nobreza hereditária e a ligação ideológica de raça e 
 
85 Logan, 1975, p. 621. É bem verdade que tal crítica do saber deita suas raízes na Idade 
Média e permanece paralela à revalorização da cultura no Renascimento Carolíngio 
como uma espécie de exigência de medida que seria inerente ao verdadeiro 
conhecimento (GARIN, 1995, 57-58); mas é verdade também que aí o fim moral 
consiste basicamente na salvação e na fé que devem, não somente orientar o saber, 
porém dominá-lo (GILSON, 1986, p. 41). Note-se ainda que os humanistas são 
normalmente cristãos e por vezes atacam o saber e a cultura em geral com disposição, 
senão idêntica, vizinha à medieval. A originalidade montaigniana, aliás, é 
precisamente não recusar o saber como um todo, de maneira obscurantista, mas 
desenvolver suas dúvidas pelo raciocínio cuidadoso, chegando, com método, a 
algumas dificuldades filosóficas cruciais: isto o torna, segundo Popkin (1979, p. 53-54) 
diferente dos outros céticos do século XVI, e mais importante do que qualquer um 
deles. 
 116 
virtude não impedem que os Ensaios, e o Renascimento como 
um todo, continuem bastante sensíveis a tais ideias (cf. E. III, 5, 
850-851; BAURMANN, 1939, p. 58). Igualmente, mesmo que a 
identificação de virtude e coragem guerreira seja recusada, o 
humanismo fará concessões à virtude bélica. E Montaigne 
chegará a dizer, no final de Do Pedantismo, que “o estudo das 
ciências amolece e efemina as coragens mais do que as 
endurece e viriliza” (E. I, 25, 143); e termina por relatar a 
opinião dos nobres do séquito de Charles VIII – então 
conquistador sem esforço de Nápoles e de boa parte da 
Toscana, berço do Renascimento – os quais culparam 
precisamente o refinamento da nobreza italiana (que o 
ensaísta, vimos, tinha em alta conta) por sua fatídica derrota. 
Mas há aqui também uma ironia evidente dirigida contra seus 
compatriotas. É preciso repetir: não estamos frente a uma pura 
e simples recusa da educação ou da ciência, mas lemos a 
crítica de uma formação mal feita conjugada com 
recomendações acerca da maneira correta de educar, maneira 
esta que deve estar intimamente relacionada à natureza e 
condição do aluno. 
Mas há mais que isso: que se insista que a compreensão 
correta, não só da pedagogia, mas da filosofia ensaística, 
depende de se perceber como seu lado prático efetivamente se 
articula em função de sua elaboração teórica e/ou vice-versa. 
Montaigne tenta fazer já no seu texto justamente aquilo que ele 
recomenda: sua busca do saber pretende ter um efeito prático 
sobre autor e leitores, ou seja, à pedagogia deve se seguir um 
resultado ético e sócio-político. Para estimular os nobres à 
verdadeira cultura, o ensaísta vai atacar aquela apenas 
aparente, inútil e prejudicial, e mostrar que há uma filosofia 
que lhes seria benéfica. Ao invés de tentar fazer do nobre um 
filósofo (como por vezes parecem pretender os humanistas), 
Montaigne vai apresentar a filosofia à corte (BOUCHARD, 
2007, p. 65). E com isso ainda – e agora seguindo os 
humanistas – faz da nobreza um ideal para todos os homens. 
 117 
Logo, não se trata de uma espécie de casuística da educação, 
porém de uma, digamos, especialização de sua aplicação. Seria 
um erro reduzir todo alcance e fim da mensagem 
montaigniana à classe aristocrática. O objeto da filosofia 
ensaística é o homem, e seu objetivo mais lato, sua formação. 
Montaigne procura através de exemplos e situações 
particulares atingir o universal. Daí o interesse, não por uma 
classe ou grupo determinados, mas por cada caso singular – 
que se expressa já no fato do ensaísta pretender através de si 
mesmo, no auto-retrato que são os Ensaios, retratar a condição 
humana86. 
O esforço para definir o que é saber e educar bem se 
refere tanto às classes sociais como à natureza dos indivíduos: 
ora, uma e outra coisa estão ligadas no imaginário da época. A 
resposta de Montaigne é fazer uma crítica de tal injunção 
conectada com o exame do saber. Por exemplo: se não 
requeremos muita ciência das mulheres e dos nobres, não é 
porque toda ciência seja nociva ou inútil, mas porque esta 
nossa ciência o é, reflexo de uma situação sócio-política 
perversa (E. I, 25, 140-141). A separaçãoentre teoria e prática 
espelha uma divisão social que atribui o trabalho intelectual a 
certas classes (clérigos, humanistas, professores). O pedante é 
resultado desta divisão. O que Montaigne percebe muito bem 
é que esta divisão é apenas aparente, dado que jamais poderia 
se constituir realmente: os caminhos pelos quais teoria e 
prática se unem podem até escapar ao senso comum, mas 
jamais à realidade de sua integração necessária. Assim este 
saber inútil se encaixa em uma situação em que a nobreza está 
mais preocupada em defender seus interesses familiares ou 
partidários do que a França; e em que os professores estão 
mais preocupados com sua difícil sobrevivência do que com 
seus alunos ou com o verdadeiro saber. O pedante é então 
 
86 Veja-se o começo do ensaio Du Repentir (III, 2) que serviu de modelo a Auerbach 
(1987, cap. 12) em sua famosa análise do método montaigniano. 
 118 
uma espécie de parasita social, porque o pedantismo tornou-se 
uma espécie de doença social (PANICHI, 2007, p. 890) que não 
toca apenas a uma classe determinada: de um lado, temos o 
pedante em pessoa, aquele que professa um conhecimento 
sem valor e sem sentido, de outro a atitude pedante do nobre 
que crê que o status por si só (e nisto se visa também a noblesse 
de robe, pré-burguesia emergente, a qual Montaigne pertencia) 
confere um saber inspirado cuja prova se encontra, seja pelo 
nascimento, seja pelo triunfo social, em um momento em que 
tais coisas, como hoje talvez, tornaram-se muito próximas. 
 
 
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 119 
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 121 
 
 
 
 
 
 
 
Capítulo 7 
DDEESSCCAARRTTEESS,, MMÉÉTTOODDOO EE CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO 
 
Ethel Menezes Rocha* 
 
Os primeiros esforços de Descartes foram dedicados, 
juntamente com o filósofo da natureza Isaac Beeckman, a 
problemas de matemática, musicologia, cinemática e 
hidrostática. Como resultado, no final de 1618, Descartes 
completa seu primeiro livro (que só será publicado em 1650), 
Compedium Musicae, que dedica a Beeckman. O trabalho inicial 
de Descartes em matemática, como era o caso de um modo 
geral nas matemáticas, não é formulado sob a estrutura lógica 
silogística aprendida com seus professores escolásticos. Além 
do fato de, no século dezessete, as matemáticas de um modo 
geral não utilizarem a lógica silogística, o que só ocorre no 
século dezenove, quando a lógica passa a ser considerada o 
núcleo das matemáticas, Descartes considerava a lógica formal 
inadequada para as ciências. Na Parte II do Discurso sobre o 
Método, no Prefácio à edição francesa dos Princípios da Filosofia, 
nas Regras para a Direção do Espírito e mesmo em seu último 
escrito A Procura da Verdade, Descartes expressamente se opõe 
aos dois objetivos centrais da teoria aristotélica referente à 
lógica: tanto à ideia aristotélica de fornecer uma explicação 
sistemática de silogismos demonstrativos, quanto à ideia de 
fornecer uma teoria normativa do pensamento, isto é, à ideia 
de que é tarefa da filosofia fornecer um conjunto de regras 
 
* Pesquisadora do CNPq e PRONEX/CNPQ/FAPERJ. 
 122 
para pensar corretamente. Descartes sustenta que inferência é 
algo que os homens, por serem criaturas racionais, fazem 
naturalmente e de modo correto, considerando, portanto, 
vazia e inútil a constituição de um conjunto de regras externas 
que regulariam o acesso à verdade. Em suas palavras: “Além 
disso, as cadeias com as quais os dialéticos87 supõem regular a 
razão humana [para alcançar o conhecimento das coisas] me 
parecem de pouca utilidade...”(Regra II)88. Mais ainda, 
segundo ele, a lógica formal silogística quase sempre constitui 
um obstáculo ao exercício da função natural da razão, 
impedindo-a de funcionar do modo que lhe é próprio, isto é, 
como afirma no Prefácio dos os Princípios, “... a lógica dos 
escolásticos corrompe o bom senso no lugar de ampliá-lo”. 
Que sua crítica ao formalismo da lógica silogística se baseia na 
essência da razão e seu funcionamento natural fica claro, por 
exemplo, na obra Regras para Direção do Espírito, quando 
Descartes opõe o fato de a razão trabalhar quando se empenha 
em perceber claramente uma inferência com o fato dela entrar 
de férias quando dispensa essa operação e segue cegamente 
preceitos formais. Em suas palavras: 
 
Alguns espantar-se-ão, talvez, que neste lugar em que 
procuramos os meios de nos tornarmos mais aptos para 
deduzir as verdades umas das outras, omitamos todos os 
preceitos dos Dialéticos, com os quais julgam eles governar a 
razão. Eles prescrevem certas formas de raciocínio nas quais 
as conclusões se seguem com tal necessidade irresistível que 
se a razão nelas confia, embora de certa maneira entre de 
férias dispensando considerarclara e atentamente uma 
inferência particular, pode, todavia, concluir por vezes algo de 
acertado meramente em virtude da forma (Regra X). 
 
Mesmo em seu último escrito, A Procura da Verdade, 
provavelmente escrito em 1641, mas só publicado após sua 
 
87 “Dialética” é o termo utilizado por Descartes para se referir à lógica escolástica. 
88 Ver também Discurso sobre o Método, Parte II, AT VI:17. 
 123 
morte, Descartes mantém sua oposição à lógica formal em 
favor do uso natural da razão e a tese de que esta é 
corrompida por aquela. Nesse texto, Eudoxus, personagem 
que no diálogo veicula as teses cartesianas, afirma: 
 
Todos esses pontos foram afirmados e desenvolvidos não por 
meio da lógica, ou de uma regra ou modelo de argumento, 
mas apenas pela luz da razão e bom senso. Quando essa luz 
opera por si mesma, é menos provável que erre do que 
quando se esforça ansiosamente para seguir as inúmeras e 
diferentes regras, invenções do engenho e ócio humanos, que 
servem mais para corrompê-la do que para torná-la mais 
perfeita (AT X: 521). 
 
Em alternativa ao modelo lógico silogístico formal, 
Descartes adota em seus trabalhos em matemática o que 
tipicamente no século dezessete considera-se o modelo 
matemático de raciocínio: prova de teoremas a partir de 
axiomas, definições e postulados. 
Seu trabalho em geometria e álgebra, juntamente com 
um conjunto de três sonhos na noite de 10 de novembro de 
161989, o convencem de seu dever de estender a clareza dessas 
ciências às outras ciências, sobretudo à filosofia, já que, 
segundo ele, os princípios que fundam todas as outras ciências 
derivam da filosofia. A noite do sonho foi, portanto, uma noite 
de descoberta da sua missão: reformar as ciências. Em 
oposição a formular um conjunto de regras externas ao 
pensamento que o module, essa reforma envolve a 
sistematização em regras das “primeiras sementes depositadas 
pela natureza nos espírito humano” que consistem, portanto, 
no modo como naturalmente pensamos. Como fica claro na 
Regra VI das Regras, a sistematização desses modos naturais 
 
89 O conteúdo dessa série de três sonhos é narrado por Adrienne Baillet, biógrafo de 
Descartes, em seu livro La vie de M. Des-Cartes (Paris: Horthemels, 1691). O que 
ainda restou do texto original, está publicado em AT X, 213 [C. Adam e P. Tannery 
(orgs.), Oeuvres de Descartes (Paris: Vrin/CNRS, 1964-76)]. 
 
 124 
de pensar que seria uma disciplina contendo “os primeiros 
rudimentos da razão humana” e que deveria “se estender à 
descoberta de verdades em qualquer que seja o campo 
teórico”, é a matemática universal. Essa disciplina, entretanto, 
não consiste nas matemáticas particulares como a aritmética e 
a geometria, que são apenas exemplos de como o método é 
aplicado, mas sim em uma ciência mais universal que expressa 
a própria natureza da razão. O método universal não é uma 
generalização das matemáticas particulares, mas a expressão 
em regras da natureza do pensamento, cuja clareza se 
manifesta nas matemáticas particulares, e deve se aplicar a 
todo tipo de conhecimento. Há uma identidade entre o 
método – a matemática universal – e a razão, e não entre o 
método e as matemáticas. Nas palavras de Descartes (Regra 
IV), 
 
esses pensamentos me fizeram desviar dos estudos 
particulares de aritmética e geometria para uma investigação 
geral das matemáticas [...] Quando considerei o assunto mais 
de perto percebi que a única preocupação da matemática é 
com questões de ordem e medida [...] Isso me fez perceber que 
deve haver uma ciência geral que explique tudo que pode ser 
questionado acerca de ordem e medida [...] e essa ciência deve 
ser chamada mathesis universalis (AT X: 378). 
 
Assim, o raciocínio matemático (e, como vimos, não a 
lógica silogística) é um exemplo de raciocínio que, segundo 
Descartes, deve ser adotado pelas outras ciências, em 
particular a filosofia, na medida em que na matemática os 
princípios inatos do método são naturalmente aplicados. 
Apesar disso, como veremos, embora compartilhasse do 
encantamento com o ideal geométrico com muitos filósofos - 
tais como Espinosa, Hobbes, Russell e Platão – Descartes, com 
base em uma distinção entre o método matemático sintético e 
o método matemático analítico, não assume para a 
investigação da verdade de um modo geral um modelo 
 125 
dedutivista de ciência, isto é, um modelo que envolva um 
sistema formal baseado em axiomas e definições. 
As declarações oficiais de Descartes acerca do método 
para investigação da verdade estão nas Regras para Direção do 
Espírito (principalmente entre as Regras II e VIII) e, mais tarde, 
em seu sumário no Discurso sobre o Método (principalmente 
Parte II). Em termos gerais as regras do método para conhecer 
são: a) só aceitar como verdadeiro o que é indubitável; b) 
analisar o máximo possível os problemas em partes mais 
simples; c) mover-se do simples para o mais complexo e d) 
rever e verificar completamente as conclusões a que chegar. 
Visto que é através da razão que se dá o conhecimento, nas 
Regras Descartes examina a natureza da razão e como esta 
funciona. Nesse exame, fica claro que as operações cognitivas 
da razão são as operações da intuição e dedução que 
consistem “nas vias mais certas para o conhecimento” e “as 
únicas em que devemos confiar na aquisição de nosso 
conhecimento” (Regra VIII). A razão adquire conhecimento 
através das operações da intuição e da dedução, portanto, 
porque estas são as operações que consistem em seu 
funcionamento natural. 
Em algumas passagens das Regras, Descartes descreve o 
que entende por intuição e dedução. Por exemplo, na Regra 
III, ele afirma: 
 
Por intuição [...] designo a concepção de uma mente clara e 
atenta que é tão fácil e distinta que não há espaço para dúvida 
acerca do que por ela compreendemos [...] e [por] dedução [...] 
a inferência de alguma coisa que segue-se necessariamente de 
alguma outra proposição que é conhecida com certeza [...] 
visto serem inferidas de princípios verdadeiros e conhecidos 
através de um movimento contínuo e ininterrupto do 
pensamento no qual cada proposição individual é claramente 
intuída. 
 
 126 
Isto é, a princípio, a operação da intuição é o ato pelo 
qual o intelecto apreende o objeto simples que lhe é 
imediatamente dado e, por isso mesmo, o produto dessa 
operação é uma evidência. E a operação da dedução, por sua 
vez, que também resulta em um produto evidente, é um ato 
complexo que supõe uma sequência intuitiva de atos 
intuitivos. 
Segundo Descartes, portanto, a natureza da razão se 
expressa pelas operações da intuição e dedução conjuntamente 
e não apenas pela intuição, na medida em que o conhecimento 
não é apenas do simples e imediatamente dado, mas sim de 
um corpo sistemático. As duas operações se complementam, 
formando um único processo “graças a um tipo de movimento 
do pensamento que considera por intuição cada objeto em 
particular, ao mesmo tempo em que vai passando aos outros” 
(Regra XI). A intuição apreende dados evidentes e a dedução 
conecta dados evidentes por meio de elos evidentes. A 
dedução, portanto, além de depender da memória que permite 
reter os dados a conectar, depende da intuição para ter os 
dados e para estabelecer os elos de conexão. Sendo assim, 
dedução no sentido introduzido por Descartes é a operação 
cognitiva que, ao contrário da intuição, envolve a memória e 
que permite um tipo de movimento da razão de inferência de 
uma coisa a partir de outra. Como veremos, entretanto, 
Descartes admite que mesmo na operação da intuição ocorre 
um tipo de inferência, uma inferência direta, que 
diferentemente da dedução, não exige a memória. 
O fato do método, segundo Descartes, ser a expressão do 
modo como naturalmente a razão funciona, explica por que 
Descartes, na Regra IV, afirma que “o método não pode ir tão 
longe a ponto de nos ensinarMundo Atual e da Escola Estadual Joaquim Eugênio Lima 
Neto, em São Paulo. 
 
JJEELLSSOONN RROOBBEERRTTOO DDEE OOLLIIVVEEIIRRAA 
Doutor em Filosofia, professor do Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da PUC-PR, onde é coordenador do 
Curso de Licenciatura em Filosofia. Autor de vários artigos 
publicados em revistas especializadas e dos livros A solidão 
como virtude moral em Nietzsche (Curitiba: Champagnat, 2010) e 
Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche (Rio de Janeiro: 
7Letras, 2011), entre outros. 
 
 
 17 
FFÁÁTTIIMMAA CCAARROOPPRREESSOO 
Professora do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de 
Fora. Bacharel em Psicologia e Psicóloga pela Universidade 
Federal de São Carlos (UFSCar); Mestre em Filosofia e 
Metodologia das Ciências e Doutora em Filosofia pela mesma 
instituição. Realizou estágio de pós-doutoramento no Instituto 
de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de 
Campinas. 
 
BBOORRTTOOLLOO VVAALLLLEE 
Possui graduação em Filosofia e Especialização em Filosofia 
da Educação e em Didática do Ensino Superior pela PUC-PR. 
Tem mestrado em Filosofia e doutorado em Comunicação e 
Semiótica pela PUC-SP. Atualmente, é Professor do Programa 
de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR, e docente do 
UNICURITIBA e da FAVI. 
 
FFÁÁBBIIOO FFEERRRREEIIRRAA DDEE AALLMMEEIIDDAA 
Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal 
de Goiás. Possui graduação em Filosofia e mestrado em 
Filosofia pela Universidade Federal de Goiás; doutorado em 
Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 
desenvolvido em co-tutel com a Université de Bourgogne-
França. 
 
GGIILLMMAARR JJOOSSÉÉ DDEE TTOONNII 
Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas, 
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba, 
Bacharel e Licenciado em Filosofia e Licenciado em História 
pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Atualmente é 
professor da Universidade Federal da Integração Latino 
Americana. 
 
 
 18 
KKLLEEBBEERR BBEEZZ BBIIRROOLLLLOO CCAANNDDIIOOTTTTOO 
Possui graduação em Filosofia e Especialização em Ética pela 
PUCPR; mestrado em Educação pela mesma universidade e 
doutorado em Filosofia pela UFSCar. Co-autor dos livros 
Filosofia da linguagem, Filosofia da Ciência e Fundamentos da 
pesquisa científica, pela Editora Vozes, e do livro Da psicologia às 
ciências cognitivas, pela editora CRV. Atualmente, é professor 
do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-PR. 
 
DDAANNIIEELLAA RRIIBBEEIIRROO SSCCHHNNEEIIDDEERR 
Psicóloga, professora do Departamento de Psicologia da 
Universidade Federal de Santa Catarina, Mestre em Educação, 
Doutora em Psicologia Clínica, Pós-Doutora pela 
Universidade de Valência (Espanha), autora de vários 
capítulos de livros e artigos sobre psicologia existencialista, 
saúde mental, álcool e outras drogas. Autora do livro Sartre e a 
Psicologia Clínica (Editora da UFSC, 2011). 
 
CCÉÉLLIIAA KKAAPPUUZZIINNIIAAKK 
Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal de 
Santa Catarina e mestrado em Educação pela Universidade 
Federal de Uberlândia. Foi professora de Filosofia da PUCPR. 
É co-autora de Docência: uma construção ético-profissional 
(Papirus). 
 
PPAAUULLOO EEDDUUAARRDDOO DDEE OOLLIIVVEEIIRRAA 
Doutor e Mestre em Filosofia das Ciências Humanas pela 
PUCSP, com Pós-Doutorado pela UFPR. Graduado em 
Filosofia pela PUCPR e especialista em Filosofia Política pela 
UFPR. Atualmente, é professor titular do Departamento de 
Filosofia da PUCPR. Autor de Introdução ao pensamento de Karl 
Popper (Champagnat, 2010, em parceria com o Prof. Bortolo 
Valle); Da ética à ciência: uma nova leitura de Karl Popper (Paulus, 
2011). 
 
 19 
 
 
 
 
 
 
 
Capítulo 1 
AA PPEEDDAAGGOOGGIIAA AANNTTEESS DDAA PPEEDDAAGGOOGGIIAA 
 
Barbara Botter 
 
 
FILOSOFIA, PEDAGOGIA E POLÍTICA: UMA UNIDADE 
O título deste capítulo carrega uma ambiguidade: ao 
falar da pedagogia antes da pedagogia, falamos de que 
exatamente? Pretendemos tratar de uma pedagogia que, 
afastada de nós o suficiente para ser considerada só filosofia, 
ainda assim não abandona as características peculiares que a 
definem como pedagogia, compartilhando conosco um mesmo 
ethos e um mesmo território conceitual? Ou, antes, vamos nos 
ocupar de um conjunto de ideias, de noções, de sentidos e de 
valores que nasceram na Grécia Antiga e que serão utilizados 
para definir e delimitar o âmbito conceitual da hodierna 
pedagogia? Na verdade, uma e outra coisa: ao falar da 
pedagogia na primeira ocorrência do termo mencionado no 
título, falamos da paideia grega que se sobrepõe à filosofia e 
continua a viver na pedagogia contemporânea (segunda 
acepção do termo) como repertório de pensamentos e ações. 
No período da Grécia clássica, filosofia, educação, 
antropologia e política coincidem. A filosofia grega não 
precisou criar uma nova disciplina chamada pedagogia, pois a 
convergência entre os dois pensamentos era algo natural. A 
filosofia é pedagógica e a pedagogia é filosófica, assim como a 
filosofia-pedagogia é política e a política é filosófico-
 20 
pedagógica. A educação de um indivíduo perpassa as 
finalidades da retórica ou da matemática, pois o objetivo 
maior concentra-se no desenvolvimento das potencialidades 
do homem em si e como indivíduo da Polis. Esta convicção 
pode ser vista neste trecho da República de Platão. 
 
- A presente discussão indica a existência dessa faculdade na 
alma e de um órgão pelo qual se aprende. Como um olho que 
não fosse possível voltar das travas para a luz, senão 
juntamente com todo o corpo, do mesmo modo esse órgão 
deve ser desviado juntamente com a alma toda das coisas que 
se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do Ser e 
da parte mais brilhante do Ser. A isso chamamos o bem. Ou 
não? 
- Chamamos. 
- A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a 
maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar a volta a esse 
órgão, não a de fazer obter a visão, pois já a tem, mas uma vez 
que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, 
dar-lhe os meios para isso (PLATÃO, 1993, 518 C-D). 
 
Somente na época atual a filosofia e a pedagogia se 
definem como processos distintos. Na sua origem, a filosofia é 
propriamente um projeto educativo; num segundo momento, 
a filosofia fornece os fundamentos do projeto pedagógico e a 
pedagogia vira uma consequência do progresso filosófico; 
num terceiro momento, a filosofia assume a tarefa crítica 
relativa às teorias educacionais (PAVIANI, 2008, p. 5-25). 
Para entender esta evolução da relação entre filosofia e 
educação, é necessário voltar ao passado e à figura dos antigos 
filósofos. 
É importante compreender em que grau dependemos 
dos conhecimentos herdados dos antigos, ao invés de achar 
que o passado, por simples necessidade cronológica, não vive 
conosco. Na realidade, nosso entendimento do passado, além 
de ser um acontecimento cristalizado no tempo, é também a 
vivência do passado em nós, através do nosso jeito de pensar e 
 21 
se comportar. Dessa maneira, a paideia1 dos antigos se 
manifesta em nós como atitude de agir e de raciocinar. 
Herdamos uma forma de reflexão que foi inaugurada pela 
filosofia, isto é, um jeito de procurar as respostas para aquelas 
questões “relevantes” que os gregos também consideraram 
importantes. Em primeiro lugar, destaca-se a importância que 
damos à razão, considerada pelos filósofos o instrumento para 
buscar e compreender o elemento responsável (aitia) pelos 
acontecimentos naturais e pelas ações humanas. É importante 
lembrar que o exercício da razão rende o homem 
independente do recurso à tradição, a qual tem autoridade 
apenas pelo fato mesmo de ser tradição e por não aceitar ser 
colocada em dúvida. A relevância da tradição perde 
progressivamente a supremacia com as invasões dos povos 
vindos do norte da península balcânica, por volta do século 
XII antes de Cristoa realizar as operações da 
intuição e dedução”. Se a razão conhece apenas através da 
intuição e dedução, não pode aprender um conjunto de regras 
acerca de como intuir ou deduzir a não ser já intuindo e/ou 
deduzindo. Sendo assim, o modo como se aprende o método é 
 127 
aplicando-o. As regras do método cartesiano não são 
meramente normativas no sentido de serem formuladas 
independentemente de sua aplicação, mas, ao contrário, são 
constitutivas do método de tal modo que não é possível 
compreendê-las independentemente de segui-las. As 
Meditações satisfazem estritamente as regras do método: 
através da dúvida, e ao longo das meditações seguintes, busca 
algo simples (cogito), movendo-se para o mais complexo, 
incluindo revisões e verificações das teses avançadas a partir 
disso. Sendo assim, o conteúdo das Meditações torna o método 
manifesto e o exame desse conteúdo envolve o conhecimento 
das regras do método que, por sua vez, envolvem a aplicação 
do próprio método. Sendo assim, a leitura das Meditações, 
além de resultar no conhecimento acerca das teses ali 
defendidas, resulta no conhecimento e na aplicação do próprio 
método. Portanto, embora não se possa ensinar a intuir e 
deduzir, o exame do procedimento de Descartes das 
Meditações pode nos levar a compreender essas operações. 
 Ainda que nas Meditações Descartes tenha abandonado a 
terminologia introduzida nas Regras para designar as 
operações cognitivas (intuição e dedução), o modo como 
Descartes responde a uma objeção que consta no conjunto das 
Segundas Objeções às Meditações, recolhidas por Mersenne, 
torna explícito que o argumento do Cogito tem um caráter 
intuitivo e que este é oposto ao silogismo: 
 
Mas, quando percebemos que somos coisas pensantes, trata-se 
de uma primeira noção que não é extraída de nenhum 
silogismo; e quando alguém diz “Penso, logo sou ou existo”, ele 
não concluiu sua existência de seu pensamento por meio de 
um silogismo, mas reconhece ser evidente por uma intuição 
simples da mente. 
 
Em outras palavras, segundo Descartes, o argumento do 
Cogito é uma verdade primitiva, isto é, uma verdade adquirida 
por uma intuição simples da mente, pois “... se a deduzisse 
 128 
por meio de silogismo, deveria antes conhecer esta premissa 
maior: Tudo que pensa é ou existe”. Apesar de, segundo essa 
resposta, o argumento do Cogito não supor o conhecimento da 
premissa maior, Descartes parece admitir um tipo de relação 
entre esta premissa e a verdade da proposição “Penso, logo 
existo”, como fica claro pelo que se segue na resposta: “Mas ao 
contrário, esta [a premissa maior “Tudo que pensa é ou 
existe”] lhe é ensinada por ele experimentar em seu próprio 
caso que não é possível que ele pense sem existir” (AT VII: 
140). Descartes, entretanto, não explica nessa resposta como 
isso ocorre. 
É em Conversações com Burman, com base em uma 
distinção entre conhecimento implícito e conhecimento 
explícito que Descartes explica a relação entre o princípio 
primitivo “penso, logo existo” e o princípio universal “tudo 
que pensa é”, e essa explicação permite um passo adiante na 
compreensão do que Descartes entende pela operação da 
intuição. A tese defendida nesse texto é a de que, embora o 
conhecimento do cogito dependa da verdade da noção de que 
“Tudo que pensa é”, não depende, entretanto, de seu 
conhecimento explícito. Assim, a verdade da instância (Eu 
penso, logo existo) não independe da verdade do princípio 
universal (Tudo que pensa é), mas o conhecimento explícito da 
verdade desse princípio não é necessário para o 
reconhecimento da indubitabilidade da instância. Ao 
contrário, como diz Descartes a Burman, é a experiência 
interna da evidência da instância “Eu penso, logo existo” que 
permite tornar explícito a verdade e, portanto, tornar 
conhecida a verdade do princípio geral “Tudo que pensa é”. 
Em seus termos: 
 
Antes da conclusão “estou pensando, logo existo”, a maior 
“tudo aquilo que pensa, existe” pode ser conhecida pois é uma 
realidade anterior à minha inferência, e minha inferência 
depende dela […] Mas não se segue que eu sempre esteja 
 129 
expressa e explicitamente consciente dessa anterioridade, ou 
que eu a conheça antes da minha inferência (AT V: 147). 
 
Em outras palavras, Descartes introduz aqui uma 
distinção entre o conhecimento implícito de certas noções 
comuns e universais em cuja verdade não se pensa a não ser 
no momento em que pensamos em suas instâncias 
particulares. Embora tenhamos um conhecimento implícito 
dessas noções comuns e universais, esse conhecimento só é 
tornado explícito e, nesse sentido, é tornado de fato um 
conhecimento, no momento em que a verdade da instância é 
experimentada ou intuída. Em suas palavras, imediatamente 
a seguir, na mesma passagem acima citada: “Não presto 
atenção [...] à noção geral ‘tudo aquilo que pensa existe’ [...] em 
vez disso, é nas instâncias particulares que as encontramos.” 
Essa afirmação de que o princípio universal é conhecido 
quando temos a experiência internamente da verdade de uma 
(ou mais) de suas instâncias é ainda confirmada na resposta 
que Descartes dá a um novo conjunto de objeções feitas por 
Gassendi (publicado juntamente com suas objeções originais, 
em 1644, em um volume intitulado Disquisitio Metaphysica sive 
Dubitationes et Instantiae) após este ter lido as respostas de 
Descartes ao primeiro conjunto de suas objeções. Diz 
Descartes: 
 
o autor afirma que quando digo “Estou pensando logo existo” 
pressuponho a premissa maior “Tudo que pensa existe” [...] O 
erro mais importante que nosso crítico faz aqui é supor que o 
conhecimento de proposições particulares deve sempre ser 
extraído de proposições universais, seguindo a mesma ordem 
do silogismo. 
 
Imediatamente antes dessa passagem, nessa mesma 
resposta, Descartes afirma: 
 
Quanto ao princípios comuns e axiomas, [...] os homens que 
são criaturas dos sentidos, como todos somos em um nível 
 130 
pré-filosófico, não pensam neles ou prestam atenção a eles. Ao 
contrário, visto que estão em nós desde o nascimento com 
tamanha clareza, e visto que os experimentamos em nós 
mesmos, negligenciamo-los e só pensamos neles de modo 
confuso e nunca em abstrato ou separadamente das coisas 
materiais e instâncias particulares. 
 
Podemos dizer, portanto, que no que diz respeito ao 
estabelecimento do princípio que fundamenta a metafísica 
segundo Descartes, a operação cognitiva da intuição não só me 
permite perceber imediatamente a verdade da proposição 
“penso, logo existo”, independentemente de qualquer outro 
conhecimento explícito, mas, além disso, permite conhecer a 
verdade do princípio universal e comum, de cuja verdade sua 
verdade é dependente, através de um movimento interno na 
razão de explicitação de noções comuns. 
Parece ser possível então, a partir da explicação do 
argumento do Cogito, inferir que, segundo Descartes, há um 
movimento interno da razão ainda no momento de sua 
operação mais simples, a intuição, em que noções comuns e 
primeiros princípios são explicitados a partir da consciência da 
verdade de alguma proposição. Esse movimento interno da 
razão, através do qual os princípios e as noções comuns são 
explicitados, consiste num tipo de inferência, uma inferência 
direta, nos termos de Descartes, na medida em que consiste 
em um movimento da mente que vai da compreensão 
implícita de noções simples e princípios universais para a 
apreensão filosófica intuitiva de certas proposições 
particulares e destas de volta para a compreensão, agora 
explícita, do que a condiciona. Apesar de consistir em uma 
inferência, entretanto, esse movimento não se confunde nem 
com o que na tradição silogística chama-se de dedução lógica, 
nem com a dedução considerada por Descartes como uma das 
operações fundamentais da razão. Por um lado, trata-se de 
uma inferência pré-discursiva e, portanto, uma inferência não 
silogística. Por outro lado, na medida em que ocorre no 
 131 
interior do ato de intuirque, por uma atenção cuidadosa 
explicita princípios e noções implícitas na apreensão da 
verdade de proposições particulares, essa inferência não 
consiste em uma dedução, mas antes numa preparação de 
dados que poderão ou não ser conectados com outros em uma 
dedução. Assim, o processo pelo qual a razão compreende 
noções primitivas e primeiros princípios com base no 
conhecimento de particulares revela, em parte, a natureza da 
razão, na medida em que revela um movimento interno à 
razão, isto é, um movimento interno à operação da intuição, 
cujo produto evidente é condição para que se realize a outra 
operação cognitiva natural da razão, a dedução. 
Segundo Descartes, exceto pela limitação da razão 
humana, todos os objetos de dedução podem ser objetos de 
intuição. Sendo assim, embora as duas operações não sejam 
idênticas, porque a intuição tem uma natureza tal que 
instantaneamente apreende seu objeto e a dedução consiste em 
um processo que envolve a memória, na medida em que a 
diferença entre elas tem como base apenas a limitação da 
mente humana que não pode perceber verdades complexas de 
uma só vez, a compreensão da operação da intuição lança 
alguma luz para a compreensão da dedução. A dedução no 
sentido cartesiano é a operação cognitiva que, como a intuição, 
produz evidências mas que, diferentemente da intuição, infere 
essas evidências a partir de evidências (alcançadas por 
intuição) e por elos também evidentes (apreendidos também 
por intuição). Parece plausível, portanto, afirmar que segundo 
Descartes, no ato cognitivo podem operar dois tipos de 
inferência que, nos termos de Descartes na Regra VI (AT X: 
387) consistiriam em uma dedução “direta” ou “indireta”: a 
inferência direta, operada no ato da intuição de verdades 
particulares para a explicitação de princípios e noções comuns, 
e a inferência indireta, operada pela dedução que consiste em 
um movimento contínuo e ininterrupto do pensamento de 
uma intuição para outra. 
 132 
Na Regra VII, Descartes ocupa-se com a explicação do 
que ele entende pela operação cognitiva da inferência indireta, 
isto é, a dedução, operação necessária visto que admitimos 
“como certas as verdades que, como dissemos acima, não são 
deduzidas imediatamente a partir de primeiros princípios 
evidentes”. Se a ciência não se constitui apenas de verdades 
simples, mas sim de um complexo articulado de verdades 
simples, cabe à operação de inferir indiretamente, isto é, 
deduzir, a função de expandir o conhecimento. A dedução é a 
inferência indireta em oposição à dedução direta realizada na 
intuição e pode ser chamada também de “enumeração”ou 
“indução” (Regra XI, AT X: 408). Na dedução, o intelecto, que 
não pode apreender ao mesmo tempo todo o conteúdo, com 
auxílio da memória, retém as partes individuais da 
enumeração, permitindo combiná-las todas depois em um 
todo. A dedução, portanto, segundo Descartes, é o meio pelo 
qual a partir das noções comuns e primeiros princípios 
fazemos composição de modo a alcançarmos verdades mais 
complexas. Assim, pode-se afirmar que Descartes concebe que 
por intuição descobrimos as conexões simples entre noções 
comuns e princípios, seja entre eles mesmos, seja entre 
instâncias dos princípios e eles, e que por dedução (que, 
diferentemente da dedução silogística depende de conteúdos 
conhecidos já que depende da intuição de verdades e de elos 
conectivos) descobrimos as conexões mais complexas entre 
verdades, expandindo assim o conhecimento. 
Paralelamente ao método da matemática universal de 
descoberta de novos conteúdos de conhecimento, Descartes 
expressamente se preocupa com o modo adequado para expor 
os conteúdos de conhecimento. Com essa preocupação em 
mente, Descartes retoma, em suas Respostas às Segundas 
Objeções, a questão da justificação ou explicitação dos axiomas 
e princípios universais, quando faz distinção entre as 
exposições de conteúdos via análise e síntese. É interessante 
notar que, ao longo de sua obra, Descartes experimenta 
 133 
diferentes métodos de exposição de sua doutrina. Ele se serve 
da narrativa autobiográfica no Discurso, da fábula no Mundo, 
da exposição em forma de diálogo em A Procura da Verdade, do 
formato de texto didático (ao menos intencionalmente) nos 
Princípios da Filosofia e, ao menos aparentemente, de uma 
adaptação das disputas escolásticas nas Objeções e Respostas 
publicadas juntamente com as Meditações Metafísicas. No caso 
específico das Meditações, entretanto, o método da descoberta 
via intuição-dedução exposto nas Regras e resumido no 
Discurso, se expressa segundo um novo aspecto: a ordem 
analítica de exposição de conhecimento. Como veremos, a 
disciplina que contém os “rudimentos da razão humana”, isto 
é, a matemática universal apresentada nas Regras, visto 
sistematizar o modo como naturalmente os homens pensam, 
de certa forma antecipa o método analítico de exposição de 
conhecimento e é nesse sentido que é possível então afirmar 
que a via analítica, segundo Descartes é um método de 
exposição e de descoberta de conteúdos cognitivos. 
Em resposta aos autores das Segundas Objeções, que o 
instam a apresentar sua doutrina segundo o modelo 
geométrico, isto é, partindo de definições, axiomas e 
postulados, Descartes apresenta alguns de seus argumentos 
segundo esse método dos geômetras, mas não sem antes 
introduzir uma discussão geral onde apresenta uma distinção 
interna ao método matemático: a ordem e a maneira de 
demonstrar conteúdos. A ordem, diz Descartes, consiste na 
organização da exposição de tal modo que aquilo que é 
apresentado antes pode ser conhecido sem recurso às 
proposições que se seguem e que estas que se seguem devem 
ser conhecidas apenas por recurso às que a precedem. Nos 
termos de Descartes “consiste apenas em que as coisas 
propostas em primeiro devem ser conhecidas sem a ajuda das 
seguintes, e que as seguintes devem ser dispostas de tal forma 
que sejam demonstradas só pelas coisas que as precedem”. 
 134 
Essa foi a ordem seguida nas Meditações, como afirma o 
próprio Descartes no Resumo das Meditações: 
 
tendo procurado nada escrever nesse tratado de que não 
tivesse demonstrações muito exatas, vi-me obrigado a seguir 
uma ordem semelhante àquela de que se servem os 
geômetras, a saber, adiantar todas as coisas das quais depende 
a proposição que se busca, antes de concluir algo dela. 
 
Visto que tanto a via sintética quanto a analítica são 
“aquelas de que se servem os geômetras”, ambas estão, 
portanto, de acordo com essa ordem, a ordem das razões. No 
que diz respeito à ordem, portanto, não há distinção entre a 
via sintética e a via analítica. Entretanto, ao prosseguir, 
Descartes explica que é quanto ao modo como demonstram 
que a via analítica e a via sintética se distinguem. 
A via sintética de exposição parte de uma longa série de 
definições, axiomas, postulados, teoremas e problemas, 
movendo-se em uma cadeia contínua de raciocínios e 
demonstrações para provar teoremas, demonstrando assim o 
que está contido nas conclusões. A via analítica, por outro 
lado, não supõe nada como previamente dado. Ela começa de 
um problema que vai sendo analisado em questões mais 
simples até que alguma verdade mais simples e evidente seja 
percebida, a partir da qual é possível solucionar o problema. 
Na via sintética, portanto, o ponto de partida são as coisas 
consideradas como primeiras na cadeia de raciocínio e estas 
são assim consideradas expressamente por definições, axiomas 
e postulados. Essa via, segundo Descartes, convém à 
Geometria, na medida em que as primeiras noções supostas, a 
partir das quais se demonstram as proposições geométricas, 
estão de acordo com o que é dado aos sentidos, sendo portanto 
facilmente aceitas como axiomas por todos. O interlocutor é 
levado a assentir porque percebe como cada passo se segue do 
que foi dado anteriormente. 
 135 
A via sintética de exposição, entretanto, não convém às 
questões da Metafísica. A principal dificuldade resultado fato 
de que não é possível conceber as primeiras noções da 
metafísica como axiomas, pois, ainda que por sua própria 
natureza sejam noções muito claras, elas não acordam com o 
que recebemos dos sentidos. Visto que em metafísica os 
diferentes autores discordam mesmo quanto às proposições 
mais básicas (tais como se o mundo é criado ou não, se há 
espaço vazio, etc.) e visto que as primeiras noções são distintas 
(e muitas vezes opostas) do que nos fornecem os sentidos, faz-
se necessária a via analítica para que cada um possa alcançar 
por ele mesmo os primeiros princípios. Sendo assim, um 
primeiro aspecto em que a via analítica e a via sintética de 
demonstração são distintas é o fato de que, na primeira e não 
na segunda, as primeiras noções e princípios são justificados e 
explicitados. O método analítico, em oposição ao sintético, não 
considera coisa alguma como previamente dada. Uma 
exposição segundo esse método começa por um problema 
particular e o divide em questões mais simples até chegar a 
alguma verdade evidente. Nessa via, o interlocutor só se 
convence se ele próprio tem insights das primeiras noções e 
princípios de tal modo que “a análise mostra o verdadeiro 
caminho pelo qual uma coisa foi metodicamente descoberta 
[...] de sorte que [...] o leitor [...] não entenderá menos 
perfeitamente a coisa assim demonstrada e não a tornará 
menos sua do que se ele próprio a houvesse descoberto”. Visto 
que nas Meditações o conhecimento é obtido não apenas por 
intuição do simples, mas também por dedução do mais 
complexo, e visto que Descartes, nas Respostas às Segundas 
Objeções afirma que nas Meditações seguiu apenas a via 
analítica, é necessário admitir que a via analítica envolve as 
operações da intuição e da dedução. 
Descartes acreditava que com seu método analítico tinha 
reconstituído o método secreto dos matemáticos gregos da 
antiguidade. Apesar de não esclarecer em que medida seu 
 136 
método é uma variação ou generalização do método dos 
antigos matemáticos, Descartes deixa claro que a semelhança 
entre os dois métodos diz respeito à própria natureza da 
operação cognitiva da mente humana, como fica claro, por 
exemplo, na Regra IV das Regras para direção do Espírito, onde 
ele afirma: 
 
Com efeito, a mente humana tem não sei quê de divino, em 
que as primeiras sementes dos pensamentos úteis foram 
lançadas de tal modo que, muitas vezes, ainda que descuradas 
e abafadas por estudos feitos indiretamente, produzem um 
fruto espontâneo. É o que experimentamos, nas ciências mais 
fáceis, a Aritmética e a Geometria: de fato, vemos bastante 
bem que os antigos Geômetras utilizaram uma espécie de 
análise que estendiam à solução de todos os problemas, ainda 
que não a tenham transmitido à posteridade. E agora floresce 
um gênero de Aritmética, que se chama Álgebra, que permite 
fazer para os números o que os Antigos faziam para as 
figuras. Estas duas coisas não passam de frutos espontâneos 
dos princípios naturais do nosso método. 
 
Descartes, portanto, em algum aspecto importante se 
filia à tradição analítica de matemáticos como o grego Pappus. 
Pappus de Alexandria, cuja descrição do método de análise 
dos gregos antigos é considerada a mais “completa e 
informativa” (BATTISTI, 2010) e a “única explícita e extensiva” 
(HINTIKKA,1978), a esse respeito afirma: 
 
A análise é o caminho que parte do que é buscado – como se 
tivesse sido admitido – e através de seus concomitantes, em 
sua ordem, segue até algo suposto na síntese. Pois na análise 
supomos como já tendo sido feito aquilo que é buscado, e nos 
perguntamos de que resulta, e de novo o que é o antecedente 
desse último, até que em nosso caminho de trás para frente 
possamos lançar luz sobre algo já conhecido e o primeiro na 
ordem [...] Na síntese, por outro lado, supomos como já tendo 
sido feito o que foi alcançado por último na análise, e 
ordenando em sua ordem natural como consequente o que 
antes era antecedente, e relacionando-os uns aos outros, ao 
 137 
final chegamos à construção da coisa buscada (PAPPUS, 1876-
1877, in HINTIKKA, 1978, p. 76). 
 
Uma primeira coisa a ser notada é que, na descrição de 
Pappus, a síntese aparece como uma complementação da 
análise e que a análise não faria sentido se não fosse seguida 
pela síntese, na busca de conhecimento. Pode-se dizer, 
portanto, que o método descrito por Pappus é um método 
analítico-sintético. Mas, se é assim, não caberia buscar a 
semelhança entre o método de Descartes e a dos matemáticos 
antigos considerando o método em sua totalidade já que, como 
vimos, Descartes pretende, nas Meditações, ter seguido 
somente a via analítica. 
Admitindo então que na descrição de Pappus não há um 
método de análise, e sim um método composto de análise e 
síntese para a descoberta e exposição do conhecimento e que 
para Descartes o método de descoberta e de exposição é 
apenas analítico, talvez seja possível encontrar a semelhança 
entre os dois métodos voltando-se para o aspecto direcional da 
análise e da síntese. Aparentemente, tanto para Pappus quanto 
para Descartes as duas vias seguem direções inversas, sendo a 
síntese um raciocínio direto, linear ascendente, e a análise um 
raciocínio de direção oposta. Apesar disso, ao menos à 
primeira vista, no caso de Descartes, esse não parece ser de 
fato o caso se considerarmos, por exemplo, o texto das 
Respostas às Segundas Objeções, onde Descartes apresenta sua 
argumentação exposta nas Meditações transformada para a via 
sintética. Apesar de uma seguir a via sintética e, a outra, a 
analítica, percebe-se que as principais linhas da argumentação 
são as mesmas e na mesma direção. Tanto a prova da 
existência de Deus quanto a distinção real entre corpo e alma 
seguem nessas respostas exatamente a mesma ordem das 
Meditações: a partir da ideia de Deus, existente em nós, 
Descartes mostra que Deus existe e a partir do conhecimento 
 138 
de que a alma pode existir independentemente da existência 
do corpo mostra que a alma é distinta do corpo. 
Seguindo a linha interpretativa exposta em Hintikka e 
Remes (1974) e em Hintikka (1978) parece mais plausível 
afirmar que a semelhança entre o método moderno de análise 
e a via analítica do método analítico-sintético utilizado pelos 
matemáticos gregos na antiguidade reside no aspecto de 
intercalações e interdependências entre os elementos 
conhecidos com relação ao todo do conhecimento almejado: a 
conexão entre os objetos geométricos que são partes de uma 
figura, no caso da geometria, e a conexão entre proposições 
simples verdadeiras e verdades mais complexas, no caso da 
filosofia. 
 Segundo Hintikka, o aspecto mais importante do 
método antigo recuperado por Descartes e seus 
contemporâneos é a ideia de que a análise é uma análise de 
configuração e não de provas. Isto é, na geometria dos gregos 
antigos, o início e o final da análise eram objetos geométricos e 
não verdades geométricas. Os passos da análise, portanto, 
eram de um objeto geométrico para a construção de outro ou 
outros. Esses passos de um objeto para outro eram mediados 
por sua interdependência num contexto do todo da 
configuração da figura cujos elementos eram objetos 
construídos. As construções auxiliares de objetos teriam, 
portanto, um papel fundamental: seriam elas as responsáveis 
pela explicitação das intercalações e interdependências das 
partes da figura relevantes para a resolução do problema. 
Assim, a análise de uma figura geométrica mostraria ou 
explicitaria as inter-relações entre diferentes objetos 
geométricos na figura. Ainda segundo Hintikka, os 
predecessores de Descartes gradativamente introduziram o 
uso de métodos algébricos para a expressar as 
interdependências entre os objetos de uma figura geométrica 
de tal modo que coube a Descartes a geometria analítica 
propriamente dita, na qual qualquer dependência entre 
 139 
quaisquer objetos geométricos pode ser algebricamente 
representada bem como a matematização da física, segundoo 
que os diferentes fatores de uma configuração física podem, 
por análise, ser expressos matematicamente. Segundo 
Hintikka, portanto, “o método de Descartes pode ser 
considerado como o resultado desse tipo de extensão do 
método de análise das configurações geométricas para todo 
complexo de elementos interdependentes”. Assim, a 
semelhança entre o método cartesiano de análise e a via 
analítica do método de Pappus parece residir no fato de que a 
análise é uma análise de configurações e inter-relações. Se, 
como vimos acima, é pelas operações da intuição e da dedução 
que, segundo Descartes, a razão naturalmente chega a 
verdades descobrindo suas conexões diretas ou indiretas, 
então o método analítico de Descartes é aquele segundo o qual 
por intuição e por dedução obtemos uma verdade particular e 
“lançamos os olhos sobre tudo o que ela contem”(Resposta às 
Segundas Objeções). 
Para concluir, gostaria de lembrar ainda três pontos que 
parecem relevantes para a questão da educação segundo a 
filosofia de Descartes. Primeiro, que no sistema cartesiano, a 
via analítica é mais adequada ao ensino. Apesar disso, 
Descartes mostra que essa via não é eficaz em todos os casos. 
Depois que, para o sistema cartesiano, o conhecimento 
depende mais do desenvolvimento das operações cognitivas 
do que da aquisição de conteúdos cognitivos. Apesar disso, 
em consequência do que, como vimos, ele considera 
problemático na lógica silogística, Descartes distingue sua 
busca por tornar o raciocínio mais perspicaz dos preceitos da 
lógica silogística. Em terceiro lugar, que nos sistema cartesiano 
a erudição não é sinônimo de educação. 
 Nas Respostas às Segundas Objeções, Descartes 
expressamente afirma que a via analítica é a “mais verdadeira 
e a mais própria ao ensino”, mas não a recomenda a qualquer 
um. A via analítica, em princípio, é a via mais adequada na 
 140 
medida em que, como vimos, “mostra o verdadeiro caminho 
pelo qual uma coisa foi metodicamente descoberta”. Ao 
permitir que o leitor lance os olhos sobre tudo o que está 
envolvido em um determinado conhecimento, permite que ele 
compreenda “perfeitamente a coisa assim demonstrada” e a 
torne sua como “se ele próprio a tivesse descoberto (Respostas 
às Segundas Objeções). Apesar disso, Descartes faz uma 
ressalva: essa via não é adequada para um leitor desatento ou 
preguiçoso, já que não oferece uma cadeia ininterrupta de 
raciocínio. Embora Descartes caracterize a operação cognitiva 
da dedução como “movimento ininterrupto e contínuo do 
pensamento”, como vimos, esse movimento depende dos 
resultados obtidos por intuição. Intuição e dedução são 
complementares. E se, como vimos, a intuição consiste não só 
na consciência imediata da verdade de um conteúdo, mas 
também na consciência de uma rede de noções simples e 
primeiros princípios imediatamente apreendidos a partir dela, 
a exposição do conhecimento pela via analítica não pode se 
limitar a uma cadeia linear de raciocínios. Sendo assim, essa 
via “não é capaz de convencer os leitores teimosos e pouco 
atentos”. Para estes, a via sintética é a mais adequada, pois 
envolve apenas um raciocínio linear, conseguindo assim 
“arrancar o consentimento do leitor, por mais obstinado e 
opiniático que seja”, embora “não dê inteira satisfação aos 
espíritos que desejam aprender porque não ensina o método 
pelo qual a coisa foi descoberta” (Repostas às Segundas 
Objeções). 
Além disso, Descartes considera a importância de 
desenvolver as operações cognitivas e sua relação com a 
aquisição de conteúdos cognitivos. Na Regra IX, Descartes 
afirma que “é preciso dirigir toda a acuidade do espírito para 
as coisas menos importantes e mais fáceis e nelas nos determos 
tempo suficiente até nos habituarmos a ver a verdade por 
intuição de uma maneira distinta e clara” e, na Regra X, afirma 
que 
 141 
 
para que o espírito se tome perspicaz, deve exercitar-se em 
procurar o que já por outros foi encontrado, e em percorrer 
metodicamente até mesmo os mais insignificantes ofícios e 
artes dos homens, mas sobretudo os que manifestam ou 
supõem ordem. 
 
Isto, segundo Descartes, é possível e necessário para o 
conhecimento cultivar as operações cognitivas e este cultivo se 
dá cultivando a perspicácia, ao intuir cada coisa em particular, 
e a sagacidade, ao deduzir com arte umas das outras. 
Descartes explicita o que entende por cultivo da intuição 
através de uma analogia com os artesãos que, segundo ele, 
adquirem a capacidade de distinguir com precisão coisas 
muito delicadas e pequenas porque são acostumados a fixar o 
olhar em um único ponto. Do mesmo modo, diz ele, visto que 
a atenção voltada para muitas coisas ao mesmo tempo é 
sempre confusa, tornar nossas mentes mais claras e, nesse 
sentido, propícias ao conhecimento, depende de dedicarmos 
nossa atenção para o mais simples e fácil. E, para explicar o 
cultivo da dedução, Descartes sugere que se considere 
atentamente as artes mais simples, especialmente aquelas onde 
a ordem prevalece, como a tecelagem, cujas linhas se 
entrelaçam em infinitos padrões, ou os jogos que envolvem 
aritmética, porque são atividades onde “nada permanece 
escondido e que correspondem inteiramente à capacidade do 
conhecimento humano”. Note-se que, apesar da ênfase no 
refinamento das operações cognitivas, Descartes pretende 
ainda assim observar uma certa distância com relação à lógica 
silogística. Diz ele ainda, na Regra X: 
 
Alguns espantar-se-ão, talvez, que neste lugar em que 
procuramos os meios de nos tornarmos mais aptos para 
deduzir as verdades umas das outras, omitamos todos os 
preceitos dos Dialéticos, com os quais julgam eles governar a 
razão, prescrevendo-lhe certas formas de raciocínio [...] é 
sobretudo para evitar que nossa razão entre de férias quando 
 142 
investigamos a verdade de alguma coisa, que rejeitamos estas 
formas lógicas como contrárias ao nosso objetivo. 
 
E por fim, ao distinguir educação de erudição, Descarte 
parece sugerir que, no que diz respeito à educação, a 
quantidade de conteúdos aprendidos, escritos ou pensados 
não é relevante. Em carta a Voetius, de maio de 164390, 
Descartes afirma: 
 
Digo “educação” e não “erudição”. Pois se no significado do 
termo “erudição” você pretende incluir tudo o que é 
aprendido dos livros, independentemente da qualidade, de 
bom grado concordo que você é o homem mais erudito de 
todos... Por “educado” quero dizer o homem que apurou sua 
inteligência e caráter por estudo e cultivo cuidadosos. Estou 
convencido que se adquire essa educação não pela leitura 
indiscriminada de qualquer livro, mas pela leitura frequente e 
repetida apenas do melhor, pela discussão com os já 
educados, quando se tem oportunidade e, finalmente, pela 
contínua contemplação das virtudes e busca da verdade. 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
BATTISITI, Cesar. “O Método de Análise Cartesiano e o seu Fundamento”. 
In: Scientiæ Studia, São Paulo, v. 8, n. 4, p. 571-96, 2010. 
 
BEHBOUD, Ali. “Greek Geometrical Analysis”. In: Centaurus, v. 37, p. 52-
86, 1994. 
 
DESCARTES, R. Adam, C. and Tannery, P (ed.). Oeuvres de Descartes (rev. 
edn., 12 vols. Paris: Vrin/CNRS, 1964-76). 
 
HINTIKKA, J. e REMES, U. The method of analysis. Dordretch: Publishing 
Company, 1974. 
 
90 AT VIIIB 25-194. Carta resposta de Descartes a dois escritos de Voetius 
(Confraternitas Mariana – 1642 e Admiranda Methodus – 1643), onde este ataca 
violentamente as teses de Descartes. Antes disso, Voetius garantiu a condenação 
formal da filosofia cartesiana na Universidade de Utrecht, da qual era reitor. 
 143 
HINTIKKA, J., “A discourse on Descartes’ method” in Hooker, M., 
Descartes: critical and interpretive essays. Baltmore: The Johns Hopkins 
University Press, 1978, pp. 74-88. 
 
 
 144 
 
 
 
 
 
 
 
Capítulo 8 
LLOOCCKKEE,, OO CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO EE AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO 
 
Gustavo Araújo Batista 
 
 
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS 
Neste capítulo,nós nos encarregaremos de elaborar uma 
explanação pontual sobre algumas categorias pelas quais o 
filósofo inglês John Locke (1632-1704) estrutura o seu 
pensamento filosófico-educacional, razão pela qual se torna 
imperativa a necessidade de explicitar de que maneira teria 
sido feito o desenvolvimento de tais categorias, pois a 
compreensão da sua articulação é de fundamental importância 
para se compreender melhor a forma e o conteúdo dos quais 
este eminente pensador ter-se-ia servido, à guisa de conferir 
maior consistência, coerência e coesão, tanto à sua teoria 
filosófica, em geral, quanto à sua proposta pedagógica, em 
particular. 
Outrossim, aqui foram selecionados alguns dos 
conceitos-chave presentes na obra Ensaio sobre o Entendimento 
Humano91 (1690), obra capital da epistemologia lockeana, a 
qual, por sua vez, constitui a síntese magna de suas 
elucubrações acerca da origem, dos fundamentos, dos 
princípios, dos limites, da extensão, da possibilidade, da 
validade e da finalidade do conhecimento em geral e, em 
particular, do conhecimento filosófico-científico, sob a 
 
91 Denominada, doravante, Ensaio. 
 145 
perspectiva empirista. De igual modo, foram extraídas 
algumas categorias da sua principal obra pedagógica, qual 
seja: Alguns Pensamentos sobre Educação92 (1692/3), que 
estabelece critérios para a educação dos filhos das classes 
nobiliárquicas de sua época. 
Para facilitar a exposição das categorias escolhidas, que 
foram destacadas conforme a sua capacidade de fornecer uma 
percepção sumária e esquemática da epistemologia e da 
pedagogia arquitetadas por Locke, aqui faremos algumas 
subdivisões, apostando, igualmente, que isso propiciará um 
vislumbrar mais claro e distinto do ideário utilizado pelo 
pensador britânico para compor o seu legado intelectual. 
 
 
DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA EXPERIÊNCIA 
Entendendo-se por categorias epistemológicas os 
elementos que fundamentam o pensamento acerca de questões 
sobre o conhecimento. A epistemologia que se encontra em 
Locke permite enquadrar tais elementos na corrente filosófica 
conhecida como ‘empirismo’93 que, sumariamente, defende a 
tese de que a origem, o fundamento, a extensão, as condições 
de possibilidade e de validade do conhecimento estão 
determinados a partir da experiência. Consequentemente, o 
empirismo refuta todo e qualquer tipo de conhecimento que 
não tenha a experiência como sua pedra de toque, ou seja, sua 
base. Sendo assim, a categoria experiência é a primeira que 
 
92 Denominada, doravante, Pensamentos. 
93 A palavra ‘Empirismo’ deriva da palavra grega zzzzzzzz (empeiria ou empiria), 
que significa ‘experiência’. Estabelecendo o primado da experiência, “o empirismo é a 
afirmação de que o conhecimento humano está confinado dentro das fronteiras da 
experiência e que para lá destas fronteiras o que existe são unicamente problemas 
insolúveis ou sonhos arbitrários” (ABBAGNANO e VISALBERGHI, 1981, p. 418). 
Trata-se, pois, de um movimento filosófico que tem entre as suas finalidades 
emancipar epistemologicamente o ser humano, isto é, dar-lhe inteira, total, completa e 
plena autoridade e responsabilidade sobre as questões que dizem respeito ao 
conhecimento. 
 146 
deve ser abordada, à guisa de explicitação da epistemologia 
lockeana. 
De acordo com a seguinte citação, extraída do Ensaio, 
tem-se o que Locke entende por experiência: 
 
Suponhamos então que a mente seja, como se diz, um papel 
em branco, vazio de todos os caracteres, sem quaisquer ideias. 
Como chega a recebê-las? De onde obtém esta prodigiosa 
abundância de ideias, que a activa e ilimitada fantasia do 
homem nele pintou, com uma variedade quase infinita? De 
onde tira todos os materiais da razão e do conhecimento? A 
isto respondo com uma só palavra: da EXPERIÊNCIA. Aí está 
o fundamento de todo o nosso conhecimento; em última 
instância daí deriva todo ele. São as observações que fazemos 
sobre os objectos exteriores e sensíveis ou sobre as operações 
internas da nossa mente, de que nos apercebemos e sobre as 
quais nós próprios reflectimos, que fornecem à nossa mente a 
matéria de todos os seus pensamentos. Estas são as duas 
fontes de conhecimento, de onde brotam todas as ideias que 
temos ou podemos naturalmente ter (LOCKE, 2005, p. 106-
107, grifos do autor). 
 
Experiência é, segundo tal perspectiva, tanto a 
observação do contato feito entre os sentidos e os objetos 
externos à mente (observação tal que pode ser resumidamente 
denominada ‘sensação’ ou ‘experiência externa’) quanto a 
observação que a mente faz das suas próprias atividades a 
partir dos dados fornecidos pela sensação (observação que, 
por seu turno, pode ser sumariamente reconhecida como 
‘reflexão’ ou ‘experiência interna’). 
A educação, pensada a partir de tal ótica, não será outra 
coisa senão uma atividade por meio da qual se colocará o 
indivíduo em condições de realizar, por si próprio, mas não 
sem orientação, suas experiências, razão pela qual a experiência 
constitui, portanto, uma categoria imprescindível não somente 
para se compreender o que Locke pensa acerca do 
conhecimento, mas também para se apropriar do seu 
pensamento pedagógico, haja vista que ela tem primazia no 
 147 
processo educativo, pelo fato de que a sua ausência 
simplesmente inviabilizaria a existência da atividade 
pedagógica, porquanto a educação está orientada para o 
conhecimento que, por sua vez, não será possível, conforme o 
empirismo, se não houver o concurso da experiência. 
 
 
DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA MENTE 
Em se tratando da categoria mente, Locke elabora uma 
concepção sobre ela de maneira extensiva. Ele se serve de 
algumas metáforas para defini-la, dentre as quais a mais 
conhecida é a da tabula rasa94. As outras metáforas das quais 
se tem notícia são: a) a folha de papel em branco; b) o quarto 
escuro; e c) o armário vedado contra a luz, com pequenas 
aberturas, pelas quais imagens das coisas visíveis no exterior 
podem entrar. Conforme testemunha Yolton, 
 
a expressão tabula rasa [távola vazia] aparece nos primeiros 
Ensaios sobre a lei da natureza, de Locke, onde diz que os 
“recém-nascidos são simplesmente rasae tabulae [távolas 
vazias]” (p. 137). Também usou a frase no Rascunho B do 
Ensaio: “Parecendo-me provável, pois, que não existe noção, 
ideia ou conhecimento de qualquer coisa originalmente na 
alma, mas que no início ela é perfeitamente rasa tabula, 
inteiramente vazia, mas capaz de receber aquelas noções ou 
ideias que são os objetos apropriados do nosso entendimento” 
(Drafts, org. Nidditch e Rogers, § 12, p. 128). No próprio 
Ensaio, inicia o seu programa de aquisição de ideias dizendo: 
Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, uma folha 
de papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem 
quaisquer ideias (2.1.2). Uma outra passagem refere-se à mente 
 
94 Távola rasa, ou seja, mesa vazia. Tal metáfora não é originalmente lockeana, já que 
pertence ao jargão filosófico desde Aristóteles (384-322 a.C.), que, provavelmente, 
empregou-a, pela primeira vez, na história do pensamento filosófico ocidental. O 
sentido de tal metáfora é afirmar que a mente é, em princípio, uma instância 
desprovida de todo e qualquer conteúdo, razão pela qual não se lhe deve imputar 
como inato o que quer que seja, a não ser, obviamente, as suas faculdades ou 
capacidades, que são as suas formas, porém, não os seus conteúdos, adquiridos, pois, 
somente pelas duas vias supracitadas, a saber: a sensação e a reflexão. 
 148 
como um quarto escuro: “sensação e reflexão”, diz ele, são “as 
janelas pelas quais a luz é introduzida nesse quarto escuro. Pois 
parece-me que o entendimento [isto é, uma das principais 
operações da mente] não difere muito de um armário 
totalmente vedado contra a luz, com apenas algumas 
pequenas aberturas que permitema entrada de imagens 
visíveis externas, ou ideias de coisas existentes do lado de fora” 
(YOLTON, 1996, p. 271-272). 
 
Por tais metáforas, conclui-se que Locke tinha como 
escopo fazer entender que a mente não é, em sua origem, 
dotada de elementos inatos, afirmação fundamental em sua 
argumentação contra o ‘inatismo’, sobretudo o de matriz 
cartesiana95. Ao atacar dessa forma o racionalismo, o anti-
inatismo defendido por Locke constitui, sob a perspectiva 
dialética adotada nesta pesquisa, uma antítese que procurava 
abalar até aos últimos fundamentos a tese racionalista, 
apresentando argumentos que advogam a veracidade dessa 
antítese empirista. Os três primeiros capítulos do Ensaio são 
destinados a destruir a tese de que existem princípios inatos, 
sejam eles teóricos ou práticos. Os argumentos apresentados 
para tal vão no sentido de que é possível, apenas pelo simples 
emprego das faculdades mentais do ser humano, que lhe são 
naturais, chegar ao conhecimento da verdade sem a 
intermediação de ideias inatas, motivo pelo qual não há 
necessidade de, tampouco razoabilidade em, admiti-las, sendo 
até mesmo um absurdo fazê-lo. A seguinte citação exemplifica 
como Locke refuta os argumentos dos racionalistas: 
 
De facto, nem as crianças nem os idiotas têm delas o menor 
conhecimento. E tanto bastará para destruir o consenso 
universal exigido pelas verdades inatas. Efectivamente, 
 
95 O inatismo (também conhecido como racionalismo) cartesiano leva tal epíteto por 
causa de seu fundador, René Descartes (1596-1650), cujo nome, em latim, é Renatus 
Cartesius. De acordo com ele, a mente é dotada de três tipos de ideias, a saber: ideias 
inatas, ideias adventícias e ideias fictícias: “Mas dessas ideias umas me parecem 
inatas, outras adventícias, outras feitas por mim” (DESCARTES, 1993, p. 13-14). 
 149 
afigura-se-me quase uma contradição dizer que há verdades 
impressas na alma que podem não ser conhecidas: imprimir, 
neste caso, se significa alguma coisa, significa precisamente 
tornar conhecido; pois a impressão, no espírito, de verdades 
que o espírito ignore, dificilmente terá algum sentido. E assim, 
se as crianças e os idiotas têm alma (ou espírito), com os tais 
princípios nela impressos terão forçosamente de se aperceber 
deles, e de conhecer e aceitar, necessariamente, a sua verdade. 
Ora, como tal não acontece, é evidente que não existem 
impressões desse gênero (LOCKE, 2005, p. 33, grifo do autor). 
 
Outra observação tecida por Locke no que se refere ao 
argumento racionalista ainda em questão é aquela que, se tal 
argumento fosse válido, então nada de novo se aprenderia, o 
que Locke nega, pois “algo de que éramos ignorantes se 
aprende de facto” (LOCKE, 2005, p. 45). Desse modo, Locke 
defende que a mente procede gradualmente, partindo da 
percepção das ideias, bem como de seus nomes, até chegar às 
conexões que estabelecem entre si. Exemplificando sua 
argumentação, Locke novamente recorre ao comportamento 
da mente da criança, cujo raciocínio procede de elementos 
mais simples e particulares para, posteriormente, chegar a 
questões mais complexas e gerais: 
 
Assim, por exemplo, uma criança rapidamente concordará 
com que “uma maçã não é o fogo”, depois de ter aprendido no 
convívio familiar as distintas ideias dessas duas diferentes 
coisas, e de ter aprendido também que as palavras maçã e fogo 
servem para designar; mas só muito mais tarde, por certo, a 
mesma criança verá a verdade da seguinte afirmação: “É 
impossível que a mesma coisa seja e não seja”. E isso porque, 
sendo embora as suas palavras igualmente fáceis de aprender, 
já o mesmo se não passa com o seu significado, mais amplo e 
abstracto do que aquelas coisas sensíveis de que a criança teve 
experiência directa muito antes de aprender o seu exacto 
sentido; na verdade, a aquisição dessas ideias gerais requer 
muito mais tempo. E até que tal se verifique, será debalde que 
tentaremos fazer compreender a uma criança qualquer 
proposição formada com ideias desse género; todavia, à 
medida que as for apreendendo, e que apreender os seus 
 150 
nomes, logo dará o seu assentimento tão facilmente a essas 
proposições como às anteriores; e tanto a umas como a outras, 
pelo mesmo motivo: por verificar que as ideias que tinha na 
cabeça concordam ou discordam, consoante as palavras que as 
designam são afirmadas ou negadas umas das outras 
(LOCKE, 2005, p. 46, grifos do autor). 
 
Depois de empenhar-se em discorrer acerca da sua 
repugnância em admitir princípios especulativos inatos, Locke 
dedicar-se-á, em sequência, a argumentar contra a existência 
de princípios inatos práticos (ou morais). Ele não negou a 
evidência, tampouco a validade, dos princípios teóricos, 
apesar de negar-lhes o inatismo; em relação às máximas 
(princípios) morais, verificar-se-á que o procedimento adotado 
será o mesmo, haja vista que, assim como para com os 
princípios teoréticos, “as máximas morais requerem a 
aplicação do entendimento para poder descobrir-se a certeza 
das verdades que encerram” (LOCKE, 2005, p. 53). 
 
 
DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA ENTENDIMENTO 
O entendimento é, segundo Locke, a principal faculdade 
mental, uma vez que ele é responsável pela elevação do 
gênero humano em relação aos demais seres terrenos, motivo 
pelo qual dedica o seu Ensaio à tarefa de investigar essa 
capacidade mental, com o intuito de desvelar o seu poder, o 
seu alicerce, o seu limite e a sua extensão. Assim se expressa 
na Introdução de sua referida obra: 
 
Uma vez que é o Entendimento que eleva o homem acima dos 
outros seres sensíveis, lhe dá as vantagens de que goza e lhe 
permite o domínio que sobre eles tem – certamente que o seu 
estudo é merecedor de todo o interesse e digno da maior 
aplicação. O entendimento, tal como os olhos, embora nos 
permita ver e compreender todas as coisas, não se apercebe a 
si próprio; e é preciso muita arte e esforço para colocá-lo à 
distância que lhe permita constituir-se um objecto para si 
 151 
mesmo. Mas, quaisquer que sejam as dificuldades que barrem 
o caminho desta investigação, e haja o que houver capaz de 
nos ocultar teimosamente a nós próprios, estou certo de que 
toda a luz com que pudermos iluminar os nossos próprios 
espíritos, todo o conhecimento que obtivermos sobre o nosso 
próprio entendimento, nos dará a maior alegria e nos 
permitirá ainda grandes progressos no conhecimento das 
restantes coisas (LOCKE, 2005, p. 21, grifo do autor). 
 
Sendo o entendimento a faculdade mais nobre do ser 
humano (pela qual o mesmo conduz-se a si próprio), é preciso, 
portanto, discipliná-lo para que faça jus a tal atributo, a fim de 
que conduza as demais faculdades mentais corretamente, 
levando o indivíduo à senda da virtude, uma vez que, quando 
mal orientado, o entendimento produz o danoso efeito de uma 
conduta imprópria para o ser humano, qual seja, um 
comportamento repleto de vícios. Assim, a proposta 
pedagógica lockeana consiste em fazer com que o 
entendimento humano seja educado de forma a buscar o 
conhecimento para a virtude, sem a qual o homem não se 
tornaria senhor de si mesmo. Logo no começo de sua obra 
intitulada Sobre a Conduta do Entendimento, Locke não poupa 
esforços no sentido de argumentar acerca da supremacia que o 
entendimento exerce sobre a vontade humana que, por mais 
rebelde que seja, acaba seguindo-o em última instância, 
motivo pelo qual a educação do entendimento requer tanto 
cuidado: 
 
O último recurso ao qual um homem tem a recorrer na 
conduta de si mesmo é seu entendimento, o qual nós 
distinguimos entre as faculdades da mente e damos o 
supremo comando da vontade como o de um agente, embora 
a verdade seja que o homem que é o agente determina a si 
mesmo para esta ou aquela ação voluntária sobre algum 
conhecimento precedente, ou aparência de conhecimento, no 
entendimento. Nenhum homem nunca se posicionou sobre 
qualquer coisa exceto sobre alguma visão ou outra coisa que 
lheservisse de razão para aquilo que faz; e quaisquer 
 152 
faculdades que ele empregue, o entendimento, com tal luz que 
tenha, bem ou mal informado, constantemente lidera; e 
através daquela luz, verdadeira ou falsa, todos seus poderes 
operativos são dirigidos. A própria vontade, por mais 
absoluta e incontrolável no que quer que possa ser pensado, 
nunca falha em sua obediência aos ditados do entendimento. 
Os templos têm as suas imagens sacras, e nós vemos que 
influência elas sempre têm tido sobre uma grande parte da 
humanidade. Mas em verdade as ideias e imagens nas mentes 
dos homens são os poderes invisíveis que constantemente os 
governam, aos quais eles todos universalmente tributam uma 
pronta submissão. É, portanto, da mais alta preocupação que 
grande cuidado deveria ser tomado acerca do entendimento, 
para conduzi-lo correto na busca do conhecimento e nos 
julgamentos que ele faça (LOCKE, 1996, p. 167, tradução 
nossa). 
 
 
DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA RAZÃO 
Ao tratar da categoria razão, Locke incumbe-se de 
precisar os diferentes significados que tal palavra possui. 
Devido, pois, à polissemia de tal vocábulo, o filósofo inglês 
esmera-se em dar-lhe um significado mais exato, a fim de, com 
isso, conferir maior inteligibilidade a seus escritos. No 
Capítulo XVII do IV Livro do seu Ensaio, assim se expressa: 
 
A palavra razão tem diferentes significados na língua inglesa. 
Às vezes, aplica-se a princípios verdadeiros e claros; outras 
vezes, a deduções claras e justas desses princípios; e outras, 
aplica-se à causa, e particularmente à causa final. Mas 
considerá-la-ei aqui com um significado diferente de todos 
estes, e esse significa a faculdade do homem pela qual se supõe que 
ele se distingue dos animais e os ultrapassa em muito (LOCKE, 
2005, p. 929, grifos nossos). 
 
Através do supracitado significado dado à palavra 
‘razão’, nota-se que Locke não a distingue rigorosamente 
daquilo que concebe como ‘entendimento’, motivo pelo qual 
podem ser tratados, sob a sua perspectiva, como sinônimos, 
 153 
haja vista que ambos (entendimento e razão) são as faculdades 
mentais responsáveis pela diferenciação e pela elevação da 
natureza humana em relação aos demais seres presentes no 
mundo sensível. Todavia, poder-se-ia fazer uma objeção a 
Locke no tocante ao fato de que, sendo a razão e o 
entendimento sinônimos, que motivo haveria, então, para se 
falar de uma e de outro? 
Em resposta a tal objeção que lhe pudesse ser feita, esta 
citação, extraída do mesmo capítulo ao qual se fez menção no 
final do parágrafo anterior, lança luzes no que diz respeito à 
necessidade da parte de Locke em explicitar a importância da 
atividade racional, uma vez que, através dela, torna-se 
possível ao ser humano ter o seu conhecimento ampliado e o 
seu assentimento organizado, o que o entendimento sozinho 
não conseguiria. Consequentemente, entendimento e razão 
seriam, assim, quase sinônimos, uma vez que, embora a ambos 
se deva o fato do ser humano ser superior aos demais seres 
terrestres, é a razão a faculdade que coroa o entendimento, 
conferindo-lhe a magnitude que se lhe tributa e auxiliando as 
demais faculdades mentais. A presente citação faz-se útil para 
um melhor esclarecimento quanto ao papel desempenhado 
pela razão: 
 
Se o conhecimento geral, como se mostrou, consiste numa 
percepção de acordo ou desacordo das nossas próprias ideias, 
e o conhecimento da existência de todas as coisas fora de nós 
(com a única excepção de Deus, cuja existência todo o homem 
pode certamente conhecer e demonstrar a si próprio a partir 
da sua própria existência96) unicamente se obtém pelos 
sentidos – então, que lugar fica para o exercício de qualquer 
outra faculdade que não seja a percepção exterior e a percepção 
interior? Que necessidade há de razão? Muita: tanto para o 
desenvolvimento do nosso conhecimento como para regular o 
 
96 Note-se aqui a aproximação de Locke com Descartes, para o qual a certeza da 
existência de Deus pode ser deduzida a partir da certeza da existência que o indivíduo 
tem de si mesmo. 
 154 
nosso assentimento, porque tem que ver tanto com o 
conhecimento como com a opinião, e é necessária para auxiliar 
todas as nossas outras faculdades intelectuais, e na verdade 
contém duas delas, a saber: sagacidade e ilação (LOCKE, 2005, 
p. 929, grifos do autor). 
 
Além de sua importância em âmbito gnosiológico, Locke 
confere à razão a tarefa de tornar o ser humano virtuoso, uma 
vez que somente um comportamento racional seria compatível 
com uma conduta virtuosa e vice-versa, ou seja, razão e 
virtude precisam caminhar pari passu, haja vista que somente 
assim o ser humano seria liberto de suas inclinações97, as 
quais, via de regra, rebaixam-no à pura animalidade; 
consequentemente, pensar aqui a educação significa afirmar 
tratar-se de uma atividade cujo encargo supremo é consolidar, 
por intermédio de hábitos, a obediência à razão, posto ser isso 
a única maneira de estabelecer a virtude, finalidade máxima 
de todo o processo educacional e conditio sine qua non para a 
emancipação humana do nível da simples bestialidade. 
 
 
DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA IDEIA 
A ideia é a categoria fundamental da qual Locke utiliza-
se para designar todo e qualquer conteúdo que se encontre na 
 
97 Aqui tomadas como sinônimas de ‘tendências’, tratam-se, segundo Abbagano (que 
também admite a sinonímica desses termos), em seu verbete TENDÊNCIA, de “todo 
impulso habitual e constante para a ação. Nisso a [tendência] distingue-se do impulso 
[...], que é a ação súbita e temporária” (ABBAGNANO, 2003, p. 948, grifo do autor). O 
termo ‘inclinação’ é de extrema relevância para o pensamento lockeano, 
principalmente em se tratando de compreender a finalidade mais importante da 
educação, que é, para Locke, a virtude, que consiste no hábito de ser racional, ainda 
que os desejos e inclinações se oponham a tal, conforme se verifica na Seção 33 dos 
seus Pensamentos: “Como a resistência do corpo repousa principalmente em ser capaz 
de suportar privações, assim também o é em relação à mente. E o grande princípio e 
fundação de toda virtude e valor está colocado nisto, que um homem seja capaz de 
negar-se a si mesmo os seus próprios desejos, contrariar suas próprias inclinações, e 
puramente seguir aquilo que a razão ordena como o melhor, apesar do apetite 
inclinar-se para o outro caminho” (LOCKE, 1996, p. 25, grifos do autor; tradução 
nossa). 
 155 
mente, ou seja, a ideia é a matéria-prima com a qual a mente 
constrói o pensamento; destarte: “Se todo o homem tem por si 
mesmo consciência de que pensa e se aquilo a que o seu 
espírito se aplica, quando pensa, são as ideias que aí estão, não 
há dúvida de que os homens têm no seu espírito várias ideias” 
(LOCKE, 2005, p.105, grifo do autor). 
Em outra passagem do Ensaio, Locke apresenta uma 
concepção mais precisa daquilo que denomina ‘ideia’: “Chamo 
ideia a tudo aquilo que a mente percebe em si mesma, tudo o 
que é objecto imediato de percepção, de pensamento ou de 
entendimento” (LOCKE, 2005, p. 156). Ao investigar a origem 
das ideias, sem as quais não pode haver objeto da percepção, 
do pensamento ou do entendimento, Locke argumenta que, no 
tocante à sua origem, existe, a rigor, uma só fonte que origina 
as ideias, qual seja: a experiência; esta, por sua vez, bifurca-se 
em: sensação (experiência externa) e reflexão (experiência 
interna)98. 
 
 
DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA CONHECIMENTO 
Depois de ser passada em revista a categoria ideia, torna-
se momento oportuno discorrer acerca da categoria 
conhecimento, porquanto se trata de uma das peças mais 
importantes para se montar o curioso quebra-cabeça que 
constitui o pensamento filosófico e pedagógico lockeano; 
afinal, todos e quaisquer esforços envidados por Locke em seu 
Ensaio convergem para um só fim: tratar da problemática do 
conhecimento(que, por sua vez, conflui para a problemática 
educacional). Assim sendo, faz-se necessário apresentar a 
definição saída da pena do próprio filósofo sobre o que ele 
entende por conhecimento: 
 
98 “Estas duas fontes, isto é, as coisas externas materiais, como objectos de 
SENSAÇÃO, e as operações internas da nossa mente, como objectos da REFLEXÃO, 
são, para mim, os únicos princípios de onde todas as nossas ideias originariamente 
procedem” (LOCKE, 2005, p. 108, grifos do autor). 
 156 
 
Parece-me que o conhecimento não é outra coisa senão a 
percepção da conexão e do acordo, ou do desacordo e da oposição em 
quaisquer das nossas ideias. É só nisto que ele consiste. Onde 
esta percepção estiver, há conhecimento, e onde não estiver, 
nós não poderemos chegar ao conhecimento, embora 
possamos imaginar, conjecturar ou acreditar (LOCKE, 2005, p. 
719, grifos do autor). 
 
Conforme essa passagem, Locke, além de distinguir o 
conhecimento da imaginação, da conjectura e da crença, 
define-o principiando pela categoria percepção, a qual já foi 
abordada pelo presente estudo; em seguida, o filósofo recorre 
a outros quatro termos (conexão ou acordo, desacordo ou 
oposição), tratando os dois primeiros como sinônimos entre si, 
bem como os dois últimos. Apesar de não se preocupar em 
defini-los, ele, por um lado, trata de explicitar de quais tipos 
podem ser, ocupando-se, por outro lado, de definir tal 
tipologia, constituindo-os, assim, em categorias do seu 
pensamento. 
 Além de sugerir a sua própria definição de 
conhecimento, Locke também se empenha em examinar outras 
acepções desse termo. Assim, antes de expor os graus de 
conhecimento defendidos por ele, eis que o mesmo se dedica a 
explanar sobre outras formas pelas quais o conhecimento é 
concebido; são elas: conhecimento atual e conhecimento habitual. 
Conhecimento atual é a categoria pela qual Locke designa “a 
percepção presente que o espírito tem do acordo ou do 
desacordo de algumas das suas ideias ou da relação que elas 
têm umas com as outras” (LOCKE, 2005, p. 725), isto é, trata-se 
do conhecimento que consiste na percepção que a mente tem 
em um dado momento atual ou presente de sua atividade. Em 
relação ao conhecimento habitual, tem-se que tal categoria 
expressa, segundo Locke, aquele conhecimento que ocorre 
quando 
 
 157 
um homem conhece uma proposição quando esta proposição 
esteve uma vez presente no seu espírito e ele percebeu 
evidentemente o acordo ou o desacordo das ideias de que ela 
é composta e a fixou de tal maneira na sua memória que, 
todas as vezes que volte a reflectir sobre esta proposição, e a 
vê-la sempre sob o seu verdadeiro ponto de vista, sem dúvida, 
nem hesitação, lhe dá o seu assentimento, e está seguro da 
verdade que ela contém. É o que se pode chamar, segundo a 
minha opinião, conhecimento habitual (LOCKE, 2005, p. 725, 
grifos do autor). 
 
Assim sendo, nota-se que o conhecimento habitual é o 
conhecimento que consiste no registro que a mente faz através 
da memorização da percepção, ou seja, é o conhecimento que é 
franqueado à mente através da sua faculdade mnemônica, o 
que leva à conclusão de que, sem a memória, não seria 
possível falar em tal acepção de conhecimento. 
 Prosseguindo em sua tarefa de discorrer acerca do 
conhecimento, Locke expõe que o mesmo possui três graus, 
que são por ele designados pelas seguintes categorias: 
conhecimento intuitivo (ou, simplesmente, intuição), conhecimento 
demonstrativo (ou, simplesmente, demonstração) e conhecimento 
sensitivo. 
 Em se tratando do conhecimento intuitivo, tem-se a 
declarar que tal grau de conhecimento ocorre, conforme 
Locke, nas seguintes circunstâncias: 
 
Se reflectirmos sobre a nossa maneira de pensar, veremos que 
algumas vezes o espírito se apercebe do acordo ou desacordo 
de duas ideias imediatamente por elas próprias sem a intervenção 
de uma outra, o que, eu penso, se pode chamar conhecimento 
intuitivo (LOCKE, 2005, p. 729, grifos do autor). 
 
Em se considerando o conhecimento demonstrativo, 
percebe-se que se trata do grau de conhecimento no qual a 
mente percebe mediatamente a conexão ou a desconexão entre 
duas ou mais ideias, ou seja, em se percebendo o acordo ou o 
desacordo entre duas ou mais ideias, há o intermédio de uma 
 158 
ideia ou até mesmo mais de uma. Tal grau de conhecimento 
ocorre devido à insuficiência da mente em sempre perceber o 
acordo ou o desacordo entre as suas ideias de forma imediata. 
Assim sendo, 
 
quando o espírito não pode juntar as suas ideias para perceber 
o seu acordo ou desacordo, por meio de uma imediata 
comparação, e por assim dizer justapondo-as ou aplicando-as 
umas às outras, é então obrigado a servir-se da intervenção de 
outras ideias (uma ou mais, conforme o caso) para descobrir o 
acordo ou o desacordo que procura; e isto é o que chamamos 
demonstração (LOCKE, 2005, p. 730-731, grifos do autor). 
 
Considerando-se o conhecimento sensitivo, tem-se que se 
trata de uma categoria que expressa o grau de conhecimento 
que consiste na percepção da existência particular de objetos 
externos, percepção essa que se encontra entre a certeza 
imediata da intuição e a probabilidade mediata da 
demonstração, sendo, pois, diferente de ambas. Ao se referir 
ao conhecimento sensitivo, Locke fá-lo nos seguintes termos: 
 
Na realidade, o espírito tem ainda da existência particular dos 
seres finitos fora de nós uma outra percepção, que indo para 
além da simples probabilidade, mas não atingindo 
perfeitamente nenhum dos precedentes graus de certeza, 
passa sob o nome de conhecimento. [...] É por isso que, julgo eu, 
podemos acrescentar às duas espécies anteriores de 
conhecimento também a que diz respeito à existência de 
objectos particulares exteriores, em virtude desta percepção e 
conhecimento que temos da entrada das ideias que nos vêm 
destes objectos, e, assim, podemos admitir estes três graus de 
conhecimento, a saber: o intuitivo, o demonstrativo e o sensitivo, 
em cada um dos quais há diferentes graus e meios de 
evidência e de certeza (LOCKE, 2005, p. 738-739, grifos do 
autor). 
 
À luz dessa citação, verifica-se que, no que tange ao fato 
de estar mais próximo da certeza (estado em que a percepção 
torna-se conhecimento indubitável) e da evidência (estado em 
 159 
que a percepção torna-se conhecimento claro e distinto), o 
conhecimento sensitivo encontra-se entre o conhecimento 
intuitivo e o conhecimento demonstrativo, pois sendo o 
conhecimento sensitivo, por um lado, inferior à intuição (pelo 
fato de não possuir os mesmos níveis de certeza e de evidência 
que ela), é, por outro lado, superior à demonstração 
(considerando-se que se encontra em um patamar no qual a 
sua certeza e a sua evidência são superiores àquelas que se 
fazem presentes na demonstração). 
 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
Neste capítulo, apontamos algumas das mais relevantes 
categorias epistemológicas do pensamento de John Locke, 
selecionadas com o intuito de prover uma concepção 
panorâmica e introdutória em relação ao pensamento deste 
egrégio filósofo empirista que, por sua vez, apresenta ideias 
acerca da educação iluminadas por suas ideias acerca do 
conhecimento. 
Em suma, ao discorrer sobre a experiência, a mente, o 
entendimento, a razão e a ideia, Locke elabora a sua concepção 
de conhecimento de maneira a estabelecer uma hierarquia 
entre os seus três modos, de acordo com o seu grau de certeza 
mais ou menos imediata, hierarquia essa que poderia ser 
expressa nestes termos: no supremo patamar, a intuição, cuja 
certeza é incontestável, por ser imediatamente evidente; no 
patamar intermediário, o conhecimento sensitivo, cuja 
característica é ser mais incerto que a intuição e menos 
duvidoso que a demonstração, não sendo mais tão imediato 
quanto a intuição, nem carecendo de tantas provas quanto a 
demonstração; no ínfimo patamar, a demonstração, cuja 
certeza é a menos imediata em relação aos demais(intuição e 
conhecimento sensitivo), já que se trata do tipo de 
conhecimento que mais necessita de provas, dele fazendo o 
tipo de conhecimento que não é imediatamente evidente. 
 160 
Por ser um dos principais teóricos do empirismo 
britânico, Locke advoga em todo o processo de construção do 
conhecimento o primado da experiência, porquanto sem ela 
não há ideias e, sem elas, não há conteúdos mentais, o que, ipso 
facto, paralisa toda e qualquer atividade mental e, portanto, 
todo o conhecimento. Por este motivo e em decorrência de tal 
perspectiva, é impossível conceber a educação prescindindo 
da experiência, por tratar-se de uma atividade por meio da 
qual o corpo e a mente do ser humano devem ser 
disciplinados para conhecer e agir, nunca se perdendo de 
vista, é claro, a virtude, elemento indispensável para a 
formação do ser humano, o qual é materializado por Locke em 
seus escritos sobre educação na figura do gentil-homem, cuja 
nobreza de caráter e de conduta apenas terá a virtude por 
prova inconteste. Assim, a superioridade humana só poderá 
ser garantida ou legitimada se houver um comportamento 
racional o bastante para demonstrar a sua capacidade de 
superar os obstáculos impostos por suas inclinações 
animalescas, ou seja, em Locke, pode-se admitir que, em se 
tratando de educação: Nulla salus ex virtute99! 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
ABBAGNANO, N. e VISALBERGHI, A. História da Pedagogia. Lisboa: 
Livros Horizonte, 1981. 
 
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 
 
DESCARTES, R. Meditationes De Prima Philosophia: Meditatio Tertia. 
Campinas: IFCH-UNICAMP: 1993. 
 
LOCKE, J. Some Thoughts Concerning Education and Of the Conduct of 
the Understanding. Indianapolis, Indiana, USA: Hackett Publishing 
Company, Inc, 1996. 
 
99 Fora da virtude não há salvação. 
 161 
 
_______. Ensaio sobre o Entendimento Humano. Lisboa: Fundação 
Calouste-Gulbenkian, 2005. 2 vols. 
 
YOLTON, J. W. Dicionário Locke. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. 
 
 
 162 
 
 
 
 
 
 
 
Capítulo 9 
KKAANNTT EE AA TTAARREEFFAA DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO 
Vera Cristina de Andrade Bueno 
 
 
I – INTRODUÇÃO 
Embora não seja um dos fatos mais discutidos pelos 
comentadores de sua filosofia, Immanuel Kant (1724-1804) foi 
um filósofo que, ao longo de sua vida, ocupou-se, ora de 
forma mais explícita ora de forma menos explícita, com 
questões e temas ligados à educação. Em geral, ele é mais 
lembrado por sua preocupação inicial com questões ligadas à 
ciência e à metafísica, o que o levou à elaboração de suas obras 
pré-críticas e críticas. Mas, diferentemente de muitos filósofos 
que o antecederam, Kant foi professor durante toda a sua vida 
e viveu do ensino que praticava, seja como tutor nas casas das 
famílias abastadas (1748-1754), seja como Privatdozent - título 
que se dava àqueles que ensinavam nas universidades, mas 
cujo ensino era pago diretamente pelos alunos que 
frequentavam os cursos e não pela Universidade – seja, 
finalmente, como Professor da Universidade de Königsberg, o 
que aconteceu a partir de 1770. Além de ter sido professor 
durante toda a sua vida, Kant ministrou quatro cursos sobre 
pedagogia, o que o levou a tratar explicitamente de temas 
ligados à educação. As anotações feitas para esses cursos 
foram dadas a T. Rink, seu amigo e ex-aluno, para que ele as 
editasse e publicasse, o que foi feito em 1803, um ano antes da 
 163 
morte do filósofo, com o título Über Pedagogik100. Kant ainda 
escreveu outros textos nos quais explicita suas posições a 
respeito da educação. Num deles, em que apresenta sua 
proposta para seus cursos de inverno de 1765 e 1766, faz uma 
crítica da educação dada aos jovens101; em outros dois, 
publicados em 1766 e 1767, refere-se, elogiando, à educação 
dada no Instituto Philantropinium102. Em suas obras críticas de 
filosofia prática, aborda temas que vão influenciar 
profundamente sua concepção de educação: o de liberdade e o 
de autonomia103. 
Segundo Foley Rhys Davids, o fato de a educação ter 
tido um destaque especial no ensino universitário na época de 
Kant, razão pela qual foram introduzidos na universidade os 
cursos de pedagogia, se deve à atenção crescente dada à 
questão dos direitos humanos e à crença no valor do indivíduo 
e da criança, temas que ganharam força no final do século 
XVIII. No que concerne aos direitos da criança, é incontestável 
a influência de Rousseau. Este chamou a atenção para a 
 
100 Über Pedagogik. In: Kant´s gesammelte Schriften, Königlich Preussichen Akademie der 
Wissenschaften, Berlin-Leipzig, 1923, Ak, 9: 441-499. As letras Ak indicam o volume e 
a página da edição da Academia de Ciências de Berlim. Em português, Sobre a 
pedagogia. Tradução para a língua portuguesa de Franscisco Cock Fontanella. 
Piracicaba: Editora UNIMEP, 2006. Daqui em diante, SP. 
101 Nachricht von der Einrichtung seiner Vorlesungen in dem Winterhalbenjahre von 1765-
1766. Ak, 2:306-307. Há uma tradução desse texto para a língua inglesa com o título 
“M. Immanuel Kant´s announcement of the programme of his lectures for de winter 
semester 1765-1766”. In: Theoretical Philosophy. Cambridge: Cambridege University 
Press, 1992, p. 291-2. 
102 “Essays regarding the Philanthropinum”. In: Anthropology, History and Education. 
Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 98-104; Ak, 2:447-452. O Instituto 
Philantropinium, fundado por Johann Bernhard Basedow, em 1774, em Dessau, tem 
uma concepção educacional fortemente influenciada por Rousseau. 
103 Dentre essas obras, as mais fundamentais são: a Fundamentação da metafísica dos 
costumes, tradução de Guido Antônio de Almeida. Edição bilíngüe. São Paulo: 
Discurso editorial e Editora Barcarolla Ltda, 2009, daqui em diante, FMC; Crítica da 
razão prática, tradução de Valério Rohden. Edição bilíngüe. São Paulo: Martins Fontes, 
2003, daqui em diante, CRPr; Crítica da faculdade do juízo, tradução de Valério Rohden. 
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, daqui em diante, CFJ; A Metafísica dos 
costumes, tradução de Edson Bini, São Paulo: Edipro, 2003. 
 164 
necessidade de se levar em conta o que a criança é em si 
mesma enquanto criança, deixando provisoriamente de lado o 
homem no qual ela vai se tornar. Mesmo que não se possa 
negar que a criança seja um ser em constante mudança, ela 
tem seu modo próprio de ser, diferente daquele do adulto. Na 
formação da criança, valores antigos como o individualismo, 
os privilégios, as convenções tinham de ser ultrapassados para 
que a sua natureza racional e supra-sensível pudesse ser 
resgatada. Esse resgate é possível em função das disposições 
naturais do ser racional, que trazem consigo o sentido moral 
que precisa ser incentivado pelo exemplo e pela educação104. 
 
 
II – A INFLUÊNCIA DE ROUSSEAU NA FILOSOFIA PRÁTICA 
KANTIANA E A IMPORTÂNCIA DESSA FILOSOFIA PARA A 
EDUCAÇÃO 
A leitura das obras de Rousseau foi de suma importância 
para a formação da filosofia prática kantiana e é nessa filosofia 
que Kant vai buscar os fundamentos determinantes para sua 
concepção de educação105. No entanto, se, no que concerne à 
filosofia prática, Kant procede de uma forma inteiramente a 
priori, ou seja, levando em conta o que vale universal e 
necessariamente para todos os seres racionais, 
 
104 Ver: Kant and Education. Source: Introduction to Kant on Education (Ueber 
Pedagogik), trans. Annete Churton, introduction by C.A. Foley Rhys Davids (Boston: 
DC. Heath and Co., 1900). 
105 A respeito da influência recebida de Rousseau, Kant diz o seguinte: “Sou um 
investigador por inclinação. Tenho uma sede insaciável (consuming) de conhecimento 
[...]. Houve um tempo em que acreditei que isso constituía a honra da humanidade e 
desprezava as pessoas que não sabiam nada. Rousseau me corrigiu nisso. Essepreconceito ao qual estava preso desapareceu. Aprendi a honrar a humanidade e eu 
me acharia mais inútil dos trabalhadores comuns, se não acreditasse que essa minha 
atitude pode dar valor a todas as outras ao estabelecer os direitos da humanidade” 
(Ak, 20:44, apud Allen Wood, “General introduction” in: Practical Philosophy. 
Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p.xvii). Kant refletiu intensamente 
sobre a moralidade por volta da metade dos anos sessenta, do século XVIII, época em 
que leu Sobre o contrato social e o Emílio. 
 165 
independentemente da situação de cada um deles, no que 
concerne à sua preocupação com a educação, e na aplicação a 
ela do que é válido universal e necessariamente, Kant vai 
proceder empiricamente. Nessa ótica, Kant vê a educação 
consistindo no aperfeiçoamento da raça humana. A educação, 
para Kant, tem de levar em conta o aperfeiçoamento da 
espécie com todas as suas subespécies, a saber, todas as raças e 
não apenas o indivíduo em seu contexto mais restrito. “O 
destino final da raça humana é o aperfeiçoamento moral [...] 
Como, então, poderemos lutar por esse aperfeiçoamento e de 
onde ele pode ser esperado? De nenhuma outra parte a não ser 
da educação”106. 
Mas, o que entende Kant por “raça” e por 
“aperfeiçoamento moral”? O conceito de raça, como dito acima, 
tem a ver com o de espécie humana; por sua vez, Kant 
conceitua a espécie humana como aquilo que no ser humano é 
infalivelmente hereditário: “As propriedades que pertencem 
essencialmente à espécie humana em si mesma, e que são 
comuns a todos os seres humanos, são, na verdade, enquanto 
tais infalivelmente hereditárias”107. Os conceitos de raça e de 
espécie humana trazem consigo o conceito de alguma coisa 
que é submetida a uma regularidade, a saber, a uma lei. Se, 
para Kant, o conceito de natureza implica uma submissão à lei, 
o conceito de natureza humana pode ser visto, nesse caso, 
como sendo análogo, do ponto de vista filosófico, aos de raça e 
de espécie humana108. 
O conceito de aperfeiçoamento moral, ou de moralidade, 
tem a ver com a razão humana e, em especial, com a razão que 
 
106 Moralphilosophie Collins, Ak, 27:470-1, apud Robert Louden, Anthropology, History 
and Education. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 15. 
107 “Determination of the concept of human race”. In: Anthropology History and 
Education. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 153-154; Ak, 8: 99-100. 
108 O conceito de raça e de espécie, como contendo aquilo que é invariavelmente 
hereditário, tem uma conotação empírica, mas está relacionado àquele de natureza, 
que tem uma conotação mais filosófica. Na FMC Kant afirma que “toda coisa na 
natureza atua segundo leis” (p. 183; Ak, B36; 4:412). 
 166 
se relaciona imediatamente com a vontade, a razão prática. 
Esse conceito, segundo Kant, leva-nos a pressupor a ideia de 
liberdade109. A ideia de liberdade foi sendo paulatinamente 
formada; ela é decorrente da filosofia crítica kantiana, que 
investiga a possibilidade de certos conceitos e ideias. Em sua 
filosofia crítica, Kant justifica a possibilidade de pensarmos a 
liberdade sem o risco de contradição em relação ao 
determinismo da natureza física, pois ela é uma ideia que 
pertence ao domínio do pensamento, que concerne ao supra-
sensível110. Não há na modernidade, segundo Kant, uma 
concepção de moralidade que tome a liberdade como uma 
ideia, isto é, como um tipo de representação que possibilita ao 
ser humano determinar suas escolhas em função da lei da 
razão111, e que faça, por sua vez, dessa mesma lei uma 
máxima112 para sua vida independentemente de outras 
influências que ele possa sofrer113. 
A razão, tomada de um modo geral, é a faculdade pela 
qual o ser humano procura princípios e conceitos suficientes 
para justificar a possibilidade de certos fatos. Do ponto de 
 
109 Kant estabelece a distinção entre conceito e ideia da seguinte maneira: conceito é 
uma representação universal por meio da qual podemos pensar as coisas e também 
conhecê-las. A ideia é uma representação por meio da qual podemos apenas pensar 
certas coisas, mas não podemos conhecê-las. Para haver conhecimento de um objeto é 
preciso que tenhamos experiência sensível desse objeto. A ideia é um conceito cujo 
objeto representado não pode ser encontrado na experiência. Nesse sentido, não 
podemos encontrar a liberdade na experiência. A respeito da distinção entre conceito 
e ideia, ver de I. Kant, Prolegômenos, §40. Tradução para a língua portuguesa de Tânia 
Maria Bernkopf. São Paulo: Coleção Os pensadores. Editora Abril Cultural, 1974. Ak, 
4:328. 
110 Crítica da razão pura, tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique 
Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, A532/B560. As letras A e B 
referem-se, respectivamente, à primeira e a segunda edição da obra. Daqui em diante, 
a referência à obra será feita com as iniciais CRP, seguidas das letras A e B. 
111 CRPr, p. 331; A, 168; Ak, 5:94. 
112 Segundo Bittner, “máximas são regras de vida: elas expressam que tipo de ser 
humano quero ser [...]. Elas contêm o sentido de minha vida; [...] Nesse sentido, como 
regra de vida, está sua procurada universalidade (Allgemeinheit). [...] [A máxima é o] 
princípio determinante de uma vida”. “Máximas”. In: Studia kantiana 5 (2003):14-15. 
113 CRPr, p. 97-103; A, 51-54; Ak, 5: 29-30. 
 167 
vista meramente lógico, a razão é a faculdade por meio da 
qual, de proposições mais gerais, inferimos proposições menos 
gerais, ou que, inversamente, das menos gerais, buscamos 
aquelas mais gerais. Do ponto de vista prático, ou seja, do 
ponto de vista da determinação da vontade, ela é a faculdade 
dos princípios em função dos quais podemos realizar coisas as 
quais, sem esses princípios, não poderiam ser realizadas. Os 
princípios da razão pura se manifestam a nós como deveres114. 
O dever determinado pela própria razão é a autonomia115. 
Nesse sentido, ao afirmar que o fim da educação é o 
aperfeiçoamento moral da raça humana, Kant está propondo 
que o fim da educação seja ensinar àqueles que pertencem à 
raça humana, em especial as crianças e os jovens, a fazerem 
uso de sua liberdade e autonomia. 
A concepção de razão prática significa uma ampliação 
do uso da razão, pois por meio dessa concepção, Kant acabou 
se dando conta de que a razão humana não tem apenas uma 
função cognitiva, como se costuma admitir. E é justamente a 
concepção prática da razão que dá a Kant a possibilidade de 
considerar a educação como aperfeiçoamento moral. O papel 
final da educação é levar o ser humano a reconhecer o valor de 
sua vida como ser racional. O reconhecimento desse valor 
contribui para a formação do seu caráter. O caráter do ser 
humano é formado não só pelos princípios que ele adota, mas 
também pelo propósito que faz para mantê-los. O caráter é, 
segundo Kant, “uma consequente maneira de pensar prática 
segundo máximas imutáveis”116. Isso quer dizer que o caráter 
não concerne apenas à escolha dos princípios, mas também à 
 
114 FMC, p. 115-119; Ak, 4:397-98. 
115 CRPr, p. 139; A, 72; Ak, 5:42. 
116 CRPr, p. 535; A, 271; Ak, 5:152. 
 168 
proposta de se ater a eles. Ele é um modo consequente de 
pensar e de agir117. 
Em função dos conceitos de razão prática, de vontade e 
de liberdade, o fim almejado para a educação não é o 
treinamento mecânico, como muitas vezes acontece, mas a 
prática do pensamento. O projeto de educação até então 
adotado, segundo Kant, é o da disciplina, da cultura e da 
civilização. Para ele, a moralização ainda não faz parte do 
projeto educacional vigente. E, no entanto, enquanto não se 
levar em conta a prática da moralização, a educação não estará 
atendendo à realização dos fins últimos dos homens. Parece 
que a educação vigente leva em conta apenase, com isso, perde importância a figura do 
basileus, o rei, exaltada nos versos da Ilíada e da Odisséia. Uma 
vez emudecidas as palavras do rei, e com elas a verdade 
depositada na tradição, os discursos míticos, poéticos e 
religiosos deixam de satisfazer as exigências pedagógicas dos 
gregos. Essa carência é o que fará os homens procurarem 
outros caminhos e buscarem perguntas que nunca precisaram 
ser feitas antes: qual é a origem de todas as coisas? O que é o 
homem? Como o homem deve se comportar na cidade? 
Os pré-socráticos e os sofistas contribuíram para a 
formação do novo homem, nascido das cinzas da tradição, o 
qual repõe a fé apenas na autoridade do logos, na dúplice 
acepção que este termo possui, isto é, de razão e de discurso. 
Enquanto detentor da razão, o homem não recorre à palavra 
indiscutida dos deuses; enquanto detentor do discurso, o 
homem compartilha a sua palavra com os outros homens e se 
torna animal politicus. 
 
 
1 A palavra paideia foi criada pelos Sofistas para indicar a natureza do seu ensino. 
 22 
 
O NOVO JEITO DE OLHAR PARA O MUNDO 
Os pré-socráticos descobriram aquela maneira de olhar 
para o mundo que é a maneira científica ou racional. Viam o 
mundo como algo ordenado e inteligível, cuja história 
obedecia a um desenvolvimento explicável, organizado, 
compreensível. O mundo não é considerado um conjunto 
arbitrário de partes ou de eventos, nem responde a uma 
ordem determinada apenas pela vontade e pelo capricho da 
divindade. O mundo natural tem a sua ordem intrínseca, a 
qual é suficiente para explicar a sua estrutura. As explicações 
dos pré-socráticos são marcadas por três características: são 
internas, isto é, explicam o universo a partir das características 
que o constituem; são sistemáticas, isto é, explicam todos os 
eventos empregando os mesmos termos e métodos; são 
econômicas, isto é, empregam poucos conceitos e poucas 
operações. Os filósofos pré-socráticos não são personagens 
inúteis na gênese da elaboração de uma nova imagem do 
homem. Com isso, não estamos dizendo que todos os 
argumentos que eles apresentaram foram bons argumentos, 
nem isso nos parece algo relevante. O que nos parece relevante 
é que os pré-socráticos apresentaram “argumentos” sobre o 
cosmo, o homem e o convívio dos homens na cidade. 
Os primeiros filósofos enfatizaram o domínio da 
faculdade racional. A razão é a faculdade capaz de estabelecer 
relações lógicas, isto é, de dar conta dos fenômenos naturais e 
antropológicos através da busca pelas causas. Ao alcançar este 
objetivo, a razão produz inferências. A inferência manifesta 
em primeiro lugar as razões, revela as causas e indica o 
responsável pelo efeito experimentado. Da inferência deriva a 
ciência demonstrativa, a saber, o processo de conhecimento 
que não se satisfaz apenas com a apreensão da existência dos 
fatos, mas também toma conta do porquê, dos motivos de sua 
existência. 
 23 
Embora seja exato afirmar que a filosofia introduz os 
fundamentos da paideia, do ethos e da episteme ocidentais, ou 
seja, do jeito de viver, de portar-se e de compreender 
característicos do Ocidente europeu, ela mantém um atributo 
que lhe é essencial e que desapareceu na época atual. A 
filosofia é a apreensão desinteressada da natureza. O 
historiador Heródoto, que viveu no século V a.C., narra uma 
primeira manifestação da atividade filosófica da seguinte 
forma. Heródoto narra o encontro de Sólon, o legislador de 
Atenas (VII-VI a.C.), um dos que são denominados Sete 
Sábios, com Creso, o rei de Lídia. Creso dirige-se a Sólon 
nestes termos: “Meu caro ateniense, a notícia da tua sabedoria e de 
tuas viagens chegou até nós. Não ignoro absolutamente que, por 
amar a sabedoria (philosopheon), percorreste muitos países, por causa 
de teu desejo de conhecer”. Naquele momento, o que 
representava a filosofia eram as viagens que Sólon realizou e 
que tinham como fim conhecer, adquirir vasta experiência da 
realidade e dos homens, descobrir países e costumes 
diferentes. Tal experiência pode fazer daquele que a possui 
um bom juiz nas coisas humanas e um homem apto ao 
convívio social. 
Filosofia é o desejo pelo saber em si mesmo de uma 
maneira desinteressada e engloba tudo o que se refere à 
cultura intelectual. A filosofia é um bios, um estilo de vida e 
uma opção que não se situa no momento conclusivo da 
atividade filosófica, como uma consequência de um percurso 
de conversão. Ao contrário, esta escolha existencial se 
posiciona logo no começo, em uma complexa relação e 
interação entre a crítica a outras atitudes existenciais, a visão 
global do mundo, e a própria decisão voluntária e responsável. 
É a opção escolhida que determina até certo ponto a doutrina 
filosófica professada e o jeito de transmiti-la para os discípulos 
(HADOT, 1999, p. 167). As mutações que a filosofia produz 
aparecem em quem a pratica, no filósofo, ou seja, naquele que 
vive no estilo filosófico. A filosofia não possui nenhuma 
 24 
utilidade prática: ela é livre, pois não se submete a qualquer 
fim que lhe seja alheio. “Todas as outras ciências serão mais 
necessárias do que esta, diz Aristóteles, mas nenhuma lhe será 
superior”. Isto pelo fato de que a tarefa da filosofia é uma tarefa 
essencialmente pedagógica: a produção do homem. 
Hoje em dia parece estranho falar deste jeito, pelo fato 
de que na época atual o que impõe a sua força é justamente o 
interesse, o útil. A partir do pensamento marxista, a filosofia 
tem como escopo a transformação da realidade; a filosofia se 
propõe a mudar e fazer mudar a realidade. O ato de 
transformar não é em si mesmo ruim: com efeito, pode ser 
considerado um empenho político ou mesmo educativo 
(HÜHNE, 2006, p. 54). Porém, o filósofo grego objetaria que 
tudo isso não pode ser o fim último da filosofia. Quem filosofa 
tendo o útil como objetivo perde a liberdade. A ânsia de 
transformar perturba o momento do conhecimento. A 
filosofia, o amor desinteressado ao saber, se submeteria à 
prática e deixaria de ser filosofia. 
Contudo, o que é mais novo na filosofia está em relação 
ao jeito particular de viver que é a escolha própria do filósofo. 
Existe uma enorme diferença entre a representação que os 
antigos faziam da filosofia e a representação hodierna da 
mesma disciplina, pelo menos na imagem transmitida aos 
estudantes por conta das necessidades do ensino universitário. 
Normalmente, os estudantes têm a impressão de que todos os 
filósofos esforçam-se sucessivamente para arquitetar, cada um 
de uma maneira original, uma nova construção sistemática e 
abstrata, destinada a explicar, de uma maneira ou de outra, o 
universo. O “jogo das interpretações” parece um conjunto de 
movimentos arbitrários no qual o sujeito, conscientemente ou 
até abandonando-se ao próprio inconsciente criativo, cria 
imagens da “realidade” para opor às dos outros. 
Isso não entra na perspectiva do discurso filosófico 
antigo. Evidentemente, não estamos negando a extraordinária 
capacidade dos filósofos antigos de desenvolver uma reflexão 
 25 
sobre os problemas mais sutis da realidade natural e humana. 
Porém, essa atividade teórica deve ser situada em uma 
perspectiva diferente daquela que a filosofia indica hoje. Em 
primeiro lugar, a opção pelo modo de vida filosófico se situa 
na origem do caminho de pesquisa, e isso determina o 
processo educativo do filósofo e dos seus discípulos (HADOT, 
1999, p. 169). “A Escola Eleata, fundada por Parmênides, e a 
Escola Pitagórica foram dois focos importantes do 
desenvolvimento e da transmissão deste tipo de saber” 
(FERREIRA, 1993, p. 34-35.). No domínio educativo interessa 
de modo especial a Escola Pitagórica, seja pelo seu ideal de 
vida que reveste a procura do saber com um caráter iniciático 
e religioso, seja pela sua contribuição na criação do currículo 
de estudos que foi considerado o fundamento das artes 
liberais, ou artes do trivium e do quadrivium, como foram 
chamadas na Idadeo interesse dos 
Estados, pois a “felicidade dos estados cresce na medida da 
infelicidade dos homens”. Como os homens poderão ser 
felizes se aquilo que têm de mais digno não é levado em 
conta? É verdade que a felicidade para os seres racionais 
depende em grande parte do cumprimento de leis, mas não se 
trata de qualquer lei. As leis dos Estados não são 
suficientemente abrangentes para que os homens vislumbrem 
sua felicidade apenas pelo cumprimento delas. Não é que elas 
não devam ser cumpridas. Mas, além delas, são necessárias 
também as condições para que os indivíduos possam seguir a 
lei da razão pura, a lei que eles mesmos se dão, por meio de 
suas máximas, fundadas na ideia de liberdade. Se essas 
condições são suprimidas, se não houver a preocupação com a 
ideia de liberdade, eles não poderão nem ao menos almejar a 
felicidade, pois o que há de mais valioso no ser humano não 
foi levado em conta. Nesse sentido, o processo da educação 
não deve priorizar o ser humano como cidadão pertencendo a 
um Estado, ou mesmo o indivíduo pertencendo a uma família, 
mas sim o ser racional que está acima das distinções de país e 
de família. Kant entende que a tarefa da educação é ajudar o 
 
117 Kant se refere ao modo de pensar consequente no §40 da Crítica da faculdade do juízo. 
Tradução de Valério Rohden. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 140-141; 
B, 158; Ak, 5:294. 
 169 
ser humano a se tornar não apenas um cidadão (Burger), mas 
também, e principalmente, um cidadão do mundo 
(Weltburger). Ele parece adotar, em relação à educação, uma 
posição análoga a que adota em relação à filosofia: a 
valorização de uma concepção cósmica de educação, assim 
como valoriza a concepção cósmica de filosofia118. 
 
 
III – O PAPEL DA HISTÓRIA DA NATUREZA HUMANA E A 
EDUCAÇÃO 
Porém, o desenvolvimento do ser humano não é visto 
apenas como resultante dos progressos provenientes do uso 
razão. O desenvolvimento é visto também como resultante do 
papel que a natureza desempenha em relação a ele. Se 
levarmos em conta o que Kant propõe em seu primeiro ensaio 
sobre a história humana, Ideia de uma história universal de um 
ponto de vista cosmopolita, publicada em 1784119, veremos o 
quanto o progresso da humanidade depende de uma 
superação das dificuldades postas pela natureza. Essas 
dificuldades são vistas com uma finalidade. É como se, por 
meio delas, a natureza contribuísse para o desenvolvimento 
do ser humano, pois é pela superação das dificuldades que 
encontra que o ser humano se desenvolve e se aperfeiçoa120. 
Assim, o desenvolvimento inicial do ser humano no decorrer 
 
118 Lógica. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 
2003, p. 42. Ak, 16:24; CRP, A838/B866. 
119 A palavra Ideia que aparece no título deve ser entendida em seu uso regulativo 
(CRP, A644-45/B672-73). Uma ideia em seu uso regulativo não vale para o 
conhecimento de objeto algum, mas vale para nos orientar numa maneira de lidar com 
certos dados. Nesse texto, Kant não está atribuindo valor cognitivo ao seu conteúdo, 
mas apenas oferecendo um modo possível de se lidar com a história da humanidade 
de um ponto de vista filosófico. Cf. Lewis White Beck, Kant Selections. New York: 
Macmillan Publishing Company, 1988, p. 413. 
120 Essa concepção de uma natureza que contribui para o desenvolvimento da espécie 
humana, ou seja, a concepção teleológica da natureza, é tratada também, 
especialmente, no §83 da “Metodologia da faculdade do juízo teleológico”, da Crítica 
da faculdade do juízo, p. 270-274; B, 388-395; Ak, 5:430-434. 
 170 
da história não é o resultado de uma deliberação intencional, 
mas sim o resultado de uma natureza que o estimula a 
desenvolver suas potencialidades até que ele se dê conta do 
poder que tem, poder que é inteiramente diferente daquele da 
natureza121. 
A “Quarta proposição” da Ideia tem como enunciado: 
“O homem quer a concórdia, mas a natureza sabe mais o que é 
melhor para a espécie: ela quer a discórdia”122. É só a partir da 
decisão do indivíduo de enfrentar e superar os antagonismos 
da natureza, e, em especial, os da própria natureza humana, 
que ele vai conseguir progredir em sua espécie. 
Pelo fato de pertencer à natureza e pela necessidade de 
superar essa mesma natureza, o ser humano precisa de outro 
ser humano. Isso porque ele é dependente da natureza na qual 
está inserido e a qual lhe impõe obstáculos, mas ele também é 
dependente de outros seres humanos, não apenas enquanto 
seres naturais, mas enquanto seres que já superaram algumas 
dificuldades e já estão num grau de racionalidade mais 
desenvolvido. Sem outros seres de sua espécie, o ser humano 
não sobreviveria nos primeiros anos de sua vida. 
 
Os animais, logo que começam a sentir alguma força, usam-na 
com regularidade, isto é, de tal maneira que não prejudicam a 
si mesmos. [...] Mas o homem tem necessidade da própria 
razão. Não tem instinto e precisa formar por si mesmo o 
projeto de sua própria conduta. Entretanto, por ele não ter a 
capacidade imediata de o realizar, [...] outros devem fazê-lo 
por ele123. 
 
A proposta kantiana para a educação tem, portanto, 
como pano de fundo uma concepção segundo a qual a 
 
121 Os textos em que Kant trata do conceito do sublime vão nessa direção. Ver 
especialmente o §28 da CFJ, p.106, B102; Ak, 5:260. 
122 Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução de Rodrigo 
Neves e Ricardo Terra. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 9. 
123 Sobre a pedagogia, p.11; Ak, 9:441. 
 171 
natureza desempenha inicialmente um papel preponderante 
na vida humana, não só como natureza física, mas também 
como natureza especificamente humana, a qual traz em germe 
todo o potencial que a razão humana representa. A natureza 
física é trazida à baila por conta de um modelo de 
interpretação kantiano da história, segundo o qual a natureza 
tem como fim o aperfeiçoamento do ser humano. Mas, para 
que a natureza atinja seu fim, outros seres humanos, em 
função do desenvolvimento que conseguiram atingir, 
precisam ser atuantes. 
Nesse sentido, Kant chama a atenção para a ideia de que, 
para cada etapa do desenvolvimento humano, além da 
natureza física, está envolvida também toda a espécie humana. 
Ou seja, o grau de aperfeiçoamento que o ser humano atingiu 
não é apenas o resultado de seu progresso e empenho pessoal, 
mas daquele de toda raça humana. 
 
De fato, os conhecimentos dependem da educação e esta, por 
sua vez, depende daqueles. Por isso a educação não poderia 
dar um passo à frente a não ser pouco a pouco, e somente 
pode surgir um conceito da arte de educar na medida em que 
cada geração transmite suas experiências e seus 
conhecimentos à geração que lhe segue124. 
 
 
IV. AS PRÁTICAS A SEREM DESENVOLVIDAS NA EDUCAÇÃO 
Segundo Kant, se podemos pensar na educação como 
uma arte, seu procedimento teria de se orientar por quatro 
práticas que nada mais fariam do que desabrochar 
gradativamente “os germens que residem no ser humano”: a 
da disciplina, a da cultura, a da civilidade e a da moralidade. No 
entanto, ainda que essa divisão esteja presente em Sobre a 
pedagogia, ela não é mantida com muito rigor no decorrer do 
texto. O que foi tratado como pertencendo a uma prática é 
 
124 SP, p. 20; Ak, 9:446. 
 172 
retomado como pertencendo também à outra. Podemos dizer, 
levando em conta a preocupação principal de Kant, que nessa 
obra a divisão principal é estabelecida entre educação física e 
educação moral. Isso quer dizer que certos aspectos da cultura 
e mesmo da civilização acabam fazendo parte da educação 
física e deixando para a prática da moral aquilo que tem a ver 
mais diretamente com o desenvolvimento da 
autodeterminação e da formação do caráterda criança. Assim, 
as três primeiras práticas caem sob a rubrica da educação física 
e vão levar em conta os elementos corporais, intelectuais e 
emocionais da criança. A passagem de uma prática para a 
outra tem a ver com a passagem de uma atitude mais 
receptiva para uma mais ativa e autônoma. 
 A prática da disciplina leva em conta principalmente a 
natureza animal do ser humano. Segundo Kant, a educação 
deve impedir que o que há nele de animal não o prejudique 
quando criança tanto em sua vida individual quanto em sua 
vida social. Para isso, no entanto, “seria melhor usar poucos 
instrumentos e deixar que as crianças aprendam muitas coisas 
por si mesmas; dessa forma aprenderiam mais 
eficazmente”125. Aqui, já estaria presente, ainda de forma 
embrionária nesse primeiro estágio da educação, a ideia de 
liberdade. Na medida em que se pressupõe livre, é possível 
para o educador estabelecer uma relação com a criança em que 
ela perceba seus limites, sem que com isso se sinta oprimida. 
“É preciso, diz Kant, sobretudo cuidar para que a disciplina 
não trate as crianças como escravos, mas sim que faça que elas 
sintam sempre a sua liberdade, mas de modo a não ofender a 
dos demais: daí que devam encontrar resistência”126. Ou seja, 
há de se pôr limites à vontade da criança, mas esse limite deve 
vir de uma forma que faça sentido para ela e que venha da 
forma mais natural possível: o limite de sua liberdade está no 
 
125 SP, p.46; Ak, 9:462. 
126 SP, p.50; Ak, 9:464. 
 173 
respeito à liberdade dos demais. Esse limite é algo que ela tem 
de sentir como uma resistência à sua vontade. 
A prática da cultura é aquela na qual o ser humano não é 
visto principalmente em função de sua natureza animal, mas 
sim em função de sua natureza humana. Aqui, Kant insiste, 
mais uma vez, para que se preste atenção à natureza e ao que 
ela pode oferecer em favor do ser humano. Por meio da 
educação física, a criança é levada a se exercitar por si mesma 
para que tenha força, habilidade, rapidez e segurança, o que, 
por sua vez, a ajudará a lidar com situações da natureza que 
lhe são desfavoráveis. No desenvolvimento físico, os jogos 
desempenham um papel fundamental, pois eles “além de 
desenvolver a habilidade, provocam exercício dos sentidos; 
por exemplo, o exercício da visão, ao julgar com exatidão a 
distância, a grandeza e a proporção, ao descobrir posições dos 
lugares do céu com a ajuda do Sol, e assim por diante”127. Os 
jogos também mostram para a criança um pouco da vida em 
sociedade, pois, por meio deles é possível o exercício de não se 
ser inoportuno para com os outros e nem tampouco tirar 
vantagem deles. É preciso, por parte dos adultos, “não 
prejudicá-la em nada, não inspirar noções de comportamento 
que servirão apenas para torná-la acanhada e tímida, ou que, 
ao contrário, lhe sugiram o desejo de se fazer prevalecer”128. 
A prática da civilidade promove habilidades que 
possibilitam ao ser humano atingir os fins que ele quer para si. 
Kant dá como exemplo de habilidade o saber ler e escrever, ter 
condições de praticar alguma arte, como tocar algum 
instrumento. A prática da civilidade forma mais diretamente o 
indivíduo para a vida em sociedade. O indivíduo deve ser 
querido e influente em sua vida social. Isso requer dele o 
hábito da gentileza e da prudência. 
 
127 SP, p.55-56; Ak, 9:467. 
128 SP, p. 58; Ak, 9:469. 
 174 
O último estágio da prática educacional é a da 
moralidade. Essa prática tem a ver com as escolhas que o ser 
humano faz. Nesse estágio do processo educacional, o foco 
não é a habilidade para se alcançar fins, mas a educação para 
que o homem possa escolher fins que possam ser considerados 
bons. Fins bons, diz Kant, são aqueles “necessariamente 
aprovados por todos e podem ser, ao mesmo tempo, os fins de 
cada um”129. Um fim aprovado por todos tem de ter origem 
naquilo que todos os seres racionais têm em comum: a razão 
humana. Um fim bom é um fim determinado pela razão, sem a 
influência de nada sensível. Ter a vontade determinada pela 
razão pura significa recusar a influência que os sentidos têm 
sobre essa mesma vontade, o que gera desprazer. Pela prática 
da moralização vai sendo dada à criança a oportunidade para 
que ela saiba lidar com o desprazer em vista de um bem 
maior. Essa prática possibilita que a criança comece a 
reconhecer que o desprazer inicial acaba resultando num 
sentimento positivo de auto-satisfação, uma vez que ela agiu 
de acordo com um fim bom. Essa prática indica o caminho da 
autodeterminação e da autonomia, pois ser autônomo é fazer 
da lei da razão a sua máxima. Kant diz o seguinte a respeito 
do papel das máximas para o ser humano: 
 
A cultura da moral deve-se fundar sobre máximas, não sobre 
a disciplina. Esta impede os defeitos; aquelas formam a 
maneira de pensar. É preciso proceder de tal forma que a 
criança se acostume a agir segundo máximas e não segundo 
certos motivos. A disciplina não gera senão um hábito, que 
desaparece com os anos. É necessário que a criança aprenda a 
agir segundo certas máximas, cuja equidade ela própria 
distinga. Vê-se facilmente ser difícil desenvolver tal coisa nas 
crianças, e que por isso a cultura moral requer muitos 
conhecimentos por parte dos pais e mestres130. 
 
 
129 SP, p.21; Ak, 9:450. 
130 SP, p. 75; Ak, 9:480. 
 175 
A dificuldade que Kant vê no processo de moralização 
reside no fato de que não basta que a criança, o jovem e o 
adulto sigam as leis da razão pura. É preciso que eles as sigam 
porque escolheram segui-las por elas mesmas e não por 
alguma recompensa que possam usufruir ou por alguma 
punição que possam sofrer. Embora Kant entenda que, em 
certas ocasiões, a criança deva ser punida, quando, por 
exemplo, mente, a educação moral consiste em fazer com que 
a criança aprenda gradativamente a respeitar a lei pela lei, o 
que na verdade representa o respeito pela razão pura. Seguir a 
lei gera, naquele que a segue, o sentimento de 
autocontentamento, resultante do fato de se ter feito o que 
devia ser feito. Esse sentimento, no entanto, não pode ser visto 
como algo análogo à felicidade, pois ele tem de acompanhar 
necessariamente a consciência da virtude131. 
Assim, toda prática da moralização envolve a adoção de 
máximas que determinam o que queremos ser. A adoção de 
uma máxima pressupõe que o ser humano seja capaz de 
pensar por si mesmo e decidir o que ele quer fazer de si. 
Talvez possamos dizer que a educação consiste na passagem 
da inteira dependência de um ser humano, a criança, em 
relação a outro ser humano, o adulto, até a sua independência 
em relação a esse. Daí Kant ter como o objetivo da educação o 
incentivo à prática da autonomia e da autodeterminação. 
 
 
V – A TÍTULO DE CONCLUSÃO 
Pelo tratamento que dá às questões levantadas pelos 
pensadores da modernidade; pelo fato de ter sido professor 
durante toda a sua vida; e, especialmente, pelos conceitos que 
formou no decorrer de sua filosofia crítica, conceitos de razão, 
de natureza humana, de história, de progresso, e 
especialmente, aqueles de liberdade e de autonomia, que 
 
131 CRPr, p. 417; A,211; Ak, 5:117. Virtude para Kant é seguir a lei da razão. 
 176 
possibilitam que a razão humana seja considerada de uma 
forma ampliada, Kant foi um filósofo que contribuiu para o 
reconhecimento do valor e da dignidade que os homens 
podem alcançar por serem racionais. Esses valores, por tudo 
aquilo que trazem consigo, dizem respeito à educação humana 
e ao fim mais importante que ela visa atingir: a formação do 
caráter e a prática da virtude. 
 
 
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 177 
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 178 
 
 
 
 
 
 
 
Capítulo 10 
RROOUUSSSSEEAAUU:: AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOOSS SSEENNTTIIMMEENNTTOOSS 
EE DDAASS VVIIRRTTUUDDEESS 
 
Ericson Falabretti 
 
 Para formar um homem raro o que devemos fazer? 
Muito sem dúvida: impedir que nada seja feito. 
Rousseau 
 
Rousseau abre o Emílio reafirmando um princípio da sua 
filosofia sobre a relação entre cultura e natureza: “Tudo é certo 
em saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas 
mãos do homem” (1992, p. 9). Degenerar, como a sequência do 
texto indica, significa mudar, transformar, desfigurar, moldar 
e, também podemos dizer, educar. Todavia, a educação, como 
a saída do estado de natureza em direção ao estado social, se 
impõe ao indivíduo e à espécie como uma das consequências 
de uma cadeia de relações historicamente estabelecidas: “... e o 
gênero humano, se não mudasse de vida, pereceria” 
(ROUSSEAU, 1978a, p. 31). No Discurso sobre a Desigualdade e 
no Contrato Social, a degeneração está antecipada nas próprias 
coisas e é colocada em curso pela associação entre os 
obstáculos à manutenção da vida e a capacidade própria da 
natureza humana em realizar progressos psicológicos e morais 
como reposta a esses obstáculos. No entanto, isso não significa 
dizer que a sociedade já estava presente no estado de natureza 
ou, mesmo, que no comportamento do homem natural já 
encontramos hábitos e disposições típicas do homem social; 
 179 
mas, tão somente, enuncia a ideia de que a natureza carrega 
em si a possibilidade de uma condição não natural. 
Como na obra política, a educação pública e doméstica, 
nascida das mãos dos homens, é necessária para a 
continuidade da vida, pois a criança não educada – 
abandonada somente aos ensinamentos espontâneos da 
natureza – jamais chegaria a ser um homem: 
 
Nascemos fracos, precisamos de força, nascemos desprovidos 
de tudo, temos necessidade de assistência, nascemos 
estúpidos precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao 
nascer e de que precisamos adultos, é-nos dado pela educação 
(ROUSSEAU, 1992, p. 10). 
 
Educar esse ser fraco e incompleto, na perspectiva de 
Rousseau, pode significar preservar e, ao mesmo tempo, 
transformar. A diferença entre a boa e a má educação, entre a 
boa e a má política, está na combinação desses dois princípios, 
na intervenção, seja coletiva ou individual, que coloca em 
curso um processo ambíguo com finalidades antitéticas: 
mudar para conservar ou para desfigurar. Mas conservar 
exatamente o quê? Mudar para qual direção? Na perspectiva 
rousseauniana, não apenas a vida, mas certo estilo ou 
princípio de vida precisa ser conservado e orientado para o 
seu fim. 
Para suprir a necessidade de continuidade de vida não é 
preciso transformar o homem retirando-o do seu curso 
natural. Seja na política ou na educação, tudo deve começar 
pela compreensão da natureza e pelo entendimento do 
homem: “Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana” 
(ROUSSEAU, 1992, p. 16). O pacto social deve garantir os 
direitos naturais – liberdade e igualdade – e a educação deve 
permitir que a criança passe à condição de homem, realizando 
as virtudes que estão previamente dadas na sua natureza. 
Desse modo, Rousseau, no Emílio, retoma o sentido de 
perfectibilidade como abertura e potência, conceito chave da 
 180 
antropologia e da teoria da história construída no Discurso 
sobre a Desigualdade. O estudo da antropologia deve guiar a 
educação e a política, pois é fundamental conhecer os homens 
para educá-los e para determinar os seus direitos. No Segundo 
Discurso, Rousseau estabeleceu que no homem, somente no 
homem, podemos encontrar a liberdade e a perfectibilidade, 
marcas essenciais da natureza humana. Diferente dos animais, 
o homem pode se desviar do caminho traçado pela natureza 
ou pelo hábito, responder livremente, por exemplo, diante de 
uma situação qualquer e escolher um comportamento inédito 
e inesperado. Enquanto o animal age por instinto, o homem 
age por vontade, pode aprender com o meio e modificar o seu 
comportamento, desviando-se do caminho traçado pela 
natureza. Essa potência inventiva e adaptativa, exclusiva da 
natureza humana, é o que em Rousseau podemos denominar 
perfectibilidade: “É a faculdade que, com o auxílio das 
circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se 
encontra em nós, tanto na espécie quanto no indivíduo” 
(ROUSSEAU, 1978c, p. 243). Desse modo, para educar um 
homem, é preciso conhecer a natureza humana e entender até 
onde ele pode progredir sem deixar o seu centro natural, isto 
é, mudar de acordo com o que já está previamente dado como 
possibilidade, realizar a face virtuosa da sua perfectibilidade. 
Assim, a educação proposta por Rousseau não objetiva a 
invenção ou a transformação do homem em função de um 
modelo social ou metafísico; ao contrário, a boa educação deve 
permitir que o homem amadureça – tal como ocorre com as 
plantas - conforme a inclinação e as leis da sua própria ordem 
genuína. Nesse sentido, é preciso harmonizar o tempo da 
educação à lógica da própria natureza: “Observai a natureza e 
segui o caminho que ela vos indica” (ROUSSEAU, 1992, p. 22). 
No Livro I do Emílio, Rousseau apresenta como deve ser 
a educação de uma criança na sua primeira fase da vida, do 
nascimento aos dois anos de idade, e estabelece um princípio 
para guiar todo o processo de educação pensado para o 
 181 
Emílio132 até a fase adulta: a liberdade. Rousseau quer atacar 
os preconceitos, os medos, as superstições e manias colocadas 
em prática na educação tradicional: “Trata-se de impedi-la de 
morrer que de fazê-la viver” (ROUSSEAU, 1992, p. 16). Com 
receio de acidentes e de uma morte prematura - como aquelas 
provocadas por quedas – ou incomodados pelo exercício 
ingênuo da liberdade infantil, o costume das mães e dos 
médicos era enfaixar as crianças como se fossem múmias. Na 
perspectiva de Rousseau, estamos diante de uma práticausual 
que fornece um importante elemento significativo do sentido 
da educação, não apenas para o corpo como, também, para o 
espírito: a dependência. Por isso, o maior problema, desde o 
início, não está em descobrir os cuidados mais importantes 
que devem ser dedicados à criança, para isso basta seguir a 
natureza e deixar a criança livre, nesse caso, literalmente solta. 
Nessa primeira fase, mais do que as crianças, são os pais, as 
amas, os médicos, os preceptores que devem ser vigiados e 
combatidos, isto é, educados. A criança é frágil e os cuidados 
para garantir a sua vida são aqueles solicitados pelo próprio 
corpo. A alimentação, por exemplo, não deve estragar o 
paladar, enfraquecer o físico e, por isso mesmo, deve ser a 
mais natural possível. Rousseau, falando principalmente para 
as mulheres nobres e burguesas, discute como as mulheres 
fundam o vínculo inicial com seus filhos, não recusando o 
primeiro ato que faz de uma mulher uma verdadeira mãe: a 
amamentação. E, nessa mesma direção, totalmente diferente 
dos preceitos da época, é a liberdade do corpo, dos 
movimentos que deve ser preservada e garantida para que o 
desenvolvimento físico e motor não sejam comprometidos: 
 
Toda a nossa sabedoria consiste em preconceitos servis; todos 
os nossos usos não são senão sujeição, embaraço e 
constrangimento. O homem civil nasce, vive e morre na 
 
132 Utilizamos a palavra Emílio, em itálico, para designar a obra de Rousseau, e Emílio, 
sem itálico, para as referências ao personagem da obra. [Nota do organizador]. 
 182 
escravidão; ao nascer, envolvem-no em um cueiro; ao morrer, 
encerram-no em um caixão; enquanto conserva sua figura 
humana está acorrentado às nossas instituições (ROUSSEAU, 
1992, p. 17). 
 
Esses preceitos de uma má-educação, antes de serem 
descritos no Emílio, encontram a sua expressão política no 
Discurso Sobre as Ciências e as Artes. Na sua primeira obra, 
Rousseau critica o sistema de educação responsável por 
perverter o espírito e enfraquecer o corpo e, o mais 
importante, constata que esse processo de corrupção é uma 
imposição das relações de poder – hábitos, instituições 
políticas e sociais – historicamente estabelecidas. Em nossa 
sociedade, a educação, enquanto um fenômeno de cultura, 
atende somente à cultura e à sociedade, não ao homem: 
“Vossos filhos ignoram a própria língua, mas falarão outras 
que em lugar algum se usam: saberão compor versos que 
dificilmente compreenderão; sem saber distinguir o erro da 
verdade...” (ROUSSEAU, 1978d, p. 347). 
No caso do homem social, a educação está intimamente 
associada ao processo histórico de relações de dependência e 
alienação. Educar, no contexto da história factual descrita no 
primeiro Discurso, significa valorativamente conduzir mal, 
degenerar para transformar contra a natureza. Semelhante ao 
papel desempenhado pelas letras e pelas artes, a educação faz 
com que os homens amem a sua condição de escravos. Cria, 
para tanto, a uniformidade do gosto, o conformismo estético e 
molda a conduta moral no decoro e nas regras de polidez: “Se 
a cultura das ciências é prejudicial às qualidades guerreiras, 
ainda o é mais às qualidades morais. Já desde os primeiros 
anos, uma educação insensata orna nosso espírito e corrompe 
nosso julgamento” (ROUSSEAU, 1978d, p. 347). Na avaliação 
de Rousseau, essa má condução se realiza integralmente como 
um processo de desnaturação, que faz com que os homens 
adquiram a condição de civilizados: viver em função da 
 183 
aparência, do reconhecimento público. Portanto, como está 
descrito no Discurso sobre as ciências e as artes, a educação assim 
como as ciências e as letras, sempre servindo aos interesses do 
poder político, suplantam a natureza para instaurar e 
conservar os homens obedientes a uma ordem e condição 
artificiais: “Temos físicos, geômetras, químicos, astrônomos, 
poetas, músicos, pintores; não temos mais cidadãos ou, se nos 
restam alguns deles dispersos pelos nossos campos 
abandonados, lá perecem indigentes e desprezados” 
(ROUSSEAU, 1978d, p. 348). 
Como resposta a esse processo de alienação, ao desprezo 
pelas virtudes e pelo cidadão, encontramos em Rousseau as 
alternativas da obra política e da educação articuladas em 
torno de duas perspectivas que já adiantamos: a transformação 
e a preservação. 
Com o Contrato Social, temos a formação de uma ordem 
civil que oferece aos homens a condição de viverem em 
sociedade conservando, do ponto de vista do direito político, 
as mesmas relações que dispunham no estado de natureza. No 
entanto, paradoxalmente, para realizar o pacto social os 
homens devem ser desnaturados. Para formar uma sociedade 
de homens livres, sob o governo da vontade geral, não servem 
nem os selvagens e, muito menos, os homens policiados 
acostumados ao gosto da servidão. É fundamental romper 
radicalmente com o estado de natureza – transformar as 
condições de vida - para que o pacto social possa garantir – 
preservar – os direitos naturais. Assim, é a própria condição 
do cidadão - autônomo sem ser selvagem - juntamente com os 
princípios do direito político, que determinam como deve ser a 
educação no interior de um estado legítimo: desnaturar o 
homem para preservar os seus direitos. 
 
Aquele que, na ordem civil, deseja conservar a primazia da 
natureza, não sabe o que quer. Sempre em contradição 
consigo mesmo, hesitando entre as suas inclinações e os seus 
 184 
deveres, nunca será nem homem nem cidadão; não será bom 
nem para si nem para outrem. Será um dos homens de nossos 
dias, um francês, um inglês, um burguês; não será nada 
(ROUSSEAU, 1992, p. 13). 
 
Essa lógica ambígua do pensamento rousseauniano – 
transformar para preservar - não parece nada estranha, seja no 
interior do Contrato Social ou mesmo como resultado de uma 
sociedade corrompida. Nesse último caso, a nossa própria 
experiência testemunha os prejuízos à liberdade que resultam 
do nosso sistema educacional. Nesse aspecto, como já 
indicamos na análise acerca do Discurso sobre as Ciências e as 
Artes, a educação forma o homem sempre em função dos 
interesses da sociedade politicamente estabelecida: “Tais 
foram os antigos persas, nação singular no seio da qual se 
apreendia a virtude, como entre nós se aprende a ciência” 
(ROUSSEAU, 1978d, p. 338). Na dimensão do Contrato Social, 
podemos dizer, a desnaturação é necessária e boa. Já para a 
sociedade de fato – constituída historicamente – ela é 
instrumento do poder – de dominação – e se caracteriza como 
meio de degeneração: “Se nossas ciências são inúteis no objeto 
que se propõem, são ainda mais perigosas pelos efeitos que 
produzem” (ROUSSEAU, 1978d, p. 343). 
Mas, então, podemos nos perguntar: fora do Contrato 
Social estamos condenados a uma educação alienante? Na 
sociedade forjada historicamente é possível uma boa educação 
que respeite a condição essencial do homem, a sua autonomia? 
Ainda mais: quando a possibilidade de uma boa educação, no 
interior dessa sociedade ilegítima, também deve desnaturar? 
De imediato, podemos dizer sim para as duas primeiras 
questões. Primeiro, porque não há espaço na sociedade para 
que o homem se comporte conforme os seus impulsos 
naturais. Isso significaria a ruína do homem e, ainda, do 
próprio liame social. Depois, a ordem social supõe um homem 
social, não tem sentido lógico pensar em constituir uma 
 185 
sociedade para selvagens ou, ainda, educar um homem para 
ser um selvagem. Mas, então, como desnaturar o homem sem 
fazê-lo perder a sua autonomia? Esse, sem dúvida alguma, é o 
problema fundamental com que a obra Emílio se depara. Como 
educar o Emílio para o mundo e, ainda, conservá-lo livre? 
O caminho indicado por Rousseau supõe uma opção 
pela educação doméstica ou privada. Primeiro, é preciso 
considerar que a educação pública, no sentido que 
encontramos na República de Platão, somente seria indicada se 
ainda pudéssemos contar com cidadãos e com pátria, masessas palavras, como diz Rousseau (1992, p. 14), “devem ser 
riscadas das línguas modernas”. Depois – retomando a mesma 
perspectiva crítica construída no primeiro Discurso – todas as 
instituições educacionais abertas ou públicas, sempre 
colaborando com o espírito de sociabilidade da modernidade, 
“somente servem para fazer homens de duas caras, parecendo 
sempre tudo subordinar aos outros e não subordinando nada 
senão a si mesmos” (ROUSSEAU,1992, p. 14). 
Mas, então, em que consiste essa educação doméstica? E 
como, de modo geral, ela pode responder positivamente às 
exigências de autonomia e transparência numa sociedade que 
recusa essas condições aos seus cidadãos? 
O princípio geral da educação doméstica, 
completamente contrário à direção formativa da educação 
pública, está orientado para a conservação da liberdade e da 
autonomia natural como modelo do homem a ser formado: “O 
homem deve ser educado para si mesmo” (ROUSSEAU, 1992, 
p. 23). O que significa isso? Ao enunciar esse princípio – “ser 
educado para si mesmo” – Rousseau, nesse caso, não estaria 
reproduzindo os valores e as orientações de uma educação 
individualista, muito próxima, por exemplo, ao modelo de 
educação burguesa? Toda nossa educação aberta – 
institucional - está fundada na realização de um projeto de 
vida individual, porém sem qualquer fundamento com a nossa 
subjetividade, com a realização de um homem autônomo, pois 
 186 
esse projeto está estruturado em um arquétipo exterior, em um 
modelo de homem construído pela sociedade. Desde a 
infância, somos educados para sermos professores, médicos, 
engenheiros, políticos ou, até mesmo, para sermos nada. O 
que importa nesse processo massificante é ser capaz de 
atender ao chamado pré-determinado dos pais ou da 
sociedade e, desse modo, constituir uma carreira, ou, ainda, 
realizar um projeto que, em última instância, se sobrepõe à 
nossa condição existencial originária e aos nossos verdadeiros 
interesses. Ao criticar a educação, Rousseau (nós podemos 
generalizar a sua análise) identifica uma crise que se revela 
moral. Esse projeto individualista que conduz a educação 
significa, entre outras coisas, desaparecimento da virtude e da 
vontade originária do sujeito. A opção por essa educação 
pública burguesa, individualista e massificante, é a opção pela 
não virtude e, além disso, pela supressão de uma vida guiada 
pela própria vontade: 
 
Na ordem social onde todos os lugares estão marcados, cada 
um deve ser educado para o seu. Se um indivíduo, formado 
para o seu, dele sai, para nada mais serve. A educação só é útil 
na medida em que a carreira acorde com a vocação dos pais; 
em qualquer outro caso ela é nociva ao aluno, nem que seja 
apenas em virtude dos preceitos que lhe dá. No Egito, onde o 
filho era obrigado a abraçar a profissão do pai, a educação 
tinha, pelo menos, um fim certo. Mas entre nós, quando 
somente as situações existem e os homens mudam sem cessar 
de estado, ninguém sabe se, educando o filho para o seu, não 
trabalha contra ele (ROUSSEAU, 1992, p. 15). 
 
No sentido contrário desse processo dominante, ser 
educado para si mesmo significa, na perspectiva 
rousseauniana da educação doméstica, atender ao chamado da 
natureza: apreender a viver, isto é, apreender a guiar a vida 
em função daquelas virtudes reconhecidas no homem antes do 
processo de corrupção e degeneração suplantá-las. No Emílio, 
Rousseau pensa a educação a partir de virtudes 
 187 
complementares e inseparáveis presentes no homem natural: 
resignação, autodeterminação, transparência e 
reconhecimento. Primeiro, ser virtuosamente instruído – 
educado – é verdadeiramente apreender a viver. Nesse 
sentido, antes de ser formado para seguir uma determinada 
profissão, antes de apreender as virtudes cívicas, Emílio, como 
todo aluno, deve conhecer a sua própria natureza – o corpo e o 
espírito – e os deveres e sentimentos necessários para se 
conservar na condição de homem: 
 
Na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação 
comum é o estado de homem (...) Que se destine meu aluno à 
carreira militar, à eclesiástica ou à advocacia pouco importa. 
Antes da vocação dos pais, a natureza chama-o para a vida 
humana. Viver é o ofício que lhe quero ensinar (ROUSSEAU, 
1992, p. 15). 
 
Na perspectiva da pedagogia rousseauniana, 
apreendemos a viver quando não saímos do curso na natureza 
e, sobretudo, quando elevamos a autodeterminação ao seu 
grau mais extremo: a nossa felicidade independe de tudo o 
que nos é estranho. É preciso considerar que fora do estado de 
natureza ou do contrato social quase não há possibilidade de 
autodeterminação, ou somos educados para reproduzir o 
mesmo estilo de vida – agradar aos outros – e, nesse caso, 
integramos o “rebanho chamado sociedade” ou, ao contrário, 
resistimos à corrupção e nos tornamos anômalos em relação 
aos homens em sociedade. Aí está o grande problema a ser 
enfrentado pelo preceptor do Emílio: como se conservar, 
apreender a viver – ser chamado a si mesmo – e, ao mesmo 
tempo, viver em sociedade e interagir com os homens? Emílio 
viverá numa sociedade real, obedecerá às leis do Estado e, 
inevitavelmente, se entregará ao convívio social. Apreender a 
aceitar que a vida é dolorosa, triste e solitária é seu primeiro 
desafio, é o passo inicial para ser educado como homem e a 
viver em si mesmo: 
 188 
 
O destino do homem é sofrer em qualquer época. O próprio 
cuidado da sua conservação está ligado à dor. Felizes os que 
só conhecem na infância os males físicos, males bem menos 
cruéis, bem menos dolorosos do que os outros e que bem mais 
raramente do que eles nos fazem renunciar à vida! Ninguém 
se mata com dores de gota; somente as da alma suscitam o 
desespero. Temos dó da sorte da infância, mas é da nossa que 
deveríamos ter. Nossos maiores males vêm de nós mesmos 
(ROUSSEAU, 1992, p. 23). 
 
Depois de ser educado para aprender a sofrer, para 
aceitar que mesmo sendo bom dificilmente será feliz, um 
desafio ainda maior será saber viver entre os homens sociáveis 
sem, contudo, reconhecer-se neles. O Emílio deve ser solidário 
e, ao mesmo tempo, independente. Nesse sentido, se ele 
precisa ser educado para suportar as agruras da vida, também 
deve evitar sucumbir aos maiores vícios que nascem do 
próprio sujeito e, de certa forma, não deixam de ter relação 
direta com a miserabilidade da vida: o medo da morte e da 
dor. Mas quais seriam esses males descendentes diretos da 
consciência da morte e do medo da dor? Na perspectiva da 
pedagogia rousseauniana, o amor próprio e a indiferença estão 
na origem dos vícios e das falsas virtudes sociais e devem o 
seu nascimento principalmente às nossas fraquezas e aos 
nossos medos. Depois de ensinar ao Emílio que o sofrimento é 
inevitável, combater o amor próprio e a indiferença, 
sentimentos que formam a alma e o caráter do homem social, 
é, sem dúvida alguma, o principal desafio da pedagogia 
rousseauniana. 
 No segundo Discurso e no Ensaio sobre a origem das 
línguas, Rousseau concebe, no homem selvagem, dois preceitos 
que governam o seu comportamento e que são anteriores à 
razão; um referente à autodefesa (que interessa somente à 
preservação do indivíduo) e outro definido como piedade. 
Com isso, Rousseau tematiza como o comportamento do 
 189 
homem selvagem era imediato, e ao mesmo tempo, com a 
definição de piedade (atributo que confere ao homem 
selvagem a disponibilidade de agir com violência somente 
quando está em jogo a sua sobrevivência), procura refutar 
todos aqueles filósofos, como Aristóteles, por exemplo, que 
confundiram, na interpretação de Rousseau, o homem 
selvagem com o homem social. A sociabilidade para Rousseau, 
como já adiantamos no início desse texto, não está de modo 
algum inscrita na natureza humana como pensava Aristóteles: 
pois se, por um lado, a piedade conduz o homem em direção a 
outro semelhante, por outro lado, o sentimento de autodefesa, 
para equilibrar, insiste em afastá-lo. A piedade funciona como 
umaespécie de paixão reguladora, normatizadora do 
sentimento de autodefesa, impedindo, desse modo, que o 
homem selvagem seja tomado por uma individualidade sem 
limites, guiado unicamente por um sentimento egoísta, 
suscetível de cometer atos de violência gratuitos, como no 
estado de natureza que Rousseau entendeu ser aquele que 
Hobbes defendia em suas obras: “Hobbes pretende que o 
homem é naturalmente intrépido e não procura senão atacar e 
combater” (ROUSSEAU, 1978c, p. 239). No Ensaio sobre a 
origem das línguas, Rousseau nos apresenta a ideia de que um 
homem, para realmente entender a natureza dos seus 
sentimentos e das paixões que se passam no seu interior, 
precisa travar contatos com outros homens. O próprio 
desenvolvimento das paixões, da piedade natural, por 
exemplo, pressupõe uma relação de proximidade entre os 
homens. Não é a piedade natural, descrita no segundo 
Discurso e no Ensaio, aquele sentimento que - ao contrário da 
piedade característica dos homens civilizados, que consiste em 
separá-los - nasce no selvagem de uma relação de identidade 
com o seu semelhante? Relação que o impede, sobretudo, de 
ser agressivo com outro homem, não por temer vingança, 
represálias ou, ainda, por algum imperativo moral que 
abomine a violência. Mas, fundamentalmente, a piedade 
 190 
natural conduz esse homem a sair de si, a se colocar no lugar 
do outro e, nesse instante, a compreender, em primeiro lugar, 
o significado e as consequências da violência para o outro. 
Somente, então, depois de se colocar no lugar do outro, depois 
de experimentar o sentimento de identidade, o homem natural 
era capaz de formar a ideia do que é um ato de agressão em si 
mesmo. Nesse sentido, uma das condições essenciais para que 
o sujeito possa realmente conhecer os seus estados subjetivos, 
formar novas ideias e sentimentos é que ele já tenha observado 
e comparado estados semelhantes em outros homens. 
 
Como nos deixamos emocionar pela piedade? Transportando-
nos para fora de nós mesmos, identificando-nos com o 
sofredor. Só sofremos enquanto pensamos que ele sofre; não é 
em nós, mas nele que sofremos. Figuremo-nos quanto de 
conhecimentos adquiridos supõe tal transposição. Como 
poderia eu imaginar males dos quais não formo ideia alguma? 
Como poderia sofrer vendo outro sofrer, se nem soubesse que 
ele sofre? Se ignoro o que existe de comum entre ele e mim? 
Aquele que nunca refletiu, não pode ser clemente, justo, ou 
piedoso, nem tampouco mau e vingativo. Quem nada imagina 
não sente mais do que a si mesmo: encontra-se só no meio do 
gênero humano (ROUSSEAU, 1978b, p. 175). 
 
A piedade natural é, sobretudo, reconhecimento, 
transparência, negação da indiferença. No homem natural o 
que impera é o equilíbrio entre o amor de si e a visão do outro. 
No segundo Discurso, a piedade natural se explica, conforme 
as palavras de Rousseau, pela seguinte máxima: “Procure o 
teu bem causando o menor mal possível e outrem” 
(ROUSSEAU, 1978c, p. 254) 
É a experiência da piedade natural que deve ser 
preservada pela educação, esse sentimento inato e anterior a 
todo ato de reflexão, capaz de espontaneamente produzir no 
homem uma aversão de ver sofrer dor ou morte, qualquer 
outro ser sensível, sobretudo quando se trata de um 
semelhante. Desse modo, no livro IV do Emílio, Rousseau 
 191 
retoma a piedade como sentimento moral que deve reforçar os 
laços entre os homens civilizados, verdadeiro antídoto contra 
o individualismo e o amor próprio, sentimentos reforçados 
pelo projeto individualista da educação pública historicamente 
estabelecida: 
 
Em uma palavra, ensinai a vosso aluno a amar todos os 
homens, inclusive os que os desdenham; fazei com que ele não 
se coloque em nenhuma classe, mas que se encontre em todas; 
falai diante dele, e com ternura, do gênero humano, com 
piedade até, mas nunca com desprezo. Homem, não desonres 
o homem (ROUSSEAU, 1992, p. 253). 
 
A piedade, independente do fundamento no estado 
natural, na sociedade depende de uma educação adequada 
dos nossos sentimentos, seja através da razão ou da 
imaginação. No Emílio, Rousseau quer dar continuidade a esse 
sentimento inato, pois a piedade, agora pensada na educação 
do homem social, converte-se, primeiro, na consciência de que 
o sofrimento domina a vida social e, depois, produz em nós o 
sentimento de vergonha da ausência de resposta. Para existir a 
piedade, no contexto de fato pensado no Emílio, não se 
depende de uma sociedade livre e constituída de homens 
transparentes. No Emílio, ela é uma alternativa ao projeto da 
vontade geral e constitui o elo natural entre as pessoas que não 
realizaram nenhum pacto. É o liame mudo – não dito, não 
pactuado – instituído pela própria natureza, agora reforçado 
pela educação. É o sentimento que torna possível estabelecer 
relações de reconhecimento numa sociedade orientada para a 
indiferença. Ao atribuir à piedade essa força de aproximação e 
transparência, Rousseau encontra um aspecto novo na política, 
agora distinto das operações de direito. No Emílio, a piedade é 
o fator mais importante de aliança entre as pessoas, o único 
sentimento que torna possíveis as relações cooperativas e 
benévolas entre os homens em escala individual e social. Pois 
ela permite aos homens encontrar uma base segura para si 
 192 
mesmos na vida: o reconhecimento. Não é, portanto, o direito 
e, por consequência, não é o Estado que produz a justiça, mas 
um sentimento que deve ser desenvolvido pela educação. 
Apesar de ser inata, a piedade, fundamentalmente na 
sociedade, não é espontânea, é preciso ser cultivada, 
precisamos ser educados para a compaixão. Nesse sentido, 
antes de tudo, é preciso discutir como a piedade opera no 
homem: combatendo o amor próprio e restaurando o 
equilíbrio e, finalmente, aproximando os homens. 
Primeiro, a piedade natural não apenas combate os 
ímpetos egoístas do amor-próprio, mas garante a continuidade 
do equilíbrio pela oposição das paixões: o amor de si e a 
piedade. O amor de si é uma paixão primitiva, que nunca deixa 
o homem, fonte de todas as outras; visa antes de tudo garantir 
a própria conservação; mas inclina-se para o outro; satisfaz-se 
quando as necessidades estão saciadas. O amor de si é o 
sentimento do querer, a boa intenção é a base desse amor que 
não separa o ato de realizar o bem do sentimento de querer o 
bem: “O que nos serve, nós o procuramos; mas o que nos quer 
servir, nós o amamos. O que nos prejudica nós evitamos; mas 
o que nos quer prejudicar nós o odiamos” (ROUSSEAU, 1992, 
p. 236). Já o amor próprio, nascido dos nossos vícios, fonte de 
conflitos, é integralmente egoísta e está na origem das paixões 
“odientas e irascíveis”: a inveja e a necessidade de honra 
desmedida. O amor próprio não opera com o reconhecimento, 
mas com a comparação; exige sempre do outro preferência e 
distinção. O amor próprio é o sentimento da aparência, da 
vida social, da honra etc. 
Diferente do amor próprio, a piedade está na origem de 
todos os sentimentos que aproximam as pessoas. É natural, 
por exemplo, que uma pessoa ajudada sinta gratidão por 
quem a ajudou. A gratidão, nesse caso, é apreciação, avaliação 
e valoração do outro. Quem ajuda, sente compaixão, apreende 
que tem valor, assim como aquele que é ajudado: 
 193 
reciprocidade de valoração, o amor de si se realiza na 
compaixão pelo outro. 
Para manter o equilíbrio entre a piedade e o amor de si é 
preciso, através da educação, primeiro na criança, conservar a 
sua disposição natural para a piedade: “o primeiro sentimento 
de uma criança é amar a si mesma; o segundo é amar aos que 
dela se aproximam” (ROUSSEAU, 1992, p. 236). Depois, no 
caso do adolescente, é preciso educá-lo para o reconhecimento 
do outro, ampliando a sua ideia de sofrimento: “Aos dezesseis 
anos o adolescente sabe o que é sofrer [...] mal sabe, porém, 
que os outros seres também sofrem” (ROUSSEAU, 1992, p. 
248). Portanto, a piedade nasce da consciência da semelhança e 
do sofrimento, é a saída desi mesmo; é a identificação com o 
outro: 
 
Com efeito, como nos comoveremos até a piedade, senão em 
nos transportando para fora de nós mesmos e nos 
identificando com o animal sofredor, abandonando, por assim 
dizer, nosso ser para pegar o dele? Nós só sofremos na 
medida em que julgamos que ele sofre; não em nós é nele que 
sofremos (ROUSSEAU, 1992, p. 249). 
 
No Emílio, Rousseau pensa a educação a partir de um 
ponto de vista restritivo. É preciso que o progresso do Emílio 
se conforme aos limites da espécie e das paixões naturais. Ser 
instruído – educado - verdadeiramente é aprender a suportar 
os bens e os males desta vida sem se curvar, conservando-se 
autônomo. O Emílio é educado fora do Contrato Social, 
cercado de pessoas egoístas, dissimuladas e corrompidas nas 
suas vontades, ele deve se constituir em um ser moral que, ao 
mesmo tempo, preserve a sua autonomia e se permita viver 
entre essas mesmas pessoas. Quando pensamos na piedade, o 
maior desafio enfrentado pelo Emílio, portanto, num sentido 
contrário do cidadão que aderiu ao Contrato Social, é se 
conservar e aprender a viver entre os homens como um 
cidadão livre e, ao mesmo tempo, realizar o estilo de vida dos 
 194 
homens do seu tempo - casar por exemplo – e participar 
politicamente da vida de seu país. 
No livro quinto do Emílio, parte final da obra, Rousseau 
debate esse problema de maneira muito pontual. Após viajar 
por diversas nações, aprender as línguas mais faladas na 
Europa, apreciar espetáculos e obras de arte, conhecer 
diferentes costumes e sistemas de governo, Emílio responde 
ao seu preceptor o que aprenderá, o que fixará dessa etapa 
necessária do seu processo de educação. Primeiro, responde 
indicando uma espécie de inação política: “Parece-me que 
para se tornar livre nada se tem que fazer; basta não deixar de 
sê-lo” (ROUSSEAU, 1992, p. 570). Depois, na mesma linha, 
manifestando um sentimento de letargia diante dos bens 
materiais e do próprio futuro, diz ao seu mestre: “Que farei 
com a minha fortuna? [...] Não me atormentarei para retê-la, 
mas ficarei firmemente no meu lugar” (ROUSSEAU, 1992, p. 
570). Finalmente, decepcionado com o mundo que conheceu 
de perto em sua diversidade, Emílio expressa a liberdade 
como conformismo, apatia, aceitação diante do próprio 
destino: “Que me importa a minha condição na terra? Que me 
importa onde esteja?” (ROUSSEAU, 1992, p. 570). 
A esse “desinteresse extremado” - novamente é o 
problema da indiferença que está em causa - nascido da 
decepção com os costumes dos homens e com as sociedades e 
governos, Rousseau contrapõe o apelo à consciência das leis 
naturais, verdadeiros princípios de ordem e de moral que 
“servem de lei positiva para o sábio” (ROUSSEAU, 1992, p. 
571). Emílio realmente não encontrou essas leis em nenhuma 
forma governo ou sociedade que visitou, pois elas não 
dependem de convenções, mas estão, como Rousseau quer 
finalmente ensinar ao Emílio, “no coração do homem livre, ele 
as carrega por toda parte consigo” (ROUSSEAU, 1992, p. 571). 
Um homem virtuoso, que conserva em si mesmo intactos a 
paixão da piedade e o sentimento de liberdade, recusa a 
inação política e o projeto de uma vida consagrada unicamente 
 195 
aos seus interesses privados. O homem virtuoso é capaz de 
reconhecer e encontrar nas leis positivas e nos costumes, 
mesmo entre o caos e a injustiça, princípios de justiça e ordem: 
“A simples aparência de ordem leva-o a conhecê-la e amá-la 
[...] Não é verdade que não tire nenhum proveito das leis, elas 
lhe dão a coragem de ser justo entre os maus [...] Não digas 
portanto: que me importa onde esteja? Importa estares onde 
podes cumprir teus deveres” (ROUSSEAU, 1992, p. 572). 
O Emílio e o cidadão do Contrato Social, semelhante ao 
selvagem, devem ser auto-suficientes e solitários; devem 
cultivar o amor de si e a piedade; devem participar das 
assembleias púbicas e, mesmo assim, votar com a própria 
consciência, devem reconhecer, amar e reforçar na própria 
pátria as virtudes cívicas que se escondem sob o espesso 
manto da corrupção e da aparência. 
O dilema do Emílio se converteu no drama do próprio 
Rousseau. Na sua narrativa autobiográfica dos Devaneios de um 
caminhante solitário, é o princípio de educação do Emílio – 
piedade e resignação - e a sua condição de vida – a solidão – 
que animam o texto da primeira à última página. A resignação 
e a piedade – apreender a aceitar os males da vida e a amar a 
humanidade – são os sentimentos de um homem livre capaz 
de reconhecer a sua natureza, ainda que desfigurada pela 
história e pelas convenções: 
 
Teria amado os homens a despeito deles próprios. Cessando 
de sê-lo, não puderam senão furtar-se ao meu afeto. Ei-los, 
portanto, estranhos, desconhecidos, inexistentes enfim para 
mim, visto que o quiseram. Mas eu, afastado de tudo e de 
todos, que sou eu mesmo? (ROUSSEAU, 1986, p. 23). 
 
Na busca do autoconhecimento – educação para si 
mesmo - é impossível para o sujeito não reconhecer a oposição 
de um jogo de forças que moldam o seu comportamento, a sua 
disposição moral. A autonomia, nesse caso, não remete mais a 
uma unidade, mas ao reconhecimento de uma divisão que 
 196 
opõe a força das normas do instinto moral diante dos 
imperativos ditados pela sociabilidade. 
O rompimento como a unidade histórica, a tentativa de 
resgate da unidade essencial perdida supõe uma nova 
pedagogia. A autonomia, no Emílio encontra, enfim, o seu 
lugar na educação dos sentimentos, no cultivo do 
deslocamento do eu em direção ao outro. Na obra Emílio 
Rousseau segue, de certo modo, a estrutura argumentativa do 
segundo Discurso. Como o homem natural, o Emílio – o 
educando – está fora do tempo, não tem pai, não tem mãe, é o 
modelo universal da criança, não representa nenhuma criança 
singularmente, representa a criança em essência. Nesse caso, é 
a criança antes da corrupção dos costumes e da educação: é 
preciso, pois, “considerar nosso aluno o homem abstrato, o 
homem exposto a todos os acidentes da vida humana” 
(ROUSSEAU, 1992, p. 16). 
A educação rousseauniana tem como desafio preparar a 
criança para viver em sociedade, cumprir os seus deveres de 
cidadão e, ao mesmo tempo, conservar-se livre. Nesse sentido, 
o Emílio deve ser educado para ser um sábio, no entanto, 
totalmente distinto da forma corrompida do sábio, aquele com 
respostas para todas as dúvidas. O Emílio tem mais perguntas 
do que respostas, ele é educado com vistas ao autodomínio, à 
compreensão do sentido aberto do seu tempo e da vida dos 
seus semelhantes. Outro ponto, que explica essa condição de 
sábio, é que o Emílio, desde a sua infância, não é visto como 
aluno, mas como discípulo da natureza. O Emílio não está 
diante de um professor, mas de um mestre que é, como ele 
próprio, abstrato e impessoal. O professor trabalha com um 
conjunto de conteúdos que precisam ser apreendidos pelo 
aluno num determinado tempo. O mestre está sempre voltado 
para o próprio discípulo, para a realização de uma essência: no 
caso do Emílio, para a formação do homem e do cidadão. A 
pedagogia rousseauniana, portanto, enquanto educação dos 
sentimentos e das virtudes, procura unir o que a história 
 197 
separou: cultura e natureza. No Emílio, Rousseau aponta para 
uma pedagogia que busca o desenvolvimento de um homem 
que permanece ligado ao seu centro natural para continuar a 
ser, verdadeiramente, um homem. 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 
1978a. 
 
_______. Ensaio sobre a origem das línguas. São Paulo: Abril Cultural, 
1978b. 
 
_______. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre 
os homens. São Paulo: Abril Cultural, 1978c. 
 
_______. Discurso sobre as ciências e as artes. São Paulo: Abril Cultural, 
1978d. 
 
_______. Considerações sobre o governo da Polônia e sua reforma 
projetada. São Paulo: Brasiliense, 1982. 
 
_______. Os Devaneios de um caminhante solitário. Brasília: Editora da 
Universidade deBrasília, 1986. 
 
_______. Emílio ou da Educação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992. 
 
_______. Carta a D’Alembert. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. 
 
_______. Júlia ou a nova Heloísa. Campinas: Editoras da Universidade de 
Brasília e da Unicamp, 1994. 
 
 198 
 
 
 
 
 
 
 
Capítulo 11 
HHEEGGEELL,, HHIISSTTÓÓRRIIAA DDAA FFIILLOOSSOOFFIIAA EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO 
 
Luiz Fernando Barrére Martin 
 
Desde a publicação de suas primeiras obras, Hegel já 
demonstra preocupação com o papel da história da filosofia 
para a filosofia. A solução hegeliana para a relação da filosofia 
com sua história trará como consequência um certo modo de 
considerar o estudo da história da filosofia e, além disso, seu 
ensino. Dessa perspectiva, surgem questões como a seguinte: 
de que maneira se deve ler um filósofo? Qual a relevância 
efetiva da história da filosofia para a filosofia? O estudo da 
história da filosofia consistiria numa abdicação da própria 
filosofia? Teria apenas um caráter de erudição o conhecimento 
e o estudo da história da filosofia? 
Questões como essas podem ser feitas quando 
pretendemos debater a respeito do papel da história da 
filosofia para a filosofia e, além disso, que espécie de ensino da 
filosofia podemos esperar a partir dessa relação. Hegel pode 
ser considerado talvez o primeiro filósofo a explicitamente se 
referir a esse relacionamento da filosofia com sua história de 
maneira positiva. Dessa maneira, o passado da filosofia 
começa, segundo Hegel, a ter relevância para a filosofia. 
O que buscamos tão somente neste estudo é voltarmos 
os olhos para o ensaio de Hegel no qual aparece pela primeira 
vez essa temática. Trata-se de sua primeira publicação, a saber, 
o escrito Diferença entre o sistema da filosofia de Fichte e de 
 199 
Schelling (HEGEL, 1968). Nele já se desenha de modo bastante 
nítido essa exigência de relevância da história da filosofia para 
a filosofia. Mas, antes de efetivamente se dedicar a expor essa 
relação entre a filosofia e sua história, Hegel primeiro procura 
criticar duas maneiras de compreensão desse relacionamento 
existentes em sua época. Assim, o filósofo desenvolve uma 
crítica ao que ele denomina de visão histórica dos sistemas 
filosóficos a partir de uma dupla divisão dessa forma de 
abordagem da história da filosofia. 
Num primeiro momento, Hegel criticará uma forma 
geral de visão histórica. Segundo o que preconiza essa visão, a 
história da filosofia consistiria numa mera doxografia, ou seja, 
numa história das opiniões filosóficas aparecidas no decorrer 
da história. Já o segundo momento da crítica é dirigido a uma 
concepção histórica que parte de uma representação da 
filosofia como uma espécie de ofício (Handwerkskunst) que se 
aperfeiçoa com o passar do tempo (HEGEL, 1968, p. 10). 
Poderia então ser incorporada à filosofia a noção de progresso. 
Com referência à visão propriamente histórica das 
filosofias, é característico da mesma o distanciamento que ela 
toma em relação aos sistemas filosóficos, na medida em que 
por eles se interessa apenas como um conhecimento sem 
importância. Ela não estabelece nenhum vínculo com os 
sistemas. É como se apenas tomasse ciência de que eles 
existem e isso fosse suficiente. Existem os sistemas A, B, C, D 
etc. Desta perspectiva, nenhum pode ser mais interessante do 
que o outro. A rigor, é indiferente para a vista histórica 
interessar-se por este ou por aquele sistema. À maneira de 
uma erudição vazia, ela cuida apenas de acrescentar à sua 
coleção este sistema, aquele sistema, mais aquele outro, de 
acordo com o ritmo descompassado de sua curiosidade. A 
visão histórica, portanto, não passa de um acumular de 
conhecimentos mumificados. Nas palavras de Hegel, trata-se 
de uma “curiosidade que coleciona conhecimentos” (HEGEL, 
1968, p. 9). E no caso da filosofia, um conhecimento de pouco 
 200 
valor, uma mera opinião: “ela [a visão histórica] não pode 
estabelecer outra forma de relacionamento com os sistemas 
filosóficos do que a seguinte: que eles são opiniões; e tais 
acidentes, como opiniões, não podem nada contra ela”133. Um 
conhecimento, não uma ciência (Wissenschaft), esse é o destino 
da filosofia segundo a visão histórica. 
É somente numa época em que a potência da vida cada 
vez mais se enfraquece que a enfastiada visão histórica pode 
surgir. E não há como não pensar num fenecer da vida quando 
se lê a descrição hegeliana da atitude histórica. A todo 
momento se associa a mesma à ideia de morte. Veja-se este 
trecho: “Uma época que tem atrás de si jazendo como um 
passado (morto) uma tal quantidade de sistemas filosóficos, 
parece dever chegar àquela indiferença, que a vida chega, após 
ter se experimentado em toda sorte de formas” (HEGEL, 1968, 
p. 9). Em primeiro lugar, é significativo que Hegel utilize o 
verbo liegen para se referir aos sistemas filosóficos 
considerados segundo a perspectiva de uma época que adotou 
a visão histórica a respeito dos mesmos: esse verbo (liegen) 
pode ter o sentido de jazer, e jazer significa estar morto, o que 
bem casa com a ideia que Hegel quer exprimir no trecho 
supracitado. No contexto em questão, no qual se pretende 
mostrar que a vida está no antípoda do que preconiza a visão 
histórica, ter o verbo liegen o sentido há pouco indicado, 
ressalta essa ideia de que os sistemas filosóficos do passado 
são apenas objetos de curiosidade a respeito de algo que não 
tem mais importância, que está morto134. Ao contrário, e é isso 
 
133 Nas suas considerações sobre a noção de história da filosofia, diz Hegel a respeito 
da opinião: “O que nós podemos em primeiro lugar considerar como consequência 
daquilo que precede, é que em história da filosofia nós não lidamos com opiniões. Na 
vida comum, é verdade, temos opiniões, isto é, ideias a respeito das coisas exteriores; 
um pensa isso, o outro pensa aquilo. Mas o trabalho do espírito do universo é mais 
sério; lá se encontra a universalidade. Trata-se aqui das determinações gerais do 
espírito; não é questão aqui de opiniões referentes a isso ou aquilo” (HEGEL, 1990, p. 
145). 
134 Ainda contra a visão histórica, veja-se o seguinte comentário de Hegel: “Aquilo que 
é histórico, a saber, do passado, não é mais, está morto. A tendência histórica abstrata, 
 201 
que Hegel quer afirmar em contraponto à atitude histórica, “o 
espírito vivo, que habita numa filosofia, requer, para se 
revelar, ser gerado por um espírito de mesma família 
(verwandt)” (HEGEL, 1968, p. 9). Uma filosofia não é um 
conhecimento morto, objeto de uma curiosidade indiferente, 
pois, como acabamos de ver, ela é dotada de vida, e para que 
haja o reconhecimento daquilo que existe de vivo nela, é 
preciso assumir uma outra atitude – da qual somente é capaz 
um espírito que reconhece o espírito vivo de uma filosofia – no 
que concerne ao relacionamento a ser estabelecido com essa 
filosofia. 
No que respeita ao segundo momento da crítica à visão 
histórica, Hegel se dirige fundamentalmente a Reinhold. 
Vejamos, agora, por que a concepção filosófica de Reinhold 
pode ser considerada uma forma de atitude histórica. 
Segundo a exposição hegeliana, trata-se na filosofia (de 
Reinhold) de um desenvolvimento contínuo da mesma 
mediante o surgimento, a cada vez, de um novo sistema 
filosófico que, com maior abrangência, prolonga a tarefa que 
os anteriores sistemas começaram. Cada sistema é uma visão 
particular que busca realizar a tarefa que os anteriores não 
conseguiram. O êxito da nova visão particular na sua tarefa de 
“penetração na realidade do conhecimento humano” (HEGEL, 
1968, p. 10) está vinculado ao estudo das tentativas (Versuche) 
anteriores, talvez para ver o que pode ser aproveitado e o que 
não pode, e onde acertaram de modo que se evite o 
 
que se ocupa de objetos inanimados, expandiu-se bastante nosúltimos tempos. É um 
coração defunto que encontra sua satisfação no ocupar-se daquilo que está morto, de 
cadáveres. O espírito vivo diz: deixai os mortos enterrar seus mortos e me siga (cf. 
Mateus 8,22). Os pensamentos, as verdades, os conhecimentos que eu possuo somente 
segundo a forma histórica, estão fora do meu espírito, quer dizer, mortos para mim; 
meu pensamento, meu espírito não estão aí presentes, minha consciência daí está 
ausente. A posse de conhecimentos puramente históricos assemelha-se à possessão 
jurídica de coisas, das quais eu não sei o que fazer”. Ou ainda: “Todavia, quando uma 
época trata tudo historicamente, ocupando-se sempre de um mundo que não existe 
mais, vagando por entre tumbas, o espírito renuncia à sua vida própria, que consiste 
em pensar a si” (HEGEL, 1990, p. 156 e p. 156-7). 
 202 
cometimento dos mesmos erros, permitindo-se que seja 
possível de outro modo realizar a tarefa da filosofia. Cada 
novo sistema que busca completar a tarefa não realizada pelo 
anterior seria como um acréscimo, que vem a se justapor ao 
que já possuímos. O novo sistema continua o anterior na 
tentativa de concluir a tarefa almejada. Diferentemente da 
primeira espécie de visão histórica, existe aqui um interesse 
pelas filosofias do passado, e que não se configura numa mera 
curiosidade despretensiosa com relação ao que de vivo ainda 
poderia haver numa filosofia qualquer. Todavia, esse 
interesse, que se traduz num conhecimento das filosofias 
passadas, vai somente até certo limite. Segundo Hegel, a 
concepção de filosofia que funda tal espécie de ponto de vista 
a respeito da filosofia e da história da filosofia é a de que a 
filosofia seria uma forma de ofício que se aperfeiçoa mediante 
a descoberta de novas técnicas (HEGEL, 1968, p. 10). O termo 
desse processo de aperfeiçoamento seria então a invenção da 
técnica que realize de uma vez por todas a tarefa primordial 
da filosofia, e tudo que até então se efetuou com vistas a esse 
intento deve ser considerado como “exercícios preliminares de 
grandes cabeças” (HEGEL, 1968, p. 10). Diante, então, da visão 
particular que resolve o problema da filosofia, o passado da 
mesma não teria mais relevância. O passado era digno de 
interesse enquanto não se havia ainda obtido êxito na tarefa da 
filosofia. A partir do momento que se alcançou esse êxito, o 
passado da filosofia mereceria, caso houvesse ainda interesse, 
ser conhecido, nos termos de Hegel, apenas como “exercícios 
preliminares de grandes cabeças”. As diversas filosofias 
aparecidas no decurso histórico, a partir desse momento, não 
são mais fonte de conhecimentos com vistas à realização da 
tarefa da filosofia. Tornam-se simplesmente uma fonte de 
curiosidade: um saber morto que nada mais nos diz além do 
que o fato de terem um dia tentado realizar a tarefa da 
filosofia. 
 203 
Mas, contudo, a história da filosofia não é para Hegel 
um arquivo do que se tornou obsoleto: “Não se trata 
tampouco na filosofia nem de aperfeiçoamentos constantes 
nem de visões particulares” (HEGEL, 1968, p. 10). O absoluto, 
diz Hegel, e sua manifestação, a razão, são eternamente uma e 
a mesma coisa. Toda razão que se dirige a si mesma e se 
reconhece como tal, produz uma filosofia verdadeira e resolve 
sua tarefa, que é sempre a mesma em todos os tempos135 
(HEGEL, 1968, p. 10). Vemos aqui, então, Hegel afastar-se da 
concepção histórica e mostrar aquilo que o distingue da 
mesma, ao considerar a possibilidade de toda razão que se 
dirige a si mesma e se reconhece como razão produzir uma 
filosofia verdadeira. Cada filosofia, produzida pela razão 
particular de uma época determinada, é o que já podemos 
observar, é digna de valor, pois é uma filosofia verdadeira. O 
que distingue uma filosofia da outra, sua particularidade, não 
alcança a essência da mesma. É na forma do sistema que a 
particularidade se expressa. O historiador que não vê a 
essência de uma filosofia como algo particular não terminará 
como aquele outro historiador, que diante de um sem número 
de filosofias essencialmente diferentes sente-se frustrado por 
não ter como assentir a qualquer uma delas. “Quem está 
enredado por uma peculiaridade, vê no outro nada mais do 
que peculiaridades” (HEGEL, 1968, p. 11). É o caso da atitude 
histórica, tanto na sua feição mais geral, quanto na sua feição 
reinholdiana, para a qual todo sistema filosófico constitui uma 
peculiaridade estranha a outras peculiaridades. 
Para se chegar à essência da filosofia, observa Hegel, é 
preciso que a especulação filosófica se eleve a si mesma e ao 
absoluto. A especulação é a própria atividade da razão sobre si 
mesma, que, como manifestação do absoluto, fundamenta-se a 
 
135 A tarefa da filosofia “consiste nisto, unificar as pressuposições, pôr o ser no não-ser 
como vir-a-ser; a cisão no absoluto – como seu fenômeno; o finito no infinito – como 
vida” (HEGEL, 1968, p. 16). Ou ainda: “O absoluto deve ser construído para a 
consciência, [tal] é a tarefa da filosofia” (HEGEL, 1968, p. 16). 
 204 
si mesma (HEGEL, 1968, p. 11-12). A essência racional da 
filosofia está presente em toda filosofia verdadeira. Assim, 
cada filosofia não pode ser tomada como essencialmente 
diferente da outra. A especulação filosófica, partindo desse 
pressuposto, qual seja, do reconhecimento do espírito vivente 
que habita toda filosofia verdadeira (cf. HEGEL, 1968, p. 9), 
não vê cada sistema como uma particularidade essencialmente 
diferente de outras particularidades. A especulação “deve 
encontrar a si mesma através das formas particulares” 
(HEGEL, 1968, p. 12). Podemos dizer, então, que cada filosofia 
assume uma forma particular e, assim, difere, no plano da 
forma, das outras filosofias particulares, ao mesmo tempo que, 
na sua essência, todas elas se identificam, pois são obras da 
mesma razão una desdobrando-se no processo histórico e que 
as reconhece como seus frutos. O espírito da filosofia pode 
então encontrar a si mesmo em cada filosofia, na forma que ele 
toma segundo a época na qual se originou. Segundo tal 
concepção da essência da filosofia, não é sua história um 
conjunto de opiniões mortas, que nada mais têm a nos dizer. 
Todo sistema é digno de interesse filosófico porque expressa a 
forma em que a razão se organizou numa figura com o 
material fornecido por uma época particular. Interessar-se por 
uma filosofia particular significa querer compreender de que 
maneira o absoluto nela se exprimiu. Tal como uma autêntica 
obra de arte, que se basta a si mesma, devemos interessar-nos 
por ela. 
Já Lukács salientava a importância filosófica que, em 
Hegel, tinha a história da filosofia para a filosofia: “Ele é o 
primeiro no qual a história da filosofia ultrapassou o nível da 
simples enumeração dos fatos ou a crítica abstrata. Uma tal 
superação já se encontra conscientemente consumada na 
Diferença”136. Para Hegel, “a filosofia possui uma longa história 
 
136 Lukács ainda nota que Hegel foi o primeiro a tomar a sério a questão da história da 
filosofia, que para tornar mais contundente seu ponto de vista, o recurso à história da 
filosofia servia para iluminar todos os aspectos possíveis do problema que o 
 205 
unitária na qual ela se desenvolve, história que representa o 
desdobramento da razão unitária” (LUKÁCS, 1981, p. 419-
420). 
Também Martial Guéroult atentou para essa importância 
da dimensão filosofante da história da filosofia em Hegel: 
 
O interesse dessa primeira concepção hegeliana é o de conferir 
a cada doutrina encarada nela mesma um valor em si, de se 
recusar aplicar ao mundo das filosofias a noção de verdade 
corrente no conhecimento comum ou na ciência dos 
fenômenos. Por essa presença da razão, da verdade, da ideia 
da filosofia em cada filosofia, Hegel funda a perenidade das 
filosofias como objetos eternamente válidos para a filosofia e 
para a história (GUEROULT, 1979, p. 443).Dentro desse quadro, a verdade que cada filosofia 
propõe não envelheceria em virtude de poder ser objeto de 
estudo numa época posterior à que surgiu. Nas suas Lições 
sobre a história da filosofia, Hegel assinala que o passado 
filosófico encontra seu valor e significado como um momento 
particular no desenvolvimento da história da filosofia. Se uma 
filosofia de uma época anterior à nossa não é capaz de 
responder a questionamentos que nos fazemos hoje, este fato 
não significa que ela não tenha mais nada a nos dizer. Apenas 
indica que o aprendizado que dela podemos extrair não deve 
comportar exigências que extrapolem aquilo que seria o 
esperado na sua época de surgimento (Cf. HEGEL, 1974, p. 
352ss). O mundo de Platão não é o mesmo que o nosso: 
 
Não devemos alimentar a pretensão de encontrar presentes na 
filosofia antiga os problemas da nossa consciência e os 
interesses do nosso mundo, visto que tais questões 
 
concernia, além de torná-lo mais convincente, graças à argumentação a mais ampla 
possível. Assim, nos escritos críticos de Iena, “na polêmica contra Schulze, ele faz uma 
comparação detalhada entre o ceticismo antigo e o ceticismo moderno; na sua 
exposição sobre o direito natural, ele opõe as concepções filosófico-sociais de Platão e 
de Aristóteles às ideias modernas...” (LUKÁCS, 1981, p. 420). 
 206 
pressupõem um determinado desenvolvimento do 
pensamento. Desta maneira, toda a filosofia, precisamente por 
ser expressão dum especial grau de desenvolvimento, 
pertence ao seu tempo e está circunscrita aos seus próprios 
limites (HEGEL, 1974, p. 355). 
 
De acordo com a concepção hegeliana, o estudo da 
história da filosofia torna possível que tenhamos contato com 
formas de organização do pensamento filosófico que servirão 
para alimentar o pensamento filosófico da atualidade. Dessa 
perspectiva, o passado da filosofia não constituiria 
verdadeiramente um passado, pois trata-se de nos ocuparmos 
com formas de pensamento que determinaram aquilo que a 
filosofia é hoje. Hegel não acredita, portanto, que o passado da 
filosofia envelheça. Se há algo que envelhece é a pretensão das 
diversas filosofias em ser a determinação última e absoluta do 
pensamento filosófico (Cf. HEGEL, 1974, p. 351-352). A 
história da filosofia é, para o filósofo, capaz de nos fazer 
melhor compreender aquilo que somos hoje. Nesse sentido, o 
ensino da história da filosofia é vital para que os estudantes 
possam, ao tomar contato com esse passado, ter condições de 
apreender a articulação do pensamento filosófico do presente 
a partir do conhecimento de formas filosóficas que, segundo 
Hegel, contribuíram para o que a filosofia é hoje. 
 
 
REFERENCIAS 
 
GUEROULT, M. Histoire de l’Histoire de la Philosophie, en Allemagne de 
Leibniz a nos jours. Paris: Aubier, 1979. 
 
HEGEL, G. W. F. Differenz des Fichte’schen und Schelling’schen Systems 
der Philosophie. Hamburg: Felix Meiner, 1968. 
 
_______. Leçons sur l’histoire de la philosophie, Introduction: Système et 
histoire de la philosophie. vol. 1, Paris: Gallimard, 1990. 
 
_______. Introdução à história da filosofia. Sao Paulo: Ed. Abril, 1974. 
 207 
 
LUKÁCS, G. Le Jeune Hegel, sur les rapports de la dialectique et de 
l’économie. vol. I. Paris: Gallimard, 1981. 
 
 
 
 
 208 
 
 
 
 
 
 
 
Capítulo 12 
AASS CCRRÍÍTTIICCAASS DDEE MMAARRXX EE HHUUMMEE ÀÀ FFIILLOOSSOOFFIIAA CCOOMMOO 
FFUUNNDDAAMMEENNTTOOSS PPAARRAA AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO 
 
Samuel Mendonça 
 
 
INTRODUÇÃO 
Embora muito se tenha produzido no Brasil sobre Marx 
e a educação, nos últimos anos, Saviani (2008 e 2010), 
Lombardi (2008), Sanfelice (2008), Duarte (2008 e 2010), Sousa 
Junior (2010), nem por isto o autor de O Capital deixou de ser 
uma referência importante para a educação. O esforço de 
diversos intelectuais brasileiros e de outros países tem 
evidenciado a atualidade de Marx para as questões da 
educação nos tempos hodiernos. Então, a crise do capitalismo, 
especialmente a de Wall Street, em 2008, revelou a atualidade 
dos escritos de Marx para a compreensão da dinâmica da vida 
social (HOBSBAWN, 2011). 
David Hume (1999), por sua vez, tem sido fonte de 
estudos em filosofia e diversas áreas do conhecimento 
sistemático, especialmente em virtude dos pressupostos do 
empirismo. A ciência da educação recepciona os pressupostos 
do empirismo quando em relação ao pragmatismo e, embora 
não se pretenda discorrer sobre autores desta corrente 
educacional, é preciso reconhecer em Dewey (1985) sua maior 
expressão. 
 209 
Com efeito, a nossa preocupação, neste capítulo, gira em 
torno da crítica de Marx à filosofia, que se dá por meio da 
crítica à ideologia alemã, da mesma forma que a ponderação 
de David Hume em relação à filosofia será objeto de 
investigação. Isto posto, pretendemos argumentar que tanto a 
crítica de Marx ao idealismo alemão quanto a de Hume à 
filosofia e, neste caso, à metafísica, constituem-se fundamentos 
da educação, na medida em que, por educação, entendemos as 
possibilidades de intervenção do homem na contínua 
transformação da sociedade e, neste sentido, as construções 
abstrusas não parecem auxiliar neste processo. De forma 
específica, formulamos a pergunta deste capítulo nos 
seguintes termos: as críticas de Marx e Hume à filosofia 
constituem-se elementos para a fundamentação da educação? 
É preciso dizer que Marx e Hume não possuem posições 
sequer próximas sobre o Estado, a Política a Economia ou a 
Educação, e não é pelo fato de que faremos a aproximação 
pontual quanto à questão da metafísica e da ideologia que isto 
possa significar a aproximação teórica dos referidos autores. 
Embora em contextos distintos, veremos que as críticas 
destes pensadores às formulações abstrusas são as razões da 
ausência de uma perspectiva mais efetiva na educação, na 
consideração da vida humana. Embora não tenha sido este o 
olhar deles, então, utilizamos de seus argumentos para 
fundamentar a nossa posição de que os fundamentos da 
educação devem ser repensados. Dito de outro modo, não se 
encontram em Marx ou em Hume elementos da construção 
que pretendem fundamentar a educação a partir da crítica da 
metafísica e da ideologia e, portanto, o risco de equívocos 
desta aproximação é exclusivo do autor137. 
 
137 Os estudos de Marx e de Hume foram feitos em contextos distintos. Hume e Marx 
foram lidos na graduação em filosofia, mas Hume foi lido enfaticamente por ocasião 
do mestrado, também em filosofia, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de 
Campinas. No doutorado em educação, reli Marx, especialmente com professores do 
 210 
Uma concepção de educação que tenha como ponto de 
partida o ‘ideal’ de educação já evidencia – embora não se 
tenha definido que ideal é este – a ausência de ações concretas, 
seja quanto à concepção de educador e mesmo quanto ao 
perfil do aluno que está em formação. Fala-se em ideal de 
educação e este posicionamento é, muitas vezes, apolítico, no 
sentido de que não inclui as vicissitudes da vida social. Por 
concepção ‘ideal’ de educação concebe-se a comodidade: 
afinal, que ações concretas são reivindicadas a partir de um 
ideal de educação? Ações ideais, ou seja, mais uma vez a 
ausência das contradições sociais, dado que, no plano ideal, 
elas são equacionadas e equacionáveis. Não queremos com 
isto afirmar que não se pode ter ideal por educação. O que 
argumentamos é que o ideal que não aponta para o mundo 
humano e material certamente será insuficiente para 
equacionar os problemas determinados e concretos da 
educação. 
Enquanto o filósofo escocês terá a metafísica como alvo, 
Marx, por outro lado, terá Hegel como o seu principal foco de 
crítica. Com estes elementos propedêuticos, que dizem 
respeito à concepção de homem e de mundo, isto é, a partir da 
definição de conhecimentoMédia. A filosofia como opção de vida 
determina a doutrina adotada pelo pensador e seu modo de 
ensino. Esta escolha não é tomada na solidão: nunca houve 
filosofia nem filósofos fora de um grupo, de uma comunidade, 
de uma escola filosófica e, precisamente, uma escola filosófica 
corresponde, na época antiga, a uma maneira de viver, a uma 
atitude de pensamento e de vida (hairesis2), um desejo de ser e 
de viver de certa maneira. Essa conversão existencial implica, 
por seu turno, certa visão do mundo, e será tarefa do discurso 
filosófico revelar e justificar racionalmente tanto essa opção de 
vida quanto essa representação do mundo. O discurso 
filosófico teórico, que normalmente se encontra na “História 
da Filosofia” não está na origem, mas no final dessa opção 
existencial (HADOT, 1999, p. 172). 
O discurso filosófico deve ser compreendido na 
perspectiva do modo de vida e a escolha de vida particular do 
filósofo determina o seu ensino, sua paideia. Esta apuração nos 
leva a dizer que não se pode considerar o discurso filosófico 
 
2 O termo significa propriamente “eleição”, “escolha”. 
 26 
como uma realidade existente em si e por si mesma, como 
uma disciplina a ser transmitida do alto de um púlpito. Não é 
possível estudar Sócrates separando o discurso de Sócrates da 
vida e da pedagogia de Sócrates. 
Claro, hoje o filósofo, ou talvez fosse melhor se contentar 
em dizer o professor de filosofia, não pode retomar exatamente o 
modelo da filosofia antiga. Hoje parece impossível fazer de 
uma universidade uma comunidade pedagógica no sentido 
filosófico do termo, na qual mestres e discípulos vivem juntos 
experiências em comum num comum ideal. Mas, hoje, o 
discurso do professor de filosofia ainda pode se apresentar sob 
uma forma tal que o estudante possa percorrer um caminho de 
amadurecimento intelectual e espiritual e transformar-se 
interiormente. 
 
 
LUGARES E MESTRES DA PAIDEIA 
Como vimos, a nova definição de homem que aparece na 
Grécia, depois das invasões dos povos vindos da península 
balcânica, carrega o advento de um novo modo de pensar, 
alicerçado na racionalidade. O exercício da razão, antes de 
tudo, é um discurso público e compartilhado. A grande escola 
dos antigos é o convívio social, e isso é particularmente 
evidente em Atenas. 
O novo arquétipo da cidade grega, a polis, criada depois 
do desaparecimento do basileus, pressupõe novas instituições e 
a autoridade é espalhada entre diferentes delegados. “A 
autoridade não repousa mais na tradição, mas na lei, nomos, 
fruto da ação do homem, regida pelo discurso elaborado, 
argumentado e persuasivo” (PAGOTTO-EUZEBIO, 2010, p. 
199). 
A mudança política carrega a necessidade de formar um 
homem diferente. A polis não necessita do chefe guerreiro ou 
do sacerdote que encarna a voz da verdade. Com esta 
mudança política, os gregos criam uma nova definição de 
 27 
homem e uma nova paideia, que dita os parâmetros daquilo 
que deve ser um homem: o homem politicus (PAGOTTO-
EUZEBIO, 2010, p. 199). 
Aristóteles esclarece na sua Política que o homem é 
essencialmente ser da cidade3 e isso não indica apenas um lugar 
físico particular mas, antes, o caráter próprio do homem: o 
homem se faz tal só ao participar das práticas e das 
experiências dos outros homens. 
 
Aristóteles não é nem original nem pretende ser original com 
esta afirmação: ele somente constata e reafirma o que aparecia 
como verdade ao grego do seu tempo. O homem é fruto da 
cidade, da sua paideia, e por decorrência toda criação humana 
terá a cidade como origem e – é importante não esquecer – 
como propósito ou, pelo menos, referência (PAGOTTO-
EUZEBIO, 2010, p. 201). 
 
Nesta cidade, a educação se transmite na Ágora, nos 
banquetes e nos ginásios4. O symposion, ou banquete, tem um 
sentido cultural de grande valor. Ao redor de uma mesa rica 
em vinho e comida, os gregos discutiam assuntos elevados e 
cantavam os versos dos poetas (HERÓDOTO 6. 129; 
ARISTÓFANES, Nuvens, 1353-1379). O symposion é descrito na 
homônima obra de Platão como um lugar que possui alto 
poder educativo. No Banquete platônico, cinco figuras de 
relevo, Sócrates, Aristófanes, Fedro, Pausânias e Alcibíades se 
reúnem na casa do tragediógrafo Ágaton, para comemorar a 
sua vitória nas Grandes Dionísias. A antiga educação 
aristocrática é baseada no conhecimento dos poetas antigos e 
só será reformada com o advento dos Sofistas, em Atenas. Os 
ginásios constituem um segundo pólo educativo. Eles, além de 
serem frequentados pelos jovens que querem praticar 
 
3 Aristóteles, Política, 1253a: “É evidente que a polis é natural, e que o homem é por 
natureza um animal político e que o apolide por natureza e não por acidente é menos 
ou mais que um homem” (tradução nossa). 
4 Para uma panorâmica exaustiva do assunto, ver Ferreira (1993). 
 28 
exercícios físicos, são procurados por muitos adultos que 
gozam da beleza e do espetáculo oferecidos pelos mais novos, 
e lhes dão dicas de vida. Sócrates escolhia frequentemente 
estes lugares para ensinar5. Finalmente, a Ágora é um 
importante centro cívico e comercial. Lá ficam os mais 
importantes edifícios públicos, vários templos, altares e 
estátuas. Lá se realizam as sessões da Ecclesia, a Assembleia, da 
Boulê, o Conselho dos Quinhentos, e dos Tribunais da Helieia. 
No edifício do Pritaneu, encontram-se gravados na pedra 
diversos documentos, o mais notório dos quais é o código de 
Sólon. A Ágora é, portanto, um local de grande afluxo, que os 
atenienses usam para conversar e transmitir a cultura 
(FERREIRA, 1993, p. 32). 
É evidente que esta evolução da política ateniense do 
regime monárquico ao regime democrático permitiu a 
participação nos órgãos coletivos de governo a um número 
infinitamente maior de cidadãos e por isso as técnicas de 
argumentação se tornaram de grande importância. A essa 
exigência responderam prontamente aqueles filósofos que 
podem ser considerados mestres do discurso e professores de 
homens, visto que erigiam o homem em alvo de seu 
ensinamento: os Sofistas6. Embora os sofistas tenham sido 
considerados por muito tempo personagens negativos e falsos 
pedagogos, eles despertaram considerável entusiasmo entre os 
jovens da Atenas democrática (PLATÃO, Protágoras, 310a-
311a; 314b-315d). Finalmente, foram eles que cunharam a 
palavra paideia para indicar a natureza essencialmente 
pragmática de seu ensino, o qual permitiu a muitos jovens 
atenienses intervir nas relações públicas graças à habilidade 
dialética e retórica. Na época da Grécia clássica, os Sofistas 
 
5 Os seguintes diálogos de Platão, Laques, Lísis e Cármides, se passam no ginásio. 
6 Protágoras, fr. Diels: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto 
existem, e das que não são, enquanto não existem”. Tradução de Rocha Pereira, 2005, p. 
289. 
 29 
eram personagens suspeitos7 e seu nome é utilizado ainda hoje 
para designar aqueles que buscam perturbar o interlocutor 
com assuntos cavilosos. No século de Péricles, a palavra 
“sofista” era empregada sempre num sentido pejorativo por 
causa do tipo específico de saber que os Sofistas transmitiam e 
pelo fato deles serem itinerantes e remunerados (PLATÃO, 
Apologia 19e-20a; ISÓCRATES, Antídosis 3). Entre as duas 
características, a mais perigosa do ponto de vista político é a 
primeira, isto é, ensinar um tipo específico de saber; do ponto 
de vista filosófico, a segunda, pois para filósofos como 
Sócrates, Platão ou Aristóteles, e o mesmo pode ser dito para 
as Escolas helenísticas, a filosofia é um fim em si e não pode 
ser vista como meio em vista de uma finalidade alheia. Basta 
ler a Apologia de Sócrates, um dos primeiros escritos de Platão, 
para descobrir no diálogo entre Sócrates e os Sofistas um jogo 
ético, político e pedagógico, uma crítica açulada e 
intransigente aosque considera a experiência o seu 
leitmotiv, para o primeiro autor, e também considerando a 
concepção de trabalho para Marx, então, a nossa concepção de 
educação será apresentada no contexto da práxis social. 
Do ponto de vista formal, investigaremos os termos 
crítica e superação em Descartes (1983) e em Kant (1999), 
justamente com o propósito de oferecer ao leitor elementos de 
nossa compreensão daquilo que julgamos ser o essencial para 
a fundamentação da educação, isto é, a noção de crítica. 
Podemos afirmar que o racionalismo de Descartes é superado 
pelo empirismo de Hume. Kant ‘acorda’ do sono dogmático 
 
consagrado Departamento de História, Filosofia e Educação da Universidade Estadual 
de Campinas. 
 211 
com Hume. O autor das três críticas influencia Hegel que, por 
sua vez, é o maior alvo de Marx. Estas conexões evidenciam a 
interlocução entre os autores selecionados neste capítulo. Em 
seguida, faremos a análise minuciosa de Hume (1999) quanto à 
sua crítica à filosofia abstrusa e, posteriormente, junto da 
crítica de Marx à Ideologia Alemã, obra de 1845[6], dissecaremos 
a questão da origem das ideias de Hume, assim, teremos 
elementos para fundamentar a educação sem rodeios e a partir 
da vivência humana. O exame de elementos da Ideologia Alemã 
evidenciará a concepção de educação de Marx que deve partir 
da práxis social. Com estes elementos, exploraremos o 
conceito de trabalho ao longo da história do pensamento, de 
forma propedêutica, porquanto trata-se de tema central do 
pensamento marxiano, de modo a constituir mais um aspecto 
daquilo que nomeamos fundamentos da educação. 
Em sentido lato, entendemos o educador como um 
sujeito dotado de valores e hábitos, que busca transformar a 
vida social e elabora o seu sentido na história por meio do 
trabalho. Não existe papel do educador a priori, mas, se 
existem desafios para fundamentar a educação a partir da 
crítica do idealismo e da metafísica, por certo dentre esses 
desafios podemos incluir o de compreender a contribuição dos 
clássicos para a fundamentação da educação. Como construir 
fundamentos da educação sem a contribuição dos clássicos do 
pensamento, neste caso, Marx e Hume? 
É preciso considerar que os escritos de Marx sobre a 
educação não se circunscrevem no âmbito de práticas 
pedagógicas, no entanto, mesmo que ele não tenha publicado 
escritos específicos sobre a educação, é possível derivar 
elementos que estão presentes na educação, seja na 
perspectiva de fundamentos, de política ou, mais 
especificamente, de concepção de educação. Ora, não é por 
acaso que a recente obra de Sousa Junior (2010) explicita, em 
seu primeiro capítulo: “como e por que as formulações 
 212 
marxianas podem ser consideradas uma contribuição 
importante para o pensamento educacional” (p. 20). 
A nossa expectativa não é a de inovação das ideias de 
Marx ou de Hume em torno da educação, mas, antes, de 
apontar para perspectivas que coloquem em relevo a crítica da 
metafísica e da ideologia como base para a construção de 
fundamentos da educação para os tempos hodiernos. 
 
 
CONSIDERAÇÕES SOBRE CRÍTICA E SUPERAÇÃO NA BUSCA DE 
FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO 
É necessário explicar o que entendemos por superação e 
crítica. Os pensadores da Ilustração, como Kant, por exemplo, 
já falavam de superação, da mesma forma que o racionalista 
francês Descartes138 tratava da necessidade de vencer-se a si 
mesmo. Com o propósito de alcançar o primeiro objetivo, isto 
é, a elucidação dos termos crítica e superação, examinaremos 
as concepções de Descartes e Kant com o propósito de 
construir elementos que fundamentem a educação. A crítica 
sugere a autocrítica que reivindica a superação, então, em se 
tratando daquilo que é essencial para a educação, eis o nosso 
primeiro desafio. 
Não se trata de revisitar o conceito de superação tal 
como já foi pensado no século XVII, mas de considerar os 
paradoxos existentes na vida humana e de explicitar a 
 
138 Descartes, na obra Discurso do Método, especialmente na terceira parte, quando trata 
das máximas da moral provisória, anuncia a necessidade de uma espécie de 
superação. Ele chama a atenção para o vencer-se a si mesmo, mas em relação à 
fortuna. “[...] acostumar-me a crer que nada há que esteja inteiramente em nosso 
poder, exceto os nossos pensamentos, de sorte que, depois de termos feito o melhor 
possível no tocante às coisas que nos são exteriores, tudo em que deixamos de nos sair 
bem é, em relação a nós, absolutamente impossível” (DESCARTES, 1983, p. 43). A 
superação anunciada aqui, mesmo indiretamente, não está de acordo com a que 
vemos em Marx. Antes, diz respeito à tentativa de buscar na razão a plenitude do 
conhecimento, desconsiderando inclusive as conquistas externas e os bens materiais. 
Em Marx, a perspectiva de superação parte exatamente das condições materiais como 
balizas da transformação social. 
 213 
necessidade dela para a possibilidade da crítica. Dito de outro 
modo, devemos enfatizar a natureza do próprio homem na 
tentativa da sua superação, na medida em que não existe uma 
essência do humano em Marx e nem tampouco em Hume, mas 
o homem é o resultado das relações sociais vividas na história 
a partir do trabalho ou o produto da experiência sensível. 
Saviani (2010) reforça o que temos elaborado ao longo destas 
reflexões, isto é, o que distingue o ser humano de outras 
espécies é fundamentalmente o trabalho: 
 
No caso dos seres humanos, sua atividade vital, que é o 
trabalho, distingue-se daquelas de outras espécies vivas por 
ser uma atividade consciente que se objetiva em produtos que 
passam a ter funções definidas pela prática social. Por meio do 
trabalho, o ser humano incorpora, de forma historicamente 
universalizadora, a natureza ao campo dos fenômenos sociais. 
Neste processo, as necessidades humanas ampliam-se, 
ultrapassando o nível das necessidades de sobrevivência e 
surgindo necessidades propriamente sociais (p. 426). 
 
Por conseguinte, se o processo de humanização aponta o 
trabalho como propulsor do homem, então, elaboramos a 
possibilidade de crítica do sujeito que trabalha; afinal, Marx 
concebe o trabalho consciente – e não o trabalho alienado – 
como base da transformação social. Por trabalho consciente 
não entendemos a abstração do conceito de trabalho, mas sua 
experiência na práxis social. 
Quais as razões que justificam a escolha de Descartes e 
Kant para a análise da superação e crítica neste capítulo que 
tem Marx e Hume como referenciais teóricos? Embora já 
tenhamos tratado de algumas relações entre os autores, por 
ocasião da introdução, vale reforçar que Kant influenciou 
Hegel no que se refere à crítica do conhecimento; todavia, 
Hegel passou a fundamentar a sua crítica a partir da dialética, 
inserindo a perspectiva da história em sua filosofia, mas, ainda 
assim, trabalhou com a noção do absoluto, alvo preciso de 
 214 
Marx. Desde 1844, com a obra Crítica da Filosofia do Direito de 
Hegel, é notável o reconhecimento de Marx a Hegel, mesmo 
que tenhamos esta observação a partir da crítica do primeiro 
em relação ao segundo. Descartes foi uma das referências 
importantes de Kant na construção da filosofia do sujeito, 
visto ter construído as bases do racionalismo, escola filosófica 
do século XVII, que estabelecia a razão humana como fonte e 
método para a construção do conhecimento. Kant vai além de 
Descartes, considerando também a experiência como base do 
conhecimento e foi Hume o autor que despertou Kant do sono 
dogmático; afinal, “embora todo o nosso conhecimento 
comece com a experiência, nem por isto todo ele se origina 
justamente da experiência” (KANT, 1999, p. 53). Este excerto 
da Crítica da Razão Pura evidencia a síntese que Kant promove 
a partir do racionalismo e do empirismo. 
Portanto, temos Descartes como precursorsofistas e à face corrupta da sociedade 
ateniense. Os aristocratas, por fim, achavam os Sofistas 
personagens ameaçadores, pelo fato de serem peritos na arte 
reputada necessária aos membros de uma democracia e 
perigosa para o governo aristocrata. Ocupados em ensinar de 
que forma a racionalidade podia ser utilizada eficientemente, 
isto é, produzindo a persuasão e levando à derrota a 
argumentação do adversário, os sofistas se tornaram assim os 
primeiros professores da technê politiké, que com uma palavra 
atual podemos designar “cidadania”. “O discurso é plástico, 
dirão eles, e pode ser moldado de inúmeras formas, mais ou 
menos adequadas para o momento (kairós), que era o que de 
mais importante havia: perder ou não notar o kairós, a ocasião, 
impedia o sucesso do discurso” (PAGOTTO-EUZEBIO, 2010, 
p. 206). 
 
7 Sobre as razões do escândalo que o ensino dos Sofistas provocou ver Rocha Pereira 
2003, p. 448 e nota 7, citado por Ferreira 1993, p. 37 nota 32. 
 30 
Desta forma, o homem instruído pelos Sofistas consegue 
prever as reações dos membros da Assembleia, do Tribunal e 
dos outros órgãos. Devido à sua habilidade dialética e retórica, 
o cidadão educado na democracia alcança influir na tomada 
de decisão dos ouvintes pela sua competência comunicativa, 
pela sua capacidade de persuadir e consequentemente 
dominar o demos. 
 
 
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 31 
 
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 32 
 
 
 
 
 
 
 
Capítulo 2 
SSÓÓCCRRAATTEESS EE AA FFOORRMMAAÇÇÃÃOO DDOO MMEESSTTRREE:: VVIIRRTTUUDDEE,, ÉÉTTIICCAA EE 
EESSPPIIRRIITTUUAALLIIDDAADDEE 
 
Ricardo Tescarolo 
 
 
SÓCRATES, A ARTE DA MAIÊUTICA E O MESTRE VIRTUOSO 
A despeito de não haver registro de qualquer produção 
escrita de sua autoria, a súbita transformação que atingiu a 
filosofia após Sócrates, “confirma-o de maneira que não tem 
comparação com os filósofos precedentes” (REALE, 1993, p. 
253). Sem dúvida, “a filosofia socrática mostra ter tido peso 
decisivo no pensamento grego e, em geral, do pensamento 
ocidental” (ibidem). A partir desta inferência, adotar-se-á 
como iluminação o pensamento atribuído a Sócrates, mais 
precisamente a maiêutica, para refletir sobre a educação 
escolar e o papel decisivo do mestre, a partir da perspectiva da 
prática pedagógica. 
A arte da maiêutica baseia-se na ideia de que o 
conhecimento está latente8 na mente do sujeito como razão 
inata e que, para se tornar consciente, precisa ser “parido” 
(“dado à luz”) mediante sequência lógica de perguntas. 
 
8 Michael Polany, por exemplo, refere-se a essa razão latente como “conhecimento 
tácito” (The Tacit Dimension. The University of Chicago Press, 1996, p. 4), na medida 
em que “we can know more than we can tell” (“sabemos mais do que reconhecemos”). 
 33 
O primeiro texto dos diálogos de Platão, em ordem 
cronológica, a mencionar a maiêutica de Sócrates é o Simpósio. 
Neste diálogo, relatado por Platão, Sócrates repete as palavras 
da sábia sacerdotisa Diotima de Mantinéia, que sugere que a 
alma dos homens está grávida e quer dar à luz. No entanto, o 
parto não pode se realizar. Por essa razão, o mestre, tal qual o 
obstetra, deve ajudar o educando a dar à luz a verdade 
(aleteia). 
Portanto, o mestre não é o que enche a mente do 
discípulo com informações, como se sua mente fosse uma 
caixa vazia. Na maiêutica, o mestre ajuda o discípulo a 
alcançar o conhecimento mediante um diálogo questionador. 
Foucault (2004) adverte que o mestre não pode mais se limitar 
a ser “o mestre da memória”, mas o mediador “na formação 
do indivíduo como sujeito” (p. 160), em que “o ato do 
conhecimento permanece ligado às exigências da 
espiritualidade” que vincula este ato à conversão do sujeito 
(idem, p. 267), condição que será atingida pela prática da aretê 
(virtude). Por conseguinte, o mestre de virtudes pressupõe o 
mestre virtuoso. 
Mas será a virtude ensinável? A virtude pode ser 
ensinada, sim, mas menos pelos discursos e textos do que pelo 
exemplo, que se funda na ética e se nutre da sabedoria 
dedicada à construção da reciprocidade e do respeito à 
alteridade e à diversidade. A ética deve se constituir, pois, na 
sustentação da ação humana, integrada pela vontade e pelo 
livre-arbítrio, assumindo sentido mais radical como 
responsabilidade pelas consequências das iniciativas humanas 
e servindo de referência para o diálogo de cada pessoa com a 
própria consciência e com as consciências dos outros, 
despertando-os de uma eventual indiferença em relação à 
agressão à vida e à dignidade da pessoa. 
Assiste-se hoje à substituição do paradigma social por 
outro que decorre de um processo de “dessocialização” 
(TOURAINE, 2007, p. 23), acompanhado por uma “penetração 
 34 
generalizada de uma violência de mil formas e faces, que 
rejeita todas as normas e os valores sociais” e a “escalada das 
reivindicações culturais, tanto sob a forma neocomunitária 
como sob a forma de apelo a um sujeito pessoal e à 
reivindicação de direitos culturais” (ibidem). E, no esforço de 
criação de “instituições e regras de direito que sustentarão a 
liberdade e a criatividade das pessoas, estão em jogo a família e 
a escola” e, em seu centro, os modelos educacionais (idem, p. 
240). 
Por isso, a atualização dos mestres na concepção da ética 
assume atualmente importância crucial. De fato, a eficácia da 
escola será principalmente resultado da virtuosidade da 
intervenção docente em seu interior. E apenas no contexto 
mais amplo da função social de formação do mestre é que as 
questões da sua intervenção ética terão sentido. Sua formação 
priorizará, destarte, o manejo mais amplo dos saberes, como 
projeto solidário e construçãocoletiva, alimentado pela 
profundidade e pelo confronto constante e convergente e 
considerando a aprendizagem em suas implicações 
emocionais, afetivas e relacionais. 
A formação do mestre passa, então, a ser afetada pela 
natureza complexa do paradigma emergente, implicando o 
desenvolvimento das capacidades de identificar, analisar e 
operacionalizar sua ação tendo em conta, de um lado, as 
complexas circunstâncias contemporâneas. Os mestres, assim, 
aptos a elaborar e atualizar os saberes pedagógicos, não 
ficarão reduzidos a executores de projetos alheios ou planos 
acabados. 
Enfim, a visão do mestre não pode se limitar a fixar o 
olhar no dedo que aponta, mas estender sua perspectiva para 
aquilo que o dedo aponta: a constelação das novas 
possibilidades nascidas no interior das novas, ricas, complexas 
e dinâmicas circunstâncias contemporâneas, mas que também 
se alimenta de perplexidade e consternação. 
 35 
Impõe-se, pois, a articulação de novos conhecimentos 
com novos objetivos e formas de aprendizagem e de ensino, 
pelo desenvolvimento de uma cartografia de relevâncias que 
funcione como um radar capaz de perscrutar uma nova 
epistemé fundada em dois eixos: a ética planetária e a 
espiritualidade. 
 
 
A ÉTICA E A ÉTICA PLANETÁRIA 
A ética planetária, segundo O’Sullivan (2004), manifesta-
se no seio de uma racionalidade industrial como um 
movimento transformador que transcende ao modernismo 
progressista, ainda que o inclua, e se empenha para favorecer 
um “habitat planetário sustentável para seres vivos 
interdependentes, além e contra o apelo disfuncional do 
mercado competitivo global” (p. 26). Isso implica parâmetros 
visionários e transformadores baseados em um 
desenvolvimento sustentável que se coloca contra os mitos do 
otimismo ilimitado no crescimento e na abundância e da 
produção industrial, da expansão tecnológica e do consumo a 
qualquer custo (idem, p. 28-39). 
Embora as pessoas aparentemente tenham preservado e 
mobilizem sua capacidade de desencadear processos de 
intervenção transformadora, tal intervenção acabou se 
tornando uma prerrogativa dos cientistas que, sem “a textura 
das relações humanas”, ampliaram a esfera dos negócios 
humanos a tal ponto que extinguiram “a consagrada linha 
divisória e protetora entre a natureza e o ser humano” 
(ARENDT, 2001, p. 337), transformando-o no predador mais 
voraz da natureza. 
A cosmovisão exclusivamente antropocêntrica e inter-
humana, em sua natureza analítica, cientificista e 
instrumentalmente racionalista da realidade universal, 
separou a Noosfera — termo teilhardiano que corresponde à 
camada humana reflexiva da Terra, em vias de unificação 
 36 
física e união espiritual, que ele denominou ‘unanimização’ — 
da Biosfera, a camada viva não reflexiva que alimenta e 
sustenta a Noosfera, que por sua vez depende de sua 
preservação, numa simbiose cheia de energia, mas complexa e 
delicada (CHARDIN, 2003, p. 210). 
Nesse contexto, é urgente que se desenvolva, em todas 
as instâncias da sociedade — e aqui colocamos em destaque a 
escola — uma ética planetária que se empenhe pela 
integridade da “realidade sagrada primordial” do universo 
(O’SULLIVAN, 2004, p. 379), estabelecendo um novo contrato 
de solidariedade com a terra, com a vida e com o outro, 
superando o relativismo moral e a privatização de valores 
ofertados ao deus-mercado. 
Neste caso, o uso ético da razão questiona esses valores e 
se move em torno da questão da justiça, representando 
fenômeno interpessoal que passa a se constituir no conjunto 
dos princípios que só ocorrem no diálogo. Assim, quando a 
razão prática se pauta pelos princípios éticos, a vontade e a 
razão se amalgamam nos sujeitos humanos. O uso ético, 
portanto, leva em conta o que é bom para a sociedade como 
um todo e se questiona sobre a coerência do agir individual 
em relação ao projeto coletivo, representando, assim, atitude 
baseada em virtudes. Os princípios éticos, nesse caso, 
assumem natureza racional garantida por sua universalidade. 
Todas as iniciativas humanas, portanto, precisam assumir 
forma de valor e integrar determinada ética (cf. HABERMAS, 
1989). 
Tal condição nos reporta ao contrato ético 
imprescindível à educação, na medida em que é ela que recebe 
a responsabilidade coletiva de contribuir para a inclusão das 
crianças e dos jovens em um mundo em permanente 
metamorfose. Conforme entende Hannah Arendt (2002, p. 
239), essa responsabilidade assume, na educação, uma forma 
de autoridade diferente da competência — certamente 
necessária, porém não suficiente —, decorrente dos saberes 
 37 
pedagógicos. Tal autoridade, delegada e legitimada pelo 
poder social, repousa na responsabilidade ética que os 
educadores assumem pelo mundo. É como se representassem, 
perante a criança e o jovem, todos os adultos. Acontece, 
porém, que a autoridade pública e política, em que se baseia a 
autoridade da escola e dos educadores, ou perdeu quase todo 
o sentido, ou tem o seu papel contestado — em razão da 
violência, da arbitrariedade, da impunidade e da corrupção 
nas esferas política e social. 
É nesse cenário contemporâneo de crise que o mestre 
virtuoso deverá ser capaz, pelo testemunho de sua ação 
educativa, de ensinar os alunos a agirem eticamente em favor 
da dignidade humana e a responder pelo mundo e pela vida, 
cuja finalidade confunde-se com a própria finalidade da 
educação. E é exatamente a escola, ocupando o ‘lugar’ de uma 
consciência mais ampla sobre toda a cultura e o pensamento 
humanos, que se encontra hoje entre a tradição e a inovação, a 
conservação e a mudança, entre o passado e o futuro, e diante 
do seguinte dilema ético: se, como pessoas, amamos ou não o 
mundo e a vida o suficiente para assumirmos 
 
a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína 
que seria inevitável não fosse a renovação e vinda dos novos e 
dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se 
amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de 
nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos e, 
tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de 
empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, 
preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de 
renovar um mundo comum (ARENDT, 2002, p. 247). 
 
O contexto contemporâneo de crise também causa 
profunda repercussão na história de cada pessoa, ao revelar 
‘quem’ ela de fato é. A identidade real da pessoa se coloca, 
então, em oposição à sua personagem social, isto é, ao ‘que’ ela 
é, que se manifesta nos talentos, habilidades e serviços que ela 
 38 
pode exibir ou ocultar, conforme isso for útil ou necessário aos 
seus interesses particulares. Se a pessoa se limitar ao ‘que’ ela 
é, sua ação perde o caráter genuinamente humano e torna-se 
uma realização ordinária, sem a revelação da pessoalidade, 
reduzindo-se ao labor para satisfazer suas necessidades de 
sobrevivência ou ao trabalho que a reduz a instrumento ou 
mecanismo (recurso?) dedicado à fabricação de alguma coisa. 
A ação comunicativa, então, limitar-se-á a uma conversa vazia 
e insignificante para iludir o adversário. Enfim, a revelação e a 
emancipação humanas só ocorrem a partir da identidade única 
e singular de ‘quem’ é a pessoa, e não do ‘que’ ela é (idem, 
2001, p. 193). 
Nesse processo, a consciência, sob inspiração ética, é 
instada a assumir como princípio que toda pessoa é 
essencialmente livre e solidária, capaz de um protagonismo 
responsável. 
Tal princípio, entretanto, pode parecer improvável, por 
depender muitas vezes de valores submetidos à perspectiva e 
ao interesse de quem, consciente ou inconscientemente, muitas 
vezes deles se serve desumanamente. 
Como a convivência humana se baseia na necessidade 
histórica de estabelecer contratos de longo prazo que evoluem 
em leis, regimentos, normas e preceitos morais, a ética passa, 
então, a ser o princípio catalisador que garante a dignidade da 
vida humana, fundamentando as normas de respeito de todos 
por todos e a responsabilidadesolidária de cada um pelo 
outro e pelo mundo. 
Não obstante, considera-se aqui a ética que se funda 
também na “atribuição objetiva por parte da natureza do todo, 
[...] de tal espécie que mesmo o último membro de uma 
humanidade moribunda, em sua última solidão, lhe poderia 
ainda ser fiel” (JONAS, 2004, p. 272). Será, pois, na perspectiva 
da intervenção humana iluminada pelas virtudes que deve ser 
considerada a história de todas as pessoas. 
 
 39 
A ESPIRITUALIDADE 
A espiritualidade é a sabedoria que concilia a razão, a 
emoção e a experiência com a consciência e a ética com a 
reflexão, a sensibilidade e a intuição, cuja condição central é o 
amor, mas não em sentido qualquer. 
O amor, na espiritualidade, é “a afinidade do ser com o 
ser”, não exclusivo do ser humano, mas, como coloca Chardin, 
“uma propriedade geral da Vida [...] e, sob todos os seus 
matizes, o sinal mais ou menos direto marcado no âmago do 
elemento pela Convergência psíquica do Universo sobre si 
mesmo”. Só o amor nos vincula, reúne, integra, identifica e 
prende a todos os seres na Terra pelo mais fundo de nós 
mesmos através de uma ‘vibração fundamental’ que nos 
impele inexoravelmente para a Unidade, “no Sentido do 
Universo, Sentido do Todo: diante da Natureza, perante a 
Beleza, na Música, a nostalgia se apossa de nós — a expectação 
e o sentimento de uma grande Presença” (CHARDIN, 1986, p. 
301). 
Como seremos íntegros sem o mundo, a nossa 
‘circunstância’, e sem a cumplicidade de todos os seres 
viventes e de todas as coisas existentes, nessa tessitura vital 
que se nutre do Espírito da Terra? Como seremos humanos 
sem essa “força primordial do espírito dotado de atividade 
volitiva, força animadora e criadora de valores”? Como 
seremos solidários e sensíveis ao outro sem o amor “que nos 
arranca do nosso isolamento individual e nos integra ao Real e 
ao convívio na comunidade humana”? (Idem, p. 348). 
A espiritualidade é o amor reflexivo pela Vida que 
promove a transformação do self como autoconsciência, auto-
reflexão e altruísmo em conexão com o universo, um viver 
além de nós mesmos, que não apresenta natureza nem 
racional, nem emocional, mas as duas amalgamadas. Daí a 
necessidade de se ter “sobre a natureza um ponto de vista, um 
conhecimento, um saber amplo e detalhado que nos permita 
 40 
precisamente conhecer não apenas sua organização global, 
mas seus detalhes” (FOUCAULT, 2004, p. 339). 
A espiritualidade é reverência, uma espécie de confiança 
em nossa capacidade de usar amplamente o poder das 
virtudes; não de uma virtuosidade apenas inter-humana, mas 
uma virtuosidade planetária, o que “pressupõe um 
compromisso com a bondade do mundo, uma bondade que 
pode ser infinitamente multifacetada e plural, mas que 
reconhecemos como sendo muito maior e mais poderosa que 
nós mesmos” (SOLOMON, 2003, p. 100). 
Tornamo-nos dessa forma sagrados, porque 
participamos, “como membros da comunidade universal que 
nos produz com a substância das estrelas” (O’SULLIVAN, 
2004, p. 379), da dimensão sagrada de todo o universo. E a 
percepção da grandeza numinosa e inefável da vida conduz, 
na revelação de Teilhard de Chardin (1986), o nosso espírito ao 
‘êxtase’, como o arrebatamento íntimo, o enlevo, o arroubo 
“que transporta para fora do mundo exterior e leva a 
participar de uma realidade superior e universal”, o Espírito 
da Terra (idem, p. 335). Por isso, nossa luta não pode mais se 
limitar apenas pela sobrevivência, mas pela ‘supervida’ 
universal que, no dizer de Chardin, é o nosso “acesso à vida 
consciente coletiva que ultrapassa a vida consciente individual 
[...], engendrada pela união dos centros pessoais entre si e pela 
união de todas as pessoas num foco ‘hiperpessoal’ de amor e 
de irreversibilidade” (p. 269). 
Impõe-nos, pois, a espiritualidade que propicia a 
contemplação “da maravilha e do mistério do universo”; da 
“promoção do processo de criação de significado”; da 
concepção de “unidade da natureza e da humanidade”; “de 
um mito cultural que sirva de base para a fé na capacidade 
humana de participar de um mundo de justiça, compaixão”; 
além “do cuidado com o outro, amor e felicidade”, “de ideais 
de comunidade e interdependência”, “de atitudes de 
indignação e responsabilidade diante da injustiça, da 
 41 
indignidade, da violência e da opressão” (PURPEL apud 
O’SULLIVAN, 2004, p. 393-396). 
Por isso, a espiritualidade catalisa as manifestações 
reveladoras do sagrado, como amor pela Vida, que se realiza 
na utopia de um mundo justo e fraterno. 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10 ed. São Paulo: Forense 
Universitária, 2001. 
 
_______. Entre o Passado e o Futuro. Coleção Debates. Trad. Mauro W. 
Barbosa de Almeida. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. 
 
BORGES, Jorge Luis. História da Eternidade. Trad. Carmen Cirne Lima. 
4.ed. São Paulo: Globo, 1997. 
 
CHARDIN, Teilhard de. O Fenômeno Humano. [1955]. 6.ed. São Paulo: 
Cultrix, 2003. 
 
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins 
Fontes, 2004. 
 
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de 
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. 
 
JONAS, Hans. O Princípio Vida – Fundamentos para uma biologia 
filosófica. Trad. Carlos Almeida Pereira. Petrópolis/RJ: Vozes, 2004. 
 
O’SULLIVAN, Edmund. Aprendizagem Transformadora - Uma visão 
educacional para o século XXI. São Paulo: Cortez Editora; Instituto Paulo 
Freire, 2004. 
 
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. 1. São Paulo: Loyola, 
1993. 
 
SOLOMON, Robert C. Espiritualidade para Céticos – Paixão, verdade 
cósmica e racionalidade no século XXI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 
2003. 
 42 
 
 
 
 
 
 
 
Capítulo 3 
AAGGOOSSTTIINNHHOO DDEE HHIIPPOONNAA:: AA VVEERRDDAADDEE,, OOSS SSEENNTTIIDDOOSS 
EE OO ““MMEESSTTRREE IINNTTEERRIIOORR”” 
 
 Rogério Miranda de Almeida 
 
Ao iniciar a construção de sua teoria do conhecimento, 
na obra intitulada Contra os acadêmicos, Agostinho ataca 
igualmente as teorias céticas da “média” e da “nova” 
Academia de Platão. A primeira teve como chefe de fila, ou 
como diretor, Arcesilau de Pitane (c. 315–c. 240 a.C.), enquanto 
que a “nova” Academia foi comandada por Carnéades de 
Cirene (c. 214–c. 128 a.C.), seguido por Clitômaco de Cartago, 
Filão de Larissa e Antíoco de Ascalona. Foi, sobretudo, graças 
às leituras de Cícero que o teólogo africano se familiarizou 
com a história e as principais ideias da Academia. 
Do ponto de vista formal, a obra Contra os acadêmicos se 
divide em três livros e se apresenta como a primeira produção 
dos “diálogos de Cassiciaco” que se desenrolaram durante o 
chamado período de conversão do professor de retórica. Este 
período se acha compreendido entre o fim do verão de 386 e as 
primeiras semanas de 387. Cassiciaco era uma propriedade de 
um amigo de Agostinho, situada não muito distante de Milão, 
onde ele transcorreu esses meses discutindo questões 
filosóficas juntamente com a sua mãe, Mônica, com o filho, 
Adeodato, com o irmão, Navígio, o amigo, Alípio, alguns 
discípulos e mais dois parentes. Certo, os primeiros escritos 
agostinianos não derivam todos da convivência que tiveram 
 43 
esses personagens em Cassiciaco. Não são dessa época, por 
exemplo, A potencialidade da alma, O livre-arbítrio, A música e O 
mestre. Não obstante, com exceção de A imortalidade da alma e 
dos Solilóquios – que é propriamente um monólogo ou, mais 
exatamente, um diálogo de Agostinho consigo mesmo – todos 
os demais textos foram redigidos sob a forma de diálogo, 
inclusive o Contra os acadêmicos, A vida feliz e A ordem. A tônica 
que atravessa e caracteriza esses escritos é a questão da 
linguagem, da “iluminação interior”, da fiabilidade ou não 
fiabilidade dos sentidos e, em suma, a busca da verdade. 
Retenha-se, contudo, que esta busca é paradoxal, na 
medida em que o “mestre interior” não pode prescindir nem 
dos sentidos nem da linguagem que a exprime. É, pois, esta 
problemática que pautaráas reflexões que se seguem, as quais 
têm como ponto de partida e referência principal a obra Contra 
os acadêmicos. 
 
 
O CETICISMO E A BUSCA DA VERDADE 
Não é por acaso que Agostinho põe na boca de seu 
discípulo Licêncio, já no Primeiro Livro de Contra os 
acadêmicos, a declaração de Cícero segundo a qual nada pode 
ser conhecido com certeza e que o sábio deve dedicar-se 
incansavelmente à busca da verdade, porquanto, mesmo na 
hipótese de que as coisas incertas possam eventualmente 
revelar-se como verdadeiras, o sábio não estaria isento de erro. 
Esta última possibilidade, prossegue o discípulo, estaria em 
total desacordo com a sua condição ou sua pretensão de sábio. 
Por conseguinte, e em contraste com a conclusão de seu 
interlocutor Trigésio, a opinião de Licêncio é a de que se se 
deve aceitar que o sábio é necessariamente feliz, e se o papel 
da sabedoria consiste tão somente na busca da verdade, 
forçoso é admitir que uma vida é feliz na medida mesma em 
que dura a investigação ou a procura da verdade (Cf. 
AGOSTINHO, 2006, p. 31). Melhor dizendo, a felicidade reside 
 44 
na busca contínua, incessante e infatigável da verdade, pois – 
pondera o defensor dos Acadêmicos – aquele que busca a 
verdade com menos tenacidade do que convém à finalidade 
do homem, jamais poderá atingir este fim, que é justamente a 
busca perfeita da verdade. Aquele, porém, que a procura sem 
trégua nem descanso pode considerar-se feliz, mesmo se não a 
encontra jamais (Cf. ibid., p. 35). 
A partir dessas afirmações, não se pode senão chegar a 
esta constatação, ou a esta problemática: se todo filosofar é 
busca ou investigação, é o próprio conceito de filosofia, 
enquanto ciência, que agora deve ser questionado. Pois, com a 
obtenção desta ciência, cessa simultaneamente a sua busca e, 
por conseguinte, o processo filosofante, que se verá na 
necessidade de reconhecer o seu próprio termo, ou os seus 
próprios limites. Todavia, e conforme as declarações de 
Licêncio, se a felicidade e o fim da alma racional consistem no 
filosofar, a filosofia estaria paradoxalmente destinada a jamais 
atingir a verdade que procura. De sorte que o filosofar – e a 
felicidade que lhe está inerentemente vinculada – se 
resolveriam não propriamente na meta a que se propuseram, 
mas no vir-a-ser que conduziria a esta meta. O Primeiro Livro 
de Contra os acadêmicos termina, portanto, numa suspensão de 
sentido, e esta suspensão é tanto mais relevante quanto é o 
próprio Agostinho quem sublinha, numa tradição que 
remonta a Platão e a Aristóteles, que todos aspiram à 
felicidade, mas que a felicidade só será possível se a verdade 
for encontrada ou – ajunta o retórico – se ela for 
diligentemente procurada. Com efeito, afirma, “devemos 
colocar em segundo plano todo o resto e dar-nos inteiramente 
à busca da verdade, se quisermos ser felizes” (Ibid., p. 63). 
No Segundo Livro, é o próprio Agostinho quem exporá, 
mas de maneira difusa, as características principais da filosofia 
acadêmica, segundo a qual não se deve aderir a qualquer 
doutrina ou a qualquer enunciado para não se incorrer em 
erro. Porém, o retórico ironiza esta atitude cética ao afirmar 
 45 
que os acadêmicos dizem seguir na vida prática a semelhança 
(similitudo) do verdadeiro (verum), quando na realidade 
ignoram a própria natureza do verdadeiro. Segue-se então 
uma análise crítica dessas noções e se demonstra – tanto da 
parte de Agostinho quanto da de Licêncio – que o cético é 
paradoxalmente obrigado a pressupor e a fazer uso da 
verdade. É que a própria escolha de excluir o “verdadeiro” 
para dar lugar ao “verossímil” não pode ser feita senão a 
partir do próprio conceito de “verdade” (Cf. ibid., p. 99, 109, 
111). Ao invés, portanto, de admitir a noção de verossímil, os 
convivas aderiram à sugestão de Agostinho, que se propôs 
demonstrar estas duas possibilidades: 1) é muito mais 
provável que o sábio possa atingir a verdade; 2) não se deva 
manter para sempre o juízo em suspensão. 
O Terceiro Livro se desenvolve como uma retomada e, 
ao mesmo tempo, um aprofundamento da problemática do 
paradoxo do ato de filosofar que, como vimos no Primeiro 
Livro, pressupõe a não apropriação total da verdade. Aqui 
também Agostinho examina – embora não mais sob a forma 
de diálogo, mas de exposição – uma passagem de Cícero sobre 
os acadêmicos e a definição estoica de Zenão acerca do 
“verdadeiro”. De suas análises resulta que o filosofar consiste 
essencialmente não na posse da verdade, mas na possibilidade 
mesma de se conhecer a verdade. 
É, todavia, curioso o fato de Agostinho evocar, pela boca 
de seu interlocutor Alípio, a divindade marinha Proteu, que 
gozava da reputação de se metamorfosear e de conhecer o 
presente, o passado e o futuro. No entanto, este “velho do 
mar” – cuja residência Homero situava na ilha de Faros e 
Virgílio na de Cárpatos – não revelava facilmente seus 
presságios a quem o fosse consultar. Quem dele, pois, 
desejasse extrair profecias devia ir encontrá-lo na hora do 
repouso meridiano, quando seria possível amarrá-lo e, assim, 
coagi-lo a proferir seus vaticínios. Surpreendido, porém, e 
pleno de cólera, Proteu se transformava numa série de 
 46 
monstros, chegando mesmo a revestir as aparências da água e 
do fogo. Caso, contudo, não conseguisse suplantar seu 
adversário, o adivinho retomava sua forma primitiva e, então, 
consentia em falar. 
Sintomático é, pois, ver Alípio – após recapitular a 
doutrina dos Acadêmicos, segundo a qual não se deve dar o 
seu assentimento irrefletidamente – assimilar esta suspensão 
de juízo àquela imagem de Proteu que – diz ele – se deixava 
amarrar tão somente para melhor fugir à tentativa de 
apreendê-lo (Cf. ibid., p. 141). Mais curioso ainda é constatar 
que também Agostinho faz apelo – certo, de maneira irônica – 
à mitologia e aos poetas que apresentam Proteu “como a 
figura da verdade”; esta verdade que ninguém poderá reter 
caso, “enganado por falsas imagens, tenha afrouxado ou 
deixado partir os nós da compreensão” (Ibid., p. 143). A 
compreensão a que se refere Agostinho remete obviamente à 
esfera da razão, que na tradição platônica, e neoplatônica, é a 
única capaz de apreender a essência dos objetos, mas desde 
que, à diferença da imaginação – que não cessa de deambular 
pelo mundo da sensibilidade e da efemeridade – não se deixe 
seduzir pela aparência e pelas transformações que o 
caracterizam. Ora, não esqueçamos de que o próprio 
Agostinho, além de sua formação retórica e musical, recorre 
frequentemente à mitologia e à literatura romanas9. De sorte 
que esta aversão e depreciação vis-à-vis da imaginação e da 
sensibilidade – que só tenderão a se acentuar ao longo de sua 
obra – já poderiam revelar-se como sintomas de um conflito 
ou de duas tendências que caracterizam um escritor em cujo 
estilo se fazem ressaltar a plasticidade, os jogos de palavras, as 
 
9 Para a formação de Agostinho, veja a obra clássica de H.-I. MARROU, Saint 
Augustin et la fin de la culture antique. Paris: E. De Boccard, 1958 (1ª. ed. 1938), 
capítulos I-III. 
 47 
imagens, as metáforas, as metonímias, a verve, a erótica e, 
enfim, a sedução e a beleza do dizer, ou do como dizer10. 
Com relação à figura de Proteu que Agostinho evoca 
nessa passagem, não se pode deixar de pensar naquele registro 
do real que Lacan amarrará borromeanamente com os outros 
registros do imaginário e do simbólico. O real não pode ser 
concebido sem um e sem outro, todavia, ele permanece hostil 
a toda tentativa de captação, porquanto é de natureza 
proteiforme. Com efeito, pela experiência da fala e, portanto, da 
falha, da falta, dos ditos e dos inter-ditos que não cessam de 
reenviar a este impossível, o real se manifesta como aquele 
dado bruto que está continuamente a retornar e a se oferecer à 
simbolização, na medida mesma em que escapa, se elide e se a 
subtrai à significação enquanto tal. É o próprio Lacan quem 
chama a atenção para este

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